2 O ESPAÇO FÍSICO NO LIVRO DE CONTOS BICHOS DE MIGUEL TORGA Tilma Codorniz Pereira UEMS – Jardim [email protected] 1 – Introdução: O presente trabalho tem como objetivo o estudo do espaço físico do livro de contos Bichos, do autor português Miguel Torga, escrito em 1940 e que em 1995 chegou a sua 19ª edição. Uma obra muito apreciada tanto pelos leitores como pelos estudiosos da Literatura Portuguesa. O tema pelo qual iniciaremos nosso estudo será sobre as “Mutações do gênero conto”, nessa parte recorremos a importantes teóricos para entendermos como ocorreu o início dessa arte de narrar e como foi seu processo de evolução ao longo dos séculos. Sobre as possíveis definições desse gênero literário, é lícito lembrar que todos os nomes relevantes da literatura por nós pesquisados afirmaram que se trata de um estilo pouco estudado e de difícil definição. Em “Miguel Torga, um poeta transmontano” relataremos um pouco sobre a vida e a obra deste autor brilhante, pois Torga teve uma vida muito atuante tanto como escritor, como médico e como cidadão português, recebeu inúmeros prêmios e homenagens, optando sempre por descrever e valorizar seu povo e sua pátria, utilizando para isso cenários rústicos de um Portugal rural, esquecido no tempo, com pessoas e animais lutando pela sobrevivência, num espaço físico muito hostil e marcante. E no “O espaço físico na obra Bichos, de Miguel Torga” passaremos a enfocar o tema específico deste trabalho, que é a análise do espaço físico, como é que ele atua na vida, nas ações e nos pensamentos das criaturas (tanto dos seres humanos como dos animais), para o desenvolvimento desta análise, nos baseamos em nomes muito apreciados e respeitados, como Osman Lins e Antonio Dimas, por exemplo, sendo que para isso analisamos trechos de alguns dos 14 contos da obra Bichos , de Miguel Torga. 2 - Mutações do gênero conto 3 Ao lermos os relatos históricos encontramos ao longo do desenvolvimento da humanidade que as pessoas se reuniam em grupos para contar e ouvir histórias sobre: costumes, rituais e crenças, geralmente junto às fogueiras. Os relatos eram proferidos pelos anciões ou chefes dos grupos como forma de aprendizado ou de iniciação dos jovens para as responsabilidades da vida adulta. Segundo Nádia Gotlib, é difícil precisar quando exatamente se iniciou a narrativa oral de histórias, o que existe de fato são hipóteses feitas por estudiosos e escritores do gênero literário “conto”. Como Julio Cortázar que teceu o seguinte comentário: É preciso chegarmos a ter uma idéia viva do que é o conto, e isso é sempre difícil na medida em que as idéias tendem para o abstrato, para a desvitalização do seu conteúdo, enquanto que, por sua vez, a vida rejeita esse laço que a conceptualização lhe quer atirar para fixá-la e encerrá-la numa categoria. (CORTÁZAR, 1974, p.150). Observa-se através das palavras de Cortázar que é muito difícil realmente esclarecer e limitar o gênero literário “conto”, pois a multiplicidade de textos desafiam nossas limitações dentro de padrões pré-estabelecidos. Não encontramos um conceito único e sim vários, porém todos os pesquisadores concluem a mesma coisa, que trata-se de um estilo alheio a moldes e regras. De acordo com estudos nessa área, os contos egípcios “Os Contos dos Mágicos”, que surgiram por volta de 4000 anos antes de Cristo, são possíveis precursores desse gênero narrativo na antiguidade. Podemos percebê-los ainda nos relatos bíblicos, nas estórias de Caim e Abel. Bem como os contos de Sheherazade em “Mil e uma noites” (século X), que percorreram da Pérsia para o Egito (século XII) e já no século seguinte estavam por toda Europa e que resistem ainda ao tempo e encantam ainda hoje por sua magia e esplendor. Foi no século XIV que os contos passaram a fazer parte da cultura escrita, como exemplos podemos destacar os “Contos Eróticos”, de Bocaccio no livro Decameron, escrito 4 em 1350, que continham ainda a riqueza da oralidade, isto é, as narrativas mantinham-se vivas dentro dos livros. Contudo, foi no século XIX, com a expansão da imprensa, que esse gênero literário ganhou espaço nos jornais e revistas, ampliou-se a divulgação e o interesse pelas narrativas que antes eram apenas conhecidas através da oralidade. Nessa época que Edgar Allan Poe se destacou como contista e teórico. Segundo afirma Cortázar (1974, p. 150), o que dificulta a classificação do gênero narrativo conto é a ausência de “leis” que delimitem de fato o que é e como deve ser um conto, pois o que encontramos realmente são pontos de vista semelhantes ou até mesmo diferentes. Assim como Cortazar, Mário de Andrade, em “Contos e contistas” (apud GOTLIB, 1998, p. 9) disse que “’conto’ é tudo que o autor batizou como conto”. Acrescentando ainda que este gênero literário é “indefinível, insondável, irredutível a receitas”. Assim, constatamos o quanto é difícil estabelecer limitações ou regras para os contos, pois até mesmo seus criadores não conseguiram chegar a um consenso sobre como defini-lo, através de uma forma linear, uniforme. Observamos que o gênero conto tem como ponto central ser uma narrativa breve, curta, porém que faz uso de palavras-chave, as quais prendem a atenção e levam o leitor/ouvinte a uma imensa expectativa pelo desfecho da história. Por isso, os estudiosos sobre este gênero literário afirmam que “...É preciso dosar a obra (...). Se o texto for longo demais ou breve esta excitação ou efeito ficará diluído. (POE apud GOTLIB, 1998, p. 32). 3 - Miguel Torga, um poeta transmontano Miguel Torga era o pseudônimo do autor português Adolfo Correia da Rocha, nascido em S. Martinho da Anta, Trás-os-Montes, no Distrito de Vila Real, em 12 de Agosto de 1907. Filho de camponeses, o contato com a vida rural, agrária o marcou para sempre. Com o pai Francisco Correia da Rocha aprendeu a grandeza de caráter, o senso de justiça e o amor pela terra, com a mãe Maria da Conceição Barros, manteve uma relação de afeto e cumplicidade. A lista de prêmios e homenagens dedicados a este autor português é enorme, porém foram raras as ocasiões que ele aceitou ir à público para recebê-las, porque como o próprio 5 Torga dizia, os repórteres estavam na maioria das vezes interessados em mostrá-lo ao público e ele não queria ser visto como uma “atração” a ser exibida, mas sim como o escritor que era e que dedicou anos a fio para dar magia e vida às suas obras. Em 1954 Torga recusou o prêmio “Almeida Garrett”, por sua tão conhecida aversão à festividades. Torga, ao fazer uso da palavra com maestria e genialidade, ofereceu ao mundo literário livros que além de cativar pelo seu conteúdo “fantástico” também foram capazes de falar sobre a vida do povo humilde de Portugal, assim ele teceu que: Procurei sempre ser um homem completo. O interesse que sempre tenho concedido aos meus concidadãos, quer como cidadãos, quer como doentes, fez com que me sentisse sempre mais próximo dos homens. (TORGA apud ARNAUT, 1992, p. 55) Diante de tal afirmação, constatamos a profunda relação que havia entre o médico e o escritor, pois ao se valer do contato direto com as pessoas ao atender em seu consultório médico, o então “doutor Adolfo”, colhia dados importantes sobre a realidade telúrica de Portugal e seus habitantes e as transmitia com perfeição e genialidade para as mãos sábias e a mente fértil do escritor “Miguel Torga”. 4 - O espaço físico dentro da obra Bichos Neste capítulo nos deteremos no tema central proposto nesta monografia, o espaço físico dentro do livro de contos Bichos, de Miguel Torga. Segundo Osman Lins (1976, p. 65), o espaço constitui elemento da máxima importância e também um dos mais interessantes no universo ficcional de obras por ele já analisadas. Existem narrativas em que o espaço é descrito de forma imprecisa e rarefeita, neste caso o autor tem como objetivo propiciar ao seu leitor uma descoberta que só será concretizada no momento em que este souber ler nas “entrelinhas” da narrativa. 6 É o que constatamos no conto “Jesus”, uma adaptação feita por Torga sobre um relato bíblico, no qual temos o menino Jesus realizando o seu primeiro milagre. Nesta narrativa, a mais breve dentro do livro, o espaço físico é elaborado de forma sutil, quase indefinida. Assim, o narrador inicia o conto descrevendo o local em que estavam os três personagens da narrativa, dizendo: “Comiam todos o caldo, recolhidos e calados...” (1996, p.79), ficando claro para o leitor que todos estavam na cozinha da casa, efetuando uma refeição. Essa forma discreta de retratar o espaço físico irá, pouco a pouco, no decorrer da narrativa, direcionar o leitor para uma das muitas histórias presentes na bíblia. Quando Torga escreveu “Pai e Mãe” inicialmente com letras maiúsculas, compreendemos que trata-se de José e Maria, os pais do menino Jesus. A narrativa prossegue com o menino contando aos pais que quando retornava com as ovelhas para o lar à tarde, observou que um pintassilgo saiu de dentro de uma grande árvore, com isso passou a observálo minuciosamente até avistar algo pequenino e negro lá no topo, despertando então seu interesse para saber o que era aquilo. O menino Jesus resolveu então prender a cordeira e passou a subir na tal árvore, neste momento seus pais ouviam a história apreensivos, espantados porque o pé de cedro era muito alto e seu filho era só uma criança que poderia cair e machucar-se. Observamos que fica evidente que não se trata mais do espaço físico da casa da família, na qual Jesus tinha a proteção dos pais, mas sim de um local longe, desconhecido, em alguma região destinada ao pastoreio das ovelhas, o que Torga descreveu da seguinte forma: E o pequeno ia subindo. O cedro era enorme, muito grosso e muito alto. E o corpito, colado a ele, trepava devagar, metade de cada vez. Firmava primeiro os braços; e só então as pernas avançavam até onde podiam. Aí paravam, fincadas na casca rija. (1996, p. 80). Com tal precisão de detalhes, Torga propicia ao leitor uma “visão” clara da trajetória inocente e destemida desta frágil, porém determinada criatura, que precisou descansar por três vezes para poder chegar ao topo da árvore. Assim, a cada novo parágrafo Torga vai moldando 7 o espaço físico, possibilitando ao leitor estabelecer uma relação com a narrativa presente no livro sagrado. Toda essa aventura vivida pelo menino trouxe para seus pais o pavor, a horrível imagem de vê-lo com seu corpinho frágil caindo lá do alto do pé de cedro no chão duro e mortal de Nazaré. Quando Torga especifica o espaço físico “Nazaré”, passamos a confirmar definitivamente que se trata da história de Jesus, pois foi neste local que ele sofreu e padeceu as asperezas do caminho, tendo que descansar para poder prosseguir e chegar até o local onde o crucificaram, na cidade de Nazaré. Contudo, Torga optou por um desfecho feliz para sua narrativa, pois nela Jesus não morre. Ele vence todas as dificuldades, consegue chegar ao topo e pegar lá no ninho o único ovo existente. O autor narra este momento, com simplicidade e magia, quando o menino com o calor do seu beijo inocente faz com que o ovo se quebre e nasça um frágil e depenado pintassilgo. E, quando o menino termina de contar sua história para seus pais, ambos falam palavras enigmáticas, as quais ele não entende, mas para ele isso não importa, o que de fato fica na sua mente é a cena do nascimento da pequenina ave. Então Jesus fica a observar sua mãe trabalhar na roca e deixa-se cair num sono angelical, nos braços virgens de sua mãe. Torga elaborou esta narrativa com simplicidade, porém mesmo assim o conto promove momentos em que a fé e o amor se exteriorizam, levando o leitor a refletir sobre o poder do amor, capaz de despertar a vida com tanta perfeição e doçura. Um outro conto chamado “Vicente”, o último do livro, trabalha com a fábula e com a narrativa bíblica, utilizando-se do espaço impreciso também. Na história de “Vicente”, o corvo, o autor dá início à sua narrativa já descrevendo o momento da fuga de Vicente, que abriu as asas negras e partiu, mesmo com o céu sinistro não se intimidou. O espaço físico descrito por Torga ocorre na “Arca de Noé”, que estava a vagar por exatos 40 dias pela imensidão do mar, sob o comando de Deus e tendo o patriarca Noé, com 600 anos de idade, como responsável pela ração diária dos animais. O autor já na primeira página da história deixa evidente o descontentamento de Vicente, quando tece que: 8 Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia-lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. (p. 129). O desejo por “liberdade” cresceu em Vicente, levando-o a fugir rumo a imensidão do mar, deixando para trás a certeza da proteção e da refeição diária. Todos os animais observaram seu ato (como um símbolo de liberdade), alguns com medo, outros deslumbrados por sua coragem, quando Deus lançou um muro de fogo para tentar impedi-lo. O pavor se tornou real quando o Pai perguntou a Noé onde estava seu servo Vicente. Noé tentou disfarçar, contudo alguém delatou a fuga do corvo negro e o Patriarca pediu perdão ao Criador dizendo que nunca o havia ofendido, que sua fuga se deu devido à sua insubmissão. Deus então conduz a arca de volta ao rumo de onde antes eram os Montes da Armênia, todos os seres estavam apreensivos, quanto ao que Deus reservava para Vicente ao encontrá-lo. E após um longo percurso, avistam a terra e percebem que Vicente venceu, conseguiu retornar, estava vivo! Mas o Criador mostrou sua ira e pouco a pouco a água foi destruindo a terra até sobrar somente o pico no qual estava Vicente, mesmo assim ele não cedia, aceitava as conseqüências de sua escolha. O corvo desafiava a onipotência do Criador, queria a liberdade, buscava seu “destino telúrico”, por três vezes Deus, através da fúria das ondas quase matou o corvo. Contudo, percebeu que teria que ceder para não exterminar uma de suas criaturas, permitindo então a vitória de Vicente, que conquistou a sua tão sonhada “liberdade”. Para os estudiosos, o personagem Vicente representa o próprio autor Miguel Torga, pois assim como o corvo, Torga buscou também sua liberdade através dos livros que escreveu, desafiando toda a repreensão imposta durante a fase tumultuada vivida no período da ditadura. Neste conto, podemos observar que assim como Poe, um mestre em “contos de terror”, Torga também atua com precisão através de narrativas concisas, mas capazes de despertarem 9 no público reflexões sobre questões básicas, cotidianas, que até então eram esquecidas ou vistas como algo sem valor aparente. Tchekhov, que teve como mestre Flaubert, afirmava a importância da brevidade dentro da narrativa, argumentando que era preciso dizer somente o suficiente, para poder induzir no leitor o “suspense”, fazendo uso de fatores como: força, clareza e compactação, não se prendendo a excesso de detalhes que podem levar o leitor a diferentes direções, desorientando-o do foco central da narrativa. Segundo Lins (1976, p. 65), o espaço proporciona grandes possibilidades de estudo, variadas e atraentes. O teórico menciona em seu livro obras que tiveram no espaço físico o seu destaque: Odisséia, de Homero, na qual a transcendência do espaço é anunciada a partir da invocação. Em Ilíada, também de Homero, luta-se pela defesa ou conquista de um espaço definido. Outro exemplo importante sobre o espaço como a parte dentro da narrativa com um destaque especial, foi a ambiciosa concepção literária do espaço, o espaço sobrenatural, abrangendo o Inferno, o Purgatório e afinal o Paraíso, surge ao romper do século XIV. Como os “mares nunca dantes navegados”, são o espaço privilegiado na épica de Camões. Para Osman Lins, o espaço não é apenas visual, pois ele interfere no interior dos personagens, torna-se muito abrangente e desse modo, adquire um lugar dentro do espírito, provocando sensações, emoções e atitudes nestes personagens. De acordo com Antonio Dimas (1994, p. 6), concluímos também que Miguel Torga segue os pensamentos de Lins, porque Torga vê o espaço físico como fundamental para o desenvolvimento de determinada ação do personagem, sendo que para o autor em alguns casos o cenário é algo determinante para a conduta do protagonista da narrativa. Este também é o posicionamento de Cândida V. Gancho, que afirmou o seguinte critério para definir o espaço: Espaço é o lugar onde se passa a ação numa narrativa. Se a ação for concentrada, isto é, se houver poucos fatos na história, ou se o enredo for psicológico, haverá menos variedade de espaços; pelo contrário, se a 10 narrativa for cheia de peripécias (acontecimentos), haverá maior afluência de espaços. (GANCHO, 1997, p.23). Isso nos permite concluir que o espaço é capaz de situar os personagens dentro da narrativa e estabelecer uma interação com eles, podendo inclusive influenciar em suas emoções, pensamentos ou atitudes, levando-os a terem eventuais transformações ao longo da história. Torga trabalhou o espaço físico de maneira simples, porém objetiva, causando no leitor a sensação de “vivenciar” cada narrativa de seu livro de conto Bichos. De acordo com Lins (1976), o que também pode ocorrer dentro de uma narrativa é que a personagem passe a transformar em atos a força dominante desempenhada pelo espaço dentro da história. O que o autor discorreu sobre: [...] o espaço propicia a ação e os casos em que, mais decisivamente, provoca- a. Aparece o espaço como provocador da ação nos relatos onde a personagem, não empenhada em conduzir a própria vida – ou uma parte de sua vida -, vê-se à mercê de fatores que lhe são estranhos. O espaço, em tal caso, interfere como um libertador de energias secretas e que surpreendem, inclusive, a própria personagem. (LINS, 1976, p. 100). No conto “Tenório”, o galo, percebemos que o autor trabalhou com um “defeito” dos homens, pois esta narrativa nos remete a um tipo mulherengo, Torga relatou que: 11 [...] quinze mulheres no harém... Que diabo! Mas um homem não se manda fazer. Natureza desgraçada, a sua! Não se fartava!... De resto gostava de variar... Sabia-lhe pela vida uma extravagância! (1996, p. 74). Miguel Torga laborou o personagem Tenório, atribuindo à ele os requintes de um conquistador, um homem que não se cansa de conquistar, de adicionar mais mulheres a sua longa lista de apaixonadas, um típico indivíduo capaz de não se contentar com apenas uma companheira, um alguém que têm como distração e valorização do seu ego, atividade de ir ocupando além do seu espaço físico (o terreiro da casa), também comparecia aos cenários da vizinhança para causar brigas e inquietações. Neste conto, percebemos que o protagonista da narrativa sente-se muito feliz ao atuar como o dono da situação, o líder de seu grupo e o conquistador de todas as fêmeas que surgem no seu caminho, não se restringindo apenas ao seu espaço físico (seu lar) e sim atuando em toda a vizinhança, mesmo que para isso tenha que comprar briga com os outros machos. O conto possui a capacidade de levar seu leitor para uma realidade que se mostra além dele, além da pequena narrativa que conta. Para isso Cortázar afirma que: “O bom contista é aquele cuja escolha possibilita essa fabulosa abertura do pequeno para o grande, do individual e circunscrito para a essência mesma da condição humana”. (CORTÁZAR apud GOTLIB,1998. p. 155). Assim Torga propiciou aos seus leitores pensarem sobre a vida em sociedade, como devemos nos relacionar com os seres que estão a nossa volta. Através deste conto breve, podemos refletir sobre o distanciamento que existe entre os seres da mesma espécie mesmo quando ocupam um local coletivo para viverem. E todo esse afastamento levou o personagem a comportar-se de maneira hostil, rude, afastando-o de seu grupo e fazendo-o cada vez mais parecido com um animal, arredio e indiferente a todos ao seu redor. É o que também percebemos no conto “Madalena”, porque a personagem principal sofre por morar numa vila onde as pessoas de tanto terem uma vida miserável, difícil, passam a comportarem-se de forma mais reprimível, seus pensamentos e seus valores não evoluíram. 12 Por isso “Madalena”, que se descobriu grávida sem estar casada, seria motivo de “falatórios” para os habitantes do lugarejo, motivo de “mau-exemplo”, de “mulher sem valor”, etc. Porque viver naquele lugar agrário, desprovido de esperança transformou essa mulher, levou-a a perder a fé no amor, no desejo da maternidade e assim, “Madalena” passou a se comportar de forma animalesca. Mesmo com o filho no ventre, seu coração não aceitou a idéia da maternidade, pois em seus sentimentos havia só ódio e revolta. Torga começa a narrativa descrevendo o espaço físico em que “Madalena” está: Queimava. Um sol amarelo, denso, caía a pino sobre a nudez agreste da Serra Negra. As urzes torciam-se à beira do caminho, estorricadas. Parecia que o saibro duro do chão lançava baforadas de lume”...Madalena arrastavase a custo pelo íngreme carreiro cavado no granito, a tropeçar nos seixos britados por chancas e ferraduras milenárias [...]. (1996, p.39). O cenário da narrativa castigava a pobre personagem, Serra Negra, onde o sol com todo seu esplendor maltratava aqueles que estavam ao seu alcance, as plantas retorciam-se, o solo parecia soltar fumaça e é neste cenário que “Madalena” transita, movendo-se com dificuldades, enfrentando a rudeza e o calvário, seu corpo pedia desesperadamente por sombra e água fresca, porém esta mulher estava com o pensamento fixo, precisava ir para longe dali, chegar a Ordonho e lá na casa da amiga Ludovina, às escondidas teria aquele maldito filho e depois pensaria no que fazer. Enquanto caminhava castigada pelo calor do sol e a boca sedenta, desesperou-se quando sentiu as dores do parto. E, mesmo assim, buscou com determinação prosseguir, porém o narrador diz que: 13 Chegada ao meio do planalto, as penedias metiam medo. Espaçadas e desconformes, pareciam almas penadas. Uma giesta miudinha, negra, torrada de calor, cobria de tristeza rasteira o descampado. Debaixo dos pés, o cascalho soltava risadas e escarninhas. (1996, p. 41). Agora “Madalena” não tem mais condições de prosseguir, é o momento de dar à luz, as “dores pareciam cadelas a mordê-la”, suava, sofria aos gritos, mas a serra dormia alheia à sua dor. Abriu os olhos, a solidão lhe fazia companhia, olhou e viu o filho morto em uma poça de sangue. Madalena age como animal e com os pés vai escavando a terra para enterrar o “seu segredo”, depois de levantar-se olha para o caminho de volta e tem certeza de que é hora de regressar para sua casa. Em nenhum momento lamenta a morte do filho, pelo contrário, para ela foi uma felicidade constatar que seu segredo não poderia mais ser descoberto. Então como se nada importante tivesse acontecido, retorna para matar aquela sede na fonte da Tenaria. O comportamento estranho de “Madalena” deve-se ao meio rude e aos costumes locais, pois mulher grávida só podia ser aceita na vila se estivesse casada, e como o pai da criança não quis saber de casamento, a única saída encontrada por ela foi fugir, ter seu filho longe dos “falatórios” do povo do lugarejo, e depois de passar sozinha por toda a aspereza do caminho, para ela foi um grande alívio perceber que ele nasceu morto. Assim, Madalena simplesmente cobre-o com terra (atitude típica de um animal) e volta para sua casa, sem nenhuma tristeza ou remorso. Retorna ao seu lar, para recompor-se daquele duro e penoso trajeto que havia feito momentos antes. Torga trabalhou em seus contos, com animais portadores de características humanas com qualidades e defeitos e assim no conto “Morgado”, o jerico, percebemos que o animal possuía qualidades como o amor dedicado pelo trabalho e pelo seu dono. Porém seu dono era rude ao falar com ele, mas apesar disso gostava dele porque já era seu senhor há seis anos, quando o comprou na feira. “Morgado” se dizia feliz, “um homem” que trabalhava com alegria. Mas quando estavam regressando para a vila, o tempo já havia escurecido e Morgado estava com um mau pressentimento... Quando na escuridão da noite ambos viram os olhos famintos dos lobos a observá- los. Morgado correu para salvar a sua vida e a vida de seu 14 dono. Contudo, o cansaço e o peso da idade o deixaram mais lento, percebendo que não conseguiriam se livrar dos ferozes lobos, seu dono desmontou e resolveu deixar Morgado para servir de comida às feras para que ele pudesse escapar em segurança. O que Torga descreveu da seguinte forma: Mas apenas o almocreve desmontou, e num relâmpago lhe tirou os aparelhos, acabou por compreender que o ia abandonar ali, esfalfado, coberto de suor, indefeso, à fome do inimigo. Salvara a vida com a vida dele...E lamentava as suas dezessete libras! (1996, p. 56). Assim, o pobre Jerico percebeu que de nada valeu seu amor e dedicação por anos de trabalho, que seu triste fim seria a morte, nas dentadas dos lobos, uma morte solitária num local distante do seu lar, na escuridão da serra na estrada velha de Arcã. Percebemos que Morgado lutou muito para salvar a si e ao seu dono, que confiava que não lhe aconteceria nada de ruim, pois estava “protegido” pelo seu senhor. Mas o peso da ingratidão feriu sua alma com mais força do que as dentadas dos lobos famintos em seu corpo cansado, exausto. Morgado “lutou”, deu o melhor de si, por anos a fio e no momento de sua morte solitária e dolorida ainda teve que ouvir seu dono dizer ao se afastar dali que lamentava estar perdendo as dezessete libras que havia pago por ele! Esse foi um golpe muito forte para Morgado porque ele sempre acreditou que seu dono reconheceria seu valor e sua lealdade. 5 – Considerações finais: Todos os contos de Miguel Torga, presentes no livro de contos Bichos, escrito em 1940 e que chegou em 1995 à sua décima nona edição, só alcançaram tal êxito com o público leitor por serem contos excepcionais, ou seja, por possuírem uma qualidade literária que os tornou inesquecíveis. Essa qualidade nas obras de Torga nos remete aos estudos de Cortazar ao afirmar que um bom tema seria como um sol, um astro em torno do qual giraria um 15 sistema planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, revelasse sua existência. (CORTÁZAR apud GOTLIB, p. 66). Portanto, Torga possuía o dom de transmitir para o mundo coisas e fatos corriqueiros, simples, que falavam do espaço telúrico de Portugal, um Portugal alheio às inovações tecnológicas e às modernidades que afloravam pelo mundo todo. O autor trabalhou com seres humanos atribuindo a eles qualidades e defeitos, fazendo-os agirem como animais e aos bichos dotou-lhes de sentimentos, pensamentos e atos humanos. Retratou o espaço físico de sua terra natal, Trás-os-Montes, em suas narrativas e os personagens que surgiam em cada conto demonstravam que o ambiente conseguia aos poucos moldar-lhes o caráter e definir seus atos. O autor de Novos Contos da Montanha, escrevendo em plena época da industrialização, do crescimento das cidades e da eclosão das vanguardas literárias, não segue essa tendência de retratar as grandes metrópoles e o homem moderno. Opta, antes, por refugiar-se na representação de um país rústico, quase arcaico, onde problemas ancestrais como a luta pela sobrevivência, as dificuldades do meio físico são aspectos dominantes. O foco de seus trabalhos sempre foi retratar um Portugal rural, esquecido no tempo, com lugarejos simples habitados por seres desprovidos de cultura e refinamento. Seres humanos que residiam em aldeias distantes, trabalhadores rurais sofridos diante de tantas privações, pois para eles existia apenas o labor diário, a luta eterna pela sobrevivência. E, desse modo o meio moldava-lhes o caráter, a conduta, levando-os a agirem instintivamente, não lhes propiciando manifestações de afeto como nos contos de “ Ramiro” e “Madalena”. Contudo, Torga ofereceu aos demais protagonistas como o gato “Mago”, o jerico “Morgado”, o corvo “Vicente” entre outros bichos das narrativas, uma certa conduta moral, isto é, esses personagens “pensavam e agiam” como se fossem “homens”. Neles encontramos desejos que são inerente ao homem, como a comodidade de se ter um lar, a coragem e a luta pela liberdade. Tais protagonistas fazem suas escolhas sobre como conduzir sua vida e seu destino e são capazes de se responsabilizarem por essas escolhas. Constatamos que o objetivo de Miguel Torga era levar o ser humano a pensar sobre a sua conduta, fazer suas escolhas e para isso o autor utilizou-se de uma linguagem simples, de contos concisos, trabalhando com seres portadores apenas do instinto de sobrevivência e valendo-se do espaço físico de Trás-os-Montes, Portugal. País este que era sua pátria e que 16 Torga mostrou-o para o mundo, levando-nos a “conhecer” e “valorizar”, tanto o povo português como as paisagens lá existentes. 6 – Referências bibliográficas: ARNAULT, António. Estudos Torguianos. Fora do texto: Cooperativa Editorial de Coimbra, CRL, 1992. BOSI, Alfredo. “Situação e formas do conto brasileiro contemporâneo”, in O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 2005. BRAIT, Beth. A personagem. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1993. CORTÁZAR, Julio. “Alguns aspectos do conto” in Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974. DIMAS, Antonio. Espaço e romance. 3ª edição. São Paulo: Ática, 1994. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 4ª edição. São Paulo: Ática, 1998. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 7ª edição. São Paulo: Ática, 1998. LEÃO, Isabel V. Ponce de. O essencial sobre Miguel Torga. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007. LEÃO, Isabel V. Ponce de. (coord.). A minha verdadeira imagem está nos livros que escrevi. Atas do Congresso Nacional sobre Miguel Torga, Coimbra, 2007. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2007, 2ª volume. LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 8ª edição. São Paulo: Ática, 1998. LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Atlas, 1994. MASSAUD, Moisés. A literatura portuguesa em perspectiva. São Paulo: Atlas, 1994. MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 3ª edição. São Paulo: Ática, 1994. PASSOS, Cleusa Rios. “Breves Considerações sobre o conto moderno” in: BOSI, VIviana (org.). Ficções: leitores e leituras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. PIGLIA, Ricardo. “Teses sobre o conto”. Folha de São Paulo, 30 de Dezembro de 2002, Caderno Mais, nº 516, p. 24. ROCHA, Clara. Fotobiografia de Miguel Torga. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000. TORGA, Miguel. Bichos. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1996. 17 ______________. Novos contos da montanha. 1ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.