Da escrita vocal e pianística
de Robert Schumann
Joana Resende
17 Junho 2005
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
3
SCHUMANN, POESIA E MÚSICA
3
INTERFERÊNCIAS
4
ANTECEDENTES
5
Op.26 n.4 e op.39 n.6
Op.16 n.7 e op.35 n.12
Op.15 n.13 e op.48 n.16
6
7
8
“LIED” OP.82 N.9
9
PROPOSTAS DE AUDIÇÃO
9
FONTES CONSULTADAS
11
ANEXOS
12
2
INTRODUÇÃO
O presente trabalho resulta de um elevado interesse pessoal pela obra de Robert
Schumann, em particular pianística e camerística (incluindo o Lied). No decorrer do seu
estudo, apercebi-me de determinadas características peculiares, entre as quais, a
utilização uma elegância de escrita, aparentemente simples, desprovida de
pretenciosismo e, no entanto, extremamente rica harmonica e melodicamente, de linhas
contrapontísticas magistralmente partilhadas. Tal característica conduz-nos facilmente a
um imaginário tímbrico mais rico do que o original (por exemplo no caso de obras para
piano), associando cada linha a um instrumento, em particular a voz.
Aqui reside a essência deste trabalho: o facto de me ter deparado com uma obra
paradigmática, a meu ver, do que acabo de expor: a última peça de Waldenszenen op.82,
«Abschied» (faixa 1 do CD e partitura em Anexos). Nela, encontrei marcas de uma
escrita vocal acompanhada, comparável à de um Lied, inclusive na forma.
O meu objectivo é precisamente averiguar a legitimidade desta ideia, procurando
fundamentação na relação de Schumann com a poesia e a música, nas “interferências”
entre obras de escrita vocal e as de escrita pianística e nos “antecendentes”, ou seja,
casos concretos de uso, por parte do compositor, de elementos de obras de um dado tipo
noutras de outro (uso de certos compassos de uma obra para piano numa outra, um Lied,
ou vice-versa).
Pretendo, por último, inferir vantagens neste tipo de abordagem bem como averiguar a
sua aplicabilidade e apreensão por parte do ouvinte (pela comparação de diferentes
interpretações da obra em causa).
SCHUMANN, POESIA E MÚSICA
À medida que os europeus pós-revolucionários procuraram encontrar a voz do homem
comum, simbolizada pelo poeta (Dichter), a poesia tornou-se fulcral para a criação
musical do século XIX1.
Schumann, particularmente favorecido nesse domínio, já que hesitara entre as vocações
de poeta e músico, teria as condições ideais para reunir as duas entidades: compositor e
poeta. Pelas suas próprias palavras, “o compositor é o eco ressoante do poema (...) que,
por um conteúdo musical refinado, se torna poeta 2 .” (R. Schumann, cit in Daverio
1980:772).
Testemunho são as suas obras, desde as iniciais para piano solo (por exemplo, Papillos
op.2 e sua estreira relação com Jean Paul Richter), até às finais para coro, de associação
literária por definição (por exemplo, Requiem op. 148).
Curiosamente, a posição de Schumann nem sempre foi a mesma. Em 1839, escrevera
numa carta ao seu amigo e compositor Hirschbach que a música instrumental era
incomparavelmente superior à música vocal, pois nesta haveria uma subjugação do
compositor ao texto literário 3 . Até então, Schumann tinha composto quase
1
(cf. Charles Moss, internet).
Original: «The composer endeavours ‘to produce a resonant echo of the poem and its smallest features
by means of a refined musical content’, he wrote, and hence becomes a poet.»
3
(cf. Daverio 1980:674).
2
3
exclusivamente para piano. Porém, tinha já admitido alguma insatisfação a esse respeito.
Perante sugestão de música vocal, por parte do seu amigo Mendelssohn, o seu potencial
literário e a admiração por Schubert incentivá-lo-iam nesse campo. Além disso, poderia
dizer explicitamente no Lied o que poderia apenas sugerir em obras para piano4.
Em 1840 compôs Liederkreis op. 24, Myrthen op.25, Liederkreis op.39, Frauenliebe
und Leben op. 42 e Dichterliebe op.48. A fim incorporar seus próprios talentos
pianísticos, reformulou a arte do Lied, conferindo igual importância à voz e ao piano,
deixando-o dizer tanto, senão mais. Contribuiu massivamente para o desenvolvimento
do ciclo de Lied, justificando a designação de 1840 – Liederjahr. Nesse mesmo ano,
afirmou:“O ciclo de Lieder incorpora na perfeição o ideal romântico5” (R. Schumann,
cit in Sams 1980:674).
INTERFERÊNCIAS
Segundo o musicólogo Eric Sams, “O Lied de Schumann é uma peça lírica de piano
cuja melodia é partilhada pela voz6” (Sams 1980:67) ou seja, não existem fronteiras
definidas entre um Lied e uma peça para piano schumannianos. A minha designação,
“interferências”, título aliás do trabalho, prende-se exactamente com a verificação
destas incursões: uma escrita pianística preponderante numa obra “supostamente” 7
partilhada por voz e piano ou, por outro lado – essência deste trabalho – uma escrita
“partilhada por voz e piano” numa obra apenas para piano.
Eris Sams, numa outra obra, chega ainda mais longe ao afirmar que “Se todas as partes
vocais [de um Lied de Schumann] fossem perdidas, seria possível reconstituir a linha
do canto a partir da parte de piano e do poema8” (Sams, cit in Stricker 1975:31). Tal
afirmação parece-me um pouco extremista, se bem que aplicável a alguns casos como,
por exemplo, «Aus alten Märchen», de Dichterliebe (faixa 2 do CD).
4
(cf. Charles Moss, Internet).
Original: «The song cycle is the embodiment of the Romantic Ideal».
6
Original: «Schumann´s song is a lyric piano piece, the melody of which is shared by a voice».
7
Digo “supostamente”, de acordo com a herança Schubertiana, onde o piano – independentemente da
importância conferida – desempenha função de acompanhamento.
8
Original: «Si toute les parties vocales étaient perdues, on pourrait reconstituer la ligne du chant à partir
du piano et des mots du poème».
5
4
Op.48 n.15 (1840)
ANTECEDENTES
Existem, na obra de Schumann, casos concretos de uso, por parte do compositor, de
elementos de obras de um dado tipo noutras de outro: uso de certos compassos de uma
obra para piano posteriormente num Lied (o mais frequente, o que designarei por “da
escrita pianística à vocal”) ou, pelo contrário, uso de certos compassos de um Lied
posteriormente numa obra para piano, o que designarei por “da escrita vocal à
pianística”.
Os casos apresentados resultam, alguns, de informações resultantes de uma pesquisa
bibliográfica a esse respeito, outros, de uma verificação pessoal. Muitos ouros casos
existirão, porém, a título ilustrativo, destacaria:
Da escrita vocal à pianística
- Lieder da juventude e intermezzo op.4 n.4, Aria da grande sonata op.11 n.1 fá# m
e Andantino da sonata op.22 n.2 sol m
Infelizmente, não pude verificar o paralelismo, devido à dificuldade em encontrar a
partitura de os Lieder de Juventude.
Da escrita pianística à vocal
- Kinderszenen op.15 n.13 «Der Dichter spricht» e Dichterliebe op.48 n.16 «Die
alten Bösen Lieder
- Faschingsschwank aus Wien op.26 n.4 «Intermezzo» e Liederkreis op.39 n.6
«Schöne Fremde»
- Kreisleriana Op.16 n.7 e «Alte Laute» op.35 n.12
Explicitarei cada um destes casos em seguida, salientando pontos comuns mais
relevantes (referentes às áreas seleccionadas a roxo e a azul).
5
Op.15 n.13 e op.48 n.16
Op.15 n.13 (1838)
Op.48 n.16 (1840)
•
•
•
•
•
Função harmónia do acorde inicial igual
Texturas harmónicas semelhantes
Função de progressão
Repetição do motivo
Melodia nas notas superiores
(Op.15 n.13: faixa 3 do CD – início em 0:30
Op.48 n.16: faixa 4 do CD - início em 3:01)
6
Op.16 n.7 e op.35 n.12
Op.16 n.7 (1838)
Op.35 n.12 (1840)
•
•
•
•
Desenho melódico igual
Relações harmónicas iguais
Tonalidade igual (Mi b Maior)
Duplicação do motivo
(Op. 16 n.7: faixa 5 do CD – início em 1:54.
Op. 35 n.12: sem gravação)
7
Op.26 n.4 e op.39 n.6
Op.26 n.4 (1839-40)
Op.39 n.6 (1840)
•
•
•
•
Desenho melódico semelhante
Subdivisão do acompanhamento semelhante
tonalidade igual (por enharmonia)
carácteres similares (Mit größter Energie e Bewegt)
(faixas 6 e 7 do CD)
Saliente-se que, dos exemplos referidos, este, além de ser o mais completo, é o
único cuja obra de piano (Op.26) foi já composta depois de 1840 (Liederjahr), após
ter já composto dois importantes ciclos: Liederkreis op. 24 e Myrthen op.25, donde
se pode inferir já uma consciência de escrita de outra índole que não meramente
pianística.
8
“LIED” OP.82 N.9
Uma observação detalhada de «Abschied» op.82 n.9 (partitura disponível em Anexos)
permite-nos apreender a estrutura – 2 temas (a azul claro), prelúdios, interlúdios,
poslúdios (a roxo) e coda – inserida na forma Lied – bem como imaginar a linha
melódica no instrumento melódico por excelência, a voz (tessitura de tenor/soprano, a
azul escuro). Abordando então a peça deste modo, os resultados esperados serão:
•
•
•
Diferenças tímbricas – piano/’canto e piano’
Realce de prelúdios, interlúdios e poslúdios
Realce da forma
•
•
•
Fluência do discurso – “acompanhamento” do piano
Liberdade de fraseado – associado às respirações do “cantor”
Maior expressividade
Resta ainda um importante aspecto, o da contextualização literária. “Abschied” é um
título recorrente do Lied romântico alemão. Compositores como Mendelsshon ,
Schubert e Schumann composeram, no total, 8 Lieder com esta temática, associados a
poetas como Hoffmann von Fallersleben (Mendelssohn), Rellstab, Schubert, Mayrhofer,
Salis, Pratobevera (Schubert), Neun e Maria Stuart (Schumann). Aqui reside outra
vantagem neste tipo de abordagem: a apreensão do imaginário literário e a sua tentativa
de recriação, preliminares da performance.
PROPOSTAS DE AUDIÇÃO
De acordo com o levantamento que fiz dos registos sonoros de «Abschied»:
•
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•
•
Clara Haskil (1947)
Walter Gieseking (1951)
Samuel Feinberg (1953)
Sviatoslav Richter (1957)
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•
•
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Robert Casadesus (1960)
Igor Zhukov (1965)
Wilhelm Kempff (1973)
Maria João Pires (1994)
salientaria três - Maria João Pires, Sviatoslav Richter e Igor Zhukov – cujas
singularidade interpretativas, se podem traduzir, muito sucintamente, em:
Maria João Pires
(faixa 8 do CD)
-
Fluência do discurso
Liberdade de fraseado
Expressividade
Sviatoslav Richter
(faixa 9 do CD)
-
Diferenças tímbricas
Realce do 1º tema
-
Realce de interlúdios
Realce da melodia
Realce da forma
Liberdade de fraseado
Fluência do discurso
Igor Zhukov
(faixa 1 do CD)
9
Na interpretação de Maria João Pires, a fluência do discurso e a liberdade de fraseado,
embora muito próprias do carácter vocal - a minha abordagem a esta peça – são, a meu
ver, um pouco exagerados.
Na de Sviatoslav Richter, as diferenças tímbricas aplicadas (sobretudo na entrada do 1º
tema) são também concordantes com a minha abordagem. Todavia, na verdade, não
constitui verdadeiramente uma mudança tímbrica (por mais polémico que o assunto
possa ser, dado o uso de um mesmo instrumento, por sinal limitado nessa área) mas
mais uma mudança de intensidade. Por outro lado, peca pela sua aplicabilidade
meramente a um dos temas (falhando na transmissão da forma geral).
Na interpretação de Igor Zhukov, a forma está mais explícita do que nas outras duas
(conferido pelo realce de prelúdios, interlúdios e poslúdios bem como da melodia dos
dois temas) e o conteúdo valorizado (garantido pela liberdade de fraseado, fluência do
discurso e maior expressividade).
É curioso que, pelo menos a nível discográfico, dos três intérpretes seleccionados, este
último seja o único que nada possui no domínio do Lied (Richter gravou, entre outros,
Lieder de Schubert com Fischer Dieskau e Maria João Pires Lieder de Schubert com
Rufus Müller e de Mozart com Barbara Hendricks). Tal não implica, porém, que não o
tenha feito (mas não gravado) ou, simplesmente, que não possua sólida formação a esse
respeito.
A minha eleição seria a terceira interpretação, de Zhukov, naturalmente mais próxima
da minha abordagem. Mas teria tido Zhukov conscientemente a mesma concepção?
10
FONTES CONSULTADAS
Livros
•
Beaufils, Marcel (s.d.) Le Lied romantique allemand, «Pour la musique»,
Gallimard, Paris.
•
Bent, Ian (1980) «Liedform» in Sadie, Stanley (ed.), The New Grove Dictionary
of Music and Musicians, 6ª ed., London, Macmillan.
•
Bernhard, Marianne (1983) Das Biedermeier, ECON Taschenbuch Verlag,
Düsseldorf.
•
Daverio, John, «Schumann» in Sadie, Stanley (ed.), The New Grove Dictionary
of Music and Musicians, 6ª ed., London, Macmillan.
•
Einstein, Alfred (1975) Music in the Romantic Era, Norton & Company, New
York.
•
Hodeir, André (1956) Les formes de la musique, «Que sais-je?», Presses
Universitaires de France, Paris.
•
Jander, Owen e Harris, Ellen «singing» in Sadie, Stanley (ed.), The New Grove
Dictionary of Music and Musicians, 6ª ed., London, Macmillan.
•
Rosen, Charles (1995) La génération romantique, Éditions Gallimard, Paris.
•
Sams, Eric e Johnson, Graham (1980) «Lied» in Sadie, Stanley (ed.), The New
Grove Dictionary of Music and Musicians, 6ª ed., London, Macmillan.
•
Stricker, Rémy (1975) La Melodie et le Lied, «Que sais-je?», Presses
Universitaires de France, Paris
Internet
- Moss, Charles K «Robert Schumann» in http://www.carolinaclassical.com/schumann/
(15.06.05, 21:30)
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ANEXOS
A - CD
1. Igor Zhukov – Waldszenen op.82 n.9 – « Abschied» (1965)
2. D. Fischer Dieskau, Jörg Demus – Dichterliebe op.48 n.15 - «Aus Alten Märchen»
(1957)
3. Wilhem Kempff – Kinderszenen op.15 n.13 - «Der Dichter spricht» (1974)
4. D. Fischer Dieskau, Jörg Demus – Dichterliebe op.48 n.16 - «Die Alten Bösen
Lieder» (1957)
5. Nadja Rubanenko, Kreisleriana op.16 n.7 - «Sehr rasch» (1995)
6. M. João Pires – Faschingsschwank aus Wien op.26 n.4 - «Intermezzo» (1994)
7. Peter Schreier, Norman Shetler - Liederkreis op. 39 n.6 - «Schöne Fremde» (2002)
8. Maria João Pires – Waldszenen op.82 n.9 – « Abschied» (1994)
9. Sviatoslav Richter – Waldszenen op.82 n.9 – « Abschied» (1957)
B - Partitura
Waldscenen op. 82 n.9 – « Abschied» (1948-49)
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B
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