O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO DE UMA CRIANÇA AUTISTA DE QUATRO ANOS DE IDADE: ANGÚSTIAS E DESAFIOS Carlos Frederico de Macedo Coelho[*] Resumo O presente trabalho tem como objetivo discutir o Acompanhamento Terapêutico (AT) de crianças portadoras de sofrimento psíquico grave. Questões referentes ao lugar que o AT é colocado pela família, pela criança e por ele próprio nas relações familiares e sociais em que está inserido. O trabalho desenvolvido há mais de dois anos vem promovendo discussões acerca da promoção em saúde mental, passível de ser realizada mais próxima do ambiente familiar por intermédio do trabalho de AT. Para desenvolver estas questões, pretende-se utilizar como foco de discussão o trabalho de AT de uma criança do sexo feminino de 4 (quatro) anos de idade, portadora de sintomatologia autística. Como referência teórica para tal discussão, os ensinamentos de Barretto e Winnicott. Palavras chave: acompanhamento terapêutico, autismo, reforma psiquiátrica. O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO DE UMA CRIANÇA AUTISTA DE QUATRO ANOS DE IDADE: ANGÚSTIAS E DESAFIOS Carlos Frederico de Macedo Coelho Introdução Mônica[†], quatro anos e um mês, foi diagnosticada como portadora de autismo atípico aos três anos e três meses de idade. Atualmente vem recebendo atendimento psiquiátrico, psicológico e atendimento de Acompanhamento Terapêutico. Apresenta um quadro sintomatológico que a impede de estabelecer vínculos adequados com os elementos do ambiente. É uma criança que no início dos atendimentos apresentava um quadro de isolamento e retraimento bastante acentuado, mas que vem apresentando melhoras visíveis em relação aos vínculos afetivos estabelecidos com as pessoas de seu cotidiano. O que parece estar contribuindo para essa melhora é o tratamento psicoterápico o qual ela começou a freqüentar. Esse tratamento psicoterápico tem como referencial teórico a clínica psicanalítica. Nesse trabalho, pretende-se discutir especificamente o trabalho de Acompanhamento Terapêutico realizado com Mônica. Tradicionalmente, acredita-se que o Acompanhamento Terapêutico (AT) surgiu na Argentina na década de 70. Entretanto, especula-se que informalmente a função de AT já existia bem antes e em outros países, tal como França e Inglaterra. Entretanto, a formalização da utilização do AT como prática clínica organizada surge na Argentina. Lá, o AT surgiu de dentro do ambiente institucional psiquiátrico. Foi originalmente pensado como mais um recurso no manejo clínico das psicoses nas instituições psiquiátricas. Segundo MAUER (1987) “o AT surge como uma necessidade clínica em relação a pacientes com os quais as abordagens terapêuticas clássicas fracassavam”. Inicialmente o AT recebeu a alcunha de Amigo Qualificado. Posteriormente passou a ser chamado de Acompanhante Terapêutico, tendo a sua aura “amistosa” convertida em uma mais “profissional”. MAUER (1987) destaca as funções do trabalho de Acompanhamento Terapêutico com psicóticos: ser continente ao paciente, oferecer-se como modelo de identificação, servir-se como ego auxiliar; perceber, reforçar e desenvolver a capacidade criativa do paciente; informar sobre o mundo objetivo do paciente; atuar como agente socializador; servir como catalisador das relações familiares. Obviamente, as funções citadas não dão conta da complexidade do que vem a ser o trabalho de AT. Existem diversas outras situações em que a presença de um Acompanhante Terapêutico é desejada, não se limitando somente ao trabalho com psicóticos. O AT com indivíduos autistas, por exemplo, exige do acompanhante diversas outras capacidades que no trabalho com a psicose não são tão cobradas. A título de exemplificação, no trabalho com algumas crianças autistas, a princípio o acompanhante deve ter em mente que o seu ímpeto para a proposição de atividades deve ser um tanto quanto refreado, já que as mudanças de rotina dificilmente costumam ser bem aceitas em um primeiro momento. Em um primeiro momento, o Acompanhante Terapêutico deve se conformar em uma posição mais passiva no que diz respeito a implementação de atividades. Deve se deixar levar pelas possibilidades da criança autista. Não que na psicose isso não aconteça, mas que no autismo isso parece ter um peso muito maior. Quem deseja realizar AT com crianças autistas deve ter em mente também que esse pode ser um trabalho bastante silencioso e desconfortável já que muitas dessas crianças apresentam um enorme déficit nas áreas de linguagem e comunicação. Muitas vezes, o Acompanhante Terapêutico se flagra em uma situação em que o silencio da relação ecoa de maneira bastante intensa o barulho dos conteúdos internos de si próprio. Desenvolvimento O trabalho de AT com Mônica iniciou-se no início do ano de 2005 e se estende até os dias de hoje. Inicialmente, privilegiou-se um trabalho feito em ambiente residencial (casa da avó materna). Nesse trabalho, talvez por uma limitação da própria psicopatologia do autismo, privilegiou-se a realização de atividades direcionadas por ela. Pelo conhecimento da psicopatologia em questão, o acompanhante terapêutico entendia que qualquer tipo de atividade direcionada por ele tenderia ao fracasso. Portanto, cabia ao acompanhante definir as suas ações de acordo com os interesses e desejos de Mônica. Somada a essa limitação de ação, havia a necessidade de um estabelecimento de vínculo entre o acompanhante e Mônica. Esse vínculo se estabeleceria sendo respeitadas as limitações de Mônica frente a sua interação com o ambiente. Portanto, se achou mais prudente por parte do acompanhante agir de maneira a não bater de frente com a maneira estereotipada de Mônica de lidar com a realidade. Enfim, foi dada ao acompanhante a função de tentar entrar no mundo estereotipado e regredido de Mônica da maneira que ela suportasse. O autismo pode ser compreendido como uma regressão crônica a estados anteriores do psiquismo da criança. O seu devir é caracterizado por uma permanente vivência de sensações e estados primitivos. As próprias representações desses afetos primitivos relacionam-se à primeira infância e aos primeiros cuidados maternos. Mônica demonstrava interesse em andar em seu antigo carrinho de bebê. Tal gesto para mim foi surpreendente, pois era bem claro o quão desejoso era para Mônica reviver-se como um bebê. Essa é uma vontade que aparenta ser um tanto quanto estranha, mas que devemos acreditar ser de sumária importância para a criança. A sua constante vocalização demonstra essa sua condição “saudosista” da primeira infância. Mônica emite sons que parecem em muito com as atividades linguageiras dos bebês quando estes começam a falar. Ela repete muitas sílabas: “da-da, ma-ma, bi-bi”. Essas revivências são importantes para a criança autista e ao mesmo tempo incompreendidas por grande parte dos adultos. A maioria dos profissionais que trabalham com autismo classificam esses comportamentos como estereotipias. Elas são indesejadas e há toda uma terapêutica em eliminá-la. No trabalho de AT, era dada a importância de estar com essa criança sem a preocupação de interceder contra essas estereotipias. Privilegiava-se um contato com Mônica em que todas as suas características fossem respeitadas e que elas servissem para o acompanhante como mais um referencial de intervenção terapêutica. Era um trabalho de aceitação plena da criança e sua condição psicopatológica. Esse modo de ação para com Mônica é inspirado diretamente no conceito de holding de Winnicott. De acordo com BARRETO (2000), “holding vem a ser tudo aquilo que no ambiente de um sujeito fornecerá a experiência de continuidade e constância, tanto física quanto psíquica”. O estabelecimento desse holding permite que o sujeito em desenvolvimento integre os diversos núcleos sensoriais ainda não integrados à sua maneira e ao seu ritmo. Percebe-se por esse raciocínio que o estabelecimento do holding é fundamental nos primeiros anos de vida do sujeito para a sua constituição psíquica. Portanto, se apostou no trabalho de AT nessa possibilidade de uma revivência de afetos e representações bastante primárias pelo estabelecimento de uma relação entre o Acompanhante Terapêutico e Mônica aos moldes de um holding. Foi uma aposta bastante ousada ao se compreender o local onde acontecia esse trabalho, aspecto esse gerador de grande angústia para o Acompanhante Terapêutico. Essa angústia se torna evidente justamente pelo fato de que durante quase um ano inteiro, a atividade básica da dupla acompanhante-Mônica era a de assistir televisão. Essa atividade parecia ser contraproducente no sentido de propiciar à Mônica experiências de socialização tão fundamentais para a sua psicopatologia e tão apregoadas pelo trabalho de AT. O Acompanhante sentia-se como um charlatão, um impostor, uma pessoa que não teria a capacidade de cumprir com aquilo que por ele foi proposto, de integrar Mônica ao seu ambiente social. Entretanto, parecia que o lugar social de Mônica ainda era a residência de sua avó. Não havia por parte dela o menor interesse de explorar outros elementos da sua realidade. Notava-se também que a família não demonstrava ter tanta preocupação com uma suposta necessidade de vê-la realizando outras atividades que não fosse a sua atividade favorita. Por conseqüência, não havia por parte da família nenhuma cobrança ao Acompanhante de qualquer atividade ativa e direcionada. Assim, o estabeleceu-se um ambiente amistoso onde nada era cobrado de ninguém, ambiente esse o mais adequado para o estabelecimento de um trabalho de holding para com Mônica. Esse ambiente sem cobranças possibilitou ainda que as angústias da família fossem escutadas, em razão do fato de que o Acompanhante era um profissional que se esforçava ao máximo em não “cobrar” da família uma suposta postura mais adequada de um familiar para outro, o que poderia os inibir de relatar as suas aflições em relação à condição de Mônica. Conclusão Estar com Mônica é se permitir ser testemunha desses momentos regressivos (mas ao mesmo tempo tão constitutivos) sem muito interferir, pois ela própria dá os limites do que ela deseja das pessoas e do ambiente em sua volta. Cabe acreditar que desse momento tão primitivo e regressivo uma subjetividade emergirá, pois por mais caóticos que esses comportamentos sejam, há uma criatividade primária embutida. Portanto, o grande elemento “mágico” desse primeiro momento de trabalho com Mônica em Acompanhamento Terapêutico foi a tentativa em se estabelecer um ambiente de trabalho onde a maneira de ser dessa paciente fosse respeitado. Muito mais importante do que ser respeitado, o seu modo de ser foi a mola mestra para um trabalho clínico que hoje já começa a dar os seus primeiros frutos. Mônica passou a estabelecer vínculos mais afetivos e prazerosos com as pessoas que a cercam e também está suportando melhor a implementação de novas atividades em sua rotina. A prova cabal dessa constatação é que ela passou a freqüentar uma escola primária sendo acompanhada por uma outra Acompanhante Terapêutica. Mesmo que Mônica ainda aja como uma criança autista é possível perceber que há uma humanidade maior em seu olhar e um agir mais prazeroso e menos sofrido para com a realidade. Todavia, o que deve se enfatizar não é o que necessariamente ela adquiriu nesse trabalho clínico e sim o que ela nunca perdeu: uma criatividade que diz respeito ao seu mundo interno criativo que ninguém além dela tem acesso e que infelizmente a maioria adultos julga ser inexistente. Referências Bibliográficas BARRETTO, Kleber Duarte (1998). Ética e Técnica no Acompanhamento Terapêutico: Andanças com Dom Quixote e Sancho Pança. São Paulo: Unimarco; MAUER, Susana Kuras de e RESNIZKY, Silvia (1987). Acompanhantes Terapêuticos e Pacientes Psicóticos. São Paulo: Papirus. [*] Psicólogo Clinico, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB) e Pesquisador do Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise do Instituto de Psicologia da UnB. [†] Nome fictício