CENTRO UNIVERSITÁRIO FUNDAÇÃO SANTO ANDRÉ Heloísa Helena Dall‟Antonia Ferreira MASHUPS, A CRIAÇÃO DE UM NOVO GÊNERO LITERÁRIO Santo André 2012 Heloísa Helena Dall‟Antonia Ferreira MASHUPS, A CRIAÇÃO DE UM NOVO GÊNERO LITERÁRIO Monografia apresentada como exigência parcial para obtenção do título de especialista em Estudos Linguísticos e Literários, ao Centro de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão do Centro Universitário Fundação Santo André. Orientação de Prof.ª Me. Márcia Tomsic Santo André 2012 Candidato (a): Heloísa Helena Dall‟Antonia Ferreira Título: Mashups, a criação de um novo gênero literário Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para obtenção do título de especialista, à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Centro Universitário Fundação Santo André, Curso de Estudos Linguísticos e Literários. Data: 21/03/2012 Prof(a). Dr(a). _______________________________________ _____________ Instituição: _________________________________ (assinatura) Prof(a). Dr(a). _______________________________________ _____________ Instituição: _________________________________ (assinatura) Prof(a). Dr(a). _______________________________________ _____________ Instituição: _________________________________ (assinatura) “Todos nós nascemos originais e morremos cópias.” Carl Jung RESUMO Mesmo ainda sendo vistos com alguma desconfiança por críticos, títulos que misturam clássicos da literatura com personagens fantásticos têm se tornado cada vez mais frequentes. A utilização recorrente deste estilo propicia terreno para considerar-se a criação de um novo gênero literário: o mashup. Independentemente do juízo de valor que se faça sobre as obras em questão, é necessário reconhecer a existência e importância da novidade na entrada de novos leitores no mercado literário. Palavras-chave: Mashup. Gênero literário. Literatura. ABSTRACT Even they are still seen with some doubts by the critics, books that mash literature classics with fantastic characters have been become usual. The use of this style propitiates the idea of the born of a new literary genre: the mashup. Independently of the worthwhile sense of this kind of books, it‟s necessary to recognize its existence and importance in the entry of new readers in the literary market. Keywords: Mashup. Literary genre. Literature SUMÁRIO Introdução 7 Dom Casmurro e os Discos Voadores 9 O nascimento dos mashups 14 Gêneros textuais e literários 17 Uma brincadeira sem compromisso? 20 Mashups não são adaptações 23 Conceitos da literatura fantástica 26 A construção de conteúdos pela internet 30 A visão conservadora e as críticas 32 Considerações finais 34 Bibliografia 36 7 Introdução Um título despretensioso da pequena editora norte-americana Quirk Books chegou ao mercado em abril de 2009. Baseado em uma obra de 1813 da autora inglesa Jane Austen, o então novo Orgulho, Preconceito e Zumbis, de Seth Grahame-Smith, adicionava ao romance das moças da família Bennet um elemento diferente e fantástico: mortos-vivos. Tido pela crítica, de início, como um livro de humor, a obra de Smith, porém, deu origem a uma série de outras publicações que seguiam a fórmula de introduzir elementos fantásticos em clássicos da literatura. Nascia assim o termo „mashup‟, significando essa peculiar combinação. Orgulho, Preconceito e Zumbis se mostra um sucesso editorial, com mais de um milhão de cópias vendidas e tradução em 20 idiomas. Outros autores passam a se dedicar ao estilo, expandindo a ideia e criando novos pontos de partida para as tramas – não mais apenas livros reconhecidamente importantes servem de cenários para monstros, mas figuras da história tornam-se protagonistas de tramas fantásticas. Não demora para que a ideia chegue ao Brasil, e em 2010 a editora LeYa propõe que quatro escritores também revisitem grandes títulos da literatura nacional a fim de criar mashups. Este trabalho se ocupa de uma dessas produções, Dom Casmurro e os Discos Voadores, de Lúcio Manfredi. Uma análise rápida das obras criadas dentro do gênero pode dar a entender que elas subvertem publicações clássicas, o que acaba por insuflar manifestações contrárias acaloradas, inclusive da mídia especializada1. Essa reação pode ser 1 Crítica de Luís Antônio Giron, na edição de 05 de outubro de 2010 na revista semanal Época, chama os mashups de “praga de letras”. Coluna disponível em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT177254-15230-177254-3934,00.html, acessado em 17 de fevereiro de 2012. 8 melhor compreendida nas palavras do jurista Demócrito Reinaldo Filho2 : “O homem sempre demonstrou uma tendência a reagir contra o novo, o revolucionário, enfim contra tudo que, num primeiro momento, não esteja submetido ao seu domínio. É quase como um mecanismo de defesa, que dispara automaticamente quando alguma coisa parece ameaçar sua segurança”. Também se poderia creditar essa atitude à percepção de ter sido invadido o sagrado território dos modelos perfeitos da literatura. Embora para uma parcela da sociedade, a rejeição a essas obras vá certamente continuar, os mashups, mais do que um fenômeno passageiro, vêm ganhando cada vez mais espaço e se consolidando como um novo gênero literário. “Dom Casmurro e os Discos Voadores” faz um resumo da trama do livro, necessário para a comprovação dos argumentos dados a seguir. Na sequência, “O nascimento dos mashups” procura traçar as origens do gênero, ao par que os subsequentes, “Gêneros textuais e literários”, “Uma brincadeira sem compromisso”, “Mashups não são adaptações” e “Conceitos da literatura fantástica” procuram distanciar o tema deste trabalho de definições já existentes. “A construção de conteúdos pela internet“ tenta situar a novidade dentro da realidade atual da world wide web. “A visão conservadora e as críticas” traça um paralelo entre como outras formas de arte foram vistas pela crítica ao surgirem e como os mashups são vistos hoje. 2 Disponível em http://www.ibdi.org.br/site/artigos.php?id=187 , acesso em 14 de março de 2012. O artigo, “Tecnologias da Informação: Novas Linguagens do Conhecimento” trata dos vários avanços recentes da tecnologia e a reação recebida por eles da sociedade. 9 Dom Casmurro e os Discos Voadores Lançado em 2010, Dom Casmurro e os Discos Voadores foi encomendado pela editora LeYa a Lúcio Manfredi. A obra faria parte da coleção Clássicos Fantásticos, dedicada a representar como seriam alguns títulos emblemáticos da literatura nacional se escritos nos dias atuais. Entre os outros livros do selo estão O Alienista Caçador de Mutantes; Senhora, a Bruxa e A Escrava Isaura e o Vampiro. A escolha pelo nome de Manfredi, assim como a dos demais autores convidados para a tarefa, foi baseada na carreira do escritor, que já é um veterano nos roteiros para televisão. Suas demais incursões na literatura fantástica o tornaram um dos nomes óbvios para a tarefa. Como ainda é pouco provável que o leitor em geral conheça a obra, apresenta-se uma síntese da mesma, de modo a facilitar a análise que constitui o trabalho. Dom Casmurro e os Discos Voadores é narrado em primeira pessoa por Bentinho Santiago, um garoto de classe média alta do Rio de Janeiro de meados do século XIX, que mora com a mãe, viúva (Dona Glória), o tio (o aposentado Cosme), uma prima da mãe, também viúva (Justina) e um agregado da família (José Dias). O protagonista conta a história de sua vida a partir do momento em que, ouvindo sem querer uma conversa entre sua mãe e Dias, se dá conta de que sente mais do que amizade por sua vizinha, a menina Capitu. Bentinho, devido a uma promessa da mãe, deve se tornar padre, e seguirá, dentro de algum tempo, ao seminário. A descoberta do primeiro amor, porém, o assola, e a partir dela fará o que for preciso para se desvencilhar do futuro traçado por sua progenitora. Apesar dos nomes dos personagens e do fio condutor da trama até aqui parecer ser exatamente o mesmo do clássico de Machado de Assis, as semelhanças vão se tornando cada vez mais escassas no decorrer da história. 10 Decidido a não seguir para o seminário, Bentinho visualiza no metódico e aparentemente sem emoções José Dias sua melhor possibilidade de convencer a mãe a não cumprir sua promessa. Assim, segue o agregado em uma noite qualquer, quando este simplesmente some num descampado. O ocorrido chama a atenção do garoto, ainda mais quando somado à repulsa e desconfiança que Dias mostra ter – aparentemente sem o menor motivo - pelo pai de Capitu. Dias depois, já ciente de ser correspondido em seu amor pela vizinha, Bentinho descobre inadvertidamente, que Capitu tem cicatrizes curiosas em seus ombros, que abrem e fecham como guelras. Acreditando tratar-se apenas de um traço físico qualquer, o fato só vai voltar à berlinda muitos anos mais tarde. O plano de que Dias o ajude a livrar-se do seminário não funciona, e Bentinho segue para cumprir sua sina – não sem antes ser alvo de uma situação estranha, quando, ao usar uma medalhinha dada por padre Cabral (que além de professor de latim é uma das maiores influências de dona Glória), sente perder o controle de suas ações. É Capitu quem o tranquiliza, não apenas removendo o nanoprogramador instalado no artefato religioso – ação e vocabulário que não fazem o menor sentido para o protagonista – assim como garantindo que ficarão juntos. No seminário, além de presenciar em uma noite de convalescença o encontro dos reitores com criaturas que pareciam lagartos falantes, Bentinho faz muita amizade com Escobar, outro garoto sem vocação para o sacerdócio. Apesar de ser muito tímido (nunca sequer tira a camisa na presença do personagem principal) e de por vezes dizer coisas incompreensíveis para o protagonista, Escobar não tem receio de ser ríspido com a chefia do colégio religioso. Uma doença inesperada e a iminência da morte faz dona Glória desistir da promessa de que Bentinho deve se tornar padre (um órfão passa a ter os estudos custeados pela viúva a fim de se tornar ele sim um sacerdote). Cuidada por Capitu, a mãe do garoto passa a fazer gosto da união dos dois jovens, o que deve acontecer assim que o protagonista, já senhor de seu próprio destino, termine de cursar a faculdade de Direito. 11 Na mesma época em que cuida de dona Glória, Capitu também serve de enfermeira para uma amiga, Sancha, que padece de uma doença misteriosa que médico algum consegue definir. „Envenenamento por radiação‟, determina Capitu, enquanto trata da colega. Bentinho saberá depois que Sancha, assim como Manduca (conhecido de infância do protagonista), estava próxima à igreja de padre Cabral quando uma espécie de estrela achatada vinda do céu soltou um raio em cima da construção, a destruindo. Bentinho e Capitu se casam, assim como Escobar (que também largou a escola de sacerdotes na mesma época do protagonista e formou-se em medicina) e Sancha, e os dois casais se tornam muito próximos. Alguns anos se passam até que o casal principal consiga ter um bebê (Bentinho tem a impressão de ter sonhado com uma espécie de exame conduzido por Escobar e Capitu, no qual o médico „descobre‟ que uma substância presente em um vinho ofertado por José Dias continha „nanossupressores de fertilidade‟). O pequeno Ezequiel nasce saudável, mas com as mesmas marcas nas costas da mãe. Num passeio à praia com o casal de amigos e a filhinha deles, o protagonista percebe que Escobar também possui as cicatrizes de Capitu, e que fica extremamente constrangido ao notar que o amigo as viu. O tempo passa (a trama indica tratar-se de 1870), e Bentinho começa a desconfiar de que Capitu e Escobar são mais do que amigos. A cisma cresce quando Sancha lhe conta que também tem suas suspeitas, mas de outra espécie. Para ela, Escobar tem algum tipo de ligação com um ser marinho que vira quando, seguindo o marido para tentar lhe dar um flagra com uma possível amante, o descobre na praia, comunicando-se com uma criatura que aparece do meio do mar. Numa tentativa de não magoar a amiga, Bentinho diz que acredita, mas na verdade, duvida da sanidade de Sancha. Assim, a fim de talvez dissuadi-la de vez da ideia, vai a seu encontro quando ela lhe manda um bilhete dizendo para 12 encontrá-la na praia, à noite. Ao chegar, porém, Bentinho encontra apenas seu cadáver. Ainda atônito, Bentinho vê José Dias no local, a quem passa a acusar da morte da amiga, mas fica perplexo ao avistar Capitu que, de costas, parece voar dentro de um feixe de luz projetado na praia por uma espécie de disco que plana. É dentro desse „disco‟ que Bentinho descobre que a esposa e Escobar são aquepalos, extraterrestres com características de peixes, descendentes do povo que habitava uma lua de Sirion. Nascidos na Terra, ambos fazem parte da vigésima geração de híbridos entre as duas espécies. Nosso planeta, porém, foi descoberto (e toda a vida nele „gerada‟) pelos anunaques, outra espécie extraterrestre que lembra a forma de lagartos. Os anunaques, por sua vez, se alimentam de energia gerada por emoções negativas e, por isso, fixaram no código genético da humanidade a predisposição eterna para o conflito. Ajudando os anunaques a „controlar‟ a Terra e seus habitantes estão andróides, como o próprio José Dias. A civilização mais antiga e respeitada do universo, conhecida como Legislatura, decidiu que a Terra poderia ser habitada por anunaques, aquepalos e humanos desde que os dois primeiros nunca declarassem guerra sobre a superfície do planeta ou expusessem suas existências. Um ataque à nave dos aquepalos tem início, Escobar é atingido por José Dias e, quando parece certo que o andróide vai matar Capitu, um membro da Legislatura surge, dizendo que os dois povos quebraram as determinações e que, por isso, nenhum deles vai tutelar os humanos. Poderão, no máximo, observar a evolução da raça humana por 142 anos, para que ao fim desse período, a trégua termine e a Legislatura decida o que fazer. A emblemática figura da Legislatura é ninguém menos que tia Justina. Ainda que não esteja bem certo sobre o ocorrido, Bentinho, ao mesmo tempo em que se emociona com a certeza de que Ezequiel é mesmo seu filho, fica desolado ao entender que foi manipulado desde seu nascimento para que se 13 sentisse atraído por Capitu, assim como ela por ele. Afinal, os aquepalos, silenciosamente, „escolhiam‟ os „melhores‟ humanos para com eles se reproduzirem. Capitu deseja boa-sorte a Bentinho e depois de um lapso de tempo o protagonista se vê novamente na praia. De volta à sua casa, descobre que Capitu e Ezequiel foram embora, assim como Sancha, Escobar e a filha deles. Muitos anos se passam até que Ezequiel bata a porta do pai. Ele diz estar de partida para o planeta Abzu, a terra natal dos aquepalos, onde já está Capitu, e convida Bentinho a juntar-se a eles. O protagonista recusa e dias depois recebe um postal do filho pedindo para que ele sempre se lembre deles ao olhar para o céu. Bentinho guarda o postal dentro da Bíblia e vê sua „casmurrice‟ crescer. Neste ponto da trama, porém, Bentinho, que sempre „conversa‟ com seu leitor, sente saudades de seu passado e decide reler o postal. Porém, não encontra sua Bíblia, mas, no lugar dela, um tratado de psiquiatria do Dr. Emil Kraepelin, que sugere estudos sobre esquizofrenia. Dentro do livro não há um postal, mas um bilhete assinado por „E.‟ que sugere que o pai busque ajuda antes que seja tarde demais. No Epílogo, nos dias atuais, o texto acompanha um médico (Simão Bacamarte) visitando os quartos de um hospital psiquiátrico num dia chuvoso. A proximidade com o Natal é conhecida por gerar reações imprevisíveis em seus pacientes, entre os quais está um conhecido crítico literário especialista na obra de Machado de Assis, de nome Felipe Cadique. Exaltado ao extremo, o homem grita ao médico que trata-se do final da trégua e que alguém deve avisar a Legislatura para interceder, pois da última vez que „eles‟ agiram, destruíram sua vida. O médico prepara a sedação do paciente enquanto pensa no diagnóstico de Cadique, traído pela esposa com seu melhor amigo e que justamente pela proximidade com a trama do clássico „Dom Casmurro‟ acabou por se identificar com Bentinho, acreditando porém que alienígenas faziam parte da história. 14 Com o paciente já medicado, Bacamarte faz anotações no prontuário (trata-se de 21/12/2012) e reflete sobre como não gosta de dias chuvosos, pois as guelras em seus ombros latejam quando o clima está assim. Apesar de contar, ao menos como plano de fundo, a mesma história do clássico Dom Casmurro, as adições feitas na trama fazem de Dom Casmurro e os Discos Voadores uma história bastante diferente da de origem. Além da óbvia influência da ficção científica e dos caminhos da literatura fantástica, a intertextualidade com a cultura pop e mesmo com outros títulos ajudam a dar à história uma proposta completamente diferente. Entre algumas citações que remetem a elementos da cultura pop estão frases como “o que era tecnologia, e não magia”, refletindo um trecho de pensamento do protagonista sobre algumas palavras ditas por Capitu (e que, na vida real, remetem ao slogan de um aparelho de ginástica passiva) e “a verdade está lá fora”, também como um diálogo concebido por Bentinho e Escobar (conhecida na cultura pop como a epígrafe do seriado televisivo Arquivo X). Há ainda um capítulo de nome “Vida longa e próspera”, frase essa característica do personagem Sr. Spock, de Jornada nas Estrelas. Outro trecho da trama traz uma afirmação jocosa de que o narrador do livro está vivo, “porque como se sabe, mortos ainda não podem escrever memórias”, brincando exatamente com outro clássico machadiano, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Há também a citação nítida a outra trama do autor, com o personagem Simão Bacamarte, o médico do hospício que se apresenta no final da trama. O nascimento dos mashups Apesar de a ideia não ser exatamente nova – o mundo da música, do cinema e da arte já tiveram movimentos semelhantes – a junção de dois universos diferentes dentro de um mesmo „produto‟ ficou ao alcance do público com a 15 popularização da internet. Atualmente, é extremamente comum encontrar vídeos em que duas histórias diferentes se unem a fim de mostrar uma nova, ou mesmo reedições de materiais que já existem capazes de mudar completamente o rumo de uma trama. Foi uma pequena editora da Filadélfia, nos Estados Unidos, a Quirk Books, a primeira a apostar na publicação de um mashup, em abril de 2009. A ideia nasceu de uma brincadeira – „e se a obra de Jane Austen encontrasse zumbis?‟. A sugestão porém, deu certo e hoje o livro, além de números expressivos de vendas (mais de um milhão de cópias vendidas e tradução para 20 idiomas), tornou-se roteiro para um filme norte-americano, Pride and Prejudice and Zombies, que está em fase de desenvolvimento e deve ser lançado em 2013. A concepção dos mashups (que não foi visualizada de início, mas sim depois, quando os livros do gênero passaram a se multiplicar) foi a de trazer a novos leitores a possibilidade de conhecerem clássicos da literatura, ou personagens importantes da história, com uma linguagem mais nova, compatível com a realidade do mundo atual, que tem na internet uma de suas principais ferramentas de comunicação. Tratava-se de uma opção para apresentar importantes trabalhos sob um prisma menos sisudo, de certa forma trazendo leitores que normalmente não teriam a „coragem‟ de se aventurar em textos consagrados para o âmago das histórias contadas em outros tempos. Ben H. Winters, autor de Razão, Sensibilidade e Monstros Marinhos, define a elaboração de seu próprio projeto como “transformar uma coisa antiga em nova”3. O „fenômeno‟ chegou ao Brasil por intermédio da Editora LeYa, por seu selo Lua de Papel. Em nosso país, porém, os títulos foram, de certa forma, “encomendados”. “Quando anunciaram Orgulho e Preconceito e Zumbis no Estados Unidos, percebi que poderia adaptar a ideia para os nossos clássicos” conta Pedro 3 A entrevista completa do autor está disponível em http://thetyee.ca/News/2010/02/19/MashUp/. Acesso em 02 de janeiro de 2012. 16 Almeida, editor da Lua de Papel. ”Revisitando-os, poderia fazer muita gente que os leu por pressão escolar saborear as histórias, agora sem a linguagem da época”4. O termo mashup ainda é bastante raro de figurar em dicionários em língua inglesa e portuguesa, mas aparece no Dictionary Reference5 como um substantivo com duas definições: 1. Music, Slang . a recording that combines vocal and instrumental tracks from two or more recordings. 2. Slang . a creative combination or mixing of content from different sources: movie mashups; a Web mash-up that overlays digital maps with crime statistics. Por definição, portanto, o termo em inglês, usado da mesma forma no Brasil, remete a combinações criativas com conteúdos de diversas fontes. A fim de concretizar a ideia, a editora LeYa convidou jovens autores para misturar romances com personagens fantásticos, incrementando também as tramas com humor. Assim nasceram os títulos da coleção Clássicos Fantásticos. Atualmente, podem se considerar frutos desse novo gênero os livros Abraham Lincoln: Vampire Hunter; Sense and Sensibility and Sea Monsters (ambos traduzidos para o português pela editora Intrínseca); Memórias Desmortas de Brás Cubas; Jane Slayre: The Literary Classic with a Blood-Sucking Twist; Mr. Darcy, Vampyre; Android Karenina; Little Women and Werewolfes; Queen Victoria: Demon Hunter; Romeo & Juliet & Vampires; The War of the Worlds: H.G. Well‟s Classic Plus Blood, Guts and Zombies; Wuthering Bites; The Meowmorphosis e Mansfield Park and Mummies: Monster Mayhem, Matrimony, Ancient Curses, True Love and Other Dire Delights, entre outros. 4 A entrevista completa do editor da empresa está disponível em http://luadepapel.leya.com.br/?cat=140. Acesso em 26 de dezembro de 2011. 5 Baseado no Random House Dictionary, © Random House, Inc. 2012. 17 Gêneros textuais e literários Luiz Antônio Marcuschi dedica seu trabalho “Gêneros textuais: definição e funcionalidade”6 à compreensão da ideia dos gêneros textuais, ferramentas essas que “contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”. Maleáveis, esses eventos textuais são os meios que usamos, já inconscientemente, para diferenciar o tipo de comunicação expresso nos mais diferentes momentos da vida. Canal, estilo, conteúdo, composição e função são os itens determinantes da escolha de um gênero, seja ele um telefonema, uma oração religiosa, um cardápio, uma resenha ou um trabalho de conclusão de curso, entre diversos outros. Os romances impressos, portanto, compõem um dos diversos gêneros textuais possíveis dentro da dinâmica da comunicação cultural. Entendido o romance como uma possibilidade de gênero textual, cabe observar a qual “categoria” de texto sua trama faz parte. Segundo Angélica Soares em Gêneros Literários, a classificação de textos de literatura conforme seu estilo – tanto no que se refere a como narrar assim como o tipo de história contada – remonta, ao menos no Ocidente, a Platão, Aristóteles e outros nomes da Antiguidade. A autora acredita que o entendimento do termo fica mais claro quando se disseca a palavra. “... gênero (do latim genus-eris) significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração.” Nota-se assim que o processo natural sempre foi o de “filiar cada obra literária a uma classe ou espécie; ou ainda mostrar como certo tempo de nascimento e certa origem geram uma nova modalidade literária”. Essa caracterização foi se alterando conforme a passagem do tempo. “Em defesa de uma universalidade da literatura, muitos teóricos chegam mesmo a 6 In: DIONÍSIO, A. P, MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais & Ensino. Rio de Janeiro, RJ: Lucerna, 2002. 18 considerar o gênero como categoria imutável e a valorizar a obra pela sua obediência a leis fixas de estruturação, pela sua „pureza‟. Enquanto outros, em nome da liberdade criadora de que deve resultar o trabalho artístico, defendem a mistura dos gêneros, procurando mostrar que cada obra apresenta diferentes combinações de características dos diversos gêneros.” A fim de situar o termo na história da literatura, Soares traça no mesmo título um breve resumo sobre como o termo foi sendo visto através dos tempos e dos pensadores, aqui ainda mais condensado. A primeira referência ocidental à classificação literária vem de Platão, no livro III da República (394 a.C.). Para ele, a comédia e a tragédia se constroem inteiramente por imitação, os ditirambos apenas pela exposição do poeta e a epopeia pela combinação desses dois processos. Já Aristóteles apresenta na Poética uma nova percepção da mímesis artística (algo como a representação da natureza), em que a diferenciação formal dos gêneros está intimamente ligada à preocupação com o seu conteúdo. Em Epistulae ad Pisones, Horácio ressalta a questão da adequação entre o assunto escolhido pelo poeta e o ritmo. Pela unidade de tom não era admissível que se exprimisse, por exemplo, um tema cômico no metro próprio da tragédia. Até então, podemos deduzir, não havia a mais remota possibilidade de existir um gênero híbrido, que misturasse duas classificações já existentes. Dante Alighieri, em sua famosa carta a Cangrande Della Scala, um mecenas de quem foi um dos protegidos, teria classificado os estilos em nobre (epopeia e tragédia), médio (comédia) e humilde (elegia). De forma geral, o conceito é reafirmado por Nicolas Boileau-Despréaux em sua Arte Poética. O século XVI toma os gregos antigos como modelos ideais, em todas as instâncias. Nasce assim uma concepção imutável dos gêneros. No século seguinte, registra-se a „Querela dos antigos e modernos‟, em que os chamados modernos posicionam-se a favor das formas literárias inovadoras, que melhor representariam 19 as mudanças de cada época, em contraste com os chamados antigos, que continuavam a defender as regras greco-romanas. É apenas na segunda metade do século XVIII - com a ideia de que as mudanças no mundo podem ser vistas por seu reflexo nas artes - que a sugestão da existência da variabilidade dos gêneros ganha força maior, principalmente devido ao movimento pré-romântico alemão „Sturm und Drang‟. A partir daí, admite-se a individualidade do poeta e sua autonomia de criar uma obra própria e individual, o que inviabiliza por si só qualquer tipo de classificação. O “respeito” à essa liberdade de criação permanece nos românticos, que aceitam a existência dos gêneros e cujas teorias insurgem-se contra as regras clássicas e contra a redução do conceito de mímesis à mera imitação de modelos defendida pelos clássicos. Uma das propostas interessante da época foi a do prefácio de Cromwell (1827), de Victor Hugo, em que se vê a defesa do hibridismo de gêneros, com base na observação óbvia (mas ainda inexistente no pensamento corrente) de que na vida se misturam o belo e o feio, o riso e a dor, o grotesco e o sublime, sendo no mínimo artificial separar-se a tragédia da comédia. Na segunda metade do século XX, o crítico e professor universitário francês Brunetière traz a ciência para a discussão e defende a ideia de que a diferenciação e a evolução dos gêneros literários se dão historicamente, como nas espécies naturais, determinadas por fatores como herança, condições sociais, etc. Segundo seu raciocínio, a tragédia clássica teria desaparecido ante o drama romântico, mais forte. Como as substâncias vivas, o gênero nasceria, cresceria, alcançaria sua perfeição e declinaria, para, em seguida, morrer. Uma de suas posições interessantes dava conta de que os gêneros existiam independentemente de criações literárias. Brunetière foi bastante contestado por Benedetto Croce, filósofo e esteta italiano. Na mesma época, Tyniavov apoia a ideia de gênero como um fenômeno dinâmico, em incessante mudança, pois a literatura está em constante função histórica. Tomachevski ressalta que é impossível estabelecer uma classificação 20 lógica ou fechada de gêneros, porque sua dimensão possibilita que os mesmos procedimentos levem a diferentes resultados em diferentes épocas. Em A questão dos gêneros7, Luiz Costa Lima (1983) menciona o observação de Bakhtin sobre o fato de que tanto a expectativa quanto a reação do leitor à informação quanto o próprio recorte da realidade feito pela obra funcionariam como “filtros”, os quais determinariam as variações de gênero. Lima, ainda traduzindo o pensamento de Bakhtin, afirma que os gêneros apresentariam mudanças, em sintonia com o sistema de literatura, conjuntura social e os valores de cada cultura. Essa união proposta entre a caracterização formal e social corrobora a ideia de que o gênero de uma obra literária não pode ser definido apenas pelas semelhanças linguísticas com obras já existentes. Uma brincadeira sem compromisso? Já que os estudiosos também parecem ter compreendido que os gêneros podem se “misturar”, acabou-se a dúvida: títulos que colocam elementos fantásticos em histórias já conhecidas são paródias, apropriações, brincadeiras sem compromisso com a obra, feitas apenas para entreter o leitor, certo? Na verdade, não. Apesar de em alguns aspectos os conceitos fazerem coro, chamar os mashups de paródias ou apropriações não lhes dá o devido crédito por sua originalidade. Para Sant‟Anna (2007), a paródia é um efeito de linguagem que vem se tornando cada vez mais presente nas obras contemporâneas, principalmente por seus aspectos de “modernidade”. O autor, porém, aproxima tanto o conceito de “paródia” quanto o de “apropriação” à decadência. Para ele, desde os movimentos renovadores da arte ocidental, como o Futurismo (1906) e o Dadaísmo (1916), notase que a paródia é um efeito sintomático, sendo que “sua frequência testemunha 7 LIMA, Luiz Costa, apud SOARES, Angélica. A questão dos gêneros. In: Teoria da Literatura em suas fontes. 2.ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983. P. 237-74 21 que a arte contemporânea se compraz num exercício de linguagem onde a linguagem se dobra sobre si mesma num jogo de espelhos”. 8 Surgida no século XVII, paródia significa uma ode que desvirtua o sentido de outra ode. Originalmente o termo, grego, significava uma canção que deveria ser cantada ao lado de outra, como um contracanto9. Independentemente de como o conceito tenha surgido ou como desde então tenha sido considerado pelos estudiosos, é coerente afirmar que uma paródia só existe a partir da bagagem cultural trazida pelo leitor quando defronte a ela. “Se o leitor não tem informação a respeito do texto de Gonçalves Dias “A canção do exílio”, achará no texto de Oswald de Andrade “Canto de regresso à pátria” apenas uma série de disparates.”10 Dom Casmurro e os Discos Voadores – assim como outros títulos do novo gênero -, porém, não utiliza a história original de Machado de Assis como terreno para fazer troça de seu estilo ou incluir ali conteúdo mais “atual”. Conforme o descritivo da trama mostrado anteriormente, o livro oferece uma experiência de leitura que vai muito além de uma paródia, com toda uma nova trama e intertextualidade com conceitos populares dos dias correntes que transcende o aspecto de “contracanto” e brincadeira. O termo “apropriação” teve entrada recente na crítica literária. A técnica chegou à literatura através das artes plásticas, principalmente pelas experiências dadaístas, a partir de 1916. É como uma “colagem”: materiais diversos do cotidiano são colocados juntos e, de alguma forma, apresentados como um objeto artístico (como o urinol de louça de Marcel Duchamp que foi exposto como obra de arte em 1917). Esse “deslocamento” de um item de seu ambiente natural causa um estranhamento proposital, que dá origem à representação da arte.11 8 9 SANT‟ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & cia. São Paulo, Editora Ática, 2007, p. 7 A origem “musical” do termo é registrada por Joseph T. Shipley em Dictionary of World Literature, de 1972. 10 Idem, p. 26 11 Ibidem, p. 43 22 Novamente, apesar de encontrar ecos de sua caracterização no termo em questão, não se pode dizer que Dom Casmurro e os Discos Voadores, assim como as demais publicações, trate apenas de “colagem” de diversos temas dentro de um cenário pré-concebido, que, por acaso, é um clássico da literatura. Por mais que a história possa causar um estranhamento, não é apenas esse deslocamento de personagem-cenário-história que compõe a trama. Apesar de insólito, o texto tem a coerência de uma história com início, meio e fim, e não meramente junta universos distintos aleatoriamente. Explorando a realidade atual, Sant‟Anna (2007, p. 47) afirma que: Com efeito, existe uma relação entre o surgimento da técnica de apropriação e aquilo que Walter Benjamin chamou de “declínio da aura” na obra de arte. Ou seja, desde que nossa sociedade entrou na era industrial e que se tornou fácil reproduzir um original através de foto, disco, cinema, xerox, pôsteres, etc, houve uma alteração no conceito da própria obra de arte que deixou de ser aquele objeto único e insubstituível. Num universo onde as coisas podem ser reproduzidas e podem estar ao alcance de todos, a relação mítica com a obra se modifica. Haveria, pode-se dizer, uma relação entre a apropriação e a sociedade de consumo. Nesta sociedade, os objetos assumiram o lugar dos sujeitos. O sujeito não é mais o centro. Indivíduos e objetos são descartáveis. Um exemplo tirado do mundo da moda por Sant‟Anna pode elucidar ainda mais a ideia: nos anos 1960, quando os hippies tiraram dos baús de seus avós os casacos, saias, calças e chapéus para usá-los no cotidiano, estavam praticando um gesto de apropriação, assim como se apropriaram das vestimentas de indígenas, hindus e negros. Misturavam-se todos os estilos e épocas num tipo de moda solta e criativa. Cada indivíduo decretava seu próprio modo de se vestir, fazendo as combinações mais insólitas. Depois de algum tempo, chegou-se a uma média que caracterizou o estilo hippie. Nesse momento, o que era uma invenção parodística pessoal converteu-se em paráfrase, com a produção industrial do que anteriormente era artesanal. Como conclui Sant‟Anna, cada época ou manifestação acaba por redefinir o estético e incorpora novas maneiras de se ler o mundo. Na medida em que a teoria 23 e a prática da escrita evoluem, evolui também o conceito público do que seja literatura. Ainda nesses termos, o autor lembra que por muito tempo o estudo da literatura comparada foi, sobretudo, um estudo de identidades e semelhanças. Procurava-se aproximar um autor de outro que teria sido a sua origem. Criava-se assim uma hegemonia de uma obra sobre outra, sugerindo uma constante dependência que ignorava as diferenças entre os títulos e empobrecia o valor da criatividade dos escritores, sobretudo os contemporâneos, por simplesmente terem concluído suas obras anos depois de suas ditas fontes de inspiração. Mashups não são adaptações Outra definição que a primeira vista pode parecer ser a coerente com os mashups é a de tratar-se de uma adaptação. Novamente, apesar de ter algumas características semelhantes a esse conceito, ele não pode ser considerado, sozinho, como significado exato do termo. No prefácio de Tradução e adaptação, de Lauro Maia Amorim, a professora Cristina Carneiro Rodrigues reitera a ideia de que traduções e adaptações envolvem transformação e são construídas de acordo com certas convenções (e restrições) que dependem do tempo e do lugar em que são realizadas, assim como do público a quem se destinam. “No passado, assim como no presente, aqueles que produziam reescrituras criaram imagens de um escritor, de uma obra, de um período, de um gênero, e, algumas vezes, de toda uma literatura. Tais imagens existiriam ao lado das realidades com as quais competiam; no entanto, as imagens sempre tenderam a atingir mais pessoas do que as realidades correspondentes e, seguramente, continuam a fazê-lo.”12 Assim, o termo imagem seria resultado de um processo de 12 LEFEVERE A., apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 23 24 simbolização que não se reduz, simplesmente, a uma “cópia” dos objetos que representa.13 Como aponta Lefevere 14 , os profissionais que produzem reescrituras “são responsáveis pela recepção geral e pela sobrevivência de obras literárias entre os leitores não profissionais, que constituem a maioria dos leitores em nossa cultura global”. A caracterização de uma adaptação remete novamente à conceituação de apropriação, uma vez que não há como impedir que aquilo que o autor do textofonte tenha produzido seja, de alguma forma, “tomado para si” pelos leitores, pela simples e inerente interpretação de seus conteúdos. As “histórias recontadas” contam com uma dose extra de legitimidade dada por leitores e críticos. O termo “adaptação”, quando explícito em uma obra, cria a ideia de que o que se tem em mãos é uma leitura da obra original, orientada para um determinado público, sugerindo com honestidade que o conteúdo ali presente foi alterado explicitamente para se atender a um objetivo. 15 Para Johnson, em Translation and Adaptation, a adaptação permite, inclusive, uma atualização do texto de um passado remoto para leitores contemporâneos, sendo, assim, mais flexível com modificações, acréscimos e subtrações ditados pelo formato-alvo. 16 Johnson considera como “processos criativos” a condensação das passagens mais relevantes da narrativa, a expansão ou focalização de aspectos específicos, a rejeição ou edição de redundâncias, entre outros. Nota-se assim que, para o autor, 13 AMORIM, Lauro Maia. Tradução e Adaptação: Encruzilhadas da textualidade em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, e Kim, de Rudyard Kipling. São Paulo, Editora Unesp, 2005, p. 24 14 LEFEVERE A., apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 27 15 Ibidem, p. 41 16 JOHNSON, M. A.. apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 78 25 “condensação ou rejeição não são procedimentos „negativos‟, sendo, ao contrário, constitutivos do processo „criativo‟”.17 Gambier, no texto “Adaptation: une ambiguité à interroguer”, amplia o assunto, sugerindo que são os receptores visados (sejam eles os espectadores, leitores ou consumidores) os verdadeiros motivadores dos “ajustes” promovidos nas adaptações. Segundo ele, haveria três tipos de adaptação, sendo uma delas – a que nos interessa para o desenrolar da ideia - a adaptação como o ato de “fazer uma obra original a partir de uma outra, produzida ou não no mesmo sistema de signos”, chamada de “tradução intersemiótica” de Jakobson”, como um poema transformado em música, um romance adaptado para o cinema, a transposição de Charles Dickens ou do Corão para as histórias em quadrinhos. 18 Gambier considera que essas diferentes reescrituras permitiriam analisar o quanto a “imitação pretendida é enriquecimento, invenção, modificação, forçandonos, assim, a nos interrogarmos sobre as interferências entre plágio, pasticho, paródia e adaptação”. 19 Essa última afirmação é fundamental na constituição da ideia de que os mashups são um novo gênero literário. Se a adaptação parte de um texto préconcebido para um novo, visando apenas alterações que o deixem adequado para seu meio ou público-final, não se pode classificar livros como o que serve de base para este trabalho como uma adaptação, a partir do momento em que se entende que a mudança completa do teor da trama aproveita-se muito pouco do texto original (Dom Casmurro). As omissões, adições e alterações citadas como coerentes no processo adaptativo são manifestadas na obra exemplificada (seja em seu título, em seu fio condutor inicial e mesmo na personalidade de seus personagens), mas terminam em si próprias, uma vez que as questões levantadas na trama de Machado de Assis ganham um contorno completamente novo com a adição dos 17 18 19 JOHNSON, M. A. apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 78 GAMBIER, Y. apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 98-101 GAMBIER, Y. apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 98-101 26 elementos de literatura fantástica, transformando por completo a história, ao mesmo tempo em que há a presença de paródia e intertextualidade com cultura pop atual. Cabe aqui um pequeno comentário sobre a marginalização de qualquer material adaptado. Frequentemente visto como pobre, feito para „não quer pensar‟ ou outros termos depreciativos, as adaptações são tema de debates acalorados entre os profissionais que não acreditam que uma adaptação bem feita possa ser uma boa alternativa para que o leitor se interesse pela obra que lhe deu origem. Fazem coro às características positivas das obras adaptadas nomes como João Luís Ceccantini e Carlos Heitor Cony20. “A cada adaptação bem realizada de um clássico (nas várias linguagens) é grande o número de leitores que se dirige aos textos originais”21. Para o autor Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos, a impaciência e a falta de maturidade podem fazer com que a leitura de obras renomadas torne-se algo torturante para os mais novos 22 . O questionamento aqui é simples: qual a insegurança em admitir que seja talvez uma adaptação a responsável por fazer com que um jovem leitor se interesse por um clássico que só leria por obrigação da escola? O fato de uma trama se apresentar de forma mais próxima do cotidiano e da bagagem cultural desse leitor faz dela desprezível? Mesmo que seja ela a geradora da curiosidade de conhecer a obra original? Conceitos da literatura fantástica 20 Cony, que já adaptou diversas obras de consagrados autores brasileiros, fala sobre o tema no texto “As adaptações dos clássicos e a voz do Senhor”, entrevista concedida ao caderno Ilustrada do jornal Folha de S.Paulo em 22 de junho de 2001 p. E12. 21 CECCANTINI, João Luís Tápias. A adaptação dos clássicos. A roda da leitura. Sonia Aparecida Lopes Benites e Rony Farto Pereira (Org.). São Paulo: Cultura Acadêmica; Assis: ANEP, 2004. 22 CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 27 Flávio García, em A banalização do insólito: questões de gênero literário em literaturas da lusofonia – mecanismos de construção narrativa, sugere que: “Pode-se, portanto, entender que um determinado grupo ou conjunto de narrativas ficcionais, que têm em comum a presença de eventos insólitos, e esses eventos sejam não ocasionais e funcionem como seu móvel, constitua um gênero”23. Apesar de o autor usar a afirmação para corroborar sua explanação sobre o insólito dentro da literatura, a ideia também cabe para a definição dos mashups como um novo gênero. Esses “eventos insólitos”, fora do padrão do esperado no ideal realista, por sua vez, ajudaram a de certa forma delimitar outros gêneros já estudados pela teoria literária, como o Maravilhoso - clássico ou medieval -, o Fantástico - com o Sobrenatural e o Estranho -, o Realismo Fantástico e o Absurdo 24 . Uma breve explanação de cada um deles se faz necessária para corroborar a ideia de que os mashups contêm traços dessas origens, ao mesmo tempo em que não podem ser limitado, simplesmente, a nenhuma delas. É importante ter em mente que a percepção das ocorrências insólitas se dá em função do momento histórico vivido por autor e público de cada obra. Um exemplo claro disso é imaginar que quando foram escritas (a partir de meados da década de 1860), as obras de Julio Verne podiam ser consideradas frutos totais da imaginação inventiva do autor, ao passo que hoje é possível ver ali diversos esboços de avanços da ciência e da tecnologia que foram surgindo com o passar dos anos e fazem parte de nosso cotidiano no século XXI. Se naquela época imaginar uma espécie de navio-cápsula que se movimentaria por baixo do nível do mar era uma fantasia que sequer cabia no pensamento corrente, hoje basta o uso da palavra “submarino” para que qualquer pessoa conceba em sua mente a mesma ideia. 23 GARCÍA, Flavio (org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007, p. 18 24 Ibidem, p. 12 28 O “Maravilhoso”, de certa forma sempre presente na história da literatura, tem seu momento-chave na época Medieval, quando o homem, ainda dominado por perspectivas religiosas que dominavam sua vida, mostrava aceitação a todas as ocorrências insólitas do dia-a-dia. Traduzido em texto, porém, esses “fenômenos” eram experimentados apenas pelo leitor, mas não pelos personagens das tramas criadas.25 O “Estranho” começa a surgir no século XVIII, quando o Iluminismo sugere a busca de explicações racionais para todas as coisas. Nos textos, a indecisão entre aceitação ou recusa do acontecimento insólito termina antes do fim da narrativa26. O “Fantástico” está nos limites do “Maravilhoso” e do “Estranho” e expõe a dualidade do pensamento humano existente entre os séculos XIV e XIX, quando o homem se mostra ainda pouco capaz de distinguir o que pertence ao campo da razão e ao da fé27. O “Realismo Maravilhoso” surge no final do século XIX, à medida que o conceito de verdade passava a ser relativizado e dá lugar às diferentes opiniões de cada indivíduo. Nos textos, há convivência harmoniosa entre personagens e cenários fantásticos28. O Bentinho de Dom Casmurro e os Discos Voadores pode facilmente ser “enquadrado” como um personagem com características do “Fantástico”, por apresentar durante toda a trama sua dúvida sobre os acontecimentos que lhe rodeiam. A forma como a história se desenrola, e mesmo o comportamento de outros personagens, porém, não poderiam ser classificados da mesma forma. Levando-se em conta o conceito de “binômio fantástico”, proposto por Gianni Rodari (1982) em sua Gramática da Fantasia, é necessária uma certa distância 25 GARCÍA, Flavio (org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007, p. 47 26 Ibidem, p. 70 27 Ibidem, p. 70 28 ibidem, p. 71 29 entre duas palavras, uma sendo suficientemente estranha à outra e sua aproximação discretamente insólita, para que a imaginação se veja obrigada a instituir um parentesco entre elas, para criar um conjunto em que ambas possam conviver. Pode-se dizer que esse aspecto “nonsense” de junção de ideias seja o esqueleto do livro que serve de base para este trabalho e também dos outros títulos que compõem o catálogo dos mashups. Rodari continua o raciocínio ligando esse mesmo clima de falta de lógica à inversão, ou a uma trama que conte o “depois” do final de uma história já previamente conhecida. Ambas as possibilidades podem ser consideradas, novamente, como paródias. A “fórmula” funcionaria especialmente bem com crianças, que, pelo “erro” comparando aquilo que conhecem com o que estão lendo, acham graça29. Como exemplos dessas junções, o autor sugere Pinóquio na história de Branca de Neve ou Cinderela casando com Barba Azul. “Submetidas a este tratamento, mesmo as imagens mais comuns parecem reviver, ressurgir, oferecendo flores e frutos inéditos. O híbrido também tem o seu fascínio.”30 Apesar de chegar bastante perto do que se entende por mashup, Rodari não distancia seus exemplos e convicções da comédia, ressaltando, em outro momento, que é um mecanismo produtivo das histórias cômicas a ”inserção violenta de um personagem banal em um contexto extraordinário”.31 Mas como definir, então, uma história que não tem apenas elementos fantásticos em sua composição, não é simplesmente cômica, tampouco feita para um público de pouca idade? Ceccantini (2011), novamente, é uma das poucas vozes atuais a se pronunciar sobre um tema em voga nos círculos de educadores há alguns anos. 29 Apesar de usar o público infantil como exemplo, a fórmula também encontra eco no comportamento dos adultos. A maior diferença aqui, porém, seria que para o público mais velho, o riso seria sarcástico, fruto puramente de uma dita superioridade com o tema proposto. 30 RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo, Summus Editorial, 1982, p. 58 31 Ibidem, p. 109 30 Citando o sucesso comercial da saga Harry Potter, comenta que isso fez com que caíssem por terra alguns “mitos”, como o que apregoa “... que o fantástico interessa apenas aos leitores bem jovens, não havendo muito espaço no mercado para temas que não os realistas”32. A construção de conteúdos pela internet O mito de que apenas crianças gostem de temas fantásticos pode ser quebrado facilmente por qualquer pesquisador com acesso a internet, em questão de segundos. Basta procurar no Google pelo termo para encontrar uma série de sites, blogs e fóruns dedicados a esse tipo de literatura. Não são apenas leitores bem jovens que estão por trás desses polos de informação sobre o tema. Adolescentes, adultos e leitores mais maduros podem ser encontrados interagindo uns com os outros em espaços assim sem dificuldades. O fato de nos encontrarmos hoje na chamada era da informação, uma "nova era em que a informação flui a velocidades surpreendentes e em grandes quantidades, transformando profundamente a sociedade e a economia"33, permite que qualquer pessoa com acesso à internet possa encontrar outras que tenham opiniões sobre o mesmo tema, sejam elas idênticas ou divergentes das suas próprias, num clicar de mouse. A gigantesca quantidade de informações que passa pela world wide web todos os dias, sobre os mais variados temas, permite uma troca de conhecimentos tão imensa quanto disponível a quem tiver interesse. Para Miranda (2000), “uma das contribuições mais extraordinárias da internet é permitir que qualquer usuário, em caráter individual ou institucional, possa vir a ser produtor, intermediário e usuário de conteúdos. E o alcance desses materiais é 32 CECCANTINI, João Luís. Literatura Infantil – A Narrativa. Disponível em: http://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40360/3/01d17t09.pdf 33 TAKAHASHI, T. (Org.) Sociedade da informação no Brasil: livro verde, p.3 31 universal, resguardadas as barreiras linguísticas e tecnológicas do processo de difusão”34. A possibilidade de criação e “colagem” de elementos já existentes em novos conteúdos sempre existiu, mas ganha contornos muito maiores com a internet. Cada usuário, a sua maneira, pode fazer junções e dar vida a intertextualidades que antes não seriam tão facilmente colocadas num mesmo cenário, dando origem à materiais inéditos, por mais que seus “pedaços”, destrinchados, sejam amplamente conhecidos. O até então espectador (seja ele do longa-metragem, do seriado de TV, da peça de teatro, do livro), aproveita-se dos elementos conhecidos e, como se fosse um novo dono dele a partir do momento em que o domina, faz alterações impensáveis para seus reais autores, criando um material “próprio”, diferente de qualquer coisa já vista até então. Bons exemplos dessa apropriação e posterior criação de novidades são os autores do site Starz Bunnies35, que ficaram conhecidos na rede em 2010 ao fazer versões de 30 segundos de clássicos do cinema estrelados por coelhos animados. Outro bom exemplo é um vídeo criado para ser o trailer de divulgação de um segundo filme “Titanic”36, feito com a edição de cenas tanto do próprio filme quanto de outros da carreira do ator Leonardo DiCaprio e que dá a real impressão de se tratar de uma propaganda verdadeira. Novos recortes de obras conhecidas também são comuns na internet, criando, por exemplo, convincentes versões diferentes de filmes conhecidos, como o que transforma um trailer de “A Fantástica Fábrica de Chocolate” em um filme de terror37. 34 MIRANDA, A. Sociedade da informação: globalização, identidade cultural e conteúdos, p. 81, disponível em http://revista.ibict.br/index.php/ciinf/article/view/257/224, acesso em 5 de fevereiro de 2012 35 Disponível em http://www.starz.com/promotions/bunnies/, acesso em 17 de fevereiro de 2012 36 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=-IpOmsO7OaY, acessado em 17 de fevereiro de 2012 37 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=o9Cby33ZR98&feature=related, acesso em 17 de fevereiro de 2012 32 Fãs também passaram a ser autores de materiais que, por sua qualidade, acabam sendo posteriormente apoiados pelos reais detentores dos direitos das obras originais. O curta-metragem Street Fighter: Legacy38, por exemplo, foi criado por Joey Ansah, admirador da série de jogos que, cansado de ver a franquia ficar desgastada por filmes de qualidade duvidosa bancados pela Capcom, proprietária da marca, decidiu chamar amigos e criar a sua própria versão de uma continuação da trama. A repercussão do resultado foi excelente e, apesar de um longa-metragem com a trama não estar nos planos, o diretor passou a ser a escolha óbvia quando um novo roteiro for feito. Muitas são também as opções de vídeos e músicas semelhantes em estilo que podem ser encontradas no Youtube, mas seria ingenuidade pensar que esse tipo de criação se limite apenas a materiais em vídeo ou áudio. A avaliação de material audiovisual desse tipo é quase sempre positiva, relacionada à imaginação fértil de seus criadores, e celebrada por sua capacidade de improvisação, assim como genialidade pela “sacada”. Curiosamente, porém, ideia semelhante no mundo da literatura, os mashups são vistos com desdém por pessoas que não enxergam em suas linhas simplesmente um novo gênero, mas insistem em definir que ali não há nada novo e muito menos proveitoso. A visão conservadora e as críticas Em Crítica Cultural: Teoria e Prática, Marcelo Coelho relembra a controvérsia criada quando da publicação do artigo “Paranóia ou Mistificação?”, escrito em 1917 por Monteiro Lobato. O texto, uma crítica a uma exposição de Anita Malfatti antes ainda da Semana de Arte Moderna, entrou para os anais dos estudos de jornalismo como um dos melhores exemplos de como o pensamento conservador quanto à novidades pode ser prejudicial até mesmo a um dos maiores nomes da literatura brasileira. 38 Disponível em http://www.joeyansah.com/street-fighter-legacy, acesso em 10 de março de 2012 33 Apesar de opiniões divergirem a respeito de tudo o que se refere a arte (seja ela qual for), conceitos por trás do texto de quase 100 anos de Lobato servem ainda hoje como ponto de partida para discussões a respeito de como encaramos novas manifestações artísticas. Afirma Coelho: “... o método de julgar uma obra nova a partir de critérios inalteráveis, já estabelecidos, anteriores e externos à própria obra”, assim como “a avaliação de que vivemos um período de declínio, de decadência, de degeneração, de doença cultural”, são alguns dos aspectos que fizeram com que o importante autor brasileiro atacasse ferozmente um novo tipo de arte que surgia na ocasião. O comportamento de Lobato na época pode ser comparado ao de Luís Antônio Giron, na edição de 05 de outubro de 2010 na revista semanal Época39. Independentemente do juízo de valor que se faça das obras em questão, o posicionamento do jornalista é categórico: “Não quero soar indulgente demais com a novíssima geração, mas guarde bem estes nomes: Jovane Nunes, Angélica Lopes, Lúcio Manfredi e Natalia Klein. Esses rapazes e moças com idade média de 30 anos são responsáveis por atacar, rapinar e destruir a memória literária brasileira.” Qual a justificativa para tamanha animosidade no que se refere aos mashups? Como este trabalho procura comprovar, o novo gênero é fruto lógico das mudanças tecnológicas e na forma de produzir e distribuir conteúdo com a institucionalização da internet na vida das pessoas. Independentemente do julgamento de valor que seja feito sobre cada título, não se pode negar que esse movimento (de apropriação, transformação e geração de material novo) chegou “para ficar” na literatura mundial. As discussões sobre os reais motivos que causam essa repulsa são vários. Seria ela fruto do preconceito com autores novos? Poderia ser uma resposta psicológica ao fato de que para muitos críticos os clássicos da literatura compõem um ambiente que beira o sagrado, e que por isso mesmo, não deveria jamais ser 39 Disponível também em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT177254-15230177254-3934,00.html, acesso em 17 de fevereiro de 2012 34 maculado? Existiria ela em mesmo teor se as obras fossem assinadas por nomes consagrados do campo das letras? Impossível saber. Contudo, se as adaptações, que há tantos séculos fazem parte do cotidiano literário do mundo, ainda geram tanta controvérsia e são vistas com tanto desdém, é possível prever que os mashups ainda sejam desconsiderados como novo gênero por alguns anos. Considerações finais Da mesma forma que qualquer teórico ou estudioso contemporâneo sabe que é impossível pensar o mundo sem considerar a importância da internet na realidade atual, chega o momento de passar a compreender, respeitar e, principalmente, aceitar que algumas situações jamais serão como antes dela. O nascimento dos mashups como gênero literário é um desses itens. As características do estilo - que não cabem em nenhuma outra definição já estabelecida – são os principais argumentos para defender o nascimento de um novo gênero. A influência dos temas insólitos em todos os títulos de mashups, mesmo que num primeiro momento seja vista como uma característica que pode banalizar o gênero, também é o ponto chave sem o qual não se pode distanciar as criações dos clássicos da literatura (dos quais tomam emprestadas referências), como também interpretá-las como algo completamente novo. Ainda no sentido de diferenciar o produto dos mashups dos clássicos, há de se levar em conta a estrutura de linguagem menos cuidada que os novos textos têm em comparação com seus antecessores. Apesar de alguns estilos serem reproduzidos – como no caso de Dom Casmurro e Os Discos Voadores o autor que conversa com o leitor - , o linguajar utilizado pelos autores dos mashups é bastante diverso do dos clássicos, numa postura talvez um pouco debochada da própria obra. 35 Outro ponto interessante sobre essas novas produções se dá na duplicidade de autores. Diferentemente de qualquer outra criação a partir de materiais já existentes, os mashups sejam talvez um dos únicos “produtos finais” feitos na era da internet - e da frequente apropriação indevida de trabalhos alheios - que credita os escritores de seus “trabalhos de base” escancaradamente em suas capas. Assim, o conteúdo se coloca, de forma bastante clara, como algo feito a partir de uma ideia já existente. Este trabalho não pretende glorificar ou humilhar nenhum dos títulos já lançados dentro da proposta de transformar uma trama clássica da literatura em uma nova história, contendo seres fantásticos que povoam a cultura pop. A ideia é de prestar um serviço a educadores, críticos e interessados no sentido de exigir respeito quanto a um novo estilo que está completamente de acordo com todas as mudanças tecnológicas e sociais semeadas com a institucionalização da world wide web. 36 Bibliografia AMORIM, Lauro Maia. Tradução e Adaptação: Encruzilhadas da textualidade em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, e Kim, de Rudyard Kipling. São Paulo, Editora Unesp, 2005. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo, Editora Moderna, 1983. CECCANTINI, João Luís. Literatura Infantil – A Narrativa. Disponível em: http://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40360/3/01d17t09.pdf. Acesso em 07 de janeiro de 2012. CECCANTINI, João Luis C. T. A adaptação dos clássicos. 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