www.airmandade.net CONTOS VENCEDORES DO PRÊMIO HENRY EVARISTO DE LITER ATUR A FANTÁSTICA Diagramação de Afonso Luiz Pereira Capa de Thato Bordin Esta antologia não tem fins lucrativos, sendo sua distribuição totalmente gratuita, com o objetivo de divulgar os trabalhos dos membros da comunidade literária do site A Irmandade. No entanto, todos os textos publicados neste ebook são de propriedade intelectual de seus respectivos autores. A reprodução por meio de qualquer outra mídia, para fins comerciais ou não, só poderá ser feita com a autorização dos mesmos. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO HENRY EVARISTO - Paulo Soriano A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO - Henry Evaristo CONTOS VENCEDORES PROFANADORES - Chico Pascoal ANÁTEMA - Rafael Peres O PASSADO VOLTA - Verônica S. Freitas O CAMINHO DE VOLTA - André Soares Silva ALMAS MORTAS - Sofia Geboorte ENTRE AMIGAS - Eni Allgayer O DIABO MORA NESTA CASA - Jorge Eduardo Machado MANEQUIM - Reginaldo Costa de Alburqueque LÁGRIMAS DE CRIANÇA - Pedro Viana CAMINHOS PERIGOSOS - Hélio Sena APRESENTAÇÃO Apresentação A Irmandade é bem mais do que um site literário especializado no gênero Terror. É, antes, o meio pelo qual se expressam “homens e mulheres que precisam dividir os seus tempos entre as agonias de um dia-adia estafante e ‘pé-no-chão’ e um mínimo de minuto para se deixarem viajar nas asas de uma imaginação exacerbada e maravilhosa; e esta imaginação, caro leitor, pode nos levar longe; pode nos conduzir a mundos assombrosos onde habitam mil espécies de coisas insanas, onde se escondem ninhos de víboras diabólicas, que são moradas de abominações horrendas e sem espaço nesse nosso pequeno mundo ordinário. Uma imaginação que gera monstros e belezas frias, palpáveis apenas nos mundos oníricos, mas que, vez por outra, podem saltar de algum canto escuro ou de alguma floresta sombria para este lado da matéria, querendo devorar almas e mundos ”.( Henry Evaristo, Introdução à coletânea “Irmandade das Sombras”, CBJE, p. 8 e 9.) Mas não é somente isto a Irmandade. Nela não há lugar para o egoísmo esnobe. Ela busca, igual e essencialmente, revelar ao mundo novos talentos, compartilhar ideias, fomentar o gosto e a troca de Sumário 6 APRESENTAÇÃO experiências literárias, o que o faz estimulando a produção de narrativas fantásticas e, bem assim, divulgando amplamente um vasto leque de talentosos escritores. Foi o que fez, por um período curto, mas intenso, Henry Evaristo, em seu blogue “Câmara dos Tormentos”. Para que o legado e a missão de Henry se multipliquem, o “Prêmio Henry Evaristo de Literatura Fantástica”, de periodicidade anual, foi instituído visando a fomentar a produção literária no gênero do terror em nosso País. E obteve, sem dúvida, na sua primeira edição, êxito absoluto em seu desiderato. O concurso contou com quase uma centena de contos inscritos e isto, certamente, tornou ainda mais expressiva a justa homenagem que se rende a um dos maiores nomes da literatura fantástica nacional. O livro que trazemos a lume reúne as dez narrativas vencedoras do certame, extraídas de um universo de 92 contos recebidos, lidos atentamente, filtrados de acordo com a prioridade de critérios estabelecidos no regulamento, relidos e discutidos ponderadamente entre os seus avaliadores, Membros Fundadores do site literário A Irmandade. Queremos agradecer cada participante do Prêmio Henry Evaristo de Literatura Fantástico e, também, aos parceiros Flavio de Souza, Tânia Souza, Paulo Soriano, Rochett Tavares, Alfer Medeiros, Afonso Luiz Pereira, Lino França Jr., Ramon Bacelar, Sumário 7 APRESENTAÇÃO Cristiano Rosa, Victor Meloni, que contribuíram com a realização do evento, doando exemplares para a premiação em livros e, também, às editoras (Aleph, Argonauta, Draco, Estronho e Literata) que confiaram e apostaram no projeto. A todos os participantes do Prêmio Henry Evaristo de Literatura Fantástica, obrigado! Aos leitores que, porventura, esbarrarem nesta antologia, tenham uma boa leitura. Sumário 8 HENRY EVARISTO Escrito por Paulo Soriano HENRY EVARIST0 Escrito por Paulo Soriano É sempre difícil escrever sobre alguém que, de alguma forma, enreda as nossas emoções. Não é sem motivo que se dizem suspeitos os que testemunham acerca de fatos que envolvem amigos ou inimigos. No primeiro caso, depõe-se “a favor”; no segundo, “contra”. Encontrar o equilíbrio em tais situações é tarefa que exige um esforço sobrehumano. Creio que sou – e não simplesmente fui – amigo de Henry Evaristo tempo suficiente para emitir um parecer sobre sua pessoa, e é de seu imenso caráter que extraio o exemplo e, bem assim, a força necessária para superar minha natural suspeição e dizer o que há de ser dito. O medo é uma sensação necessária e ancestral. Mais remoto que o homem, tão premente e pungente quanto a sede e a fome, é o medo requisito indispensável à sobrevivência das espécies mais Sumário 9 HENRY EVARISTO Escrito por Paulo Soriano evoluídas. Ele suscita o alerta de que algo de terrível nos espreita e assedia e que, portanto, é preciso reagir imediatamente. Mas tal primitiva emoção transcendeu o imperativo da sobrevivência ao humanizar-se. Não foi à toa que Lovecraft escreveu que o medo é a mais intensa e antiga das emoções humanas; e que, dos medos, o do desconhecido é o mais intenso. Henry Evaristo sabia disso melhor que ninguém; e, melhor que ninguém, deu prova disso. Sobre Henry, cujas linhas impactantes deixavamme quase sempre boquiaberto, escrevi um texto que não cheguei a publicar. E nem mesmo a concluir. A pedido de meu amigo – uma das pessoas mais brilhantes que conheci –, eu me pus a redigir uma introdução ao seu único livro – Um salto na escuridão –, mas Henry faleceu antes que eu concluísse a minha missão. Mercê do meu transtorno e de minha profunda tristeza, que ainda perduram, o texto continua inacabado. Dói-me profundamente – e sempre me atormentará – o remorso de não ter aprontado a introdução quando Henry ainda estava entre nós, a nos encantar com a sua inteligência penetrante, sua fina ironia, seu cáustico humor. Fica o consolo de que registrei algumas gotas acerca do imenso caudal literário do amigo escritor e, antes que elas se dispersem, segue um tímido borrifo: Quando o dia entenebrece, quando sangra o horizonte rasgado pelo vento cálido, e as copas das árvores altaneiras dançam silenciosamente o Sumário 10 HENRY EVARISTO Escrito por Paulo Soriano fulgor escarlate, que anuncia a chegada das trevas abissais, toda a floresta se recolhe num súbito e mudo embrutecimento. Tudo se cala. Tudo se paralisa. Um clima de angustiante expectativa subjuga a melancolia que só o ocaso sói transpirar. Há o prenúncio de que algo de terrível há de se esgueirar sob a hedionda tessitura duma miríade de galhos e cipós retorcidos. Finalmente, quando a treva exerce a sua absoluta suserania, elava-se das entranhas da mata cerrada um clangor absurdo, que se não sabe se humano ou animal, e toda expectativa é sepultada pelo medo palpável, pelo horror pungente, denso e penetrante, da contextura de uma neblina negra e atroz. Teriam os horrores silenciosos, que se escondem sob a densidade indevassável da Floresta Amazônica, induzido um espírito taciturno, e especialmente inteligente, a perscrutar o mundo com singular argúcia, e nele vislumbrar pavores outros, invisíveis aos olhos das pessoas comuns? E, em seguida, a incutir, com a pena de um grande mestre, e a tinta carregada de horrores, no espírito do leitor, o medo em seu aspecto mais substancial? É bem possível que sim. Pois o que permeia a obra do escritor acriano Henry Evaristo é, sobretudo, o prenúncio do horror. É o presságio do terrível. Henry sabe muito bem que é justamente no limiar de um fato especialmente tenebroso que reside o medo. E explora este momento que antecipa o fatídico com maestria inigualável. Ninguém melhor que Henry Sumário 11 HENRY EVARISTO Escrito por Paulo Soriano sabe fazê-lo, resida ou não a causa dos temores em fatores sobrenaturais... Henry foi – e, para mim, continuará sendo – um grande escritor. Mas, talvez, esta não seja, dentre a suas inúmeras facetas – Evaristo era escritor, instrumentista, compositor, historiador e professor – a única altaneira. Que Henry era um homem de imenso e singular talento, ninguém duvida. Mas era, sobretudo, um ser humano extraordinário, um amigo a toda prova, especialmente sincero, humano e fiel. Caráter e talento muitas vezes se distanciam. Mas, em Henry Evaristo, mais que se imbricavam: mesclavam-se e fundiam-se para resultar e dar a exata dimensão de um grande homem. (Saudades, irmão! Muitas e muitas saudades...) Paulo Soriano Sumário 12 A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO Henry Evaristo A Coisa do Jardim Zoológico Henry Evaristo Naquele dia resolvi que gostaria muito de poder explorar as trilhas selvagens que se estendiam ao redor do parque. Eram como trajetos postos à disposição do público para que ele pudesse, ao mesmo tempo, experimentar o contato direto com a natureza e se exercitar praticando caminhadas saudáveis. Em verdade, o lugar era também um centro cultural onde ocorriam apresentações musicais, mostras de teatro, artes plásticas, cinema e, logicamente, a exposição de animais de faunas variadas em jaulas espalhadas ao longo das trilhas que adentravam o terreno e iam findar muitos quilômetros adiante, numa área de fazendas e matadouros. No dia 21 de abril de 1990 eu não saí do interior do parque antes que ele fechasse. Fiquei vagando pelas trilhas, refletindo sobre problemas que me absorveram tão completamente a ponto de me fazerem perder o horário. Por volta das vinte horas, me vi no meio da floresta escura cercado pelo silêncio que parecia brotar da ausência de pessoas no local; e pela estranha vida que sempre se propaga pelas matas depois que escurece. Oh, só sabe do Sumário 13 A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO Henry Evaristo que falo aquele que já esteve em situação semelhante! As florestas, à noite, se enchem de uma vida assombrosa. Silvos medonhos se espalham pelo ar, vindos sabe-se lá de onde; galhos se partem como que pisoteados por coisas que andam em meio às trevas. E estranhas vozes parecem soar bem às suas costas, de repente, no escuro. Então, quando você se volta, aturdido, com o coração saltitando em velocidade homicida, descobre que não há nada, pelo menos não mais, além de galhos e folhas, galhos e folhas que podem muito bem esconder coisas pavorosas. Aquele que quiser realmente experimentar o horror, mergulhe, como eu fiz, numa floresta escura após o anoitecer. Não é a toa que os homens medievais acreditavam que seus bosques eram povoados por demônios carniceiros. Quando percebi a situação insólita em que me embrenhara, voltei-me imediatamente na direção da saída da trilha em que estava. O imenso corredor que o caminho descortinava diante de mim encontrava-se completamente envolto pelas trevas. Ainda podia avistar, no céu, réstias de luz solar, mas não era o suficiente para proporcionar nenhum tipo de alívio para toda aquela escuridão. Pude ver algumas luzes dos postes que cobriam a extensão inicial da trilha; luzes esbranquiçadas que se projetavam para baixo como raios triangulares bem definidos. Segui nesta direção. Observei que enquanto andava, com passos realmente apressados, passavam por mim algumas jaulas que nem mesmo havia percebido quando fizera o caminho de ida. Percebi também um cheiro forte e acre que se espalhava a partir destas "gaiolas" imensas; e diminuí o ritmo de meus passos, num primeiro momento, ao ouvir um som horrível que se propagou de repente pelo ar frio da noite. Era, sem Sumário 14 A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO Henry Evaristo dúvida, um rosnar feroz, animalesco, ameaçador. Vinha do escuro no interior da jaula e, ao olhar fixamente para a escuridão, imediatamente avistei múltiplos pares de olhos que me fitavam avermelhados. Não sei o que me passou pela cabeça na ocasião, mas creio, hoje, depois de tantos anos, que não andava muito bem das ideias já naquele tempo. Digo isso por que, quando deveria empregar ainda mais vigor em minhas passadas em direção à saída da trilha, e sem dúvida alguma começar a gritar desde já, eu resolvi parar. Segurei na barra protetora, que mantém os visitantes a uma distância segura das feras aprisionadas, e fitei novamente o interior. Eram lobos! Uma cela repleta de lobos! Espécimes extraordinários, enormes e de cores que não pude discernir na escuridão. No entanto, todos estavam tão quietos, acuados a um canto de sua morada forçada. Foi somente quando me inclinei ainda mais próximo que pude perceber um outro animal lá dentro. Um outro lobo ou fosse lá o que fosse... Um animal quadrúpede que, postado aos pés das barras de ferro, me fitava com aparente animosidade. Quando o percebi, estava já com a cabeça quase encostada na proteção da jaula. E hoje fico imaginando se aquela besta tivesse enfiado as garras para fora e me agarrado pelo pescoço... Não pude ver nitidamente seu dorso, mas pelo volume escuro de sua cabeça, com certeza era um animal de grande porte, incomum eu diria, até mesmo para os lobos mais desenvolvidos. Ela não fazia movimentos. Ficava lá, parado, me observando. Enquanto isso os outros animais pareciam sofrer com sua presença. Soltavam pequenos uivos lamentosos e passavam as garras pelo chão. Mas nunca, em hipótese alguma, saiam de suas posições ousando Sumário 15 A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO Henry Evaristo aproximar-se da fera escura perto das grades. Resolvi seguir meu caminho. A curiosidade inicial estava novamente dando lugar ao medo de outrora. Não gostei do olhar que a coisa me lançou quando percebeu que eu começara a me afastar. E, antes de me virar para continuar a andar, a vi empreender um movimento súbito para frente e começar a se levantar. Novamente apressei o passo. Agora queria me distanciar urgentemente daquele lugar. Não avançara mais que cem metros quando ouvi um som pavoroso ás minhas costas. Não era nenhum uivo, nem grito sobrenatural, ou rosnar dantesco, como podem estar imaginando os amigos. Eram os ruídos, os rangeres metálicos, que as grades da jaula emitiam ao serem escaladas por alguma coisa pesada que quisesse saltar para fora da morada dos lobos. Não posso descrever a sensação de pavor e de estarrecimento que experimentei quando percebi que algo havia deixado o interior escuro de onde estivera espreitando e estava agora solto na mesma trilha que eu. Mesmo assim, vendo que os postes de luz estavam agora bem mais perto, e podendo já avistar a guarita onde dois guardas assistiam T V, resolvi me virar para olhar o que quer que fosse. Primeiro vi o caminho escuro atrás de mim. Minhas vistas demoraram um pouco a enxergar aquilo que estava mais adiante. Depois vi as matas ao redor, açoitadas pelo vento e cobertas com as trevas mais densas. Depois avistei o local onde estivera, em frente à jaula dos lobos. Havia uma sombra parada lá. Uma sombra volumosa, de cerca de dois metros de altura. Sei disso por Sumário 16 A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO Henry Evaristo que ela estava de pé! Ereta! E olhava fixamente para o interior do lugar de onde saíra. Andei mais para adiante e parei novamente na orla entre o início da trilha e a luminosidade proporcionada pelos postes. Da guarita do portão principal saltaram os vigias correndo em minha direção. A sombra continuava lá, em sua mesma posição. Mas agora me fitava, sei que me fitava, mesmo com toda aquela escuridão... Pois seus dois olhos vermelhos faiscavam contra o reflexo das luzes brancas dos postes de iluminação! Não ouso descrever as formas da coisa. Até hoje guardei este segredo bem guardado comigo, mas nunca deixei que nenhum de meus filhos frequentasse o jardim zoológico municipal. Na primeira oportunidade, mandei-os estudar na capital. Sei que minhas decisões foram acertadas tanto com relação a meus filhos como com relação a mim mesmo no dia fatídico. Foi minha resolução em me afastar que provavelmente me salvou pois, alguns meses depois, a comunidade de nossa pequena cidade se quedou aterrorizada por uma onda de desaparecimentos de pessoas nas imediações do zoológico. Às vezes, quando estou só, tarde da noite, e a insônia de velho não me deixa conciliar o sono, sentome na cama e, enquanto observo minha esposa ressonar em seu oblívio inocente, me vêm à mente as palavras gritadas pelos vigias para dentro da trilha escura. Lá, onde avistaram, como eu mesmo, o animal que provavelmente devia ter aprendido como saltar para fora da jaula onde deveria viver confinado. Com certeza não foi um animal Sumário 17 A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO Henry Evaristo que os dois homens viram. Viram o mesmo que eu! E suas palavras me arrepiam diante das possibilidades tão aterradoras: "Senhor, venha para cá!” Eles gritaram. “O parque já está fechado!" "Ai é perigoso! O senhor os está perturbando!" Também lembro de como a fera lançou um outro olhar para mim, de dentro da escuridão e depois, nos dando as costas e caminhando encurvada, desapareceu na floresta. Sumário 18 CONTOS VENCEDORES DO PRÊMIO HENRY EVARISTO DE LITER ATUR A FANTÁSTICA PROFANADORES Chico Pascoal PROFANADORES Chico Pascoal F elício tinha os olhos injetados pelo pavor, as mãos tomadas por incontrolável tremor, e, fazia dias, não falava. No desespero da súbita perda da faculdade da fala, gesticulava angustiado, e tentava inutilmente articular palavras que não encontravam em suas cordas vocais a ressonância necessária para que ele se fizesse inteligível. Pobre Felício! Fosse alfabetizado, com certeza poderia se utilizar da escrita para descrever o que de fato tinha acontecido àquela noite. Letras e garranchos, para ele, eram a tudo a mesma coisa, não representavam nada. O povo da pequena Oiticica, onde quase nada de extraordinário acontecia, em principio teve até curiosidade em saber que espécie de mal o havia acometido. Depois, com o tempo, deixaram para lá. Fosse uma pessoa importante, tivesse recursos, certamente o levariam para a Capital para ser submetido a minuciosos exames com os melhores médicos. Mas Felício, coitado, não passava de um pobre diabo que não tinha onde cair morto. A verdade sobre o que lhe ocorrera, só ele conhecia. Sumário 20 PROFANADORES Chico Pascoal E, se a revelasse, ele bem o sabia, seria severamente punido, pois o que fizera, mais do que pecado, poderia até ser considerado como crime hediondo. Todavia, Felício estava - por Deus como estava - disposto a fazê-lo, desde que tivesse de volta a sua voz e a sua paz de espírito. No fundo do coração, ele estava envergonhado e arrependido do seu ato. Sim, sem dúvida nenhuma, ele merecia um castigo. Quem sabe já não estava sendo castigado pelo que fizera? O mesmo se aplicava ao criador de porcos Jeremias. Mas o seu parceiro, como irão saber mais adiante, tivera outra sorte não menos triste. A brilhante ideia de profanar a carneira de Dom Francesco Maggio fora dele, Felício. Que Jeremias, um xucro, que embora soubesse ler, não era lá de pensar muito. Em principio, Felício até pensou em fazer o serviço sozinho para não correr riscos. Mas, ao constatar que a tampa de mármore do túmulo do bispo era tão pesada que um homem sozinho não conseguiria removê-la, convidou Jeremias para pescar traíra no banhado, e lá convenceu-o de que devia ajudá-lo. A troco de quê? Ora, Jeremias, por mais tolo que fosse, não ia trabalhar de graça. Felício logo descobriu que ele se apaixonara de um par de botinas que estava exposto há meses na vitrina da Casa Independência, a ponto de passar quase todos os dias em frente à loja para admirar o produto. “As botinas serão suas se me fizer este favor, parceiro!” — prometeu Felício. E Jeremias engoliu a isca que nem um bagre bobo. A lua cheia, lá nas alturas, era um medalhão de prata fosca, quando os parceiros marcharam rumo ao cemitério decididos a por em prática seu macabro plano. Eram duas sombras que se esgueiravam sorrateiras por entre jazigos antigos e covas simples. Felício ia à frente, as Sumário 21 PROFANADORES Chico Pascoal mãos enluvadas em sacos plásticos, já que, como era de se esperar, depois de quase um mês sepultado, os restos mortais do prelado estivessem em avançado estado de decomposição. Atrás de si, portando uma alavanca, ia o grandalhão Jeremias. Um odor rançoso e putrefato infectou, num minuto, a atmosfera cálida do campo santo, quando os profanadores ergueram a pesada campa. Felício sentiu que seu estômago se revirava, mas aguentou firme. Jeremias, acostumado aos odores da pocilga onde alimentava sua vara de porcos, não estranhou muito. Sob o espectro pálido do luar, um espetáculo insólito: milhares, quiçá milhões, de pequenas larvas da tapurus se refestelavam com as carnes fartas de Dom Francesco, indiferentes à presença dos dois intrusos. “O anel de esmeralda!” — conteve-se para não gritar eufórico Felício, enquanto arrancava, sem cerimônia, a jóia do dedo médio esquerdo já descarnado do defunto notável. “Sua eminência não vai mais precisar dele, Jeremias!” — riu. Felício, mais que exultante, de algum modo sentia-se vingado da indiferença e do desprezo com que era tratado pelos seus vizinhos. Pensavam que era um parvo por não ter estudo? Pois que continuassem pensando. Enquanto eles estavam indo com a farinha, já estava ele de volta com o angu. Tinha tudo muito bem planejado. No dia seguinte, logo cedo, iria comprar as benditas botinas prometidas ao Jeremias, e embarcaria no primeiro comboio rumo à capital. Lá, um primo seu iria acompanhá-lo até um Sumário 22 PROFANADORES Chico Pascoal avaliador experimentado. Um comprador que não dava a mínima pela procedência do produto, e negociaria o anel. Encheria as turras. Arrumaria a vida. Tiraria o pé da lama. Nada mais a fazer ali, recolocaram com cuidado a campa sepulcral, e decidiram abandonar o local. Andavam rápido, desviando-se dos túmulos, quando, sob o arco do portão encimado por uma cruz antiga de cimento, Felício, sem se voltar, comentou com o parceiro: “Tudo nos conformes, né Jeremias?”. Embora pudesse sentir sua presença, seu arfar pesado, seus passos, estranhou que o companheiro não lhe respondesse. E, ao voltar-se, se surpreendeu que ali não estivesse. “Deixe de brincadeira besta, homem!” — ralhou em um tom um pouco mais alto, imaginando-o escondido atrás de algum túmulo. “Visagem não me assusta não! Medo mais eu tenho é dos vivos!”. Felício enfezou-se. “Jeremias, seu idiota!” — berrou irritado — “Vamos cair fora logo dessa merda de lugar!”. Não houve resposta. Nem sombra do outro. Perdida a paciência, Felício tomou novamente o rumo do túmulo do bispo disposto a enquadrar o criador de porcos. “Que hora mais imprópria para brincar, homem!”. Sumário 23 PROFANADORES Chico Pascoal Jeremias também não estava lá. Sobre a alva campa de Dom Ramiro, porém, avistou as suas roupas rotas, o seu chapéu surrado, as suas alpargatas de rabicho, ao lado da alavanca fornida em aço. Uma corrente de ar frio, fenômeno incomum naquelas paragens naturalmente áridas, fez-se sentir. E Felício, as pernas tomadas de súbita fraqueza, mesmo não querendo acreditar, desconfiou que algo de incomum estivesse prestes a acontecer. Subitamente, uma nuvem de chumbo eclipsou o luar e dela, descendo em vertical, apresentou-se um vulto paramentado de estola e casula. A mitra dourada equilibrada sobre o crânio de pelo ralo, o báculo do poder episcopal na mão esquerda. Felício sentiu gelar o sangue. A lua voltou a aparecer. À luz dos seus raios, Felício pode enxergar nitidamente as faces descarnadas e os ossos podres de Dom Francesco Maggio. O espectro fez um sinal em sua direção com a mão direita, e ordenou-lhe com uma voz rouquenha e gutural, que parecia vir dos abissais do inferno, que devolvesse o anel episcopal. Felício, em pânico, quis pedir socorro, mas dentro daquele sórdido pesadelo, o grito agrilhoado na masmorra profunda das suas entranhas não lograva se libertar. “Devolva-me o meu anel, ó excomungado!” — repetiu o defunto ressurrecto por algum desígnio sobrenatural. Felício, tomado pelo terror, deixou cair sobre o passeio coberto de limo o lenço no qual envolvera o anel surrupiado ao morto. Instantânea e providencialmente, a poderosa energia selenita dos raios que banhavam a frieza mórbida das lápides enfileiradas fez com que suas pernas finalmente recobrassem os movimentos e, mesmo sem uma ordem clara do seu cérebro, o levassem para Sumário 24 PROFANADORES Chico Pascoal bem longe dali. Foi assim, desta maneira insólita, que Felício perdeu a capacidade da fala. No dia seguinte, o povoado sempre tão tranquilo e sem grandes novidades, acordou com um boato que, verificou-se depois, tinha algum fundamento. Marcelino Nogueira, o Sete Palmos, que há anos desempenhava a função de coveiro do povoado, capinava um canto do campo santo quando descobriu violada a última morada do venerável bispo Dom Francesco Maggio, que, embora exercesse seu apostolado na diocese de uma cidade maior, manifestara em testamento o desejo de ser enterrado em sua natal Oiticica. Uma comissão composta de autoridades locais, entre elas o vigário Ariosto Petrônio, o boticário Pompeu Lobato e dona Maricota Lemes, diretora do Grupo Escolar Belizário de Souza, se incumbiu de investigar o estranho caso. Só a ela foi permitida o acesso à bizarra cena do crime. A exceção era Marcelino Sete Palmos, a quem coube a ingrata função de botar as mãos na massa esfarelada e inanimada, de revistar o esquife. Em princípio, certificou-se que nada de valor havia sido subtraído do túmulo. Os investigadores viram-se empacados, todavia, na hipótese da profanação como parte de um ritual de magia negra, apresentada pelo padre que, quando jovem, tivera a oportunidade de estudar casos desta natureza na Universidade do Vaticano. Foi Marcelino quem percebeu que, a despeito de haver falecido há quinze dias, Don Francesco não exalava o odor nauseabundo dos cadáveres apodrecidos. Era um defunto fresco. Sumário 25 PROFANADORES Chico Pascoal “Era um homem santo” — buscou uma explicação de cunho místico o padre Ariosto — “digno de beatificação”. “Parece até que Dom Francesco observou dona Maricota – “E engordou”. remoçou...” — Com o olho clínico de quem convivia há muito tempo com os convocados a descer à mansão dos mortos, Marcelino Sete Palmos ouvia com atenção as conjecturas e suposições, enquanto analisava o de cujus. Quando a questão voltou à estaca zero do impasse, pediu licença para dar a sua modesta opinião: “Desculpem-me a intromissão, mas, olhando bem, este corpo aí não é o do nosso saudoso Dom Francesco.”. Houve imediatamente, como era de se esperar, um reboliço geral. Os membros da comissão se entreolharam confusos. “Marcelino!” — ralhou o austero boticário Lobato — “Como se atreve a dizer uma bobagem dessas, homem?”. “Digo e provo, seu Lobato!” — agachou-se junto ao corpo o coveiro — “Olhem!”. Levantando a mitra episcopal e deixando a descoberto a cabeça do morto, o coveiro tocou-lhe de leve a testa: “Dom Francesco era calvo, não era?”. Todos assentiram que sim, concordando, pois com o prelado haviam convivido muitas décadas. Alguns até tinham sido batizados e casados por ele. “E esta cicatriz aqui, que vai do pescoço à base da orelha direita?”. Sumário 26 PROFANADORES Chico Pascoal “Fui eu quem saturou o ferimento” — adiantou-se Lobato. “Então só pode ser o...” — tapou a boca, horrorizada, dona Marieta. “Ele mesmo!” — ergueu-se triunfante Marcelino Sete Palmos. — “Esse corpo aí, minha gente, é do Jeremias dos porcos!”. Para que não se acirrasse ainda mais confusão, em consenso, a comissão resolveu manter tudo em segredo. Que se enterrasse ali aquela história. Para todos os efeitos, era Dom Francesco quem repousava naquele jazigo de mármore com inscrições em latim. O padre Ariosto, convicto de que haviam tomado a melhor decisão, convocou todos a uma prece e, no papel que lhe cabia, encomendou a Deus aquela pobre alma. Que Jeremias ali permanecesse, até o dia do Juízo, quando todos haveriam de prestar contas dos seus atos. Quanto ao Felício, dizem, só voltou a falar novamente duas horas antes de falecer, quando finalmente confessou sua culpa. Até aquele dia, porém, tinha sido visto sempre a vagar aparvalhado pelas ruas estreitas de Oiticica, sem conseguir se livrar dos passos ritmados pela batida dura do cajado que o seguiam por onde quer que fosse, sem lhe dar trégua, ou um instante sequer de paz. Sumário 27 PROFANADORES Chico Pascoal CHICO PASCOAL é escritor cearense radicado em São Paulo, com contos e poemas publicados sites e revistas literárias tais como Veropoema, Bestiário, Portal Literal, Veredas (Brasil), Minguante e Letrário (Portugal), Navona Editorial (Espanha) . Participou das seguintes antologias: Contos Imediatos (Ficção Científica da Editora Terracota, 2009), Cursed City, História Fantástica do Brasil – Inconfidência, Saci e os Mestre do Terror, Sexo Livros e Rock in Roll, Demônios VII – Avareza (Editora Estronho), FC do B – Ficção Cientifica do Brasil – Panorama 2011 (Editora Tarja) , Literatura Futebol Clube (Editora Multifoco, 2012), H2Horas (Cronópios/Dulcinéia Catadora -2010) Autor de literatura minimalista, foi premiado em diversos concursos de minicontos, nanocontos e poesia haicai. Leitor apaixonado, tem sempre à mão um livro; seja de autor nacional ou estrangeiro. Que a literatura Escreve no blogue: http://microrelatosdocheeko.blogspot. com Sumário 28 ANÁTEMA Rafael Peres ANÁTEMA Rafael Peres Escreve com teu sangue e verás que sangue é espírito. Nietzsche N unca soube de alguém que tenha vivido uma experiência igual ou, ao menos, semelhante a esta. É quase certo que vocês, leitores, jamais passaram por uma situação tão odiosa e intrigante quanto a minha. Vou descrevê-la para homenagear aqueles que mantêm opiniões precipitadas e céticas perante a palavra. Já posso até ouvir os rumores de críticos e leigos ao confrontarem tal narrativa. Entes incrédulos... Imaginem, pois, a seguinte situação: imaginem dividir um espaço restrito com seu pior inimigo. Imaginem tê-lo Sumário 29 ANÁTEMA Rafael Peres tão próximo de si a ponto de ouvir seus pensamentos e angústias. Imaginem suportar suas imprecações e ameaças sem poder revidar. Imaginem o quão degradante é para o homem não poder seguir o caminho das sombras.... Acho que peço demais – o bom senso de vocês os impedem de imaginar algo semelhante. O claustro é um lugar infernal, sobretudo se nele estiver aquele que você mais odeia. Tudo começou na escuridão imposta por uma venda. Quando alguém a tirou, não pude distinguir o que estava ao meu redor. Minha cabeça girava e doía. Aos poucos, as manchas colidiram-se. Imagens distintas aproximavamse. Estava amarrado numa cadeira dentro dum sótão minúsculo. A luz de um abajur revelou-me dois estrados, uma escrivaninha e alguns cobertores. Outros objetos foram aparecendo: livros numa mesa de cabeceira, um cantil com água, folhas avulsas e outros fragmentos esparramados no chão. Mais tarde, vi que eram bolas de papel. Não havia nenhuma janela. O ar morno e pesado era quase irrespirável. Esse incômodo talvez se acentuasse devido ao meu esforço em desatar os nós que me prendiam à cadeira. Lutei esbaforido, mas, no fim, acabei caindo, imóvel. Na posição que estava, divisei um vulto perto da porta. Seria o homem que havia tirado minha venda? A luz do abajur não alcançava as sombras que o consumiam. Ele riu ironicamente. Seus gestos mexeram-se nas trevas. Ouvi um, dois, três, quatro passos... Hermes Ávila, meu pior inimigo, revelava-se diante de mim! Julguei estar delirando... Cerrei meus olhos fortemente. Abri-os... Realmente, era o maldito escritor! “Não pense que foi meu desígnio trazê-lo para este lugar”, disse ele, adivinhando-me. Suas palavras eram Sumário 30 ANÁTEMA Rafael Peres repugnantes! Eu me contorcia, amarrado à cadeira, e vociferava várias injúrias. Ávila levantou-me. Disse que também fora raptado e trazido para cá. “Mentira!”, gritei. No entanto, juroume por sua honra que dizia a verdade. Segundo ele, tinha sido sequestrado muito antes que eu. Assim que me reconheceu, quis matar-me. Contudo, debaixo da porta, apareceram palavras que coibiram sua fúria. Hermes pegou um envelope sobre a escrivaninha e tirou um papel com uma ameaça datilografada. Dizia a mensagem que, se um de nós atentássemos contra a vida do outro, ambos seríamos mortos por eles... Eu era incapaz de acreditar nessa história, afinal, seu porta-voz era meu pior inimigo... mas havia algo que me inculcava. Se Hermes era o mentor do meu sequestro, por que eu continuava vivo? Estremeci... Será que estava diante dum sádico? Para minha surpresa, ele desatava os nós que me prendiam. Pude mover-me livremente, mas estava fraco. Ávila jamais se importaria com isso – atingiu-me com um potente soco! Tentei revidar, mas meus membros não se moviam. Acabei desmaiando... Quando acordei, vi-o entregue dispersos sobre a escrivaninha. aos manuscritos — Como da outra vez, não te matei por causa da ameaça daquele papel. Confesso que fiquei mais tentado que antes, mas ainda preciso viver para concluir este conto – disse ele sem desviar seus olhos da escritura. Não respondi. Arranhei meu ódio em silêncio. Ainda estava fraco. Se houvesse outro confronto, ele não conseguiria conter sua ânsia de matar. Recostei-me com dificuldade na parede. Lá estava ele, o detestável Ávila! Sumário 31 ANÁTEMA Rafael Peres E pensar que ele tinha sido meu melhor amigo... Sim, acredite: Hermes fora meu amigo! Quando jovens, era ele que avaliava meus textos ingênuos. Sua maturidade literária surgiu precocemente, deixando-me muito aquém de sua verve intelectual. Hermes nunca me disse, mas achava minha literatura horrível. No entanto, sempre teve paciência e filantropia – sugeria modificações, formulava elogios pitorescos e corrigia os desníveis da linguagem. Seus textos, ao contrário, tinham um estilo breve e conciso, sem pedantismos. Ele sabia aliar perfeitamente o simples e o solene. No começo, eu o admirava. Era meu amigo um notável escritor! No entanto, com o tempo, apesar de nunca ter tido coragem de admitir isso, houve uma ponta de inveja. Era como se eu estivesse manchado pela culpa de ter esse sentimento dentro de mim... Ávila era o orador da turma e eu, seu seguidor mais próximo. A vassalagem dava-me prestígio. Os mestres elogiavam-me por causa da exemplar companhia. Eu desfrutava os púlpitos junto com meu amigo. Entretanto, mais pontas surgiram. A inveja doía muito! Pensei em contar tudo, dimensionar minha angústia. Por duas ou três vezes, estive perto dessa atitude. Porém, temia que Hermes não me compreendesse. Minha situação era alarmante. Invejava-o cada vez mais e, cada vez mais, tinha vergonha disso. Minha mancha tornou-se um embrião volátil e pegajoso. A criatura desenvolvia-se rapidamente... seus batimentos cardíacos já se confundiam com os meus. Nem mesmo um estetoscópio distinguiria a variante. Ninguém os escutava, somente eu. Tentei isolar a inflexão da massa disforme. Reitero que tinha vergonha disso. Porém, descobri que havia cometido um terrível engano. Meu propósito de extinguir o som amaldiçoado acelerou seu Sumário 32 ANÁTEMA Rafael Peres compasso! Não consegui resistir. Tornei-me um autômato com dois corações inexistentes... O vigia noturno ressonava em seu posto, enquanto as rosas de Ávila eram pisoteadas. Um murmúrio cego evadiu-se. Ventos alíseos profanaram a noite, rasgando sua veste de luto. Um dos homens rosnou uma praga. O frio inquietava-o. Logo que a porta cedeu, fez-se uma luz no segundo andar. Uma lanterna desferiu seu lume na sala vazia. Do térreo percebia-se o atrito da esferográfica com a alvura do papel. Hesitei em acompanhar os outros dois. Estava trêmulo e meus olhos ardiam. Os comparsas subiram. Gritos misturaram-se ao lamento frio da noite. Quando ergui minha cabeça, vi Hermes sendo carregado pelos cúmplices. Ele estava desacordado, porém um brilho opaco teimava em seus olhos. Assim que desceram as escadas, notei que o escritor havia despertado. Quando vislumbrou minha presença não houve nenhuma contração em seu rosto. No entanto, oculto na face estática, fluía um ódio convulsivo! Ávila não tentou libertar-se das mãos opressoras. Deixou-se ser levado... Precavi meus comparsas de cuidados e orientações. Após a surra, deveriam deixá-lo num local remoto, sem condições de pedir socorro. Dias febris vieram. Queria adormecer meu arrependimento, afugentá-lo da consciência. Todos estavam apreensivos com o desaparecimento de Ávila. A semana findara e nenhum vestígio do escritor. Indagações atingiram-me como setas. Todos estavam preocupados. Minha ligação com Hermes trazia-me incômodos. Nem eu sabia onde meus cúmplices o deixaram... Desconhecia até mesmo o verdadeiro motivo que norteara minha perfídia. Durante as horas mais escuras, ficava à beira do sono, Sumário 33 ANÁTEMA Rafael Peres execrando minha inveja. Ao amanhecer, não havia nenhum ímpeto que me pusesse fora do leito. No entanto, boas novas me reanimaram – a polícia encontrara Ávila amarrado dentro duma casa abandonada. Disseram-me que fora uma denúncia anônima... Senti um misto de alívio e repulsa. Meu amigo estava livre, mas seria eu quem cumpriria a sentença... Porém, fiquei atônito ao saber que Hermes dissera “homens encapuzados” em seu depoimento. Pensei que houvesse amizade nessa atitude. Era a oportunidade de me justificar. Finalmente, revelaria minha inveja. Contudo, o escritor deixou de ir às aulas. Não o via mais nos lugares que frequentávamos, nem mesmo em sua casa. Eu insistia em procurá-lo, mas Ávila fugia... Certa vez, porém, consegui cercá-lo. “Nunca mais quero vê-lo”, foram suas únicas palavras. Ele não permitiu que eu explicasse meus motivos secretos. Amargo (mas duplamente incerto), Hermes afastou-se de mim... Alcancei-o, cheguei mesmo a tocá-lo. Desci à comiseração, inflando a retórica das desculpas. Também acho que foi um ato leviano, desesperado. Nego generalizar que, de certo modo, ingenuidade e ódio são parecidos. Não é o teor o similar, nem o sentido, mas o índice mútuo que os rege. O que principia o ódio é a ingenuidade, flagrada em determinadas atitudes, e o que principia a ingenuidade é o ódio, pois o que lhe sucede é o terror inábil e cônscio da angústia. Não preciso reiterar com minúcias que a insistência pelo perdão afrontava o escritor. Seu olhar sanguíneo já evidenciava isso. Não suportando minha presença, Ávila empurrou-me, lançando xingamentos e ameaças. Já não havia amizade, só o resquício dum fulcro intróito. Nossas distâncias recuaram ainda mais. Longe do escritor, nem Sumário 34 ANÁTEMA Rafael Peres percebi que seu revide estava ao meu lado. Ávila roubou a única mulher que amei, mas não a amou – efetuou sua vingança, alinhavada nas falsas carícias. Sua maldade premeditada desvaneceu meu arrependimento. Hermes tornou-se meu pior inimigo... Aos poucos, as imagens do passado dissiparam-se... Arrastei-me para o estrado vazio. Ávila continuava entretido com seu manuscrito. Sua sombra projetava-se em mim. Era um núcleo negro num círculo de luz, uma célula difusa. Tive a impressão que ele vacilava. A inércia de sua esferográfica alongava-se, reticente. Ele esfregava suas mãos, soltando elipses no ar. Impaciente, esmurrou a escrivaninha. No mesmo instante, virou-se para trás. Fingi que dormia... Abri os olhos. Por enquanto, estava seguro. Hermes ressonava no outro estrado. Seu comportamento revelava que eu não era o único alvo de seu ódio. Fiquei curioso sobre o assunto tratado em sua narrativa. Era estranho. Ele sempre mostrara desenvoltura em seus textos. Não acreditava que era isso... Será que as musas abandonaram Ávila? Sentei-me no estrado. Estava inquieto. A exaustão havia passado. A luz do abajur irradiava centelhas em meus olhos. Pela primeira vez, pensei em sede, fome e tempo. Não tive fome, nem tempo, mas tive sede. Nenhum dos raptores trouxera comida. Talvez houvesse alguma provisão em meio ao lusco-fusco. Era irrelevante, eu não queria comer. Segundos, minutos, horas – desconhecia se era noite ou dia, ou se havia um relógio no sótão. Entretanto, a ansiedade secava-me a boca, deixando-a árida, insuportável. Bebi toda a água que restava no cantil. Sumário 35 ANÁTEMA Rafael Peres Era minha chance de eliminar Hermes. Eu me aproveitaria de sua inconsciência para sufocá-lo até a morte. Soturno, caminhei em sua direção. Eram passos custosos, medidos. Nenhum ruído poderia despertá-lo. Ajoelhei-me diante de seu corpo... No entanto, a ameaça datilografada impediu-me. Suas palavras agudas coibiram meu ódio. Sentei na cadeira do escritor e respirei fundo. Ávila mexeu-se. Sobreveio um silêncio opressor... Pensei que Hermes tinha acordado. Depois de algum tempo, notei que ele ainda dormia. Se o escritor me flagrasse sentado em sua cadeira, a mensagem datilografada não o impediria de me matar. Sobre a escrivaninha figurava sua escritura. A curiosidade era irresistível. Não pude suportar. Espiei suas palavras... Sua narrativa não tinha um título. Iniciava-se da seguinte forma: “Os caminhos alargam-se quando conheço a mim mesmo, pois conhecendo a mim mesmo, posso entender o outro e compartilhar com ele de uma mesma essência”. O final do conto também se resumia nessas três linhas. Isso porque não houve nenhuma história, nenhuma colocação além desse fragmento. Uma folha com inúmeros círculos mostrava a escassez de ideias. Foi difícil acreditar que meu inimigo era incapaz de escrever uma história. Na mesa de cabeceira, encontrei uma Bíblia, um livro de poemas byronianos e alguns tratados filosóficos de Nietzsche. Sobre a escrivaninha havia uma série de folhas com citações transcritas desses exemplares. Entretanto, com ressalva das passagens bíblicas, não encontrei nenhum elo entre a frase de Ávila e os trechos copiados. As palavras do escritor eram incompreensíveis. Eu não via nenhum caminho abrir-se para um sujeito que nunca quis ouvir minhas justificativas. Sumário 36 ANÁTEMA Rafael Peres Hermes revirou-se... Dissolvi minha reflexão. Qualquer ruído deixava-me angustiado. A iminência de alguma perfídia amedrontava-me. Eu ficava cada vez mais nervoso, como se estivesse sendo comprimido numa esfera viscosa... De algum modo, escaparia desse claustro! Vasculhei todas as gavetas da escrivaninha. Talvez encontrasse algo para me ajudar na fuga. Um objeto brilhava diante do abajur – era um punhal de luz fria! Ávila iria me matar com essa lâmina... Eu regozijava por frustrar seu intento. De posse dessa arma, libertar-me-ia, derramando o sangue de meu pior inimigo! Hipocrisia, insegurança, angústia... Minha vida lúbrica já não possuía nenhum valor. Entretanto, não permitiria que meus raptores a ceifassem. Eu mesmo a extinguiria! Nunca, ideias tão insanas assombraram minha consciência! Meu desejo imediato era matar Hermes e, em seguida, me suicidar... No entanto, decidi poupá-lo até que acordasse. Antes de morrer, Ávila teria que ver meus olhos queimando de ódio! Rastejei até meu estrado. Estava ansioso, quase delirava. Hermes contorcia-se. Algum pesadelo afligia-o em sua zona escura. Passei a observá-lo, pensativo... Tínhamos somente uma característica em comum: a vingança. A vingança em nossos modos enrustidos, a vingança ferina, a vingança quase telepática... A vingança! Éramos homens especulares, ambos amaldiçoados. Anátemas encarnados num ódio recíproco. Nosso Deus não se manifestava, permanecia sempre incógnito. Por mais que ofertássemos a palavra, Ele não aparecia. Sabíamos que nossa divindade jamais se revelaria. No entanto, mesmo não podendo distingui-Lo, nossa busca aproximavá-nos Dele. Ávila já não conseguia aproximarse da divindade. Estávamos com as mesmas angústias – Sumário 37 ANÁTEMA Rafael Peres não dominávamos a palavra. A vingança não era o único desejo que tínhamos em comum... Hermes despertou. Minhas mãos estavam úmidas e molhavam a lâmina oculta. Fechei os olhos. Novamente, fingi que dormia. Ele se acomodou em sua cadeira e começou a redigir seu texto. Sua caneta deslizava mansamente pela página; já não havia longos intervalos. O escritor restabelecera seu pacto com a palavra. Erguime, segurando o punhal, e caminhei em sua direção. Ele virou-se, espantado. Tarde demais... Furioso, cravei meu ódio em seu peito! Ávila livre... tombou, enrijecido. Finalmente, eu estava Ofegante, caí sobre a cadeira do morto. Minha consciência titubeava, ofuscada. Súbitos borrões desfiavam a luz. Era difícil diluir as alternâncias. No entanto, não desmaiaria por causa da fadiga. Somente o suicídio fecharia meus olhos. Resoluto, lutei contra a inconsciência. De quando em quando, faíscas acendiamse mais duradouras e compridas. Por fim, minha razão despontou, luminosa. Pena que não há luz etérea sem um vale sombrio! Prestes a cortar minha jugular, senti um líquido viscoso escorrendo em meu peito... A luz do abajur incidiu em meus dedos molhados de sangue! O brilho prateado da lâmina estava coberto por uma mancha rubra e sinuosa... Minha fraqueza era o prenúncio da morte! Meus olhos procuravam Hermes. Ele não jazia no vão onde caíra! A escrivaninha, os manuscritos, os livros... Aos poucos, tudo se camuflava numa cortina de névoa. Ainda pude ver a porta do sótão abrir-se e dela surgir Ávila, rodeado por homens estranhos... O escritor inclinou-se e disse Sumário 38 ANÁTEMA Rafael Peres pausadamente: — Enfim, tua carne se fez verbo e habitou entre nós... Rafael Peres nasceu em Patos de Minas, Minas Gerais, em 1986. É graduado em Letras. Autor de artigos publicados nas revistas Crátilo e Perquirere, periódicos disponíveis no site www.unipam.edu.br. Publicou os contos A Peste: porcos e corpos, pela editora Valer/Sesc, e Hell, na antologia Caminhos do medo - volume II, pela editora Andross. Mantêm o blog voodoscorvos.blogspot.com Sumário 39 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas “É verdade que todos são iguais perante Deus, tanto um como o outro são amados pelo Senhor”. (Gl 3:27,18) Itália. Cantos gregorianos preenchem a afinada acústica das paredes de pedra, indo perder-se na abóboda ornada com pinturas de anjos e santos. Os incensos e velas dão ao ar o respeito e serenidade da oração que os fiéis estão imersos, no improperium entre a comunhão e a reflexão. O jovem padre Dellaveno medita, em seu altar, sob o calor das velas, enquanto pede a Deus salvação para as almas aflitas no mundo. Mas, no topo desta lista de pedidos por paz e redenção, está ele. Então, de repente, a placidez dos cantos católicos é Sumário 40 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas riscada pelo retumbar estridente de pratos metálicos. Um, dois, três...Os fiéis começam a erguer suas cabeças e mirar na direção do barulho incomum. Uma musiquinha de fundo se sobressai, com nuances circenses, hipnotizantes. Uma primeira carruagem passa em frente às portas da igreja, e seu esplendor torce ainda mais pescoços. Algumas até se levantam, para ver se não imaginavam coisas. O padre Dellaveno fica atônito no seu palanque, assistindo à caravana passar, a música e as rodas de madeiras a esmagar pedras roubam toda a melodia serena dos monges, além da atenção dos fiéis. E o burburinho logo começa. Pessoas querem ver melhor, enquanto outras resmungam, indignadas, por tal perturbação. Outras, mais efusivas, reclamam de uma solução para o padre, que logo se vê na obrigação de ir cerrar as portas. Isso atiça ainda mais o falatório, pois crianças presentes ficam curiosíssimas para assistir à caravana bizarra passar, querendo arrastar seus pais, que, atemorizados, os repreendem aos murmúrios. Logo, a capela de pedra mais parece um ninho de abelhas, com o zumzumzum amplificado e ensurdecedor. Enquanto puxa as duas portas de madeira, o jovem Dellaveno vê as cores, verde e violeta, que cobrem a lona da diligência, em listras sólidas. O dourado da carruagem principal lhe atiça os pelos, assim como o vermelho das letras caprichosamente desenhadas, que anunciam o nome do espetáculo, dentro da gargalhada de um palhaço: “Paradise Circus” — Que insulto! Ouve muitos resmungando as suas costas. Anões negros em suntuosos trajes persas passam, Sumário 41 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas chamando a atenção de sua anarquia à população, que já sai à rua, interessada. Um deles sorri para Dellaveno, e seus dentes podres lhe eriça a nuca, fazendo-o terminar de cerrar as portas com as mãos suadas. O silêncio novamente se faz. Os fiéis olham o rosto pálido do padre, e ele tenta aprumar-se para transparecer confiança, no entanto, as crianças querem saber, sem pudor, o que ele vira. Isso o deixa nervoso e esquivo e enquanto foge de tais perguntas, nota apenas uma pessoa que não está agitada, ou com o rosto voltado para si. De cabelos louros, senta-se serenamente numa das primeiras fileiras, como se ainda imersa em oração, diante do caos. Enquanto retorna, o padre tem de pedir calma e atenção à missa. No ponto mais alto, porém, ele novamente olha para aquela fileira, onde não repara outrora na moça... Mas seu acento está vazio. O circo não se instalou num lugar de destaque. Tal um animal peçonhento, deixou seu rastro pela luz, mas foi na escuridão que encontrou abrigo. Pousou num dos subúrbios, próximo à costa, na zona de armazéns abandonados e não mais fez propagandas, como se não esperasse seu publico através delas. Tais os espetáculos de antigamente, a simples curiosidade inerente do ser humano os atrairia por conta própria a seu encontro. Por conta, e risco...Pensou Dellaveno, enquanto se remexia na cama, tentando esquecer as cores fortes da lona gravados em sua mente. Assim, na intimidade do sono, ninguém diria que o jovem seguia o oficio eclesiástico. Rapaz bem delineado, de semblante agradável e que vivia tirando suspiros das fiéis Sumário 42 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas mais novas, engordando o seu rebanho durante as missas. Ele achava graça, mas respeitava tal comportamento. Era a juventude e ele já esteve no meio dessa erupção de hormônios descontrolados. Agradecia por ter chegado até ali imaculado. Imaculado? Assustou-se com a voz, mas não a ponto de despertar. Acreditou, em seu estado de vigília, que tratava-se de um fruto da sua inconsciência, e se vira para o lado, tentando dormir. Porém, ao invés de tocar os lençóis, Dellaveno sente entre seus dedos fios de cabelo compridos. Percorre-os e toca um braço, que logo se transforma numa curva maliciosa, que termina numa coxa macia. Seus dedos lentamente descem para o delta da moça sem rosto, guiados por uma vontade primitiva. Quando sente a respiração dela mais afoita, nota que algo não está certo naquele sonho. Então seus pelos se encrespam e sente sua própria ereção, ao som do sino anunciando a meianoite. Suado e excitado, desperta, sozinho na cama. É manhã de sol, tão agradável e serena que Dellaveno nem se lembra mais da incômoda caravana circense do dia anterior. Cercado por suas fiéis, ele também usa a conversa para esquecer o estranho e constrangedor sonho. Mas uma delas toca no assunto novamente. — Um circo de horrores, por Dio! Uma imoralidade! — O senhor não pretende fazer nada, padre? Dellaveno surpreende-se com a indagação. A verdade Sumário 43 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas é que ele se arrepia só com a ideia de um circo de horrores, e o motivo não tem a ver com medos infantis...mas não pode dizer isso a suas fiéis. Ele deve ser o homem que enfrentará a situação, sem deixar aquela gota de suor brotada do nervosismo por causa de bizarrices de um picadeiro lhe denunciar. Contudo, antes que possa dizer algo sua perspectiva é sobrepujada pela visão daquela cabeleira loura a sair da capela, tão serena que ainda parece estar orando. Antes de ganhar a rua, ela desvia seu rosto brevemente para ele, e seus olhos escuros lhe lembram alguém, assim como os fios claros fazem-no sentir a brisa marítima de alguma praia californiana. Curioso, pois sua pele é alva como a de um chumaço de algodão. Ele lhe desejou bom dia e espera ouvir sua voz, mas ela apenas acena de volta e logo desaparece por uma esquina. Reconhece a voz de suas fiéis de longe, tentando lhe chamar a atenção, mas ela já se dispersou irremediavelmente, enquanto se lembra do sonho que teve. Arrepende-se de tais pensamentos e pede desculpas, dizendo que tem trabalho a fazer na sacristia. Na noite seguinte, pouco antes da meia-noite, Dellaveno novamente se remexe na cama, agitado com o som circense que invade seus pensamentos. Não há possibilidade de estar ouvindo a balbúrdia do Paradise Circus, pois o mesmo se instalou muito longe dali. Mas os risos e a folia medonha de criaturas por trás de grades e expostos em sombrias salas decoradas deslizam pelas margens de sua consciência entorpecida, procurando uma brecha fatal para entrar de vez. Em fragmentos de imagens desconexas, ele vê, na escuridão profunda do interior dos corredores, olhos Sumário 44 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas brilhantes através de uma jaula. Uma mão cheia de garras e escamosa como um jacaré escapa pelas barras de ferro, tentando destruí-las em vão. O susto o faz recuar e ele ouve um som metálico no chão. Olha através da fresta de uma porta e vê uma mulher pela metade sobre uma mesa redonda, apenas do tamanho para comportar seu corpo até o quadril. Tem uma xícara de chá nas mãos e olha debilmente para baixo, onde a colher com a qual mexia a bebida jaz, inalcançável. Olha para Dellaveno com uma expressão boba e pergunta: — E agora? Ele tropeça, querendo sair dali e cai em sua própria cama, seguro pelos braços da mesma mulher misteriosa. Não vê seu rosto, é impossível, coberto por todos aqueles fios louros, mas sente seus lábios roçando nos seus, sem deixar, porém, que ele aprofunde o beijo. Logo lhe oferece seu corpo perfeito, e ele, sem conseguir ir contra seus desejos primitivos, a possui. O relógio da catedral novamente bate o sino da meia-noite, fechando o dia. A zero hora, o jovem padre desperta entre gemidos ofegantes que transformam-se rapidamente num grito estrangulado. Corre a acender o abajur, mas termina por cair no chão: suas calças de pijama estão arriadas, onde o meio de suas pernas está completamente lambuzado do gozo inconsciente. Se veste rapidamente, como se houvesse uma plateia a assistir o patético espetáculo, abafando um grito maior ao esconder o rosto entre as mãos tremulas. — Oh, Padreterno! Sumário 45 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas E termina a noite ajoelhado em frente à cama, pedindo redenção para sua alma. No terceiro dia, os fiéis estranharam a palidez e olheiras fundas do padre Dellaveno. Seu semblante sombrio combina com as palavras de chumbo que pronuncia em seu sermão, contra os pecados da imoralidade e da afronta a Deus. Algumas pessoas ficam constrangidas, como se o jovem pároco estivesse lhes espreitando os pecados mais sórdidos por baixo das saias recatadas ou ternos bem passados. Cada um deles consegue ver a si mesmo na ode católica e desafiadora e até se olham, de esguelha, pensando se o padre não teria descoberto as intenções desejadas ou concretizadas de visitarem o circo dos horrores para dar uma espiadinha. Seria um dia silenciosamente. de muita penitência a pagar, Apenas uma pessoa continua com a mesma expressão inflexível. E Dellaveno a olha, fulminante, como se ela tivesse culpa por infiltrar-se em seus sonhos imorais. No momento em que as pessoas deixam os cantos gregorianos preencherem os pensamentos culpados, ela o olha com seus incomuns olhos escuros. Eles têm uma mensagem subjetiva, e parece ao rapaz, um espelho para seu próprio ato constrangedor. Então, como se uma unha comprida tivesse riscado a superfície de um vidro, o padre desperta para uma lembrança longínqua e desagradável. E como se concluído o intento perturbador, a moça novamente abaixa a cabeça e ora. Sumário 46 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas Sozinho, após a celebração, Dellaveno usa o telefone da paróquia para uma ligação a sua antiga universidade, na cidade de Veneza, na tentativa de localizar seus amigos daquela época. O vermezinho que o incomodava tem a ver com eles...Descobrira que um voltara para os Estados Unidos e o outro residia numa cidade próxima, que ele decidiu visitar, para fugir ainda dos apelos dos fiéis para ir ao Paradise Circus, e afastar aquela imoralidade deles...ou a tentação por ela. Ao final da tarde, Alphonso Palerno, o velho dono da mercearia próxima à capela de Dellaveno, enxuga copos, enquanto olha uma foto muito antiga, emoldurada e deixada entre as teias de aranha e garrafas empoeiradas de vinho barato. Observa o contorno estóico do riso do palhaço central da foto, quando leva um susto com a voz do padre a suas costas. — Conhaque, Alphonso, por favor. O velho estranha o pedido. Dellaveno, se não fosse padre, já seria um rapaz bem ajuizado. Mas agora ele parece como se corrido da polícia, afoito e vermelho. Serve o trago a ele. — Tudo bem, padre? Ele nada diz. Dentro de sua mente transcorrem pensamentos melindrosos. Acabara de voltar da cidade em que seu amigo de república residia e descobre que sua nova morada já não é mais com os pais, mas sim no cemitério da cidade. Um incêndio terrível no escritório onde trabalhava. Sua mãe, aos prantos, só conseguia lembrar- Sumário 47 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas se de como os olhos dele derreteram, simplesmente derreteram no fogo! Ela se sentiu no direito de confortá-lo, uma vez que ele fora muito bom para os dois amigos de quarto, ao colocar juízo na cabeça deles naqueles tempos difíceis e tentadores da faculdade. — Você foi uma boa influência para aquelas duas almas. — Brent já sabe? – Brent era o outro rapaz com quem dividia o quarto e que voltara para a Califórnia. Isso gerou um novo surto de pranto na mãe de Tiago, que lembrouse quão trágico fora também o destino deste rapaz. — Dizem que ficou preso pelos cabelos nas pedras, durante um mergulho. Nada o fazia se soltar até que seus pulmões explodiram! E chorou, chorou e chorou... A bebida desceu rasgando. Dellaveno tentava minimizar o choque com a notícia da morte dos dois amigos, mas não há como esquecer. Não apenas disso, mas do turbilhão que viera junto, das lembranças nefastas que invadiram sua boa casa de fé com um bafo infernal pela soleira da porta. Você fora uma boa influência! Ela não podia estar mais enganada. Tentando se acalmar, o padre olha na mesma direção que o velho Alphonso e sua nuca se eriça. E não estava vendo o Paradise Circus tal como ele passara em sua rua, Sumário 48 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas dias antes? — O circo do Barthold Laszlo já é velho conhecido da estrada, dizem que é assombrado. – murmurou o dono da venda, ao perceber o interesse do rapaz pela imagem. Dellaveno fitou a foto com a mesma acidez com que fitara a moça naquela manhã. — É apenas um circo de horrores, sádico, que não devia explorar a deformação das pessoas dessa maneira. – mas não sabia se acreditava mais em suas palavras. — De onde é essa foto? — Estive nos arredores da Romênia quando eles saíram para assombrar as ruas do mundo. Os romenos sabem ser violentos quando botam alguma coisa na cabeça. Só não sei por que eles tinham que vir assombrar a nossa “bota”. A foto mostrava a mesma carruagem e uma sorte de estranhos integrantes, cujo personagem central era um senhor corpulento e baixinho, de olhos enigmáticos e ornado de uma cartola esquisita. Eu era apenas um garoto... Alphonso sussurrou, mas Dellaveno pouco deu importância. Barthold Laszlo, era esse o nome que devia procurar e tão logo deu uma última espiada na foto, esbarrou com a silhueta da moça loura passando na ponta da rua, longe, em direção ao sul da cidade. O mesmo caminho que o Paradise Circus seguira. — Barthold Laszlo é o dono? —Sim, mas... – e Alphonso, ainda divagando, voltouse para Delaveno a fim de lhe esclarecer que aquele fora Sumário 49 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas um retrato tirado a mais de 60 anos e Laszlo já estava sob sete palmos de terra há pelo menos metade deste tempo, mas o padre já havia desaparecido porta afora. Jovens... Dellaveno percorre as ruas da cidadela italiana sem ver mais nada além da cabeleira loura. Ele se recorda do modo sereno como ela voltou-se para ele, o sol, e o brilho negro de seus olhos a contrastar com o dourado dos cabelos. E agora ele entende o que lhe atiçava como um vermezinho: ambos lhe faziam lembrar de seus amigos da faculdade. Amigos mortos. Uma recordação que de boa, em poucas horas tornara-se terrível. E principalmente pelo que trazia com ela... Perdido nestes pensamentos, surpreendeu-se em como ofegava, almejando a possibilidade de alcançar a moça, de olhá-la mais de perto e saber como aquilo era possível. Parou. Não, o que estava fazendo, alimentar aquele sentimento de urgência era como dar vazão ao que andava acontecendo com ele durante as noites daquela semana. Respirou fundo e sentiu o odor da maresia. Ao olhar ao redor, surpreendeu-se com o cenário. O cheiro de madeira salinada mesclava-se ao de poleiros de aves e um silêncio palpável. Viu a moça muito longe, mas não o suficiente para desistir de segui-la. Ela, de alguma maneira, parecia manter-se à vista justamente para ele saber seu paradeiro. — Por Dio! – e continua. Porém, logo nota que quanto mais anda nos corredores de armazéns, mais eles parecem iguais, como se o fim da rua se juntasse ao começo da mesma, num labirinto sem fim. Cansado, Dellaveno para, apoiando-se em uma parede para enxugar o suor. O Sumário 50 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas crepúsculo já se adianta e logo anoiteceria. Foi então que ele viu a tocha iluminando a lona violeta. Uma tocha incomum, de fogo azul. Aproxima-se tentando definir qual é o truque ali, mas assusta-se com o adorno de crânio em meio às chamas iluminando a entrada do circo. O letreiro tem seu brilho, mas não é chamativo como imaginou. Grande, Paradise Circus impunha um temor que o padre pouco sentira na vida. A bilheteria, com suas cortinas balouçantes, está tão vazia quanto a janela de uma casa assombrada. O som dos passos dela, que ele se acostumou a ouvir depois do longo percurso em seu encalço, lhe chamou a atenção para o pátio, entre o piso de pedras. Sua hesitação deu lugar a um novo par de passadas, como um convite silencioso a entrar no estranho circo. Uma vez lá, o padre nada mais ouve que denuncie a presença da moça. Os sons se tornam gemidos guturais e estalos secos, que lhe arrepiavam a espinha e lhe provocam sobressaltos desagradáveis. Mas o corredor do picadeiro montado está vazio, iluminado apenas pela lua cheia que vinha nascendo, e pelas tochas geladas. Quando ia perguntar se havia alguém ali, um som metálico o arrepiou. É uma bicicletinha que vem em sua direção e naquela meia luz, mais parecia andar sozinha. Só muito perto ele entendeu pelo que aquele pequeno veículo era guiado. Um boneco de massa. Se parece muito com um, as formas delgadas e fofas, a máscara que cobria o rosto a lhe dar uma expressão estática e débil. Ele circulou Sumário 51 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas Dellaveno como uma criança brincalhona, mas o padre sentia arrepios cada vez que ouvia aquela roda girando e gemendo. Por fim, desistindo de entender a criaturinha, ele abriu a boca para a repreender, mas ela disparou na direção que veio, dobrando um corredor de tendas. Seu gorrinho vermelho dava a Dellaveno a impressão de que ele queria ser seguido. Porém, o espanto foi com a visão que teve em seguida. Era como se a foto de Alphonso tivesse se materializado em cores. Seu rosto ficou lívido de espanto, quando uma risada potente veio surgindo de algum lugar daquela boca enorme. —“É verdade que todos são iguais perante Deus, tanto um como o outro são amados pelo Senhor!!!” E cantou os capítulos e versículos da qual a frase do livro de Gálatas fora tirada, abrindo um sorriso ainda maior dentre a fumaça de um charuto. Laszlo. Dellaveno engoliu a seco a emoção forte e inexplicável que sentiu. A sua frente o velho palhaço se apresentava, e todas as criaturas abjetas que ele devia ter por baixo das tendas calaram-se, deixando o anfitrião com seu convidado. — Não é verdade, meu caro padre? Dellaveno engoliu a seco a ironia e o medo. — Claro... – o homenzinho carrancudo o fez seguir por dentro de uma lona, cujo corredor ele já conhecia de seus nefastos sonhos. O suor escorreu, e de repente ele esperou ouvir o som de garras vindo de uma jaula na Sumário 52 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas escuridão e a mulher pela metade confusa com a colher no chão. Mas tudo o que havia era o soturno barulho da brisa marítima soprando por baixo do piso elevado de madeira. — Então, meu caro senhor, presumo que não veio nos prestigiar. — Senhor Laszlo, não acredito que nada aqui seja passível de exposições... — Ah não? Hmmm...e o que me diz do caráter do ser humano, meu caro, da natureza humana em sua forma mais abissal? — Não sei se entendo, senhor... — Claro que não, senhor Dellaveno, uma vez que não compreendeu ainda que, em nosso circo, as atrações não estão dentro da lona...e sim fora. O padre espantou-se com Barthold Laszlo pronunciando seu nome e ainda mais com essa sentença, saída da boca cheia de fumaça. Ele riu, deliciando-se com cada gota do suor nervoso do jovem. — Veja, minha filha tem ido as suas missas, e aprecia suas palavras... de castigo e redenção. São inspiradoras! Ao dizer isso, como se materializada das sombras, o jovem padre viu a moça loura que perseguiu até ali, logo atrás do palhaço. Está com o mesmo aspecto sereno. Porém, de seus olhos um brilho soturno deixa-o com a mesma sensação de nostalgia e medo. Algo nela não está certo. — Qual o seu nome? – ele pergunta, ignorando Sumário 53 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas Laszlo. Este deu um sorriso rasgado e respondeu, em deboche. — Pobre Amélie, ela não ainda não fala. E então, Dellaveno percebeu de onde vinha aquele constante ar tranquilo: seus lábios eram tais o de uma boneca. Uma boquinha deformada por uma incrível imobilidade. Tal a moça em seus sonhos. Não...olhe um pouco melhor, e sua mente também vai começar a vê-la além disso... E como se ouvisse a própria voz do palhaço lhe dizer, os olhos da moça brilham intensos nas chamas azuis e tudo o que temeu durante o dia com a notícia horrenda da morte de seus amigos concretizou-se nas formas daquele rosto... Voltou muitos anos atrás...voltou ao delito que o fazia orar todas as vezes que pedia por perdão às almas do mundo, e colocava a sua no topo da lista. Tentou abafar um gemido, um grito de horror, enquanto Barthold Laszlo ria, e a moça atrás dele ria pelos olhos, o que dava a sua expressão um ar ainda mais macabro de triunfo. Dio mio, no...! — É verdade que todos são iguais diante de Deus, Dellaveno, é verdade!? E quando sentiu as risadas preenchendo o ar como a fumaça de seu charuto, Dellaveno tropeçou nos próprios pés e caiu. Sumário 54 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas Sobressaltou-se, em sua cama. Agarrou os lençóis e acreditou ter despertado de mais um sonho nefasto, onde seus amigos cúmplices de um delito da época da faculdade apareciam mortos. Tudo por causa daquela temporada execrável de espetáculos de horrores pelos canais de Veneza, em que, encontraram um espécime tentador: uma moça de corpo esbelto e delicioso, porém, de rosto quase inexistente. Seus cabelos, ralos como de uma velha não escondiam a boca que parecia a de uma bonequinha de porcelana, por isso era a única parte visível sobre a máscara de órbitas vazias que usava. Eles queriam saber o que havia por trás dela e quando descobriram, resolveram dar uma lição na criatura por ser tão diferente. Como era possível alguém não ter olhos, nem cabelos, e querer viver entre eles, pessoas normais? Depois de muita bebedeira, violência e sexo com a garota, ela acabou por não sair mais do chão, tão desfigurada quanto já era. Então chamaram Dellaveno, pedindo ajuda para esconder o inconveniente. — Não era grande coisa, só mais uma escória que a sociedade varria para debaixo do tapete, não é, meu bem? Dellaveno arregalou os olhos, ouvindo a voz bem atrás de si. Tremeu e se agarrou ainda mais ao travesseiro, tentando evitar pensar no dia em que ajudara seus amigos a darem sumiço no corpo frágil daquela pobre garota, que ele não hesitou em largar numa caçamba de lixo nos becos sujos da romântica Veneza. Tudo em nome de Deus e da moralidade, embora, no fundo de sua alma casta, se remexessem sentimentos estranhos de desejo ao ver aquele corpo nu e senti-lo em seus braços, enquanto se desfazia dele. Sumário 55 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas Os mesmos braços que agora o envolviam lentamente, enquanto tremia na cama, bem longe do Paradise Circus pousado na baia, mas muito perto do verdadeiro picadeiro: sua vida. Ouviu-a sussurrar dentro de seu cérebro e cada palavra era como um baforar gélido de morte: Vocês me acharam uma monstruosidade sem tamanho. Agora eu tenho os cabelos de seu amigo para me sentir mais bonita. Mas ainda não podia ver como as pessoas me encaravam, então vim visitar seu outro amigo e lhe dizer que o perdoaria, se ele me desse seu poder de enxergar...- e aqui ele se encolheu com a risada maligna – talvez eu tenha exagerado, mas...ele foi muito bom em doá-los para mim! E agora...agora eu só preciso da voz... Da sua voz... E sua mão tênue levou o rosto horrorizado de Dellaveno para o seu. A imobilidade de sua boca quebrouse no momento em que o padre emitiu seu último som, um grito estridente de horror. Amélie engoliu-o com um beijo gigantesco e animal. Horas depois, ao alvorecer, as tendas marchavam para fora da cidade, silenciosamente. As pessoas não entendiam, não houvera anúncios, nem noites de espetáculos, só uma estranha sensação de terem mexido com suas noites de um jeito anormal, fosse por pensamentos ou atos violentos e obscenos. Quem parecia mesmo exultante com o espetáculo era nada menos que Barthold Laszlo, que olhava as ruas através de sua janela oculta na carruagem mais luxuosa. Ainda com o charuto na boca e olhos sobrenaturais, perguntava a filha se tinha sido um bom show. Ela, sorridente, disse, com a voz que ainda acostumava-se a Sumário 56 O PASSADO VOLTA Verônica S. Freitas usar, que sim. — Claro, papai. Foi um show dos diabos. E sorriu, com seus novos lábios. VERÔNICA S. FREITAS nasceu em 87 e é natural de Guaratinguetá/SP, morando atualmente em Aparecida/SP. Funcionária pública, se graduou em Gestão Empresarial e tem contos em diversas antologias, entre elas: Cursed City - Onde as almas não têm valor, Steampink, 4 livros da coleção VII Demônios, Brinquedos...eles matam! e Quando o saci encontra os mestres do horror, lançadas pela Editora Estronho. Publicou também em Crônicas da Fantasia e SOS Titanic, da Editora Literata. Contatos por email: [email protected], Twitter: @Beronique2010 blog: brisanoturna.blogspot.com. Sumário 57 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva S ó havia vida onde clareava a luz dos enormes faróis, e ela era opaca em seus tons de asfalto e terra batida. Além das janelas ensebadas, o mundo se perdia em escuridão de um lado e de outro, trevas que só iam e iam, até se misturarem ao negro da noite sem estrelas. O motor a diesel resmungava um ronco estável, de pista livre, sem o castigo imposto pela dança de embreagens do tráfego pesado e engarrafado. Era este o principal motivo do caminhoneiro preferir fazer sua rota à noite. Na estrada deserta, ao som de suas velhas fitas com clássicos do sertanejo oitentista, horas se passavam em questão de minutos e os quilômetros que o separavam de seu destino ficavam rapidamente para trás. Ao contrário da maioria de seus colegas, ele não via mau negócio em abrir mão da suposta segurança da luz do dia. À noite não havia motoqueiros apressados Sumário 58 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva ziguezagueando em seu caminho, ou motoristas incautos arriscando perigosas manobras na contramão. Ao menos, não tantos quanto havia de dia. Isso sem contar a temperatura da estrada à noite, no geral muito mais agradável. Não que reclamasse do tempo que passava ao volante de seu velho companheiro, um Mercedes-Benz 1313 com mais anos de estrada que sua filha tinha de vida, mas quando um dia normal de trabalho se traduzia a oito ou dez horas ininterruptas naquela boleia abafada, o mínimo de conforto a mais se traduzia em um fator muito importante. — Atento... atento... - uma voz irrompia do Rádio PX no alto da cabine. - Olavo está em QAP? É o Caetano chamando. Atento, atento, Olavo está em QAP? — Positivo. Na escuta, esparadrapo. - respondeu Olavo na língua dos homens da estrada, enquanto desembaraçava o fio espiralado do aparelho. — Tudo bem, meu velho? — Tudo, o quê o senhor manda? — Tá muito longe? — Tô descendo a serra agora. Um frio que você não vai imaginar. — E eu não sei? Passei um aperto nessas bandas daí anteontem. Agora eu tenho a boa pra você quebrar esse gelo. Um queijinho coalho, uma loura suada.. copiou? — Copiei. Mas não.. - disse Olavo, olhando para a foto afixada sobre o espelho retrovisor. - Fica pra próxima. Tô indo pra casa. Sumário 59 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva Dizer aquelas palavras fez o caminhoneiro sorrir, os olhos indo da estrada para o retrato, e para a estrada à frente outra vez. A imagem mostrava uma bela mulata que abraçava uma menina que também sorria, faceira. Sua família, para a qual ele estava prestes a voltar, após tantas semanas. Visto de longe, o caminhão era uma pequena mancha luminosa atravessando a escura imensidão da madrugada, rompendo seu silêncio com o ronco do motor e as velhas baladas sertanejas que Olavo trazia em seu toca-fitas. Logo, o caminhoneiro alcançou, às margens da rodovia, o que sabia ser o último posto de abastecimento que encontraria antes da etapa final daquela viagem. No lugar, onde além do posto funcionava também uma lanchonete, estavam estacionados outros três caminhões. Assim que Olavo desembarcou pôde observar, com certo desgosto, o momento em que um colega subia à boléia acompanhado de uma adolescente vestida com uma camiseta e um microshort jeans. Havia outras como ela rondando o lugar à espera de caminhoneiros com dinheiro de sobra e consciência de menos, prontos para alugar um pouco daquela fachada de inocência. Era impossível para Olavo não pensar em sua própria filha, e um arrepio gelado afligia suas entranhas quando em sua mente surgia a mera visão dela em um lugar daqueles. Olavo se dirigiu até o balcão: — O de sempre? - perguntou-lhe um senhor velho e obeso encarregado da barraca. Olavo acenou com a cabeça. Seu pedido de costume consistia de um café, puro, sem açúcar, e uma fatia de pão com manteiga na chapa. O café veio rápido; devia Sumário 60 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva estar pronto há horas, esperando em alguma garrafa térmica encardida. O velho agachou-se atrás do balcão, sacou de lá uma bisnaga ressecada, cortou-a ao meio com uma velha faca de serra, lambuzou manteiga nas duas metades, e enfim, levou as fatias até a chapa no outro lado da barraca. Distraído por aquela cena rotineira, Olavo demorou a perceber a aproximação da moça. Em um primeiro momento, não passava de uma silhueta contra a luz dos faróis de uma das carretas. Quando chegou mais perto, Olavo pôde ver uma jovem vestida de maneira simples, sem qualquer maquiagem no rosto moreno, e cujos olhos castanhos pareciam procurar os seus. Era bela, e jovem, mas não tão jovem quanto as meninas que vira há pouco. Caminhava a passos lentos sobre o chão de terra batida, diretamente até ele. — Boa noite. - disse a moça. — Boa noite. Olha - adiantou-se Olavo - vai me desculpar, mas não estou interessado.. — O quê? — Se quiser, eu te pago um lanche aqui. Você está com fome? Não precisa... sabe... — Ah, não.. - a moça exibiu um sorriso sem graça. Não tenho fome. Na verdade eu estou tentando chegar em uma cidade chamada Montes Calmos, o senhor conhece? — Conheço sim. Nunca estive lá, mas sei que fica na próxima saída pela estrada. — Então, será que o senhor poderia me dar uma carona? Já vim com outro colega seu até aqui, mas ele vai Sumário 61 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva pernoitar aqui mesmo, e eu tenho urgência em chegar. Olavo pensou por um instante. Fitou a cintura da moça com o canto dos olhos, atento à qualquer volume suspeito, ainda que fosse um mero telefone celular. Já ouvira mais de uma história a respeito de beldades como aquela sendo usadas como iscas por quadrilhas de ladrões. — Olha, moça, gostaria de poder ajudar, mas as regras da minha firma são rígidas. Se alguém aqui na parada bate pra eles que eu aceitei uma caronista, pode ficar ruim pro meu lado.... — Tudo bem. - a garota franziu os lábios, visivelmente frustrada. - Desculpe ter incomodado o senhor. A garota deu as costas para o caminhoneiro. Seu pão tostado acabava de ser servido, mas Olavo continuou olhando a garota que se afastava, enquanto seus pensamentos seguiam um rumo o qual ele já sabia no que resultaria. — Espera. - disse ele. Olavo havia chegado à conclusão de que se fosse sua filha ali, ele gostaria muito que fosse alguém de sua própria índole a oferecer-lhe ajuda, ao invés de algum de seus colegas que poderiam ver a moça com olhos mais maliciosos. — Deixa eu terminar de comer, que eu te levo. A garota sorriu e tornou a se aproximar. Olavo bebeu o café e devorou o pão em questão de segundos, logo não havia mais que um cotoco amanteigado, que ele tornou a oferecer a jovem. Sumário 62 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva — Tem certeza que não quer? A viagem ainda leva umas duas horas. — Não, obrigada. - respondeu ela, encolhida sob os próprios braços cruzados. - Não sinto fome. Olavo pagou pelo lanche e despediu-se do dono da barraca, saindo com a garota atrás de si. Ainda receoso como estava com sua própria atitude, Olavo não pôde perceber o momento que o velho esticou-se para fora da barraca e, com um olhar de estranheza, acompanhou-o em todo o trajeto até o caminhão. Os dois já estavam na estrada havia meia-hora, quando Olavo decidiu quebrar o silêncio. Atravessavam um trecho de estrada livre, margeada em ambos os lados por uma vastidão descampada. A pergunta que ele fez à garota não poderia ser mais básica: — Qual o seu nome? — Marcela. - respondeu ela, olhando distraidamente pela janela. — Marcela.. - repetiu Olavo, após o que a boléia voltou a mergulhar em silêncio. Ele não estava realmente interessado em saber da vida da garota. Cogitou até tornar a pôr o sertanejo no toca-fitas para tocar, mas pensou se o estilo de música não a incomodaria. No fim das contas, preferiu continuar o papo. — E você é de Montes Calmos mesmo? - perguntou. — Não, sou da capital. - Marcela sorriu. - Estou indo ver uma pessoa. Sumário 63 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva — Parente seu? — Mais ou menos. Subitamente, as rodas dianteiras da carreta se chocaram contra pequena depressão da pista, fazendo a cabine sacolejar bruscamente. Com o susto, a garota cravou as unhas no painel à frente. — Me perdoa! - exclamou Olavo, preocupado. - Você se machucou? — Não, foi só o susto mesmo. — Essa estrada está toda esburacada assim. Fica atenta aí, viu? — Tá bom, pode deixar. - Marcela colocou a mão contra o peito, tentando recuperar o fôlego. — Deve ser sua primeira vez por essas bandas, né. - sugeriu o caminhoneiro. - Não tá acostumada a esse pedaço. — É sim. — Olha... não faz isso que você fez lá atrás assim não, viu menina. Ficar dando sopa em lugar de homem. Foi sorte você ter pedido ajuda pra mim. Um outro aí podia ficar mal-intencionado. Marcela apenas voltou-se para Olavo, em silêncio. Ele fitou os olhos castanhos da jovem pelo espelho retrovisor, ligeiramente, receoso por não saber ao certo se tinha mesmo o direito de repreendê-la. Mas então, para seu alívio, Marcela esboçou um leve sorriso, e perguntou, apontando para a foto sobre o espelho: Sumário 64 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva — É a sua família? — Aham. Meu cristal e minha cristalina. — O quê? - estranhou a caronista, arqueando as sobrancelhas. — Me desculpa, isso é gíria de caminhoneiro. esclareceu Olavo. - Quer dizer minha esposa e minha filhota. — Ela é muito linda. - Marcela tomou a foto em suas mãos, deslizando o indicador pela imagem da menina. Quantos anos tem? — Minha filha? Sete aninhos. Carolina. É a minha princesinha. Um par de faróis anônimos passaram pelo caminhão, no sentido inverso. Olavo franziu os olhos, evitando a luminosidade ofuscante. Mais uma das manhas de quem já tinha experiência de estrada. — Essa vida de caminhoneiro às vezes acaba comigo. - lamentou Olavo. - Mas eu tô indo pra casa. Vou chegar lá de manhãzinha e fico até a hora do almoço. Aí depois eu volto pra central de abastecimento e começa tudo outra vez... — Ela deve sentir muito a sua falta. - disse Marcela. — Falo com ela todos os dias pelo celular. Ela diz que quando crescer quer ser caminhoneira que nem o pai. Olavo riu, e Marcela riu também. Então, o semblante da garota se fechou, subitamente. — Sinto muita falta do meu pai. Sumário 65 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva — Ele... é falecido? - perguntou Olavo, percebendo o tom de voz dela. Ela, porém, nada disse. Continuou olhando para baixo, para a foto da família de Olavo. Ele então percebeu que Marcela esforçava-se, em vão, para conter o choro. Arrependido de ter feito a pergunta, Olavo pensou em dizer algo para confortá-la, mas... o quê diria? A moça ainda era uma total estranha. Talvez agora fosse simplesmente melhor respeitar seu silêncio e... Olavo sentiu um calafrio. A onda gelada surgiu em algum lugar entre seu coração e o estômago e espalhouse rapidamente por todo corpo, como o estalo que o corpo sente ao despertar quando ainda se está prestes a dormir. Ele soube que algo muito ruim estava prestes a acontecer, um segundo antes da cabine ser tomada pelo futum nauseabundo de rosas velhas e putrefação, como uma manhã de velório. Seu coração disparou, mas o único pensamento era manter as mãos firmes ao volante. Não podia olhar para o lado, não queria olhar para o lado, pois no fundo já sabia o que estava acontecendo. Ele já tinha ouvido as histórias. Ainda assim, como se não mais fosse o senhor de sua própria vontade, Olavo voltou-se para o banco do carona, deparando-se com o horror na forma de um rosto pálido e inchado, trancado em um semblante rancoroso, de desesperada agonia, gemendo em um pranto angustiado ao encará-lo com olhos que não fitavam coisa alguma, olhos cadavéricos, a escorrerem como um par de manchas negras ao longo das bochechas apodrecidas. Marcela estava morta, mas continuava chorando. — Ai meu Deus do céu! - gritou ele, quase perdendo Sumário 66 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva o controle do caminhão. Então, houve uma freada brusca e em um piscar de olhos, não havia mais nada. Nem o cheiro de morte, nem Marcela. Olavo estava sozinho na cabine, como era na maioria das noites. A foto de sua família, porém, não estava onde costumava estar sobre o espelho retrovisor, mas sim sobre o banco do carona. Sua respiração estava tão alta e acelerada que mal conseguia ouvir os próprios pensamentos confusos. Receoso e com o coração a sair pela boca, Olavo tomou a foto em mãos, percebendo-a coberta por uma fina camada oleosa como limo, e fria como se tivesse acabado de ser tirada de uma geladeira. Largou-a outra vez sobre o banco. Sua vontade era de abrir a porta da cabine e sair correndo, mas sabia que se o fizesse poderia não ter coragem de subir outra vez. Já ouvira histórias como aquela tantas vezes, e ao contrário de outros jamais duvidou que pudessem ser verdade. Pelo contrário, toda vez que lembrava, sempre rezava a Deus para que o mantivesse protegido das forças ocultas que perambulavam por esse mundo. Deus não atendera seu pedido. Os minutos passaram e Olavo continuou ali, parado, com as mãos no volante. Os arredores da estrada continuavam mergulhados no breu, exceto onde a luz de seus faróis clareavam a noite com uma névoa amarelada. Foi quando o caminhoneiro percebeu que, por coincidência ou não, parara diante de uma placa sinalizadora, onde uma seta indicando uma curva para direita era acompanhada pelos dizeres: “Montes Calmos - 2 km”. A constatação fez com que, pouco a pouco, o pânico Sumário 67 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva que dominava a mente de Olavo cedesse espaço a um sentimento mais racional, a curiosidade. Era impossível, por mais que tentasse racionalizar seu caminho para fora daquele terror, negar que acabara de ter sido tocado pelo mundo sobrenatural. Mas, talvez não fosse apenas um capricho obscuro do destino. Talvez houvesse um propósito para tudo aquilo. De algum ponto indistinto do passado, imortalizado na foto que repousava sobre o banco do carona, sua filha Carolina continuava a dedicar-lhe um sorriso largo e revigorante. Como se seguisse um delicado fio reluzente através de um escuro labirinto, Olavo retornou ao exato instante quando, na parada, avistou Marcela indo embora sozinha e sensibilizou-se com a ideia de que ela também pudesse ser filha de um pai preocupado. Era essa imagem, a da criança perdida na noite, que sua mente fazia emergir daquela outra, a dos olhos mortos, aquela que Olavo desejava apagar para sempre de suas lembranças. Quem era Marcela? Ou melhor.. quem havia sido? Ela era mesmo real? E se fosse.. por quê ele e não outro qualquer? A última pergunta fez Olavo lembrar-se de suas próprias palavras para a moça e da sorte que esta tinha por ser ele e não outro a levá-la até seu destino. Um raio de sol solitário despontou no leste, no exato instante em que o caminhoneiro percebia ter, talvez, encontrado parte da resposta que procurava para a experiência que acabava de mudar sua vida. Bem como percebia só haver um lugar em que poderia elucidar o resto do mistério. O caminhão cruzou a entrada da cidade quando o sol terminava de se erguer no horizonte. Olavo estacionou Sumário 68 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva em um terreno baldio vizinho à placa de boas-vindas aos visitantes, e prosseguiu a pé. Montes Calmos, um município ribeirinho com menos de trinta mil habitantes, vivia um princípio de manhã preguiçoso, como o da maioria das cidades pequenas. O dia despertava com um límpido céu azul, e estava tudo tão quieto que era possível ouvir o grasno de um bando de garças voando à quilômetros de distância. Embora Olavo jamais tivesse estado ali antes, sentiu-se aconchegado pelo verde das calçadas arborizadas e pelo canto dos pássaros que ressoavam pelas avenidas ainda desertas da cidade. A noite anterior tomava ares de um pesadelo distante. Dez minutos se passaram, antes que Olavo cruzasse com o primeiro morador local, uma senhora idosa, de lenço na cabeça, a contornar a pracinha central de Montes Calmos. Pensou em abordá-la, mas sabia que era inútil. Em um lugar como aquele, o comércio local, por mais modesto que fosse, sempre era o centro dos acontecimentos. Se quisesse ter qualquer chance em descobrir a verdade sobre Marcela, se é que havia uma, precisaria esperar. E assim ele esperou, até que as lojas começaram a abrir as portas. Partindo da pracinha em que estava, Olavo visitou uma padaria, uma farmácia, e uma loja de materiais de construção. Em cada uma contou a mesma história: estava vindo da capital, e uma conhecida havia pedido para que localizasse uma jovem chamada Marcela, que haveria chegado em Montes Calmos alguns dias antes. — Desculpe, respondeu um. senhor, mas não conheço não. - — Nunca vi. - afirmou outro. — Conheço uma Marcela, mas é mais velha. E loira. Sumário 69 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva Olavo fornecia uma descrição precisa da garota, mas sem sucesso. Ninguém a conhecia. Foi assim, de loja em loja, perdendo as horas da manhã em voltas ao redor da cidade. Já era o meio da tarde quando o caminhoneiro enfim se deu por vencido, ao ouvir um derradeiro “não”, desta vez de um rapaz jovem, que servia copos de cachaça do outro lado do balcão de uma barzinho. Chegou a nutrir certa esperança pela hesitação inicial do moço à descrição que fizera de Marcela, mas foi em vão. No fim das contas, não havia um propósito maior. O que sucedera na noite anterior não fora mais que um acaso, um episódio aleatório dentre tantos que as histórias contam sobre o que existe na fronteira negra entre este mundo e aquele outro. A ele só cabia, agora, arrumar um jeito de continuar vivendo com suas dúvidas. Frustrado, Olavo retornou para o caminhão e tomou outra vez o caminho para casa. Assim, quando a noite tornou a chegar, ele já estava bem longe, na segurança e tranquilidade de seu lar, cochilando no sofá com sua filha a tiracolo. Olavo não sabia, nem poderia saber, que para o rapaz, o mesmo com quem por último conversara em sua breve estadia em Montes Calmos, aquela não seria uma madrugada tranquila. O jovem pediu ao dono do bar para sair mais cedo, alegando uma indisposição física, e a maneira como suava frio acabou por corroborar sua mentira. Sua cabeça girava, e no caminho até o pequeno apartamento que alugava ele olhou por sobre o ombro mais de uma vez, em um estado de absoluta paranóia. Chegou procurando sua mochila, e jogou dentro dela suas roupas. Até ali parecia estar tudo bem, mas ele não poderia arriscar. Haviam o descoberto. Sumário 70 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva Ele precisava sair daquela cidade. Decidiu esperar a cobertura da noite para partir, sem saber que a noite o esperava também. Estava a postos para sair, mas quando tentou abrir a porta, lembrou-se que a havia trancado ao entrar. Pior, suas chaves não estavam no bolso do velho jeans como havia imaginado. Soltando um palavrão, jogou a mochila no chão e começou a tirar tudo de dentro, a procura do molho. Foi quando um ligeiro tilintar metálico, vindo do banheiro, chamou sua atenção. Receoso, o rapaz levantou-se e seguiu o repentino ruído, encontrando por fim suas chaves jogadas no chão ao lado da pia. Afirmando a si mesmo que provavelmente teria caído durante sua correria, ele agachou-se no chão frio para pegá-las. Neste momento, um cheiro horrível invadiu-lhe as narinas, forte e ocre como carniça. Provavelmente estava exalando do ralo, pensou ele, sem dar muita importância ao fato. Afinal, estava de partida. Aquele apartamento já não era mais problema seu. Ao retornar para a sala, contudo, viu que não estava sozinho. Já era tarde na madrugada, então ninguém viu quando o rapaz saiu correndo pela porta do prédio, em pânico, deixando a mochila no chão do apartamento e a chave ainda presa à fechadura da porta. Ele corria e olhava para trás, os olhos arregalados de pavor, a calça encharcada com a própria urina, e a voz presa na garganta travada, incapaz de gritar por socorro. Continuou correndo, o mais rápido que pôde, mas cada vez que olhava para trás, via que a coisa... ela... continuava em seu encalço. Então, houve um clarão luminoso, e tudo acabou. Sumário 71 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva O motorista não teve tempo de reagir. O homem simplesmente surgiu no meio da pista, completamente desorientado. O ônibus ainda seguiu por duzentos metros antes de frear completamente, deixando pelo asfalto uma trilha de sangue e vísceras. Dias depois, Olavo estava novamente em uma parada, fazendo seu lanchinho noturno. Havia um televisor ligado na barraca, mas o volume estava tão baixo que mal era possível entender o que dizia o âncora do telejornal da madrugada. Esperando servirem seu café, o caminhoneiro desviou por um instante o olhar da T V, surpreendendo a si mesmo pela breve e tola esperança que teve de ver surgir, vindo de lugar nenhum, o rosto daquela que transformara sua vida para sempre. Olavo não havia contado a ninguém sobre Marcela, nem pretendia. Não havia noite, porém, em que não pensasse nela. Não com medo da repugnante aparição, mas sim com pena da menina que podia ser sua filha, que na certa havia sido a preciosa cristalina de alguém, e que talvez ainda estivesse perdida em alguma estrada escura, esperando achar o caminho de casa. Naquele instante, no televisor para o qual ninguém agora prestava atenção, o apresentador acabava de noticiar o inusitado desdobramento de um caso de homicídio ocorrido na capital do estado. Um homem, morto por atropelamento na cidade de Montes Calmos na semana anterior, havia sido identificado como um suspeito foragido, acusado pelo brutal assassinato de sua namorada, anos atrás. O nome dela era Marcela. Sumário 72 O CAMINHO DE VOLTA André Soares Silva ANDRÉ SOARES DA SILVA, Carioca, funcionário público, estudante de Letras da UFRJ, 28 anos, escreve desde os 15. Começou no mundo da literatura escrevendo fanfictions inspiradas no seriado Arquivo X, ainda no final dos anos 90. Hoje em dia é um apaixonado pela arte de escrever, seja na forma de contos, roteiros para cinema ou romances. Atuou junto a OTP Filmes como consultor na roteirização de curtas-metragens, participou da antologia “Contos Fantásticos”, do site A Irmandade, e “Solarpunk”, da Editora Draco, a ser lançada em breve. Seu primeiro romance, “Simuum – O Conto do Sol”, encontra-se no momento em fase de análise junto à editoras. Atualmente, trabalha em seu próximo projeto, um thriller sobrenatural que pretende ser o início de uma trilogia. Sumário 73 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte ALMAS MORTAS Sofia Geboorte — Sorva... Sorva E o vinho não bastava, aquela voz continuava em minha mente. Levantei-me do sofá, em que estivera desde que o sol começara a se pôr, esperando o telefone tocar. Mas nenhum som se fez além do maldito sussurro...Sorva. Enfim quando tocou e ouvi a voz de meu amigo do outro lado da linha tranquilizei-me, pois assim teria um motivo para sair de casa. Em passos pesados entrei no chuveiro, esperando apenas que a água escorresse quente por minhas costas, me encharcando, tão quente que queimava minha pele... Queimava... Queimava, como se o inferno tivesse se diluído sobre mim. O fogo sorvendo minha carne. Saí do chuveiro, prostrando-me diante do espelho, Sumário 74 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte o peito nu e repleto de cicatrizes, as marcas do tempo em que passei buscando, e encontrando, ao invés do que procurava, somente as sombras que me perseguiriam... Sorva... Sorva... Mais uma vez aquela voz soprando em meus ouvidos. Não perdi tempo. A noite me deixava sem tempo. Curta e soberana. Capaz de ruminar o mais lascivo dos seres. Tinha de me encontrar com Hiago o quanto antes, a necessidade de vê-lo aumentava, e estar entre o burburinho da cidade, ajudaria a ter o estranho comando, já conhecido, longe de meus ouvidos. Peguei minha jaqueta de couro, vesti as botas e saí de casa. Caminhando por aquelas ruas quase vazias, eu começava a achar que apenas a jaqueta não seria o suficiente para enfrentar o frio da noite. As árvores confundiam-se pelo vento, exalando um ar úmido que inundava o fim das chuvas de inverno. E o início das noites naquela cidade era negro, como meus passos, que, no entanto, nada mais representavam do que ecos de gritos abafados. Abraçando-me para estancar o gelo do vento, que embaraçava meu cabelo molhado, ouvi algo mover-se além dos galhos. Olhei para o alto. Estranhos olhos negros me observavam com tamanha curiosidade! Senti minha alma ser presa nas sombras de seu olhar, e minhas verdades encurraladas por sua sentinela. Ignorando a gralha-cinzenta que me seguia, como se me anunciasse com seu pio insolente, continuei a caminhar. Sumário 75 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte Em minha mente a voz ainda sussurrava... Sorva... Sorva. Até que encontrei o burburinho do bar. Hiago já me esperava em uma mesa. Mas ele não estava sozinho. Como haveria de ser, estava acompanhado de duas moças, sendo que uma delas, engalfinhara-se por debaixo de sua jaqueta, fingindo se aquecer, afinal estava com poucas tiras cobrindo-lhe o corpo... Inevitavelmente lembrei-me do velho ditado de que certas moças não sentem frio. Mas não foi nela que meus olhos se detiveram. E antes de dizer boa noite, ouvi o silêncio. Aquele ser que parecia mesclar-se à bruma letal bebeu um gole de vinho e uma única gota escorreu de seus lábios, tal orvalho em sombras. — Théo! –Hiago se levantou, erguendo o vermute, parecia surpreso por me ver ali, como se tivesse se esquecido de que ele mesmo havia me ligado para encontrá-lo. Sua jaqueta surrada estava manchada de sangue, um pouco abaixo da costela, mas como era de seu feitio, ele deveria ter iniciado a noite perto de alguma rua escura, com alguém que achava que poderia comandá-la melhor do que ele. Essa sempre fora uma das vantagens de ser amigo de Hiago, ninguém poderia comandar melhor o inferno das noites do que ele. — Parece que cheguei tarde, Hiago, você já encontrou companhia. – sorri pelo canto dos lábios, mas não obtive a atenção desejada. — Sua presença nunca se faz tarde, Théo. Essa é Ariane – a moça que usava um espartilho vermelho barato, igual a seus lábios, cumprimentou-me com um sorriso que Sumário 76 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte pareceu incomodar meu amigo. – e esta é Lemony. Alguns olhares parecem impregnados pelo ópio, o dela, era o próprio ópio que impregnava meu olhar. Diante dela fiz-me objeto. Sentei-me junto aos três e servi o vermute que nos aqueceria. A conversa fluiu entre eu e Hiago, ignorando as interrupções da moça que o acompanhava, enquanto a outra, no entanto, continuava em sua mudez dúbia. Por algum tempo tentei atrair sua atenção, mas em sua timidez ou indiferença, respondia apenas com resmungos. Ela olhava para o fim da rua, como se esperasse algo. No salão próximo dali acontecia o baile do Dia dos Pais dado todos os anos pelo prefeito e a primeira dama. — Não quis ir à festa deste ano Hiago? – provoquei-o. — O prefeito e a primeira dama preferem que eu fique longe, eles tem mais dois filhos lá para completarem a família. – eu sorri ao lembrar que Hiago era o filho mais velho do prefeito da cidade, sendo um dos maiores problemas que o pai tinha que resolver nesta. — E vocês, moças? – disse olhando para Lemony. — Não recebemos o convite. Mas espero que me tirem para dançar. – dessa vez seus olhos ébrios ressurgiram, como se até então estivessem distantes de sua própria consciência, voltando somente para me amortalhar. Ela nada mais disse. Levantou-se e deu-me a mão. – Leve-me para casa, Théo. Quando segurei sua mão, gélida pelo vento, a voz em Sumário 77 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte minha mente voltou com intensidade... Sorva... Sorva... Lemony, em seu vestido de lã cinza que lhe cobria os braços finos, conduziu-me para longe do barulho da irritante música que insistia em tocar no bar, até que nos aproximamos do fim da cidade, em frente à minha casa. Ela sentou-se à beira do portão enferrujado. Retirou as sapatilhas e acariciou as urzes com as pontas dos pés, como se tentasse recuperar algo há muito perdido. Fitei-a por todo tempo em que esteve ali, até que ouvi o gralhar do pássaro diante das sombras. Levantei-me para espantar a ave, mas assim que me aproximei, notei que trazia algo no bico, uma pedra talvez, porém antes que eu pudesse me aproximar mais de sua escuridão ela alçou voo. Por uma última vez naquela noite ouvi, em bulício, a voz novamente a me atormentar... Sorva... Com a desculpa do frio levei Lemony para dentro, seus olhos negros e curiosos incomodavam-me, pois traziam a sensação do abismo que me cobria. Por um momento ela hesitou em entrar em minha casa, compreendi que eu a acabara de conhecer, mas ainda assim tinha a sensação de que era ela quem me chamava para adentrar a névoa de seus lábios. Naquela noite, a boca de Lemony silenciou a voz que comandava minha mente. O estranho formigamento de seu corpo a friccionar minha boca, o ópio a preencher meus lábios, a neblina a evocar os olhos da noite. E sobre os sortilégios de sua pele ela orquestrou meus obscuros desejos. Adormeci. Sumário 78 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte Junto à madrugada um pio estridente me acordou. Olhei para o lado e vi que as cortinas brancas sibilavam. Levantei-me rumo à janela aberta, e mais uma vez vi aqueles olhos negros e curiosos a me fitarem, mas antes que pudesse me aproximar, a gralha voou. Foi apenas quando me vi só, que notei a ausência de Lemony. A chamei por toda a casa, mas só o eco frio respondeu. Não me dei ao trabalho de fechar a janela, pois algo em meus tormentos dizia que somente a bruma que adentrava, poderia me levar de volta ao sono. Porém, antes de me deitar olhei-me no espelho da penteadeira e notei que estranhamente uma cicatriz, feito um risco, juntara-se em meu peito com equimoses, sem que eu houvesse me machucado para tê-las. Adormeci. Quando levantei com a voz me perturbando, uma tempestade ruminava a tarde. Tentei ligar para Hiago, mas meu telefone estava mudo. Mais uma vez, sentei-me no sofá à espera que o whisky que tinha em mãos pudesse calar aquela doce e morfética voz. Assim que a chuva cessou e o sol se pôs, arrisqueime no frio para tentar encontrar Hiago, afinal ele era minha ponte para Lemony, mas quando atravessava o portão cinza, vi entre as casas e ruínas do fim da rua - a sombra dela em meio à névoa de chuviscos que se fazia. Por sete noites Lemony esteve em meus braços, fui ludibriado pelo granizo de seus lábios, sentindo minha pele queimar ao inferno de seu toque. Por sete noites eu a tive nua até os ossos... E por todas as noites ela se desfez no deserto de meu sono... Por sete noites a voz deixou de me atormentar... E por sete madrugadas a ave me despertou com seu gralhar que parecia querer minha danação. Sumário 79 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte Mas, na última noite, eu não dormi. Enquanto Lemony estava comigo, podia sentir a paz que só se encontra nos vales, como se todas as sombras dos pecados que me perseguiam fossem apagadas – pois havia o sangue em minhas mãos dos anos que a memória escassa insistia em ofuscar. O sangue que se espalhava por meu passado, com o qual tracei o algoz de minha alma, que agora sussurrava em meus ouvidos. Na última noite em que tive Lemony e o acalento de seus negros olhos curiosos junto a mim, permaneci acordado, pois não queria que ela fosse embora pela madrugada adentro outra vez. Enquanto ela se vestia, sentei-me à beira da cama, e defronte ao espelho, a observava colocar seu habitual vestido cinza de lã, ao mesmo tempo em que tentava entender as equimoses e cicatrizes que foram se juntando uma a uma em meu peito. Tentava recordar quando fora a última vez que havia falado com Hiago, desde a tempestade meu telefone parecia estar mudo, e somente porque sabia que Hiago era feito de vestígios, que só se deixava à mostra quando queria, foi que não me preocupei. Apenas a contínua ausência de Lemony em meus dias é que forjava meus tormentos. E enquanto me perdia nas dúvidas e a fitava cobrir-se junto à névoa que adentrava pela janela aberta, vi através do espelho, de repente sua silhueta desaparecer. Virei-me chamando seu nome, correndo até segundos antes ela estivera, mas tudo que recebi resposta foi novamente o gralhar que queimou ouvidos. Afastando a cortina, encarei de perto os Sumário onde como meus olhos 80 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte negros e curiosos da gralha-cinzenta que retornava com meus demônios. Como fizera, nas outras noites, espantei a ave, que desta vez ao invés de alçar voo, deixou cair no parapeito da janela a esfera que a vi carregar na primeira noite. Na semiescuridão do quarto segurei-a colocando contra o luar. Era um olho. Negro e afogado. Com asco joguei o olho que rolou pelo chão do quarto, no mesmo instante em que a gralha voou para a penteadeira bicando sua própria imagem até quebrar o espelho. Eu gritei para afugentar aquele maldito pássaro, quando vi que ele carregava no bico um caco do espelho. Ela voou em círculos sobre minha cabeça, e saiu pela porta. Eu a segui, atravessando o corredor. Eu segui os caminhos da gralha, abjurando meus medos. Sorva... Sorva... Meus ouvidos queriam sangrar diante da voz que calava toda a razão. Não... Aos poucos eu gritava com as dores em minha cabeça... Sorva... Sorva... Mas eu ainda caminhava, pois conseguia ouvir o pio tão estridente quanto os risos do inferno a me guiar. Sorva... Sorva... Por mais que tapasse meus ouvidos a voz não sanava. Até que me vi diante de um portão. Cinza e enferrujado, como o de minha casa... Os detalhes, a estranha semelhança das grades... A gralha, então, pousou sobre um toco coberto de Sumário 81 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte urzes, ela observava como se me esperasse adentrar sua morada. E era como se eu estivesse no fim da cidade, na rua que me confinava as noites. O gemido metálico do portão mostrou-me a neblina que, sorrateira, gelava minha pele, e qual o frio seco e cinza, pareceu afugentar a voz que me comandava. Ao meu redor a escuridão dos anjos de pedra imperava. Estava em algum lugar no tempo. Só não sabia por que de fato estava ali. Aos poucos meus olhos se abriam para enxergar tudo aquilo que a gralha tentava me mostrar. Ela voou por entre as árvores, que mesmo entrelaçando seus galhos secos, permaneciam em silêncio. Seguindo suas asas, com o frio a cobrir-me feito mortalha, e a neblina a me cegar... Tropeçando, sem ver, nas campas e cruzes... Caminhei segurando-me na lassidão dos medos de meus pecados que retornavam... Até que eu a vi pousar. Sobre o granito de suas patas diversos jornais esvoaçavam e cobriam uma lápide. Ali me sentei detendo uma das páginas, junto à gralha, quando li a notícia notei que era de uma semana atrás. Anunciava a presença do prefeito e a primeira dama no baile anual da cidade, ao menos era o que a foto parecia mostrar. Eu não tinha porque ler aquela notícia, não tinha porque estar ali, mas algo me instigava à leitura, algo, como um estranho formigamento por dentro, uma ânsia que me obrigava a ler. E assim o fiz. No título, o anúncio de que o baile do Dia dos Pais havia sido cancelado, pois a data havia caído justamente no aniversário de morte de sete anos do filho mais velho Sumário 82 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte do casal, que havia morrido, junto com alguns amigos, num acidente onde o carro caíra da ponte, afogando-se no rio, naquela mesma noite. Olhei as datas novamente. Não... Não... Não! Hiago estava ausente, mas não morto!... Eu teria sido informado de sua morte... Não, meu amigo não poderia ter morrido! Sorva... Sorva... Soprou em meus ouvidos. Virei-me de repente, não havia nada além da escuridão das árvores a sibilar. Num lapso olhei para o reflexo no caco de espelho que a gralha deixara ao meu lado, e lá estava ela. Os olhos negros e afogados. — Finalmente você me ouviu, Théo! — Lemony! O que está havendo? — Sorva... Sorva Théo, o que lhe resta. No negrume, vi surgir as silhuetas em sombras, as almas que eu havia roubado. Em meu peito pude sentir as cicatrizes se retorcendo em feridas. Eu sabia. Meu corpo queimava. Meu algoz surgira. Lemony, em seu vestido cinza, se aproximou de mim, mesmo atônito deixei que seus olhos negros e curiosos me fitassem sem nada fazer, era como se meus músculos tivessem se congelado, pois eu sabia que meu passado me aguardava. Então ela me beijou. E eu me lembrei. Lembreime do primeiro beijo, dado no meio do baile do Dia dos Pais... De Lemony e Ariane chorando, enquanto eu dirigia furioso, atravessando a ponte. Lembrei-me de minha briga com Hiago, da lâmina em minhas mãos atravessando suas costelas... Sumário 83 ALMAS MORTAS Sofia Geboorte Porque Hiago duvidara de que eu era capaz de comandar o inferno das ruas melhor do que o próprio diabo! — Sorva Théo, o que lhe resta. – e no instante seguinte ela desapareceu diante de meus olhos, só o que ouvi foram o bater de asas, procurei desesperado, já à espera da maldita gralha-cinzenta, mas não avistei pássaro algum. Achei que só o vazio do cemitério me ancorasse, mas diante de mim, por entre os túmulos as almas que eu arrancara, se aproximavam como sombras. Arrastei-me para o fundo do túmulo, tremendo, tentando inutilmente me proteger daquelas sombras, até que senti a fria lápide fechando minhas costas. As sombras se perderam, deixando-me entregue à escuridão. Os pelos de minha nuca eriçaram quando repentinamente o silêncio tumular foi rompido pelo pio estridente da gralha pousada no topo da lápide. Afastei-me num salto, encarando o pássaro. Foi somente nesse instante que li o nome entalhado no granizo: Théo Campbell. Dona do blog Relicário de Sangue onde deposita seus escritos, SOFIA GEBOORTE nasceu no interior de São Paulo, entre um rio e uma floresta, em 1991. Prestes a se formar em Letras (português/francês), dedica-se à pesquisas que versam sobre o fantástico na literatura brasileira e francesa, enquanto escreve contos de litfan. Sumário 84 ENTRE AMIGAS Eni Allgayer ENTRE AMIGAS Eni Allgayer A aranha andava em círculos pela parede. As patas, recobertas por uma penugem negra, levemente azulada, movimentavam-se com leveza e sincronia. Deitada na cama, com uma garrafa de cerveja entre as mãos, Circe observava o ir e vir da caranguejeira. As ondas sonoras do bolero de Ravel estremeciam o quarto, mas ela continuava estática com os olhos presos no animal. Imagens antigas lhe vieram à mente. Via-se correndo pelo jardim da avó, ainda menina, com um vidro de maionese nas mãos. Dentro dele restava apenas uma aranha, com os olhos aumentados pela curvatura do vidro. O riso de satisfação ao perseguir os primos para mostrar o troféu. Os gritos da mãe, as tias abraçando os filhos e a avó deitada entre as flores, com uma mão sobre o peito, e a Sumário 85 ENTRE AMIGAS Eni Allgayer outra, coberta de pequenas aranhas pretas com o abdome rubro, como cerejas maduras. Depois, a ambulância chegando com a sirene aberta, luzes vermelhas enfeitando a tarde. Gente grande chorando feito gente pequena. A avó de vestido novo, cabelos penteados, repousava no caixão, calada como uma boneca. Já não havia reclamações, abraços apertados ou cheiro de alfazema. No cemitério, a chuva miúda misturando-se às lágrimas. Jogara pétalas de rosas sobre o caixão colocado numa cova, com a vista presa no olhar acusador da tia. Aquela que lhe tirara o vidro das mãos, estilhaçando-o contra o piso. A tia que lhe batera no rosto, afrontando sua mãe, que a retinha entre os braços num ninar feito de soluços. A música parou de chofre machucando-lhe os ouvidos. O silêncio tinha uma densidade estranha, um peso de ameaça ou prenúncio de coisa ruim. Circe levantou-se da cama, tomou mais alguns goles diretamente do gargalo e se voltou para Pedro. Ah, Pedro, murmurou, esboçando um leve sorriso. Ela o amava muito, desde o tempo de menina. Sempre fizera as suas vontades. Detestava algumas coisas, mas submetia-se para agradá-lo. Outras eram feitas com prazer pecaminoso. Encontros furtivos no galpão de ferramentas. Ele, o noivo da tia mais nova, barba cerrada, ela ainda menina, seios mal surgidos sob a camiseta da escola. Enfiou os dedos em seus cabelos desfazendo o penteado, antes de sentar em seu colo, como fazia desde os nove anos. Ele não esboçou reação. Rolou para a cama ao seu lado, e assim ficou por mais algum tempo, mirando a aranha na brancura do forro. Suspirou, voltando a sentar. Emborcou o resto da bebida em gole único, massageando os seios. Os bicos eretos, sensíveis ao tato. Agora ele é meu, gritou uma vez, e outra, e mais outra. O sorriso transformado em gargalhada e as mãos abertas Sumário 86 ENTRE AMIGAS Eni Allgayer para recolher as amiguinhas que galgavam as pontas dos dedos, aninhando-se nas palmas umedecidas. Como que atraídos por uma essência exótica, elas saiam dos bolsos, gola e nariz de Pedro como formigas em carreirinha. Ela as contou e recontou, para certificar-se de ter recolhido a todas. Conhecia cada uma delas, apesar da quantidade. Por fim, depositou-as numa espécie de aquário e subiu na mesa para alcançar a caranguejeira, oculta no desvão entre a sanca e o forro de gesso. Cantarolava quando a jogou na caixa de vidro para depois descer a tampa. As pequenas viúvas-negras cercaram a recémchegada que resistiu por algum tempo, mas serenou como Pedro, aos poucos. Enquanto as aranhas faziam festa, Circe abriu um alçapão no assoalho da cozinha, sob o tapete, para guardar a caixa de vidro no ventilado do porão. Retornou ao quarto, beijou os lábios arroxeados do amante e, tomou o telefone, discando números memorizados. A voz trazida da infância fez o anúncio: — Alô? Emergência? Preciso de uma ambulância. O titio foi picado por algum inseto. É... Ele está desacordado. Estou calma, sim senhora. Está bem, anote o endereço... Ah, não esqueça da sirene, gosto de ouvi-la cantar, cantar, cantar. ENI ALLGAYER nasceu em Tupanciretã, RS, em 18/01/1946, casada, mãe de 3 filhos e avó de um neto, iniciou na literatura de ficção em 2003, sendo autora de 7 livros individuais, com participação em 28 coletâneas em várias cidades do Brasil, quase todas decorrentes de concursos literários. Sumário 87 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado D epois de algumas centenas de metros do tráfego lento das dezoito horas, o carro da diocese parou em frente à mansão em estilo colonial, uma das últimas naquele bairro de comércio movimentado e ruas saturadas com prédios de mais de dez andares. A porta do carona se abriu, e logo o padre Daniel se aproximou do vestíbulo da casa. Olhou para o segundo andar, e de um quarto guardado por espessas cortinas emanava um piscar incessante de luz. Também ouviu gritos femininos, mas com voz grave, além do barulho de vidro quebrando contra a parede. Nada que assustasse o sacerdote, integrante de uma das ordens menores da Igreja Católica havia cerca de vinte anos. Já vira de tudo um pouco nesse ofício de exorcista, exceto aquele a quem supostamente combatia. Sim, ao longo do tempo, padre Daniel se tornou cético quanto à existência do diabo. No mais das vezes, as pessoas que a ele recorriam estavam possuídas por problemas existenciais, psicológicos, psiquiátricos ou até Sumário 88 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado mesmo físicos, como quando a mãe de uma menininha de cinco anos confundiu uma rara afecção cutânea no rosto da filha com uma possessão demoníaca. Mas o diabo, este ele nunca confrontara. Não seria diferente agora com essa família, a quem chegara por intermédio de um certo Sr. Moreira, advogado criminalista e católico praticante. Os pais sofriam com os problemas de saúde da filha de treze anos havia muito tempo, mas na noite anterior o quadro se agravara. Ela passou a se contorcer na cama, mudou o tom de voz e, a todo o momento que tentavam se aproximar dela, reagia de forma agressiva. Antes mesmo que pudesse soar a campainha, o outro filho do casal, um adolescente de dezessete anos, atordoado, com as mãos trêmulas e o olhar desvairado, veio ter com o padre à entrada. “Ainda bem que o senhor chegou! Minha irmã tá possuída! Nos ajude, por favor!” **** “Foi um alívio quando o padre chegou. Eu estava no segundo andar, encostado à janela do quarto da minha irmã, quando levantei um pedaço da cortina e vi o carro se aproximando. Tomei coragem, atravessei o fogo dos infernos e desci correndo as escadas. Ele devia ter quase uns cinquenta anos, um jeito de cara conservador, sério. Se fosse em outra situação, me daria medo, mas eu já estava morrendo de pavor. Entre o Sumário 89 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado padre e o diabo, a escolha fica fácil. Ninguém imagina que isso vai acontecer na própria família. Na verdade, há muito tempo que eu não considerava que tinha uma família. As coisas iam mal lá em casa. Meus pais estavam quase se separando. Minha irmã vivia tendo crises. Desde pequeno que eu não gostava do meu pai. Ele bebia e batia muito em mim. Na escola, sempre fui um dos piores alunos, e ele me cobrava muito, queria que eu me destacasse. Não acho que era pro meu bem, não, mas só pra satisfazer o ego dele, pra aparecer pros amigos do hospital. A cada reprovação – e foram umas três – ele me espancava. Já a minha mãe era meu porto seguro. Ela me abraçava toda vez que me via chorando pelos cantos. Tinha a maior paciência pra me ensinar os deveres da escola. Eu amava minha mãe. Tudo mudou quando eu tinha uns doze anos. Sei que ela também sofria com o gênio do meu pai, só que não é fácil descobrir que a sua mãe tem outro cara, que está enganando todo o mundo. Um dia, cheguei mais cedo da escola – tinha matado aula – e ouvi uma conversa dela no telefone com um amante. Mamãe estilhaçou a confiança que eu tinha nela. Dali em diante, passei a sair direto da escola pra rua, com alguns colegas mais velhos. Foi um período de liberdade. Descobri a aventura, o sexo, as drogas... Ah, as drogas nunca me decepcionaram! Primeiro, a maconha; depois, a cocaína. E cada vez mais e mais euforia. Só que depois vinha um período de depressão. E eu precisava de mais, mas depois de um tempo não tinha de Sumário 90 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado onde tirar dinheiro. Furtei alguns reais de um comércio, fui parar na delegacia. Meu pai – muito legal o meu pai – me liberou com a ajuda de um amigo advogado. E depois me recebeu em casa com o carinho habitual. Foi só eu me livrar da delegacia e da estupidez do meu pai que voltei pras drogas. Alguns anos depois, um conhecido me ofereceu o crack. Como a gente diz, é um bagulho muito doido! Na primeira vez, já me viciei. E não parei mais. Quando eu estava na piração, até cachorro virava jacaré pra mim. Isso mexe com a cabeça. Passei a não voltar pra casa. Dormia debaixo de viadutos, em cracolândias, nas quebradas da vida. No início, minha mãe até ia atrás de mim. Depois, teve que se voltar pros próprios problemas de saúde. Meu pai desistiu logo, percebeu que minhas crises atrapalhariam demais o trabalho dele. Pequenos roubos e furtos alimentavam o meu vício. No café da manhã, no almoço e no jantar, o cardápio era um só: droga. Naquele dia, fumei cinco pedras de crack a manhã toda. Cheguei em casa por volta de umas quatro da tarde. Estava muito louco. Fui até a cozinha e peguei uma faca grande bem afiada. Queria matar meu pai. Claro que era o efeito da droga. Eu não ia ter coragem pra fazer isso de cara limpa. Subi as escadas e fui até o quarto dele. Ninguém. O quarto da minha mãe? Vazio. De repente, ouvi uma voz grossa vindo do quarto da minha irmã. Pensei que fosse um ladrão e corri pra lá de faca em punho. Empurrei a porta, e o cenário era literalmente uma visão do inferno. Ao mesmo tempo em que se contorcia sob os lençóis, como se alguém tentasse dominá-la, minha irmã rosnava Sumário 91 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado palavrões para os meus pais, que estavam ao lado da cama. Eles nem notaram minha aproximação. Cheguei até a janela pra tentar abrir as cortinas, mas, nesse instante, minha irmã se voltou pra mim. ‘Vou te matar’ – ela gritou, com os olhos fumegantes. E os lençóis começaram a levitar, e depois o corpo dela também, como se viesse ao meu encontro. Num impulso, atirei a faca contra ela, sem direção – deve ter caído atrás do guarda-roupa. Meus pais me abraçaram, e senti a minha visão embaçar e começar a girar, e então desmaiei. Devo ter apagado por umas duas horas. Só acordei com o barulho de carro estacionando à entrada da nossa casa.” **** “Prostração. Diante daquela cena, não saberia definir meu sentimento de outra maneira. De um lado, minha filha num estado indescritível, algo sobrenatural. De outro, meu primogênito, desmaiado, beijando a lona por causa da maldição da juventude atual. Se eu pudesse, sumiria naquele instante mesmo, como uma névoa que vai se diluindo através da manhã. Não sei quando comecei a sumir da minha própria existência. Talvez quando me casei, aos 25 anos, ainda com muita fome de vida. O amor nos faz abrir mão de muitas coisas. Talvez quando, depois de formada em História e já com um emprego de professora, aceitei os argumentos do meu marido, um bem-sucedido ortopedista, de que não precisava trabalhar, pois ele manteria as contas de casa em dia. Ou ainda quando engravidei com menos de um Sumário 92 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado ano de casamento e passei a me dedicar integralmente ao meu filho e ao lar. Acredito mesmo que possa ter sido ao fazer vista grossa para os indícios de traição em vermelho, lilás e laranja que meu querido trazia na gola das camisas e até nas peças íntimas, isso sempre depois de estafantes plantões no hospital. Veio a segunda gravidez, e a minha sentença de prisão estava definitivamente decretada. Difícil indicar o ponto a partir do qual o amor próprio não voltaria mais. O primeiro porre do marido que agora se revelava um alcoólatra? O primeiro tapa depois de tentar contestá-lo? A primeira vez em que surrou nosso filho pequeno? Não sei. Eu só queria ser amada. Não me refiro à afeição que meus filhos me dedicavam. Sempre fomos muito ligados. Eu necessitava de amor como mulher. Encontrei-o na troca de olhares com um vizinho de rua, um rapaz solteiro que morava com a mãe doente em uma casa no fim da rua. Ele era alguns anos mais novo que eu, alto, magro, ar de intelectual. Sempre que passava por mim, fazia questão de cumprimentar. Não sei bem ao certo que desculpa usou para puxar conversa, mas em pouco tempo já estávamos enrolados sob a coberta de algum quarto de motel. Esses encontros furtivos duraram alguns poucos anos, depois dos quais meu namorado se cansou da clandestinidade da nossa relação. Queria encontrar alguém com quem pudesse fazer planos. Nos afastamos por um tempo, e a separação coincidiu com o agravamento do quadro do meu filho, adolescente rebelde, que dava cada vez mais preocupação a mim e a meu marido. Quando nos demos conta, as drogas já tinham arrombado a porta de nosso lar e estavam sentadas ali no sofá, diante de nós, assistindo ao noticiário da noite. Ao mesmo tempo, nossa caçula tinha um estranho Sumário 93 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado problema de saúde: tiques nervosos, sonambulismo, gagueira, epilepsia. A situação foi se agravando a tal ponto que a levamos a psicólogos, psiquiatras, terapeutas alternativos. Nada adiantou. Sem meu namorado e rodeada de problemas, me rendi à depressão. Em pouco tempo, eu mesma passei a consumir caixas de psicotrópicos na tentativa de levantar o moral. Os tarjas preta não provocavam em mim efeitos colaterais, exceto um: vez ou outra, eu tinha alucinações. Em certa ocasião, cheguei a pensar ter visto meu pai, falecido anos antes, ao entrar rapidamente no quarto e dar de cara com ternos do meu marido pendurados no guarda-roupa aberto. Depois de algum tempo, meu amor voltou a me procurar, embora já tivesse outra mulher. Percebi que agora ele queria só matar saudade do sexo, variar um pouco. Aceitei, pois não podia impor condições. Mesmo porque, nossas transas serviam como válvula de escape de uma panela de pressão prestes a explodir. Meu derradeiro inferno familiar começou aproximadamente às onze da noite. Após voltar de mais um encontro às escondidas, senti meu sangue congelar ao notar o carro de meu marido na garagem. Por que ele já havia retornado do plantão? O normal seria ele chegar apenas pela manhã. Atravessei o amplo salão no térreo sem ouvir barulho. Subi as escadas com cuidado, entrei na minha suíte pé ante pé. Estava tremendo, tamanha a tensão. Abri o armarinho do banheiro e logo ingeri duas drágeas de uma vez. Precisava me acalmar. Subitamente, explodiu vidro contra a parede do Sumário 94 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado quarto da minha filha, na outra extremidade do corredor. Corri para lá e abri a porta num impulso. Alguém havia arremessado uma garrafa de uísque em direção a um quadro com a foto dela quando menina. Acendi a luz e surpreendi meu marido assustado, lívido, à cabeceira da cama, enquanto minha filha se contorcia e falava palavrões com uma voz rouca. Ele estava bêbado. Não tinha nem como contestar minha chegada tardia. Puxou-me pelo braço para fora do quarto e trancou a porta. ‘É o demônio, mulher! Nossa filha está possuída pelo diabo’. Reparei que havia uma mancha de sangue na manga esquerda da camisa dele. Tentei abrir a porta, mas ele me impediu. Colei os ouvidos à madeira e passei a auscultar grunhidos, convulsões, choques contra o chão e as paredes. Fiquei desesperada, mas ele não me deixou socorrê-la. Fui até o banheiro e tomei mais dois tarjas preta. Ao voltar, meu marido estava à porta do quarto, como um Cérbero, telefone em punho. ‘Moreira, desculpe ligar a esta hora. Preciso da sua ajuda.’ O auxílio que ele procurava era espiritual. Nossa pequena estava endemoninhada. Ficamos em vigília a noite inteira. Os barulhos e os gritos não cessaram. Mal trocamos algumas palavras eu e meu marido, que emendava doses de uísque uma atrás da outra. Já os meus companheiros fiéis foram os remédios. Entupi-me deles durante a manhã e a tarde. Pouco antes das dezesseis, o silêncio imperou lá dentro. Tomamos coragem e entramos. Recomeçou, então, a algaravia de minha filha. Palavras desconexas, olhos esbugalhados, movimentos tensos. Mas agora era diferente. Havia fogo na parte de Sumário 95 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado trás da cama. E a cada impropério que proferia, as bonecas em sua estante se movimentavam, como se submetidas a um pequeno sismo. Não restava dúvida: era caso de possessão demoníaca. Encolhemo-nos próximo à cama, os dois apavorados, quando repentinamente meu filho invadiu o cômodo com uma faca na mão. Temi pelo pior. Ele estava transtornado, e eu não queria que machucasse minha flor. Ela precisava de ajuda, e não de agressão. Atônitos, nós pais assistimos ao confronto dos nossos rebentos. O demônio investiu contra meu filho, que lançou a faca – graças a Deus – sem qualquer precisão. Rapidamente, o envolvemos, e ele desmaiou. Com nosso filho desacordado, não tivemos como sair dali, mesmo amedrontados pela cena dantesca diante de nós. Até a chegada do padre, demos as mãos, rezamos e torcemos para que nada de pior sucedesse. Quando ouvimos um carro parando perto da entrada de nossa casa, o demônio começou a gritar mais alto. O quarto tremeu. Minha filha passou a atirar contra o teto os jarros de flores que mantinha em sua estante; eu, talvez numa reação histérica, passei a apertar o interruptor de luz sofregamente, acendendo e apagando a lâmpada em ritmo acelerado. Meu marido quedou estático. Nosso filho, já reanimado, pulou do lado da janela até a porta e foi atender o padre.” **** Sumário 96 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado “Não gosto de tratar desse assunto. É uma história de medo, nojo e ignomínia. Medo de ser descoberto. Não que eu deva satisfações a qualquer sentimento moral. Às favas o escrúpulo. O ser humano é ou não é assim? Mas a queda é maior quando há muito a se perder. E eu tenho uma posição social destacada, uma reputação pela qual devo zelar. Conheci minha mulher quando ela ainda estava na faculdade. Na ocasião, eu lá cursava o mestrado e já tinha carreira iniciada e bem encaminhada na área da ortopedia. Nosso namoro e posterior casamento ocorreram quase por inércia. Eu precisava de uma mulher para mostrar à sociedade. Ela tinha boa formação, era de boa família. Mulher perfeita para casar, ficar em casa e cuidar dos filhos. Não que desgostasse da fornicação caseira, mas desde cedo fui dado a aventuras sexuais. Nunca tive pudores quanto a isso e sem cerimônia admito que traí minha companheira desde antes do enlace matrimonial. Além do sexo, ao qual voltarei a fazer referência mais adiante, uma outra paixão mundana sempre me dominou: o álcool. Na juventude, as bebidas me serviam. Em momentos festivos, estavam lá para tornar o ambiente mais leve, agradável. Com o tempo, elas passaram a me absorver. E como no escorrer da areia de uma ampulheta invisível, a relação se inverteu: era como se eu me houvera tornado um fiel de algum culto profano a um deus etílico e tivesse por obrigação depositar em oferenda minha própria saúde mental. Somado a um casamento de fachada, o vício é capaz Sumário 97 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado de produzir o que socialmente se denomina de crápula. Um marido infiel e agressivo, um pai severo e cruel, apenas faces aparentes e odiáveis de um homem infeliz. Ainda me restava o prazer do sexo, tema ao qual retorno para explicitar o que poderia ter sido minha ruína, não fosse uma insólita interferência satânica. Sou um ninfomaníaco, não resta dúvida. Orgias em casas de suingue, transas com prostitutas, trepadas nos plantões do hospital, os ménage à trois em que experimentei até brincadeiras homossexuais... Uma extensa lista de aventuras lascivas, que, entretanto, já não me apresentava mais novidade. Eu queria uma experiência sexual inédita. Ao completar sete anos, minha filha recebeu um presente diferente. Papai colocou-a no colo, pôs a mão por baixo de seu vestidinho de rendas, deslocou sua calcinha e acariciou suas partes íntimas. Foi um prazer indescritível. Para mim, claro. Para ela, o nojo. A partir daí, passou a ter problemas de aprendizado, distúrbios da fala, insônia. Não, eu não parei. Eu queria mais. Contentei-me com esses aperitivos durante anos. À medida que avançavam as carícias, seu estado de saúde se deteriorava. Naquela noite, cheguei mais cedo em casa, cabulando um plantão imaginário, o qual só existiu como desculpa para a minha tola e infiel esposa – como se eu não soubesse de seu inútil caso amoroso havia muito tempo. O meu filho já se mudara mesmo para as ruas, de modo que na mansão estávamos apenas eu e meu brinquedinho favorito. Bebi algumas doses de uísque e, já alto, avancei ao meu parque de diversões. O quarto estava escuro, Sumário 98 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado ela já estava dormindo. Caí por sobre o corpo dela, sem pruridos, desbragadamente. Foi quando aconteceu uma reação inesperada. Ela me afastou com raiva – uma força excessiva para uma menina de treze anos. Em seguida, cravou os dentes no meu braço esquerdo, o que provocou uma dor aguda. Caí para trás gritando. Ficamos ali alguns minutos em silêncio sob a luz da lua que entrava pela janela. Eu tentando me recompor; ela me olhando fixamente, sem piscar, como se mirasse o infinito. Arrisquei mais uma investida, e ela prontamente se apoderou da garrafa de uísque que eu deixara sobre a cômoda e arremessou-a em direção à parede. Menos de um minuto depois do estrondo, minha mulher irrompeu no quarto. Surpreendido pela desagradável presença uxória e diante do contorcionismo iniciado por minha filha, ocorreu-me uma desculpa contra a qual soçobra qualquer tentativa de explicação racionalista: nosso bebê fora possuído pelo demônio. Retirei a mulher do cômodo e dei início a uma atuação digna de Oscar. Recorri ao sempre solícito Moreira, que me prometeu acionar seus contatos na diocese a fim de conseguir a visita de um exorcista o mais rápido possível. Enquanto eu mergulhava no doze anos, minha mulher chafurdava nas suas pílulas da felicidade. Lá dentro, nossa filha continuava a se debater, a ranger os dentes e a falar palavras incompreensíveis. Depois de muitas horas de angústia, sobreveio a tranquilidade. Os sons estranhos pararam. Entramos no quarto, e, então, aconteceu algo inusitado. É como se a fantasia virasse realidade. Como se uma mentira fosse repetida tantas vezes que, ao confrontá-la, já não se Sumário 99 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado distinguisse mais entre verdade e imaginação. A menina estava mesmo possuída. Ao nos ver entrar, recomeçaram os espasmos. Ela vomitou uma cachoeira verde, arregalou os olhos e girou o pescoço bem além do que um ser humano normal seria capaz, numa cena digna de Friedkin. Assustei-me, pois não encontrava uma explicação plausível para aquilo tudo. Entrei num estado de torpor, embora tenha permanecido acordado e saiba que continuei me movimentando pelo cômodo mecanicamente. Quando retomei o controle dos meus pensamentos, um padre estava à porta do quarto. Ah, o medo, o nojo e a ignomínia! Esta surgirá aos olhos de quem porventura venha a saber dos detalhes obscuros desse exorcismo, os quais pretendo deixar escondidos nos recônditos da minha consciência.” *** Munido de crucifixo, bíblia e água benta – fazia parte da pantomima do ritual – padre Daniel se apresentou aos pais da menina, enquanto esta continuava a pronunciar palavrões e a se debater sobre a cama. O sacerdote pediu a todos que se retirassem, não antes sem ouvir súplicas da mãe para que salvasse sua filha. Assim que todos saíram, a garota se acalmou um pouco, embora tenha continuado a respirar rapidamente, como que bufando. O padre encostou a mão direita sobre a testa da jovem, e ela se mostrou irritadiça. Depois, ele Sumário 100 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado rezou alguns pais-nossos e ave-marias, ao mesmo tempo em que espargia algumas gotas de água benta sobre o leito da enferma. Tratava-se de um eficaz placebo para aqueles que, por alguma razão, realmente se sentiam tomados por um demônio. Finalmente, tomou as mãos da jovem entre as suas, assentou-as sobre a capa da bíblia, orou mais um pouco e disse: “Que o espírito ruim que perturba esta jovenzinha vá embora e ela volte a ter paz. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém”. A menina adormeceu por pelo menos meia hora. Ao abrir os olhos, perguntou ao exorcista: “Quem é o senhor? O que aconteceu?”. “Você não se lembra?”. “Não me lembro de nada.” . “Descanse agora, minha filha. Você só está um pouco cansada” – recomendou o padre, com um indisfarçável e sereno sorriso de satisfação, por mais uma vez ter ajudado uma família a se livrar do diabo imaginário, embora não pudesse, e talvez nem quisesse, perscrutar os verdadeiros fantasmas que afligiam aquele lar. Ainda no andar de cima, fez admoestações aos pais e ao irmão da menina, garantiu que estava tudo bem a partir de agora e se despediu. Ao passar pela sala de estar, já na penumbra pelo contraste entre a escuridão do adiantado da hora e a profusão de luzes que a invadiam desde os letreiros do bairro populoso, deteve-se por um instante a admirar uma foto da família que acabara de ajudar. Sobre o móvel de mogno, sorriam felizes os cônjuges e os filhos pequenos, Sumário 101 O DIABO MORA NESTA CASA Jorge Eduardo Machado a garota com não mais de dois anos. Ao girar a cabeça, pensou ter visto, de relance, uma figura canhestra sentada sobre uma antiga poltrona forrada com feltro e prontamente direcionou o olhar para o assento a fim de se certificar do que vira. Estava vazia. Não passara de uma ilusão de óptica. Com uma gota de suor frio escorrendo pela fronte, o padre logo se retirou da mansão, cada vez mais convencido de que o diabo só existe na imaginação de mentes enfraquecidas por problemas cotidianos. Atrás dele, uma gargalhada inaudível aos ouvidos comuns ecoou pela casa, e voltaram a se estender invisíveis fios condutores que uniam garras sinistras a suas marionetes humanas. Talvez o demônio não estivesse dentro daqueles a quem o padre ajuda. Muito mais acertado seria ter procurado em volta. JORGE EDUARDO MACHADO, de 33 anos, é jornalista formado pela UFRJ, em 2002. Repórter com passagens pelos jornais O Globo, Extra e Folha Dirigida, além da Rádio Nacional, atualmente é revisor da Empresa Municipal de Multimeios da Prefeitura do Rio (Multirio). Em 2006, foi um dos vencedores do concurso do jornal O Estado de S. Paulo, cujo tema foi futebol. O conto O dia em que fomos meninos ficou entre os 11 selecionados, de um universo de 1.022 concorrentes. Em outro concurso com mais de 200 inscritos, foi um dos 40 selecionados para integrar a coletânea Palavras das Letras, em comemoração aos 10 anos do curso de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFScar). Dessa vez, o conto premiado foi A herança. Expõe seus escritos no Recanto das Letras (www.recantodasletras.com.br/autores/jem). Sumário 102 MANEQUIM Reginaldo Costa de Albuquerque MANEQUIM Reginaldo Costa de Albuquerque O caminhão da mudança partira com a tarde empacotada dentro do baú. De pé e morto de cansaço, no centro da sala de estar, não sei por onde começo. A lâmpada ilumina uma porção de caixas de papelão em desordem com roupas, livros, utensílios domésticos e móveis desmontados. Opto pelo colchão da cama de casal. Acomodo-o no chão de qualquer jeito e nele me deito exausto, sem lençóis ou travesseiro. O sono estava agarrado nas molas. Desperto na manhã seguinte e encontro à entrada do banheiro um manequim feminino, privado de roupas e acessórios de embelezamento, em pose elegante. Objeto que não faz parte dos meus pertences e nem me recordo de tê-lo visto ontem na bagunça. Volto do desjejum na padaria da esquina a uma quadra daqui e ponho ordem nas coisas sem nenhum afã. No intervalo que me concedo para o almoço e merecido Sumário 103 descanso, imbróglio. MANEQUIM Reginaldo Costa de Albuquerque telefono para a transportadora sobre o “Vamos verificar e entraremos em contato com o senhor novamente” — responde-me solícita a atendente no outro lado da linha telefônica. A nova casa, menor que a anterior, se organiza e ganha a aparência agradável de um lar. As peças, que os carregadores retiraram do caminhão-baú, reordeno por todos os cômodos. Caixas vazias e rasgadas espalho pela varanda e grama do jardim, sem o mínimo cuidado. O vulto de uma barata surge na parede cimentada do muro e agita as antenas. No outro dia, amanheço no meu quarto devidamente arrumado. O boneco de sentinela, com o olhar fixo em mim. Noto a expressão de arranjo de um sorriso que não havia antes. E, definitivamente, eu não o colocara ali! Surpresa, a mesa com o café está posta: suco, frutas, leite, gulodices. E nem é a data combinada com a diarista contratada. Depois, caixa de ferramentas, furar paredes, pendurar quadros, bater pregos, apertar parafusos e estender os varais de roupas. No quarto dia, levanto-me tarde. Ao espreguiçarme, meu braço direito alongado para o outro lado da cama, que dá para a parede, toca em algo frio, duro, e não é o travesseiro. Vejo o manequim que se introduzira enquanto eu dormia. Com incontáveis afazeres, deixo-o estirado. Faxinar e colocar a sujeira nos sacos pretos de lixo, cultivar algumas flores, podar a laranjeira nos fundos do quintal. O telefone chama. “Senhor, informamos reclamação pela falta de Sumário que não há registro de mercadoria por parte dos 104 MANEQUIM Reginaldo Costa de Albuquerque clientes” — é a voz da moça da transportadora. Insisto, mas ela educadamente não dá ouvidos às minhas ponderações. “O caminhão saiu vazio da empresa para o transporte da mudança. Certamente, a mercadoria lhe pertence” — e desliga. O tempo se esvai moroso, com tudo acomodado em seu devido lugar. Um pardal desceu na varanda, saltitou dois ladrilhos, pegou alguma coisa do chão com o bico e voou levando o dia a reboque. A impressão é de sétimo dia e acordo sem o alarme do despertador, que tiquetaqueia sonolento em cima da cômoda. O clarão repentino da luz lançada pelo sol penetra a janela entreaberta e me ofusca a visão. Dormi sobre o meu lado esquerdo, de frente para a porta do quarto, mas não a enxergo. Tento levar as costas dos dedos das mãos para esfregar os olhos, mas não se mexem. As pernas estão estendidas, os braços dobrados, estáticos. Cismo preocupado com uma sensação inexplicável de desconforto. Enquanto o pensamento dá voltas no labirinto da inquietação, a campainha toca. Percebo a movimentação de alguém que deixa a cozinha, atravessa o corredor e atende. Ouço uma fala abafada de mulher, que permite a entrada. Angustio-me. Quem é ela? Quem chegou? Quero participar, mas meu corpo não reage, não obedece às minhas vontades. Sinto-me rígido, uma pedra. Sumário 105 MANEQUIM Reginaldo Costa de Albuquerque Rumores de passos se aproximam. Uma mulher alta surge alheada ao umbral da porta do quarto lixando as unhas pintadas de uma tonalidade rósea. O temor se instala. Conheço o talhe do rosto, as curvas dos lábios. Ilusão? O manequim se transformara numa mulher real! Então, dá passagem aos mesmos carregadores que trouxeram a mudança. Minha boca permanece imóvel e reprime o bosquejo de um protesto. Ela reclina a cabeça e arregala os olhos negros, que brilham intensamente. Em seguida, aponta o dedo em minha direção com um ligeiro sarcasmo. “Eis o manequim que vocês entregaram por engano. Podem levá-lo para o seu verdadeiro dono”. REGINALDO COSTA DE ALBURQUERQUE tem 48 anos, campo-grandense-MS de coração. Autor premiado no Brasil e em Portugal, em concursos de poesias, sonetos e contos. Autor do livro Sonetos no azul da tarde. Sumário 106 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana O crepúsculo começava a surgir no céu quando Morgan chegou à mansão. Seu irmão fora recebê-lo na porta. Jonathan parecia ter envelhecido mais do que o tempo permitiria a qualquer pessoa. Mesmo em seus plenos trinta anos, cabelos brancos não lhe faltavam à cabeça. Os olhos esbugalhados, rodeados por olheiras, mostravam que certamente não dormia há dias. Há cinco anos os dois não se viam, desde o verão em que Jonathan e Genevra casaram e mudaram-se para aquela mansão em Rotherham. — Sinto muito por sua perda, Jon – disse Morgan, quando o cumprimentou. – Genevra era uma pessoa formidável, eu a conheci ainda na infância. Sua morte me deixou muito abalado. Sumário 107 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana Ele desviou os olhos de Morgan e se virou para a mansão, em silêncio, ignorando os pêsames do irmão. Morgan permaneceu parado no portão, perguntandose se fora somente a morte da esposa que transformara Jonathan em alguém tão mal-educado. Quando entrou na mansão, ele percebeu que a casa fazia jus ao dono. Havia poeira, e como havia! Morgan teve acessos de tosse enquanto atravessava a sala e subia as escadas que levavam ao segundo andar. Jonathan, mostrando-lhe o quarto, permanecia frio e indiferente ao resto do mundo. — Há quanto tempo esta casa não é limpa? — Três meses – respondeu rispidamente. Genevra morrera há três meses. Não era muito difícil adivinhar os motivos para Jonathan manter a casa naquele estado. — Você se tornou um viúvo muito intrigante, irmão. — Servirei o jantar em uma hora – disse, ignorando Morgan mais uma vez. Sem esperar resposta, virou-se e começou a se afastar. – Fique à vontade. — Você servirá o jantar? O que aconteceu com os criados? — Foram embora – gritou ele no fim do corredor, desaparecendo de vista. Morgan voltou-se para o quarto e acendeu as luzes. Decidira passar uma quinzena em Rotherham para confortar o irmão após do luto. Seus negócios em Roma demoraram mais do que ele esperava. Depois de concluí- Sumário 108 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana los ainda gastara um bom tempo até chegar a Londres, entregar seus relatórios e partir para Rotherham. Três meses era muito tempo. Gostaria de ter chegado antes, pelo menos a tempo de acompanhar o funeral de Genevra. Sem nenhum conhecido por perto, Jonathan devia ter sido o único a comparecer. Aquele pensamento era terrível. Olhou para a janela. Já havia anoitecido. As nuvens carregadas e escuras cobriam a lua e as estrelas como algo que parecia cobrir o coração de Jonathan. Talvez fosse o remorso. Morgan se lembrava das brigas encabeçadas por Genevra. Apesar de amá-la, seu irmão nunca cedia numa discussão. Talvez os dois estivessem brigados quando ela veio a falecer. E nessa condição, até mesmo Morgan se sentiria culpado por dentro. Tenho que falar com ele, concluiu, não posso deixar que faça alguma besteira. Morgan apagou as luzes e deixou o quarto. O corredor estava vazio e pouco iluminado. Ele esbarrou na parede duas vezes antes de acostumar os olhos à escuridão. No fim do corredor, viu a porta de um cômodo iluminado entreaberta. Aproximou-se e notou que era da biblioteca. Lembrou-se que Jonathan sempre tivera bons livros. Talvez fosse melhor esperar pelo jantar lendo alguma coisa. Conferiu o relógio de bolso para ver o tempo de que dispunha e entrou. A primeira coisa que notou foi o cheiro de mofo do lugar. Tentou, mas não conseguiu controlar um novo acesso de tosse. Com dificuldade, arrastou-se para uma poltrona próxima e cobriu o nariz com a gola da camisa. Depois de se recuperar, conseguiu prestar atenção ao redor. Como deduzira no começo, a biblioteca era ampla e transbordava livros. As prateleiras iam do chão até o teto. Algumas escadas se erguiam entre elas, para facilitar a locomoção. Uma pilha de livros velhos juntava-se em cada Sumário 109 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana canto e outras se erguiam pelo chão. No entanto, o que mais chamou sua atenção foi o quadro pendurado acima da lareira. Uma grande pintura a óleo de um menino – um menino que chorava. Morgan levantou-se da poltrona e aproximou-se do quadro. Notou o calor à medida que se aproximava da lareira – ela fora apagada há pouco. Não mais que algumas horas talvez. Jonathan estivera ali. Fazendo o quê? questionou-se. Morgan olhou para a figura do menino, que de perfil parecia fitá-lo sombriamente. Talvez fossem as lágrimas, talvez fosse o olhar vazio de suas pupilas dilatadas, mas algo diferente parecia vir daquele quadro. Morgan permaneceu longos minutos a observá-lo, de pé, como se estivesse hipnotizado. Olhou cada detalhe da tela. Jonathan e Genevra sempre tiveram bom gosto, porém Morgan nunca havia visto aquela pintura. Talvez a cunhada houvesse comprado antes de morrer e agora seu irmão a guardasse como uma triste lembrança. Curioso, procurou por uma assinatura na tela. G. Bragolin, rabiscada em tinta vermelha em um dos cantos. Tentou se lembrar das obras dos pintores que conhecia, mas nenhuma tinha o aspecto de um menino que chorava. De onde veio esse quadro? Morgan ouviu passos na escada. Devia ser Jonathan. Conferiu o relógio de bolso. Havia se passado dez minutos depois da hora que seu irmão marcara para o jantar. Quando o tempo passou a correr tão rápido? Jon deve estar furioso! Morgan virou de costas para o quadro e correu em direção à porta. No entanto, quando a abriu, Sumário 110 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana deparou-se com a figura do irmão. — Esqueceu-se do jantar? – perguntou ele, rudemente. – O que você está fazendo na minha biblioteca? — Lendo – mentiu. Jonathan o olhou intrigado, por um longo tempo, antes de se virar para o corredor. Resmungou qualquer coisa antes de se dirigir novamente a Morgan. — Desça – disse ele. – A comida não permanecerá quente até o fim do outono. À mesa do jantar, Morgan sentou-se em um dos lados, enquanto seu irmão ocupou a cadeira da ponta. Jon serviulhe pão e queijo seco, mas mal tocou na comida. Enquanto bebia vinho, Morgan notou que havia outro prato vazio na mesa – disposto ao assento da outra ponta. Percebeu que Jonathan não parava de fitá-lo, num interminável silêncio. — Era o lugar de Genevra? – perguntou Morgan, despertando o irmão do transe. Jon o olhou rapidamente, antes de voltar o olhar para o assento vazio e assentir com a cabeça. — Você ainda não se esqueceu dela, não é? Assentiu novamente. Morgan se calou. Não sabia o que dizer. Minutos depois, Jonathan se levantou e trouxe da cozinha um pato assado. Parecia-lhe bom a princípio, mas a frieza de seu irmão amargou cada garfada que levara à boca. Jonathan não provou o pato. Vez ou outra, ele bebericava a taça de vinho – mas nada mais que isso. Não disse uma palavra durante o jantar. Morgan pensou em fazer Sumário 111 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana algum comentário frívolo sobre a comida, pelo menos para quebrar o silêncio daquela refeição. Mas viu que a seu irmão não adiantaria. Ele continuava fitando o assento vazio na outra extremidade da mesa, em silêncio. — Sabe do que você precisa, Jon? – perguntou ele de repente. – Outra esposa. Alguém que lhe faça esquecer Genevra. Jonathan disparou um olhar frio em sua direção. — Não diga absurdos. — Estou falando sério – Morgan não sabia de onde retirara coragem para dizer aquilo, mas agora que já o dissera, não importavam mais as consequências. – Mulheres não faltam em Londres. Eu posso lhe apresentar algumas, da mesma forma como lhe apresentei Genevra. Tenho certeza de que elas se interessarão por você... — Eu ainda amo minha esposa – disse ele. – E nem todas as mulheres da Inglaterra preencheriam seu lugar. — Acho que é a minha vez de dizer “não diga absurdos” – replicou. – Genevra se foi. Milhares de mulheres o esperam fora desta mansão mórbida e empoeirada. Garanto-lhe que em breve você se casará com outra. Uma que lhe dê filhos. Depois, será fácil para você esquecerse da primeira esposa. Não se preocupe, Jon, você ainda encontrará alguém melhor que Genevra... Jonathan esmurrou a mesa e se levantou. — Jamais repita isso – repreendeu em um tom severo. – Não na minha frente. Não sob este teto. – Encarava Morgan com um olhar perturbado, que ele nunca vira no rosto do irmão. – E lembre-se de duas coisas: não Sumário 112 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana existe nenhuma mulher melhor que Genevra; e não existe nenhuma que eu possa amar além dela. E, dizendo isso, foi embora. Morgan permaneceu sozinho na sala de jantar, bebericando o vinho. Durante um bom tempo, ficou como o irmão: fitando o lugar vazio na mesa sem dizer uma palavra. Uma valsa começou a tocar em outro cômodo. Devia ser Jonathan mergulhando nas amargas lembranças do passado. Morgan se lembrava de como seu irmão e sua cunhada dançavam bem juntos. Ele até tentava aprender os passos, mas nunca se saía tão bem quanto eles. À mesa, Morgan tomou o último gole do vinho e se levantou. Procurou pelo cômodo de onde vinha a música. Atravessou a sala, subiu a escada, cruzou mais corredores, até que chegou ao lugar. Sentado em uma poltrona de uma sala vazia, Jonathan tinha o rosto coberto pelas mãos. Morgan não conseguiu distinguir se chorava ou se refletia. A valsa continuava surgindo de algum lugar, por mais que não visse sinal de vitrola. Aproximou-se do irmão e pousou a mão em seu ombro. — Perdoe-me, Jon – disse. – Eu não devia ter dito aquilo. — Esqueça – respondeu, um pouco mais calmo, retirando o rosto das mãos. Seus olhos pareciam marejados. – Já é tarde. É melhor você voltar ao quarto e dormir. Amanhã será um longo dia... Morgan ignorou o irmão e sentou-se próximo a ele, numa poltrona perto da sua. — Nunca desejei mal a você, Jon. Nem a você, nem a Genevra – confessou. – Pelo contrário, sempre desejei o Sumário 113 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana melhor para vocês. Meu irmão e minha amiga, juntos para sempre. Agora tudo mudou – ela se foi e você está se comportando dessa maneira. Isso me preocupa. Aguardou uma resposta do irmão, mas ela não veio. Os olhos de Jonathan pareciam querer derramar mais lágrimas. A janela aberta deixava um frio vento de outono entrar. O inverno chegaria a qualquer momento, quando eles menos esperassem. — Você está mudado, irmão – disse Morgan. – Não sei o que aconteceu, ou como aconteceu; mas algo mudou você. Eu diria prontamente que foi a morte de Genevra que lhe deixou assim, mas algo me diz que não foi apenas isso. Então o que foi, Jon? Diga-me! A valsa se encerrou de repente. Jonathan ergueu o olhar para Morgan. Os dois se fitaram durante um longo tempo. Mas nenhuma palavra foi dita por ele. O silêncio entre os dois parecia não ter fim, até Morgan quebrá-lo mais uma vez. — Então espero que tenha uma boa noite – foi o que disse antes de sair. Jon não é mais a pessoa que conheci, concluiu, meu irmão morreu junto com Genevra... Foi direto para o quarto e se jogou na cama. Uma camada de poeira se levantou quando ele o fez. Teve outro acesso de tosse. Depois de se recuperar, Morgan trocou-se e deitou, pretendendo dormir. No entanto, não conseguiu encontrar o sono. Virou-se de um lado para outro mais de uma vez. Além da cama desconfortável e do cheiro de poeira nos lençóis, não conseguiu parar de pensar no que Jonathan se transformara. Pensei em ficar aqui durante uma quinzena, lembrouse Morgan, mas irei embora amanhã, ao amanhecer. A Sumário 114 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana pena que sentira do irmão dava lugar à raiva. Que ele apodreça sozinho pelo resto da vida. Pouco me importa. Quando finalmente conseguiu dormir, Morgan teve horríveis pesadelos. Todos eles envolvendo fogo e morte. Não para menos, assim que se levantou descobriu que estava coberto de suor. Vestiu as roupas de viagem e colocou um chapéu para disfarçar o cabelo, que durante a noite tornara-se sujo e embaraçado. Olhou para a janela e viu os primeiros raios de sol surgindo atrás da colina próxima à mansão. Nuvens ameaçavam cercá-los. Guardou as poucas coisas que retirara da mala, arrumou a cama, fechou as cortinas e partiu do quarto. Não olhou para trás. As portas do corredor estavam todas fechadas. Melhor assim, pensou. Não queria ver o irmão outra vez, tampouco se despedir dele. Arrastou a mala até as escadas e começou a descê-la. O barulho foi tamanho que Morgan surpreendeu-se por não ter chamado a atenção do irmão. Atravessou a sala a passos rápidos e chegou à entrada. Abrindo a porta e fechando logo em seguida, saiu da mansão sem olhar para trás. O som das folhas sendo sopradas pelo vento despertou sua atenção. Olhou para o céu e viu que uma tempestade se aproximava. As de outono sempre eram as piores. O sol logo sumiria entre as nuvens negras que cresciam no céu. Morgan precisaria andar rápido se quisesse pegar o expresso que o levaria até Londres. A tempestade não iria esperá-lo. Já atravessava o jardim quando o vento aumentou de repente. Morgan cobriu os olhos, mas não conseguiu impedir que seu chapéu voasse. Praguejando para si Sumário 115 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana mesmo, deixou a mala no chão e voltou-se para a mansão, procurando pelo chapéu. Foi encontrá-lo perto da entrada, pousado sobre um jornal velho e surrado. Tratava-se de uma edição antiga do The Sun. Quase mecanicamente, leu o título da manchete, escrito em letras garrafais. A MALDIÇÃO DOS QUADROS DAS CRIANÇAS QUE CHOR AM. Curiosamente, havia uma foto de uma pintura muito semelhante à da biblioteca de Jonathan, onde um menino parecia fitá-lo, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Morgan pegou o jornal do chão e começou a ler a matéria, intrigado. ...tudo começou com um frustrado pintor italiano, Graham Bragolin... Morgan já vira aquele nome, só não se recordava de onde. Demorou algum tempo até que conseguiu se lembrar. A pintura de Jon! Estava assinada com G. Bragolin! ...e nessa noite, Grahan teve um sonho. Nele, vinte e oito crianças eram torturadas no inferno e choravam pedindo clemência... Toda aquela história parecia muita confusa. ...ao invés de vender sua alma pelo sucesso, ele ofereceu as almas daqueles que comprassem seus quadros... Enquanto lia, tinha um mau pressentimento sobre aquilo tudo. ...o que não impedia os compradores de modificarem os pactos para o próprio bem... De repente, tudo se encaixou. Morgan deixou o jornal Sumário 116 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana cair no chão, de tamanha consternação. Não! tentou gritar para si mesmo, Jon não fez isso! Olhou para a mansão à sua frente. Não podia deixar Jonathan fazer o que ele pensava que estava fazendo. Deixou o chapéu no chão e começou a atravessar o jardim. Um relâmpago ricocheteou o céu, seguido por um estrondoso trovão. Morgan nem ligou para sua mala sobre a grama e entrou na mansão. Não viu sinal de seu irmão. — Jonathan! – gritou. O grito ecoou pelas paredes, mas ninguém lhe respondeu. Sem pensar duas vezes, começou a subir as escadas que levavam ao segundo andar. Tinha absoluta certeza de onde ele estava. — Jonathan! – gritou mais uma vez, já no corredor. Ele não apareceu. A porta da biblioteca girou a maçaneta, abriu a mais estranha de sua vida parecia estar carregado de concluiu, e ele também... estava destrancada. Morgan porta, e entrou. A sensação foi entrar aquele lugar. O ar maldade. Jonathan está aqui, Encontrou-o na frente da lareira, observando o quadro do menino que chorava com uma expressão vazia no rosto. — Morgan... – murmurou, com a voz distante. – Ele disse que você voltaria... — Por que você fez isso, Jon? – perguntou, se aproximando com cautela. Sumário 117 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana — Ele prometeu trazê-la de volta... – disse Jonathan fitando a pintura. — Não diga isso, Jon. Ninguém pode trazer Genevra de volta. Ela morreu. — Ele pode – murmurou, pousando o olhar sobre Morgan. – Ele é poderoso. Você não sabe o quanto. — Ninguém é mais poderoso que Deus – e o quadro pareceu tremer ao som do Seu nome. – Livre-se dele, Jon! Deixe o quadro, deixe essa casa. Venha embora comigo para Londres. — Agora já é tarde, Morgan. Nosso pacto foi selado a sangue. Nem eu poderei fugir com minha palavra; nem ele. Gene voltará para mim, seja qual for o preço que terei que pagar. — E qual é esse preço? – indagou. – Sua alma?! O menino da pintura pareceu sorrir, enquanto uma lágrima escorreu pelo rosto de Jonathan. Morgan sentiu um mau pressentimento. — Não. A sua. E seu coração disparou. Deu dois passos para trás. — Eu?! – gritou, incrédulo. – Você não pode estar falando a verdade, Jon. — Somente a alma de uma pessoa viva pode pagar pela alma de uma pessoa que já morreu – continuou ele, dando um passo para longe do quadro. O menino parecia fitá-lo. — E por que me escolheu?! Eu sou seu irmão, Sumário 118 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana Jonathan! — Desculpe-me, Morgan, mas eu quero que Gene volte para mim. Ele exigiu a minha alma, mas eu não posso oferecê-la se quiser ficar com minha esposa. A única que ele aceitou em troca foi a sua. Pensei em lhe mandar uma carta, mas ele disse que você viria me visitar. Cedo ou tarde você viria. Sinto muito por ter entregado sua alma, Morgan, mas foi preciso. Morgan sentiu os pés se prenderem ao chão. As mãos perderam o movimento e, quando tentou falar, sua voz desapareceu. Ficou paralisado. Uma risada diabólica atravessou o ar, talvez vinda de sua cabeça, talvez do quadro. — Jon... – disse uma voz feminina de repente. Uma mulher surgiu na biblioteca. Tinha a pele pálida, os olhos verdes e os cabelos negros. Usava um lustroso vestido vermelho. Ela se aproximou de Jonathan, enquanto este a olhava fixamente. — Gene... – murmurou ele, abrindo os braços. Algo diferente brilhou em seus olhos. Os dois se abraçaram e se beijaram longamente. O menino que chorava no quadro parecia fitá-los. De repente, uma valsa começou a tocar – a mesma que ele ouvira antes. O casal se deu as mãos e começou a dançar. Morgan continuava preso ao chão, observando tudo aquilo. Então a parede ao redor do quadro começou a pegar fogo. Jonathan e Genevra continuaram dançando ao som da valsa, ignorando completamente o que acontecia ao redor. As chamas consumiam a parede, mas a pintura da criança que chorava permanecia intacta. Morgan sentiu o calor aumentando. Em pouco tempo, o fogo chegou Sumário 119 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana aos livros. E a partir daí, a biblioteca se transformou no inferno. As chamas se multiplicaram pelo lugar, tão rápidas que foi difícil acompanhá-las. A criança no quadro continuava chorando, enquanto o casal girava para um lado e para outro, dançando uma música que parecia não ter fim. Aquela cena mais se parecia com um pesadelo. Morgan sentiu os pés se soltarem de repente. As mãos conseguiram se mover e, quando tentou falar, a voz finalmente saiu. — Jon! – gritou, em meio a fumaça e o fogo da biblioteca. – Jon, fuja! Venha comigo! Ele não respondeu. Num último instante, Morgan vislumbrou seu irmão dançando valsa com Genevra. Pela primeira vez desde que o reencontrara, ele viu Jonathan sorrir. E percebeu que a loucura o dominava. As chamas começaram a consumi-lo, junto com sua esposa, mas ele continuou sorrindo. No meio de todo o fogo, o quadro resistia; intacto. A criança, contudo, já não estava mais nele. Morgan virou-se para a porta e fugiu da biblioteca em chamas. Desceu os degraus da escada o mais rápido que pode e depois saiu pela porta. Atravessando o jardim, olhou para trás. E viu que uma grande fogueira erguia-se sobre o chão. — Não é lindo? – disse uma voz infantil. Uma criança surgiu na sua frente, observando atentamente as chamas consumirem a mansão. — Quem é você? Sumário 120 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana — Você não sabe? – indagou ela, virando-se para Morgan. Na mesma hora ele reconheceu as pupilas dilatadas do menino do quadro. No entanto, ali ele não chorava – e sim sorria. — O que você quer? O menino meneou a cabeça. — Ora, Morgan, caso não se lembre, seu irmão entregou sua alma para mim. Agora ela é minha para eu usá-la da forma que quiser. — Não tenho medo de você – retrucou. – Deus me protegerá de todo e qualquer mal, inclusive dos seus pactos. E começou a rezar desesperadamente em voz alta, tentando se lembrar das frases decoradas desde criança. Nunca precisara tanto delas. O menino ficou em silêncio, olhando-o fixamente. — Você realmente crê que Deus ouvirá o pedido de alguém cuja alma pertence a mim? – indagou, um pouco confuso. – Às vezes os seres humanos são tão engraçados... De repente, um relâmpago riscou o céu escuro. Ele viu dois chifres na sombra que a criança projetou. Antes que Morgan pudesse ter alguma reação, sentiu um toque frio e molhado em seu rosto. Mais outro. E depois outro. Olhou para cima. Começara a chover. O menino à sua frente fungou o nariz. Morgan notou o porquê de sua reação. A chuva estava apagando o incêndio. — Assim não tem graça – resmungou ele. Sumário 121 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana — Isso é obra de Deus – comentou ousadamente. A chuva estava engrossando cada vez mais. Morgan já tinha o cabelo ensopado. – Ele sempre vencerá você. O menino o olhou com desdém e começou a rir. Riu alto, como se houvesse escutado uma ótima piada. — Vamos ver – disse. Ergueu a mão esquerda e estalou os dedos. A chuva então parou. Mas de uma maneira inacreditável. Os pingos ficaram suspensos no ar, imóveis como se não existisse gravidade. As chamas, contudo, continuaram consumindo a mansão. Morgan estremeceu. Sua cabeça dava voltas e mais voltas. Ele não sabia o que aconteceria dali em diante. Porém, sabia que não haveria como fugir. — Por favor, deixe-me ir – suplicou. – Meu irmão está morto. Não era isso que você queria? Agora você não precisa mais de mim. — Você se engana – corrigiu. – Quero que você seja meu escravo. O coração de Morgan disparou. — Eu lhe suplico, deixe-me ser livre – pediu. — E o que você me daria em troca? — Qualquer coisa! O Diabo abriu um sorriso e olhou Morgan fixamente. — Então, nós podemos fazer um pacto. Sumário 122 LÁGRIMAS DE CRIANÇA Pedro Viana PEDRO VIANA é mineiro, nascido em 1996, tomou gosto por histórias desde pequeno. Gastou quase quinze anos para perceber que o que mais gosta de fazer na vida é escrever. Depois disso, começou a perseguir seu objetivo, escrevendo muito e lendo mais ainda. Possui um caso sério de dependência de livros. Nos dias que não tem nada para ler, enfrenta fortes crises de abstinência. É apaixonado pela fantasia e pelo terror. E além da literatura, aprecia muito o cinema e a música. Pretende, num futuro próximo, se formar em Jornalismo. Por ora, despacha contos para antologias e trabalha na produção de seu primeiro livro – a ser publicado logo depois que concluir a faculdade. Sumário 123 CAMINHOS PERIGOSOS Hélio Sena CAMINHOS PERIGOSOS Hélio Pena Quando Raimundo avistou a casa, as sombras da noite já haviam começado a se derramar sobre o mundo... O pobre homem caminhara o dia inteiro sob o sol escaldante da caatinga, sozinho, por estradinhas ora de barro vermelho, ora de finíssima areia branca; estava, pois, quase morto de cansaço e fadiga. Por isso, deu graças a Deus quando avistou aquela casinha perdida no meio daquele deserto, e tratou de apressar o passo para chegar lá, antes que a noite caísse de vez. Enquanto caminhava, observava, admirado, a grande quantidade de morcegos que esvoaçavam para lá e para cá, alguns passando bem rente a ele. Raimundo nunca tinha visto tanto morcego junto! Aquilo lhe pareceu coisa de mau agouro, e, apesar de ser um homem de bastante coragem, não deixou de sentir um ligeiro arrepio na espinha... Sumário 121 CAMINHOS PERIGOSOS Hélio Sena Então, para se distrair, começou a assobiar uma cançãozinha aprendida com o pai, no tempo em que ele, Raimundo, era apenas era um menininho inocente, que sonhava em um dia ir embora para o sudeste, ganhar bastante dinheiro por lá, e voltar milionário para matar a fome daquela gente pobre do sertão, que tanto precisava de ajuda! Era justamente nesse seu sonho grandioso que Raimundo pensava, enquanto caminhava, assobiando... A canção misturava-se ao barulho do pedregulho, que estalava sob os seus chinelos carcomidos, e perdia-se para além da vegetação seca e retorcida, para além daqueles serrotes que mais pareciam montanhas-russas da morte, até diluir-se na enorme imensidão da noite... ... Quando parou diante da casa, desvaneceu-se do coração de Raimundo toda e qualquer esperança de que ali pudesse residir alguém... A casa não passava de uma tapera velha, com o barro da taipa caindo em muitos lugares; a porta e a janela da frente haviam sido destruídas pelo cupim, deixando entrever o negrume que reinava no interior do casebre... Pelo menos tem um teto, pensou Raimundo, e é disso que mais estou precisando nesse momento. Está bom demais! Vou pernoitar aqui mesmo e amanhã cedo sigo viagem... E, sem mais delongas, entrou na choupana. Ficou um Sumário 122 CAMINHOS PERIGOSOS Hélio Sena instante imóvel para acostumar seus olhos à penumbra. Percebeu então que o casebre era composto por um único cômodo, e que estava vazio, exceto pelo que parecia serem cinco ou seis garrafas de vidro espalhadas num dos cantos... Nada mais! Com um suspiro de alívio, Raimundo depôs no chão a cabaça d’água e o saco de estopa que carregava nas costas. Ali dentro do saco ia o seu tesouro, o grande motivo daquela viagem sem fim que ele empreendera há quase três dias... Amanhã, tornou ele a pensar, amanhã tudo vai ser diferente. Quero dar esta alegria para os meus filhos, para a minha mulher, coitados, tão distantes agora... Mas, deixe estar! A nossa salvação está bem pertinho, já posso até sentir o cheiro da danada. Amanhã, com certeza, tudo estará diferente! E, sentando-se ao lado do saco de estopa, chegou a dizer em voz alta: – Pelo menos um sonho eu tinha que realizar nessa vida, né?... Pelo menos um! E, assim dizendo, o viajante sorriu de peito aberto. Chegou mesmo a gargalhar, como há tempos não fazia. Estava confiante no futuro. O tempo de privações e tristezas finalmente estava chegando ao fim, e era isso o que importava, de verdade. Num gesto mecânico, tirou o chapéu da cabeça e olhou através da porta. A noite caíra de vez. Os morcegos horrendos haviam dado lugar a milhões de estrelinhas cintilantes... O céu nunca esteve tão bonito como hoje, pensou Sumário 123 CAMINHOS PERIGOSOS Hélio Sena Raimundo. Nunca, nunca mesmo! Ele ficou alguns minutos apreciando as estrelas, totalmente embevecido. Depois meteu a mão no bolso, retirou o pacote de fumo, e, guiando-se apenas pelo tato, fez o seu cigarro. Quando riscou o fósforo, a chama mostrou um rosto precocemente envelhecido, barba e cabelos por fazer, com vários fios grisalhos... Havia, no entanto, algo diferente ali: os olhos, outrora opacos, agora irradiavam um brilho especial, um brilho que certamente não era apenas o reflexo do brilho das estrelinhas lá no céu... Acabado o cigarro, Raimundo pegou a cabaça, bebeu dois bons goles d’água e estirou-se no chão; logo estava ferrado no sono... ... Ao se deitar, Raimundo não percebe que alguém se aproximara sorrateiramente da janela, e agora está olhando fixamente para dentro do casebre... O estranho ser lá fora está deveras faminto... Sua aparência, em frangalhos, é de alguém que acabou de levantar da sepultura. Um morto-vivo, uma terrível assombração! A criatura chega a gemer, sentindo o cheiro da carne fresca de Raimundo... E então, instintivamente, ela caminha para a entrada da choupana... Sumário 124 CAMINHOS PERIGOSOS Hélio Sena ... Raimundo desperta com a dor lancinante da mordida no ombro... Tenta se levantar, mas a criatura, dotada de uma força descomunal, imobiliza-o, enquanto aplica outras mordidas violentas no corpo do viajante. Em desespero, Raimundo se lembra da faca na cintura. Com esforço sobre-humano, consegue puxá-la e espeta o zumbi na altura do peito. Enlouquecida, a visagem aplicalhe uma mordida que arranca parte da orelha esquerda. Outra mordida o fere mortalmente no pescoço... Em transe, Raimundo pensa na mulher, nos filhos, no saco ali ao lado e, reunindo suas últimas forças, empurra a fera de cima de si. Em segundos fica de pé, e, furioso, desce o sarrafo sobre o vulto caído ali no chão, cobrindo-o de facadas, até fazê-lo em pedaços... Findo o massacre, Raimundo sente o corpo desfalecer... Então desaba no meio daquela carne putrefata, que, de certa forma, lhe amortece a queda e serve de travesseiro para um sono profundo e completamente sem sonhos... ... Quando Raimundo acordou, o dia vinha clareando. Sentou-se, esfregando os olhos. Sumário 125 CAMINHOS PERIGOSOS Hélio Sena O seu corpo todo doía, parecia que havia levado uma surra. Mas sorriu ao avistar o saco de estopa. – Meu tesouro! – disse ele. Pôs-se de pé, ajeitou o saco e a cabaça d’água nas costas, o chapéu na cabeça e saiu do casebre. Lá fora, lançou um olhar ao redor. Apenas aquela paisagem agreste, tão comum aos seus olhos de sertanejo calejado, de homem que é antes de tudo um forte. Ao lado do casebre, avistou, com pesar, um monte de terra com uma cruz tosca feita de gravetos enfiada em cima. A terra parecia ter sido remexida recentemente... Com certeza tinha sido obra de algum peba, famoso comedor de defunto daquelas paragens, ou de qualquer outro bichinho do mato. O viajante benzeu-se, pensando em quem poderia estar enterrado ali... Depois olhou para o nascente. O sol, lá na frente, parecia uma gigantesca moeda de ouro. Raimundo sorriu mais uma vez. E, decidido, marchou a passos largos, larguíssimos, naquela direção... Sumário 126 CAMINHOS PERIGOSOS Hélio Sena HÉLIO SENA é cearense, professor, autor confesso... Nasceu em Padre Linhares, distrito de Massapê, a 12/09/1975. Figura em dezenas de coletâneas de contos e poemas. Expõe seus trabalhos nos blogs Entre Palavras e Minicontos. Recebeu, entre outras distinções, o Troféu Macunaíma no XIV Festival Literário de Imperatriz (MA) e o 1º lugar em concurso de crônicas promovido pelo programa Papo Literário, da TV Ceará (Fortaleza). Twitter: @helyosena Sumário 127 FIM