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CONTOS VENCEDORES DO PRÊMIO
HENRY EVARISTO
DE LITER ATUR A FANTÁSTICA
Diagramação de Afonso Luiz Pereira
Capa de Thato Bordin
Esta antologia não tem fins lucrativos, sendo sua
distribuição totalmente gratuita, com o objetivo de divulgar
os trabalhos dos membros da comunidade literária do site
A Irmandade. No entanto, todos os textos publicados neste
ebook são de propriedade intelectual de seus respectivos
autores. A reprodução por meio de qualquer outra mídia, para
fins comerciais ou não, só poderá ser feita com a autorização
dos mesmos.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
HENRY EVARISTO - Paulo Soriano
A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO - Henry Evaristo
CONTOS VENCEDORES
PROFANADORES - Chico Pascoal
ANÁTEMA - Rafael Peres
O PASSADO VOLTA - Verônica S. Freitas
O CAMINHO DE VOLTA - André Soares Silva
ALMAS MORTAS - Sofia Geboorte
ENTRE AMIGAS - Eni Allgayer
O DIABO MORA NESTA CASA - Jorge Eduardo Machado
MANEQUIM - Reginaldo Costa de Alburqueque
LÁGRIMAS DE CRIANÇA - Pedro Viana
CAMINHOS PERIGOSOS - Hélio Sena
APRESENTAÇÃO
Apresentação
A Irmandade é bem mais do que um site literário
especializado no gênero Terror. É, antes, o meio pelo
qual se expressam “homens e mulheres que precisam
dividir os seus tempos entre as agonias de um dia-adia estafante e ‘pé-no-chão’ e um mínimo de minuto
para se deixarem viajar nas asas de uma imaginação
exacerbada e maravilhosa; e esta imaginação, caro
leitor, pode nos levar longe; pode nos conduzir a
mundos assombrosos onde habitam mil espécies
de coisas insanas, onde se escondem ninhos de
víboras diabólicas, que são moradas de abominações
horrendas e sem espaço nesse nosso pequeno mundo
ordinário. Uma imaginação que gera monstros e
belezas frias, palpáveis apenas nos mundos oníricos,
mas que, vez por outra, podem saltar de algum canto
escuro ou de alguma floresta sombria para este
lado da matéria, querendo devorar almas e mundos
”.( Henry Evaristo, Introdução à coletânea
“Irmandade das Sombras”, CBJE, p. 8 e 9.)
Mas não é somente isto a Irmandade. Nela não
há lugar para o egoísmo esnobe. Ela busca, igual e
essencialmente, revelar ao mundo novos talentos,
compartilhar ideias, fomentar o gosto e a troca de
Sumário
6
APRESENTAÇÃO
experiências literárias, o que o faz estimulando a
produção de narrativas fantásticas e, bem assim,
divulgando amplamente um vasto leque de talentosos
escritores. Foi o que fez, por um período curto, mas
intenso, Henry Evaristo, em seu blogue “Câmara dos
Tormentos”.
Para que o legado e a missão de Henry se
multipliquem, o “Prêmio Henry Evaristo de
Literatura Fantástica”, de periodicidade anual, foi
instituído visando a fomentar a produção literária
no gênero do terror em nosso País. E obteve, sem
dúvida, na sua primeira edição, êxito absoluto em
seu desiderato. O concurso contou com quase uma
centena de contos inscritos e isto, certamente,
tornou ainda mais expressiva a justa homenagem
que se rende a um dos maiores nomes da literatura
fantástica nacional.
O livro que trazemos a lume reúne as dez
narrativas vencedoras do certame, extraídas de um
universo de 92 contos recebidos, lidos atentamente,
filtrados de acordo com a prioridade de critérios
estabelecidos no regulamento, relidos e discutidos
ponderadamente entre os seus avaliadores, Membros
Fundadores do site literário A Irmandade.
Queremos agradecer cada participante do Prêmio
Henry Evaristo de Literatura Fantástico e, também,
aos parceiros Flavio de Souza, Tânia Souza, Paulo
Soriano, Rochett Tavares, Alfer Medeiros, Afonso
Luiz Pereira, Lino França Jr., Ramon Bacelar,
Sumário
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APRESENTAÇÃO
Cristiano Rosa, Victor Meloni, que contribuíram
com a realização do evento, doando exemplares
para a premiação em livros e, também, às editoras
(Aleph, Argonauta, Draco, Estronho e Literata)
que confiaram e apostaram no projeto.
A todos os participantes do Prêmio Henry Evaristo
de Literatura Fantástica, obrigado! Aos leitores que,
porventura, esbarrarem nesta antologia, tenham uma
boa leitura.
Sumário
8
HENRY EVARISTO
Escrito por Paulo Soriano
HENRY EVARIST0
Escrito por Paulo Soriano
É sempre difícil escrever sobre alguém que, de
alguma forma, enreda as nossas emoções.
Não é sem motivo que se dizem suspeitos os que
testemunham acerca de fatos que envolvem amigos
ou inimigos. No primeiro caso, depõe-se “a favor”;
no segundo,
“contra”. Encontrar o equilíbrio em
tais situações é tarefa que exige um esforço sobrehumano. Creio que sou – e não simplesmente fui –
amigo de Henry Evaristo tempo suficiente para emitir
um parecer sobre sua pessoa, e é de seu imenso
caráter que extraio o exemplo e, bem assim, a força
necessária para superar minha natural suspeição e
dizer o que há de ser dito.
O medo é uma sensação necessária e ancestral.
Mais remoto que o homem, tão premente e pungente
quanto a sede e a fome, é o medo requisito
indispensável
à sobrevivência das espécies mais
Sumário
9
HENRY EVARISTO
Escrito por Paulo Soriano
evoluídas. Ele suscita o alerta de que algo de terrível
nos espreita e assedia e que, portanto, é preciso
reagir imediatamente.
Mas tal primitiva emoção
transcendeu o imperativo da sobrevivência ao
humanizar-se. Não foi à toa que Lovecraft escreveu
que o medo é a mais intensa e antiga das emoções
humanas; e que, dos medos, o do desconhecido é o
mais intenso. Henry Evaristo sabia disso melhor que
ninguém; e, melhor que ninguém, deu prova disso.
Sobre Henry, cujas linhas impactantes deixavamme quase sempre boquiaberto, escrevi um texto que
não cheguei a publicar. E nem mesmo a concluir.
A pedido de meu amigo – uma das pessoas mais
brilhantes que conheci
–, eu me
pus a redigir
uma introdução ao seu único livro – Um salto na
escuridão
–,
mas Henry faleceu antes que eu
concluísse a minha missão. Mercê do meu transtorno
e de minha profunda tristeza, que ainda perduram, o
texto continua inacabado. Dói-me profundamente –
e sempre me atormentará – o remorso de não ter
aprontado a introdução quando Henry ainda estava
entre nós, a nos encantar com a sua inteligência
penetrante, sua fina ironia, seu cáustico humor. Fica
o consolo de que registrei algumas gotas acerca do
imenso caudal literário do amigo escritor e, antes
que elas se dispersem, segue um tímido borrifo:
Quando o dia entenebrece, quando sangra o
horizonte rasgado pelo vento cálido, e as copas
das árvores altaneiras
dançam silenciosamente o
Sumário
10
HENRY EVARISTO
Escrito por Paulo Soriano
fulgor escarlate, que anuncia a chegada das trevas
abissais, toda a floresta se recolhe num súbito e mudo
embrutecimento. Tudo se cala. Tudo se paralisa. Um
clima de angustiante expectativa subjuga a melancolia
que só o ocaso sói transpirar. Há o prenúncio de que
algo de terrível há de se esgueirar sob a hedionda
tessitura duma miríade de galhos e cipós retorcidos.
Finalmente, quando a treva exerce a sua absoluta
suserania, elava-se das entranhas da mata cerrada
um clangor absurdo, que se não sabe se humano ou
animal, e toda expectativa é sepultada pelo medo
palpável, pelo horror pungente, denso e penetrante,
da contextura de uma neblina negra e atroz.
Teriam os horrores silenciosos, que se escondem
sob a densidade indevassável da Floresta Amazônica,
induzido um espírito
taciturno, e especialmente
inteligente, a perscrutar o mundo com singular
argúcia, e nele vislumbrar pavores outros, invisíveis
aos olhos das pessoas comuns? E, em seguida, a
incutir, com a pena de um grande mestre, e a tinta
carregada de horrores, no espírito do leitor, o medo
em seu aspecto mais substancial?
É bem possível que sim. Pois o que permeia a
obra do escritor acriano Henry Evaristo é, sobretudo,
o prenúncio do horror. É o presságio do terrível.
Henry sabe muito bem que é justamente no limiar de
um fato especialmente tenebroso que reside o medo.
E explora este momento que antecipa o fatídico com
maestria inigualável.
Ninguém melhor que Henry
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HENRY EVARISTO
Escrito por Paulo Soriano
sabe fazê-lo, resida ou não a causa dos temores em
fatores sobrenaturais...
Henry foi – e, para mim, continuará sendo – um
grande escritor. Mas, talvez, esta não seja, dentre
a suas inúmeras facetas – Evaristo era escritor,
instrumentista, compositor, historiador e professor
– a única altaneira. Que Henry era um homem de
imenso e singular talento, ninguém duvida.
Mas
era, sobretudo, um ser humano extraordinário, um
amigo a toda prova, especialmente sincero, humano
e fiel. Caráter e talento muitas vezes se distanciam.
Mas, em Henry Evaristo, mais que se imbricavam:
mesclavam-se e fundiam-se para resultar e dar a
exata dimensão de um grande homem.
(Saudades, irmão! Muitas e muitas saudades...)
Paulo Soriano
Sumário
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A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO
Henry Evaristo
A Coisa do Jardim
Zoológico
Henry Evaristo
Naquele dia resolvi que gostaria muito de poder
explorar as trilhas selvagens que se estendiam ao redor do
parque. Eram como trajetos postos à disposição do público
para que ele pudesse, ao mesmo tempo, experimentar o
contato direto com a natureza e se exercitar praticando
caminhadas saudáveis. Em verdade, o lugar era também
um centro cultural onde ocorriam apresentações musicais,
mostras de teatro, artes plásticas, cinema e, logicamente,
a exposição de animais de faunas variadas em jaulas
espalhadas ao longo das trilhas que adentravam o terreno
e iam findar muitos quilômetros adiante, numa área de
fazendas e matadouros.
No dia 21 de abril de 1990 eu não saí do interior
do parque antes que ele fechasse. Fiquei vagando pelas
trilhas, refletindo sobre problemas que me absorveram tão
completamente a ponto de me fazerem perder o horário.
Por volta das vinte horas, me vi no meio da floresta escura
cercado pelo silêncio que parecia brotar da ausência de
pessoas no local; e pela estranha vida que sempre se
propaga pelas matas depois que escurece. Oh, só sabe do
Sumário
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A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO
Henry Evaristo
que falo aquele que já esteve em situação semelhante!
As florestas, à noite, se enchem de uma vida
assombrosa. Silvos medonhos se espalham pelo ar,
vindos sabe-se lá de onde; galhos se partem como que
pisoteados por coisas que andam em meio às trevas. E
estranhas vozes parecem soar bem às suas costas, de
repente, no escuro. Então, quando você se volta, aturdido,
com o coração saltitando em velocidade homicida,
descobre que não há nada, pelo menos não mais, além
de galhos e folhas, galhos e folhas que podem muito bem
esconder coisas pavorosas. Aquele que quiser realmente
experimentar o horror, mergulhe, como eu fiz, numa
floresta escura após o anoitecer. Não é a toa que os
homens medievais acreditavam que seus bosques eram
povoados por demônios carniceiros.
Quando percebi a situação insólita em que me
embrenhara, voltei-me imediatamente na direção da saída
da trilha em que estava. O imenso corredor que o caminho
descortinava diante de mim encontrava-se completamente
envolto pelas trevas. Ainda podia avistar, no céu, réstias
de luz solar, mas não era o suficiente para proporcionar
nenhum tipo de alívio para toda aquela escuridão. Pude
ver algumas luzes dos postes que cobriam a extensão
inicial da trilha; luzes esbranquiçadas que se projetavam
para baixo como raios triangulares bem definidos. Segui
nesta direção.
Observei que enquanto andava, com passos realmente
apressados, passavam por mim algumas jaulas que nem
mesmo havia percebido quando fizera o caminho de ida.
Percebi também um cheiro forte e acre que se espalhava a
partir destas "gaiolas" imensas; e diminuí o ritmo de meus
passos, num primeiro momento, ao ouvir um som horrível
que se propagou de repente pelo ar frio da noite. Era, sem
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A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO
Henry Evaristo
dúvida, um rosnar feroz, animalesco, ameaçador. Vinha do
escuro no interior da jaula e, ao olhar fixamente para a
escuridão, imediatamente avistei múltiplos pares de olhos
que me fitavam avermelhados. Não sei o que me passou
pela cabeça na ocasião, mas creio, hoje, depois de tantos
anos, que não andava muito bem das ideias já naquele
tempo. Digo isso por que, quando deveria empregar ainda
mais vigor em minhas passadas em direção à saída da
trilha, e sem dúvida alguma começar a gritar desde já, eu
resolvi parar. Segurei na barra protetora, que mantém os
visitantes a uma distância segura das feras aprisionadas,
e fitei novamente o interior.
Eram lobos! Uma cela repleta de lobos! Espécimes
extraordinários, enormes e de cores que não pude discernir
na escuridão. No entanto, todos estavam tão quietos,
acuados a um canto de sua morada forçada. Foi somente
quando me inclinei ainda mais próximo que pude perceber
um outro animal lá dentro. Um outro lobo ou fosse lá o
que fosse... Um animal quadrúpede que, postado aos pés
das barras de ferro, me fitava com aparente animosidade.
Quando o percebi, estava já com a cabeça quase encostada
na proteção da jaula. E hoje fico imaginando se aquela
besta tivesse enfiado as garras para fora e me agarrado
pelo pescoço...
Não pude ver nitidamente seu dorso, mas pelo
volume escuro de sua cabeça, com certeza era um animal
de grande porte, incomum eu diria, até mesmo para os
lobos mais desenvolvidos.
Ela não fazia movimentos. Ficava lá, parado, me
observando. Enquanto isso os outros animais pareciam
sofrer com sua presença. Soltavam pequenos uivos
lamentosos e passavam as garras pelo chão. Mas nunca,
em hipótese alguma, saiam de suas posições ousando
Sumário
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A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO
Henry Evaristo
aproximar-se da fera escura perto das grades.
Resolvi seguir meu caminho. A curiosidade inicial
estava novamente dando lugar ao medo de outrora. Não
gostei do olhar que a coisa me lançou quando percebeu
que eu começara a me afastar. E, antes de me virar para
continuar a andar, a vi empreender um movimento súbito
para frente e começar a se levantar. Novamente apressei o
passo. Agora queria me distanciar urgentemente daquele
lugar.
Não avançara mais que cem metros quando ouvi um
som pavoroso ás minhas costas. Não era nenhum uivo,
nem grito sobrenatural, ou rosnar dantesco, como podem
estar imaginando os amigos. Eram os ruídos, os rangeres
metálicos, que as grades da jaula emitiam ao serem
escaladas por alguma coisa pesada que quisesse saltar
para fora da morada dos lobos.
Não posso descrever a sensação de pavor e de
estarrecimento que experimentei quando percebi que
algo havia deixado o interior escuro de onde estivera
espreitando e estava agora solto na mesma trilha que eu.
Mesmo assim, vendo que os postes de luz estavam agora
bem mais perto, e podendo já avistar a guarita onde dois
guardas assistiam T V, resolvi me virar para olhar o que
quer que fosse.
Primeiro vi o caminho escuro atrás de mim. Minhas
vistas demoraram um pouco a enxergar aquilo que estava
mais adiante. Depois vi as matas ao redor, açoitadas pelo
vento e cobertas com as trevas mais densas.
Depois avistei o local onde estivera, em frente à
jaula dos lobos. Havia uma sombra parada lá. Uma sombra
volumosa, de cerca de dois metros de altura. Sei disso por
Sumário
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A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO
Henry Evaristo
que ela estava de pé! Ereta! E olhava fixamente para o
interior do lugar de onde saíra.
Andei mais para adiante e parei novamente na orla
entre o início da trilha e a luminosidade proporcionada
pelos postes. Da guarita do portão principal saltaram os
vigias correndo em minha direção.
A sombra continuava lá, em sua mesma posição.
Mas agora me fitava, sei que me fitava, mesmo com
toda aquela escuridão... Pois seus dois olhos vermelhos
faiscavam contra o reflexo das luzes brancas dos postes
de iluminação!
Não ouso descrever as formas da coisa. Até hoje
guardei este segredo bem guardado comigo, mas nunca
deixei que nenhum de meus filhos frequentasse o jardim
zoológico municipal. Na primeira oportunidade, mandei-os
estudar na capital.
Sei que minhas decisões foram acertadas tanto com
relação a meus filhos como com relação a mim mesmo
no dia fatídico. Foi minha resolução em me afastar que
provavelmente me salvou pois, alguns meses depois,
a comunidade de nossa pequena cidade se quedou
aterrorizada por uma onda de desaparecimentos de
pessoas nas imediações do zoológico.
Às vezes, quando estou só, tarde da noite, e a
insônia de velho não me deixa conciliar o sono, sentome na cama e, enquanto observo minha esposa ressonar
em seu oblívio inocente, me vêm à mente as palavras
gritadas pelos vigias para dentro da trilha escura. Lá, onde
avistaram, como eu mesmo, o animal que provavelmente
devia ter aprendido como saltar para fora da jaula onde
deveria viver confinado. Com certeza não foi um animal
Sumário
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A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO
Henry Evaristo
que os dois homens viram. Viram o mesmo que eu! E
suas palavras me arrepiam diante das possibilidades tão
aterradoras:
"Senhor, venha para cá!” Eles gritaram. “O parque já
está fechado!"
"Ai é perigoso! O senhor os está perturbando!"
Também lembro de como a fera lançou um outro olhar
para mim, de dentro da escuridão e depois, nos dando as
costas e caminhando encurvada, desapareceu na floresta.
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CONTOS VENCEDORES DO PRÊMIO
HENRY EVARISTO
DE LITER ATUR A FANTÁSTICA
PROFANADORES
Chico Pascoal
PROFANADORES
Chico Pascoal
F
elício tinha os olhos injetados pelo pavor, as mãos
tomadas por incontrolável tremor, e, fazia dias,
não falava. No desespero da súbita perda da faculdade
da fala, gesticulava angustiado, e tentava inutilmente
articular palavras que não encontravam em suas cordas
vocais a ressonância necessária para que ele se fizesse
inteligível. Pobre Felício! Fosse alfabetizado, com certeza
poderia se utilizar da escrita para descrever o que de fato
tinha acontecido àquela noite. Letras e garranchos, para
ele, eram a tudo a mesma coisa, não representavam nada.
O povo da pequena Oiticica, onde quase nada de
extraordinário acontecia, em principio teve até curiosidade
em saber que espécie de mal o havia acometido. Depois,
com o tempo, deixaram para lá. Fosse uma pessoa
importante, tivesse recursos, certamente o levariam para
a Capital para ser submetido a minuciosos exames com os
melhores médicos. Mas Felício, coitado, não passava de
um pobre diabo que não tinha onde cair morto.
A verdade sobre o que lhe ocorrera, só ele conhecia.
Sumário
20
PROFANADORES
Chico Pascoal
E, se a revelasse, ele bem o sabia, seria severamente
punido, pois o que fizera, mais do que pecado, poderia
até ser considerado como crime hediondo. Todavia, Felício
estava - por Deus como estava - disposto a fazê-lo, desde
que tivesse de volta a sua voz e a sua paz de espírito. No
fundo do coração, ele estava envergonhado e arrependido
do seu ato. Sim, sem dúvida nenhuma, ele merecia um
castigo. Quem sabe já não estava sendo castigado pelo
que fizera? O mesmo se aplicava ao criador de porcos
Jeremias. Mas o seu parceiro, como irão saber mais
adiante, tivera outra sorte não menos triste.
A brilhante ideia de profanar a carneira de Dom
Francesco Maggio fora dele, Felício. Que Jeremias, um
xucro, que embora soubesse ler, não era lá de pensar
muito. Em principio, Felício até pensou em fazer o serviço
sozinho para não correr riscos. Mas, ao constatar que a
tampa de mármore do túmulo do bispo era tão pesada que
um homem sozinho não conseguiria removê-la, convidou
Jeremias para pescar traíra no banhado, e lá convenceu-o
de que devia ajudá-lo. A troco de quê? Ora, Jeremias, por
mais tolo que fosse, não ia trabalhar de graça. Felício
logo descobriu que ele se apaixonara de um par de
botinas que estava exposto há meses na vitrina da Casa
Independência, a ponto de passar quase todos os dias em
frente à loja para admirar o produto.
“As botinas serão suas se me fizer este favor,
parceiro!” — prometeu Felício. E Jeremias engoliu a isca
que nem um bagre bobo.
A lua cheia, lá nas alturas, era um medalhão de prata
fosca, quando os parceiros marcharam rumo ao cemitério
decididos a por em prática seu macabro plano. Eram
duas sombras que se esgueiravam sorrateiras por entre
jazigos antigos e covas simples. Felício ia à frente, as
Sumário
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PROFANADORES
Chico Pascoal
mãos enluvadas em sacos plásticos, já que, como era de
se esperar, depois de quase um mês sepultado, os restos
mortais do prelado estivessem em avançado estado de
decomposição. Atrás de si, portando uma alavanca, ia o
grandalhão Jeremias.
Um odor rançoso e putrefato infectou, num minuto, a
atmosfera cálida do campo santo, quando os profanadores
ergueram a pesada campa. Felício sentiu que seu estômago
se revirava, mas aguentou firme. Jeremias, acostumado
aos odores da pocilga onde alimentava sua vara de porcos,
não estranhou muito.
Sob o espectro pálido do luar, um espetáculo insólito:
milhares, quiçá milhões, de pequenas larvas da tapurus
se refestelavam com as carnes fartas de Dom Francesco,
indiferentes à presença dos dois intrusos.
“O anel de esmeralda!” — conteve-se para não gritar
eufórico Felício, enquanto arrancava, sem cerimônia, a
jóia do dedo médio esquerdo já descarnado do defunto
notável.
“Sua eminência não vai mais precisar dele, Jeremias!”
— riu.
Felício, mais que exultante, de algum modo sentia-se
vingado da indiferença e do desprezo com que era tratado
pelos seus vizinhos. Pensavam que era um parvo por não
ter estudo? Pois que continuassem pensando. Enquanto
eles estavam indo com a farinha, já estava ele de volta
com o angu.
Tinha tudo muito bem planejado. No dia seguinte,
logo cedo, iria comprar as benditas botinas prometidas
ao Jeremias, e embarcaria no primeiro comboio rumo
à capital. Lá, um primo seu iria acompanhá-lo até um
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PROFANADORES
Chico Pascoal
avaliador experimentado. Um comprador que não dava a
mínima pela procedência do produto, e negociaria o anel.
Encheria as turras. Arrumaria a vida. Tiraria o pé da lama.
Nada mais a fazer ali, recolocaram com cuidado a
campa sepulcral, e decidiram abandonar o local.
Andavam rápido, desviando-se dos túmulos, quando,
sob o arco do portão encimado por uma cruz antiga de
cimento, Felício, sem se voltar, comentou com o parceiro:
“Tudo nos conformes, né Jeremias?”.
Embora pudesse sentir sua presença, seu arfar
pesado, seus passos, estranhou que o companheiro não
lhe respondesse. E, ao voltar-se, se surpreendeu que ali
não estivesse.
“Deixe de brincadeira besta, homem!” — ralhou em
um tom um pouco mais alto, imaginando-o escondido
atrás de algum túmulo.
“Visagem não me assusta não! Medo mais eu tenho é
dos vivos!”.
Felício enfezou-se.
“Jeremias, seu idiota!” — berrou irritado — “Vamos
cair fora logo dessa merda de lugar!”.
Não houve resposta. Nem sombra do outro.
Perdida a paciência, Felício tomou novamente o rumo
do túmulo do bispo disposto a enquadrar o criador de
porcos.
“Que hora mais imprópria para brincar, homem!”.
Sumário
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PROFANADORES
Chico Pascoal
Jeremias também não estava lá. Sobre a alva campa
de Dom Ramiro, porém, avistou as suas roupas rotas, o
seu chapéu surrado, as suas alpargatas de rabicho, ao
lado da alavanca fornida em aço.
Uma corrente
de ar frio, fenômeno
incomum
naquelas paragens naturalmente áridas, fez-se sentir. E
Felício, as pernas tomadas de súbita fraqueza, mesmo
não querendo acreditar, desconfiou que algo de incomum
estivesse prestes a acontecer. Subitamente, uma nuvem
de chumbo eclipsou o luar e dela, descendo em vertical,
apresentou-se um vulto paramentado de estola e casula.
A mitra dourada equilibrada sobre o crânio de pelo ralo, o
báculo do poder episcopal na mão esquerda. Felício sentiu
gelar o sangue.
A lua voltou a aparecer. À luz dos seus raios, Felício
pode enxergar nitidamente as faces descarnadas e os
ossos podres de Dom Francesco Maggio. O espectro fez um
sinal em sua direção com a mão direita, e ordenou-lhe com
uma voz rouquenha e gutural, que parecia vir dos abissais
do inferno, que devolvesse o anel episcopal. Felício, em
pânico, quis pedir socorro, mas dentro daquele sórdido
pesadelo, o grito agrilhoado na masmorra profunda das
suas entranhas não lograva se libertar.
“Devolva-me o meu anel, ó excomungado!” — repetiu
o defunto ressurrecto por algum desígnio sobrenatural.
Felício, tomado pelo terror, deixou cair sobre o
passeio coberto de limo o lenço no qual envolvera o anel
surrupiado ao morto. Instantânea e providencialmente,
a poderosa energia selenita dos raios que banhavam a
frieza mórbida das lápides enfileiradas fez com que suas
pernas finalmente recobrassem os movimentos e, mesmo
sem uma ordem clara do seu cérebro, o levassem para
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PROFANADORES
Chico Pascoal
bem longe dali.
Foi assim, desta maneira insólita, que Felício perdeu
a capacidade da fala.
No dia seguinte, o povoado sempre tão tranquilo e
sem grandes novidades, acordou com um boato que,
verificou-se depois, tinha algum fundamento. Marcelino
Nogueira, o Sete Palmos, que há anos desempenhava
a função de coveiro do povoado, capinava um canto do
campo santo quando descobriu violada a última morada
do venerável bispo Dom Francesco Maggio, que, embora
exercesse seu apostolado na diocese de uma cidade maior,
manifestara em testamento o desejo de ser enterrado em
sua natal Oiticica.
Uma comissão composta de autoridades
locais,
entre elas o vigário Ariosto Petrônio, o boticário Pompeu
Lobato e dona Maricota Lemes, diretora do Grupo Escolar
Belizário de Souza, se incumbiu de investigar o estranho
caso. Só a ela foi permitida o acesso à bizarra cena do
crime. A exceção era Marcelino Sete Palmos, a quem coube
a ingrata função de botar as mãos na massa esfarelada e
inanimada, de revistar o esquife.
Em princípio, certificou-se que nada de valor havia
sido subtraído do túmulo. Os investigadores viram-se
empacados, todavia, na hipótese da profanação como
parte de um ritual de magia negra, apresentada pelo padre
que, quando jovem, tivera a oportunidade de estudar
casos desta natureza na Universidade do Vaticano.
Foi Marcelino quem percebeu que, a despeito de
haver falecido há quinze dias, Don Francesco não exalava
o odor nauseabundo dos cadáveres apodrecidos. Era um
defunto fresco.
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PROFANADORES
Chico Pascoal
“Era um homem santo” — buscou uma explicação de
cunho místico o padre Ariosto — “digno de beatificação”.
“Parece até que Dom Francesco
observou dona Maricota – “E engordou”.
remoçou...”
—
Com o olho clínico de quem convivia há muito tempo
com os convocados a descer à mansão dos mortos,
Marcelino Sete Palmos ouvia com atenção as conjecturas
e suposições, enquanto analisava o de cujus. Quando a
questão voltou à estaca zero do impasse, pediu licença
para dar a sua modesta opinião:
“Desculpem-me a intromissão, mas, olhando bem,
este corpo aí não é o do nosso saudoso Dom Francesco.”.
Houve imediatamente, como era de se esperar, um
reboliço geral. Os membros da comissão se entreolharam
confusos.
“Marcelino!” — ralhou o austero boticário Lobato —
“Como se atreve a dizer uma bobagem dessas, homem?”.
“Digo e provo, seu Lobato!” — agachou-se junto ao
corpo o coveiro — “Olhem!”.
Levantando a mitra episcopal e deixando a descoberto
a cabeça do morto, o coveiro tocou-lhe de leve a testa:
“Dom Francesco era calvo, não era?”.
Todos assentiram que sim, concordando, pois com
o prelado haviam convivido muitas décadas. Alguns até
tinham sido batizados e casados por ele.
“E esta cicatriz aqui, que vai do pescoço à base da
orelha direita?”.
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PROFANADORES
Chico Pascoal
“Fui eu quem saturou o ferimento” — adiantou-se
Lobato.
“Então só pode ser o...” — tapou a boca, horrorizada,
dona Marieta.
“Ele mesmo!” — ergueu-se triunfante Marcelino Sete
Palmos. — “Esse corpo aí, minha gente, é do Jeremias dos
porcos!”.
Para que não se acirrasse ainda mais confusão, em
consenso, a comissão resolveu manter tudo em segredo.
Que se enterrasse ali aquela história. Para todos os efeitos,
era Dom Francesco quem repousava naquele jazigo de
mármore com inscrições em latim.
O padre Ariosto, convicto de que haviam tomado a
melhor decisão, convocou todos a uma prece e, no papel
que lhe cabia, encomendou a Deus aquela pobre alma.
Que Jeremias ali permanecesse, até o dia do Juízo, quando
todos haveriam de prestar contas dos seus atos.
Quanto ao Felício, dizem, só voltou a falar novamente
duas horas antes de falecer, quando finalmente confessou
sua culpa. Até aquele dia, porém, tinha sido visto sempre
a vagar aparvalhado pelas ruas estreitas de Oiticica, sem
conseguir se livrar dos passos ritmados pela batida dura
do cajado que o seguiam por onde quer que fosse, sem
lhe dar trégua, ou um instante sequer de paz.
Sumário
27
PROFANADORES
Chico Pascoal
CHICO PASCOAL é escritor cearense radicado em São
Paulo, com contos e poemas publicados sites e revistas
literárias tais como Veropoema, Bestiário, Portal
Literal, Veredas (Brasil), Minguante e Letrário
(Portugal), Navona Editorial (Espanha) . Participou
das seguintes antologias: Contos Imediatos (Ficção
Científica da Editora Terracota, 2009), Cursed City,
História Fantástica do Brasil – Inconfidência, Saci
e os Mestre do Terror, Sexo Livros e Rock in Roll,
Demônios VII – Avareza (Editora Estronho), FC do B –
Ficção Cientifica do Brasil – Panorama 2011 (Editora
Tarja) , Literatura Futebol Clube (Editora Multifoco,
2012), H2Horas (Cronópios/Dulcinéia Catadora -2010)
Autor de literatura minimalista, foi premiado em diversos
concursos de minicontos, nanocontos e poesia haicai.
Leitor apaixonado, tem sempre à mão um livro; seja de
autor nacional ou estrangeiro. Que a literatura
Escreve no blogue: http://microrelatosdocheeko.blogspot.
com
Sumário
28
ANÁTEMA
Rafael Peres
ANÁTEMA
Rafael Peres
Escreve com teu sangue e verás que sangue é espírito.
Nietzsche
N
unca soube de alguém que tenha vivido uma
experiência igual ou, ao menos, semelhante a
esta. É quase certo que vocês, leitores, jamais passaram
por uma situação tão odiosa e intrigante quanto a minha.
Vou descrevê-la para homenagear aqueles que mantêm
opiniões precipitadas e céticas perante a palavra. Já posso
até ouvir os rumores de críticos e leigos ao confrontarem
tal narrativa.
Entes incrédulos...
Imaginem, pois, a seguinte situação: imaginem dividir
um espaço restrito com seu pior inimigo. Imaginem tê-lo
Sumário
29
ANÁTEMA
Rafael Peres
tão próximo de si a ponto de ouvir seus pensamentos e
angústias. Imaginem suportar suas imprecações e ameaças
sem poder revidar. Imaginem o quão degradante é para o
homem não poder seguir o caminho das sombras.... Acho
que peço demais – o bom senso de vocês os impedem de
imaginar algo semelhante. O claustro é um lugar infernal,
sobretudo se nele estiver aquele que você mais odeia.
Tudo começou na escuridão imposta por uma venda.
Quando alguém a tirou, não pude distinguir o que estava
ao meu redor. Minha cabeça girava e doía. Aos poucos, as
manchas colidiram-se. Imagens distintas aproximavamse. Estava amarrado numa cadeira dentro dum sótão
minúsculo. A luz de um abajur revelou-me dois estrados,
uma escrivaninha e alguns cobertores. Outros objetos
foram aparecendo: livros numa mesa de cabeceira, um
cantil com água, folhas avulsas e outros fragmentos
esparramados no chão. Mais tarde, vi que eram bolas de
papel.
Não havia nenhuma janela. O ar morno e pesado era
quase irrespirável. Esse incômodo talvez se acentuasse
devido ao meu esforço em desatar os nós que me prendiam
à cadeira. Lutei esbaforido, mas, no fim, acabei caindo,
imóvel. Na posição que estava, divisei um vulto perto da
porta. Seria o homem que havia tirado minha venda? A luz
do abajur não alcançava as sombras que o consumiam. Ele
riu ironicamente. Seus gestos mexeram-se nas trevas.
Ouvi um, dois, três, quatro passos...
Hermes Ávila, meu pior inimigo, revelava-se diante
de mim! Julguei estar delirando... Cerrei meus olhos
fortemente. Abri-os... Realmente, era o maldito escritor!
“Não pense que foi meu desígnio trazê-lo para este
lugar”, disse ele, adivinhando-me. Suas palavras eram
Sumário
30
ANÁTEMA
Rafael Peres
repugnantes! Eu me contorcia, amarrado à cadeira, e
vociferava várias injúrias.
Ávila levantou-me. Disse que também fora raptado
e trazido para cá. “Mentira!”, gritei. No entanto, juroume por sua honra que dizia a verdade. Segundo ele, tinha
sido sequestrado muito antes que eu. Assim que me
reconheceu, quis matar-me. Contudo, debaixo da porta,
apareceram palavras que coibiram sua fúria. Hermes
pegou um envelope sobre a escrivaninha e tirou um papel
com uma ameaça datilografada. Dizia a mensagem que,
se um de nós atentássemos contra a vida do outro, ambos
seríamos mortos por eles...
Eu era incapaz de acreditar nessa história, afinal,
seu porta-voz era meu pior inimigo... mas havia algo que
me inculcava. Se Hermes era o mentor do meu sequestro,
por que eu continuava vivo? Estremeci... Será que estava
diante dum sádico? Para minha surpresa, ele desatava
os nós que me prendiam. Pude mover-me livremente,
mas estava fraco. Ávila jamais se importaria com isso
– atingiu-me com um potente soco! Tentei revidar, mas
meus membros não se moviam. Acabei desmaiando...
Quando acordei, vi-o entregue
dispersos sobre a escrivaninha.
aos
manuscritos
— Como da outra vez, não te matei por causa da
ameaça daquele papel. Confesso que fiquei mais tentado
que antes, mas ainda preciso viver para concluir este
conto – disse ele sem desviar seus olhos da escritura.
Não respondi. Arranhei meu ódio em silêncio. Ainda
estava fraco. Se houvesse outro confronto, ele não
conseguiria conter sua ânsia de matar. Recostei-me com
dificuldade na parede. Lá estava ele, o detestável Ávila!
Sumário
31
ANÁTEMA
Rafael Peres
E pensar que ele tinha sido meu melhor amigo... Sim,
acredite: Hermes fora meu amigo! Quando jovens, era
ele que avaliava meus textos ingênuos. Sua maturidade
literária surgiu precocemente, deixando-me muito aquém
de sua verve intelectual. Hermes nunca me disse, mas
achava minha literatura horrível. No entanto, sempre teve
paciência e filantropia – sugeria modificações, formulava
elogios pitorescos e corrigia os desníveis da linguagem.
Seus textos, ao contrário, tinham um estilo breve e
conciso, sem pedantismos. Ele sabia aliar perfeitamente o
simples e o solene. No começo, eu o admirava. Era meu
amigo um notável escritor! No entanto, com o tempo,
apesar de nunca ter tido coragem de admitir isso, houve
uma ponta de inveja. Era como se eu estivesse manchado
pela culpa de ter esse sentimento dentro de mim...
Ávila era o orador da turma e eu, seu seguidor mais
próximo. A vassalagem dava-me prestígio. Os mestres
elogiavam-me por causa da exemplar companhia. Eu
desfrutava os púlpitos junto com meu amigo. Entretanto,
mais pontas surgiram. A inveja doía muito! Pensei em
contar tudo, dimensionar minha angústia. Por duas ou
três vezes, estive perto dessa atitude. Porém, temia
que Hermes não me compreendesse. Minha situação era
alarmante. Invejava-o cada vez mais e, cada vez mais,
tinha vergonha disso.
Minha mancha tornou-se um embrião volátil e
pegajoso. A criatura desenvolvia-se rapidamente... seus
batimentos cardíacos já se confundiam com os meus. Nem
mesmo um estetoscópio distinguiria a variante. Ninguém
os escutava, somente eu. Tentei isolar a inflexão da
massa disforme. Reitero que tinha vergonha disso. Porém,
descobri que havia cometido um terrível engano. Meu
propósito de extinguir o som amaldiçoado acelerou seu
Sumário
32
ANÁTEMA
Rafael Peres
compasso! Não consegui resistir. Tornei-me um autômato
com dois corações inexistentes...
O vigia noturno ressonava em seu posto, enquanto
as rosas de Ávila eram pisoteadas. Um murmúrio cego
evadiu-se. Ventos alíseos profanaram a noite, rasgando
sua veste de luto. Um dos homens rosnou uma praga. O
frio inquietava-o. Logo que a porta cedeu, fez-se uma luz
no segundo andar. Uma lanterna desferiu seu lume na
sala vazia. Do térreo percebia-se o atrito da esferográfica
com a alvura do papel. Hesitei em acompanhar os outros
dois. Estava trêmulo e meus olhos ardiam. Os comparsas
subiram.
Gritos misturaram-se ao lamento frio da noite.
Quando ergui minha cabeça, vi Hermes sendo carregado
pelos cúmplices. Ele estava desacordado, porém um brilho
opaco teimava em seus olhos. Assim que desceram as
escadas, notei que o escritor havia despertado. Quando
vislumbrou minha presença não houve nenhuma contração
em seu rosto. No entanto, oculto na face estática, fluía
um ódio convulsivo! Ávila não tentou libertar-se das
mãos opressoras. Deixou-se ser levado... Precavi meus
comparsas de cuidados e orientações. Após a surra,
deveriam deixá-lo num local remoto, sem condições de
pedir socorro.
Dias
febris
vieram.
Queria
adormecer
meu
arrependimento, afugentá-lo da consciência. Todos
estavam apreensivos com o desaparecimento de Ávila. A
semana findara e nenhum vestígio do escritor. Indagações
atingiram-me como setas. Todos estavam preocupados.
Minha ligação com Hermes trazia-me incômodos. Nem eu
sabia onde meus cúmplices o deixaram... Desconhecia até
mesmo o verdadeiro motivo que norteara minha perfídia.
Durante as horas mais escuras, ficava à beira do sono,
Sumário
33
ANÁTEMA
Rafael Peres
execrando minha inveja. Ao amanhecer, não havia nenhum
ímpeto que me pusesse fora do leito.
No entanto, boas novas me reanimaram – a polícia
encontrara Ávila amarrado dentro duma casa abandonada.
Disseram-me que fora uma denúncia anônima... Senti um
misto de alívio e repulsa. Meu amigo estava livre, mas seria
eu quem cumpriria a sentença... Porém, fiquei atônito ao
saber que Hermes dissera “homens encapuzados” em seu
depoimento. Pensei que houvesse amizade nessa atitude.
Era a oportunidade de me justificar. Finalmente, revelaria
minha inveja. Contudo, o escritor deixou de ir às aulas.
Não o via mais nos lugares que frequentávamos, nem
mesmo em sua casa. Eu insistia em procurá-lo, mas Ávila
fugia...
Certa vez, porém, consegui cercá-lo. “Nunca mais
quero vê-lo”, foram suas únicas palavras. Ele não permitiu
que eu explicasse meus motivos secretos. Amargo
(mas duplamente incerto), Hermes afastou-se de mim...
Alcancei-o, cheguei mesmo a tocá-lo. Desci à comiseração,
inflando a retórica das desculpas. Também acho que foi
um ato leviano, desesperado. Nego generalizar que, de
certo modo, ingenuidade e ódio são parecidos. Não é o
teor o similar, nem o sentido, mas o índice mútuo que os
rege. O que principia o ódio é a ingenuidade, flagrada em
determinadas atitudes, e o que principia a ingenuidade é
o ódio, pois o que lhe sucede é o terror inábil e cônscio da
angústia.
Não preciso reiterar com minúcias que a insistência
pelo perdão afrontava o escritor. Seu olhar sanguíneo já
evidenciava isso. Não suportando minha presença, Ávila
empurrou-me, lançando xingamentos e ameaças. Já não
havia amizade, só o resquício dum fulcro intróito. Nossas
distâncias recuaram ainda mais. Longe do escritor, nem
Sumário
34
ANÁTEMA
Rafael Peres
percebi que seu revide estava ao meu lado. Ávila roubou
a única mulher que amei, mas não a amou – efetuou sua
vingança, alinhavada nas falsas carícias. Sua maldade
premeditada desvaneceu meu arrependimento. Hermes
tornou-se meu pior inimigo...
Aos poucos, as imagens do passado dissiparam-se...
Arrastei-me para o estrado vazio. Ávila continuava
entretido com seu manuscrito. Sua sombra projetava-se
em mim. Era um núcleo negro num círculo de luz, uma
célula difusa. Tive a impressão que ele vacilava. A inércia
de sua esferográfica alongava-se, reticente. Ele esfregava
suas mãos, soltando elipses no ar. Impaciente, esmurrou
a escrivaninha. No mesmo instante, virou-se para trás.
Fingi que dormia...
Abri os olhos. Por enquanto, estava seguro. Hermes
ressonava no outro estrado. Seu comportamento revelava
que eu não era o único alvo de seu ódio. Fiquei curioso
sobre o assunto tratado em sua narrativa. Era estranho.
Ele sempre mostrara desenvoltura em seus textos. Não
acreditava que era isso... Será que as musas abandonaram
Ávila?
Sentei-me no estrado. Estava inquieto. A exaustão
havia passado. A luz do abajur irradiava centelhas em
meus olhos. Pela primeira vez, pensei em sede, fome e
tempo. Não tive fome, nem tempo, mas tive sede. Nenhum
dos raptores trouxera comida. Talvez houvesse alguma
provisão em meio ao lusco-fusco. Era irrelevante, eu não
queria comer. Segundos, minutos, horas – desconhecia
se era noite ou dia, ou se havia um relógio no sótão.
Entretanto, a ansiedade secava-me a boca, deixando-a
árida, insuportável. Bebi toda a água que restava no cantil.
Sumário
35
ANÁTEMA
Rafael Peres
Era minha chance de eliminar Hermes. Eu me
aproveitaria de sua inconsciência para sufocá-lo até a
morte. Soturno, caminhei em sua direção. Eram passos
custosos, medidos. Nenhum ruído poderia despertá-lo.
Ajoelhei-me diante de seu corpo... No entanto, a ameaça
datilografada impediu-me. Suas palavras agudas coibiram
meu ódio. Sentei na cadeira do escritor e respirei fundo.
Ávila mexeu-se. Sobreveio um silêncio opressor...
Pensei que Hermes tinha acordado. Depois de
algum tempo, notei que ele ainda dormia. Se o escritor
me flagrasse sentado em sua cadeira, a mensagem
datilografada não o impediria de me matar. Sobre a
escrivaninha figurava sua escritura. A curiosidade era
irresistível. Não pude suportar. Espiei suas palavras...
Sua narrativa não tinha um título. Iniciava-se da
seguinte forma: “Os caminhos alargam-se quando conheço
a mim mesmo, pois conhecendo a mim mesmo, posso
entender o outro e compartilhar com ele de uma mesma
essência”. O final do conto também se resumia nessas três
linhas. Isso porque não houve nenhuma história, nenhuma
colocação além desse fragmento. Uma folha com inúmeros
círculos mostrava a escassez de ideias. Foi difícil acreditar
que meu inimigo era incapaz de escrever uma história.
Na mesa de cabeceira, encontrei uma Bíblia, um livro
de poemas byronianos e alguns tratados filosóficos de
Nietzsche. Sobre a escrivaninha havia uma série de folhas
com citações transcritas desses exemplares. Entretanto,
com ressalva das passagens bíblicas, não encontrei
nenhum elo entre a frase de Ávila e os trechos copiados.
As palavras do escritor eram incompreensíveis. Eu não via
nenhum caminho abrir-se para um sujeito que nunca quis
ouvir minhas justificativas.
Sumário
36
ANÁTEMA
Rafael Peres
Hermes
revirou-se...
Dissolvi
minha
reflexão.
Qualquer ruído deixava-me angustiado. A iminência de
alguma perfídia amedrontava-me. Eu ficava cada vez
mais nervoso, como se estivesse sendo comprimido
numa esfera viscosa... De algum modo, escaparia desse
claustro! Vasculhei todas as gavetas da escrivaninha.
Talvez encontrasse algo para me ajudar na fuga.
Um objeto brilhava diante do abajur – era um punhal
de luz fria! Ávila iria me matar com essa lâmina... Eu
regozijava por frustrar seu intento. De posse dessa arma,
libertar-me-ia, derramando o sangue de meu pior inimigo!
Hipocrisia, insegurança, angústia... Minha vida lúbrica
já não possuía nenhum valor. Entretanto, não permitiria
que meus raptores a ceifassem. Eu mesmo a extinguiria!
Nunca, ideias tão insanas assombraram minha consciência!
Meu desejo imediato era matar Hermes e, em seguida, me
suicidar...
No entanto, decidi poupá-lo até que acordasse. Antes
de morrer, Ávila teria que ver meus olhos queimando de
ódio! Rastejei até meu estrado. Estava ansioso, quase
delirava. Hermes contorcia-se. Algum pesadelo afligia-o
em sua zona escura. Passei a observá-lo, pensativo...
Tínhamos somente uma característica em comum: a
vingança. A vingança em nossos modos enrustidos, a
vingança ferina, a vingança quase telepática... A vingança!
Éramos homens especulares, ambos amaldiçoados.
Anátemas encarnados num ódio recíproco. Nosso Deus
não se manifestava, permanecia sempre incógnito. Por
mais que ofertássemos a palavra, Ele não aparecia.
Sabíamos que nossa divindade jamais se revelaria. No
entanto, mesmo não podendo distingui-Lo, nossa busca
aproximavá-nos Dele. Ávila já não conseguia aproximarse da divindade. Estávamos com as mesmas angústias –
Sumário
37
ANÁTEMA
Rafael Peres
não dominávamos a palavra. A vingança não era o único
desejo que tínhamos em comum...
Hermes despertou. Minhas mãos estavam úmidas e
molhavam a lâmina oculta. Fechei os olhos. Novamente,
fingi que dormia. Ele se acomodou em sua cadeira
e começou a redigir seu texto. Sua caneta deslizava
mansamente pela página; já não havia longos intervalos.
O escritor restabelecera seu pacto com a palavra. Erguime, segurando o punhal, e caminhei em sua direção. Ele
virou-se, espantado. Tarde demais... Furioso, cravei meu
ódio em seu peito!
Ávila
livre...
tombou,
enrijecido.
Finalmente,
eu
estava
Ofegante, caí sobre a cadeira do morto. Minha
consciência
titubeava,
ofuscada.
Súbitos
borrões
desfiavam a luz. Era difícil diluir as alternâncias. No
entanto, não desmaiaria por causa da fadiga. Somente
o suicídio fecharia meus olhos. Resoluto, lutei contra a
inconsciência. De quando em quando, faíscas acendiamse mais duradouras e compridas. Por fim, minha razão
despontou, luminosa. Pena que não há luz etérea sem um
vale sombrio!
Prestes a cortar minha jugular, senti um líquido
viscoso escorrendo em meu peito... A luz do abajur incidiu
em meus dedos molhados de sangue! O brilho prateado da
lâmina estava coberto por uma mancha rubra e sinuosa...
Minha fraqueza era o prenúncio da morte! Meus olhos
procuravam Hermes. Ele não jazia no vão onde caíra!
A escrivaninha, os manuscritos, os livros... Aos poucos,
tudo se camuflava numa cortina de névoa. Ainda pude
ver a porta do sótão abrir-se e dela surgir Ávila, rodeado
por homens estranhos... O escritor inclinou-se e disse
Sumário
38
ANÁTEMA
Rafael Peres
pausadamente:
— Enfim, tua carne se fez verbo e habitou entre
nós...
Rafael Peres nasceu em Patos de Minas, Minas Gerais, em
1986. É graduado em Letras. Autor de artigos publicados
nas revistas Crátilo e Perquirere, periódicos disponíveis
no site www.unipam.edu.br. Publicou os contos A Peste:
porcos e corpos, pela editora Valer/Sesc, e Hell, na
antologia Caminhos do medo - volume II, pela editora
Andross. Mantêm o blog voodoscorvos.blogspot.com
Sumário
39
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
“É verdade que todos são iguais perante Deus, tanto um como o
outro são amados pelo Senhor”.
(Gl 3:27,18)
Itália.
Cantos gregorianos preenchem a afinada acústica
das paredes de pedra, indo perder-se na abóboda ornada
com pinturas de anjos e santos. Os incensos e velas dão
ao ar o respeito e serenidade da oração que os fiéis estão
imersos, no improperium entre a comunhão e a reflexão.
O jovem padre Dellaveno medita, em seu altar, sob o calor
das velas, enquanto pede a Deus salvação para as almas
aflitas no mundo. Mas, no topo desta lista de pedidos por
paz e redenção, está ele.
Então, de repente, a placidez dos cantos católicos é
Sumário
40
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
riscada pelo retumbar estridente de pratos metálicos. Um,
dois, três...Os fiéis começam a erguer suas cabeças e mirar
na direção do barulho incomum. Uma musiquinha de fundo
se sobressai, com nuances circenses, hipnotizantes. Uma
primeira carruagem passa em frente às portas da igreja, e
seu esplendor torce ainda mais pescoços. Algumas até se
levantam, para ver se não imaginavam coisas.
O padre Dellaveno fica atônito no seu palanque,
assistindo à caravana passar, a música e as rodas de
madeiras a esmagar pedras roubam toda a melodia serena
dos monges, além da atenção dos fiéis.
E o burburinho logo começa. Pessoas querem ver
melhor, enquanto outras resmungam, indignadas, por
tal perturbação. Outras, mais efusivas, reclamam de
uma solução para o padre, que logo se vê na obrigação
de ir cerrar as portas. Isso atiça ainda mais o falatório,
pois crianças presentes ficam curiosíssimas para assistir
à caravana bizarra passar, querendo arrastar seus pais,
que, atemorizados, os repreendem aos murmúrios. Logo,
a capela de pedra mais parece um ninho de abelhas, com
o zumzumzum amplificado e ensurdecedor. Enquanto puxa
as duas portas de madeira, o jovem Dellaveno vê as cores,
verde e violeta, que cobrem a lona da diligência, em listras
sólidas. O dourado da carruagem principal lhe atiça os
pelos, assim como o vermelho das letras caprichosamente
desenhadas, que anunciam o nome do espetáculo, dentro
da gargalhada de um palhaço:
“Paradise Circus”
— Que insulto! Ouve muitos resmungando as suas
costas.
Anões negros em suntuosos trajes persas passam,
Sumário
41
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
chamando a atenção de sua anarquia à população, que já
sai à rua, interessada. Um deles sorri para Dellaveno, e
seus dentes podres lhe eriça a nuca, fazendo-o terminar
de cerrar as portas com as mãos suadas.
O silêncio novamente se faz. Os fiéis olham o rosto
pálido do padre, e ele tenta aprumar-se para transparecer
confiança, no entanto, as crianças querem saber, sem
pudor, o que ele vira. Isso o deixa nervoso e esquivo e
enquanto foge de tais perguntas, nota apenas uma pessoa
que não está agitada, ou com o rosto voltado para si. De
cabelos louros, senta-se serenamente numa das primeiras
fileiras, como se ainda imersa em oração, diante do caos.
Enquanto retorna, o padre tem de pedir calma
e atenção à missa. No ponto mais alto, porém, ele
novamente olha para aquela fileira, onde não repara
outrora na moça...
Mas seu acento está vazio.
O circo não se instalou num lugar de destaque. Tal
um animal peçonhento, deixou seu rastro pela luz, mas
foi na escuridão que encontrou abrigo. Pousou num
dos subúrbios, próximo à costa, na zona de armazéns
abandonados e não mais fez propagandas, como se não
esperasse seu publico através delas. Tais os espetáculos
de antigamente, a simples curiosidade inerente do ser
humano os atrairia por conta própria a seu encontro.
Por conta, e risco...Pensou Dellaveno, enquanto se
remexia na cama, tentando esquecer as cores fortes da
lona gravados em sua mente.
Assim, na intimidade do sono, ninguém diria que o
jovem seguia o oficio eclesiástico. Rapaz bem delineado, de
semblante agradável e que vivia tirando suspiros das fiéis
Sumário
42
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
mais novas, engordando o seu rebanho durante as missas.
Ele achava graça, mas respeitava tal comportamento. Era
a juventude e ele já esteve no meio dessa erupção de
hormônios descontrolados. Agradecia por ter chegado até
ali imaculado.
Imaculado?
Assustou-se com a voz, mas não a ponto de despertar.
Acreditou, em seu estado de vigília, que tratava-se de um
fruto da sua inconsciência, e se vira para o lado, tentando
dormir. Porém, ao invés de tocar os lençóis, Dellaveno
sente entre seus dedos fios de cabelo compridos.
Percorre-os e toca um braço, que logo se transforma
numa curva maliciosa, que termina numa coxa macia.
Seus dedos lentamente descem para o delta da moça sem
rosto, guiados por uma vontade primitiva. Quando sente a
respiração dela mais afoita, nota que algo não está certo
naquele sonho. Então seus pelos se encrespam e sente
sua própria ereção, ao som do sino anunciando a meianoite.
Suado e excitado, desperta, sozinho na cama.
É manhã de sol, tão agradável e serena que Dellaveno
nem se lembra mais da incômoda caravana circense do
dia anterior. Cercado por suas fiéis, ele também usa a
conversa para esquecer o estranho e constrangedor
sonho. Mas uma delas toca no assunto novamente.
— Um circo de horrores, por Dio! Uma imoralidade!
— O senhor não pretende fazer nada, padre?
Dellaveno surpreende-se com a indagação. A verdade
Sumário
43
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
é que ele se arrepia só com a ideia de um circo de horrores,
e o motivo não tem a ver com medos infantis...mas não
pode dizer isso a suas fiéis. Ele deve ser o homem que
enfrentará a situação, sem deixar aquela gota de suor
brotada do nervosismo por causa de bizarrices de um
picadeiro lhe denunciar.
Contudo, antes que possa dizer algo sua perspectiva
é sobrepujada pela visão daquela cabeleira loura a sair da
capela, tão serena que ainda parece estar orando. Antes
de ganhar a rua, ela desvia seu rosto brevemente para ele,
e seus olhos escuros lhe lembram alguém, assim como os
fios claros fazem-no sentir a brisa marítima de alguma
praia californiana. Curioso, pois sua pele é alva como a de
um chumaço de algodão.
Ele lhe desejou bom dia e espera ouvir sua voz,
mas ela apenas acena de volta e logo desaparece por
uma esquina. Reconhece a voz de suas fiéis de longe,
tentando lhe chamar a atenção, mas ela já se dispersou
irremediavelmente, enquanto se lembra do sonho que
teve. Arrepende-se de tais pensamentos e pede desculpas,
dizendo que tem trabalho a fazer na sacristia.
Na noite seguinte, pouco antes da meia-noite,
Dellaveno novamente se remexe na cama, agitado com
o som circense que invade seus pensamentos. Não há
possibilidade de estar ouvindo a balbúrdia do Paradise
Circus, pois o mesmo se instalou muito longe dali. Mas os
risos e a folia medonha de criaturas por trás de grades
e expostos em sombrias salas decoradas deslizam pelas
margens de sua consciência entorpecida, procurando uma
brecha fatal para entrar de vez.
Em fragmentos de imagens desconexas, ele vê, na
escuridão profunda do interior dos corredores, olhos
Sumário
44
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
brilhantes através de uma jaula. Uma mão cheia de garras
e escamosa como um jacaré escapa pelas barras de ferro,
tentando destruí-las em vão. O susto o faz recuar e ele
ouve um som metálico no chão. Olha através da fresta de
uma porta e vê uma mulher pela metade sobre uma mesa
redonda, apenas do tamanho para comportar seu corpo
até o quadril. Tem uma xícara de chá nas mãos e olha
debilmente para baixo, onde a colher com a qual mexia
a bebida jaz, inalcançável. Olha para Dellaveno com uma
expressão boba e pergunta:
— E agora?
Ele tropeça, querendo sair dali e cai em sua própria
cama, seguro pelos braços da mesma mulher misteriosa.
Não vê seu rosto, é impossível, coberto por todos
aqueles fios louros, mas sente seus lábios roçando nos
seus, sem deixar, porém, que ele aprofunde o beijo. Logo
lhe oferece seu corpo perfeito, e ele, sem conseguir ir
contra seus desejos primitivos, a possui.
O relógio da catedral novamente bate o sino da
meia-noite, fechando o dia. A zero hora, o jovem padre
desperta entre gemidos ofegantes que transformam-se
rapidamente num grito estrangulado. Corre a acender
o abajur, mas termina por cair no chão: suas calças de
pijama estão arriadas, onde o meio de suas pernas está
completamente lambuzado do gozo inconsciente. Se veste
rapidamente, como se houvesse uma plateia a assistir o
patético espetáculo, abafando um grito maior ao esconder
o rosto entre as mãos tremulas.
— Oh, Padreterno!
Sumário
45
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
E termina a noite ajoelhado em frente à cama,
pedindo redenção para sua alma.
No terceiro dia, os fiéis estranharam a palidez e
olheiras fundas do padre Dellaveno. Seu semblante sombrio
combina com as palavras de chumbo que pronuncia
em seu sermão, contra os pecados da imoralidade e da
afronta a Deus. Algumas pessoas ficam constrangidas,
como se o jovem pároco estivesse lhes espreitando os
pecados mais sórdidos por baixo das saias recatadas ou
ternos bem passados. Cada um deles consegue ver a si
mesmo na ode católica e desafiadora e até se olham, de
esguelha, pensando se o padre não teria descoberto as
intenções desejadas ou concretizadas de visitarem o circo
dos horrores para dar uma espiadinha.
Seria um dia
silenciosamente.
de
muita
penitência
a
pagar,
Apenas uma pessoa continua com a mesma expressão
inflexível. E Dellaveno a olha, fulminante, como se ela
tivesse culpa por infiltrar-se em seus sonhos imorais. No
momento em que as pessoas deixam os cantos gregorianos
preencherem os pensamentos culpados, ela o olha com
seus incomuns olhos escuros. Eles têm uma mensagem
subjetiva, e parece ao rapaz, um espelho para seu próprio
ato constrangedor. Então, como se uma unha comprida
tivesse riscado a superfície de um vidro, o padre desperta
para uma lembrança longínqua e desagradável.
E como se concluído o intento perturbador, a moça
novamente abaixa a cabeça e ora.
Sumário
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O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
Sozinho, após a celebração, Dellaveno usa o telefone
da paróquia para uma ligação a sua antiga universidade,
na cidade de Veneza, na tentativa de localizar seus amigos
daquela época. O vermezinho que o incomodava tem a
ver com eles...Descobrira que um voltara para os Estados
Unidos e o outro residia numa cidade próxima, que ele
decidiu visitar, para fugir ainda dos apelos dos fiéis para ir
ao Paradise Circus, e afastar aquela imoralidade deles...ou
a tentação por ela.
Ao final da tarde, Alphonso Palerno, o velho dono da
mercearia próxima à capela de Dellaveno, enxuga copos,
enquanto olha uma foto muito antiga, emoldurada e
deixada entre as teias de aranha e garrafas empoeiradas
de vinho barato.
Observa o contorno estóico do riso do palhaço central
da foto, quando leva um susto com a voz do padre a suas
costas.
— Conhaque, Alphonso, por favor.
O velho estranha o pedido. Dellaveno, se não fosse
padre, já seria um rapaz bem ajuizado. Mas agora ele
parece como se corrido da polícia, afoito e vermelho.
Serve o trago a ele.
— Tudo bem, padre?
Ele nada diz. Dentro de sua mente transcorrem
pensamentos melindrosos. Acabara de voltar da cidade
em que seu amigo de república residia e descobre que
sua nova morada já não é mais com os pais, mas sim no
cemitério da cidade. Um incêndio terrível no escritório onde
trabalhava. Sua mãe, aos prantos, só conseguia lembrar-
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47
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
se de como os olhos dele derreteram, simplesmente
derreteram no fogo!
Ela se sentiu no direito de confortá-lo, uma vez que
ele fora muito bom para os dois amigos de quarto, ao
colocar juízo na cabeça deles naqueles tempos difíceis e
tentadores da faculdade.
— Você foi uma boa influência para aquelas duas
almas.
— Brent já sabe? – Brent era o outro rapaz com quem
dividia o quarto e que voltara para a Califórnia. Isso gerou
um novo surto de pranto na mãe de Tiago, que lembrouse quão trágico fora também o destino deste rapaz.
— Dizem que ficou preso pelos cabelos nas pedras,
durante um mergulho. Nada o fazia se soltar até que seus
pulmões explodiram!
E chorou, chorou e chorou...
A bebida desceu rasgando. Dellaveno tentava
minimizar o choque com a notícia da morte dos dois
amigos, mas não há como esquecer. Não apenas disso,
mas do turbilhão que viera junto, das lembranças nefastas
que invadiram sua boa casa de fé com um bafo infernal
pela soleira da porta.
Você fora uma boa influência!
Ela não podia estar mais enganada.
Tentando se acalmar, o padre olha na mesma direção
que o velho Alphonso e sua nuca se eriça. E não estava
vendo o Paradise Circus tal como ele passara em sua rua,
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48
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
dias antes?
— O circo do Barthold Laszlo já é velho conhecido da
estrada, dizem que é assombrado. – murmurou o dono da
venda, ao perceber o interesse do rapaz pela imagem.
Dellaveno fitou a foto com a mesma acidez com que
fitara a moça naquela manhã.
— É apenas um circo de horrores, sádico, que não
devia explorar a deformação das pessoas dessa maneira.
– mas não sabia se acreditava mais em suas palavras. —
De onde é essa foto?
— Estive nos arredores da Romênia quando eles
saíram para assombrar as ruas do mundo. Os romenos
sabem ser violentos quando botam alguma coisa na
cabeça. Só não sei por que eles tinham que vir assombrar
a nossa “bota”.
A foto mostrava a mesma carruagem e uma sorte
de estranhos integrantes, cujo personagem central era
um senhor corpulento e baixinho, de olhos enigmáticos e
ornado de uma cartola esquisita.
Eu era apenas um garoto... Alphonso sussurrou,
mas Dellaveno pouco deu importância. Barthold Laszlo,
era esse o nome que devia procurar e tão logo deu uma
última espiada na foto, esbarrou com a silhueta da moça
loura passando na ponta da rua, longe, em direção ao
sul da cidade. O mesmo caminho que o Paradise Circus
seguira.
— Barthold Laszlo é o dono?
—Sim, mas... – e Alphonso, ainda divagando, voltouse para Delaveno a fim de lhe esclarecer que aquele fora
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O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
um retrato tirado a mais de 60 anos e Laszlo já estava sob
sete palmos de terra há pelo menos metade deste tempo,
mas o padre já havia desaparecido porta afora.
Jovens...
Dellaveno percorre as ruas da cidadela italiana sem ver
mais nada além da cabeleira loura. Ele se recorda do modo
sereno como ela voltou-se para ele, o sol, e o brilho negro
de seus olhos a contrastar com o dourado dos cabelos. E
agora ele entende o que lhe atiçava como um vermezinho:
ambos lhe faziam lembrar de seus amigos da faculdade.
Amigos mortos. Uma recordação que de boa, em poucas
horas tornara-se terrível. E principalmente pelo que trazia
com ela... Perdido nestes pensamentos, surpreendeu-se
em como ofegava, almejando a possibilidade de alcançar
a moça, de olhá-la mais de perto e saber como aquilo era
possível.
Parou. Não, o que estava fazendo, alimentar aquele
sentimento de urgência era como dar vazão ao que andava
acontecendo com ele durante as noites daquela semana.
Respirou fundo e sentiu o odor da maresia. Ao olhar ao
redor, surpreendeu-se com o cenário. O cheiro de madeira
salinada mesclava-se ao de poleiros de aves e um silêncio
palpável. Viu a moça muito longe, mas não o suficiente
para desistir de segui-la. Ela, de alguma maneira, parecia
manter-se à vista justamente para ele saber seu paradeiro.
— Por Dio! – e continua. Porém, logo nota que quanto
mais anda nos corredores de armazéns, mais eles parecem
iguais, como se o fim da rua se juntasse ao começo da
mesma, num labirinto sem fim. Cansado, Dellaveno para,
apoiando-se em uma parede para enxugar o suor. O
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O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
crepúsculo já se adianta e logo anoiteceria.
Foi então que ele viu a tocha iluminando a lona
violeta. Uma tocha incomum, de fogo azul.
Aproxima-se tentando definir qual é o truque ali, mas
assusta-se com o adorno de crânio em meio às chamas
iluminando a entrada do circo. O letreiro tem seu brilho,
mas não é chamativo como imaginou. Grande, Paradise
Circus impunha um temor que o padre pouco sentira na
vida.
A bilheteria, com suas cortinas balouçantes, está tão
vazia quanto a janela de uma casa assombrada.
O som dos passos dela, que ele se acostumou a ouvir
depois do longo percurso em seu encalço, lhe chamou a
atenção para o pátio, entre o piso de pedras. Sua hesitação
deu lugar a um novo par de passadas, como um convite
silencioso a entrar no estranho circo.
Uma vez lá, o padre nada mais ouve que denuncie a
presença da moça. Os sons se tornam gemidos guturais
e estalos secos, que lhe arrepiavam a espinha e lhe
provocam sobressaltos desagradáveis. Mas o corredor do
picadeiro montado está vazio, iluminado apenas pela lua
cheia que vinha nascendo, e pelas tochas geladas.
Quando ia perguntar se havia alguém ali, um som
metálico o arrepiou. É uma bicicletinha que vem em sua
direção e naquela meia luz, mais parecia andar sozinha.
Só muito perto ele entendeu pelo que aquele pequeno
veículo era guiado.
Um boneco de massa. Se parece muito com um, as
formas delgadas e fofas, a máscara que cobria o rosto
a lhe dar uma expressão estática e débil. Ele circulou
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51
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
Dellaveno como uma criança brincalhona, mas o padre
sentia arrepios cada vez que ouvia aquela roda girando e
gemendo. Por fim, desistindo de entender a criaturinha,
ele abriu a boca para a repreender, mas ela disparou na
direção que veio, dobrando um corredor de tendas. Seu
gorrinho vermelho dava a Dellaveno a impressão de que
ele queria ser seguido.
Porém, o espanto foi com a visão que teve em seguida.
Era como se a foto de Alphonso tivesse se materializado
em cores. Seu rosto ficou lívido de espanto, quando uma
risada potente veio surgindo de algum lugar daquela boca
enorme.
—“É verdade que todos são iguais perante Deus,
tanto um como o outro são amados pelo Senhor!!!”
E cantou os capítulos e versículos da qual a frase
do livro de Gálatas fora tirada, abrindo um sorriso ainda
maior dentre a fumaça de um charuto.
Laszlo.
Dellaveno engoliu a seco a emoção forte e
inexplicável que sentiu. A sua frente o velho palhaço se
apresentava, e todas as criaturas abjetas que ele devia
ter por baixo das tendas calaram-se, deixando o anfitrião
com seu convidado.
— Não é verdade, meu caro padre?
Dellaveno engoliu a seco a ironia e o medo.
— Claro... – o homenzinho carrancudo o fez seguir
por dentro de uma lona, cujo corredor ele já conhecia
de seus nefastos sonhos. O suor escorreu, e de repente
ele esperou ouvir o som de garras vindo de uma jaula na
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52
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
escuridão e a mulher pela metade confusa com a colher
no chão.
Mas tudo o que havia era o soturno barulho da brisa
marítima soprando por baixo do piso elevado de madeira.
— Então, meu caro senhor, presumo que não veio
nos prestigiar.
— Senhor Laszlo, não acredito que nada aqui seja
passível de exposições...
— Ah não? Hmmm...e o que me diz do caráter do
ser humano, meu caro, da natureza humana em sua forma
mais abissal?
— Não sei se entendo, senhor...
— Claro que não, senhor Dellaveno, uma vez que
não compreendeu ainda que, em nosso circo, as atrações
não estão dentro da lona...e sim fora.
O
padre
espantou-se
com
Barthold
Laszlo
pronunciando seu nome e ainda mais com essa sentença,
saída da boca cheia de fumaça. Ele riu, deliciando-se com
cada gota do suor nervoso do jovem.
— Veja, minha filha tem ido as suas missas, e aprecia
suas palavras... de castigo e redenção. São inspiradoras!
Ao dizer isso, como se materializada das sombras,
o jovem padre viu a moça loura que perseguiu até ali,
logo atrás do palhaço. Está com o mesmo aspecto sereno.
Porém, de seus olhos um brilho soturno deixa-o com a
mesma sensação de nostalgia e medo. Algo nela não está
certo.
— Qual o seu nome? – ele pergunta, ignorando
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O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
Laszlo. Este deu um sorriso rasgado e respondeu, em
deboche.
— Pobre Amélie, ela não ainda não fala.
E então, Dellaveno percebeu de onde vinha aquele
constante ar tranquilo: seus lábios eram tais o de uma
boneca. Uma boquinha deformada por uma incrível
imobilidade.
Tal a moça em seus sonhos.
Não...olhe um pouco melhor, e sua mente também
vai começar a vê-la além disso...
E como se ouvisse a própria voz do palhaço lhe dizer,
os olhos da moça brilham intensos nas chamas azuis e
tudo o que temeu durante o dia com a notícia horrenda da
morte de seus amigos concretizou-se nas formas daquele
rosto...
Voltou muitos anos atrás...voltou ao delito que o fazia
orar todas as vezes que pedia por perdão às almas do
mundo, e colocava a sua no topo da lista.
Tentou abafar um gemido, um grito de horror,
enquanto Barthold Laszlo ria, e a moça atrás dele ria
pelos olhos, o que dava a sua expressão um ar ainda mais
macabro de triunfo.
Dio mio, no...!
— É verdade que todos são iguais diante de Deus,
Dellaveno, é verdade!?
E quando sentiu as risadas preenchendo o ar como
a fumaça de seu charuto, Dellaveno tropeçou nos próprios
pés e caiu.
Sumário
54
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
Sobressaltou-se, em sua cama. Agarrou os lençóis e
acreditou ter despertado de mais um sonho nefasto, onde
seus amigos cúmplices de um delito da época da faculdade
apareciam mortos. Tudo por causa daquela temporada
execrável de espetáculos de horrores pelos canais de
Veneza, em que, encontraram um espécime tentador:
uma moça de corpo esbelto e delicioso, porém, de rosto
quase inexistente. Seus cabelos, ralos como de uma velha
não escondiam a boca que parecia a de uma bonequinha
de porcelana, por isso era a única parte visível sobre a
máscara de órbitas vazias que usava. Eles queriam saber o
que havia por trás dela e quando descobriram, resolveram
dar uma lição na criatura por ser tão diferente. Como era
possível alguém não ter olhos, nem cabelos, e querer viver
entre eles, pessoas normais?
Depois de muita bebedeira, violência e sexo com
a garota, ela acabou por não sair mais do chão, tão
desfigurada quanto já era. Então chamaram Dellaveno,
pedindo ajuda para esconder o inconveniente.
— Não era grande coisa, só mais uma escória que a
sociedade varria para debaixo do tapete, não é, meu bem?
Dellaveno arregalou os olhos, ouvindo a voz bem
atrás de si. Tremeu e se agarrou ainda mais ao travesseiro,
tentando evitar pensar no dia em que ajudara seus amigos
a darem sumiço no corpo frágil daquela pobre garota,
que ele não hesitou em largar numa caçamba de lixo nos
becos sujos da romântica Veneza. Tudo em nome de Deus
e da moralidade, embora, no fundo de sua alma casta,
se remexessem sentimentos estranhos de desejo ao ver
aquele corpo nu e senti-lo em seus braços, enquanto se
desfazia dele.
Sumário
55
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
Os mesmos braços que agora o envolviam lentamente,
enquanto tremia na cama, bem longe do Paradise Circus
pousado na baia, mas muito perto do verdadeiro picadeiro:
sua vida. Ouviu-a sussurrar dentro de seu cérebro e cada
palavra era como um baforar gélido de morte:
Vocês me acharam uma monstruosidade sem
tamanho. Agora eu tenho os cabelos de seu amigo para
me sentir mais bonita. Mas ainda não podia ver como as
pessoas me encaravam, então vim visitar seu outro amigo
e lhe dizer que o perdoaria, se ele me desse seu poder de
enxergar...- e aqui ele se encolheu com a risada maligna
– talvez eu tenha exagerado, mas...ele foi muito bom em
doá-los para mim! E agora...agora eu só preciso da voz...
Da sua voz...
E sua mão tênue levou o rosto horrorizado de
Dellaveno para o seu. A imobilidade de sua boca quebrouse no momento em que o padre emitiu seu último som,
um grito estridente de horror. Amélie engoliu-o com um
beijo gigantesco e animal.
Horas depois, ao alvorecer, as tendas marchavam
para fora da cidade, silenciosamente. As pessoas
não entendiam, não houvera anúncios, nem noites
de espetáculos, só uma estranha sensação de terem
mexido com suas noites de um jeito anormal, fosse por
pensamentos ou atos violentos e obscenos.
Quem parecia mesmo exultante com o espetáculo
era nada menos que Barthold Laszlo, que olhava as ruas
através de sua janela oculta na carruagem mais luxuosa.
Ainda com o charuto na boca e olhos sobrenaturais,
perguntava a filha se tinha sido um bom show. Ela,
sorridente, disse, com a voz que ainda acostumava-se a
Sumário
56
O PASSADO VOLTA
Verônica S. Freitas
usar, que sim.
— Claro, papai. Foi um show dos diabos.
E sorriu, com seus novos lábios.
VERÔNICA S. FREITAS nasceu em 87 e é natural de
Guaratinguetá/SP, morando atualmente em Aparecida/SP.
Funcionária pública, se graduou em Gestão Empresarial
e tem contos em diversas antologias, entre elas: Cursed
City - Onde as almas não têm valor, Steampink, 4
livros da coleção VII Demônios, Brinquedos...eles
matam! e Quando o saci encontra os mestres do
horror, lançadas pela Editora Estronho. Publicou também
em Crônicas da Fantasia e SOS Titanic, da Editora
Literata.
Contatos por email: [email protected],
Twitter: @Beronique2010
blog: brisanoturna.blogspot.com.
Sumário
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O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
S
ó havia vida onde clareava a luz dos enormes
faróis, e ela era opaca em seus tons de asfalto
e terra batida. Além das janelas ensebadas, o mundo se
perdia em escuridão de um lado e de outro, trevas que
só iam e iam, até se misturarem ao negro da noite sem
estrelas. O motor a diesel resmungava um ronco estável,
de pista livre, sem o castigo imposto pela dança de
embreagens do tráfego pesado e engarrafado.
Era este o principal motivo do caminhoneiro preferir
fazer sua rota à noite. Na estrada deserta, ao som de suas
velhas fitas com clássicos do sertanejo oitentista, horas
se passavam em questão de minutos e os quilômetros
que o separavam de seu destino ficavam rapidamente
para trás. Ao contrário da maioria de seus colegas, ele
não via mau negócio em abrir mão da suposta segurança
da luz do dia. À noite não havia motoqueiros apressados
Sumário
58
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
ziguezagueando em seu caminho, ou motoristas incautos
arriscando perigosas manobras na contramão. Ao menos,
não tantos quanto havia de dia.
Isso sem contar a temperatura da estrada à noite, no
geral muito mais agradável. Não que reclamasse do tempo
que passava ao volante de seu velho companheiro, um
Mercedes-Benz 1313 com mais anos de estrada que sua
filha tinha de vida, mas quando um dia normal de trabalho
se traduzia a oito ou dez horas ininterruptas naquela
boleia abafada, o mínimo de conforto a mais se traduzia
em um fator muito importante.
— Atento... atento... - uma voz irrompia do Rádio
PX no alto da cabine. - Olavo está em QAP? É o Caetano
chamando. Atento, atento, Olavo está em QAP?
— Positivo. Na escuta, esparadrapo. - respondeu
Olavo na língua dos homens da estrada, enquanto
desembaraçava o fio espiralado do aparelho.
— Tudo bem, meu velho?
— Tudo, o quê o senhor manda?
— Tá muito longe?
— Tô descendo a serra agora. Um frio que você não
vai imaginar.
— E eu não sei? Passei um aperto nessas bandas daí
anteontem. Agora eu tenho a boa pra você quebrar esse
gelo. Um queijinho coalho, uma loura suada.. copiou?
— Copiei. Mas não.. - disse Olavo, olhando para a foto
afixada sobre o espelho retrovisor. - Fica pra próxima. Tô
indo pra casa.
Sumário
59
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
Dizer aquelas palavras fez o caminhoneiro sorrir, os
olhos indo da estrada para o retrato, e para a estrada à
frente outra vez. A imagem mostrava uma bela mulata
que abraçava uma menina que também sorria, faceira.
Sua família, para a qual ele estava prestes a voltar, após
tantas semanas.
Visto de longe, o caminhão era uma pequena mancha
luminosa atravessando a escura imensidão da madrugada,
rompendo seu silêncio com o ronco do motor e as velhas
baladas sertanejas que Olavo trazia em seu toca-fitas.
Logo, o caminhoneiro alcançou, às margens da rodovia,
o que sabia ser o último posto de abastecimento que
encontraria antes da etapa final daquela viagem.
No lugar, onde além do posto funcionava também
uma lanchonete, estavam estacionados outros três
caminhões. Assim que Olavo desembarcou pôde observar,
com certo desgosto, o momento em que um colega subia à
boléia acompanhado de uma adolescente vestida com uma
camiseta e um microshort jeans. Havia outras como ela
rondando o lugar à espera de caminhoneiros com dinheiro
de sobra e consciência de menos, prontos para alugar
um pouco daquela fachada de inocência. Era impossível
para Olavo não pensar em sua própria filha, e um arrepio
gelado afligia suas entranhas quando em sua mente surgia
a mera visão dela em um lugar daqueles.
Olavo se dirigiu até o balcão:
— O de sempre? - perguntou-lhe um senhor velho e
obeso encarregado da barraca.
Olavo acenou com a cabeça. Seu pedido de costume
consistia de um café, puro, sem açúcar, e uma fatia de
pão com manteiga na chapa. O café veio rápido; devia
Sumário
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O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
estar pronto há horas, esperando em alguma garrafa
térmica encardida. O velho agachou-se atrás do balcão,
sacou de lá uma bisnaga ressecada, cortou-a ao meio com
uma velha faca de serra, lambuzou manteiga nas duas
metades, e enfim, levou as fatias até a chapa no outro
lado da barraca.
Distraído por aquela cena rotineira, Olavo demorou
a perceber a aproximação da moça. Em um primeiro
momento, não passava de uma silhueta contra a luz dos
faróis de uma das carretas. Quando chegou mais perto,
Olavo pôde ver uma jovem vestida de maneira simples,
sem qualquer maquiagem no rosto moreno, e cujos olhos
castanhos pareciam procurar os seus. Era bela, e jovem,
mas não tão jovem quanto as meninas que vira há pouco.
Caminhava a passos lentos sobre o chão de terra batida,
diretamente até ele.
— Boa noite. - disse a moça.
— Boa noite. Olha - adiantou-se Olavo - vai me
desculpar, mas não estou interessado..
— O quê?
— Se quiser, eu te pago um lanche aqui. Você está
com fome? Não precisa... sabe...
— Ah, não.. - a moça exibiu um sorriso sem graça. Não tenho fome. Na verdade eu estou tentando chegar em
uma cidade chamada Montes Calmos, o senhor conhece?
— Conheço sim. Nunca estive lá, mas sei que fica na
próxima saída pela estrada.
— Então, será que o senhor poderia me dar uma
carona? Já vim com outro colega seu até aqui, mas ele vai
Sumário
61
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
pernoitar aqui mesmo, e eu tenho urgência em chegar.
Olavo pensou por um instante. Fitou a cintura da
moça com o canto dos olhos, atento à qualquer volume
suspeito, ainda que fosse um mero telefone celular. Já
ouvira mais de uma história a respeito de beldades como
aquela sendo usadas como iscas por quadrilhas de ladrões.
— Olha, moça, gostaria de poder ajudar, mas as
regras da minha firma são rígidas. Se alguém aqui na
parada bate pra eles que eu aceitei uma caronista, pode
ficar ruim pro meu lado....
— Tudo bem. - a garota franziu os lábios, visivelmente
frustrada. - Desculpe ter incomodado o senhor.
A garota deu as costas para o caminhoneiro. Seu
pão tostado acabava de ser servido, mas Olavo continuou
olhando a garota que se afastava, enquanto seus
pensamentos seguiam um rumo o qual ele já sabia no que
resultaria.
— Espera. - disse ele.
Olavo havia chegado à conclusão de que se fosse
sua filha ali, ele gostaria muito que fosse alguém de sua
própria índole a oferecer-lhe ajuda, ao invés de algum de
seus colegas que poderiam ver a moça com olhos mais
maliciosos.
— Deixa eu terminar de comer, que eu te levo.
A garota sorriu e tornou a se aproximar. Olavo bebeu
o café e devorou o pão em questão de segundos, logo não
havia mais que um cotoco amanteigado, que ele tornou a
oferecer a jovem.
Sumário
62
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
— Tem certeza que não quer? A viagem ainda leva
umas duas horas.
— Não, obrigada. - respondeu ela, encolhida sob os
próprios braços cruzados. - Não sinto fome.
Olavo pagou pelo lanche e despediu-se do dono da
barraca, saindo com a garota atrás de si. Ainda receoso
como estava com sua própria atitude, Olavo não pôde
perceber o momento que o velho esticou-se para fora da
barraca e, com um olhar de estranheza, acompanhou-o
em todo o trajeto até o caminhão.
Os dois já estavam na estrada havia meia-hora,
quando Olavo decidiu quebrar o silêncio. Atravessavam
um trecho de estrada livre, margeada em ambos os lados
por uma vastidão descampada. A pergunta que ele fez à
garota não poderia ser mais básica:
— Qual o seu nome?
— Marcela. - respondeu ela, olhando distraidamente
pela janela.
— Marcela.. - repetiu Olavo, após o que a boléia
voltou a mergulhar em silêncio.
Ele não estava realmente interessado em saber da
vida da garota. Cogitou até tornar a pôr o sertanejo no
toca-fitas para tocar, mas pensou se o estilo de música
não a incomodaria. No fim das contas, preferiu continuar
o papo.
— E você é de Montes Calmos mesmo? - perguntou.
— Não, sou da capital. - Marcela sorriu. - Estou indo
ver uma pessoa.
Sumário
63
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
— Parente seu?
— Mais ou menos.
Subitamente, as rodas dianteiras da carreta se
chocaram contra pequena depressão da pista, fazendo
a cabine sacolejar bruscamente. Com o susto, a garota
cravou as unhas no painel à frente.
— Me perdoa! - exclamou Olavo, preocupado. - Você
se machucou?
— Não, foi só o susto mesmo.
— Essa estrada está toda esburacada assim. Fica
atenta aí, viu?
— Tá bom, pode deixar. - Marcela colocou a mão
contra o peito, tentando recuperar o fôlego.
— Deve ser sua primeira vez por essas bandas, né.
- sugeriu o caminhoneiro. - Não tá acostumada a esse
pedaço.
— É sim.
— Olha... não faz isso que você fez lá atrás assim
não, viu menina. Ficar dando sopa em lugar de homem.
Foi sorte você ter pedido ajuda pra mim. Um outro aí podia
ficar mal-intencionado.
Marcela apenas voltou-se para Olavo, em silêncio. Ele
fitou os olhos castanhos da jovem pelo espelho retrovisor,
ligeiramente, receoso por não saber ao certo se tinha
mesmo o direito de repreendê-la. Mas então, para seu
alívio, Marcela esboçou um leve sorriso, e perguntou,
apontando para a foto sobre o espelho:
Sumário
64
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
— É a sua família?
— Aham. Meu cristal e minha cristalina.
— O quê? - estranhou a caronista, arqueando as
sobrancelhas.
— Me desculpa, isso é gíria de caminhoneiro. esclareceu Olavo. - Quer dizer minha esposa e minha
filhota.
— Ela é muito linda. - Marcela tomou a foto em suas
mãos, deslizando o indicador pela imagem da menina. Quantos anos tem?
— Minha filha? Sete aninhos. Carolina. É a minha
princesinha.
Um par de faróis anônimos passaram pelo caminhão,
no sentido inverso. Olavo franziu os olhos, evitando a
luminosidade ofuscante. Mais uma das manhas de quem já
tinha experiência de estrada.
— Essa vida de caminhoneiro às vezes acaba comigo.
- lamentou Olavo. - Mas eu tô indo pra casa. Vou chegar lá
de manhãzinha e fico até a hora do almoço. Aí depois eu
volto pra central de abastecimento e começa tudo outra
vez...
— Ela deve sentir muito a sua falta. - disse Marcela.
— Falo com ela todos os dias pelo celular. Ela diz que
quando crescer quer ser caminhoneira que nem o pai.
Olavo riu, e Marcela riu também. Então, o semblante
da garota se fechou, subitamente.
— Sinto muita falta do meu pai.
Sumário
65
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
— Ele... é falecido? - perguntou Olavo, percebendo o
tom de voz dela.
Ela, porém, nada disse. Continuou olhando para
baixo, para a foto da família de Olavo. Ele então percebeu
que Marcela esforçava-se, em vão, para conter o choro.
Arrependido de ter feito a pergunta, Olavo pensou em dizer
algo para confortá-la, mas... o quê diria? A moça ainda
era uma total estranha. Talvez agora fosse simplesmente
melhor respeitar seu silêncio e...
Olavo sentiu um calafrio. A onda gelada surgiu em
algum lugar entre seu coração e o estômago e espalhouse rapidamente por todo corpo, como o estalo que o
corpo sente ao despertar quando ainda se está prestes
a dormir. Ele soube que algo muito ruim estava prestes a
acontecer, um segundo antes da cabine ser tomada pelo
futum nauseabundo de rosas velhas e putrefação, como
uma manhã de velório. Seu coração disparou, mas o único
pensamento era manter as mãos firmes ao volante. Não
podia olhar para o lado, não queria olhar para o lado, pois
no fundo já sabia o que estava acontecendo.
Ele já tinha ouvido as histórias.
Ainda assim, como se não mais fosse o senhor de sua
própria vontade, Olavo voltou-se para o banco do carona,
deparando-se com o horror na forma de um rosto pálido
e inchado, trancado em um semblante rancoroso, de
desesperada agonia, gemendo em um pranto angustiado
ao encará-lo com olhos que não fitavam coisa alguma,
olhos cadavéricos, a escorrerem como um par de manchas
negras ao longo das bochechas apodrecidas.
Marcela estava morta, mas continuava chorando.
— Ai meu Deus do céu! - gritou ele, quase perdendo
Sumário
66
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
o controle do caminhão.
Então, houve uma freada brusca e em um piscar
de olhos, não havia mais nada. Nem o cheiro de morte,
nem Marcela. Olavo estava sozinho na cabine, como era
na maioria das noites. A foto de sua família, porém, não
estava onde costumava estar sobre o espelho retrovisor,
mas sim sobre o banco do carona. Sua respiração estava
tão alta e acelerada que mal conseguia ouvir os próprios
pensamentos confusos. Receoso e com o coração a sair
pela boca, Olavo tomou a foto em mãos, percebendo-a
coberta por uma fina camada oleosa como limo, e fria
como se tivesse acabado de ser tirada de uma geladeira.
Largou-a outra vez sobre o banco. Sua vontade era
de abrir a porta da cabine e sair correndo, mas sabia que
se o fizesse poderia não ter coragem de subir outra vez. Já
ouvira histórias como aquela tantas vezes, e ao contrário
de outros jamais duvidou que pudessem ser verdade. Pelo
contrário, toda vez que lembrava, sempre rezava a Deus
para que o mantivesse protegido das forças ocultas que
perambulavam por esse mundo.
Deus não atendera seu pedido.
Os minutos passaram e Olavo continuou ali, parado,
com as mãos no volante. Os arredores da estrada
continuavam mergulhados no breu, exceto onde a luz de
seus faróis clareavam a noite com uma névoa amarelada.
Foi quando o caminhoneiro percebeu que, por coincidência
ou não, parara diante de uma placa sinalizadora, onde uma
seta indicando uma curva para direita era acompanhada
pelos dizeres:
“Montes Calmos - 2 km”.
A constatação fez com que, pouco a pouco, o pânico
Sumário
67
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
que dominava a mente de Olavo cedesse espaço a um
sentimento mais racional, a curiosidade. Era impossível,
por mais que tentasse racionalizar seu caminho para fora
daquele terror, negar que acabara de ter sido tocado
pelo mundo sobrenatural. Mas, talvez não fosse apenas
um capricho obscuro do destino. Talvez houvesse um
propósito para tudo aquilo.
De algum ponto indistinto do passado, imortalizado
na foto que repousava sobre o banco do carona, sua
filha Carolina continuava a dedicar-lhe um sorriso largo e
revigorante. Como se seguisse um delicado fio reluzente
através de um escuro labirinto, Olavo retornou ao exato
instante quando, na parada, avistou Marcela indo embora
sozinha e sensibilizou-se com a ideia de que ela também
pudesse ser filha de um pai preocupado. Era essa imagem,
a da criança perdida na noite, que sua mente fazia emergir
daquela outra, a dos olhos mortos, aquela que Olavo
desejava apagar para sempre de suas lembranças.
Quem era Marcela? Ou melhor.. quem havia sido?
Ela era mesmo real?
E se fosse.. por quê ele e não outro qualquer?
A última pergunta fez Olavo lembrar-se de suas
próprias palavras para a moça e da sorte que esta tinha
por ser ele e não outro a levá-la até seu destino. Um raio
de sol solitário despontou no leste, no exato instante em
que o caminhoneiro percebia ter, talvez, encontrado parte
da resposta que procurava para a experiência que acabava
de mudar sua vida. Bem como percebia só haver um lugar
em que poderia elucidar o resto do mistério.
O caminhão cruzou a entrada da cidade quando o sol
terminava de se erguer no horizonte. Olavo estacionou
Sumário
68
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
em um terreno baldio vizinho à placa de boas-vindas
aos visitantes, e prosseguiu a pé. Montes Calmos, um
município ribeirinho com menos de trinta mil habitantes,
vivia um princípio de manhã preguiçoso, como o da maioria
das cidades pequenas. O dia despertava com um límpido
céu azul, e estava tudo tão quieto que era possível ouvir
o grasno de um bando de garças voando à quilômetros
de distância. Embora Olavo jamais tivesse estado ali
antes, sentiu-se aconchegado pelo verde das calçadas
arborizadas e pelo canto dos pássaros que ressoavam
pelas avenidas ainda desertas da cidade.
A noite anterior tomava ares de um pesadelo distante.
Dez minutos se passaram, antes que Olavo cruzasse
com o primeiro morador local, uma senhora idosa, de
lenço na cabeça, a contornar a pracinha central de Montes
Calmos. Pensou em abordá-la, mas sabia que era inútil. Em
um lugar como aquele, o comércio local, por mais modesto
que fosse, sempre era o centro dos acontecimentos. Se
quisesse ter qualquer chance em descobrir a verdade
sobre Marcela, se é que havia uma, precisaria esperar.
E assim ele esperou, até que as lojas começaram
a abrir as portas. Partindo da pracinha em que estava,
Olavo visitou uma padaria, uma farmácia, e uma loja de
materiais de construção. Em cada uma contou a mesma
história: estava vindo da capital, e uma conhecida havia
pedido para que localizasse uma jovem chamada Marcela,
que haveria chegado em Montes Calmos alguns dias antes.
— Desculpe,
respondeu um.
senhor,
mas
não
conheço
não.
-
— Nunca vi. - afirmou outro.
— Conheço uma Marcela, mas é mais velha. E loira.
Sumário
69
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
Olavo fornecia uma descrição precisa da garota, mas
sem sucesso. Ninguém a conhecia. Foi assim, de loja em
loja, perdendo as horas da manhã em voltas ao redor da
cidade. Já era o meio da tarde quando o caminhoneiro
enfim se deu por vencido, ao ouvir um derradeiro “não”,
desta vez de um rapaz jovem, que servia copos de cachaça
do outro lado do balcão de uma barzinho. Chegou a nutrir
certa esperança pela hesitação inicial do moço à descrição
que fizera de Marcela, mas foi em vão.
No fim das contas, não havia um propósito maior.
O que sucedera na noite anterior não fora mais que
um acaso, um episódio aleatório dentre tantos que as
histórias contam sobre o que existe na fronteira negra
entre este mundo e aquele outro. A ele só cabia, agora,
arrumar um jeito de continuar vivendo com suas dúvidas.
Frustrado, Olavo retornou para o caminhão e tomou
outra vez o caminho para casa. Assim, quando a noite
tornou a chegar, ele já estava bem longe, na segurança e
tranquilidade de seu lar, cochilando no sofá com sua filha
a tiracolo.
Olavo não sabia, nem poderia saber, que para o
rapaz, o mesmo com quem por último conversara em sua
breve estadia em Montes Calmos, aquela não seria uma
madrugada tranquila.
O jovem pediu ao dono do bar para sair mais cedo,
alegando uma indisposição física, e a maneira como suava
frio acabou por corroborar sua mentira. Sua cabeça girava,
e no caminho até o pequeno apartamento que alugava ele
olhou por sobre o ombro mais de uma vez, em um estado
de absoluta paranóia. Chegou procurando sua mochila, e
jogou dentro dela suas roupas. Até ali parecia estar tudo
bem, mas ele não poderia arriscar. Haviam o descoberto.
Sumário
70
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
Ele precisava sair daquela cidade.
Decidiu esperar a cobertura da noite para partir, sem
saber que a noite o esperava também. Estava a postos
para sair, mas quando tentou abrir a porta, lembrou-se
que a havia trancado ao entrar. Pior, suas chaves não
estavam no bolso do velho jeans como havia imaginado.
Soltando um palavrão, jogou a mochila no chão e começou
a tirar tudo de dentro, a procura do molho. Foi quando um
ligeiro tilintar metálico, vindo do banheiro, chamou sua
atenção.
Receoso, o rapaz levantou-se e seguiu o repentino
ruído, encontrando por fim suas chaves jogadas no chão
ao lado da pia. Afirmando a si mesmo que provavelmente
teria caído durante sua correria, ele agachou-se no chão
frio para pegá-las. Neste momento, um cheiro horrível
invadiu-lhe as narinas, forte e ocre como carniça.
Provavelmente estava exalando do ralo, pensou ele, sem
dar muita importância ao fato. Afinal, estava de partida.
Aquele apartamento já não era mais problema seu.
Ao retornar para a sala, contudo, viu que não estava
sozinho.
Já era tarde na madrugada, então ninguém viu quando
o rapaz saiu correndo pela porta do prédio, em pânico,
deixando a mochila no chão do apartamento e a chave
ainda presa à fechadura da porta. Ele corria e olhava para
trás, os olhos arregalados de pavor, a calça encharcada
com a própria urina, e a voz presa na garganta travada,
incapaz de gritar por socorro. Continuou correndo, o mais
rápido que pôde, mas cada vez que olhava para trás, via
que a coisa... ela... continuava em seu encalço.
Então, houve um clarão luminoso, e tudo acabou.
Sumário
71
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
O motorista não teve tempo de reagir. O homem
simplesmente surgiu no meio da pista, completamente
desorientado. O ônibus ainda seguiu por duzentos metros
antes de frear completamente, deixando pelo asfalto uma
trilha de sangue e vísceras.
Dias depois, Olavo estava novamente em uma parada,
fazendo seu lanchinho noturno. Havia um televisor ligado
na barraca, mas o volume estava tão baixo que mal era
possível entender o que dizia o âncora do telejornal da
madrugada. Esperando servirem seu café, o caminhoneiro
desviou por um instante o olhar da T V, surpreendendo a si
mesmo pela breve e tola esperança que teve de ver surgir,
vindo de lugar nenhum, o rosto daquela que transformara
sua vida para sempre.
Olavo não havia contado a ninguém sobre Marcela,
nem pretendia. Não havia noite, porém, em que não
pensasse nela. Não com medo da repugnante aparição,
mas sim com pena da menina que podia ser sua filha, que
na certa havia sido a preciosa cristalina de alguém, e que
talvez ainda estivesse perdida em alguma estrada escura,
esperando achar o caminho de casa.
Naquele instante, no televisor para o qual ninguém
agora prestava atenção, o apresentador acabava de
noticiar o inusitado desdobramento de um caso de
homicídio ocorrido na capital do estado. Um homem,
morto por atropelamento na cidade de Montes Calmos
na semana anterior, havia sido identificado como um
suspeito foragido, acusado pelo brutal assassinato de sua
namorada, anos atrás.
O nome dela era Marcela.
Sumário
72
O CAMINHO DE VOLTA
André Soares Silva
ANDRÉ SOARES DA SILVA, Carioca, funcionário público,
estudante de Letras da UFRJ, 28 anos, escreve desde
os 15. Começou no mundo da literatura escrevendo
fanfictions inspiradas no seriado Arquivo X, ainda no final
dos anos 90. Hoje em dia é um apaixonado pela arte de
escrever, seja na forma de contos, roteiros para cinema
ou romances. Atuou junto a OTP Filmes como consultor
na roteirização de curtas-metragens, participou da
antologia “Contos Fantásticos”, do site A Irmandade, e
“Solarpunk”, da Editora Draco, a ser lançada em breve.
Seu primeiro romance, “Simuum – O Conto do Sol”,
encontra-se no momento em fase de análise junto à
editoras. Atualmente, trabalha em seu próximo projeto,
um thriller sobrenatural que pretende ser o início de uma
trilogia.
Sumário
73
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
— Sorva... Sorva
E o vinho não bastava, aquela voz continuava em
minha mente.
Levantei-me do sofá, em que estivera desde que o
sol começara a se pôr, esperando o telefone tocar. Mas
nenhum som se fez além do maldito sussurro...Sorva.
Enfim quando tocou e ouvi a voz de meu amigo do
outro lado da linha tranquilizei-me, pois assim teria um
motivo para sair de casa.
Em passos pesados entrei no chuveiro, esperando
apenas que a água escorresse quente por minhas costas,
me encharcando, tão quente que queimava minha pele...
Queimava... Queimava, como se o inferno tivesse se
diluído sobre mim.
O fogo sorvendo minha carne.
Saí do chuveiro, prostrando-me diante do espelho,
Sumário
74
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
o peito nu e repleto de cicatrizes, as marcas do tempo
em que passei buscando, e encontrando, ao invés do que
procurava, somente as sombras que me perseguiriam...
Sorva... Sorva... Mais uma vez aquela voz soprando em
meus ouvidos.
Não perdi tempo.
A noite me deixava sem tempo. Curta e soberana.
Capaz de ruminar o mais lascivo dos seres.
Tinha de me encontrar com Hiago o quanto antes,
a necessidade de vê-lo aumentava, e estar entre o
burburinho da cidade, ajudaria a ter o estranho comando,
já conhecido, longe de meus ouvidos. Peguei minha
jaqueta de couro, vesti as botas e saí de casa.
Caminhando por aquelas ruas quase vazias, eu
começava a achar que apenas a jaqueta não seria o
suficiente para enfrentar o frio da noite.
As árvores confundiam-se pelo vento, exalando um
ar úmido que inundava o fim das chuvas de inverno.
E o início das noites naquela cidade era negro, como
meus passos, que, no entanto, nada mais representavam
do que ecos de gritos abafados.
Abraçando-me para estancar o gelo do vento, que
embaraçava meu cabelo molhado, ouvi algo mover-se além
dos galhos. Olhei para o alto. Estranhos olhos negros me
observavam com tamanha curiosidade! Senti minha alma
ser presa nas sombras de seu olhar, e minhas verdades
encurraladas por sua sentinela.
Ignorando a gralha-cinzenta que me seguia, como se
me anunciasse com seu pio insolente, continuei a caminhar.
Sumário
75
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
Em minha mente a voz ainda sussurrava... Sorva... Sorva.
Até que encontrei o burburinho do bar.
Hiago já me esperava em uma mesa. Mas ele não
estava sozinho.
Como haveria de ser, estava acompanhado de duas
moças, sendo que uma delas, engalfinhara-se por debaixo
de sua jaqueta, fingindo se aquecer, afinal estava com
poucas tiras cobrindo-lhe o corpo... Inevitavelmente
lembrei-me do velho ditado de que certas moças não
sentem frio. Mas não foi nela que meus olhos se detiveram.
E antes de dizer boa noite, ouvi o silêncio.
Aquele ser que parecia mesclar-se à bruma letal
bebeu um gole de vinho e uma única gota escorreu de
seus lábios, tal orvalho em sombras.
— Théo! –Hiago se levantou, erguendo o vermute,
parecia surpreso por me ver ali, como se tivesse se
esquecido de que ele mesmo havia me ligado para
encontrá-lo. Sua jaqueta surrada estava manchada de
sangue, um pouco abaixo da costela, mas como era de seu
feitio, ele deveria ter iniciado a noite perto de alguma rua
escura, com alguém que achava que poderia comandá-la
melhor do que ele. Essa sempre fora uma das vantagens
de ser amigo de Hiago, ninguém poderia comandar melhor
o inferno das noites do que ele.
— Parece que cheguei tarde, Hiago, você já encontrou
companhia. – sorri pelo canto dos lábios, mas não obtive a
atenção desejada.
— Sua presença nunca se faz tarde, Théo. Essa é
Ariane – a moça que usava um espartilho vermelho barato,
igual a seus lábios, cumprimentou-me com um sorriso que
Sumário
76
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
pareceu incomodar meu amigo. – e esta é Lemony.
Alguns olhares parecem impregnados pelo ópio, o
dela, era o próprio ópio que impregnava meu olhar.
Diante dela fiz-me objeto.
Sentei-me junto aos três e servi o vermute que nos
aqueceria. A conversa fluiu entre eu e Hiago, ignorando
as interrupções da moça que o acompanhava, enquanto a
outra, no entanto, continuava em sua mudez dúbia.
Por algum tempo tentei atrair sua atenção, mas
em sua timidez ou indiferença, respondia apenas com
resmungos. Ela olhava para o fim da rua, como se
esperasse algo. No salão próximo dali acontecia o baile do
Dia dos Pais dado todos os anos pelo prefeito e a primeira
dama.
— Não quis ir à festa deste ano Hiago? – provoquei-o.
— O prefeito e a primeira dama preferem que eu
fique longe, eles tem mais dois filhos lá para completarem
a família. – eu sorri ao lembrar que Hiago era o filho
mais velho do prefeito da cidade, sendo um dos maiores
problemas que o pai tinha que resolver nesta.
— E vocês, moças? – disse olhando para Lemony.
— Não recebemos o convite. Mas espero que me tirem
para dançar. – dessa vez seus olhos ébrios ressurgiram,
como se até então estivessem distantes de sua própria
consciência, voltando somente para me amortalhar. Ela
nada mais disse. Levantou-se e deu-me a mão. – Leve-me
para casa, Théo.
Quando segurei sua mão, gélida pelo vento, a voz em
Sumário
77
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
minha mente voltou com intensidade... Sorva... Sorva...
Lemony, em seu vestido de lã cinza que lhe cobria
os braços finos, conduziu-me para longe do barulho da
irritante música que insistia em tocar no bar, até que nos
aproximamos do fim da cidade, em frente à minha casa.
Ela sentou-se à beira do portão enferrujado. Retirou
as sapatilhas e acariciou as urzes com as pontas dos
pés, como se tentasse recuperar algo há muito perdido.
Fitei-a por todo tempo em que esteve ali, até que ouvi o
gralhar do pássaro diante das sombras. Levantei-me para
espantar a ave, mas assim que me aproximei, notei que
trazia algo no bico, uma pedra talvez, porém antes que
eu pudesse me aproximar mais de sua escuridão ela alçou
voo. Por uma última vez naquela noite ouvi, em bulício, a
voz novamente a me atormentar...
Sorva...
Com a desculpa do frio levei Lemony para dentro, seus
olhos negros e curiosos incomodavam-me, pois traziam a
sensação do abismo que me cobria. Por um momento ela
hesitou em entrar em minha casa, compreendi que eu a
acabara de conhecer, mas ainda assim tinha a sensação
de que era ela quem me chamava para adentrar a névoa
de seus lábios.
Naquela noite, a boca de Lemony silenciou a voz
que comandava minha mente. O estranho formigamento
de seu corpo a friccionar minha boca, o ópio a preencher
meus lábios, a neblina a evocar os olhos da noite. E sobre
os sortilégios de sua pele ela orquestrou meus obscuros
desejos.
Adormeci.
Sumário
78
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
Junto à madrugada um pio estridente me acordou.
Olhei para o lado e vi que as cortinas brancas sibilavam.
Levantei-me rumo à janela aberta, e mais uma vez vi
aqueles olhos negros e curiosos a me fitarem, mas antes
que pudesse me aproximar, a gralha voou. Foi apenas
quando me vi só, que notei a ausência de Lemony. A
chamei por toda a casa, mas só o eco frio respondeu. Não
me dei ao trabalho de fechar a janela, pois algo em meus
tormentos dizia que somente a bruma que adentrava,
poderia me levar de volta ao sono. Porém, antes de me
deitar olhei-me no espelho da penteadeira e notei que
estranhamente uma cicatriz, feito um risco, juntara-se
em meu peito com equimoses, sem que eu houvesse me
machucado para tê-las.
Adormeci.
Quando levantei com a voz me perturbando, uma
tempestade ruminava a tarde. Tentei ligar para Hiago,
mas meu telefone estava mudo. Mais uma vez, sentei-me
no sofá à espera que o whisky que tinha em mãos pudesse
calar aquela doce e morfética voz.
Assim que a chuva cessou e o sol se pôs, arrisqueime no frio para tentar encontrar Hiago, afinal ele era
minha ponte para Lemony, mas quando atravessava o
portão cinza, vi entre as casas e ruínas do fim da rua - a
sombra dela em meio à névoa de chuviscos que se fazia.
Por sete noites Lemony esteve em meus braços, fui
ludibriado pelo granizo de seus lábios, sentindo minha pele
queimar ao inferno de seu toque. Por sete noites eu a tive
nua até os ossos... E por todas as noites ela se desfez no
deserto de meu sono... Por sete noites a voz deixou de me
atormentar... E por sete madrugadas a ave me despertou
com seu gralhar que parecia querer minha danação.
Sumário
79
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
Mas, na última noite, eu não dormi.
Enquanto Lemony estava comigo, podia sentir a paz
que só se encontra nos vales, como se todas as sombras
dos pecados que me perseguiam fossem apagadas – pois
havia o sangue em minhas mãos dos anos que a memória
escassa insistia em ofuscar.
O sangue que se espalhava por meu passado, com o
qual tracei o algoz de minha alma, que agora sussurrava
em meus ouvidos.
Na última noite em que tive Lemony e o acalento
de seus negros olhos curiosos junto a mim, permaneci
acordado, pois não queria que ela fosse embora pela
madrugada adentro outra vez. Enquanto ela se vestia,
sentei-me à beira da cama, e defronte ao espelho, a
observava colocar seu habitual vestido cinza de lã, ao
mesmo tempo em que tentava entender as equimoses
e cicatrizes que foram se juntando uma a uma em meu
peito. Tentava recordar quando fora a última vez que
havia falado com Hiago, desde a tempestade meu telefone
parecia estar mudo, e somente porque sabia que Hiago
era feito de vestígios, que só se deixava à mostra quando
queria, foi que não me preocupei.
Apenas a contínua ausência de Lemony em meus dias
é que forjava meus tormentos. E enquanto me perdia nas
dúvidas e a fitava cobrir-se junto à névoa que adentrava
pela janela aberta, vi através do espelho, de repente sua
silhueta desaparecer.
Virei-me chamando seu nome, correndo até
segundos antes ela estivera, mas tudo que recebi
resposta foi novamente o gralhar que queimou
ouvidos. Afastando a cortina, encarei de perto os
Sumário
onde
como
meus
olhos
80
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
negros e curiosos da gralha-cinzenta que retornava com
meus demônios. Como fizera, nas outras noites, espantei
a ave, que desta vez ao invés de alçar voo, deixou cair no
parapeito da janela a esfera que a vi carregar na primeira
noite.
Na semiescuridão do quarto segurei-a colocando
contra o luar.
Era um olho. Negro e afogado.
Com asco joguei o olho que rolou pelo chão do
quarto, no mesmo instante em que a gralha voou para
a penteadeira bicando sua própria imagem até quebrar o
espelho. Eu gritei para afugentar aquele maldito pássaro,
quando vi que ele carregava no bico um caco do espelho.
Ela voou em círculos sobre minha cabeça, e saiu pela
porta. Eu a segui, atravessando o corredor.
Eu segui os caminhos da gralha, abjurando meus
medos.
Sorva... Sorva... Meus ouvidos queriam sangrar
diante da voz que calava toda a razão. Não... Aos poucos
eu gritava com as dores em minha cabeça... Sorva...
Sorva... Mas eu ainda caminhava, pois conseguia ouvir o
pio tão estridente quanto os risos do inferno a me guiar.
Sorva... Sorva... Por mais que tapasse meus ouvidos
a voz não sanava.
Até que me vi diante de um portão.
Cinza e enferrujado, como o de minha casa... Os
detalhes, a estranha semelhança das grades...
A gralha, então, pousou sobre um toco coberto de
Sumário
81
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
urzes, ela observava como se me esperasse adentrar sua
morada. E era como se eu estivesse no fim da cidade,
na rua que me confinava as noites. O gemido metálico
do portão mostrou-me a neblina que, sorrateira, gelava
minha pele, e qual o frio seco e cinza, pareceu afugentar a
voz que me comandava.
Ao meu redor a escuridão dos anjos de pedra
imperava.
Estava em algum lugar no tempo. Só não sabia por que
de fato estava ali. Aos poucos meus olhos se abriam para
enxergar tudo aquilo que a gralha tentava me mostrar. Ela
voou por entre as árvores, que mesmo entrelaçando seus
galhos secos, permaneciam em silêncio. Seguindo suas
asas, com o frio a cobrir-me feito mortalha, e a neblina a
me cegar... Tropeçando, sem ver, nas campas e cruzes...
Caminhei segurando-me na lassidão dos medos de meus
pecados que retornavam... Até que eu a vi pousar.
Sobre o granito de suas patas diversos jornais
esvoaçavam e cobriam uma lápide. Ali me sentei detendo
uma das páginas, junto à gralha, quando li a notícia notei
que era de uma semana atrás. Anunciava a presença do
prefeito e a primeira dama no baile anual da cidade, ao
menos era o que a foto parecia mostrar. Eu não tinha
porque ler aquela notícia, não tinha porque estar ali,
mas algo me instigava à leitura, algo, como um estranho
formigamento por dentro, uma ânsia que me obrigava a
ler.
E assim o fiz.
No título, o anúncio de que o baile do Dia dos Pais
havia sido cancelado, pois a data havia caído justamente
no aniversário de morte de sete anos do filho mais velho
Sumário
82
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
do casal, que havia morrido, junto com alguns amigos,
num acidente onde o carro caíra da ponte, afogando-se
no rio, naquela mesma noite. Olhei as datas novamente.
Não... Não... Não! Hiago estava ausente, mas não morto!...
Eu teria sido informado de sua morte... Não, meu amigo
não poderia ter morrido!
Sorva... Sorva... Soprou em meus ouvidos. Virei-me
de repente, não havia nada além da escuridão das árvores
a sibilar. Num lapso olhei para o reflexo no caco de espelho
que a gralha deixara ao meu lado, e lá estava ela.
Os olhos negros e afogados.
— Finalmente você me ouviu, Théo!
— Lemony! O que está havendo?
— Sorva... Sorva Théo, o que lhe resta.
No negrume, vi surgir as silhuetas em sombras, as
almas que eu havia roubado. Em meu peito pude sentir as
cicatrizes se retorcendo em feridas. Eu sabia. Meu corpo
queimava.
Meu algoz surgira.
Lemony, em seu vestido cinza, se aproximou de mim,
mesmo atônito deixei que seus olhos negros e curiosos
me fitassem sem nada fazer, era como se meus músculos
tivessem se congelado, pois eu sabia que meu passado me
aguardava. Então ela me beijou. E eu me lembrei. Lembreime do primeiro beijo, dado no meio do baile do Dia dos
Pais... De Lemony e Ariane chorando, enquanto eu dirigia
furioso, atravessando a ponte. Lembrei-me de minha briga
com Hiago, da lâmina em minhas mãos atravessando suas
costelas...
Sumário
83
ALMAS MORTAS
Sofia Geboorte
Porque Hiago duvidara de que eu era capaz de comandar o
inferno das ruas melhor do que o próprio diabo!
— Sorva Théo, o que lhe resta. – e no instante seguinte
ela desapareceu diante de meus olhos, só o que ouvi foram o
bater de asas, procurei desesperado, já à espera da maldita
gralha-cinzenta, mas não avistei pássaro algum.
Achei que só o vazio do cemitério me ancorasse, mas
diante de mim, por entre os túmulos as almas que eu arrancara,
se aproximavam como sombras. Arrastei-me para o fundo do
túmulo, tremendo, tentando inutilmente me proteger daquelas
sombras, até que senti a fria lápide fechando minhas costas.
As
sombras
se
perderam,
deixando-me
entregue
à
escuridão.
Os pelos de minha nuca eriçaram quando repentinamente
o silêncio tumular foi rompido pelo pio estridente da gralha
pousada no topo da lápide. Afastei-me num salto, encarando o
pássaro. Foi somente nesse instante que li o nome entalhado no
granizo: Théo Campbell.
Dona do blog Relicário de Sangue onde deposita seus
escritos, SOFIA GEBOORTE nasceu no interior de São
Paulo, entre um rio e uma floresta, em 1991. Prestes a
se formar em Letras (português/francês), dedica-se à
pesquisas que versam sobre o fantástico na literatura
brasileira e francesa, enquanto escreve contos de litfan.
Sumário
84
ENTRE AMIGAS
Eni Allgayer
ENTRE AMIGAS
Eni Allgayer
A aranha andava em círculos pela parede. As patas,
recobertas por uma penugem negra, levemente azulada,
movimentavam-se com leveza e sincronia.
Deitada na cama, com uma garrafa de cerveja entre
as mãos, Circe observava o ir e vir da caranguejeira. As
ondas sonoras do bolero de Ravel estremeciam o quarto,
mas ela continuava estática com os olhos presos no
animal.
Imagens antigas lhe vieram à mente. Via-se correndo
pelo jardim da avó, ainda menina, com um vidro de
maionese nas mãos. Dentro dele restava apenas uma
aranha, com os olhos aumentados pela curvatura do vidro.
O riso de satisfação ao perseguir os primos para mostrar
o troféu. Os gritos da mãe, as tias abraçando os filhos e a
avó deitada entre as flores, com uma mão sobre o peito, e a
Sumário
85
ENTRE AMIGAS
Eni Allgayer
outra, coberta de pequenas aranhas pretas com o abdome
rubro, como cerejas maduras. Depois, a ambulância
chegando com a sirene aberta, luzes vermelhas enfeitando
a tarde. Gente grande chorando feito gente pequena. A avó
de vestido novo, cabelos penteados, repousava no caixão,
calada como uma boneca. Já não havia reclamações,
abraços apertados ou cheiro de alfazema. No cemitério,
a chuva miúda misturando-se às lágrimas. Jogara pétalas
de rosas sobre o caixão colocado numa cova, com a vista
presa no olhar acusador da tia. Aquela que lhe tirara o
vidro das mãos, estilhaçando-o contra o piso. A tia que lhe
batera no rosto, afrontando sua mãe, que a retinha entre
os braços num ninar feito de soluços.
A música parou de chofre machucando-lhe os ouvidos.
O silêncio tinha uma densidade estranha, um peso de
ameaça ou prenúncio de coisa ruim. Circe levantou-se da
cama, tomou mais alguns goles diretamente do gargalo e
se voltou para Pedro. Ah, Pedro, murmurou, esboçando
um leve sorriso.
Ela o amava muito, desde o tempo de menina. Sempre
fizera as suas vontades. Detestava algumas coisas, mas
submetia-se para agradá-lo. Outras eram feitas com
prazer pecaminoso. Encontros furtivos no galpão de
ferramentas. Ele, o noivo da tia mais nova, barba cerrada,
ela ainda menina, seios mal surgidos sob a camiseta da
escola. Enfiou os dedos em seus cabelos desfazendo o
penteado, antes de sentar em seu colo, como fazia desde
os nove anos. Ele não esboçou reação. Rolou para a cama
ao seu lado, e assim ficou por mais algum tempo, mirando
a aranha na brancura do forro. Suspirou, voltando a
sentar. Emborcou o resto da bebida em gole único,
massageando os seios. Os bicos eretos, sensíveis ao tato.
Agora ele é meu, gritou uma vez, e outra, e mais outra.
O sorriso transformado em gargalhada e as mãos abertas
Sumário
86
ENTRE AMIGAS
Eni Allgayer
para recolher as amiguinhas que galgavam as pontas dos
dedos, aninhando-se nas palmas umedecidas. Como que
atraídos por uma essência exótica, elas saiam dos bolsos,
gola e nariz de Pedro como formigas em carreirinha. Ela
as contou e recontou, para certificar-se de ter recolhido
a todas. Conhecia cada uma delas, apesar da quantidade.
Por fim, depositou-as numa espécie de aquário e subiu
na mesa para alcançar a caranguejeira, oculta no desvão
entre a sanca e o forro de gesso. Cantarolava quando a
jogou na caixa de vidro para depois descer a tampa.
As pequenas viúvas-negras cercaram a recémchegada que resistiu por algum tempo, mas serenou
como Pedro, aos poucos. Enquanto as aranhas faziam
festa, Circe abriu um alçapão no assoalho da cozinha, sob
o tapete, para guardar a caixa de vidro no ventilado do
porão. Retornou ao quarto, beijou os lábios arroxeados
do amante e, tomou o telefone, discando números
memorizados. A voz trazida da infância fez o anúncio:
— Alô? Emergência? Preciso de uma ambulância. O
titio foi picado por algum inseto. É... Ele está desacordado.
Estou calma, sim senhora. Está bem, anote o endereço...
Ah, não esqueça da sirene, gosto de ouvi-la cantar, cantar,
cantar.
ENI ALLGAYER nasceu em Tupanciretã, RS, em
18/01/1946, casada, mãe de 3 filhos e avó de um neto,
iniciou na literatura de ficção em 2003, sendo autora de
7 livros individuais, com participação em 28 coletâneas
em várias cidades do Brasil, quase todas decorrentes de
concursos literários.
Sumário
87
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
D
epois de algumas centenas de metros do tráfego
lento das dezoito horas, o carro da diocese
parou em frente à mansão em estilo colonial, uma das
últimas naquele bairro de comércio movimentado e ruas
saturadas com prédios de mais de dez andares. A porta
do carona se abriu, e logo o padre Daniel se aproximou
do vestíbulo da casa. Olhou para o segundo andar, e de
um quarto guardado por espessas cortinas emanava um
piscar incessante de luz. Também ouviu gritos femininos,
mas com voz grave, além do barulho de vidro quebrando
contra a parede.
Nada que assustasse o sacerdote, integrante de
uma das ordens menores da Igreja Católica havia cerca
de vinte anos. Já vira de tudo um pouco nesse ofício de
exorcista, exceto aquele a quem supostamente combatia.
Sim, ao longo do tempo, padre Daniel se tornou cético
quanto à existência do diabo. No mais das vezes, as
pessoas que a ele recorriam estavam possuídas por
problemas existenciais, psicológicos, psiquiátricos ou até
Sumário
88
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
mesmo físicos, como quando a mãe de uma menininha de
cinco anos confundiu uma rara afecção cutânea no rosto
da filha com uma possessão demoníaca. Mas o diabo, este
ele nunca confrontara.
Não seria diferente agora com essa família, a quem
chegara por intermédio de um certo Sr. Moreira, advogado
criminalista e católico praticante. Os pais sofriam com os
problemas de saúde da filha de treze anos havia muito
tempo, mas na noite anterior o quadro se agravara. Ela
passou a se contorcer na cama, mudou o tom de voz e, a
todo o momento que tentavam se aproximar dela, reagia
de forma agressiva.
Antes mesmo que pudesse soar a campainha, o
outro filho do casal, um adolescente de dezessete anos,
atordoado, com as mãos trêmulas e o olhar desvairado,
veio ter com o padre à entrada.
“Ainda bem que o senhor chegou! Minha irmã tá
possuída! Nos ajude, por favor!”
****
“Foi um alívio quando o padre chegou. Eu estava no
segundo andar, encostado à janela do quarto da minha
irmã, quando levantei um pedaço da cortina e vi o carro
se aproximando. Tomei coragem, atravessei o fogo dos
infernos e desci correndo as escadas.
Ele devia ter quase uns cinquenta anos, um jeito de
cara conservador, sério. Se fosse em outra situação, me
daria medo, mas eu já estava morrendo de pavor. Entre o
Sumário
89
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
padre e o diabo, a escolha fica fácil.
Ninguém imagina que isso vai acontecer na própria
família. Na verdade, há muito tempo que eu não
considerava que tinha uma família. As coisas iam mal lá
em casa. Meus pais estavam quase se separando. Minha
irmã vivia tendo crises.
Desde pequeno que eu não gostava do meu pai. Ele
bebia e batia muito em mim. Na escola, sempre fui um
dos piores alunos, e ele me cobrava muito, queria que eu
me destacasse. Não acho que era pro meu bem, não, mas
só pra satisfazer o ego dele, pra aparecer pros amigos do
hospital. A cada reprovação – e foram umas três – ele me
espancava.
Já a minha mãe era meu porto seguro. Ela me
abraçava toda vez que me via chorando pelos cantos.
Tinha a maior paciência pra me ensinar os deveres da
escola. Eu amava minha mãe.
Tudo mudou quando eu tinha uns doze anos. Sei que
ela também sofria com o gênio do meu pai, só que não é
fácil descobrir que a sua mãe tem outro cara, que está
enganando todo o mundo. Um dia, cheguei mais cedo da
escola – tinha matado aula – e ouvi uma conversa dela no
telefone com um amante. Mamãe estilhaçou a confiança
que eu tinha nela.
Dali em diante, passei a sair direto da escola pra
rua, com alguns colegas mais velhos. Foi um período de
liberdade. Descobri a aventura, o sexo, as drogas... Ah,
as drogas nunca me decepcionaram! Primeiro, a maconha;
depois, a cocaína. E cada vez mais e mais euforia.
Só que depois vinha um período de depressão. E eu
precisava de mais, mas depois de um tempo não tinha de
Sumário
90
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
onde tirar dinheiro. Furtei alguns reais de um comércio,
fui parar na delegacia. Meu pai – muito legal o meu pai –
me liberou com a ajuda de um amigo advogado. E depois
me recebeu em casa com o carinho habitual.
Foi só eu me livrar da delegacia e da estupidez do
meu pai que voltei pras drogas. Alguns anos depois, um
conhecido me ofereceu o crack. Como a gente diz, é um
bagulho muito doido! Na primeira vez, já me viciei. E não
parei mais. Quando eu estava na piração, até cachorro
virava jacaré pra mim. Isso mexe com a cabeça.
Passei a não voltar pra casa. Dormia debaixo de
viadutos, em cracolândias, nas quebradas da vida. No
início, minha mãe até ia atrás de mim. Depois, teve que se
voltar pros próprios problemas de saúde. Meu pai desistiu
logo, percebeu que minhas crises atrapalhariam demais o
trabalho dele.
Pequenos roubos e furtos alimentavam o meu vício.
No café da manhã, no almoço e no jantar, o cardápio era
um só: droga. Naquele dia, fumei cinco pedras de crack a
manhã toda. Cheguei em casa por volta de umas quatro
da tarde. Estava muito louco. Fui até a cozinha e peguei
uma faca grande bem afiada. Queria matar meu pai. Claro
que era o efeito da droga. Eu não ia ter coragem pra fazer
isso de cara limpa.
Subi as escadas e fui até o quarto dele. Ninguém. O
quarto da minha mãe? Vazio. De repente, ouvi uma voz
grossa vindo do quarto da minha irmã. Pensei que fosse
um ladrão e corri pra lá de faca em punho. Empurrei a
porta, e o cenário era literalmente uma visão do inferno.
Ao mesmo tempo em que se contorcia sob os lençóis,
como se alguém tentasse dominá-la, minha irmã rosnava
Sumário
91
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
palavrões para os meus pais, que estavam ao lado da
cama. Eles nem notaram minha aproximação. Cheguei até
a janela pra tentar abrir as cortinas, mas, nesse instante,
minha irmã se voltou pra mim.
‘Vou te matar’ – ela gritou, com os olhos fumegantes.
E os lençóis começaram a levitar, e depois o corpo dela
também, como se viesse ao meu encontro. Num impulso,
atirei a faca contra ela, sem direção – deve ter caído
atrás do guarda-roupa. Meus pais me abraçaram, e senti a
minha visão embaçar e começar a girar, e então desmaiei.
Devo ter apagado por umas duas horas. Só acordei com o
barulho de carro estacionando à entrada da nossa casa.”
****
“Prostração. Diante daquela cena, não saberia definir
meu sentimento de outra maneira. De um lado, minha filha
num estado indescritível, algo sobrenatural. De outro,
meu primogênito, desmaiado, beijando a lona por causa
da maldição da juventude atual. Se eu pudesse, sumiria
naquele instante mesmo, como uma névoa que vai se
diluindo através da manhã.
Não sei quando comecei a sumir da minha própria
existência. Talvez quando me casei, aos 25 anos, ainda com
muita fome de vida. O amor nos faz abrir mão de muitas
coisas. Talvez quando, depois de formada em História e já
com um emprego de professora, aceitei os argumentos do
meu marido, um bem-sucedido ortopedista, de que não
precisava trabalhar, pois ele manteria as contas de casa
em dia. Ou ainda quando engravidei com menos de um
Sumário
92
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
ano de casamento e passei a me dedicar integralmente ao
meu filho e ao lar. Acredito mesmo que possa ter sido ao
fazer vista grossa para os indícios de traição em vermelho,
lilás e laranja que meu querido trazia na gola das camisas
e até nas peças íntimas, isso sempre depois de estafantes
plantões no hospital. Veio a segunda gravidez, e a minha
sentença de prisão estava definitivamente decretada.
Difícil indicar o ponto a partir do qual o amor próprio
não voltaria mais. O primeiro porre do marido que agora se
revelava um alcoólatra? O primeiro tapa depois de tentar
contestá-lo? A primeira vez em que surrou nosso filho
pequeno? Não sei. Eu só queria ser amada. Não me refiro
à afeição que meus filhos me dedicavam. Sempre fomos
muito ligados. Eu necessitava de amor como mulher.
Encontrei-o na troca de olhares com um vizinho de
rua, um rapaz solteiro que morava com a mãe doente
em uma casa no fim da rua. Ele era alguns anos mais
novo que eu, alto, magro, ar de intelectual. Sempre que
passava por mim, fazia questão de cumprimentar. Não sei
bem ao certo que desculpa usou para puxar conversa, mas
em pouco tempo já estávamos enrolados sob a coberta de
algum quarto de motel. Esses encontros furtivos duraram
alguns poucos anos, depois dos quais meu namorado
se cansou da clandestinidade da nossa relação. Queria
encontrar alguém com quem pudesse fazer planos.
Nos afastamos por um tempo, e a separação coincidiu
com o agravamento do quadro do meu filho, adolescente
rebelde, que dava cada vez mais preocupação a mim e a
meu marido. Quando nos demos conta, as drogas já tinham
arrombado a porta de nosso lar e estavam sentadas ali no
sofá, diante de nós, assistindo ao noticiário da noite.
Ao mesmo tempo, nossa caçula tinha um estranho
Sumário
93
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
problema de saúde: tiques nervosos, sonambulismo,
gagueira, epilepsia. A situação foi se agravando a tal
ponto que a levamos a psicólogos, psiquiatras, terapeutas
alternativos. Nada adiantou.
Sem meu namorado e rodeada de problemas, me
rendi à depressão. Em pouco tempo, eu mesma passei a
consumir caixas de psicotrópicos na tentativa de levantar
o moral. Os tarjas preta não provocavam em mim efeitos
colaterais, exceto um: vez ou outra, eu tinha alucinações.
Em certa ocasião, cheguei a pensar ter visto meu pai,
falecido anos antes, ao entrar rapidamente no quarto e
dar de cara com ternos do meu marido pendurados no
guarda-roupa aberto.
Depois de algum tempo, meu amor voltou a me
procurar, embora já tivesse outra mulher. Percebi que
agora ele queria só matar saudade do sexo, variar um
pouco. Aceitei, pois não podia impor condições. Mesmo
porque, nossas transas serviam como válvula de escape
de uma panela de pressão prestes a explodir.
Meu
derradeiro
inferno
familiar
começou
aproximadamente às onze da noite. Após voltar de mais
um encontro às escondidas, senti meu sangue congelar
ao notar o carro de meu marido na garagem. Por que ele
já havia retornado do plantão? O normal seria ele chegar
apenas pela manhã.
Atravessei o amplo salão no térreo sem ouvir barulho.
Subi as escadas com cuidado, entrei na minha suíte pé
ante pé. Estava tremendo, tamanha a tensão. Abri o
armarinho do banheiro e logo ingeri duas drágeas de uma
vez. Precisava me acalmar.
Subitamente, explodiu vidro contra a parede do
Sumário
94
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
quarto da minha filha, na outra extremidade do corredor.
Corri para lá e abri a porta num impulso. Alguém havia
arremessado uma garrafa de uísque em direção a um
quadro com a foto dela quando menina. Acendi a luz e
surpreendi meu marido assustado, lívido, à cabeceira da
cama, enquanto minha filha se contorcia e falava palavrões
com uma voz rouca.
Ele estava bêbado. Não tinha nem como contestar
minha chegada tardia. Puxou-me pelo braço para fora do
quarto e trancou a porta. ‘É o demônio, mulher! Nossa
filha está possuída pelo diabo’. Reparei que havia uma
mancha de sangue na manga esquerda da camisa dele.
Tentei abrir a porta, mas ele me impediu. Colei os ouvidos
à madeira e passei a auscultar grunhidos, convulsões,
choques contra o chão e as paredes. Fiquei desesperada,
mas ele não me deixou socorrê-la. Fui até o banheiro e
tomei mais dois tarjas preta.
Ao voltar, meu marido estava à porta do quarto,
como um Cérbero, telefone em punho. ‘Moreira, desculpe
ligar a esta hora. Preciso da sua ajuda.’ O auxílio que
ele procurava era espiritual. Nossa pequena estava
endemoninhada.
Ficamos em vigília a noite inteira. Os barulhos e os
gritos não cessaram. Mal trocamos algumas palavras eu e
meu marido, que emendava doses de uísque uma atrás da
outra. Já os meus companheiros fiéis foram os remédios.
Entupi-me deles durante a manhã e a tarde. Pouco antes
das dezesseis, o silêncio imperou lá dentro. Tomamos
coragem e entramos.
Recomeçou, então, a algaravia de minha filha.
Palavras desconexas, olhos esbugalhados, movimentos
tensos. Mas agora era diferente. Havia fogo na parte de
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95
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
trás da cama. E a cada impropério que proferia, as bonecas
em sua estante se movimentavam, como se submetidas
a um pequeno sismo. Não restava dúvida: era caso de
possessão demoníaca.
Encolhemo-nos próximo à cama, os dois apavorados,
quando repentinamente meu filho invadiu o cômodo com
uma faca na mão. Temi pelo pior. Ele estava transtornado,
e eu não queria que machucasse minha flor. Ela precisava
de ajuda, e não de agressão. Atônitos, nós pais assistimos
ao confronto dos nossos rebentos. O demônio investiu
contra meu filho, que lançou a faca – graças a Deus – sem
qualquer precisão.
Rapidamente, o envolvemos, e ele desmaiou. Com
nosso filho desacordado, não tivemos como sair dali,
mesmo amedrontados pela cena dantesca diante de nós.
Até a chegada do padre, demos as mãos, rezamos e
torcemos para que nada de pior sucedesse.
Quando ouvimos um carro parando perto da entrada
de nossa casa, o demônio começou a gritar mais alto. O
quarto tremeu. Minha filha passou a atirar contra o teto os
jarros de flores que mantinha em sua estante; eu, talvez
numa reação histérica, passei a apertar o interruptor de
luz sofregamente, acendendo e apagando a lâmpada em
ritmo acelerado. Meu marido quedou estático. Nosso filho,
já reanimado, pulou do lado da janela até a porta e foi
atender o padre.”
****
Sumário
96
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
“Não gosto de tratar desse assunto. É uma história
de medo, nojo e ignomínia.
Medo de ser descoberto. Não que eu deva satisfações
a qualquer sentimento moral. Às favas o escrúpulo. O ser
humano é ou não é assim? Mas a queda é maior quando
há muito a se perder. E eu tenho uma posição social
destacada, uma reputação pela qual devo zelar.
Conheci minha mulher quando ela ainda estava na
faculdade. Na ocasião, eu lá cursava o mestrado e já tinha
carreira iniciada e bem encaminhada na área da ortopedia.
Nosso namoro e posterior casamento ocorreram quase
por inércia. Eu precisava de uma mulher para mostrar à
sociedade. Ela tinha boa formação, era de boa família.
Mulher perfeita para casar, ficar em casa e cuidar dos
filhos.
Não que desgostasse da fornicação caseira, mas
desde cedo fui dado a aventuras sexuais. Nunca tive
pudores quanto a isso e sem cerimônia admito que traí
minha companheira desde antes do enlace matrimonial.
Além do sexo, ao qual voltarei a fazer referência
mais adiante, uma outra paixão mundana sempre me
dominou: o álcool. Na juventude, as bebidas me serviam.
Em momentos festivos, estavam lá para tornar o ambiente
mais leve, agradável. Com o tempo, elas passaram a me
absorver. E como no escorrer da areia de uma ampulheta
invisível, a relação se inverteu: era como se eu me houvera
tornado um fiel de algum culto profano a um deus etílico
e tivesse por obrigação depositar em oferenda minha
própria saúde mental.
Somado a um casamento de fachada, o vício é capaz
Sumário
97
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
de produzir o que socialmente se denomina de crápula. Um
marido infiel e agressivo, um pai severo e cruel, apenas
faces aparentes e odiáveis de um homem infeliz.
Ainda me restava o prazer do sexo, tema ao qual
retorno para explicitar o que poderia ter sido minha
ruína, não fosse uma insólita interferência satânica. Sou
um ninfomaníaco, não resta dúvida. Orgias em casas de
suingue, transas com prostitutas, trepadas nos plantões
do hospital, os ménage à trois em que experimentei
até brincadeiras homossexuais... Uma extensa lista de
aventuras lascivas, que, entretanto, já não me apresentava
mais novidade. Eu queria uma experiência sexual inédita.
Ao completar sete anos, minha filha recebeu um
presente diferente. Papai colocou-a no colo, pôs a mão por
baixo de seu vestidinho de rendas, deslocou sua calcinha e
acariciou suas partes íntimas. Foi um prazer indescritível.
Para mim, claro.
Para ela, o nojo. A partir daí, passou a ter problemas
de aprendizado, distúrbios da fala, insônia. Não, eu não
parei. Eu queria mais. Contentei-me com esses aperitivos
durante anos. À medida que avançavam as carícias, seu
estado de saúde se deteriorava.
Naquela noite, cheguei mais cedo em casa, cabulando
um plantão imaginário, o qual só existiu como desculpa
para a minha tola e infiel esposa – como se eu não
soubesse de seu inútil caso amoroso havia muito tempo.
O meu filho já se mudara mesmo para as ruas, de modo
que na mansão estávamos apenas eu e meu brinquedinho
favorito.
Bebi algumas doses de uísque e, já alto, avancei
ao meu parque de diversões. O quarto estava escuro,
Sumário
98
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
ela já estava dormindo. Caí por sobre o corpo dela, sem
pruridos, desbragadamente. Foi quando aconteceu uma
reação inesperada.
Ela me afastou com raiva – uma força excessiva
para uma menina de treze anos. Em seguida, cravou os
dentes no meu braço esquerdo, o que provocou uma dor
aguda. Caí para trás gritando. Ficamos ali alguns minutos
em silêncio sob a luz da lua que entrava pela janela. Eu
tentando me recompor; ela me olhando fixamente, sem
piscar, como se mirasse o infinito. Arrisquei mais uma
investida, e ela prontamente se apoderou da garrafa de
uísque que eu deixara sobre a cômoda e arremessou-a em
direção à parede. Menos de um minuto depois do estrondo,
minha mulher irrompeu no quarto.
Surpreendido pela desagradável presença uxória
e diante do contorcionismo iniciado por minha filha,
ocorreu-me uma desculpa contra a qual soçobra qualquer
tentativa de explicação racionalista: nosso bebê fora
possuído pelo demônio. Retirei a mulher do cômodo e dei
início a uma atuação digna de Oscar. Recorri ao sempre
solícito Moreira, que me prometeu acionar seus contatos
na diocese a fim de conseguir a visita de um exorcista o
mais rápido possível.
Enquanto eu mergulhava no doze anos, minha mulher
chafurdava nas suas pílulas da felicidade. Lá dentro, nossa
filha continuava a se debater, a ranger os dentes e a falar
palavras incompreensíveis.
Depois de muitas horas de angústia, sobreveio a
tranquilidade. Os sons estranhos pararam. Entramos no
quarto, e, então, aconteceu algo inusitado. É como se a
fantasia virasse realidade. Como se uma mentira fosse
repetida tantas vezes que, ao confrontá-la, já não se
Sumário
99
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
distinguisse mais entre verdade e imaginação. A menina
estava mesmo possuída.
Ao nos ver entrar, recomeçaram os espasmos. Ela
vomitou uma cachoeira verde, arregalou os olhos e girou
o pescoço bem além do que um ser humano normal seria
capaz, numa cena digna de Friedkin.
Assustei-me, pois não encontrava uma explicação
plausível para aquilo tudo. Entrei num estado de torpor,
embora tenha permanecido acordado e saiba que continuei
me movimentando pelo cômodo mecanicamente. Quando
retomei o controle dos meus pensamentos, um padre
estava à porta do quarto.
Ah, o medo, o nojo e a ignomínia! Esta surgirá aos
olhos de quem porventura venha a saber dos detalhes
obscuros desse exorcismo, os quais pretendo deixar
escondidos nos recônditos da minha consciência.”
***
Munido de crucifixo, bíblia e água benta – fazia parte
da pantomima do ritual – padre Daniel se apresentou aos
pais da menina, enquanto esta continuava a pronunciar
palavrões e a se debater sobre a cama. O sacerdote pediu
a todos que se retirassem, não antes sem ouvir súplicas
da mãe para que salvasse sua filha.
Assim que todos saíram, a garota se acalmou um
pouco, embora tenha continuado a respirar rapidamente,
como que bufando. O padre encostou a mão direita sobre
a testa da jovem, e ela se mostrou irritadiça. Depois, ele
Sumário
100
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
rezou alguns pais-nossos e ave-marias, ao mesmo tempo
em que espargia algumas gotas de água benta sobre o
leito da enferma. Tratava-se de um eficaz placebo para
aqueles que, por alguma razão, realmente se sentiam
tomados por um demônio.
Finalmente, tomou as mãos da jovem entre as suas,
assentou-as sobre a capa da bíblia, orou mais um pouco e
disse: “Que o espírito ruim que perturba esta jovenzinha
vá embora e ela volte a ter paz. Em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo. Amém”. A menina adormeceu por pelo
menos meia hora.
Ao abrir os olhos, perguntou ao exorcista: “Quem é o
senhor? O que aconteceu?”.
“Você não se lembra?”.
“Não me lembro de nada.” .
“Descanse agora, minha filha. Você só está um pouco
cansada” – recomendou o padre, com um indisfarçável e
sereno sorriso de satisfação, por mais uma vez ter ajudado
uma família a se livrar do diabo imaginário, embora não
pudesse, e talvez nem quisesse, perscrutar os verdadeiros
fantasmas que afligiam aquele lar.
Ainda no andar de cima, fez admoestações aos pais
e ao irmão da menina, garantiu que estava tudo bem a
partir de agora e se despediu.
Ao passar pela sala de estar, já na penumbra pelo
contraste entre a escuridão do adiantado da hora e a
profusão de luzes que a invadiam desde os letreiros do
bairro populoso, deteve-se por um instante a admirar uma
foto da família que acabara de ajudar. Sobre o móvel de
mogno, sorriam felizes os cônjuges e os filhos pequenos,
Sumário
101
O DIABO MORA NESTA CASA
Jorge Eduardo Machado
a garota com não mais de dois anos. Ao girar a cabeça,
pensou ter visto, de relance, uma figura canhestra
sentada sobre uma antiga poltrona forrada com feltro e
prontamente direcionou o olhar para o assento a fim de se
certificar do que vira. Estava vazia. Não passara de uma
ilusão de óptica. Com uma gota de suor frio escorrendo
pela fronte, o padre logo se retirou da mansão, cada vez
mais convencido de que o diabo só existe na imaginação
de mentes enfraquecidas por problemas cotidianos.
Atrás dele, uma gargalhada inaudível aos ouvidos
comuns ecoou pela casa, e voltaram a se estender
invisíveis fios condutores que uniam garras sinistras a
suas marionetes humanas. Talvez o demônio não estivesse
dentro daqueles a quem o padre ajuda. Muito mais
acertado seria ter procurado em volta.
JORGE EDUARDO MACHADO, de 33 anos, é jornalista
formado pela UFRJ, em 2002. Repórter com passagens
pelos jornais O Globo, Extra e Folha Dirigida, além da Rádio
Nacional, atualmente é revisor da Empresa Municipal de
Multimeios da Prefeitura do Rio (Multirio). Em 2006, foi
um dos vencedores do concurso do jornal O Estado de S.
Paulo, cujo tema foi futebol. O conto O dia em que fomos
meninos ficou entre os 11 selecionados, de um universo
de 1.022 concorrentes. Em outro concurso com mais de
200 inscritos, foi um dos 40 selecionados para integrar
a coletânea Palavras das Letras, em comemoração aos
10 anos do curso de Letras da Universidade Federal de
São Carlos (UFScar). Dessa vez, o conto premiado foi
A herança. Expõe seus escritos no Recanto das Letras
(www.recantodasletras.com.br/autores/jem).
Sumário
102
MANEQUIM
Reginaldo Costa de Albuquerque
MANEQUIM
Reginaldo Costa de Albuquerque
O
caminhão da mudança partira com a tarde
empacotada dentro do baú. De pé e morto de
cansaço, no centro da sala de estar, não sei por onde
começo. A lâmpada ilumina uma porção de caixas de
papelão em desordem com roupas, livros, utensílios
domésticos e móveis desmontados. Opto pelo colchão da
cama de casal. Acomodo-o no chão de qualquer jeito e
nele me deito exausto, sem lençóis ou travesseiro. O sono
estava agarrado nas molas.
Desperto na manhã seguinte e encontro à entrada
do banheiro um manequim feminino, privado de roupas e
acessórios de embelezamento, em pose elegante. Objeto
que não faz parte dos meus pertences e nem me recordo
de tê-lo visto ontem na bagunça.
Volto do desjejum na padaria da esquina a uma
quadra daqui e ponho ordem nas coisas sem nenhum afã.
No intervalo que me concedo para o almoço e merecido
Sumário
103
descanso,
imbróglio.
MANEQUIM
Reginaldo Costa de Albuquerque
telefono
para
a
transportadora
sobre
o
“Vamos verificar e entraremos em contato com o
senhor novamente” — responde-me solícita a atendente
no outro lado da linha telefônica.
A nova casa, menor que a anterior, se organiza e
ganha a aparência agradável de um lar. As peças, que os
carregadores retiraram do caminhão-baú, reordeno por
todos os cômodos. Caixas vazias e rasgadas espalho pela
varanda e grama do jardim, sem o mínimo cuidado. O
vulto de uma barata surge na parede cimentada do muro
e agita as antenas.
No outro dia, amanheço no meu quarto devidamente
arrumado. O boneco de sentinela, com o olhar fixo em
mim. Noto a expressão de arranjo de um sorriso que não
havia antes. E, definitivamente, eu não o colocara ali!
Surpresa, a mesa com o café está posta: suco, frutas,
leite, gulodices. E nem é a data combinada com a diarista
contratada. Depois, caixa de ferramentas, furar paredes,
pendurar quadros, bater pregos, apertar parafusos e
estender os varais de roupas.
No quarto dia, levanto-me tarde. Ao espreguiçarme, meu braço direito alongado para o outro lado da
cama, que dá para a parede, toca em algo frio, duro, e
não é o travesseiro. Vejo o manequim que se introduzira
enquanto eu dormia. Com incontáveis afazeres, deixo-o
estirado. Faxinar e colocar a sujeira nos sacos pretos de
lixo, cultivar algumas flores, podar a laranjeira nos fundos
do quintal. O telefone chama.
“Senhor, informamos
reclamação pela falta de
Sumário
que não há registro de
mercadoria por parte dos
104
MANEQUIM
Reginaldo Costa de Albuquerque
clientes” — é a voz da moça da transportadora.
Insisto, mas ela educadamente não dá ouvidos às
minhas ponderações.
“O caminhão saiu vazio da empresa para o transporte
da mudança. Certamente, a mercadoria lhe pertence” — e
desliga.
O tempo se esvai moroso, com tudo acomodado em
seu devido lugar. Um pardal desceu na varanda, saltitou
dois ladrilhos, pegou alguma coisa do chão com o bico e
voou levando o dia a reboque.
A impressão é de sétimo dia e acordo sem o alarme
do despertador, que tiquetaqueia sonolento em cima da
cômoda. O clarão repentino da luz lançada pelo sol penetra
a janela entreaberta e me ofusca a visão. Dormi sobre o
meu lado esquerdo, de frente para a porta do quarto, mas
não a enxergo. Tento levar as costas dos dedos das mãos
para esfregar os olhos, mas não se mexem. As pernas
estão estendidas, os braços dobrados, estáticos.
Cismo preocupado com uma sensação inexplicável de
desconforto.
Enquanto o pensamento dá voltas no labirinto da
inquietação, a campainha toca.
Percebo a movimentação de alguém que deixa a
cozinha, atravessa o corredor e atende. Ouço uma fala
abafada de mulher, que permite a entrada.
Angustio-me. Quem é ela? Quem chegou? Quero
participar, mas meu corpo não reage, não obedece às
minhas vontades. Sinto-me rígido, uma pedra.
Sumário
105
MANEQUIM
Reginaldo Costa de Albuquerque
Rumores de passos se aproximam. Uma mulher alta
surge alheada ao umbral da porta do quarto lixando as
unhas pintadas de uma tonalidade rósea.
O temor se instala. Conheço o talhe do rosto, as
curvas dos lábios. Ilusão?
O manequim se transformara numa mulher real!
Então, dá passagem aos mesmos carregadores que
trouxeram a mudança. Minha boca permanece imóvel e
reprime o bosquejo de um protesto.
Ela reclina a cabeça e arregala os olhos negros, que
brilham intensamente. Em seguida, aponta o dedo em
minha direção com um ligeiro sarcasmo.
“Eis o manequim que vocês entregaram por engano.
Podem levá-lo para o seu verdadeiro dono”.
REGINALDO COSTA DE ALBURQUERQUE tem 48 anos,
campo-grandense-MS de coração. Autor premiado no
Brasil e em Portugal, em concursos de poesias, sonetos e
contos. Autor do livro Sonetos no azul da tarde.
Sumário
106
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
O
crepúsculo começava a surgir no céu quando
Morgan chegou à mansão. Seu irmão fora
recebê-lo na porta. Jonathan parecia ter envelhecido mais
do que o tempo permitiria a qualquer pessoa. Mesmo em
seus plenos trinta anos, cabelos brancos não lhe faltavam
à cabeça. Os olhos esbugalhados, rodeados por olheiras,
mostravam que certamente não dormia há dias. Há cinco
anos os dois não se viam, desde o verão em que Jonathan
e Genevra casaram e mudaram-se para aquela mansão
em Rotherham.
— Sinto muito por sua perda, Jon – disse Morgan,
quando o cumprimentou. – Genevra era uma pessoa
formidável, eu a conheci ainda na infância. Sua morte me
deixou muito abalado.
Sumário
107
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
Ele desviou os olhos de Morgan e se virou para a
mansão, em silêncio, ignorando os pêsames do irmão.
Morgan permaneceu parado no portão, perguntandose se fora somente a morte da esposa que transformara
Jonathan em alguém tão mal-educado.
Quando entrou na mansão, ele percebeu que a casa
fazia jus ao dono. Havia poeira, e como havia! Morgan
teve acessos de tosse enquanto atravessava a sala e subia
as escadas que levavam ao segundo andar. Jonathan,
mostrando-lhe o quarto, permanecia frio e indiferente ao
resto do mundo.
— Há quanto tempo esta casa não é limpa?
— Três meses – respondeu rispidamente.
Genevra morrera há três meses. Não era muito difícil
adivinhar os motivos para Jonathan manter a casa naquele
estado.
— Você se tornou um viúvo muito intrigante, irmão.
— Servirei o jantar em uma hora – disse, ignorando
Morgan mais uma vez. Sem esperar resposta, virou-se e
começou a se afastar. – Fique à vontade.
— Você servirá o jantar? O que aconteceu com os
criados?
— Foram embora – gritou ele no fim do corredor,
desaparecendo de vista.
Morgan voltou-se para o quarto e acendeu as luzes.
Decidira passar uma quinzena em Rotherham para
confortar o irmão após do luto. Seus negócios em Roma
demoraram mais do que ele esperava. Depois de concluí-
Sumário
108
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
los ainda gastara um bom tempo até chegar a Londres,
entregar seus relatórios e partir para Rotherham. Três
meses era muito tempo. Gostaria de ter chegado antes,
pelo menos a tempo de acompanhar o funeral de Genevra.
Sem nenhum conhecido por perto, Jonathan devia ter sido
o único a comparecer. Aquele pensamento era terrível.
Olhou para a janela. Já havia anoitecido. As nuvens
carregadas e escuras cobriam a lua e as estrelas como algo
que parecia cobrir o coração de Jonathan. Talvez fosse o
remorso. Morgan se lembrava das brigas encabeçadas por
Genevra. Apesar de amá-la, seu irmão nunca cedia numa
discussão. Talvez os dois estivessem brigados quando
ela veio a falecer. E nessa condição, até mesmo Morgan
se sentiria culpado por dentro. Tenho que falar com ele,
concluiu, não posso deixar que faça alguma besteira.
Morgan apagou as luzes e deixou o quarto. O corredor
estava vazio e pouco iluminado. Ele esbarrou na parede
duas vezes antes de acostumar os olhos à escuridão. No
fim do corredor, viu a porta de um cômodo iluminado
entreaberta. Aproximou-se e notou que era da biblioteca.
Lembrou-se que Jonathan sempre tivera bons livros.
Talvez fosse melhor esperar pelo jantar lendo alguma
coisa. Conferiu o relógio de bolso para ver o tempo de que
dispunha e entrou.
A primeira coisa que notou foi o cheiro de mofo
do lugar. Tentou, mas não conseguiu controlar um novo
acesso de tosse. Com dificuldade, arrastou-se para uma
poltrona próxima e cobriu o nariz com a gola da camisa.
Depois de se recuperar, conseguiu prestar atenção ao
redor. Como deduzira no começo, a biblioteca era ampla e
transbordava livros. As prateleiras iam do chão até o teto.
Algumas escadas se erguiam entre elas, para facilitar a
locomoção. Uma pilha de livros velhos juntava-se em cada
Sumário
109
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
canto e outras se erguiam pelo chão. No entanto, o que
mais chamou sua atenção foi o quadro pendurado acima
da lareira. Uma grande pintura a óleo de um menino – um
menino que chorava.
Morgan levantou-se da poltrona e aproximou-se
do quadro. Notou o calor à medida que se aproximava
da lareira – ela fora apagada há pouco. Não mais que
algumas horas talvez. Jonathan estivera ali. Fazendo o
quê? questionou-se.
Morgan olhou para a figura do menino, que de perfil
parecia fitá-lo sombriamente. Talvez fossem as lágrimas,
talvez fosse o olhar vazio de suas pupilas dilatadas,
mas algo diferente parecia vir daquele quadro. Morgan
permaneceu longos minutos a observá-lo, de pé, como
se estivesse hipnotizado. Olhou cada detalhe da tela.
Jonathan e Genevra sempre tiveram bom gosto, porém
Morgan nunca havia visto aquela pintura. Talvez a cunhada
houvesse comprado antes de morrer e agora seu irmão a
guardasse como uma triste lembrança. Curioso, procurou
por uma assinatura na tela.
G. Bragolin, rabiscada em tinta vermelha em um dos
cantos. Tentou se lembrar das obras dos pintores que
conhecia, mas nenhuma tinha o aspecto de um menino
que chorava.
De onde veio esse quadro?
Morgan ouviu passos na escada. Devia ser Jonathan.
Conferiu o relógio de bolso. Havia se passado dez minutos
depois da hora que seu irmão marcara para o jantar.
Quando o tempo passou a correr tão rápido? Jon deve
estar furioso! Morgan virou de costas para o quadro e
correu em direção à porta. No entanto, quando a abriu,
Sumário
110
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
deparou-se com a figura do irmão.
— Esqueceu-se do jantar? – perguntou ele, rudemente.
– O que você está fazendo na minha biblioteca?
— Lendo – mentiu.
Jonathan o olhou intrigado, por um longo tempo,
antes de se virar para o corredor. Resmungou qualquer
coisa antes de se dirigir novamente a Morgan.
— Desça – disse ele. – A comida não permanecerá
quente até o fim do outono.
À mesa do jantar, Morgan sentou-se em um dos lados,
enquanto seu irmão ocupou a cadeira da ponta. Jon serviulhe pão e queijo seco, mas mal tocou na comida. Enquanto
bebia vinho, Morgan notou que havia outro prato vazio na
mesa – disposto ao assento da outra ponta. Percebeu que
Jonathan não parava de fitá-lo, num interminável silêncio.
— Era o lugar de Genevra? – perguntou Morgan,
despertando o irmão do transe. Jon o olhou rapidamente,
antes de voltar o olhar para o assento vazio e assentir
com a cabeça.
— Você ainda não se esqueceu dela, não é?
Assentiu novamente.
Morgan se calou. Não sabia o que dizer. Minutos
depois, Jonathan se levantou e trouxe da cozinha um
pato assado. Parecia-lhe bom a princípio, mas a frieza
de seu irmão amargou cada garfada que levara à boca.
Jonathan não provou o pato. Vez ou outra, ele bebericava
a taça de vinho – mas nada mais que isso. Não disse
uma palavra durante o jantar. Morgan pensou em fazer
Sumário
111
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
algum comentário frívolo sobre a comida, pelo menos para
quebrar o silêncio daquela refeição. Mas viu que a seu
irmão não adiantaria. Ele continuava fitando o assento
vazio na outra extremidade da mesa, em silêncio.
— Sabe do que você precisa, Jon? – perguntou ele de
repente. – Outra esposa. Alguém que lhe faça esquecer
Genevra.
Jonathan disparou um olhar frio em sua direção.
— Não diga absurdos.
— Estou falando sério – Morgan não sabia de onde
retirara coragem para dizer aquilo, mas agora que já
o dissera, não importavam mais as consequências. –
Mulheres não faltam em Londres. Eu posso lhe apresentar
algumas, da mesma forma como lhe apresentei Genevra.
Tenho certeza de que elas se interessarão por você...
— Eu ainda amo minha esposa – disse ele. – E nem
todas as mulheres da Inglaterra preencheriam seu lugar.
— Acho que é a minha vez de dizer “não diga absurdos”
– replicou. – Genevra se foi. Milhares de mulheres o
esperam fora desta mansão mórbida e empoeirada.
Garanto-lhe que em breve você se casará com outra. Uma
que lhe dê filhos. Depois, será fácil para você esquecerse da primeira esposa. Não se preocupe, Jon, você ainda
encontrará alguém melhor que Genevra...
Jonathan esmurrou a mesa e se levantou.
— Jamais repita isso – repreendeu em um tom
severo. – Não na minha frente. Não sob este teto. –
Encarava Morgan com um olhar perturbado, que ele nunca
vira no rosto do irmão. – E lembre-se de duas coisas: não
Sumário
112
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
existe nenhuma mulher melhor que Genevra; e não existe
nenhuma que eu possa amar além dela.
E, dizendo isso, foi embora. Morgan permaneceu
sozinho na sala de jantar, bebericando o vinho. Durante
um bom tempo, ficou como o irmão: fitando o lugar vazio
na mesa sem dizer uma palavra.
Uma valsa começou a tocar em outro cômodo. Devia
ser Jonathan mergulhando nas amargas lembranças do
passado. Morgan se lembrava de como seu irmão e sua
cunhada dançavam bem juntos. Ele até tentava aprender
os passos, mas nunca se saía tão bem quanto eles. À
mesa, Morgan tomou o último gole do vinho e se levantou.
Procurou pelo cômodo de onde vinha a música.
Atravessou a sala, subiu a escada, cruzou mais corredores,
até que chegou ao lugar. Sentado em uma poltrona de
uma sala vazia, Jonathan tinha o rosto coberto pelas
mãos. Morgan não conseguiu distinguir se chorava ou se
refletia. A valsa continuava surgindo de algum lugar, por
mais que não visse sinal de vitrola. Aproximou-se do irmão
e pousou a mão em seu ombro.
— Perdoe-me, Jon – disse. – Eu não devia ter dito
aquilo.
— Esqueça – respondeu, um pouco mais calmo,
retirando o rosto das mãos. Seus olhos pareciam
marejados. – Já é tarde. É melhor você voltar ao quarto e
dormir. Amanhã será um longo dia...
Morgan ignorou o irmão e sentou-se próximo a ele,
numa poltrona perto da sua.
— Nunca desejei mal a você, Jon. Nem a você, nem
a Genevra – confessou. – Pelo contrário, sempre desejei o
Sumário
113
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
melhor para vocês. Meu irmão e minha amiga, juntos para
sempre. Agora tudo mudou – ela se foi e você está se
comportando dessa maneira. Isso me preocupa.
Aguardou uma resposta do irmão, mas ela não veio.
Os olhos de Jonathan pareciam querer derramar mais
lágrimas. A janela aberta deixava um frio vento de outono
entrar. O inverno chegaria a qualquer momento, quando
eles menos esperassem.
— Você está mudado, irmão – disse Morgan. – Não
sei o que aconteceu, ou como aconteceu; mas algo mudou
você. Eu diria prontamente que foi a morte de Genevra
que lhe deixou assim, mas algo me diz que não foi apenas
isso. Então o que foi, Jon? Diga-me!
A valsa se encerrou de repente. Jonathan ergueu o
olhar para Morgan. Os dois se fitaram durante um longo
tempo. Mas nenhuma palavra foi dita por ele. O silêncio
entre os dois parecia não ter fim, até Morgan quebrá-lo
mais uma vez.
— Então espero que tenha uma boa noite – foi o que
disse antes de sair. Jon não é mais a pessoa que conheci,
concluiu, meu irmão morreu junto com Genevra...
Foi direto para o quarto e se jogou na cama. Uma
camada de poeira se levantou quando ele o fez. Teve outro
acesso de tosse. Depois de se recuperar, Morgan trocou-se
e deitou, pretendendo dormir. No entanto, não conseguiu
encontrar o sono. Virou-se de um lado para outro mais
de uma vez. Além da cama desconfortável e do cheiro de
poeira nos lençóis, não conseguiu parar de pensar no que
Jonathan se transformara.
Pensei em ficar aqui durante uma quinzena, lembrouse Morgan, mas irei embora amanhã, ao amanhecer. A
Sumário
114
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
pena que sentira do irmão dava lugar à raiva. Que ele
apodreça sozinho pelo resto da vida. Pouco me importa.
Quando finalmente conseguiu dormir, Morgan teve
horríveis pesadelos. Todos eles envolvendo fogo e morte.
Não para menos, assim que se levantou descobriu que
estava coberto de suor. Vestiu as roupas de viagem e
colocou um chapéu para disfarçar o cabelo, que durante a
noite tornara-se sujo e embaraçado.
Olhou para a janela e viu os primeiros raios de
sol surgindo atrás da colina próxima à mansão. Nuvens
ameaçavam cercá-los. Guardou as poucas coisas que
retirara da mala, arrumou a cama, fechou as cortinas e
partiu do quarto. Não olhou para trás.
As portas do corredor estavam todas fechadas.
Melhor assim, pensou. Não queria ver o irmão outra
vez, tampouco se despedir dele. Arrastou a mala até as
escadas e começou a descê-la. O barulho foi tamanho que
Morgan surpreendeu-se por não ter chamado a atenção
do irmão. Atravessou a sala a passos rápidos e chegou à
entrada. Abrindo a porta e fechando logo em seguida, saiu
da mansão sem olhar para trás.
O som das folhas sendo sopradas pelo vento despertou
sua atenção. Olhou para o céu e viu que uma tempestade
se aproximava. As de outono sempre eram as piores. O
sol logo sumiria entre as nuvens negras que cresciam no
céu. Morgan precisaria andar rápido se quisesse pegar o
expresso que o levaria até Londres. A tempestade não iria
esperá-lo.
Já atravessava o jardim quando o vento aumentou
de repente. Morgan cobriu os olhos, mas não conseguiu
impedir que seu chapéu voasse. Praguejando para si
Sumário
115
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
mesmo, deixou a mala no chão e voltou-se para a mansão,
procurando pelo chapéu. Foi encontrá-lo perto da entrada,
pousado sobre um jornal velho e surrado. Tratava-se de
uma edição antiga do The Sun.
Quase mecanicamente, leu o título da manchete,
escrito em letras garrafais. A MALDIÇÃO DOS QUADROS
DAS CRIANÇAS QUE CHOR AM. Curiosamente, havia uma
foto de uma pintura muito semelhante à da biblioteca de
Jonathan, onde um menino parecia fitá-lo, com lágrimas
escorrendo pelo rosto. Morgan pegou o jornal do chão e
começou a ler a matéria, intrigado.
...tudo começou com um frustrado pintor italiano,
Graham Bragolin...
Morgan já vira aquele nome, só não se recordava de
onde. Demorou algum tempo até que conseguiu se lembrar.
A pintura de Jon! Estava assinada com G. Bragolin!
...e nessa noite, Grahan teve um sonho. Nele, vinte
e oito crianças eram torturadas no inferno e choravam
pedindo clemência...
Toda aquela história parecia muita confusa.
...ao invés de vender sua alma pelo sucesso, ele
ofereceu as almas daqueles que comprassem seus
quadros...
Enquanto lia, tinha um mau pressentimento sobre
aquilo tudo.
...o que não impedia os compradores de modificarem
os pactos para o próprio bem...
De repente, tudo se encaixou. Morgan deixou o jornal
Sumário
116
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
cair no chão, de tamanha consternação. Não! tentou gritar
para si mesmo, Jon não fez isso!
Olhou para a mansão à sua frente. Não podia deixar
Jonathan fazer o que ele pensava que estava fazendo.
Deixou o chapéu no chão e começou a atravessar o
jardim. Um relâmpago ricocheteou o céu, seguido por um
estrondoso trovão. Morgan nem ligou para sua mala sobre
a grama e entrou na mansão. Não viu sinal de seu irmão.
— Jonathan! – gritou.
O grito ecoou pelas paredes, mas ninguém lhe
respondeu.
Sem pensar duas vezes, começou a subir as escadas
que levavam ao segundo andar. Tinha absoluta certeza de
onde ele estava.
— Jonathan! – gritou mais uma vez, já no corredor.
Ele não apareceu.
A porta da biblioteca
girou a maçaneta, abriu a
mais estranha de sua vida
parecia estar carregado de
concluiu, e ele também...
estava destrancada. Morgan
porta, e entrou. A sensação
foi entrar aquele lugar. O ar
maldade. Jonathan está aqui,
Encontrou-o na frente da lareira, observando o
quadro do menino que chorava com uma expressão vazia
no rosto.
— Morgan... – murmurou, com a voz distante. – Ele
disse que você voltaria...
— Por que você fez isso, Jon? – perguntou, se
aproximando com cautela.
Sumário
117
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
— Ele prometeu trazê-la de volta... – disse Jonathan
fitando a pintura.
— Não diga isso, Jon. Ninguém pode trazer Genevra
de volta. Ela morreu.
— Ele pode – murmurou, pousando o olhar sobre
Morgan. – Ele é poderoso. Você não sabe o quanto.
— Ninguém é mais poderoso que Deus – e o quadro
pareceu tremer ao som do Seu nome. – Livre-se dele, Jon!
Deixe o quadro, deixe essa casa. Venha embora comigo
para Londres.
— Agora já é tarde, Morgan. Nosso pacto foi selado
a sangue. Nem eu poderei fugir com minha palavra; nem
ele. Gene voltará para mim, seja qual for o preço que terei
que pagar.
— E qual é esse preço? – indagou. – Sua alma?!
O menino da pintura pareceu sorrir, enquanto uma
lágrima escorreu pelo rosto de Jonathan. Morgan sentiu
um mau pressentimento.
— Não. A sua.
E seu coração disparou. Deu dois passos para trás.
— Eu?! – gritou, incrédulo. – Você não pode estar
falando a verdade, Jon.
— Somente a alma de uma pessoa viva pode pagar
pela alma de uma pessoa que já morreu – continuou ele,
dando um passo para longe do quadro. O menino parecia
fitá-lo.
— E por que me escolheu?! Eu sou seu irmão,
Sumário
118
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
Jonathan!
— Desculpe-me, Morgan, mas eu quero que Gene
volte para mim. Ele exigiu a minha alma, mas eu não posso
oferecê-la se quiser ficar com minha esposa. A única que
ele aceitou em troca foi a sua. Pensei em lhe mandar uma
carta, mas ele disse que você viria me visitar. Cedo ou
tarde você viria. Sinto muito por ter entregado sua alma,
Morgan, mas foi preciso.
Morgan sentiu os pés se prenderem ao chão. As
mãos perderam o movimento e, quando tentou falar, sua
voz desapareceu. Ficou paralisado. Uma risada diabólica
atravessou o ar, talvez vinda de sua cabeça, talvez do
quadro.
— Jon... – disse uma voz feminina de repente. Uma
mulher surgiu na biblioteca. Tinha a pele pálida, os olhos
verdes e os cabelos negros. Usava um lustroso vestido
vermelho. Ela se aproximou de Jonathan, enquanto este a
olhava fixamente.
— Gene... – murmurou ele, abrindo os braços. Algo
diferente brilhou em seus olhos. Os dois se abraçaram e
se beijaram longamente. O menino que chorava no quadro
parecia fitá-los. De repente, uma valsa começou a tocar
– a mesma que ele ouvira antes. O casal se deu as mãos
e começou a dançar. Morgan continuava preso ao chão,
observando tudo aquilo.
Então a parede ao redor do quadro começou a pegar
fogo. Jonathan e Genevra continuaram dançando ao som
da valsa, ignorando completamente o que acontecia ao
redor. As chamas consumiam a parede, mas a pintura da
criança que chorava permanecia intacta. Morgan sentiu
o calor aumentando. Em pouco tempo, o fogo chegou
Sumário
119
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
aos livros. E a partir daí, a biblioteca se transformou no
inferno.
As chamas se multiplicaram pelo lugar, tão rápidas
que foi difícil acompanhá-las. A criança no quadro
continuava chorando, enquanto o casal girava para um
lado e para outro, dançando uma música que parecia não
ter fim. Aquela cena mais se parecia com um pesadelo.
Morgan sentiu os pés se soltarem de repente. As
mãos conseguiram se mover e, quando tentou falar, a voz
finalmente saiu.
— Jon! – gritou, em meio a fumaça e o fogo da
biblioteca. – Jon, fuja! Venha comigo!
Ele não respondeu. Num último instante, Morgan
vislumbrou seu irmão dançando valsa com Genevra. Pela
primeira vez desde que o reencontrara, ele viu Jonathan
sorrir. E percebeu que a loucura o dominava. As chamas
começaram a consumi-lo, junto com sua esposa, mas ele
continuou sorrindo.
No meio de todo o fogo, o quadro resistia; intacto. A
criança, contudo, já não estava mais nele.
Morgan virou-se para a porta e fugiu da biblioteca
em chamas. Desceu os degraus da escada o mais rápido
que pode e depois saiu pela porta. Atravessando o jardim,
olhou para trás. E viu que uma grande fogueira erguia-se
sobre o chão.
— Não é lindo? – disse uma voz infantil. Uma criança
surgiu na sua frente, observando atentamente as chamas
consumirem a mansão.
— Quem é você?
Sumário
120
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
— Você não sabe? – indagou ela, virando-se para
Morgan. Na mesma hora ele reconheceu as pupilas
dilatadas do menino do quadro. No entanto, ali ele não
chorava – e sim sorria.
— O que você quer?
O menino meneou a cabeça.
— Ora, Morgan, caso não se lembre, seu irmão
entregou sua alma para mim. Agora ela é minha para eu
usá-la da forma que quiser.
— Não tenho medo de você – retrucou. – Deus me
protegerá de todo e qualquer mal, inclusive dos seus
pactos.
E
começou
a
rezar
desesperadamente
em
voz
alta,
tentando se lembrar das frases decoradas desde criança. Nunca
precisara tanto delas.
O menino ficou em silêncio, olhando-o fixamente.
— Você realmente crê que Deus ouvirá o pedido de alguém
cuja alma pertence a mim? – indagou, um pouco confuso. – Às
vezes os seres humanos são tão engraçados...
De repente, um relâmpago riscou o céu escuro. Ele viu
dois chifres na sombra que a criança projetou. Antes que
Morgan pudesse ter alguma reação, sentiu um toque frio e
molhado em seu rosto. Mais outro. E depois outro. Olhou para
cima. Começara a chover. O menino à sua frente fungou o nariz.
Morgan notou o porquê de sua reação. A chuva estava
apagando o incêndio.
— Assim não tem graça – resmungou ele.
Sumário
121
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
— Isso é obra de Deus – comentou ousadamente. A chuva
estava engrossando cada vez mais. Morgan já tinha o cabelo
ensopado. – Ele sempre vencerá você.
O menino o olhou com desdém e começou a rir. Riu alto,
como se houvesse escutado uma ótima piada.
— Vamos ver – disse.
Ergueu a mão esquerda e estalou os dedos.
A chuva então parou. Mas de uma maneira inacreditável. Os
pingos ficaram suspensos no ar, imóveis como se não existisse
gravidade. As chamas, contudo, continuaram consumindo a
mansão.
Morgan estremeceu. Sua cabeça dava voltas e mais voltas.
Ele não sabia o que aconteceria dali em diante. Porém, sabia
que não haveria como fugir.
— Por favor, deixe-me ir – suplicou. – Meu irmão está
morto. Não era isso que você queria? Agora você não precisa
mais de mim.
— Você se engana – corrigiu. – Quero que você seja meu
escravo.
O coração de Morgan disparou.
— Eu lhe suplico, deixe-me ser livre – pediu.
— E o que você me daria em troca?
— Qualquer coisa!
O Diabo abriu um sorriso e olhou Morgan fixamente.
— Então, nós podemos fazer um pacto.
Sumário
122
LÁGRIMAS DE CRIANÇA
Pedro Viana
PEDRO VIANA é mineiro, nascido em 1996, tomou
gosto por histórias desde pequeno. Gastou quase quinze
anos para perceber que o que mais gosta de fazer na
vida é escrever. Depois disso, começou a perseguir seu
objetivo, escrevendo muito e lendo mais ainda. Possui
um caso sério de dependência de livros. Nos dias que não
tem nada para ler, enfrenta fortes crises de abstinência.
É apaixonado pela fantasia e pelo terror. E além da
literatura, aprecia muito o cinema e a música. Pretende,
num futuro próximo, se formar em Jornalismo. Por ora,
despacha contos para antologias e trabalha na produção
de seu primeiro livro – a ser publicado logo depois que
concluir a faculdade.
Sumário
123
CAMINHOS PERIGOSOS
Hélio Sena
CAMINHOS PERIGOSOS
Hélio Pena
Quando Raimundo avistou a casa, as sombras
da noite já haviam começado a se derramar sobre o
mundo... O pobre homem caminhara o dia inteiro sob o
sol escaldante da caatinga, sozinho, por estradinhas ora
de barro vermelho, ora de finíssima areia branca; estava,
pois, quase morto de cansaço e fadiga. Por isso, deu
graças a Deus quando avistou aquela casinha perdida no
meio daquele deserto, e tratou de apressar o passo para
chegar lá, antes que a noite caísse de vez.
Enquanto caminhava, observava, admirado, a grande
quantidade de morcegos que esvoaçavam para lá e para
cá, alguns passando bem rente a ele. Raimundo nunca
tinha visto tanto morcego junto! Aquilo lhe pareceu coisa
de mau agouro, e, apesar de ser um homem de bastante
coragem, não deixou de sentir um ligeiro arrepio na
espinha...
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Então, para se distrair, começou a assobiar uma
cançãozinha aprendida com o pai, no tempo em que ele,
Raimundo, era apenas era um menininho inocente, que
sonhava em um dia ir embora para o sudeste, ganhar
bastante dinheiro por lá, e voltar milionário para matar a
fome daquela gente pobre do sertão, que tanto precisava
de ajuda!
Era justamente nesse seu sonho grandioso que
Raimundo pensava, enquanto caminhava, assobiando...
A canção misturava-se ao barulho do pedregulho, que
estalava sob os seus chinelos carcomidos, e perdia-se para
além da vegetação seca e retorcida, para além daqueles
serrotes que mais pareciam montanhas-russas da morte,
até diluir-se na enorme imensidão da noite...
...
Quando parou diante da casa, desvaneceu-se do
coração de Raimundo toda e qualquer esperança de
que ali pudesse residir alguém... A casa não passava
de uma tapera velha, com o barro da taipa caindo em
muitos lugares; a porta e a janela da frente haviam sido
destruídas pelo cupim, deixando entrever o negrume que
reinava no interior do casebre...
Pelo menos tem um teto, pensou Raimundo, e é disso
que mais estou precisando nesse momento. Está bom
demais! Vou pernoitar aqui mesmo e amanhã cedo sigo
viagem...
E, sem mais delongas, entrou na choupana. Ficou um
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instante imóvel para acostumar seus olhos à penumbra.
Percebeu então que o casebre era composto por um único
cômodo, e que estava vazio, exceto pelo que parecia
serem cinco ou seis garrafas de vidro espalhadas num dos
cantos... Nada mais!
Com um suspiro de alívio, Raimundo depôs no chão
a cabaça d’água e o saco de estopa que carregava nas
costas. Ali dentro do saco ia o seu tesouro, o grande
motivo daquela viagem sem fim que ele empreendera há
quase três dias...
Amanhã, tornou ele a pensar, amanhã tudo vai ser
diferente. Quero dar esta alegria para os meus filhos,
para a minha mulher, coitados, tão distantes agora... Mas,
deixe estar! A nossa salvação está bem pertinho, já posso
até sentir o cheiro da danada. Amanhã, com certeza, tudo
estará diferente!
E, sentando-se ao lado do saco de estopa, chegou a
dizer em voz alta:
– Pelo menos um sonho eu tinha que realizar nessa
vida, né?... Pelo menos um!
E, assim dizendo, o viajante sorriu de peito aberto.
Chegou mesmo a gargalhar, como há tempos não fazia.
Estava confiante no futuro. O tempo de privações e
tristezas finalmente estava chegando ao fim, e era isso o
que importava, de verdade.
Num gesto mecânico, tirou o chapéu da cabeça e
olhou através da porta. A noite caíra de vez. Os morcegos
horrendos haviam dado lugar a milhões de estrelinhas
cintilantes...
O céu nunca esteve tão bonito como hoje, pensou
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Raimundo. Nunca, nunca mesmo!
Ele ficou alguns minutos apreciando as estrelas,
totalmente embevecido. Depois meteu a mão no bolso,
retirou o pacote de fumo, e, guiando-se apenas pelo
tato, fez o seu cigarro. Quando riscou o fósforo, a chama
mostrou um rosto precocemente envelhecido, barba e
cabelos por fazer, com vários fios grisalhos... Havia, no
entanto, algo diferente ali: os olhos, outrora opacos, agora
irradiavam um brilho especial, um brilho que certamente
não era apenas o reflexo do brilho das estrelinhas lá no
céu...
Acabado o cigarro, Raimundo pegou a cabaça, bebeu
dois bons goles d’água e estirou-se no chão; logo estava
ferrado no sono...
...
Ao se deitar, Raimundo não percebe que alguém
se aproximara sorrateiramente da janela, e agora está
olhando fixamente para dentro do casebre...
O estranho ser lá fora está deveras faminto... Sua
aparência, em frangalhos, é de alguém que acabou de
levantar da sepultura. Um morto-vivo, uma terrível
assombração!
A criatura chega a gemer, sentindo o cheiro da carne
fresca de Raimundo...
E então, instintivamente, ela caminha para a entrada
da choupana...
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Hélio Sena
...
Raimundo desperta com a dor lancinante da mordida
no ombro... Tenta se levantar, mas a criatura, dotada de
uma força descomunal, imobiliza-o, enquanto aplica outras
mordidas violentas no corpo do viajante.
Em desespero, Raimundo se lembra da faca na cintura.
Com esforço sobre-humano, consegue puxá-la e espeta o
zumbi na altura do peito. Enlouquecida, a visagem aplicalhe uma mordida que arranca parte da orelha esquerda.
Outra mordida o fere mortalmente no pescoço...
Em transe, Raimundo pensa na mulher, nos filhos, no
saco ali ao lado e, reunindo suas últimas forças, empurra
a fera de cima de si. Em segundos fica de pé, e, furioso,
desce o sarrafo sobre o vulto caído ali no chão, cobrindo-o
de facadas, até fazê-lo em pedaços...
Findo o massacre, Raimundo sente o corpo desfalecer...
Então desaba no meio daquela carne putrefata, que, de
certa forma, lhe amortece a queda e serve de travesseiro
para um sono profundo e completamente sem sonhos...
...
Quando Raimundo acordou, o dia vinha clareando.
Sentou-se, esfregando os olhos.
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O seu corpo todo doía, parecia que havia levado uma
surra.
Mas sorriu ao avistar o saco de estopa.
– Meu tesouro! – disse ele.
Pôs-se de pé, ajeitou o saco e a cabaça d’água nas
costas, o chapéu na cabeça e saiu do casebre.
Lá fora, lançou um olhar ao redor. Apenas aquela
paisagem agreste, tão comum aos seus olhos de sertanejo
calejado, de homem que é antes de tudo um forte.
Ao lado do casebre, avistou, com pesar, um monte
de terra com uma cruz tosca feita de gravetos enfiada em
cima.
A terra parecia ter sido remexida recentemente...
Com certeza tinha sido obra de algum peba, famoso
comedor de defunto daquelas paragens, ou de qualquer
outro bichinho do mato.
O viajante benzeu-se, pensando em quem poderia
estar enterrado ali...
Depois olhou para o nascente.
O sol, lá na frente, parecia uma gigantesca moeda de
ouro.
Raimundo sorriu mais uma vez.
E, decidido, marchou a passos largos, larguíssimos,
naquela direção...
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Hélio Sena
HÉLIO SENA é cearense, professor, autor confesso...
Nasceu em Padre Linhares, distrito de Massapê, a
12/09/1975. Figura em dezenas de coletâneas de contos
e poemas. Expõe seus trabalhos nos blogs Entre Palavras
e Minicontos. Recebeu, entre outras distinções, o Troféu
Macunaíma no XIV Festival Literário de Imperatriz (MA)
e o 1º lugar em concurso de crônicas promovido pelo
programa Papo Literário, da TV Ceará (Fortaleza).
Twitter: @helyosena
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FIM
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