Futebol, consumo e publicidade: novas modalidades de apelo e representação do pertencimento clubístico Arlei Sander Damo Para que os membros de um grupo se reconheçam como tais não basta partilharem determinados sentimentos, é fundamental expressá-los e vivenciá-los coletivamente. No caso específico do futebol, a festa instaurada por ocasião dos jogos constitui o nível mais elevado de celebração deste pertencimento. Mas não é apenas por ocasião destes acontecimentos que os torcedores exteriorizam seus sentimentos e reconhecem-se uns aos outros. Para tanto, determinados emblemas que caracterizam um ou outro clube, como o são determinadas cores, bandeiras, bonés, camisetas, etc, assumem uma conotação simbólica a medida que objetivam uma série de códigos, valores, atitudes e concepções. A bandeira de um clube, tal qual a de uma nação, condensa uma série de representações a ponto de se constituir num objeto sagrado, conferindo, por isso mesmo, visibilidade, prestígio e distinção ao seu portador; ao mesmo tempo que desperta, no imaginário dos torcedores os mais variados sentimentos. Porém, será possível que um pacote de erva-mate, uma toalha de banho ou uma lata de cerveja venham assumir o mesmo simbolismo de outros objetos já consagrados pela tradição como o são, no caso dos clubes, bandeiras, flâmulas e camisetas, por exemplo? A indagação pode parecer despropositada se se desconsiderar a verdadeira avalanche de mercadorias que estão disponíveis no mercado vinculadas à imagem dos clubes; associando - ou pelo menos pretendendo conciliar dinheiro/pertencimento, mercadoria/símbolo, torcedor/consumidor, clube/empresa, e assim por diante. 2 O uso, para fins comerciais, daquilo que os dirigentes esportivos e a media em geral convencionaram por imagem do clube não se caracteriza como um fato sem precedentes. Por um lado, a comercialização da imagem não difere substancialmente de outras tantas modalidades de troca em que os clubes emprestam seu prestígio mas não são, necessariamente, retribuídos com cifras. De outro modo, a associação da imagem dos clubes a determinados produtos pode ser considerada uma estratégia mercadológica generalizada, característica de um estágio do capitalismo em que o valor de troca suplantou largamente o valor de uso. Esta realidade não implica tão somente num apelo ao consumismo, para o qual acorreriam apenas empresários e dirigentes esportivos, mas evoca o imaginário dos torcedores, mobilizando-os para a atualização e ressemantização de categorias como identidade, memória e representação do pertencimento clubístico. Embora os dividendos pecuniários possam ser considerados à razão principal para a qual o clube mobiliza seus torcedores, através das mercadorias, não se pode reduzir este processo a um mero utilitarismo. Uma afirmação nestes termos estaria de acordo com outra, mais genérica, segundo a qual as mercadorias são fundalmentamente imprescindíveis apenas para a subsistência e o incremento do mercado. A este respeito vale lembrar a crítica de Douglas & Isherwood às explicações utilitaristas, afirmando, contrariamente a estes últimos, que “los bienes son necessarios para hacer visibles y estables las categorias de una cultura, (...) [pois] sirven para establecer y mantener relaciones sociales” ( Douglas & Isherwood, 1990:74-5). 3 Para um entendimento preliminar de como os produtores, clubes, consumidores e mercadorias se relacionam, proponho dois esquemas simplificados a serem elucidados a partir de dados etnográficos.1 clubes produtores mercadorias consumidores (esquema 1) clubes torcedores (esquema 2) O esquema 1 sugere que os clubes, através de seus respectivos bens simbólicos, são os intermediários da relação entre produtores e consumidores. Já o esquema 2 confere às mercadorias, enquanto portadoras de imagem, o papel de intermediação entre clubes e torcedores. A contextualização de alguns fatos importantes auxiliará a compreensão destes enunciados. Os clubes como mediadores ou a imagem como mercadoria A aprovação da Lei de Diretrizes e Bases do Desporto (1993), também conhecida como Lei Zico, foi saudada pelos grandes clubes do futebol brasileiro - representados pelo Clube dos Treze - e pela media como um passo definitivo para a modernização do nosso futebol. A parceria Palmeiras-Parmalat alavancou um processo emergente já no início da década de oitenta a partir do qual os clubes passaram a ceder espaços à publicidade, tanto nos uniformes quanto nos estádios. Se este procedimento seduziu rapidamente empresários, 1 Tais dados foram afereridos no âmbito do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e do Sport Club Internacional, através de alguns de seus dirigentes, publicações oriundas dos próprios clubes, informações vinculadas pela impresa local, visita a museus e lojas, entre outras, no período de janeiro e fevereiro de 1996. 4 cartolas e publicitários, atualmente, até mesmo os torcedores, inicialmente titubeastes em relação à novidade, foram aos poucos se habituando à idéia de que a paixão pelo clube poderia ser usada para aumentar as vendas de leite, cerveja, frango, biscoitos, entre tantos. Neste contexto, os departamentos de marketing, como atestam os de Grêmio e Internacional, emergiram subitamente do ostracismo adquirindo importância crescente a medida que viabilizam receita extra para o clube.2 Um dos sintomas mais evidentes a respeito da prosperidade da parceria é a eminente terceirização destes departamentos, tanto que ambos os clubes já possuem contratos com agências de publicidade embora com atuação restrita, basicamente, aos planos de sorteios. A relação entre a performance da equipe e o comportamento dos torcedores, associado à estetização do cotidiano e ao consumo, parece tão óbvia e contígua que sugere não haver qualquer possibilidade de interferência direta por parte de terceiros, como a publicidade, por exemplo. Engana-se quem levar esta premissa às últimas conseqüências, pois basta acompanhar o noticiário esportivo para se perceber a sutileza com que a media, dirigentes e jogadores promovem os espetáculos e a si próprios. Deste modo, o futebol em geral e os clubes em especial, conquistaram um espaço invejável que os tornam permanentemente visíveis, ao alcance imediato do torcedor. E é principalmente esta visibilidade permanente que os comerciantes buscam com a apropriação da imagem dos clubes. 2 Embora a principal fonte de arrecadação permanece diretamente relacionada às rendas dos jogos e a comercialização de atletas, os dirigentes são unânimes com relação a importância das receitas forjadas pelo marketing. Dentre as atribuições deste departamento está o gerenciamento das placas de publicidade, dos aluguéis de terrenos e outras dependências patrimoniais, 5 A verdadeira corrida à dupla grenal por parte dos fabricantes de mercadorias iniciou no segundo semestre de 94 e, em pouco mais de um ano, o Inter já possui mais de sessenta e o Grêmio mais que o dobro de produtos licenciados disponíveis no mercado. A diversidade dos produtos é notável; de bonés, fitas e camisetas até lençóis, toalhas de banho e roupas íntimas; de balas, biscoitos e sorvetes até massas e erva-mate; de bicicletas, cadeiras de praia, suco de laranja e cervejas até velas, relógios e carvão vegetal. Para desvendar a lógica dessa modalidade de consumo, ou seja, estabelecer relações entre a oferta dos diferentes produtos e a demanda, em termos de grupos segmentados de consumidores - por sexo, idade, poder aquisitivo, intensidade de pertencimento, etc -, seria necessário uma série de dados complementares dos quais não se dispõem 3. A título de ilustração, dever-se-ia supor, a partir da lógica engendrada pelo pertencimento - motivadora do consumo e preponderantemente coletiva -, que as mercadorias teriam de ser para uso público. Por mais que se evidencie a fronteira nebulosa entre o público e o privado fica difícil enquadrar, em uma mesma perspectiva, o consumo de objetos tão distintos como o são, por exemplo, as camisetas e as roupas íntimas. A discussão poderia se alongar argumentando-se que as roupas íntimas não se prestam exclusivamente para uso privado ou ainda, que existem inúmeras possibilidades de apropriação e significação dos diferentes produtos, bastando, para tanto, que apenas o princípio de verossimilhança seja satisfeito. 4 elaboração de planos de sorteio - bingos, raspadinhas e consórcios - e, mais recentemente, concessão e fiscalização do uso das respectivas marcas. 3 Como os clubes e nem mesmo os fornecedores possuem dados estatísticos capazes de informar o fluxo das vendas, comparando, por exemplo, a flutuação destas com o desempenho das equipes, a demanda por mercadorias com a preferência clubística, enfim, o resultado das vendas dos diversos produtos, qualquer elucubração mais vertical corre o risco de não passar de mera conjectura. 4 A noção de verossimilhança será empregada aqui a partir do significado que Magnani lhe atribui, qual seja, “do ponto de vista de sua produção, é o resultado de mecanismos que operam no interior do discurso, (...) a condição de sua realização, para 6 Não se está afirmando, contudo, a inexistência de princípios classificatórios e distintivos subjacentes ao consumo. Isto constituiria um equívoco tão comprometedor quanto a leviandade de instituir, precipitadamente, a lógica de um fenômeno emergente que ainda se encontra pouco documentado. A constatação inicial de que todo e qualquer produto pode ser associado à imagem dos clubes, como vem ocorrendo até o momento, não se caracteriza num dado consumado. O consumo incondicional de todo e qualquer produto vinculado à marca grenal, bem como a apropriação generalizada da imagem dos clubes por parte dos produtores deve ser tributada, acima de tudo, ao prestígio e a visibilidade destas instituições. Esta modalidade de apelo não objetiva inserir novos produtos no mercado, despertando novos hábitos nos consumidores. São produtos já consagrados pelo uso mas que, embalados com a marca dos clubes, adquirem visibilidade entre seus concorrentes diretos. A imagem, esta entidade freqüentemente referida, anexada às mercadorias pelos fabricantes e apropriada pelos torcedores através do consumo, é o motor principal desse processo. Resumidamente, pode-se definir a imagem de um clube como a totalidade dos bens simbólicos que constituem seu patrimônio, incluindo-se, os títulos conquistados, a legião de torcedores, os ídolos, estádio e outras dependências, visibilidade na imprensa, enfim, tudo aquilo que pode evocar noções de pertencimento e, consequentemente, subsidiar o consumo. As mercadorias como mediadoras o receptor, é a existência de uma relação de conformidade entre as significações expressas e o sistema de representações: (...) um 7 Se a imagem dos clubes está estreitamente vinculada a seus respectivos bens simbólicos e, se estes últimos constituem o plano mais profundo a partir do qual a categoria pertencimento é evocada, então, as mercadorias - enquanto portadoras de imagem - devem motivar, de alguma forma, elementos constitutivos da memória, identidade e imaginário dos torcedores. Em outros termos, pode-se afirmar que o sucesso do consumo está diretamente associado à verossimilhança suscitada pelas mercadorias. Há de se retomar aqui as contribuições de Baubrillard (1970), Sahlins (1979) e Featherstone (1995), entre outros, para os quais o consumo constitui uma modalidade de troca de significados, de discursos, e, portanto, encerra um conjunto de objetos/símbolos que por sua vez instauram um sistema de códigos específicos através dos quais a sociedade comunica e fala. No que tange a relação torcedor-clube mediada pelas mercadorias, a grande questão parece estar resumida ao paradoxo metaconsumo vs. produção de diferenças. Se de um lado a marca dos clubes associada aos produtos os diferencia de seus concorrentes, a similitude das embalagens restitui a homogeneidade. Os próprios dirigentes demonstram certa apreensão neste sentido. A preocupação maior é com a consolidação deste novo mercado e para tal, ainda que usando outros termos, afirmam que há de se inculcar um habitus de consumo entre os torcedores. Quando o time ganha vende-se muito todo e qualquer tipo de produto mas o objetivo com as mercadorias é suplantar estas oscilações, através de uma receita fixa e previsível. discurso será verossímil para aqueles que de uma forma ou outra compatilham suas premissas “ (Magnani,1984:57). 8 Por mais que as mercadorias possam evocar o pertencimento entre os torcedores, distinguindo-os da massa e resgatando, mimeticamente, sonhos, imagens e prazeres partilhados, é correto supor que a razão desta possibilidade não é mera contingência. Por maior que seja o prestígio e o poder de distinção das imagens, ainda assim, elas necessitam de um suporte externo capaz de aprimorar tais elementos, adequando-os aos diferentes consumidores por intermédio de associações e referências à outras categorias do mundo social. Neste sentido, a terceirização dos departamentos de marketing redimenciona o papel dos intermediários culturais, principalmente, dos publicitários. Estes, vão assumindo, progressivamente, a função de mediadores simbólicos no plano da relação clube-torcedor, antes entregue aos próprios dirigentes; o que de resto não constitui grande novidade se se considerar esta especificidade no plano mais amplo da sociedade. Rivalidade, jocosidade e mercadorias Que a jocosidade é vinculada extensivamente no futebol, e no contexto mais amplo da sociedade brasileira, não resta a menor dúvida. Toledo (1993) destaca a importância e o componente simbólico da jocosidade entre torcedores. Segundo este autor, verifica-se no “jogo verbal” expresso nos xingamentos, cânticos e insultos de toda ordem, “o entrecruzamento e o amálgama de vários princípios classificatórios, que remetem aos estereótipos de classes sociais, atribuições sexuais e políticas, hierarquias e desigualdades, etc.” (Toledo, 1993:25). 9 Considerando-se o modus operandi do pertencimento clubístico, em que os jogos de oposição desempenham um papel destacado, pode-se atribuir às relações jocosas a função de “manter uma relação contínua entre duas pessoas, ou dois grupos, de hostilidade ou antagonismo aparente, mas artificial” (Radcliffe-Brown,1978: 52). Se a jocosidade constitui, desde sempre, um dispositivo para expressar e atualizar o pertencimento, é interessante notar, através de algumas anedotas, a incorporação aos temas tradicionais - masculinidade, honra, sangue, etc - de alguns dos produtos vinculados à dupla grenal. A primeira anedota emergiu durante o primeiro semestre de 95. O Grêmio disputava, simultaneamente e de forma exitosa, uma competição nacional e outra Sul Americana. Entrementes, o Internacional percorria o interior do Estado disputando jogos de pouca importância. Desse modo, os colorados estavam mais ansiosos por um tropeço do rival do que com a trajetória de seu clube. Então surgiu a informação... ... de que havia uma diferença muito grande no preço dos bonecos que cantam o hino dos clubes. Surpreendentemente, o do Inter estava custando o quíntuplo do Grêmio e a tendência era aumentar ainda mais a diferença. Como? Não seria o contrário, afinal o Grêmio é que está em alta? Acontece que o do Grêmio canta o hino do seu clube e, portanto, custa “X”; enquanto o do Inter canta seu hino e mais o do Palmeiras, São Paulo... e Flamengo e, por isso custa “5 vezes X”. Se o interessado se apressar! O que está em jogo nesta anedota contada pelos gremistas, entre si ou na presença dos colorados, é a sátira de um traço marcante da identidade clubística, qual seja, de que a preferência deve ser única e eterna. A novidade, tanto neste quanto nos demais casos, é a apropriação de uma mercadoria identificada com os clubes para expressar um simbolismo mais profundo. 10 Outra piada bastante ilustrativa surgiu por ocasião da disputa do Mundial Interclubes no Japão, entre Grêmio e Ajax de Amsterdã. Os gremistas anunciavam que o mundo seria pintado de azul e que o jogo preliminar disputado por Inter e clorofila (bombril, sapólio, etc). Não bastassem as carreatas exibindo o frasco do referido alvejante, os colorados anunciavam... ... que o mundo havia desbotado repentinamente. A culpa era dos holandeses que haviam varrido o azul do planeta com ajax, o poderoso alvejante para limpar a soberba! Embora ajax não conste entre os produtos da dupla grenal, dificilmente esta anedota, ressignificada pelos colorados, teria circulado com tanto ímpeto não fosse a presença das mercadorias. As mercadorias podem ser mediadoras da relação torcedor-clube apenas na medida em que satisfaçam a condição de verossimilhança. Como esta condição não é um dado a priori, ou seja, ela precisa ser motivada, dotada de sentido, os torcedores e o clube acorrem para tal. A este último, através dos mediadores simbólicos - dirigentes e publicitários -, compete a tarefa de dotar, primeiramente, as mercadorias de signos com finalidades específicas. A bandeira, a camisa e as flâmulas, entre outros, são de uso recorrente porque adquiriram, em determinado momento da história, um forte componente simbólico; foi a tradição que lhes proveu de sentido. No caso das mercadorias, esta tradição vem sendo inventada por dirigentes, torcedores e publicitários. Referências Bibliográficas BAUDRILLARD, J. (1970), La société de consommation. Paris, Denöel. 11 DOUGLAS M. & ISHERWOOD, B. (1990), “Los uso de los bienes”, in: El mundo de los bienes: Hacia una antropologia del consumo. México, Editorial Grijaldo. FEATHERSTONE, M. (19950, Cultura de Consumo e Pós-Modernismo. São Paulo, Studio Nobel. MAGNANI, J. G. C. (1984), Festa no Pedaço: Cultura popular e lazer na cidade. São Paulo, Brasiliense. RADCLIFFE -BROWN, (1978), “O método comparativo em Antropologia Social”, in: Coleção grandes cientistas sociais (3). São Paulo, Ática. SAHLINS, M. (1979), “La Pensée Bourgeoise: a sociedade ocidental enquanto cultura”, in: Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro, Zahar. TOLEDO, L. H. de. (1993), “Por que xingam os torcedores de futebol?”, in Cadernos de Campo, nº 3, São Paulo, IBICT.