As Implicações do Trabalho e da Cultura na Mobilidade da População
dos Projetos de Irrigação do Sertão Paraibano.*
Ramonildes Alves Gomes
UFPE
Palavras-chave: Trabalho, cultura, perímetros –irrigados, mobilidade.
Introdução
O presente ensaio consiste num estudo empírico à cerca do processo de
mobilidade e da relação desta, com a cultura(saber-fazer) e o trabalho (atividades
ligadas a produção) do colono. Nesse sentido, o foco do estudo são os 03 Perímetros
Irrigados do DNOCS no Estado da Paraíba.
Tal estudo indica que a política de modernização do meio rural nordestino, via
implantação de projetos públicos de irrigação, não tem sido um processo homogêneo do
espaço econômico rural e tampouco do espectro social da agricultura nordestina. Pelo
contrário, esta modernização se baseou numa concepção de desenvolvimento que
desconsiderou a auto-representação dos atores, a lógica de reprodução da unidade
familiar e de produção inerentes ao homem do sertão.
Pode-se inferir que tal concepção de desenvolvimento corrobora para a
mobilidade das famílias beneficiadas, aumenta a desigualdade no interior dos projetos e,
por fim faz com que ocorra uma intensa diferenciação das situações.
I – O processo de modernização da agricultura nordestina.
A partir de 1964, a Política Econômica adotada pelo estado Brasileiro, orientou
o desenvolvimento da agricultura no sentido de um audacioso processo de
*
Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado
em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.
modernização, tendo este, entre outros, o objetivo de ampliar a oferta de alimentos,
através do desenvolvimento de uma agricultura intensiva que serviria de suporte para a
sustentação da industrialização brasileira, para isso seria necessário atender duas
condições básicas: Primeiro, a transferência de parte da população rural para as cidades,
de modo a constituírem a força de trabalho a baixo custo para as indústrias; e segundo,
produzir alimentos em quantidade elevada e a preços baixos, de modo a constituírem a
manutenção de uma população predominantemente urbana.
O momento favorecia a abertura do capital internacional, assim as políticas
governamentais priorizaram um modelo de produção agrícola, que segundo Graziano da
Silva (1987:12) com objetivo de:
“Financiar o esforço de substituição de importações
(fornecendo as receitas cambiais necessárias via exportação
de produtos primários), prover matérias primas para a
indústria nacional e alimentar a crescente população do país”.
As mudanças provocadas por este modelo intensificaram os movimentos
migratórias campo-cidade. Em 1950, cerca de 70% da população brasileira vivia no
meio rural, em 1990, este percentual caiu pelo menos 20%, o resultado deste processo é
que a agricultura brasileira nos anos 90 caracterizou-se por uma estrutura complexa,
heterogênea e multideterminada. A complexidade do processo migratório ou, do êxodo
rural e regional contribuiram para o agravamento e o crescimento dos bolsões de
pobreza e miséria, nas periferias das grandes cidades, a maior parte desse contingente
era formada por pessoas desqualificadas, sem instrução e subempregadas.
Os critérios de avaliação utilizados neste modelo de desenvolvimento agrícola,
não consideraram em suas metas a estrutura sócio-econômica e fundiária, a criação de
empregos e a distribuição de renda gerada no setor, o atendimento da demanda interna
de alimentos, a eficiência energética da agricultura e sua dependência externa, nem
mesmo à viabilidade da agroquímica nos ecossistemas tropicais e subtropicais,
priorizaram especialmente, a produtividade das explorações e o volume físico e
financeiro das exportações.
Assim sendo, a agricultura passou por diferentes estágios de transformação.
Kageyama
(1990:113)
destaca
três
movimentos
importantes
que
marcaram
2
diferentemente o meio rural brasileiro, quais sejam: a modernização da agricultura, a
industrialização da agricultura e a formação dos complexos agroindustriais, embora,
muitas vezes se tenha a impressão de que ambos os termos sejam sinônimos, mas a que
se distinguir; por ‘modernização’ entende-se o processo de mudança na base técnica
com a introdução de novas variedades, técnicas de produção e uso dos insumos
modernos. ‘A industrialização da agricultura’ seria o processo de integração da
agricultura ao ritmo da indústria, expandindo-se enquanto ramo industrial e, quanto aos
CAIs (Complexos agro-industriais) Muller (1982:48) assinala que é o conjunto de
processos técnicos-econômicos, sócio-políticos que envolvem a produção agrícola, o
beneficiamento e sua transformação, a produção de bens industriais para a agricultura e
os serviços financeiros e comerciais correspondentes.
Percebe-se que, no caso brasileiro, as transformações que ocorreram na base
técnica e todo o processo de modernização serviu muito mais para fortalecer a
propriedade latifundiária e os setores a ela ligados, não implicando em nenhuma
mudança nas relações de trabalho, nas desigualdades regionais, tampouco mitigou os
efeitos do êxodo rural, nem propiciou a inserção dos camponeses e pequenos produtores
no mercado moderno e/ou globalizado.
É importante colocar que durante estes estágios supracitados o Estado foi o
principal agente do desenvolvimento econômico, garantindo seu financiamento e
montando a estrutura produtiva e institucional necessária. Obviamente que as formas de
intervenção variaram em cada um deles. Destaca-se que a partir dos anos sessenta, alem
de intervir diretamente sobre o setor, o Estado sutilmente, passa a determinar ‘o que e
quanto produzir’, através da nova orientação dos instrumentos oficiais para o ensino
agronômico, a extensão rural e assistência técnica. Mas, prioritariamente, com intuito de
integrar à indústria a agricultura, que era o pilar do modelo de desenvolvimento
econômico do país, via transformação do agricultor tradicional em empresário rural,
haja vista, que a agricultura empresarial é potencialmente, demandante de máquinas e
instrumentos industriais.
Diante disso, a política de irrigação no Nordeste passa a ser incentivada,
enquanto elemento de consolidação de um Projeto de Política Pública mais amplo, qual
seja a criação de um moderno parque industrial e, conseqüentemente de um emergente
3
mercado consumidor, sobretudo nas regiões marcadas pelo atraso econômico e social, a
exemplo do Norte e Nordeste.
II – A política de irrigação no Nordeste e a implantação dos perímetros irrigados.
Desde a criação da SUDENE (Superintendência para o desenvolvimento da
região Nordeste), a idéia de que o desenvolvimento da região só seria viabilizado
quando está se tornasse resistente aos efeitos da seca, foi levada a cabo, passando a ser
considerada uma política efetiva de desenvolvimento regional.
Assim sendo, o estudo da irrigação como a principal estratégia para solucionar
os problemas sócio-econômicos e culturais de uma ampla faixa da região semi-árida
nordestina, segundo Lopes & Mota (1997: 23) passa a ser orientado por uma política
pública de irrigação, sistematizada a luz de uma perspectiva de mudança social1 e para
uma categoria específica de produtores rurais – os agricultores familiares.
O planejamento, execução e implementação desta política ficaram sob a
responsabilidade
das
seguintes
instituições:
CODEVASF
(Companhia
de
Desenvolvimento do Vale do São Francisco) e o DNOCS (Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas), a lógica que perpassava esta política, em linhas gerais, era que
no caso do semi-árido teria de ser dada uma atenção particular ao problema do uso dos
recursos hídricos, pois a água nesta região é o elemento crítico necessitando de um
direcionamento das ações, no sentido de desenvolver a região através de um programa
acelerado de irrigação. (Lopes; 1998:52).
A irrigação se constituiria numa estratégia, de certo eficaz no combate ao êxodo
rural, promovendo a fixação do homem no campo, além de modernizar a agricultura
familiar nordestina, uma vez que, aumentaria a oferta de emprego e trabalho durante o
ano inteiro nas áreas irrigadas, inclusive nos períodos de estiagem. Mas, estudiosos
como Marcel Bursztyn (1984:85) discorda da pressuposição de que agricultura irrigada
absorve força de trabalho e adverte que:
1
Mudança social entendida ‘como um campo de ações ou sistemas de relações objetivas nos quais as
próprias posições de inovador ou conservador podem ser assumidas relacionalmente e a partir das quais
os efeitos dessa contraposição podem ser apreendidos’ (Neves ;1995:51)
4
“De uma maneira geral, um ‘perímetro irrigado’ emprega
diretamente menos trabalhadores do que a mesma área
ocupava, antes da sua implantação. Isso se dá devido ao fato
de que terras irrigáveis situadas à jusante dos açudes são,
tradicionalmente,
densamente
ocupadas
por
pequenos
produtores. Além disso, a maior parte dos colonos escolhidos
por um projeto não é, em geral oriundos das terras
desapropriadas pelo DNOCS (...)”.
Durante toda a década de 70, precisamente em meados da década de 80 o
governo federal envidou esforços com intuito de acelerar a política de irrigação no
Nordeste, criou o PROINE (Programa de Irrigação do Nordeste), cujo objetivo era
aumentar a produção e a produtividade do setor agrícola, especialmente os alimentos
básicos e irrigar um milhão de hectares de terras no semi-árido nordestino.
Esperava-se que os Programas de Incentivo a Irrigação lograssem êxito, já que
não se tratavam apenas de medidas emergências, de caráter assistencialista. A execução
dos projetos de irrigação, via Perímetros Irrigados, implicou na construção de obras de
infra-estrutura hidráulica, como também em desapropriação de terras, construções de
habitações e de equipamentos comunitários. Além do treinamento em técnicas agrícolas
com as quais os colonos não estavam acostumados. Desse modo, o Estado propiciou aos
agricultores,
“oportunidades”
para
que
estes,
abandonando
a
tradição,
se
transformassem em pequenos produtores modernos verdadeiros agentes da integração
do meio rural nordestino ao mercado nacional.
As análises dos dados à cerca dos 03 perímetros irrigados, que estão sob a
jurisdição do DNOCS na Paraíba, PISG (Perímetro Irrigado de São Gonçalo), PIEA
(Perímetro Irrigado Engenheiro Arcoverde) e o Perímetro Irrigado de Sumé revelam
que, de forma alguma o desenvolvimento destes perímetros ocorreu de forma
generalizada, às diversidades e especificidades culturais de cada localidade guardam
razões que ajudam a entender a realidade de cada um deles, mas o fato é que a
introdução da irrigação em áreas do semi-árido nordestino, certamente implicaria em
transformações do ponto de vista técnico e sócio-cultural. Portanto, considera-se, como
5
objetivo primeiro deste ensaio discutir a questão da mobilidade2 existente nestes
perímetros irrigados, considerando a lógica própria dos sujeitos beneficiados, e mais
ainda, a complexidade das suas relações sociais.
III – A mobilidade como estratégia de sobrevivência das famílias nos Perímetros
Irrigados.
A política de modernização conservadora da agricultura brasileira, ao mesmo
tempo, que modificou o perfil do setor agrícola nordestino, incentivando a produção de
frutas frescas em áreas como o Vale do São Francisco, disseminou e reproduziu outras
contradições inerentes as relações sociais dos diferentes grupos atingidos por estes
programas. Para efeito deste estudo buscou-se romper com a dicotomia entre produtores
tecnificados e tradicionais, considerando todos colonos/irrigantes denominação usada
no decorrer do texto.
Assim, explicita-se que o objetivo deste ensaio é analisar quais os elementos
trazidos na bagagem destes agricultores que limitam sua inserção e permanência, como
agricultores familiares autônomos nos projetos públicos de irrigação e, por outro lado
impulsionam o processo do mobilização (troca, abandono e saída) dos lotes? A hipótese
sugerida para conduzir a compreensão deste fenômeno é que todo referencial material e
imaterial que perfaz a cultura, especificamente nos perímetros irrigados, é que o pilar de
sustentação recai sobre uma forma de vida grupal, uma comunidade. Acredita-se que
existe um elo de identificação entre os membros dessa população, a qual na concepção
de Barth (1969) pode ser denominada de “substância cultural3”, que se traduz no esforço
produtivo, na forma como o colono organiza o trabalho, a produção de alimentos,
produz categorias sociais e encadeia as ações simbólicas, tendo como aporte a terra.
Woortmann (1997:17) reforça estas análises, assinalando que para os sitiantes, trabalho,
terra e família são indissociáveis e falar de um é falar do outro.
2
Neste trabalho, o termo mobilidade está sendo empregado com sentido de qualidade ou propriedade do
que é móvel, facilidade de mover-se ou de ser movido (Dic Aurélio do Séc XXI), ou seja, o movimento
de entrada e saída dos colonos dentro dos Perímetros.
3
A expressão “substância cultural” é utilizada para reforçar a idéia de uma base concreta sobre a qual a
comunidade é construída, ao tempo que reforça o ethos camponês. Sobre este sentido da expressão
substância cultural ver Grünevald.
6
O abandono, ou a não valorização da cultura, apresenta-se como fator limitante
da reprodução dos colonos/irrigantes e compromete a busca da “autonomia’ que,
teoricamente, a condição de proprietário da terra lhes proporcionava, e a construção da
coletividade que de alguma forma, pode representar um resgate, ou uma invenção da
tradição”. Sobre esta relação cultura e comunidade vale lembrar Cohen (1985:98)
“(...) a cultura – a comunidade como experimentada por seus
membros – não consiste em uma estrutura social ou no fazer
do comportamento social. Ela é inerente ao” pensar “sobre
ela. É nesse sentido que podemos falar de comunidade como
um construto simbólico, antes que estrutural. Ao se procurar
compreender o fenômeno da comunidade, temos que
considerar
suas
relações
sociais
constituintes
como
repositório de significados para seus membros, não como um
conjunto de elos mecânicos”.
A situação atual dos irrigantes, nos Perímetros Irrigados do semi-árido paraibano
revela a permanência das relações de dominação, agora numa outra dimensão que se
configura, entre outras conseqüências, na mobilidade local e regional, em diferentes
formas de apropriação do excedente que lhes são correspondentes, conforme registrou
Lorza (1991:80) num estudo sobre o Perímetro Irrigado de Sumé.
“Este processo de subordinação, a partir da imposição do
preço do produto, do planejamento da produção, da
dependência de insumos, da água do perímetro, do trator, do
crédito é um processo contraditório com a própria lógica
camponesa. Estas determinações marcantes mudam a
especificidade do trabalho agrícola destas unidades familiares
aí presentes. Podemos também afirmar que é um processo
inevitável para os agricultores participantes do perímetro”
Diante destas análises surge a hipótese, que as atitudes e o comportamento social
do irrigante interage com a maneira como ele pensa sua própria relação com a terra,
relação esta que passa necessariamente por um mínimo de autonomia, em que não cabe
7
qualquer tipo de sujeição, seja de Órgãos de administração (DNOCS), seja de outros
saberes que não considere a sua representação das formas de trabalhar e viver.
Neste item pretende-se fazer uma descrição física dos Perímetros Irrigados do
Estado da Paraíba, localizados, especificamente na micro-região semi-árida4, a fim de
proporcionar ao leitor uma visualização mais ampla da área objeto da investigação. Os
dados mencionados aqui foram obtidos através de pesquisa bibliográfica em teses e
dissertações e pesquisa documental realizadas na sede do DNOCS em João Pessoa e
ainda, conversas informais com técnicos do DNOCS e colonos dos 03 perímetros.
Os 03 Perímetros Irrigados da Paraíba, Engº Arcoverde, São Gonçalo e Sumé,
tiveram suas operações iniciadas na década de 70. Sobre a caracterização física destes
pode-se inferir que o Perímetro irrigado Engº Arcoverde (PIEA) está localizado no
município de Condado, na bacia hidrográfica do Rio Piranhas/Timbaúba, tendo como
fonte hídrica o açude de Engº Arcoverde, com capacidade de 35.000.000m³. Entrou em
operação em 1972, possui área total de 858,39ha, área irrigável 282,92ha. Número de
lotes 55 e de irrigantes é de 52.
O Perímetro Irrigado de São Gonçalo (PISG), localiza-se no município de
Souza, na bacia hidrográfica do Rio Piranhas, tem como fonte hídrica os açudes Engº
Ávidos e São Gonçalo com capacidade de 255.000.000m³ e 44.600.000m³
respectivamente. Entrou em operação em 1973. Possui área total de 5.548,00ha e área
irrigável de 2.634,93ha. O número de lotes é de 550 e de irrigantes é de 481.
O Perímetro Irrigado de Sumé está localizado no município de Sumé, na bacia
hidrográfica dos Rios Paraíba/Sucuru, tendo como fonte hídrica o açude público de
Sumé com capacidade de 44.800.000m³, tendo iniciado suas atividades em 1973. Possui
área total de 709.00ha, área irrigável 273,65ha. Número de lotes 55 e de irrigantes 47.
No início das atividades nos perímetros foram lotados, sob a jurisdição do
DNOCS, equipes multidisciplinares (engenheiros agrônomos, veterinários, assistentes
4
Na região semi-árida, os limites impostos pelas adversidades climáticas tornam vulneráveis a
sustentabilidade da agricultura familiar, as irregularidades das estações chuvosas, associada à pobreza dos
solos freqüentemente rasos e arenosos, propensos à salinização, constituem fatores que fragilizam a
pequena produção, além das formas de produzir, caracterizadas pela subsistência em lotes de tamanho
insuficiente, haja vista que há muita área de sequeiro, inapta para agricultura irrigada.
8
sociais, técnicos agrícolas, pessoal de apoio), além do apoio logístico (veículos,
máquinas, combustível e material de expediente). As equipes multidisciplinares
atuavam na prestação de assistência técnica diretamente aos irrigantes, na capacitação
de técnicos e irrigantes para absorção e emprego de tecnologias para agricultura
irrigada. Incentivaram a organização dos colonos em cooperativas, as quais eram
administradas integralmente pelos próprios técnicos do DNOCS. Todas estas medidas
visavam promover o desenvolvimento local, através da agricultura familiar irrigada.
De acordo com as opiniões dos técnicos do DNOCS, fatores como: as estiagens,
a ausência de demandas pelos produtores e as possibilidades de comercialização dos
produtos com a indústria, não podem ser considerados entraves para a fixação dos
colonos nos perímetros, tampouco para o desenvolvimento local. Estes aspectos são
recorrentes, atualmente no debate sobre a sustentabilidade, especialmente no semi-árido,
as discussões apontam para a criação de estratégias de convivência com o fenômeno da
seca, corroborando com esta idéia Sabourin (2000: 54) esclarece que, a noção de
desenvolvimento sustentável não pode ser reduzida à apropriação de tecnologia tendo
em vista atender competitivamente às exigências do mercado global, mas deve ser
entendida, sobretudo, como forma de organização social das estruturas produtivas e
manejo dos fatores técnicos.
As análises das informações parecem indicar que a pouca importância dada à
“substância cultural” dos irrigantes, compromete o desenvolvimento local, através dos
projetos de irrigação uma vez que, os fatores já citados anteriormente não se configuram
como empecilhos para o desenvolvimento da agricultura moderna, mas de fato o
problema está na dificuldade de interação entre o saber moderno paramentado de
tecnologias inerentes à agricultura irrigada e, o saber tradicional do agricultor sertanejo
acostumado à produção de subsistência em área de sequeiro. O papel da tradição, nestas
novas formas de trabalho agrícolas deveria ser como bem coloca Thomas (1997:187)
em seus estudos sobre invenção de tradição, “a tradição não é simplesmente uma
substância a ser carregada, mas também uma coisa que pode ser exibida ou disposta
para diversos fins”.
Para técnicos e colonos, a postura paternalista e autoritária empregada pelo
DNOCS no gerenciamento das atividades do perímetro impedia a participação dos
9
irrigantes nas decisões e inibia qualquer iniciativa individual ou coletiva dos mesmos,
inclusive com ameaças de expulsão e tomada dos lotes. Mais uma vez é recorrente a
discussão da viabilidade sócio-econômica associada à cultura da coletividade local, em
se tratando da agricultura familiar.
Constata-se que nos perímetros irrigados, principalmente no Perímetro Irrigado
de São Gonçalo o intenso repasse dos lotes para segundos e terceiros e até casos de
abandono de lotes agrícolas, destaca-se também, a existência de muitos lotes ociosos
cerca de 22% da totalidade dos perímetros, o que significa um número relevante de
famílias irrigantes totalmente excluídas do sistema de produção e do mercado. O que faz
com que muitas delas procurem outras fontes de renda alternativas, por exemplo,
comércio, serviços, prefeitura, aposentadoria, frentes de trabalho (emergência) e outros.
A Coordenadora Regional dos Perímetros Irrigados na Paraíba assinala que o
fluxo de entrada e saída dos colonos deve-se a escolha dos critérios utilizados no
processo de seleção (triagem) pelo DNOCS, segundo ela, os critérios eram paternalistas,
por isso observa-se nos perímetros a existência de colonos, que não possuem qualquer
afinidade real com a agricultura, colonos que apresentam um caráter passivo, sem
ambição, individualista, irrigantes em idade avançada, aposentados e intensa migração
dos filhos, sobretudo os jovens para os grandes centros urbanos regionais e nacionais.
O discurso difundido no senso comum sobre a agricultura familiar no Brasil,
como sinônimo de precariedade e a imagem caricatural do camponês como o
“preguiçoso”, o “Jeca Tatu” é algo que oportunamente é apropriado pelos órgãos
executores das políticas públicas e até pela academia, haja vista, que as palavras da
própria Coordenadora do DNOCS de que o colono não produz, abandona ou repassa o
lote no Perímetro porque não tem ambição, Sabourim (2000:58) apoiado nas idéias de
Mendras vai dizer que a proximidade das relações de comunicação interpessoal é uma
necessidade vital para permanência deste modelo de agricultura no semi-árido, a
confiança recíproca, solidária, a certeza de poder contar com os vizinhos são princípios
básicos para se pensar qualquer plano de sustentabilidade para esta realidade territorial.
O contra-argumento, assinalado pelos colonos na justificativa sobre o fenômeno
da mobilidade é que isto ocorre por causa da ausência de mão-de-obra familiar para
tocar a produção, a falta de alternativas de renda que possibilite o envolvimento da
10
família em outras atividades ligadas ao lote, ou a produção. Percebe-se que a
dificuldade de manutenção dos membros da família, dos vínculos da família com a terra
como garantia de reprodução da unidade familiar e produtiva acaba gerando um
sentimento de falta de objetividade, de perspectiva de futuro, de sentido no emprego dos
frutos do trabalho que se encerra na situação do êxodo da localidade.
Outra questão que vai de encontro aos valores dos colonos/irrigantes e que tira a
motivação para permanecer no perímetro, segundo eles é a precariedade do processo de
comercialização, feita por atravessadores inescrupulosos que lesaram os irrigantes,
assim como técnicos que elaboraram projetos mal feitos, mal instalados, utilizando
material de péssima qualidade tudo isso concorreu para o atual quadro de
endividamento por que passam a cooperativa e os irrigantes. Hoje eles assinalam que,
“embora, não tendo domínio de nenhuma tecnologia, nem cultura, mas acham que é
preferível agir por conta própria, tomando decisões entre eles mesmos, porque é mais
confiável”, sobre às dívidas os irrigantes falam constrangidos.
Conclui-se a partir desta fala que a invenção dos valores que estão
simbolicamente impregnados na cultura destes colonos, não podem ser descartados, mas
devem sim, interagir com o significado da relações familiares, a necessidade de manter
a proximidade física da família, quase sempre extensas, esta é uma abordagem bastante
subjetivista, mas cada vez mais peculiar entre as famílias que vivem no meio rural
nordestino e representa também, uma estratégia econômica de subsistência.
IV – Considerações Finais
A situação destes Perímetros Irrigados tem se revelado bastante diferente
daquilo que se esperava. Pode-se dizer que houve distorção dos objetivos propostos
inicialmente, quais sejam, proporcionar o desenvolvimento da região, criando vínculo
entre os agricultores e a terra, assim, evitando que estes migrassem para outras regiões
ou para grandes centros, aumentando os bolsões de pobreza.
11
A pesquisa, que se encontra na fase inicial5, aponta para a existência de falhas,
desde a concepção do projeto, seleção dos colonos e implantação do sistema de
produção. Estas falhas, a priori, têm levado os perímetros a uma situação de fracasso
econômico, empobrecimento e exclusão social, por causa da impossibilidade de
transformar um espaço que deveria ser pólo de desenvolvimento da fruticultura no semiárido nordestino, com produção agrícola capaz de permitir aos colonos qualidade de
vida, dignidade e cidadania Mas, contrariamente, à medida que a população não se fixa
no local, não cria raízes, não combina terra, trabalho e família, vão se esgotando
também, as oportunidades de concretizar um projeto de desenvolvimento sustentável.
Constata-se que a intervenção do Estado, através do DNOCS não conduziu os
colonos à modernização esperada muito menos, proporcionou à emancipação das
famílias que pressupõem organização coletiva, autonomia financeira e capacidade de
reprodução familiar. Portanto, a política de irrigação pensada pelos aparelhos de Estado
remete a uma lógica das políticas públicas, estritamente aliada à classe política do País,
sem qualquer preocupação com a racionalidade do agricultor sertanejo. Todavia,
acredita-se ainda, que projetos com grande infra-estrutura hidrológica como: o “Canal
da Redenção” em Sousa-PB, o “Plano das Águas” e o mega projeto de “Transposição
das Águas do São Francisco”, possam sob a mesma lógica, promover melhoria de
condições de vida para o agricultor nordestino.
É possível pensar que ações dessa natureza consigam viabilizar a agricultura
irrigada no semi-árido, desde que sejam invocadas as vozes dos atores envolvidos no
processo, que a sustentabilidade dos sistemas de produção articule esforços privados e
públicos, estaduais e locais e, ainda um suporte técnico-científico que considere o saberfazer e o tempo de adaptação dos agricultores, tendo em vista que um fator importante
em qualquer projeto centrado numa agricultura moderna deve valorizar a capacidade
reflexiva dos seus códigos e da sua cultura tradicional, tornando acessível os
conhecimentos que os mesmos devem adquirir para exercer sua atividade de forma
competitiva e competente.
5
A referida pesquisa trata-se do trabalho de tese em nível de doutorado, que no momento está em fase de
levantamento bibliográfico, reconhecimento e definição do campo para elaboração do Projeto de Tese.
12
Os argumento que nortearam as idéias colocadas, neste ensaio, tiveram como
pedra de toque a intersubjetividade dos estilos de vida calcados na cultura dos
colonos/irrigantes, uma vez, que estes se refletem nas possibilidades de produzir,
trabalhar e permanecer num determinado local.
Assim sendo, torna-se necessário que os idealizadores das políticas de
desenvolvimento da agricultura considerem nos seus planejamentos fatores como:
aptidões, formas de comportamento e trabalho do sertanejo, bem como, seus traços
culturais que são sui generis em cada região e em cada povo. O desenvolvimento da
agricultura familiar, principalmente no semi-árido, não pode ter como prioridade o
mercado e a produção, mas, sobretudo, a reprodução da vida social (família, terra e
trabalho).
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