MARGENS SILENCIOSAS: A ESCRITURA DA MULHER NA LITERATURA INDIANA CONTEMPORÂNEA por ANNA BEATRIZ DA SILVEIRA PAULA Departamento de Ciência da Literatura Tese de Doutorado em Ciência da Literatura - Semiologia apresentada ao Conselho dos Cursos de PósGraduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Helena Parente Cunha UFRJ 1º semestre de 2006 DEFESA DE TESE PAULA, Anna Beatriz da Silveira. Margens silenciosas: a escritura da mulher na literatura indiana contemporânea. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. 185 fls. mimeo. Tese de Doutorado em Ciência da Literatura Semiologia. BANCA EXAMINADORA ________________________________________________________ Professora Doutora Helena Parente Cunha Orientadora ________________________________________________________ Professora Doutora Angela Maria Fabiana Mendes ________________________________________________________ Professora Doutora Beatriz Resende ________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo de Mattos Portella ________________________________________________________ Professora Doutora Rosa Gens ________________________________________________________ Professora Doutora Angélica Soares ________________________________________________________ Professora Doutora Elódia Xavier Defendida a Tese: Conceito: Em / /2006 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................... 8 2. PÓS-MODERNIDADE E PÓS-COLONIALISMO: CHOQUE DE IMPÉRIOS .................................................................. 29 2.1- Modernidade: identidade e crises ................................................ 29 2.1.1- Modernidades e soberania ..................................................... 29 2.1.2- Soberania, nação, povo, identidade ..................................... 34 2.1.3- Colonialismo e soberania ..................................................... 38 2.2- Pós-modernidade e pós-colonialismo: anti-cânone, outras crises ............................................................... 41 2.3- A Índia pós-colonial ........................................................................ 48 3. O CORPO BIOPOLÍTICO DA SOCIEDADE INDIANA ................... 55 3.1- Corpo público ................................................................................... 59 3.1.1- Línguas e dialetos ................................................................. 62 3.1.2- Corpo religioso ....................................................................... 75 3.2- As Escrituras dos corpos: produtividade e valor dos afetos .......... 92 4. ARUNDATHI ROY – CÂNONES E RUPTURAS ................................ 109 4.1- Problematizações do cânone .......................................................... 111 4.2- O deus das pequenas coisas – ícone da transgressão ................... 121 5. O DEUS QUE CORRE PELAS ÁGUAS ............................................... 131 5.1- Limites e margens ......................................................................... 136 5.1.1- Cronologia e memória .......................................................... 139 5.1.2- Disciplina e controle ............................................................. 143 5.2- As leis do amor e a desordem amorosa ......................................... 147 5.3- Silêncio e silenciamento .................................................................. 154 6. CONCLUSÃO ......................................................................................... 165 7. BIBLIOGRAFIA ...................................................................................... 178 S INO PS E Reflexões sobre a condição da escritura e inscritura da mulher na literatura indiana contemporânea. Caracterização da historiografia literária da Índia. Identificação dos resultados da descolonização nos discursos pós-modernistas e pós-coloniais da literatura indiana de língua inglesa. 1. INTRODUÇÃO Certamente que, em termos puramente práticos, tudo pode começar com a chegada de uma criança estrangeira. Outra maneira possível seria começar pela chegada de uma cultura estrangeira. Ou de uma religião, quem sabe, de uma ideologia... Acontecimentos suscitam relatos, comentários, interpretações discursos. Alguns, cercados de solenidade, como letra de lei. Outros, de atenção e silêncio, traduzindo inquietações, lutas, feridas, dominações transgressões. Todos, tratando de identidades e seus jogos de diferenças, suas dobras e marcas. Eis um lugar Kerala, Índia apresentando-se por meio de dupla referência: em primeiro lugar, a história, a realidade, a teia social; depois, a ficção que, ao se apropriar delas, conduz a uma experiência interpretativa de diferenças. Agosto de 2004. Um grupo de mulheres indianas resolve, por conta própria, dar fim a sucessivos casos de estupros aos quais a polícia da região não dava atenção. Mataram os suspeitos. Cinco foram identificadas e presas pela polícia local. Ao invés de se aquietarem e aceitarem o ocorrido, cerca de 400 mulheres cercaram a delegacia e obrigaram os policiais a liberarem as cinco detidas o que foi feito imediatamente (Veja em anexo). Aquilo que seria um caso de absurda barbárie assume um caráter bastante específico diante do contexto sócio-cultural no qual ocorreu, a ponto de receber apoio de diversas autoridades e até de intelectuais da Índia. Outro absurdo? Nem tanto. Pode-se 9 pensar que, na Índia, o estupro seria causado pela mulher, não encarada como vítima, mas como provocadora da violência, especialmente se estivesse desacompanhada de um homem da família ou marido e em espaço público no momento do crime. Assim sendo, a força policial pouco interfere nesse tipo de acontecimento, marginalizando a própria queixosa caso esta se apresente a uma delegacia solicitando providências. Até mesmo a família dessas jovens, crianças ou senhoras, age com preconceito nesses casos. O que moveu, então, tais mulheres? É evidente que algo mudou tanto que elas não tiveram receio suficiente que as fizesse aceitar aquela situação insustentável como mais uma forma de carma. Transgrediram as leis, a religião e os costumes de forma a garantirem respeito e justiça até então destinados quase que exclusivamente aos homens. Enfim, assiste-se às transformações culturais mais profundas já ocorridas na Índia desde a sua Idade Média, período em que o hinduísmo tornou-se a religião dominante no país. Trata-se de um questionamento das tradições que compõem até mesmo a estrutura econômica da Índia já que atinge a própria concepção das castas, visto que esse movimento feminista tem açambarcado a luta por igualdade social, principalmente no que se refere à casta dos intocáveis. Portanto, a mulher indiana não se insurge sozinha; ela acompanha uma série de insurreições em todo o território indiano, desde os grandes centros como Mumbai (Bombaim) e Nova Déli até as distantes planícies desérticas do Rajastão. No entanto, tal movimento não é isolado já que se insere num conjunto de transformações relativas às sociedades modernas no final do século XX, e ao 10 processo de fragmentação das concepções culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, as quais, no passado, forneceram a base para que os indivíduos se localizassem socialmente. Até mesmo a idéia, que temos de nós próprios enquanto sujeitos integrados, está sendo atingida por essas transformações. É aquilo para o qual Stuart Hall aponta como “crise de identidade”, resultante de uma sensação de deslocamento ou de descentração que o indivíduo tem em relação ao social, mas também em relação a si próprio. O crítico cultural Kobena Mercer acrescenta que, “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (1) Analisados em conjunto, esses processos de mudança significam uma transformação bastante ampla e intensa daquilo que se tinha como uma concepção essencialista ou fixa de identidade. Resvala, inclusive, naquilo que, desde o Iluminismo, é tido como essencial do ser humano e fundamental a nossa existência. Stuart Hall (Hall, 1987), ao discutir essa questão, distingue três concepções de identidade, a saber: a) sujeito do Iluminismo; b) sujeito sociológico, e c) sujeito pós-moderno. O sujeito do Iluminismo estava baseado na visão do homem como um indivíduo totalmente centrado, unificado, racional, consciente e capaz de agir. Esse núcleo interior do ser era a sua identidade, pois surgia quando indivíduo nascia, mas acompanhava seu desenvolvimento, mantendo-se o mesmo em 11 essência: o eu exterior correspondia, então, ao eu interior. Como a denominação de sujeito sociológico sugere, a concepção de que havia um eu autônomo e auto-suficiente não atendia mais ao que o mundo moderno e complexo demandava. A identidade passou a ser compreendida como um processo resultante da interação do sujeito com outras pessoas, importantes para ele já que lhe serviam de mediadoras entre ele e a cultura da sociedade em que estavam inseridos. G. H. Mead, C. H. Cooley e os interacionistas simbólicos foram os expoentes da sociologia que elaboraram tal concepção “interativa” da identidade e do eu. Para eles, o indivíduo teria sim um eu interior, chamado de “real”, só que em permanente diálogo com os ambientes culturais e as identidades por eles fornecidas. A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de projetar a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que são internalizados seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar os sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que são ocupados no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. (2) Porém, o que se observa agora é que o sujeito, os mundos culturais e o processo de identidade em si não são mais os mesmos. O sujeito tornou-se fragmentado, e composto de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Proporcionalmente, as identidades fornecidas pelos mundos culturais entraram em crise por conta das mudanças estruturais e institucionais. E o próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Disso 12 resulta o sujeito pós-moderno, desprovido de uma identidade fixa, essencial ou permanente. 2. PÓS-MODERNIDADE E PÓS-COLONIALISMO: A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos CHOQUE DE IMPÉRIOS representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. 2.1-Dentro Modernidade: identidade e crises dos indivíduos há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que suas identificações estão sendo 2.1.1Modernidades e soberania continuamente deslocadas. Se existe a idéia de uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque se constrói uma cômoda estória sobre o indivíduo ou uma confortadora “narrativa do eu”. (veja Hall, 1990) (3) Estudar a Pós-Modernidade, seus caminhos e impasses, suas produções conseguinte, época emRoy, que feminino, uma ampla gama de culturaisVive-se, – entrepor elas, o trabalho numa de Arundathi ex-cêntrico, representações culturais dispostas aos indivíduos, os quais, multimidiático requer asignificativas recuperação são de alguns aspectos fundamentais da ainda que temporariamente, com alguma identificação. O modernidade, notadamente a estabelecem, maneira como elaelas, se configura nas sociedades resultado édestacando um angustiante de múltiplas identidades possíveispor que tomae européias, que, processo se o horizonte pós-moderno se constrói crises o lugar deessas uma também identidade plenamente identificada, segura e coerente. rupturas, já estão presentes no períodocompleta, que o antecedeu. Não se pode descartar, também,temporais o papel que a globalização como umao Existem diferentes concepções quanto ao que se consideraria fase dado Pós-Modernidade exerce naoquestão da identidade. Como Marx disse início moderno. O Humanismo, Renascimento e o Iluminismo, enquanto sobre a Modernidade: marcações historiográficas da do percurso da Razão desde o início até seu apogeu, constituem ciclos evolutivos da modernidade e contribuíram, cada um a [...] é o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todasaasformação condiçõesdo sociais, a incerteza e o movimento eternos... Todas seu modo, para Estado-Nação. as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas e concepções, são o dissolvidas, todas as da relações recémFoi representações o Estado-Nação que traduziu projeto político Modernidade, ao formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido se desmancha no ar... (4) instituir a igualdade como um dos seus principios básicos. Igualdade esta Fica, diferença as sociedades explicada pelaentão, razão,estabelecida pela lógica adaprincipal superioridade racialentre e pelo poder de que a “tradicionais” as “modernas: estas têm como característica a mudançaa tecnologia e aeciência como um todo dotou o homem. Definitivamente, 30 humanidade encontrava-se liberta da ignorância e da submissão ao transcendente vividos na Idade Média. Porém, o que interessa ao estudo que começo a desenvolver, é que essa Modernidade não se restringiu ao território europeu. Lá ela exerce uma revolução coerente com o que se viveu, na quase totalidade do continente, no período histórico anterior. Mas o que ocorreu quando através do Colonialismo a concepção do moderno chegou a outras partes do mundo? Tal conflito, inicialmente interno, atinge escala global após a descoberta da América e o início do domínio europeu sobre o resto do mundo: ao descobrir seu “lado de fora”, a Europa constrói sua imagem de centro da civilização – o eurocentrismo nascente. Se, por um lado, o humanismo do primeiro momento configura uma noção revolucionária de igualdade humana, singularidade, cooperação e abundância que, com a descoberta de outras populações e territórios deveria se alastrar, por outro, o europeu percebe a possibilidade e a necessidade de sujeitar outros povos à sua dominação. Assim, o eurocentrismo surge como reação à noção de uma natural igualdade entre os homens – visão essa que deveria/poderia ser ampliada pela descoberta de outras terras. No século XVII, a modernidade em crise se instalara: fogueiras da Inquisição, guerras civis na França, na Inglaterra, na Alemanha, massacre e escravização das populações nativas das Américas. Na segunda metade do século, o absolutismo monárquico parece ter conseguido impedir o curso da liberdade, ao mesmo tempo que o colonialismo, depois da fase de pilhagem da 31 riqueza das colônias, toma a forma de exclusividades comerciais, modos estáveis de produção e tráfico de escravos africanos. Mas a solução parcial da crise vai aparecer no terceiro momento da modernidade, através da formação do Estado moderno e da construção do conceito de soberania. Hegel fornece as bases filosófico-políticas para esse novo momento: ao transformar a imanência humana em imanência e poder do Estado e o ser analógico da tradição medieval no ser dialético; ao justificar, filosoficamente, a idéia da existência de povos menores – numa negação do desejo não-europeu – e, finalmente, ao relacionar o Estado com o todo ético, por ser essencial para a marcha de Deus pelo mundo. Para que a caminhada divina tome forma através do Estado, é necessário um aparelho político transcendente. A proposta de Thomas Hobbes quanto à existência de um governante soberano definitivo, um Deus na terra, fornece o aparato teórico de que se carecia. A lógica hobbesiana propõe, inicialmente, a hipótese da guerra civil como estado original da sociedade humana. Então, para sobreviver aos perigos da guerra, e ultrapassá-los, os homens precisam fazer um acordo, um pacto, atribuindo a um líder o direito absoluto de agir, o poder absoluto para fazer tudo: eis a justificativa para que a autonomia humana seja transferida a um soberano acima de todos, que os governa, e para o qual convergem todos os desejos isolados. Dessa forma, a soberania é definida por transcendência e representação: de um lado, o soberano recebe todo o poder, não por um vínculo teológico 32 externo, mas pelo pacto resultante das relações humanas; de outro, o pacto em si, transformando o soberano em representante de todos, legitima seu poder, a ponto de sustentá-lo como absoluto. O soberano institui a lei sem o consentimento dos súditos – e pode fazê-lo porque deles recebeu autorização, através do acordo anterior. Aí está a noção de soberania em seu estado puro: o subjugar é conseqüência natural do que foi consentido em troca de proteção, da sobrevivência, da paz. Esta, a primeira solução política da modernidade: o Estado reflete a imagem de seu “tutor” designado por escolha e adoção pactual. A teoria hobbesiana da soberania serviu ao absolutismo monárquico, mas pôde ser aplicada a diversas formas de governo: monarquia, oligarquia, democracia. No “Contrato Social” de Rousseau, por exemplo, tem-se que as vontades individuais precisam ser sublimadas para dar lugar a uma vontade geral, comunitária. Outro elemento essencial sustenta a autoridade soberana: o desenvolvimento capitalista e a noção de mercado como fundamento da estratificação e da reprodução social. De um modo geral, os pesquisadores póscolonialistas apontam que a grande diferença do eurocentrismo – em relação a outros etnocentrismos residiu no fato de sua evolução caminhar ao lado do Capitalismo. O transcendental político do Estado Moderno é calcado no transcendental econômico, na proporção em que, ao promover o bem-estar dos indivíduos e torná-lo coincidente com o interesse público, o Estado reduz as funções sociais a uma medida de valor. 33 Um Estado, mais forte economicamente, é, também, superior aos outros e pode se impor/sobrepor a eles – a soberania é um poder de polícia: subordina singularidades, vontades individuais à vontade geral pelo estatuto da burocracia. 3. O CORPO BIOPOLÍTICO DA SOCIEDADE INDIANA Mais ainda: na longa transição da sociedade medieval para a moderna, o esquema de grausOriente de podermarcou é substituído pelo da disciplina e O hierárquico grande e fascinante a história doaparato imaginário humano de da especialização funções, próprio da dinâmica burocrática.resultantes da diferentes formas,detodas, porém, sedutoras e enigmáticas, Mas reafirmo que essaculturais, longa transição nãoesefilosóficas deu de maneira uniforme. compreensão das diferenças religiosas em relação aos Em sedotratando do Enquanto Oriente, ao Oriente chegadaMédio desse enovo pensamento rumos povos Ocidente. a tradição islâmicatomou marcaram a diferentes – correspondentes aos diferentes modelos colonizatórios e aosuma Europa com o sangue das Cruzadas, fixando no discurso eurocêntrico diferentes colonizados. por aEdward Said, o Oriente, concepçãopaíses violenta e agressivaDenunciado dessa cultura, Índia foi construída de através maneira do orientalismo, uma de construção elaborada colonizador e importada ao bastante diversa: foi a idéia receptividade, os pelo sabores das especiarias, os trajes mundo colonizado sob o estigma Na verdade, o projetodo colonial femininos que tantojáocultam e que da porexclusão. isso seduzem e a passividade povo se baseou, justamente, na premissa taisdá povos seriam inferiores peloefato diante de uma Lei que tudo justificade e aque tudo sentido (as Leis do carma do de não se equipararemuma aos europeus do que estes consideravam padrão de darma) determinaram concepçãodentro receptiva dessa nação. civilização. Desde a chegada à Calicute, em Kerala quando da descoberta do Retomando questão da Modernidade, destaco umaXX, questão fundamental, Caminho Marítimo apara as Índias até meados do século quando da luta também apontada por em relação Américapelos Latina, mas quepelos se adequa, pela Independência doCanclini país, a Índia não foià descrita seus, mas outros. perfeitamente, às discussões à Índia: a diferença modernidade Foi, notadamente, a partir concernentes de Gandhi, que a “outra” Índia entre começou a ser econhecida modernização. A modernização ocorrendo, passosda lentos mundialmente: a terra dorealmente abandono,vem das doenças, da amiséria, seca,é bem verdade, naquele Porém, a Modernidade se gentil, instaurou numa parte da fome. A Índia tribal epaís. nômade A Índia da vilas de povo absolutamente muito pequena do território, já que de o país tamanha fragmentação religioso, analfabeto e sem dentes, uma apresenta ingenuidade assustadoramente cultural, política que alguns espaços ainda imersosadotou, numa manipulável. Foieaeconômica Índia excluída da Modernidade que oestão Mahatma 56 denunciou e pela qual lutou, utilizando suas características como uma alternativa política para toda a Nação. Enquanto isso, a Índia de Nehru também existia: moderna, letrada, presente nas grandes capitais e negociando com o Ocidente de igual para igual, até mesmo no idioma falado e na incorporação de costumes e tradições do colonizador britânico. Tal ambigüidade é o legado do Colonialismo. Essas duas esferas, somadas às intensas variantes culturais forjadas através de uma História que começou com as invasões arianas ao vale do rio Hindo, séculos antes de Cristo, formam a Índia contemporânea. É esta Índia que se pode encontrar nas atuais produções artísticas indianas. Assim, para entender as narrativas, e em especial o romance de Roy, é imprescindível que se desconstrua a Índia imaginária – imaginária enquanto correspondente a uma criação (Imaginary homelands, Salman Rushdie) e se conheça um subcontinente plural e polifônico, para o qual autores e autoras têm projetado alternativas em seus textos. É o que Vinay Dharvadker aponta em suas reflexões acerca da Índia contemporânea presentes em Cosmopolitan Geographies new locations in literature and culture, (sem tradução para o português) de onde extraio o seguinte: Embora a vila rural seja o último alvo de expropriação, tanto do colonialismo quanto do neocolonialismo, a cidade continua a ser o local onde o poder está concentrado e o capital é acumulado e desenvolvido. (...) O “trabalho sujo”da globalização, de fato, é feito não tanto em largas escalas nacionais como nos pequenos sítios de cidades selecionadas e nos interiores, os setores urbanos e rurais onde a matéria bruta, o trabalho, a produção econômica, a distribuição em redes, a infra-estrutura e os consumidores podem ser quantificados, localizados e explorados. Não foi, portanto, por acidente que tanto da literatura indiana do século vinte, especialmente a ficção, projetou-se em dois eixos de transformação: o eixo temporal, da subserviência da 57 colonização até a libertação, que conduz para a mortandade da Divisão e para as falhas da independência; e o eixo espacial, da vila para a cidade, dentro do qual tantas narrativas do antes, do durante e do depois da descolonização estão atualmente desenvolvidas. (1) A questão posta nesse caso é a convivência entre a modernidade, em evolução nos grandes centros urbanos, e o que se vive na maior parte da Índia, uma economia próxima da implementada na época medieval. Para que essa situação fique mais evidente, cito a jornalista indiana Gita Mehta, quando esta descreve com precisão a realidade daquele país, tanto que é válida a extensão do excerto: É um escândalo! exclamou a intelectual francesa com uma paixão disponível somente para ocidentais dinâmicos. (...) Você sabe o que essa gente do vídeo está fazendo? insistiu ela, irada, e senti que algo de ruim estava para acontecer. Fizeram filmes com rituais religiosos! Imagine ligar um aparelho para ver seu sacerdote entoar as preces enquanto você se prosterna diante da televisão! Fiquei olhando para ela, incrédula mas aliviada. Ela agitou a manga de musselina bordada na minha direção, ofendida com minha estupidez obstinada. Pense só! As pessoas estão adorando os vídeos! Qual é o problema?, pensei comigo. Adorando vídeos? Faça o favor. Estamos na Índia. Aqui adoramos aparelhos de ar-condicionado, computadores, caixas registradoras e carros de boi, num ritual anual denominado Adoração das Armas. Há milênios os indianos acreditam que o homem se distingue dos outros animais devido a sua capacidade de fabricar ferramentas. Honrando nossos implementos, estamos honrando o engenho humano, e a Adoração das Armas se iniciou com os guerreiros que homenageavam suas armas, os instrumentos de seu ofício. Na Índia moderna as pessoas ainda penduram guirlandas nas máquinas de suas diferentes atividades, esperando uma reação auspiciosa. Na verdade, qualquer reação serve; por isso, no dia de Adoração as Armas, oferecem-se às máquinas cocos pintados com corante vermelho, acompanhados de tantos bastões de incenso que os cocos desaparecem em meio a nuvens de fumaça perfumada. (2) Pode-se imaginar essa cena num país com a seguinte estatística: em cinco anos, de 5 mil indianos trabalhando com computação passou-se a 250 mil, 58 exportando 1 bilhão de dólares em material eletrônico por ano. Não é à toa que a autora afirma que o verdadeiro escândalo era que 400 milhões de indianos ainda não tivessem máquinas para adorar. (3) São, por conseguinte, as diferenças, econômicas, sociais, culturais e lingüísticas os obstáculos com que qualquer estudioso de literatura indiana se defronta; obstáculos esses que têm se tornado cada vez mais transponíveis em função de grandes centros acadêmicos pelo mundo se abrirem a pesquisas de literaturas ex-cêntricas (Linda Hutcheon). É evidente que, pela dimensão continental de sua geografia e pela dimensão milenar de sua história, tratar da cultura indiana exige uma atitude humilde de reconhecimento de limitações. Afinal, aprofundar o estudo em tais direções comporia, por si, uma extensa pesquisa. Contudo, para compreender a importância de O deus das pequenas coisas é preciso contextualizar a obra no corpus literário em que ela se encontra, ou seja: um romance de literatura indiana de língua inglesa contemporânea. Portanto, é preciso ser breve, não omisso, diante do que é fundamental para entender as problematizações propostas por Arundhati Roy em seu texto, que são, verdadeiramente, dilemas do cotidiano dos indianos e indianas, cujos corpos são definidos pelas diferenças relativas ao corpo físico da Índia Histórias, religiões, línguas e fronteiras. 59 3.1- Corpo público A Índia é uma enorme de Equase dois milhões de milhas 4. ARUNDATHI ROY península CÂNONES RUPTURAS quadradas, vinte vezes maior que a Grã-Bretanha; com mais habitantes que as Américas do Norte e 80, Sulum juntas. seu início definidoindianas por historiadores, A partir dos anos númeroTem significativo de mulheres começou a receber reconhecimento nacional internacional quando sua poética começou a dentre eles Will Durant, comoe algo em torno de 2900 a.C. (Mohenjo-daro). envolver temática e a invadiram prática de ação social, do dentre elas Arundathi Roy, Anita Desai e Quando aos arianos a região Hindo, já encontraram a civilização Chitra Divakaruni. comum entre está na na opção pela sul, revisão históriaaodenorte. seu dravídica, bastanteOavançada paraelas a época, região e osdanagas, país e de seus movimentos, através da literatura. Assim, a autoria feminina indiana de Desse contato, surgiu o protótipo da divisão das castas, criado pelos arianos com língua inglesa nos permite vislumbrar como a mulher indiana constrói – ou tenta o objetivo de manter suas características raciais, separar esses três grupos construir – uma nova representação de si mesma. Gayatri Spivak reitera o fato de o conforme a cor da pele (a primitiva palavra indiana para casta era varna, cor), discurso do feminino ter relativizado as representações cêntricas, porém ela aponta, em assegurando a manutenção dos traços raciais: de um lado, os de nariz aquilinos, seu texto Quem reivindica alteridade?, para o seguinte: e, de outro, os de nariz chato. Então, o sistema de castas não existia nos tempos A diaspórica pós-colonial pode levar vantagem (o mais das vezes sem saber, devo acrescentar) da tendência em combinar as duas narrativas na metrópole. Assim, essa informante freqüentemente inocente, identificada e bem-vinda como agente de especializadas uma história e Somente quando as ocupações se tornam bastante alternativa, pode ser o lugar de um quiasma, ou seja, do cruzamento de em casa, sistema de hereditárias,uma algodupla entrecontradição: 1000 e 500 a.C., é quea serepresentação acentuam asdo castas enquanto um produção da burguesia nacional; fora dela, a tendência a representar o neocolonialismo pela semiótica “colonização interna”. (1) sistema de estratificação social. No alto da ficaram os xátiras (correspondentes aos védicos. militares que, como os césares, ministravam até mesmo os rituais religiosos), Fawzia Afzal-Khan, em Cultural imperialism and the indo-english novel, pois se tratava de um período de intensas disputas e guerras, a ponto de ser aponta para uma situação bastante interessante em que se encontram os escritores chamado de Idade “Heróica”. e escritoras indianos: a opção pela abordagem mítica ou realista. Isso remete à Conforme a paz começa a predominar, o poder dos xátiras é contestado. experiência do Colonialismo, que trouxe um conflito para o ato de representar a Will Durant descreve bem o período no trecho de Nossa herança oriental: Índia, o qual se estende até o momento presente. Contudo, não fosse a presença Mas a guerra cedeu lugar à paz, e como a religião crescesse em importância e complexidade de ritual, e requeresse hábeis 110 britânica, o país não teria dado seu salto na modernidade, ainda que relutantemente, já em pleno século XIX. Em 1853, Marx, numa série de artigos para o New York Daily Tribune, embora reconheça a brutalidade da introdução da civilização britânica na Índia, afirma: Por mais repulsivo que seja para o sentimento humano testemunhar a destruição e o sofrimento causados pelos ingleses, não devemos esquecer que essas idílicas comunidades aldeãs, por inofensivas que pareçam, tinham sólidos alicerces no despotismo oriental, e restringiam a mente humana, norteando-a da forma mais estreita, fazendo dela um instrumento dócil de superstição, escravizando-a debaixo da autoridade tradicional e privando-a de toda grandeza e das energias históricas. (...) A sociedade indiana não tem História, pelo menos nenhuma história conhecida. O que chamamos de sua História é apenas a narração de sucessivos intrusos que fundaram seus impérios na base passiva dessa sociedade dócil e imutável. (...) A Inglaterra tem de cumprir dupla missão na Índia, uma destrutiva, a outra regenerativa – a eliminação da antiga sociedade asiática e o lançamento dos alicerces materiais da sociedade ocidental na Ásia. (2) Pode-se, realmente, comprovar a existência de duas estratégias distintas: uma, baseada no resgate de uma era de “bem-aventurança” pré-colonial através da valorização do mítico – como o que é feito por Divakaruni – ; e outra, na exploração daquilo que o país oferece em seu cotidiano mais real e, por isso, mais doloroso. Esta é a opção adotada por Arundhati Roy, especialmente em sua obra O deus das pequenas coisas (de agora em diante citado como DPC). 111 4.1- Problematizações do cânone Eu, daqui em diante, me declaro uma república móvel e independente. Sou uma cidadã da Terra. Não possuo qualquer território. Não tenho qualquer bandeira. Sou do sexo feminino, mas não tenho nada contra eunucos. Minhas políticas são simples. Eu quero assinar qualquer tratado de não proliferação nuclear, ou aliança de boicote a testes nucleares, que esteja por aí. Imigrantes são bem vindos. Você pode me ajudar a desenhar nossa bandeira. Meu mundo morreu. E eu escrevo para chorar seu passamento. (3) Essa é Arundhati Roy. Não há como dissociar a pessoa, a escritora e a ativista política. Uma mulher apaixonada pela transgressão, por romper quaisquer barreiras. A começar por aquilo que a identificaria enquanto um rótulo. Na fala citada acima, a autora se define por instâncias enunciativas, quais sejam: a desterritorialização que conduz à planetarização; a marca de gênero, que é eliminada pela neutralização do falocentrismo contida na palavra “eunuco”; a prática política, que convoca o poder contra-revolucionário da multidão; e uma escrita, que presume uma memória discursiva e uma história de transgressão. Como fazer a Índia ter sentido? Como viver na Índia pode ter sentido? A noção de memória discursiva pode ser definida como um “interdiscurso”, ou seja, algo que fala antes, que tem relação com o já passado ou dito, mas que continua afetando o presente em sua qualidade de “esquecimento”. Não há como esquecer os invasores muçulmanos, ou a colonização britânica. Mas também não há como não ver a Índia que surge, altamente tecnológica. Bhabha chama esse conflito de “esquecer para lembrar”. Trata-se de uma outra relação com o passado, que, embora guarde experiências trágicas, é traduzido como válido diante da superação, graças à sustentação numa essência de ser: a resiliência se dá a partir 112 da lembrança do que efetivamente somos enquanto pessoas, povos e culturas. Se os escritos de Roy apontam, inicialmente, para uma ambigüidade relativa à Índia, ao mesmo tempo independente e com fortes traços colonialistas, num nível mais profundo de análise, expandem a questão, situando a Índia como um microcosmo planetário. É significativo o fato de Roy, depois de seu primeiro e único romance, ter-se dedicado à escrita de artigos sobre problemáticas mundiais. Assim é que tudo o que acontece em seu país é analisado sob a ótica da exploração, do mau uso do poder e da necessidade de luta contra o Império. Basta observar os títulos de suas obras: The Greater Common Good, An Ordinary Person’s guide to empire, The cost of living, The Chequebook: Conversations with Arundhati Roy, Public Power in the Age of Empire, Power Politics, Algebra of Infinite Justice e War Talk. Em todos esses textos, vê-se, claramente, o uso de um discurso contrahegemônico, explorado de forma mais ou menos agressiva, conforme o quadro sócio-histórico analisado. Esses marcadores de linguagem que apontei como traços de agressividade são acentos apreciativos (Bakhtin) indicadores da urgência em fazer sentido e em atribuir sentido, não só à Índia, mas também ao mundo e às subjetividades que nele se inserem. É como a própria autora afirma Eu penso que ficção, para mim, tem sido sempre uma forma de dar sentido ao mundo como o conheço. (4) E a principal forma de fazer sentido adotada por Roy é a prática política. Esta transcorre em três níveis de ruptura: com o passado colonial; com as representações centristas relativas ao Imperialismo (baseado na já superada 113 divisão econômica do globo em três mundos), e com as diferentes estratégias de controle do neo-colonialismo. Cito, mais uma vez, o artigo “The end of imagination”, em que essaCORRE atitude dePELAS ruptura ÁGUAS está clara: 5. O DEUS QUE Índia e Paquistão têm bombas nucleares agora e se sentem totalmente no direito de tê-las. Logo outros terão também. Israel, Irã, Iraque, Arábia Noruega, Nepal (Eu estounos tentando ser Rahel ecléticae aqui), Apesar deSaudita, o enredo de DPC centrar-se gêmeos Estaphen, a Dinamarca, Alemanha, Butão, México, Líbano, Sri Lanka, Burma, Bósnia, Cingapura, Coréa do Norte,O Suécia, Coréa do Sul,osVietnã, história é, na verdade, a história de Ammu. foco narrativo toma olhos de Cuba, Afeganistão, Urzbequistão… e porque não? Todo país no mundo tem um motivo especial. Todos têm fronteiras e crenças. Rahel e, a partir dela, narra a tragédia que destrói a família e os separa. Mas, o E quando todos os nossos cilos forem estilhaçados por bombas brilhantes e nossas barrigas estiverem vazias nós poderemos negociar processo narrativo se dá igualmente de forma cindida, conquanto recortes bombas por comida. E quando a tecnologia nuclear chegar ao mercado, quando mesclados: ficar verdadeiramente os Ammu; preços caírem, temporais sejam a históriacompetitiva da famíliae de Ammunãoainda apenas governos, mas qualquer um que puder pagar por ela poderá ter seu próprio arsenal particular homens de negócios, terroristas, talvez solteira em Ayemenem; Ammu divorciada, tendo retornado a Ayemenem, até uma rica escritora de ocasião (como eu). Nosso planeta se cobrirá de lindos mísseis. Haverá uma nova ordem mundial. A ditadura da quando ocorre a tragédia; Ammu morta e os gêmeos separados; o retorno de elite “pró-nuc”. Mas vamos parar para Estaphen dar créditodes-devolvido. a quem o merece. A quem temos Rahel a Ayemenem para encontrar que agradecer por tudo isso? Ao homem que fez isso acontecer? O Mestre do Universo. Senhoras e senhores, os Estados Unidos da Eis o começo que a obra fornece: “Que tudo começou quando as Leis do América! Subam aqui, amigos, fiquem de pé e recebam os aplausos. Obrigada por estarem fazendo isso com o mundo. Obrigada por Amor foram promulgadas. As Obrigada leis que por determinam quem odeve ser amado, e fazerem a diferença. nos mostrarem caminho. Obrigada por mudarem o real sentido da vida. Tudo o que posso dizer como. E quanto” (DPC, p. 43) Umecasamento parana fugir daefamília e do tédio de para todo homem, mulher criança sensível Índia, além, um pouco adiante no Paquistão, é: tomem como pessoal. (5) uma cidade pequena levou Ammu a uma vida conjugal marcada pelo alcoolismo Essas Tentando manifestações políticas implicame oo agir multidão, conforme do marido. garantir as aparências statusdaque o casamento lhe proporcionava, concebem HardtAmmu e Negri,sustentou a relação e suportou até mesmo a sugestão do marido paraAsque ela se tornasse amante (…) do gerente da plantação chá em que forças criadoras da multidão são capazes também dedeconstruir, independentemente, um Contra-império, uma organização política alternativa fluxos e intercâmbios globais.o emprego ameaçado pelo ele trabalhava issodesomente para lhe garantir (…) Mediante tais esforços (…) a multidão terá de inventar novas alcoolismo.formas A separação aconteceu as agressões(6) físicas chegaram aos democráticas e novos quando poderes constituintes. gêmeos. O retorno à casa paterna só trouxe a Ammu mais consciência do quão Um outro aspecto do investimento político da autora é a forma como a questão do gênero é tratada. Os Estudos Culturais têm trazido grandes 132 sozinha estava no mundo, e mais, o quanto ela e os dois filhos estavam à mercê de uma estrutura social e familiar que reforçava a exclusão pelo desamor. Baby Koshama é a personificação desse desamor que se reveste de inveja, dissimulação, vingança e maldade. Ela é a personagem que mais se aproxima de um antagonismo clássico já que, segundo suas próprias palavras, teria cabido a ela o papel de mostrar a Ammu, Rahel e Estha os “seus devidos lugares” na família. Dessa forma, Baby Koshama desmerece as crianças, enquanto frutos de um casamento desfeito, e agride Ammu através dos gêmeos ou incitando o personagem Chako (irmão de Ammu) contra ela. A vinda de Sophie Mol e de sua mãe Margareth a Ayemenem é mais uma oportunidade para achacar Ammu e seus filhos diante da “perfeição” representada pela ex-mulher e filha ocidentais de Chako. Destaco a sutileza e a perspicácia com que a autora explora esse conflito ocorrido no terreno feminino. Chako não é discriminado pelo divórcio – e muito menos Sophie e Margareth – por se tratar de um ramo masculino que, embora mal sucedido como seu pai e outros homens de sua família, tem a primazia legitimada pelo social. É neste momento tão delicado para toda família que o romance entre Ammu e Velutha vem à tona. A reação é explosiva: trancam Ammu em seu quarto para averiguarem a situação e tomarem providências em relação a Velutha. É neste ponto que a personagem Baby Koshama assume um papel fundamental na trama, como podemos verificar no trecho a seguir: Por cima do alarido, Kochu Maria gritou a história de Vellya Paapen para Baby Koshamma. Baby Koshamma percebeu de imediato o imenso potencial da situação, mas imediatamente ungiu seus pensamentos com óleos untuosos. Ela desabrochou. Percebeu que era o Caminho de Deus para punir Ammu por seus pecados e ao mesmo 133 tempo vingar-se da humilhação que ela (Baby Koshamma) tinha sofrido nas mãos de Velutha e dos homens da manifestação, os insultos de Modalali Mariakutty, o sacudir da bandeira à força. Ela desfraldou as velas imediatamente. Um navio de bondade singrando um mar de pecado. (...) “Deve ser verdade”, disse baixo. “Ela é bem capaz disso. E ele também. Vellya Paapen não ia mentir sobre uma coisa dessas.” Depois de uma repreensão de Ammu, os gêmeos resolvem fugir da casa – uma atitude comum à infância – para uma ilha onde, numa casa abandonada, Estaphen e Rahel construíram uma espécie de refúgio. Sophie Mol resolve acompanhá-los. O que ninguém sabia é que esta não era capaz de nadar e, quando o barco em que estão as três crianças vira, por conta da turbulência gerada por uma tempestade, os gêmeos chegam até a outra margem, mas Sophie desaparece. Tendo uma relativa consciência do que aconteceu, os sobreviventes buscam abrigo na casa abandonada – “Coração das trevas” – enquanto a família entra em desespero, acreditando estarem os três primos desaparecidos. Baby Koshama vai até a polícia e insinua que Velutha havia tentado estuprar Ammu e, por não conseguir, ele, talvez, tivesse raptado as crianças. A polícia, então, amplia o incidente e, quando Velutha é encontrado com os gêmeos, dormindo no “Coração das Trevas”, é espancado diante das crianças e já segue, praticamente morto, para a delegacia. As crianças são levadas também, mas em vez de Ammu, são recebidos por Baby Koshama Baby Koshamma terá todo o processo na mão, uma vez que, trancada no quarto, Ammu nada pode fazer para proteger seus filhos e defender a si e Velutha. A relação dos dois é explorada por Baby Koshamma, que consegue, assim, separar de uma vez Ammu de toda a sua família. Manipulando as 134 crianças, especialmente Estaphen – que é o escolhido por ela para reconhecer Velutha, totalmente desfigurado e jogado ao chão da delegacia , ela se vinga da beleza de Ammu, do fato de ela ter tido os homens que quis, fazendo o menino mentir para a polícia, garantindo a definitiva condenação de Velutha, que morre na mesma noite em que Estha prestara o depoimento. A morte de Velutha é impactante, sobretudo se analisarmos a busca das crianças por uma figura paterna que os amasse. Senão, revejamos a reflexão diante do Capitão Von Trapp quando os gêmeos assistiam ao filme A noviça rebelde no cinema de Cochim: E então, nas cabeças de certos gêmeos bivitelinos presentes na platéia do Cine Abhilash, surgiram algumas perguntas, que exigiam respostas, i.e.: (a) Será que o Capitão Von Papo de Trapo sacudia a perna? Não sacudia. (b)Será que o Capitão Von Papo de Trapo soprava bolhas de saliva? Será? Com toda a certeza não soprava. Será que ele gorgolejava? Não. Oh, capitão Von Trapp, capitão Von Trapp, será que poderia amar aquele menino com a laranja na platéia cheia de cheiros? Ele tinha acabado de segurar na mão o sôo-soo do Homem do Refrescodelaranja Refrescodelimão, mas será que você ainda podia amá-lo? E a irmã gêmea dele? Dobrada para cima com o chafariz preso por um Amor-em-Tóquio? Podia amá-la também? O capitão Von Trapp também tinha algumas perguntas. (a)São crianças brancas e limpas? Não. (Mas Sophie Mol é.) (b) Fazem bolhas de saliva? Fazem. (Mas Sophie Mol não faz.) 135 (c)Sacodem as pernas? Como funcionários? Sim. (Mas Sophie Mol não.) Algum deles, ou ambos, já seguraram o sôo-soo de estranhos? 6. CONCLUSÃO N... Nsim. (Mas Sophie Mol não.) “Então desculpe”, disse o capitão Von Papo de Trapo. “Está fora de cogitação. Não posso amar esses dois. Não posso ser o Baba deles. Ah,finalizar não.” a análise de uma obra como O deus das pequenas coisas? Como O capitão Papo de Trapo não podia. (DPC, p. 114) Definitivamente, essa parece ser uma tarefa quase impossível. Cada página, cada parágrafo linha guarda emgêmeos si umae todos inesgotável fonte da de família: significados, Sãoou cindidos, então, os os membros Esthaonde é emoções epara informações se intercambiam numa multiplicidade surpreendente. mandado o pai e visto por todos – principalmente por Margareth – como oNo entanto, é da preciso os objetivos o próprio livroe forneceu como “culpado” morteretomar de Sophie. Ammu que é expulsa de casa jamais consegue guiançaospara as investigações a que me propus realizar quanto à literatura indiana reaver filhos, pois mal conseguia sobreviver. E Rahel, sustentada por Chako, contemporânea. cresce sem carinho e atenção. Depois da morte da mãe (aos 31 anos), Rahel A começar pelo títulomais destefortemente estudo, o silenciamento margens foi ainda adolescente, assume uma postura das transgressora quee éa resultado de um conjunto de fatores de relevância levará a expulsões dos colégios em que estudou. histórica. Margens silenciosas, porque Os silenciadas. relações de poder gêmeos se Silenciamento transformam emeste, serescaracterístico esvaziados nodassentido do vazio que estipuladas civilização em si: domínio do maisaponta forte, predomínio do social, um faz empela relação ao outro. Como o narrador no início da obra, eles poder macho.com O uma princípio civilizador (Marcuse), subjulgou haviamdonascido únicaapolíneo alma siamesa; e o vazio da almaque estava no olharos primeiros matriarcal, foi o pela mal necessário à configuração de um e nomodelos silênciode dosociedade outro. Ambos arrastaram vida as marcas da trágica do mundo como nos é hoje. A mesma que elibertou homem separação. Suas trajetórias são narradas de virilidade, maneira breve sucinta,ocomo que da ignorância, tornou-o escravo das sexo, raça, altura, largura, para justificar uma não-vida; umaparências: hiato entre cor, a infância e o que estavam por diâmetro, comprimento... Critérios de exclusão, definidores de fronteiras viver, 23 anos depois. interpessoais e territoriais. Foi a crença nesses critérios que fortaleceu e sustentou os cânones enquanto estruturas ideológicas de poder, além de reduzir a identidade, fosse ela 166 individual ou nacional, a modelos e convenções. Coube às diferentes fases da Modernidade, aqui interpretada como um projeto burguês, a tarefa de disseminar pelo globo esses ideais canônicos. Mas a Modernidade entrou em crise. Deus está morto, Nietzche também, e eu não estou me sentindo muito bem.(1) Essa fala de Jair Ferreira dos Santos traduz ironicamente o sentimento atual de grande parte da humanidade: o mal-estar. Percepção de muitos pensadores de nosso tempo – de Freud a Zygmunt Bauman – tal sensação parece ser crônica na medida em que se trata do sintoma dos reais distúrbios que nos vêm afligindo desde o momento em que a Modernidade entrou em crise. Estes chamados “tempos de metamorfose” (Manuel Antonio de Castro), marcados pela fragmentação e a relativização de paradigmas em todos os sistemas da sociedade ocidental e de parte da oriental, denunciam a grave crise de representação que se manifesta na esfera social, assim como no campo das artes. Literariamente, podemos verificar tal processo nas contundentes vozes que buscam reconhecimento. Mulheres, homossexuais, comunidades diaspóricas e pensadores periféricos, entre outros, reivindicam identidade e reconhecimento através da autoria. Acontece, assim, um movimento de revisão de posições sociais através das obras literárias, especialmente no que diz respeito àqueles contextos pós-coloniais. A construção do eixo centro-periferia, é sabido, foi enfatizada nas movimentações colonialistas, empreendidas por diferentes países a partir do século XVII e ganhou força no século XIX, sendo ainda sustentada no período de descolonização. Como sustenta Edward Said, entre outros, a relação entre centro 167 e periferia, dominador e dominado, nunca foi pacífica; houve constantes movimentos de resistência, desde a Irlanda até a Índia. Isso, não impediu, porém, que toda uma rede de signos fosse construída ao longo do período colonial, garantindo um sistema de exclusão pela diferenciação que marcou tanto Ocidente quanto Oriente. Nesse sentido, Edward Said afirma que durante o Imperialismo – mais especificamente o britânico – [...] todo o contato entre os europeus e seus “outros”, iniciado, sistematicamente, quinhentos anos atrás, a única idéia que quase não variou foi a de que existe um “nós” e um “eles”, cada qual muito bem definido, claro, intocavelmente auto-evidente. Como discuto em Orientalism, a divisão remonta à concepção grega sobre os bárbaros, mas, independentemente de quem tenha criado esse tipo de pensamento “identitário”, no século XIX ele havia se tornado a marca registrada das culturas imperialistas, e também daquelas que tentavam resistir à penetração européia. (2) E foi justamente com o intuito de questionar tal pensamento identitário que Said revisou o termo “orientalismo”. Para o autor, o orientalismo seria uma representação baseada no olhar eurocêntrico que, por sua vez, estaria calcado na compreensão monolítica do oriental e de sua cultura, além de criar toda uma caracterização exótica. No entanto, as idéias de Said não se caracterizaram apenas por uma correção terminológica; mais que isso, sua escrita representou a transformação dos conceitos norteadores das pesquisas do Oriente Médio, da Índia e do Paquistão, por exemplo. Como ele mesmo reitera em outra obra, Cultura e Imperialismo, tal mudança não provocou, infelizmente, o fim das representações imperialistas. Neste livro, aliás, ele mostrará como essas representações continuam povoando o imaginário ocidental já que ainda 168 seríamos seres divididos em nações. E na medida em que há nações centrais e periféricas, o eixo se sustenta, as representações são mantidas. Compartilhando dessa visão, Linda Hutcheon, ao analisar a PósModernidade, aponta exatamente para o fato de este movimento não trazer a periferia para o centro. O que existe é uma constante relativização do centro em termos de cultura, economia, etc. O centro,como afirma a autora, [...] pode não permanecer, mas ainda é uma atraente ficção de ordem e unidade que a arte e as teorias pós-modernas continuam a explorar e subverter. (...) O ex-cêntrico. O off-centro: inevitavelmente identificado com o centro ao qual aspira, mas que lhe é negado. Esse é o paradoxo do pós-moderno, e muitas vezes suas imagens são tão divergentes quanto o pode sugerir essa linguagem de descentralização.(3) O que fica claro, portanto, é que a Pós-Modernidade propõe uma oscilação de posições que reflete o grau em que a subjetividade deverá ser considerada em relação à representação. Afinal, como nos apontam diversos teóricos, o que se vive é uma grande crise de representação. As discussões pós-coloniais enriqueceram ainda mais o questionamento da relação centro e periferia. E um dos autores que propõe interessantes análises da semiose do discurso colonial e pós-colonial é Homi Bhabha. Em Nation and narration, ele, assim como Said, revê a questão da grandes narrativas que serviram como discursos imperialistas. O ponto central abordado por Bhabha nesta obra diz respeito à ambivalência presente no próprio conceito de nação, algo que interferirá sobremaneira no momento de representar essa nação historicamente e narrativamente. Aliás, Bhaba compreende nação e narrativa como a mesma coisa já que as nações se manteriam como tal a partir de sua 169 representação narrativa. Nessa perspectiva, a nação teria como característica representacional básica o fator tempo, dividido em duas esferas: o tempo da tradição7.e BIBLIOGRAFIA o tempo presente. Assim, há uma grande problemática quando se pensa numa literatura nacional, pois existiria uma dificuldade natural em representar ambos tempos. o que onations, autor literatures. chama de “esquecendo para 1. AHMAD, Aijaz.osIn: Theory:É classes, Londres, Nova 1992. lembrar”,Iorque: conceitoVerso, que ele assim explica: 2. AFZAL-KHAN, Fawzia. Cultural imperialism and the indo-english novel. As pessoasThe não Pennsylvania são simplesmente eventos históricos ou partes Pennsylvania: State University Press, 1993. de um corpo político patriótico. Elas são também uma complexa estratégia referencialidade social em Moore. que a reivindicação 3. AMIN, retórica Samir. de Eurocentrism. Trad. Russel Nova Iorque:porMonthly representação provoca uma crise no processo de significação e Review Press, 1989. endereçamento discursivo. Nós, então, temos um território cultural contestado onde as pessoas devem ser pensadas num duplo tempo; as pessoas são os “objetos” de uma pedagogia nacionalista, da 4. BACHELARD, Gaston. A água históricos e os sonhos: ensaio sobre a imaginação dando ao discurso uma autoridade que é baseada no pré-dito ou na matéria. Antonio de constituída. Pádua Danesi. Paulo: história Trad. (ou fato) original As São pessoas são Martins também Fontes, os “sujeitos” 1989. 202 p.de um processo de significação que deve apagar qualquer original ou primeira presença de nação-pessoa para demonstrar os prodígios, princípios das pessoas como aquelesânscrito. processo contínuo 5. BHAGAVAD. Gita: Cançãovivos do divino mestre. Trad.do Introdução pelo qual a vida nacional é redimida e significativa como um processo e notas: repetitivo Rogério e reprodutivo. Duarte; (4) nota introdutória: Caetano Veloso. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Vemos, assim, que Homi Bhabha não nutre sentimentos especificamente 6. BALSAMO, Anne. Technologies of the gendered body: reading cyborg nacionalistas. ao contrário, sua Duke visãoUniversity é a de que se 1996. deve ter uma women.Muito Durham and London: Press, compreensão 7. BARDHAN, sociológica Kalpana [Ed. de tudo andaquilo Transl.]. que envolve Of women, a representação outcastes, peasants da nação, and rebels – a selection of Bengali short stories. da cultura local e dos indivíduos, tudo calcado na ambivalência do conceito de 8. BASSNET, Susan. Comparative literature: a critical introduction. Oxford: nação. É esta ambivalência central em sua postura que servirá para a Blackwell, 1993. denominação de “dissemiNation”, título do principal texto do livro em questão, 9. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. T rad. Mauro vista por Gama, BhabhaCláudia como uma leitura das margens da técnica nação moderna. Martiinelli Gama; revisão Luíz Carlos Fridman. Rio de Janeiro:a este Jorge Zahar, 1998. Muito próximo pensamento é o de Gayatri C. Spivak. Ela também 10.aBAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de tem percepção de que há inúmeros fatores sociológicos a serem considerados Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 110 p. quando analisamos a autoria da representação e a representação em si. Por este 179 11. BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fatais. T rad.: Manuela Parreira. Lisboa: Editorial Estampa, 1990. 12. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas magia e técnica, arte e política. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1993. 13. ______. Obras escolhidas III Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. 14. BERGSON, Henri. 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Revista Tempo Brasileiro, abr.-jun. – nº 161humana, – 2005 o– que Rio contribui de Janeiro: Tempo visão ampla dos processos de transculturação ocorridos bem como Brasileiro Trimestral. da Índia contemporânea. paraed. a compreensão 58. Roy, Arundhati. Power Politics. South End Press, 2001. 59. ______. The cost of living.. New York: Modern Library, 1999. 60. ______. The God of Small Things. New York: HarperCollins, 1997. 61. ______ . “The End of Imagination” (Ensaio). Outlook Magazine. Relançado em The Cost of Living. 62. RUSHDIE, Salman. Midnight’s children. New York: Penguin Books, 1980. 63. ______. Os versículos satânicos. Trad. Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira. Lisboa: Publicações Don Quixote, 1989. 64. ______. Imaginary Homelandas: Essays and Criticism 1981-1991. Viking Penguin. USA, 1991. 65. ______. O último suspiro do Mouro. Trad.Paulo Henriques Brito. São Paulo: Companhia das Letras,1994.