UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
RODRIGO ALMEIDA DA SILVA
TÁ RINDO DO QUE? : RISO E RACISMO NO HUMOR TELEVISIVO
BRASILEIRO NO SÉCULO XXI
CURITIBA
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
RODRIGO ALMEIDA DA SILVA
TÁ RINDO DO QUE? : RISO E RACISMO NO HUMOR TELEVISIVO
BRASILEIRO NO SÉCULO XXI
Pesquisa
Estágio
apresentada
Supervisionado
à
disciplina
em
de
Pesquisa
Histórica como requisito para a conclusão
do Curso de História, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Paraná.
Orientador: Prof.º Dr.º Clóvis Mendes Gruner.
CURITIBA
2015
Agradecimentos
Primeiramente, gostaria de agradecer a minha família, meu pai e minha mãe em
especial, por terem fornecido o apoio necessário para que eu pudesse chegar até aqui.
Suas trajetórias de vida são exemplo para mim.
Também gostaria de agradecer a todos meus amigos e amigas, de dentro e fora
da universidade, que compartilharam ótimos momentos comigo nesse percurso, seja no
bar, na sala de aula, na quadra de ogro, nas viagens (físicas e mentais), e nos
emblemáticos e “pesados” rolês que demos por aí, a todos e todas minha eterna
gratidão. Que nossos caminhos, por mais diversos que sejam, possam se encontrar em
muitas outras oportunidades.
Ao professor Clóvis Mendes Gruner, cujas conversas foram muito produtivas.
Fica aqui meu agradecimento.
Por fim, agradeço a Tamara Bacetti, pessoa que já deixou e ainda continua
deixando sua marca na minha vida de todas as formas e sentidos. Mulher da qual
compartilho uma das maiores experiências de minha vida, nosso filho Jamal.
Que a vida seja generosa com todas e todos vocês, que o caminho do bem
sempre se apresente para essas pessoas tão queridas para mim.
Obrigado!
RESUMO: Essa pesquisa teve como objetivo investigar o racismo no humor televisivo
no Brasil no ano de 2012, a partir dos quadros da personagem Adelaide, que fez parte
do programa Zorra Total nos anos de 2012/13. Construímos esse trabalho a partir de
uma análise sócio histórico, observando a situação da questão racial em nosso país,
idealizada a partir de uma ideia de democracia racial. Procuramos, então, estudar o
campo televisivo como um meio material responsável pela (re)produção dos meios
simbólicos de uma sociedade, que reforça e legítima certas práticas sociais e trabalha
com categorias de vertente conservadoras pertencentes, principalmente, a grupos
dominantes que buscam a manutenção de um discurso hegemônico da ordem vigente,
dentre as quais se insere o humor/riso.
Palavras-chave: Racismo; Riso; Televisão.
Sumário
Introdução ....................................................................................................................... 6
1. O riso.......................................................................................................................... 11
1.1 O riso de Bergson ................................................................................................. 11
1.2 Uma história de muitas risadas ............................................................................. 15
1.2.1 O riso no século XX ....................................................................................... 19
1.3 Perspectivas sobre humor e racismo no Brasil ..................................................... 21
2. Análise da fonte......................................................................................................... 28
2.1 Quadro teórico-metodológico ............................................................................... 28
2.2 Afinal, que zorra é essa? ....................................................................................... 31
2.3 Blackface ............................................................................................................... 36
2.4 Tá rindo do que? ................................................................................................... 37
2.5 A fonte e o contraponto do racismo ...................................................................... 40
3. Considerações Finais ................................................................................................ 43
4. Fontes ......................................................................................................................... 47
5. Referências Bibliográficas ....................................................................................... 48
Introdução
Essa pesquisa teve por objetivo realizar uma análise sócio histórica do racismo
no humor da televisão brasileira, tendo como objeto de pesquisa a personagem Adelaide
do programa humorístico Zorra Total, que é exibido pela Rede Globo, no ano de 2012.
Assim como analisar a recepção desse quadro de humor através das ações dos seus
telespectadores, seja por gostar do quadro ou repudiá-lo. É importante ressaltar que o
foco dessa pesquisa está sobre um meio de comunicação (televisão) e uma forma de
linguagem (humor/riso) que contribuem para a manutenção de uma forma de
preconceito: o racismo
O recorte temporal que está situado no ano de 2012, se justifica pelo fato da
estreia do quadro e de sua rápida aceitação pela audiência, assim como da indignação de
muitos que procuraram denunciar a forma de humor realizada no quadro. O quadro tem
sua estréia no dia 12 de maio de 2012, sendo que o último episódio desse quadro no
programa foi ao ar no dia 29 de junho de 2013. Em novembro de 2012, é lançado o
DVD exclusivo dos quadros da personagem Adelaide, contendo dezenove episódios,
que foram transmitidos pela televisão, e um esquete inédito para o DVD.
Hoje a questão do riso e do humor no Brasil vive um debate tensionado pela
ofensa e pela brincadeira, ou seja, quais os limites do humor? A comédia se reinventou
e está em ascensão no Brasil, vem se tornando o principal meio de atração dos canais de
televisão, sendo alguns programas exibidos em horários nobres, assim como a
popularização do stand-up comedy, que cada vez mais vem se tornando instrumento de
expressão de um indivíduo perante um grupo de pessoas, no qual a risada e o humor
caracterizam ideias e preconceitos por trás de seu tom burlesco, comediantes que estão
se tornando grandes formadores de opiniões e que ganham adeptos a cada dia de suas
ideias e de seus discursos.
No primeiro capítulo, trabalhamos com a questão do riso, divido em três eixos,
ou subcapítulos, no qual, primeiramente, procuramos realizar uma reflexão acerca da
obra do filósofo francês Henri Bergson e a da sua teoria social do riso exposta no livro
O Riso – ensaio sobre a significação da comicidade publicado em 1899. Neste livro,
Bergson demonstra, através de uma linguagem sintetizada e coesa, a sua análise do que
vem a ser o riso, do que rimos, o que é risível? O primeiro fator que devemos nos ater
na leitura de Bergson é que para o autor o riso é um fenômeno social, ou seja, nosso riso
6
é sempre o riso de um grupo.1 Em seguida, realizamos um levantamento historiográfico
sobre riso e humor na história ocidental. utilizamos essencialmente George Minois com
sua obra História do Riso e do Escárnio, publicada originalmente no ano 2000 na
França. O historiador procura em seu texto trabalhar com a teoria e a prática do riso ao
longo do tempo, o livro pode ser divido, grosso modo, em três momentos: o riso divino,
o riso diabólico e o riso humano. O autor trás uma análise profunda sobre como o riso
assumiu diversas formas e significados em diferentes épocas e culturas. Sobre isso, o
historiador medievalista Jacques Le Goff afirma que o riso é um fenômeno social. [...] É
uma prática social com seus próprios códigos, seus rituais, seus atores e seu palco.2
Na última etapa desse capítulo fazem-se algumas considerações acerca do humor
na questão racial. Nesse sentido ao analisarmos o humor ligado à questão racial,
entende-se que o humor no Brasil, assim como Bergson já havia anunciado, possui uma
significação social, ou seja, o discurso humorístico também opera como um mecanismo
de encobrimento do racismo, devido a sua narrativa lúdica, assim como opera com
estereótipos que reforçam negativamente a imagem da população negra. O riso como
um corretivo social aplica-se nesse caso como um dispositivo de autoflagelação do
negro, na própria negação de sua identidade, da história e cultura de seu povo e na busca
pela introjeção de valores hegemônicos produzidos pela cultura do branqueamento que
são inseridos e reproduzidos em níveis institucionais e culturais, como escola, mídia,
moda, etc.
O segundo capítulo traz a questão teórico metodológica de alguns conceitos
necessários para a compreensão da análise das fontes, tais o como o de gênero que
operam como construtores e indicadores que tornam inteligíveis e que orientam a
recepção de uma produção artística, seja ela televisa, musical, literária, etc. Estabelecer
gêneros é um trabalho de classificação das coisas do mundo. 3 Neste sentido, assim
como no campo da comunicação, nessa pesquisa o gênero é tido como ferramenta de
análise da televisão que temos, ou daquilo que esta televisão produz.4 Também optamos
pelo entendimento do conceito “cultura popular” atribuído pelo historiador Roger
1
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes,
2001. P. 5.
2
BREMMER, J; ROODENBURG, H. Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000,
p. 65.
3
FRANÇA, Vera F. O “popular” na TV e a chave de leitura dos gêneros. In: Televisão e Realidade.
Bahia: Edufba, 2009. Pg. 236.
4
Ibidem, pg. 223.
7
Chartier para tentar compreender o quanto existe de popular no humor produzido pelo
programa Zorra Total. Já que o quadro muitas vez é atribuído pelos seus idealizadores
como popular. Outro conceito empregado na pesquisa foi o de código negociado, que na
definição de Stuart Hall coloca-se como a ideia de que, provavelmente, a maioria das
audiências compreende bastante bem o que foi definido de maneira dominante e recebeu
um significado de forma profissional.5 Essa visão dominante se coloca de forma
hegemônica, pois, é construída a partir de uma determinada intencionalidade de leitura
de mundo que está ligada a vários fatores e que procuram, segundo Hall, grandes
totalizações, de forma que se consolide esse ponto de vista hegemônico.
Finalmente, nos últimos quatro subcapítulos, partimos para a análise da fonte, no
qual procuramos dar uma rápida pincelada da história do programa Zorra Total.
Começamos analisando a fonte não pela personagem Adelaide, mas por aquele que está,
por assim dizer, sob ela: o comediante Rodrigo Sant’Anna. Observamos que a sua
condição de mestiço é parte importante para compreender porque ele próprio não atente
para a sua atuação de caráter racista realizado no programa. O que se pretende com essa
afirmação é compreendermos que a identidade brasileira é constituída tendo como base
a mestiçagem, fator primordial em que se consolida uma ideia de harmonia racial no
Brasil. Posteriormente, trabalha-se com a utilização da técnica do blackface, estilo
teatral criado nos Estados Unidos para representar os negros6, quando esses ainda eram
proibidos de atuarem ou interpretarem papéis de destaque e que representava uma
imagem exacerbada do fenótipo negro de maneira depreciativa, no qual os brancos se
pintavam de preto e realçavam seus lábios de vermelho, ridicularizando as
características da pessoa negra. No Brasil, essa prática também se fez presente e,
obviamente, também se tornou polêmica.
Em seguida, agora sim, é feita a análise dos quadros da personagem Adelaide. O
processo analítico tem na sua essência a desconstrução dos fatos descritos e dos eventos
narrados pelo documento visual. Portanto, procuramos não realizar uma análise seriada
dos episódios, ou seja, descrever um por um, mas sim fazer uma observação geral no
qual se destacam elementos comuns a todos eles e dando destaque àqueles quadros que,
além da estética da personagem, possuam no seu desenrolar situações que remetam a
5
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. 2ª ed. – Belo Horizonte: Editora
UGMG, 2013. Pg. 444.
6
O cineasta Spike Lee tratou desse tema em seu filme “A Hora do Show”, “Bamboolezd” no título
original.
8
um racismo característico do nosso país. Enfim, por último, brevemente, em nossa
pesquisa coube destacar também, o discurso que visa positivar a interpretação da
personagem Adelaide. Ou seja, existe uma perspectiva a ser considerada na fonte
analisada que se compreende não pela leitura depreciativa da comunidade negra, mas
que, ao invés disso, se entende através da positivação de suas ações construídas pela
estrutura narrativa e visual que fazem parte do quadro. Isso não significa que pretendese anular tudo aquilo que foi articulado nessa pesquisa, pelo contrário, o argumento é
aqui exposto de maneira que possamos desestruturá-lo.
Algumas considerações sobre a televisão são válidas para uma leitura mais
proveitos do nosso trabalho. A televisão num país como o Brasil, que sofre um atraso
educacional fruto de um sistema de ensino público defasado, passou a ser um dos únicos
meios pelo qual muitos brasileiros se baseavam e ainda se baseiam para formar suas
opiniões sobre determinado assunto. Ocorre que, uma classe está em lugar de prestígio,
em detrimento das outras que recebem materiais direcionados de acordo com interesses
particulares (BACCEGA, 2000).7 É por isso que, como bem disse Luciano Zarur, essa
análise não se propõe a tratar a televisão como vilã ou causadora dos problemas sociais
brasileiros, que, obviamente são anteriores a ela, embora se tenham agravado ao mesmo
tempo em que crescia sua influencia em nosso país.8 Antes de tudo a televisão é um
espaço público mediado por um interesse privado, no qual a sua constituição em relação
ao conteúdo transmitido é uma extensão das relações socioculturais que estruturam a
nossa sociedade.
A televisão adquire então esse caráter social e por isso mesmo, precisa dialogar
com essa esfera, precisa se aproximar da realidade das pessoas através das suas
produções e informações. O problema reside no fato de que o que se passa na tela não é
a realidade como a conhecemos, mas sim um simulacro da realidade, no qual a
identidade dos sujeitos é construída por imagens especulativas e subjetivas, mesmo
assim o sujeito pode se reconhecer em seu semelhante no espelho televisivo, ou mais
7
Encontro de estudos multidisciplinares em cultura. 6º, 2010 – Facon-UFBa. A televisão como mídia
sócio-cultural.
8
ZARUR, Luciano. A construção e a desconstrução da autoimagem brasileira pela televisão. Comum
- Rio de Janeiro - v.6 - nº 17 - p. 149 a 191 - jul./dez. 2001. pg. 153.
9
ainda, nos ideais e modelos transmitidos por ele e que, assim, indicam as grandes linhas
de constituição das identidades sociais.9
9
Encontro de estudos multidisciplinares em cultura. 6º, 2010 – Facon-UFBa. A televisão como mídia
sócio-cultural.
10
1. O riso
1.1 O riso de Bergson
O francês Henri Bergson (1859-1941), importante filósofo e diplomata, teve seu
livro O Riso – ensaio sobre a significação da comicidade publicado em 1899. Neste
livro, Bergson demonstra, através de uma linguagem sintetizada e coesa, a sua análise
do que vem a ser o riso, do que rimos, o que é risível? O primeiro fator que devemos
nos ater na leitura de Bergson é que para o autor o riso é um fenômeno social, ou seja,
nosso riso é sempre o riso de um grupo.10 O riso nesse caso é específico de cada
sociedade, cada povo compositor de sua cultura também é responsável pelas coisas que
se tem por engraçado, por isso, o que pode ser engraçado para determinada sociedade
não o é para outra. Justamente, pelo fato de que uma piada, por exemplo, só poderá ser
engraçada para uma plateia se as pessoas que nela estão compreenderem o contexto em
que a piada é desenvolvida ao mesmo tempo em que se identificam com a graça que a
piada contém.
Outro ponto levantado por Bergson é que o riso esconde uma segunda intenção
de entendimento, quase de cumplicidade, com outros ridentes, reais ou imaginários.11
Essa segunda intenção está no fato de que o riso, a risada, não está unicamente ligada ao
prazer da alegria, da satisfação ou daquilo que agrada a todas as partes. O humor, o riso,
é um instrumento poderoso, um campo no qual é possível construir discursos, críticas,
determinados pontos de vista e expressar ideias de formas maquiadas de humor. A
risada é derivada de elementos socioculturais no qual o objeto da piada carrega com si
uma carga histórica de características de conhecimento que circula pelo imaginário
social. Por exemplo, quando dizem que o que levou Hitler a cometer suicídio foi quando
ele viu a conta do gás e as pessoas riem por causa desse comentário, dessa piada, elas
riem porque estão situadas historicamente, associam as palavras Hitler, suicídio e gás e
concluem que a graça está exatamente no excesso de consumo de gás para eliminar
tantas pessoas judias, o que, hipoteticamente, aumentou o valor da conta a ser paga a um
nível absurdo, ocasionando o desespero e suicídio de Hitler. No entanto, o pano de
10
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes,
2001. P. 5.
11
Idem, Ibidem.
11
fundo inserido na piada são os milhões de judeus assassinados em câmaras de gás nos
campos de extermínio nazistas, liderados por Hitler. Com isso, percebemos que é
preciso matar a piada para disseca-la, quais são os significados que a piada apresenta e o
que ela pode significar dentro da nossa sociedade. Segundo o historiador Peter Gay,
uma sinfonia ou um poema analisados continuam a dar prazer; na verdade, a análise
pode até refinar tal prazer. Não acontece o mesmo com o humor: explicar o ponto ou a
técnica de uma piada é expulsar o riso.12
Outro ponto a ser destacado na interpretação de Bergson é a sua leitura de que na
sociedade existe uma vigilância constante que procura atitudes, gestos, enfim,
acontecimentos que fujam de um padrão social, daquilo que saia do centro
gravitacional, conforme suas palavras, do cotidiano e se torna uma excentricidade. Uma
pessoa que está com pressa correndo pela rua, tropeça e cai torna-se facilmente um alvo
da risada de alguns e da empatia de outros. O fenômeno da risada nesse caso, para
Bergson, esta associada não somente ao movimento involuntário da pessoa, mas a sua
desatenção, um erro no seu movimento, a sua falta de agilidade, a sua rigidez, o que
deveria ser feito no momento para evitar a queda não o foi, e a risada surge nesse ato
como um gesto social que o filósofo atribui como uma correção, um aviso de atenção.
Assim como alguém andando pela rua com a calça furada na parte dos glúteos sem ser
avisada, se torna um chamariz devido ao seu desalinhamento orbital do centro da
normatividade, no entanto a sociedade não pode intervir nisso por meio de alguma
repressão material, pois ela não está sendo materialmente afetada.13 O riso, então como
um gesto, deve se encarregar desse papel, de reprimir excentricidades, corrigir defeitos,
observação que já tinha sido feita por Cícero. Sempre um pouco humilhante para quem
é seu objeto, o riso é de fato uma espécie de trote social.14 Essa será uma ideia
fundamental para o desenvolvimento dessa pesquisa.
Basicamente, o que acabo de descrever faz parte do conceito fundamental na
obra de Bergson: o de mecanização da vida. Que seria justamente essa falta de
percepção das ações dos indivíduos em relação ao que está em sua volta, quando o ser
não acompanha o desenvolvimento daquilo que o cerca, por falta de disposição ou
12
GAY, Peter. A Experiência Burguesa: da rainha Vitória a Freud – O cultivo do ódio. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001. Pg. 375.
13
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes,
2001. P. 14.
14
Idem, Ibidem pg. 101.
12
esforço o indivíduo passa a atuar de maneira programada, repetida. Repetição que pode
ser causa do riso por si só ou também pela sua quebra de maneira súbita, inesperada.
Esses exemplos que citei acima estão direcionados para o riso como
consequência de causas involuntárias, ou seja, quando o objeto do riso não teve a
intenção de procurá-lo, de fazer as pessoas rirem. Porém, existem aqueles e aquelas que
fazem da busca pelo riso dos outros sua profissão. Os comediantes, humoristas,
cartunistas, os bufões dos tempos de outrora, foram e são responsáveis por grande parte
da produção humorística de suas épocas e culturas, contendo suas especificidades. Haja
visto, que mesmo através dos séculos o humor possa ser entendido como uma opção de
lazer, uma forma de descontração, ele também carrega consigo um discurso entre
grupos sociais no qual o riso, graças ao seu caráter intermediário, entre o sério e o
engraçado, o real e o irreal, se adéqua como ferramenta de opiniões, de visões de
mundo, sem deixar explicitamente consolidado uma opinião de tom formal. É devido a
essa transcendência da formalidade e da realidade que o ambiente humorístico assume
que ele passa a ser interpretado como uma “zona neutra” na qual a liberdade de
expressão pode ultrapassar valores éticos e morais de uma sociedade. O riso é um
elemento cultural revelador de costumes, ideias e preconceitos de uma sociedade. A
respeito disso, o cientista social Dagoberto José Fonseca afirma:
Os grupos sociais, quando riem de uma determinada piada, demonstram que
estão aparentemente de acordo com suas mensagens, que elas encontram eco
na sociedade; sua atitude manifesta consciência e assimilação, aludindo a
uma relativa identificação entre a mensagem expressa por eles e a leitura de
15
mundo que é feita pelo conjunto da sociedade.
Portanto, essa configuração do não sério em que se classifica o humor, um
discurso que pode ser entendido como extraoficial, pois, foge ao padrão de análises
sobre a sociedade, na verdade, pode ajudar a compreender melhor aquilo o que se tem
por sério, justamente porque o humor é extraído da própria seriedade da vida. Nas
palavras da historiadora Verena Alberti:
O riso revelaria assim que o não-normativo, o desvio e o indizível fazem
parte da existência. [...] São inúmeros os textos que tratam do riso no
contexto de uma oposição entre a ordem e o desvio, com a consequente
15
FONSECA, D. J. Você conhece aquela? A piada, o riso e o racismo à brasileira. 1. ed. São Paulo:
Selo Negro/Grupo Editorial Summus, 2012. v. 1. Pg. 53.
13
valorização do não-oficial e do não-sério, que abarcariam uma realidade mais
essencial do que a limitada pelo sério.16
Essencialmente, a análise de Bergson sobre o riso é direcionada para a
discriminação, o riso seria um elemento denegridor do indivíduo perante a sociedade.
No entanto, o filósofo também enxerga no riso uma forma de relaxamento, aquilo que
foi dito anteriormente sobre o riso sendo uma válvula de escape para os problemas que
nos cercam também está presente no pensamento de Bergson.
Assim, nos deparamos com uma ambiguidade na concepção de riso empregada
pelo autor, pois, se num primeiro momento temos que o riso é um trote social,
consequência da desatenção do indivíduo perante a vida, que age de modo desastrado e
se torna cômico involuntariamente para uma plateia aleatória, no qual se encontram
aqueles e aquelas que por um momento são insensíveis com o que acaba de acontecer
com a pessoa alheia e por isso estarão suscetíveis a rir dessa mesma pessoa. Afinal, a
comicidade exige enfim algo como uma anestesia momentânea do coração. Ela se dirige
à inteligência pura.17 Num segundo momento, porém, Bergson explica que existe no
riso um movimento de relaxamento, isso implica na quebra de tensão que a sociedade
causa sobre os indivíduos, o riso passa a ter um papel de distração, segundo Bergson,
em que decidimos não nos atentarmos as conveniências que a vida impõe e também
rompemos com a lógica de maneira que ainda continuamos a unir ideias. A narrativa
cômica e seus absurdos, seus argumentos ilógicos e até impossíveis, são descartados
quando entramos nesse jogo da comicidade em que apenas aceitamos e não
questionamos. Enfim, assumimos ares de quem está brincando.18 Não rimos do
comediante, rimos com o comediante.
Visto deste último ponto de vista, aquele que ri é também um distraído.
Enquanto observador do objeto cômico, ele deve esquecer as conveniências e
a lógica e aceitar que o absurdo possa ser verdade, mesmo sabendo que não é.
Ele deve se dar “o ar de alguém que joga”. “Durante um instante, pelo
menos, nos misturando ao jogo. Isso repousa da fadiga de viver.” 19
16
ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Pg. 12.
BERGSON, Henri. O riso. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pg. 4.
18
Idem, Ibidem. Pg. 145.
19
ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Pg.
192.
17
14
Enfim, o riso é um mecanismo que ajuda na interação entre pessoas, até no
processo de aprendizagem, aprendendo se divertindo é algo presente nos discursos
atuais em relação ao ensino. O riso também funciona como denúncia social, no qual se
desenvolve uma crítica sobre determinado tema que está em voga na sociedade,
ridicularizando-o e expondo suas contradições. Entretanto, também deve ser
interpretado como uma maneira sútil de estimular preconceitos que persistem na
sociedade e colaboram para a manutenção do mesmo, pois, o humor opera com
estereótipos. Em torno do humor preconceituoso identificam-se elementos de
inferiorização, atribuindo-se ao risível a capacidade de diferenciação entre camadas
sociais, étnicas, religiosas, políticas e de gênero. É este sentido que essa pesquisa irá
percorrer.
1.2 Uma história de muitas risadas
Diversas são as teorias sobre o riso, de Aristóteles a Freud, muitos pensadores já
deixaram sua contribuição para um elemento exclusivamente humano, que parece atuar
na maioria das vezes de forma inofensiva na sociedade. O riso carrega consigo uma
mensagem, logo essa mensagem possui significado(s) que muitas vezes não é explícito,
ora, rimos de algo porque é engraçado ou porque nos da vontade de rir. Entretanto, da
onde surge essa vontade e como classificamos algo ou alguém como engraçado?
Antes de tudo, compreende-se que o riso é uma construção sociocultural,
portanto, conforme nos distanciamos temporal e espacialmente os significados e
motivações do riso de uma sociedade serão os mais diversos possíveis. Sobre isso, o
historiador medievalista Jacques Le Goff afirma:
De acordo com a sociedade e a época, as atitudes em relação ao riso, a
maneira como é praticado, seus alvos e suas formas não são constantes, mas
mutáveis. O riso é um fenômeno social. [...] É uma prática social com seus
próprios códigos, seus rituais, seus atores e seu palco. 20
Na historiografia uma das obras mais relevantes sobre o assunto é a de George
Minois, História do Riso e do Escárnio, publicada originalmente no ano 2000 na
França. O historiador procura em seu texto trabalhar com a teoria e a prática do riso ao
20
BREMMER, J; ROODENBURG, H. Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000,
p. 65.
15
longo do tempo, o livro pode ser divido em três momentos: o riso divino; o riso
diabólico e o riso humano.
Na Antiguidade, o riso sempre esteve ligado ao divino, os deuses criaram o riso
e o deram para a humanidade, porém, esse riso não estava associado ao entretenimento,
mas sim a práticas cerimonias, rituais e festividades. Essas, por sua vez, representavam
a reafirmação da ordem vigente. O riso festivo é, ao mesmo tempo, a irrupção do caos e
sua autodestruição.21 As festas gregas antigas eram caracterizadas pela inversão, a
eliminação das diferenças, a igualdade entre homens e mulheres, e que
consequentemente gerava o caos, fator que aproximava os indivíduos de seus deuses e
garantia-lhes proteção, pois, simulando o caos original que precedia a ordenação do
mundo os gregos demonstravam seu reconhecimento e agradecimento aos deuses pelos
seus feitos. A festa normalmente terminava com o sacrifício de uma pessoa, um escravo
que servia de bode expiatório carregado de agressividade coletiva, do fundador da paz
social.22
Nessas festas os escravos também podiam exercer um falso poder, sendo eles
mesmos senhores de seus senhores, o excesso que extrapolava a ordem cósmica e social
constituía a desordem necessária para legitimar a ordem vigente e afirmar a maneira das
coisas serem como eram. Por isso, durante essas festas, algum escravo ou prisioneiro
era escolhido para personificar o caos que viria a ser sacrificado no fim da festa, para
um ato fundador da regra, da norma, da ordem.23 Portanto, rir é participar da recriação
do mundo, simulando um retorno ao caos primitivo, necessário à confirmação e à
estabilidade das normas sociais, políticas e culturais. Entretanto, esse riso arcaico nem
sempre está impregnado de gravidade e agressividade. O riso como simples válvula de
escape, o riso como acolhida, o riso de sedução, o riso de ternura existem também.24
A Antiguidade ainda verá uma transformação do riso, a sua humanização pelos
filósofos gregos, isso não quer dizer que aquele riso divino se dissipe, ele esta a espreita
e é preciso aprender a disciplina-lo antes que o contrário aconteça, pois, esse riso que
vem do além pode levar o homem à demência.25
21
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo:
UNESP, 2003.
22
Ibidem, pg. 33.
23
Ibidem, pg. 31.
24
Ibidem, pg. 47
25
Ibidem, pg. 50
16
Ainda na Antiguidade, os latinos Cícero e Quintilhiano serão os primeiros
pensadores a escrever textos que tratem do riso, De Oratore (55 a.C) e Institutio
Oratoria (escrito entre 92 e 94 d.C), respectivamente. Para Cícero, o riso tem a sua
utilidade fundamental na oratória. O orador, por fim, usa o humor como um instrumento
de persuasão a fim de conquistar a plateia, não de hostilizá-la.26 Ou seja, o riso funciona
como uma forma de linguagem que não se apresenta de forma a rebaixar alguém,
porém, isso não significa que o humor não possa ser utilizado como advertência ou
como arma para com a tolice do outro. A deformidade e a desgraça provem de um
desvio social: a função da graça é corrigir esse desvio - de um modo socialmente
aceitável.27 O riso também é visto por Cícero sendo limitado pelas próprias normas
sociais e pela classe pertencente, ou seja, ria daquelas pessoas que estão no mesmo nível
que você e evite zombar daquela que lhe são superiores.
Um grande admirador de Cícero, Quintilhiano, cento e vinte anos mais tarde
contornará outras concepções acerca do riso. Quintilhiano emprega uma conotação
desestruturadora para o riso; é um fomento da desordem; perigoso para o poder, faz
perder a dignidade e a autoridade.28 Para ele, deve-se ter cautela ao empregar o humor,
pois, a receptividade desse humor é imprevisível, não se sabe a reação que o interlocutor
terá, assim, podendo desencadear um processo de instabilidade social. Essa força
obscura deve, portanto, ser utilizada com parcimônia e nunca contra os infelizes, os
notáveis, os grupos sociais ou nacionais.29 Sobre o riso no mundo romano, Minois
afirma:
[...] é de uma degradação progressiva, que vai do risus vigoroso e
multiforme dos primeiros séculos da República a uma pluralidade de risos
socialmente distintos. Nos círculos dirigentes e na elite intelectual, prevalece
uma concepção agora negativa: o poder desconfia do riso; ele vigia as
expressões subversivas em festas e comédias; nas classes superiores, deve ser
utilizado apenas com parcimônia, sob forma muito apurada, cada vez mais
artificial e amaneirada. O riso grosseiro sob vigilância, o riso fino totalmente
adulterado: a decadência do mundo romano é também a decadência de sua
hilaridade.30
26
GRAF, Fritz. Cícero, Plauto e o riso romano. In: BREMMER, J; ROODENBURG, H. (Org). Uma
história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 53.
27
Ibidem, pg. 54.
28
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo:
UNESP, 2003. P. 108.
29
Idem.
30
Ibidem, pg. 109.
17
A Alta Idade Média, com o advento e a expansão do cristianismo será palco da
diabolização do riso. Pois, se Jesus nunca tinha chorado como aquelas pessoas, seres
inferiores que buscavam na imagem de Cristo um ser a quem se espelhar, tanto para
estruturar-se pessoalmente quanto para direcionar o modelo social poderiam estar rindo
a toa, propagando algo que não fazia parte de sua religião, portanto, de suas vidas. O
riso não é natural no cristianismo, religião séria por excelência. Suas origens, seus
dogmas, sua história o provam.31 Todavia, Le Goff acredita que isso não tornou o riso
uma heresia durante a Idade Média, durante esse período, as várias atitudes em relação
ao riso encontram seu lugar dentro de uma certa ortodoxia.32 Quando se fala em igreja
na Idade Média e sua postura em relação ao riso, observa-se nas fontes, que
principalmente, duas questões polarizavam os debates eclesiásticos: o fato de que Jesus
nunca teria rido em sua vida, portanto, o riso se torna um elemento estranho aos
cristãos; e a concepção de que o riso é uma característica distintiva do ser humano, faz
parte de sua natureza rir e assim o fazendo será capaz de expressar um pouco mais da
sua essência. Grosso modo, a verdade é que a Idade Média soube manipular o riso,
fazendo dele um instrumento para suas necessidades.
De acordo com o historiador Georges Minois, o riso humano e interrogativo,
pós-século XVI surge com o questionamento dos valores, da ascensão do medo, da
inquietação e da angústia. À medida que os valores e as certezas naufragam, são
substituídos pelo riso. Foi assim no século XVIII, que caçoou da religião e do
absolutismo; no século XIX, com a sátira e a caricatura ao governo monárquico; e no
século XX, com o recuo das ideologias. Segundo Minois:
O riso foi o ópio do século XX, de Dadá aos Monty Pythons. Essa doce droga
permitiu à humanidade sobreviver a suas vergonhas. Ela insinuou-se por toda
parte, e o século morreu de overdose – uma overdose de riso – quando, tendo
este se reduzido ao absurdo, o mundo reencontrou o nonsense original.33
31
Ibidem, pg. 111.
LE GOFF, Jacques. O riso na Idade Média. In: BREMMER, J; ROODENBURG, H. (Org). Uma
história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 70.
33
MINOIS, George. História do Riso e do Escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo:
UNESP, 2003. P. 553.
32
18
1.2.1 O riso no século XX
O que se sucede no século XX é a banalização do riso, o seu uso desmedido para
situações absurdas, catastróficas, desumanas das quais se tornam objetos de uma forma
de humor que muitas vezes é considerada como um instrumento que ameniza e que
torna suportável tantas tragédias que protagonizaram este século. São as desgraças do
século que estimulam o desenvolvimento do humor, como um antídoto ou um anticorpo
diante das agressões da doença.34
O riso moderno possui uma característica desmistificadora dos valores sociais e
morais que regem a sociedade, esse riso moderno procura desnudar as verdades
absolutas nas quais as pessoas se apegam, se refugiam, para satisfazer seus desejos, para
dar sentido as suas vidas e a forma como encaram ela. Em suma, o riso confronta os
alicerces que estruturam a sociedade moderna.
Um instrumento importante que se consolida no século XX é o cinema. Esse,
que por sua vez, terá papel determinante na disseminação e concepção do riso, pois, o
que o cinema provoca é o distanciamento, no qual é possível usufruir das suas próprias
emoções. Ou seja, cinema combinado ao riso é a fórmula que mostra ao mundo que
tudo pode ser risível: a miséria, a guerra, a idiotia, a ditadura, a glória, a morte, a
deportação, o trabalho, o desemprego, o sagrado.35
A comédia já foi considerada um estilo inferior, ligada às classes populares, esse
gênero muitas vezes foi marginalizado pela cultura erudita, aristocrática, que se
proclamava a detentora de um verdadeiro saber da vida e de suas expressões. Na virada
do século XIX para o XX, quando se deu o surgimento do cinema, a comédia não
demorou a se fazer presente nos filmes.
Em 1896, os irmãos Lumière filmaram “O Regador Regado” (L’arroseur
arrosé), considerada a primeira comédia da história do cinema (se bem que,
nessa época de primeiras experimentações, ainda não podemos pensar num
“gênero”, conceito que surgiria depois, com os grandes estúdios de
Hollywood).36
34
Ibidem, pg. 558.
Ibidem, pg. 588
36
PUTINI, J.P. “Um Riso em Cada Canhão”: reflexões sobre humor e prática política em filmes de
guerras cômicos. Revista Anagrama, São Paulo. Vol. 1, Setembro-Novembro de 2011, pg. 6.
35
19
Nesse período o cinema cômico era voltado para as classes populares, que não
tinham o mesmo comportamento da burguesia intelectualizada, que assistia operas e
concertos em silêncio absoluto. Ao contrário disso, as projeções eram seguidas por
música ao vivo e este acompanhamento ao piano enquadrava emocionalmente o ritmo
da narrativa em imagens, disfarçava o barulho do aparelho de projeção e continha a
euforia do público.37 De fato, a comédia cinematográfica nos seus primeiros anos
esteve ligada para um público marginalizado, que não tinham condições de ocupar os
espaços elitistas da sociedade.
Ao longo do século XX a comédia no cinema ocidental será representada de
várias formas:
Do cômico popular de Louis de Funès ao cômico intelectual do absurdo dos
Monty Pythons, passando pelo cômico da paródia histórica de Rowan
Atkinson na série Blackadder, o cinema provou, no século XX, que basta
mudar alguns detalhes para fazer surgir o lado derrisório do mundo e que a
tragédia é, muitas vezes, uma comédia desconhecida. Tudo depende, de fato,
da maneira como se olha.38
Para Georges Minois, o riso nos finais do século XX e começo do XXI, foi se
proliferando para todos os lados, ri-se de tudo, tudo pode-se fazer com riso, uma
banalização que tornou o riso vazio, ou melhor, o riso retornou ao vazio numa
“sociedade humorística” na qual tudo pode ser tratado humoristicamente.
Um novo estilo descontraído e inofensivo, sem negação nem mensagem,
apareceu. Ele caracteriza o humor da moda, do texto jornalístico, dos jogos
radiofônicos e televisivos, do bar, de numerosos BD. O cômico, longe de ser
a festa do povo ou do espírito, tornou-se um imperativo social generalizado,
uma atmosfera cool, um meio ambiente permanente que o indivíduo suporta
até em sua vida cotidiana.39
O riso então tornou-se uma característica humana para suportar suas próprias
contradições, seus problemas sociais, seus problemas pessoais. O humor não é mais um
elemento isolado, uma parte do todo, o humor agora está presente no todo, faz parte das
nossas relações sociais, um instrumento capaz de banalizar ainda mais rápido aquilo que
numa concepção universal é detestável, a violência, a covardia, a intolerância, enfim, o
37
Ibidem, pg. 7
MINOIS, George. História do Riso e do Escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo:
UNESP, 2003. pg. 588.
39
LIPOVETSKI, G. L’ère du vide. Essais sur L’individualisme contemporain. Paris: 1983. In: MINOIS, G.
História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: UNESP, 2003. P. 620.
38
20
sofrimento alheio quando relido através de uma perspectiva humorística consegue
muitas vezes transmitir a sensação para as pessoas de que os absurdos que ocorrem na
sociedade não precisam sempre de nossa compaixão ou empatia. Não conseguiríamos
suportar todo esse mal que acomete o mundo, portanto, nada como uma boa risada
descontraída para amenizar a turbulência de nossas consciências.
Conclui-se, assim, que, se o riso é um instrumento cultural fundamental e,
portanto, bem pouco instintivo, isto é muito mais evidente junto às sociedades
tradicionais, onde não aparece, por assim dizer, desfuncionalizado.40
1.3 Perspectivas sobre humor e racismo no Brasil
Nos últimos anos, o Brasil está vivenciando uma grande e importante ascensão
de diversos movimentos sociais que estão lutando e conquistando espaços na política e
no campo jurídico, em busca de direitos fundamentais e no combate ao preconceito que
atingem as minorias do nosso país. Aqui, nos interessa destacar a luta dos movimentos
negros e as suas conquistas referentes às ferramentas de inclusão social para a
população negra, a exemplo da implementação das cotas raciais nas universidades
brasileiras e nos concursos públicos.
Cabe destacar aqui, principalmente, a atuação do movimento negro nos anos 90,
que estabeleceu um intenso diálogo com o governo brasileiro. Esse fortalecimento da
questão racial também está ligado ao enfraquecimento das ideologias de esquerda,
originadas primordialmente pelo fim de uma bipolaridade política entre capitalismo e
socialismo já nos anos 80. A transformação estrutural na dinâmica da sociedade
brasileira, somado ao esgotamento das energias políticas de esquerda dos anos 80,
fazem com que apareçam reivindicações individuais e coletivas centradas na noção de
cidadania.41 Ou seja, o movimento negro nesse contexto está inserido numa outra
lógica, baseada nos princípios democráticos, fortemente estabelecidos depois da ditatura
militar, em que grupos buscam atuar através da esfera publica e do reconhecimento das
suas reinvindicações por parte do Estado.
40
MAZZOLENI, Gilberto. Homo Ridens: o riso como instrumento cultural. Perspectivas, São Paulo,
12/13, 1989/90, pg. 234.
41
GONH, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos.
Edições Loyola, 3ª edição, 2002, p. 302.
21
Os novos atores sociais, especialmente as ONGs, apesar de sua relevância em
termos das mudanças sofridas pelos movimentos sociais, irão se caracterizar
não mais pela clássica postura de atuação contra ou à revelia do Estado, como
citado acima. A garantia da democracia formal e os novos modos de
negociações e barganha fazem com que estes novos atores busquem atuar de
maneira completamente diferente. Ao invés do enfrentamento direto com o
Estado, buscam o diálogo. Ao invés do desgaste político travado nas ruas,
nos fóruns, etc, busca-se a construção de parceiras institucionais.42
Isso não significa que o embate com Estado deixou de existir, as cobranças, as
críticas coexistiram com diálogo direcionado para a promoção da igualdade racial no
Brasil e, consequentemente, da desconstrução da democracia racial. As ONGs
(organizações não governamentais) se tornam um novo instrumento dos movimentos
sociais nessa época, recebendo auxílio financeiro de agencias externas ou até do próprio
Estado, foram elas as principais entidades a estabelecer esse diálogo com o governo
brasileiro, ganhando destaque no cenário nacional – inclusive nos dias atuais –, pelos
trabalhos desenvolvidos nos campos cultural, educacional, assistencial (inclusive
jurídico), entre outros.43
A questão racial no Brasil vem sendo cada vez mais tema de discussão e debate,
não só no âmbito acadêmico, mas também fora dele. No futebol, principalmente, os
casos de racismo dentro e fora do Brasil vem ganhando certo destaque na mídia
nacional e tradicional e cada vez mais a opinião pública vai sendo direcionada pelo
discurso desses veículos de informação, muitas vezes de caráter conservador.
Entretanto, esses mesmos meios de comunicação que começam a dar visibilidade à
questão do racismo, inclusive criticando tal prática, porém, na maioria das vezes não
acabaram com as práticas racistas dentro de suas próprias programações. Contradição
essa que não está presente somente na mídia brasileira, mas em toda estrutura social.
A comédia, outro elemento que ganhou muita força nos últimos anos no Brasil,
vem se tornando um componente constante e fundamental da televisão, esta inserida em
vários formatos e gêneros televisivos, seja em programas de auditório, talk-shows,
jornalismo, núcleos de novelas e, obviamente, em programas humorísticos. Outro
42
Congresso Internacional da Brazilian Studies Association – Brasa, 9º, 2008, New Orleans – Louisiana.
A Persistência Política dos Movimentos Negros Brasileiros: transformações e novos desafios
institucionais. Disponível em: http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Marcio-AndreSantos.pdf Acesso em: 11/06/2015.
43
ENCARNAÇÃO, Luís G. S. O Estado brasileiro, o Movimento Negro Unificado e as Políticas Públicas
para as populações negras brasileiras entre os anos de 1988 e 2008: elementos para uma análise. Simpósio
Nacional de História – ANPUH, 26, 2011, São Paulo. Anais. São Paulo, pg. 10.
22
fenômeno impulsionado pelo humor foi o stand up comedy44, que ganhou popularidade
entre os brasileiros nos últimos anos preenchendo espaço em suas agendas de
entretenimento.
Outro ponto relevante é o fato de que comediantes ganharam milhares de
adeptos, fãs, seguidores, enfim, como podemos constatar através das maiores redes
sociais atualmente, Twitter e Facebook, humoristas como Danilo Gentili e Rafinha
Bastos ultrapassam 30 milhões de usuários que curtem ou seguem suas páginas. Ambos
os comediantes são conhecidos por seus comentários e formato de humor polêmico que
busca ridicularizar a tudo e a todos, sem medir consequências os dois representam a
ideia de que o humor, o fazer rir, esta além do bem e do mal. Somado a isso, com o
alcance midiático que possuem eles se tornaram grandes formadores de opinião
referentes a vários assuntos que habitam o nosso cotidiano, muitas vezes de caráter
conservador e retrógrado.
O entrelaçamento desses três fatores destacados acima: a questão racial, os
meios de comunicação e a comédia já circulam pela sociedade brasileira há mais de um
século. O historiador Elias Thomé Saliba em seu livro Raízes do Riso, publicado em
2002, que trata justamente da representação humorística no período da Primeira
Republica até aos primeiros tempos do rádio, comenta que:
[No Brasil], no geral, o humor mais ressentido manifestou-se sob a forma de
renitentes preconceitos raciais ou sob a forma de polêmicas pessoais e
ataques ad hominem. [...] Uma das facetas de maior visibilidade nesta
produção cômica é a referência constante, preconceituosa, às vezes explícita,
45
às vezes alusiva e irônica, à condição racial.
Em seu livro também é discutido uma questão que representava um problema
para os humoristas da época, afinal, o Brasil seria um país sem graça ou o “país da piada
pronta”? Questão essa levantada, pois, aqui a realidade é superada pela anedota, ou seja,
o absurdo, o exagero que constrói a narrativa de muitas piadas, em relação ao Brasil,
estava mais ligado ao cotidiano, no qual os próprios acontecimentos já eram motivos de
deboche, o que poderia ser uma causa de ser impossível o humorismo nessas terras. Por
44
Espetáculo de humor executado por um ou vários comediantes. O humorista stand up não conta piadas
conhecidas do público (anedotas). O texto é sempre original, normalmente construído a partir de
observações do dia a dia e do cotidiano.
45
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle
Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Pg. 113-114.
23
outro lado, para Aparício Torelly, mais conhecido como Barão de Itararé, considerado
um dos maiores humoristas que o Brasil já teve, direcionava sua opinião para o fato de
que o humor no Brasil na verdade faz parte da natureza do brasileiro e que, portanto, é
indistinguível.
Uma possível resposta para essa questão, segundo Saliba, esta no estudo do
humor brasileiro na Belle Époque. Para ele, o humor nesse período esteve ligado à
questão da identidade nacional, problema que tirou o sono de muitos intelectuais do
nosso país, afinal, como produzir uma nação em um território extenso geográfico e
culturalmente, assombrado pelo fantasma da escravidão recém-abolida e de uma
Republica estruturada por uma política de servilismo. Como definir o que é ser
brasileiro?
A formação da identidade nacional caracteriza a constituição de uma
padronização cultural a nível institucional, que tende a hegemonização de determinados
elementos que representam um país e o seu povo. O problema esta no fato de que um
determinado elemento cultural estabelecido como sendo parte de uma cultura a nível
nacional, não necessariamente esteja assim fazendo com que o grupo social ligado ou
reconhecido pela prática de tal atividade cultural seja também reconhecido
politicamente com direitos que deveriam abarcar a todos que fazem parte de uma nação
e que contribuíram para a sua construção. Por exemplo, no Brasil, podemos citar o
futebol, o samba, o carnaval, etc. Entretanto, a absorção de um determinado elemento
cultural pelo establishment não significa a incorporação de seu agente, ou seja, o samba
no passado foi alvo de discriminação, por ter sua raiz ligada ao povo negro. Porém, com
a aproximação de indivíduos que estavam inseridos numa lógica de “civilidade” com
essa cultura, rompeu-se fronteiras, assim ocasionando na chamada popularização, que
tem como consequência a assimilação e expansão social, comercial e cultural do
elemento (samba), mas não do agente enquanto grupo (negros).
O Estado nação no Brasil estabeleceu como referencia para a cultura massiva
os atributos da cultura branca europeia, desestruturando e ao mesmo tempo
absorvendo das culturas negras e indígenas o tempero para a aclimatização e
melhor aceitação da cultura hegemônica. 46
46
ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2000. Pg .34.
24
Essa reflexão se faz pertinente, pois, segundo Homi K. Bhabha, mesmo que
analisando outro contexto, o objetivo do discurso colonial se concentra em construir o
colonizado, [...] refiro-me a uma forma de governar que, ao marcar uma ‘nação
subjetiva’, apropria-se, dirige e domina suas várias esferas de atividade.47 Essa
construção do colonizado, das minorias, dos grupos que não possuem uma
representatividade, em suma, marginalizados, se desenvolve em várias esferas, na
política, na religião, na economia, nas relações socioculturais e também, no caso
direcionado por essa pesquisa, no humor.
No início do século XX, ainda estava em processo a transição do trabalho
escravo para o trabalho livre e, portanto, também uma reestruturação social e judicial,
na qual se instauravam mecanismos de exclusão, cujo principais afetados foram a
parcela pobre e negra da população. Através de legislações que combatiam a vadiagem,
o ócio, ao processo imigratório da mão de obra europeia, um discurso científico que
buscava legitimar a inferioridade e a propensão à criminalidade dos negros e a
criminalização de elementos de sua cultura, tais como religião e capoeira, são alguns
fatores que corroboram com a tese da existência de um racismo institucional.
Entretanto, com o passar dos anos assistimos um desenvolvimento, partindo de um
recorte psicossociológico, que:
[...] apontam para novas expressões de racismo em diversos contextos sociais
que, a despeito de suas especificidades, consagram um modelo de
manifestação mais civilizada do racismo. Em outras palavras: esse modelo de
expressão de racismo se caracteriza, sobretudo, pelo seu encobrimento, por
conter um caráter aparentemente não racista até mesmo para quem
compartilha tais crenças.48
No caso do Brasil, talvez o exemplo mais sucinto dessa manifestação seja aquela
contida na obra do sociólogo Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, publicada em
1933, na qual o autor desenvolve a tese das três raças fundadoras do Brasil (ameríndios,
descendente de escravos africanos e brancos europeus) e do discurso de que em nosso
país existiria uma democracia racial, ou seja, o Brasil teria escapado da discriminação
racial, e que, portanto, a cor da pele não seria um fator que impede a mobilidade social e
econômica na sociedade, pois, somos uma nação miscigenada. Até os dias de hoje ainda
47
BHABHA, Homi K.. A Questão do “outro”. Diferença, discriminação e o discurso do colonialismo. In:
HOLLANDA, Heloisa B (Org.). Pós-Modernismo e Política. Rocco: Rio de Janeiro, 1991. Pg 186.
48
DAHIA, Sandra L. de Melo. A mediação do riso na expressão e consolidação do racismo no Brasil.
Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 3, p. 697-720, set./dez. 2008. Pg. 700.
25
podemos notar que esse tipo de discurso, de pensamento, é comum na nossa sociedade,
fator que, como bem colocou Sandra Dahia, encoberta, suaviza e até banaliza o racismo
presente no Brasil, tornando assim o combate ao mesmo uma tarefa árdua. Somado a
isso, outro fator que contribui para a consolidação do racismo é aquilo que o
antropólogo Kabengele Munanga entende como uma tentativa de assimilação dos
valores culturais branco.49 Isso significa a existência de uma crise de consciência do
negro frente ao discurso de uma suposta superioridade tanto cultural quanto tecnológica
do branco, fruto da doutrina do branqueamento. Neste sentido, o sociólogo Pierre
Bourdieu comenta:
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são
produto de dominação, ou, em outros termos, quando seus pensamentos e
suas percepções estão estruturados em conformidade com as estruturas
mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de
conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão.50
Portanto, entende-se que o humor no Brasil, assim como Bergson já havia
anunciado, possui uma significação social, ou seja, o discurso humorístico também
opera como um mecanismo de encobrimento do racismo, devido a sua narrativa lúdica,
assim como opera com estereótipos que reforçam negativamente a imagem da
população negra. O riso como um corretivo social aplica-se nesse caso como um
dispositivo de autoflagelação do negro, na própria negação de sua identidade, da história
e cultura de seu povo e na busca pela introjeção de valores hegemônicos produzidos
pela cultura do branqueamento que são inseridos e reproduzidos em níveis institucionais
e culturais, como escola, mídia, moda, etc.
Nesse processo de autonegação, os negros tentam repelir, pelo prazer do riso,
o desprazer que sentem no corpo e na alma. Ao contar piadas que
desqualificam o seu contingente populacional na presença de brancos, em
geral almejam tornar-se os sujeitos produtores dessas mensagens, não seu
objeto nem seus receptores.51
49
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1988. Pg. 26.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. Rio de
Janeiro: BestBolso, 2014. Pg. 27.
51
FONSECA, D. J. Você conhece aquela? A piada, o riso e o racismo à brasileira. 1. ed. São Paulo: Selo
Negro/Grupo Editorial Summus, 2012. v. 1. Pg. 37-38.
50
26
Elias T. Saliba, em entrevista a Revista de História da Biblioteca Nacional,
comenta que o seu livro Raízes do Riso tem uma inspiração oblíqua em Raízes do
Brasil, do historiador Sérgio Buarque de Holanda publicado em 1936. Ele comenta que:
“[...] tentava mostrar que a representação humorística brasileira nasce
exatamente como forma de catarse de uma sociedade de excluídos, baseada
no personalismo. Uma sociedade que tem medo da impessoalidade abstrata
da lei. Uma sociedade que nasceu da Contrarreforma, em cima de uma
civilização aventureira.”52
Nesse sentido, assim como o faz Saliba, essa investigação trabalha com a ideia
de que o humor também é um fator importante no conceito desenvolvido por Sérgio
Buarque de Holanda de homem cordial53. Todavia, parte-se de outra perspectiva, que
não procura analisar a catarse, aqui entendida como libertação e purificação, dos
excluídos como gênese da representação humorística, mas sim o inverso, o humor como
forma de manutenção da opressão aos excluídos da sociedade.
O riso se faz presente nessa formulação, pois, a cordialidade, no sentido que
Buarque de Holanda emprega, não está ligada a razão (civilidade, bondade), mas sim a
emoção (afetividade, compadrio), ela nasce do coração, do íntimo, da família, do
privado. Então aqui se encontra um paradoxo entre o riso como elemento agregador,
como uma das facetas com que lidamos com a coisa pública, e o riso denegridor de
Bergson que funciona como um corretor, um denunciante dos desvios sociais, dirigido à
inteligência pura.
Contudo, ambas as perspectivas sobre o riso não deixam de representar
mecanismos que contribuem para o encobrimento da questão racial e do racismo e que
fortalecem o mito da democracia racial no Brasil.
52
SALIBA, Elias T. Fala Sério!. Rio de Janeiro, Revista de História da Biblioteca Nacional, 01 de Abril
de 2012. Entrevista a Marcello Scarrone.
53
Conceito que se baseia na característica do povo brasileiro em ter dificuldades nas relações formais, e
que, portanto, procura alguma maneira de diluir as fronteiras entre público e privado, assim como romper
com as barreiras da hierarquia social, horizontalizar suas relações através da informalidade.
27
2. Análise da fonte
2.1 Quadro teórico-metodológico
Essa pesquisa teve por objetivo realizar uma análise sócio histórica do racismo
no humor da televisão brasileira, tendo como objeto de pesquisa a personagem Adelaide
do programa humorístico Zorra Total, que é exibido pela Rede Globo, no ano de 2012.
Assim como analisar a recepção desse quadro de humor através das ações dos seus
telespectadores, seja por gostar do quadro ou repudiá-lo. É importante ressaltar que o
foco dessa pesquisa está sobre um meio de comunicação (televisão) e uma forma de
linguagem (humor/riso) que contribuem para a manutenção de uma forma de
preconceito: o racismo.
Para o historiador Marcos Napolitano, um problema ligado a pouca atenção dada
à televisão como objeto de pesquisa historiográfica seria a dificuldade para se ter acesso
ao material produzido pela mesma, ou seja, os órgãos e arquivos públicos não
assumiram a guarda do material televisual como parte de uma política de preservação de
patrimônio, a maioria dos arquivos existente é privada e pertence às próprias
emissoras.54 Devido a tal obstáculo, muitos dos trabalhos pioneiros relacionando
história e televisão foram desenvolvidos a partir de fontes primárias escritas, como
sinopses, memórias, entrevistas, índices de audiência, etc. Esse aspecto não deixa de ser
revelador da dificuldade de acesso ao material audiovisual propriamente dito.55
Napolitano também comenta sobre a falta de instrumentos metodológicos, por parte do
historiadores, para a análise televisiva. Sendo que disciplinas como Comunicação e
Sociologia já possuíam uma base de abordagem mais sólida, e que essas poderiam
fornecer um suporte teórico-metodológico para a História.56
Considerando que dificilmente encontraríamos em algum livro de Teoria da
História ou de metodologia da pesquisa histórica, algum capítulo que trata-se
especificamente sobre a análise de fontes audiovisuais referentes à programas
humorísticos, procuramos nos atentar para elementos e conceitos sobre a televisão de
forma geral e que fundamentam os argumentos de forma coerente com as questões
54
NAPOLITANO, Marcos. “Fontes audiovisuais: a história depois do papel” IN: PINSKY, Carla
(org). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. Pg. 248
55
Idem.
56
Idem.
28
propostas nessa pesquisa. Assim, o processo analítico tem na sua essência a
desconstrução dos fatos descritos e dos eventos narrados pelo documento visual.
Portanto, procuramos não realizar uma análise seriada dos episódios, ou seja, descrever
um por um, mas sim fazer uma observação geral no qual se destacam elementos comuns
a todos eles e dando destaque àqueles quadros que, além da estética da personagem,
possuam no seu desenrolar situações que remetam a um racismo característico do nosso
país. Então, através de leituras que tratem da questão racial pôde ser constituída uma
interpretação teórica daquilo que é mostrado na fonte, destrinchando-a.
É necessário compreender-se que a nossa fonte é delimitada por um determinado
gênero televisivo, o humor. Os gêneros são vistos como construtores e indicadores que
tornam inteligíveis e que orientam a recepção de uma produção artística, seja ela
televisa, musical, literária, etc. Estabelecer gêneros é um trabalho de classificação das
coisas do mundo.57 Neste sentido, assim como no campo da comunicação, nessa
pesquisa o gênero é tido como ferramenta de análise da televisão que temos, ou daquilo
que esta televisão produz.58 No caso da nossa fonte, podemos defini-la no campo do
cômico popular, uma vertente ou subgênero da comédia. Isso é fundamentado pela
própria visão do diretor Mauricio Sherman. Mas o que entende-se por “popular” nesse
caso? A cultura popular muitas vezes é interpretada como aquilo que não faz parte da
cultura culta, hegemônica. É tida como um campo simbólico que se constitui
independentemente, com conhecimentos específicos e em algumas interpretações
enxerga-se na cultura popular como sendo fragmentos de uma cultura que predominou
em determinada época, mas que foi superada, deteriorada. Ou até mesmo, no extremo,
se atribui à cultura popular o papel de resistência a uma forma dominante de poder.59
Essas interpretações, no entanto, são lidas a partir de um binarismo cultural, como se
esses dois campos, cultura popular e cultura letrada, se desenvolvessem separadamente
um do outro.
Ao invés disso, nessa pesquisa optamos pelo entendimento do conceito “cultura
popular” atribuído pelo historiador Roger Chartier para tentar compreender o quanto
existe de popular no humor produzido pelo programa Zorra Total, tendo em vista que:
57
FRANÇA, Vera F. O “popular” na TV e a chave de leitura dos gêneros. In: Televisão e Realidade.
Bahia: Edufba, 2009. Pg. 236.
58
Ibidem, pg. 223.
59
ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular? São Paulo: Brasiliense, 2012. Pg. 8
29
As formas populares das práticas nunca se desenvolvem num universo
simbólico separado e específico; sua diferença é sempre construída através
das mediações e das dependências que as unem aos modelos e às normas
dominantes.60
Portanto, quando dizemos que o humor produzido pelo programa Zorra Total é
popular entendemos que existem duas formas de analisar isso, a primeira diz respeito ao
sentido em que o termo “popular”, advindo do senso comum, remete à compreensão de
que é popular, no âmbito da recepção, quando encontra ampla adesão, ampla aceitação,
é conhecido e reconhecido por muitos, e por diversos.61 Em relação ao sentido da
produção:
[...] sabemos [...] que a propriedade dos meios de comunicação é bastante
concentrada em nosso país, e os setores populares e de baixa renda não têm
acesso à esfera de produção midiática. Assim, o popular que estamos
apontando não se explica pela sua fonte, mas remete-se antes a características
ligadas ao destinatário e ao produto.62
Nisso, a utilização do metrô, meio de transporte popular, como cenário do
programa em questão não é dada de forma aleatória. Nesse sentido, entendemos que
essa aproximação do programa com a realidade, da ficção com a realidade, é um
processo mediado por interesses de identificação com o público e, principalmente, com
a realidade desse público. Porém, a maneira como é representada essa realidade é o
ponto em que queremos chegar.
[...] a televisão pode, paradoxalmente, ocultar mostrando, mostrando uma
coisa diferente do que seria preciso mostrar caso se fizesse o que
supostamente se faz, isto é, informar; ou ainda mostrando o que é preciso
mostrar, mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou
construído de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde
63
absolutamente à realidade.
Assim, as formas de abordagem da realidade brasileira pela TV Globo não é
feita de maneira aprofundada a fim de buscar as raízes dos problemas sociais e das
estruturas responsáveis pela manutenção de um sistema que nutre a desigualdade no
60
CHARTIER, Roger. “Cultura Popular”: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, 1995, p.11.
61
FRANÇA, Vera F. O “popular” na TV e a chave de leitura dos gêneros. In: Televisão e Realidade.
Bahia: Edufba, 2009. Pg. 226.
62
Idem.
63
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão seguida de A influência do jornalismo e Os jogos
Olímpicos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997. Pg.24.
30
país. Ao invés disso o discurso televisivo, o produto final da mensagem está associado
com o discurso hegemônico, por exemplo, a “miséria se resolve com trabalho, talento e
oportunidades”; “a desigualdade social é algo natural”; “na política, os partidos não
fazem diferença, mas sim as pessoas”.64 Reforçando a ideia, encontramos em uma das
três teses de codificação/decodificação desenvolvidas pelo teórico cultural Stuart Hall,
aquela que se adequa nesse raciocínio. No chamado código negociado, Hall explica que
provavelmente, a maioria das audiências compreende bastante bem o que foi definido
de maneira dominante e recebeu um significado de forma profissional. 65 Essa visão
dominante se coloca de forma hegemônica, pois, é construída a partir de uma
determinada intencionalidade de leitura de mundo que está ligada a vários fatores e que
procuram, segundo Hall, grandes totalizações, de forma que se consolide esse ponto de
vista hegemônico que pode ser entendido como aquilo:
[...] (a) que define dentro de seus termos o horizonte mental, o universo de
significados possíveis e de todo um setor de relações em uma sociedade ou
cultura; e (b) que carrega consigo o selo de legitimidade – parece coincidir
com o que é “natural”, “inevitável” ou “óbvio” a respeito da ordem social. 66
Apesar dessas interpretações, tanto de Bourdieu quanto de Hall, serem
direcionadas para o campo informativo, ou seja, o telejornalismo, são também
essenciais para a análise da fonte, não podemos cair na armadilha de que por se tratar de
um programa humorístico, ele não possa ser também um contribuinte na formação e até
na legitimação de uma visão de mundo que enxerga na heteronormatividade, na
branquitude e no patriarcalismo, por exemplo, um universo imutável e um centro
normativo no qual os “diferentes” gravitam e estão a sua mercê.
2.2 Afinal, que zorra é essa?
A fonte em questão fez parte do programa humorístico Zorra Total, transmitido
semanalmente pela emissora Rede Globo, ficou no ar por 16 anos (de 25 de março de
1999 a 14 de maio de 2015) e contou com mais de 600 episódios. Em 2006, foi
64
OLIVEIRA, Vantiê C. C. A hipótese da codificação negociada: a (im)provável orientação crítica da
programação da rede globo de televisão. Revista Eletrônica Inter-Legere – Número 03 (JUL/DEZ
2008). Pg. 15.
65
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. 2ª ed. – Belo Horizonte: Editora
UGMG, 2013. Pg. 444.
66
Idem.
31
considerado como o programa de televisão humorístico brasileiro com o maior publico,
atrás apenas da série A Grande Família. O programa passou por uma reestruturação
completa no ano de 2015, trazendo uma nova abordagem de humor, realmente pode ser
visto como outro programa, entretanto, devido ao forte apelo do nome perante o público
e os anunciantes o humorístico permaneceu com o nome de Zorra.
O programa se estabeleceu nas noites de sábado como campeão de audiência,
porém, nos últimos anos foi perdendo uma considerável parcela de seu público, por
diversos fatores, seja pela própria qualidade do conteúdo do programa, pela maior
exigência do seu público ou para a TV paga, que cada vez mais se torna um produto
acessível para classes menos favorecidas, normalmente as classes que engrossavam a
audiência do Zorra Total.
O programa inicialmente contava com grandes nomes do humor brasileiro, tais
como Chico Anysio, Cláudia Jimenez, Agildo Ribeiro, Cláudia Rodrigues, Heloísa
Perissé, Renato Aragão, Pedro Cardoso, Francisco Milani, Lúcio Mauro, Stella Freitas,
Orlando Drummond, Pedro Bismarck, Eliezer Motta, Fafy Siqueira, Rogério Cardos.
Entretanto, em 2003, a direção do programa foi assumida pelo ator e diretor Maurício
Sherman Nizenbaum, o qual trouxe muitas modificações ao humorístico e é considerado
o responsável pela popularização do mesmo, retirando quadros considerados elitistas na
época.
No ano de 2011, o Zorra Total altera seu formato dando início ao Metro Zorra
Brasil, no qual os quadros cômicos se desenvolvem nos vagões do metrô que é
conduzido pela Dil Maquinista, personagem que faz referencia a presidenta Dilma
Rousseff. Percebendo como a mídia tratava a política na época o programa também
começou a dar mais atenção para temas que estavam em pauta durante a semana,
logicamente, pauta essa direcionada pelo jornalismo das Organizações Globo.
O roteirista Gugu Olimecha responsável pela redação final, diz que, quando a
ideia era embrionária, chegou-se a pensar em juntar os personagens em um
ônibus, eternamente, parado no trânsito de São Paulo. “Mas o metrô é mais
abrangente por pegar todas as classes sociais”, explicou. Na opinião de
Olimecha o humor do programa, que também tem satirizado o ex-presidente
Lula – qual aposentado, ele aparece vestindo pijamas -, “ficou um pouco mais
político, sofisticado”. Mas faz uma ressalva importante: “O ‘Zorra’ continua
sendo um programa essencialmente popular”.67
67
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2108201118.htm Acesso em: 23/06/2015.
32
É nesse formato que, no ano de 2012, estreia o quadro de Adelaide, personagem
carregada de estereótipos da mulher negra e pobre, inclusive dessa ligação linear que
existe no imaginário brasileiro. Adelaide é uma mendiga que perambula pelos vagões
do metrô atrás de alguns “trocados”, ou como é dito por ela “centarro” (centavo), outra
caraterística marcante na personagem - a pronúncia errada das palavras - que evidencia
o baixo grau de instrução de Adelaide e, por consequência, que atinge outro senso
comum dos brasileiros em relação à imagem da pessoa negra, ou seja, a falta de
escolaridade ou até mesmo a ideia de uma insuficiência ou incapacidade dos sujeitos
negros em relação aos estudos. A estética da personagem é construída de maneira
grotesca, o fenótipo da mulher negra é forçadamente caricaturado para uma imagem
pejorativa. Além de ser desdentada e possuir um cabelo crespo e mal cheiroso, a
personagem apresenta uma grande quantidade de presilhas.
O quadro, no entanto, possui outras personagens, fora aquelas com que Adelaide
contracena, que fazem parte do universo dessa personagem e representam sua família.
Constituída pelo seu marido Jurandir, pela sua filha mais nova Cláudia, por outra filha
Brit Sprite e pelo seu filho Maicon Marrone. Dentre essas personagens, os únicos que
de fato aparecem no quadro de Adelaide são o seu marido e a sua filha mais velha68, os
outros dois só existem virtualmente nas falas e histórias que Adelaide comenta com os
indivíduos que ela aborda no metrô. A personagem Brit Sprite, interpretada pela atriz
Isabella Marques, é construída com a mesma estética de sua mãe Adelaide e que,
portanto, possui a mesma carga negativa em relação às pessoas negras. Jurandir é
interpretado pelo mesmo ator de Adelaide, Rodrigo Sant’Anna, e as suas aparições no
quadro humorístico sempre são marcadas pelo seu estado alterado devido à bebida
alcoólica, outro fator ligado historicamente à imagem, principalmente do homem negro,
do consumo excessivo desse tipo de bebida. Outros comediantes negros como Sebastião
Bernardes de Souza Prata e Antônio Carlos Bernardes Gomes, Grande Otelo e Mussum
respectivamente, também ficaram marcados por papéis em que possuíam aspecto de
alcóolatras.
Comecemos analisando a fonte não pela personagem Adelaide, mas por aquele
que está, por assim dizer, sob ela: o comediante Rodrigo Sant’Anna. Carioca, criado na
favela Morro dos Macacos, formado pela Casa de Artes Laranjeiras, ficou conhecido
68
O filho de Adelaide, Maicon Marrone, faz somente uma pequena aparição durante todo o tempo que o
quadro permaneceu no ar.
33
pelo público e pela mídia pelo espetáculo Os Suburbanos, o qual ele escreveu dirigiu e
também atuou. Os Suburbanos foi sucesso de crítica e permaneceu cinco anos em
cartaz. Sua carreira na televisão se deu paralelamente as exibições de sua peça com
pequenos papéis na Rede Globo, ganhando papel fixo no programa Turma do Didi,
onde permaneceu por quatro anos. Em 2009, Maurício Sherman, diretor do Zorra Total,
após vê-lo no teatro, o convidou para fazer parte do programa.
O primeiro fator interessante a nos atentarmos para análise da fonte é que
Rodrigo Sant’Anna é afrodescendente, tem a pele parda. Teve na sua avó, Adélia Rosa,
mulher negra, a inspiração para criar a personagem Adelaide. Assim, podemos notar a
perversidade do racismo estrutural e estruturante que existe e resiste no Brasil, quando
um rapaz afro brasileiro faz uma homenagem de uma mulher negra através de uma
representação estereotipada e agressiva para com a comunidade negra. Retomamos
então a ideia de autoflagelação que a pessoa negra faz através do humor, como bem
colocou Fonseca. Para não se tornar a vítima ou o objeto da piada o próprio objeto se
antecipa a piada e se torna o sujeito, o transmissor da mesma, assim invertendo a ordem,
no sentido de que se antes a piada atingiria o objeto, fazendo com que os outros rissem
dele, agora ele passa a ser o locutor dessa piada, fazendo com as pessoas riam com ele.
É nesse rir de e rir com que a piada pode ser vista também como uma
ferramenta repressora em ambos os sentidos. Para exemplificar, imaginemos um grupo
em que se situam quatro rapazes brancos e apenas um rapaz negro, um dos rapazes
brancos enuncia uma piada de cunho racista que atinge diretamente o rapaz negro e que
gera a risada dos outros brancos. O negro então se sente coagido, até tenta exprimir uma
espécie de riso para fazer parte do grupo, para ser aceito socialmente, porque
racialmente ele já foi excluído de um padrão hegemônico em que a cor de pele clara é
tida como normativa na nossa sociedade. Numa outra situação o rapaz negro é quem faz
a piada de cunho racista diante dos quatro rapazes brancos, entretanto, o racismo
contido na piada é em referencia a pessoa negra e não a pessoa branca. Essa situação,
que não é rara em nosso país, demonstra como a doutrina do branqueamento é uma peça
da engrenagem do sistema social que continua a funcionar após um século desde a sua
inserção como ideologia que buscava solucionar a questão do negro no Brasil. Esse
branqueamento da sociedade encontrou na tese da democracia racial seu principal
agente de disseminação e assimilação por parte da população que é a principal afetada
por esses discursos, a população afrodescendente.
34
As características assimilacionistas da ideologia da identidade brasileira
criam, assim, uma dupla ambiguidade para brancos e negros. Os primeiros se
esquivam de assumir uma identidade de brancos e tocam suas vidas
utilizando os privilégios de sua condição racial, escondendo-se atrás de uma
pretensa universalidade de sua cor, como se não vivessem em uma sociedade
racializada. Os segundos, mesmo quando buscam assumir uma identidade de
negro, são constrangidos a voltar atrás por brancos, mestiços e até mesmo por
pessoas fenotipicamente negras.69
Retornando para o comediante Rodrigo Sant’Anna, observamos que a sua
condição de mestiço também é parte importante para compreender porque ele próprio
não atente para a sua atuação de caráter racista realizado no programa. O que se
pretende com essa afirmação é compreendermos que a identidade brasileira é
constituída tendo como base a mestiçagem, fator primordial em que se consolida uma
ideia de harmonia racial no Brasil. Os fatos apontam que a ideologia da mestiçagem,
concretamente, dificultou a construção da identidade negra dos afrodescendentes e, ao
longo do século XX, minimizou as oposições ao projeto de branqueamento do país. 70 A
ideia central se baseia então no deslocamento de uma identidade racial para uma
identidade nacional, na qual a mestiçagem nesse processo se coloca como caminho ou
alternativa para o mestiço na esperança de ultrapassar a fronteira de cor e se reclassificar
como branco, dependendo do seu grau de miscigenação e de sua ascensão econômica ou
educacional.71 Assim como nas formulações do historiador Francisco José Oliveira
Viana que:
[...] [acreditava] na existência do mulato inferior e do superior. O primeiro,
resultado do cruzamento do branco com o negro do tipo inferior, é um mulato
incapaz de ascensão, degradado nas camadas mais baixas da sociedade. O
segundo, produto do cruzamento entre branco e negro superior, é ariano pelo
caráter ou pela inteligência ou, pelo menos, é suscetível de arianização, outro
modo capaz de colaborar com os brancos na organização e civilização do
país.72
69
ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2000. Pg. 37.
70
Ibidem, pg. 36.
71
Ibidem, pg. 35.
72
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus
identidade negra. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1999. Pg. 67.
35
2.3 Blackface
Nesse ponto, é importante ressaltarmos que o figurino aplicado na personagem
Adelaide não é uma criação de Rodrigo Sant’Anna. A personagem foi constituída por
ele para performance teatral73, porém, foi readaptada para o humorístico Zorra Total de
modo que corresponde-se a estética do humorístico, de forma caricatural e grotesca,
utilizando-se da técnica do blackface, estilo teatral criado nos Estados Unidos para
representar os negros74, quando esses ainda eram proibidos de atuarem ou interpretarem
papéis de destaque e que representava uma imagem exacerbada do fenótipo negro de
maneira depreciativa, no qual os brancos se pintavam de preto e realçavam seus lábios
de vermelho, ridicularizando as características da pessoa negra. No Brasil, essa prática
também se fez presente e, obviamente, também se tornou polêmica. A novela A cabana
do Pai Tomás, que foi ao ar em 1969 pela Rede Globo, embora tenha sido a novela que
teve o maior número de negros até então, provocou uma das primeiras e maiores
polêmicas sobre a questão racial na televisão brasileira.75 Essa polêmica se desenvolve
em torno do protagonista Pai Tomás, personagem negro, que foi interpretado por Sérgio
Cardoso, ator branco. O ator foi pintado de preto e usava rolhas no nariz e atrás dos
lábios para aparentar uma pessoa negra de nariz largo e beiçudo.76
No estudo da fonte não se pode passar despercebido o fato de que o blackface
nesse caso não se aplica a uma pessoa branca representando uma personagem negra,
mas um rapaz afrodescendente que é travestido de mulher negra através do blackface.
Então, é imprescindível que notemos que somente os traços ligados ao fenótipo negro
de Rodrigo Sant’Anna não foram suficientes para a direção e produção do programa
Zorra Total, no sentido de que precisou-se deixar extremamente marcado a condição
racial da personagem na qual podemos inferir uma intencionalidade na construção
visual da mesma.
Casos como esse ainda são constantes no Brasil, a imagem da pessoa negra é
tida como fantasia, principalmente em época de carnaval comumente encontramos
73
O único acessório utilizado pelo comediante em suas apresentações teatrais para a personagem Adelaide
é uma peruca de cabelo crespo.
74
O cineasta Spike Lee tratou desse tema em seu filme “A Hora do Show”, “Bamboolezd” no título
original.
75
ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2000. Pg. 90.
76
Idem.
36
pessoas fantasiadas com perucas que remetem ao estilo Black Power, Dreads e também
pintadas de preto. Por exemplo, o bloco carnavalesco Associação Recreativa e
Comunitária Domésticas de Luxo, que atua na cidade de Juiz de Fora em Minas Gerais,
e que é tido como uma tradição cultural desde 1958 tem como caracterização se
fantasiar ao estilo blackface usando perucas, cabelos crespos e vestindo uniformes de
empregadas domésticas. Os participantes desse bloco são tradicionalmente homens
brancos na sua maioria que ainda contam com o reconhecimento pelo Poder Público
Municipal de Juiz de Fora, como entidade de Utilidade Pública, não só pela folia e
animação, durante o carnaval, mas pelo empenho em campanhas sociais e culturais que
realiza ao logo de cada ano.77 Outro caso parecido é o caso do grupo teatral Os Fofos
que Encenam, que desde 2003 exibem a peça A Mulher do Trem na qual os atores
também utilizam o blackface nas suas interpretações, sendo um deles afrodescendente.
Entretanto, nesse ano, uma sessão da peça que aconteceria no Itaú Cultural no dia 12 de
maio, em São Paulo, foi cancelada após a página no Facebook do espaço receber
mensagens os acusando de conteúdo racista na montagem.78
2.4 Tá rindo do que?
Em seu quadro de estreia, que foi ao ar no dia 12 de maio de 2012 79, Adelaide,
como na maioria de seus quadros, está pedindo dinheiro para os passageiros utilizando
uma pronuncia errada: “Cunricença, será que a senhora tem cinquenta centarro, vinte e
cinco centarro ou dez centarro, pa eu compra um leite pra minha filha mais nova: a
Cráudia!”Ao receber um negativa ela interroga a passageira: “Ah, tu não tem cinquenta
centarro? Então toma aqui dois real que tu deve tá na necessidade, pela amor de deus.”
Na sequencia ela decide não pedir para uma outra mulher e, após olhá-la, ela diz: “Não,
tu não, que tu tem cara de pobre e não vai render”, e segue em frente. Nesse ponto é
importante demonstrar a lógica do humor inserida, na qual a pedinte que está sendo
julgada pelos olhares e pela mendicância passa a ser a pessoa que dá dinheiro e que
77
Disponível
em:
http://www.domesticasdeluxo.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=category&layout=blo
g&id=84&Itemid=102 Acesso em: 25/06/2015.
78
Disponível em: http://circuitomt.com.br/editorias/geral/66739-peca-e-cancelada-apos-acusacoes-deracismo-.html Acesso em: 25/06/2015
79
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CxanQ0jWxMo Acesso em: 28/06/2015.
37
julga os outros, como já exemplificamos anteriormente o objeto da risada passa a ser o
sujeito do riso.
Nesse mesmo quadro, Adelaide encontra a pessoa que será sua interlocutora até
o desfecho. É nesse momento que ela começa a contar uma história em que numa
enchente ela queria muito salvar as palhas de aço, pois, sem elas não poderia lavar suas
panelas, etc. Dado esse enunciado, ela começa a explicar que, ao ver uma palha de aço
boiando na água, se aproxima dela, porém, na hora que ela pega e puxa essa palha, ela
percebe que na verdade aquilo era o cabelo de sua filha. É justamente esse tipo de
humor que reforça a baixa estima da estética da mulher negra, é claro que esse tipo de
piada também afeta os homens negros. Todavia, dou destaque aqui à mulher, pois, além
da condição racial, existe também a questão de gênero nesse caso.
Dois processos diferentes, perfeitamente individuáveis em seus efeitos, mas
irredutíveis um ao outro, cada qual com sua própria lógica, em constante
tensão e continua transformação, não raro se enfrentando em conflitos
insolúveis apesar de entrelaçados para sempre.80
Não é objetivo desta pesquisa trabalhar com a questão de gênero, entretanto
acredito que vale a pena compreender aqui que o padrão de beleza é muito mais
direcionado e, no limite, cobrado das mulheres do que de homens na nossa sociedade. O
que acontece é que esse padrão de beleza da mulher está em conformidade com um
ideal branco de como deve ser a mulher para ela ser considerada bonita. Portanto, a
mulher negra, somente pela sua condição racial, já está fora desse paradigma de beleza.
Então, o que acontece é a valorização da estética branca e a depreciação da estética
negra que se reafirma através da ausência da visibilidade da pessoa negra, seja na
televisão, em espaços publicitários, em concursos de beleza, em revistas de moda, etc. e
também, inclusive, pela visibilidade em que a imagem da pessoa negra é satirizada,
como é o caso da nossa fonte.
O que constatamos aqui é que a própria mídia televisiva propende a ser mais
um veículo de reforço simbólico da política de invisibilidade da desigualdade
e da discriminação racial, o principal meio de comunicação na imposição de
um modelo cultural e estético euro-americano e de continuidade da política
do branqueamento.81
80
PIERUCCI, Antonio Flavio de Oliveira. Ciladas da diferença. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2000. Pg. 136.
ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2000. Pg. 68.
81
38
Em outro episódio, Adelaide está sonhando que é rica, uma das mudanças no
visual que caracterizam isso é a nova cor do seu cabelo, que passa a ser loiro. Mais uma
vez a simbolização entre pessoas brancas e negras é representada pelos cabelos,
associando o sucesso econômico ao cabelo claro e liso, reforçando a questão que paira
sobre o imaginário brasileiro, da ligação linear que existe entre a pessoa negra e a
pobreza. É constante nos quadros dessa personagem piadas que tem como referencia o
cabelo dos outros, muitas vezes em que Adelaide caminha pelo vagão procura provocar
algumas pessoas pelo seu visual. Normalmente essas provocações são direcionadas a
figurantes que fazem parte do cenário e que, portanto, não possuem uma fala para
rebater a personagem principal, consentindo em silêncio com essa agressão verbal.
Destacamos aqui o caso em que Adelaide deixa de pedir dinheiro a uma mulher
de cabelos crespos, dizendo que se ela não tem nem dinheiro para fazer uma chapinha
quem dirá para doar. Em outra oportunidade, Adelaide está com a sua filha Brit Sprite,
quando encontra um rapaz negro cujo cabelo é caracterizado pela trança Nagô ou trança
raiz, penteado ligado à cultura afro. Nisso, sua filha, olhando para o rapaz, cobra de sua
mãe que ela prometeu fazer um penteado como aquele no Natal; Adelaide então explica
para a filha que esse tipo de cabelo é comumente usado por homossexuais, numa forma
de constranger o rapaz utilizando a categoria social homossexual como uma forma
pejorativa de tratamento e orientação sexual.
Outro episódio que merece nossa atenção se passa num concurso de beleza, no
qual Adelaide inscreve sua filha para participar, Brit Sprite entra em cena carregando
uma faixa em que se lê: “Urubu Branco”. Todas as outras participantes do concurso são
brancas e começam a dar risada de Brit Sprite quando essa aparece. Adelaide compara
sua filha à atriz Isis Valverde, mulher branca, revelando assim a sua concepção de
beleza, mesmo que sua filha seja uma adolescente negra. Ainda no mesmo quadro,
temos a participação do dançarino e coreógrafo Carlinhos de Jesus, esse que ganha o
papel de tutor de Brit Sprite para ensiná-la a se portar nos concurso de beleza. Logo que
Carlinhos entra em cena Adelaide pede para que a filha peça a benção para ele, cena
carregada de significado em que uma pessoa negra beija a mão de um homem branco.
Carlinhos então pergunta para Brit Sprite se ela gostou do presente que ele mandou,
uma chapinha para alisar o cabelo, presente que foi pedido por ela, outra vez notamos a
persistência nessa valorização de estética em que o cabelo liso segue representa o
padrão de beleza, cabelo que não é característico da população negra, mas que não deixa
39
de ser atingido por esse discurso em que a estética branca prevalece sobre as demais. A
maioria dos afro-brasileiros está tão familiarizada com a ordem estabelecida pela
produção simbólica das redes de tevê, marcada por referências eurocêntricas, como
todos os outros segmentos étnicos/raciais do país.82
Estas ideias disseminadas pela mídia contribuem para que o bullying atinja
ainda mais as crianças negras, especialmente as meninas, nas escolas e nos
círculos de convivência, contribuindo para a manutenção da baixa autoestima
de uma camada da população que é constantemente adestrada a se sentir e
comportar como inferior.83
Outro ponto a ser discutido aqui é o fato recorrente nos episódios em que
Adelaide, apesar da mendicância, sempre surpreende seus interlocutores aos retirar de
sua caixa, que ela carrega para guardar o dinheiro recebido, algum aparelho eletrônico,
normalmente um celular ou um tablet, gadgets que demonstram certo poder aquisitivo e
que, portanto, revoltam aqueles que são abordados pela personagem. Esse contraste
entre o baixo poder econômico da personagem e o seu aparelho tecnológico da atual
geração faz referencia a inclusão social e o acesso ao poder de compra das classes
menos favorecidas, fenômeno recente em nosso país. O que é quero chamar atenção
aqui, é que o quadro se desenvolve numa perspectiva de desigualdade social e de
classes, na qual a personagem sempre desenvolve seus diálogos com pessoas que podem
ser identificadas como pertencentes à classe média. São nesses elementos que podemos
identificar, como já dito, o deslocamento da existência de uma desigualdade racial para
uma generalização de desigualdade social. Esse pensamento é um dos sustentáculos da
ideia de uma democracia racial no Brasil. Assim, [...] o preconceito que se estabelece
aqui seja o de cor ou raça, baseado nas características físicas do indivíduo, ou seja, o
“preconceito de marca”, ainda nega-se sua existência transferindo-o para o preconceito
de classe.84
2.5 A fonte e o contraponto do racismo
82
Ibidem, pg. 65.
DIAS, Cássia da Silva; SOUZA, Joseane Pereira de; SILVA, Iara. A utilização de programas televisivos
no ensino de História: as representações de mulheres negras e indígenas no programa “Zorra Total”.
Bahia:
Ano
I,
Nº
I,
2013.
Pg.
9.
Diponível
em:
http://www.ufrb.edu.br/historia.com/images/A_utiliza%C3%A7%C3%A3o_de_programa%C3%A7%C3
%B5es_televisivas_no_Ensino_de_Hist%C3%B3ria_as_representa%C3%A7%C3%B5es_de_mulheres_n
egras_e_ind%C3%ADgenas_no_programa_Zorra_Total.pdf Acesso em: 29/06/2015.
84
SEMINÁRIO NACIONAL SOCIOLOGIA & POLÍTICA, 5., 2014. Curitiba. "Eu Sou a Cara da
Riqueza": A Manutenção do Mito da Democracia Racial Através da Estratégia Humorística
Racista. Curitiba: UFPR, 2014. Pg. 4.
83
40
Brevemente, em nossa pesquisa coube destacar também, o discurso que visa
positivar a interpretação da personagem Adelaide. Ou seja, existe uma perspectiva a ser
considerada na fonte analisada que se compreende não pela leitura depreciativa da
comunidade negra, mas que, ao invés disso, se entende através da positivação de suas
ações construídas pela estrutura narrativa e visual que fazem parte do quadro. Isso não
significa que pretende-se anular tudo aquilo que foi articulado nessa pesquisa, pelo
contrário, o argumento é aqui exposto de maneira que possamos desestruturá-lo.
Em entrevista a revista Raça Brasil, Rodrigo Sant’Anna comenta que:
O humor foi a maneira que encontrei de transgredir as minhas tragédias sem
esquecer da minha história. Se, a partir de agora, contar a minha história
através da minha arte é denegrir a imagem de um determinado grupo, eu
realmente me pergunto de onde vem o preconceito, porque meus personagens
serão sim: afrodescendentes, pobres, transexuais. Nas minhas composições,
ao contrário do que as perguntas sugerem, eu procuro não ter preconceitos.
Mas, talvez, se eu tivesse uma avó loira de olhos azuis, não estivesse
respondendo a perguntas tão hostis e preconceituosas.85
Podemos perceber pelas palavras de Sant’Anna que o humor nessa situação
serviu-o como catarse para superação de seus problemas pessoais, nisso encaramos a
positividade de seus personagens como solução para um problema individual.
Se tratando do quadro da personagem Adelaide, o que podemos notar é o fato de
que quando seus interlocutores, ao ficarem indignados ao saber que ela está em sintonia
com o mundo digital ou quando ela comenta sobre as bebidas alcóolicas de alta
qualidade que compra para seu marido Jurandir, sempre são questionados pela
personagem o porquê de tamanha surpresa. Afinal, para Adelaide, o fato de ela ser
pobre e estar mendigando por centavos nos vagões do metrô, não significa que ela
também não possa usufruir dos bens materiais contemporâneos.
Dito isso, identificamos nessa atitude da personagem questões que se aproximam
da realidade, quando pessoas de classes médias e altas da nossa sociedade se
incomodam pelo fato de que as classes populares estão ocupando e obtendo lugares e
produtos que antes eram restritos a quem possuía um poder aquisitivo mais elevado.
Questionando assim, um problema social, um preconceito de classes, numa perspectiva
marxista. Nessa interpretação, portanto, existe uma voz, que é personificada pela
85
Disponível
em:
http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/171/cinco-centarrus-dez-centarrus-apersonagem-adelaide-do-programa-271187-1.asp/ Acesso em: 30/06/2015.
41
personagem Adelaide, no quadro em que há o confronto entre classes cujo
protagonismo está na voz da classe mais baixa.
Essa visão positiva, tanto no plano individual do ator quanto no plano social da
sua personagem, são frutos de equívocos que se reproduzem na sociedade. Sant’Anna
tem no seu argumento a ideia de uma horizontalidade racial ao colocar o racismo, ou
toda forma de preconceito, inverso como justificativa e subterfugio para explicar as
homenagens e referências que inspiram a criação de seus personagens e suas
representações. No caso da personagem Adelaide e, por consequência da questão racial,
o comediante não leva em conta o processo histórico da população negra no Brasil,
como se o passado não interferisse na realidade do presente.
Em relação à personagem Adelaide:
O sociólogo Antônio Pierucci (2001) fez um alerta sobre as armadilhas de
positivação da diferença com o intuito de inclusão social. [...] Isto porque ele
conclui que marcar a diferença sempre foi a estratégia da direita conservadora
para consolidar o padrão e rejeitar o outro social. Ao aumentar a distância
entre os signos, radicaliza-se o sentimento de antagonismo.86
Por isso, a personagem, caracterizada por ser mulher, negra e pobre, tem na sua
representação a cristalização de uma categoria social que está fora dos padrões do que
se tem por normal numa ordem hegemônica.
86
ROSA, Renata. Humor pós-moderno: no rastro do movimento multiculturalista. Contrapontos –
volume 4 – n. 3 – Itajaí, set./dez. 2004. Pg. 583.
42
3. Considerações Finais
O humor televisivo e a representação da imagem da pessoa negra nos meios
audiovisuais de forma depreciativa e em papéis subalternos e secundários não é uma
questão contemporânea, mas sim um problema histórico. Construindo e se reinventando
ao longo do tempo, o racismo no Brasil atua através de diversos mecanismos, sejam eles
materiais e/ou simbólicos, de forma consciente ou inconsciente, após mais de um século
da abolição da escravatura, a diversidade étnica e cultural em nosso país, ainda hoje é
uma das grandes questões a serem debatidas.
A ideia de um “paraíso racial” que se obteve no Brasil, só dificulta ainda mais a
compreensão dos grupos sociais marginalizados a entenderem seu lugar histórico na
sociedade. As formas de organizações da comunidade negra e as suas estratégias de
combate ao racismo, muitas vezes, são vistas com maus olhos até mesmo por pessoas
afro-brasileiras em nosso país. É uma forma típica de o afrodescendente, produto do
ideal de branqueamento, defrontar-se com a questão racial.87
Mesmo com discursos e propagandas de igualdade, e até um certo destaque que
vem ocorrendo ocasionalmente em nossa mídia com a questão racial, não são
suficientemente eficazes na desconstrução de uma ideia de que a pessoa branca usufrui
de privilégios que estão ligados a sua condição racial.
O Brasil ainda carrega consigo uma grande marca de identidade nacional,
reforçada principalmente pelo getulismo e pela ditadura civil-militar, essa que ainda
contou e se utilizou do meio de comunicação televisivo. Os militares investiram na
infraestrutura e no desenvolvimento do sistema televisivo brasileiro, reconhecendo que
esse seria fundamental na construção de uma autoimagem dos brasileiros. Nesse
sentido, a ideia de uma identidade nacional foi elaborada e aplicada a partir de uma
visão hegemônica, no qual a cultura negra e indígena teve seu processo de identidade
negado por não estarem no padrão uniforme proposto.88
Nessa pesquisa, a análise sócia histórica proposta no início se torna válida, pois,
a construção de uma identidade nacional enquanto processo histórico representou um
87
ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2000. Pg. 32.
88
MONTERO, Paula. Cultura e Democracia no processo de globalização. In: A negação do Brasil: o
negro na telenovela brasileira. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000. Pg. 34.
43
obstáculo na caracterização do país enquanto uma nação multirracial e multiculturalista.
Ideia que foi reforçada pelos meios de comunicação e, principalmente, com o advento
da televisão, que tornaram elementos culturais específicos de grupos étnicos em
elementos indenitários gerais de uma nação. Assim, além de encobrir a contribuição
cultural dos povos não hegemônicos em nosso país, ocorreu um processo de
folclorização da sua cultura, como um dos mecanismos de apropriação de suas criações,
e uma separação do negro de suas representações de identidade.89
Nesse processo, o riso ganha seu significado social na questão racial no Brasil, a
partir do fim da escravidão, pois, anteriormente, o negro era tido como mercadoria,
objeto, era considerado um ser a-histórico que não possuía participação efetiva no
mundo social. Em meio a nova ordem social e jurídica da República, as piadas são
produzidas e reproduzidas como um exercício político de exclusão desse contingente
populacional no novo Estada que se erigia.90
No estudo de nossa fonte, optamos por não trabalhar com o conceito de
carnavalização proposto pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin nos seus estudos sobre o
período medieval e da Renascença. Esse conceito procura trabalhar com a
carnavalização sendo a abolição das hierarquias sociais, e da inversão das ordens
vigentes. Diferentemente de outros humorísticos, como os Os Trapalhões, por exemplo,
que invertiam a lógica social e a ordem vigente ficava suspensa, no qual o menos
favorecido muitas vezes era quem ludibriava o rico, Adelaide, na verdade, é uma
reafirmação do estereótipo que paira sobre o negro no Brasil. Portanto, a ordem não se
altera, mas se confirma. Porém, isso não caracteriza que Didi e seus companheiros
também não praticassem formas preconceituosas de humor, no programa. Verbalmente
as gags são provocativas, zombam das diferenças, difamam os excluídos,
ridicularizando as minorias, embora eles mesmos, os protagonistas, façam parte desses
segmentos sociais.91
Existe uma noção por parte de muitas pessoas, de que o humor televisivo
brasileiro no passado não se caracteriza nenhuma forma de agressão e de preconceitos.
89
PEREIRA, João Batista Borges Pereira. A folclorização da cultura negra no Brasil. In: A negação do
Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000. Pg. 35.
90
FONSECA, Dagoberto José. Você conhece aquela?: a piada, o riso e o racismo à brasileira. São
Paulo: Selo Negro, 2012. Pg. 36.
91
D’OLIVEIRA, Gêisa Fernandes; VERGUEIRO, Waldomiro. Humor na televisão brasileira: o
interessante e inusitado caso do programa Os Trapalhões. Revista USP, São Paulo, n. 88, dez./fev.
2010-2011. Pg. 128.
44
De que o humor antigamente era inocente e motivado apenas pelo divertimento. Uma
interpretação equivocada, já que as formas de preconceitos existentes em nossa
sociedade nos dias atuais também estavam sendo exercidas nos tempos de outrora. O
que de fato aconteceu principalmente nas últimas duas décadas, foi uma maior
organização e, por consequência, uma maior visibilidade para essas causas que afetam
grupos sociais que não pertencem ao que se tem por normal em nossa sociedade e que
estrutura um pensamento dominante.
Assim, como podemos constatar em nossa pesquisa, a personagem Adelaide,
grosso modo, podem explicar por si só o que é a questão racial no Brasil e como ela se
desenvolve nessas terras. Fazemos essa observação, pois, mesmo com toda carga
negativa que a personagem representa e que foi tema dessa pesquisa, seu sucesso foi
imediato, outro personagem criado por Rodrigo Sant’Anna92 que alavancou a audiência
do programa Zorra Total e que se tornou uma das principais atrações do programa.
Comprovando assim o fato de que muitas pessoas no Brasil ainda sustentam um
pensamento de horizontalidade racial, e que o humor é uma forma neutra de discurso. O
que aparece na tela da televisão se torna algo natural, comum ao cotidiano das pessoas,
apenas um brincadeira que não comete nenhuma transgressão. Torna-se, portanto, um
mecanismo de discriminação do tipo estigmatizado, provocando a autovalorização do
receptor, que aprova e confirma sua forma legítima de vida, seus preconceitos, seus
ideais, seus valores.93
O quadro de Adelaide, inclusive, tamanho foi seu sucesso, ganhou o lançamento
de um DVD, no ano de 2012, com mais de duas horas de duração, com dezenove
esquetes que foram ao ar na televisão e uma produzida exclusivamente para o DVD.
Do outro lado da recepção temos aqueles e aquelas que procuraram denunciar o
caráter racista da personagem, em forma de denúncias, protestos virtuais, figuras
públicas como o rapper Emicida, também demonstram sua insatisfação na rede social
Facebook, comentando sobre a desvalorização da mulher negra e a ditadura eurocêntrica
da beleza. No campo jurídico, a personagem foi acusada de racismo por parte de
telespectadores e ONGs e foi investigada pela 19ª Promotoria de Investigação Penal, no
Rio. Também, várias denúncias de cidadãos e ONGs foram recebidas pela Ouvidoria
92
93
Outra personagem que ficou famosa na pele do comediante foi a transsexual Valéria.
MARCONDES FILHO, Ciro. Telvisão: a vida pelo vídeo. São Paulo: Moderna, 1988. Pg. 66.
45
Nacional da Igualdade Racial, órgão ligado à Presidência da República, que notificou a
promotoria sobre os possíveis "estereótipos racistas" da personagem.94
Podemos concluir, através do estudo da fonte, que a televisão possui esse caráter
dialógico em que o receptor, mesmo não tendo controle das produções midiáticas,
também intervém e orienta naquilo que é transmitido na televisão. Foi essa visão crítica
um dos fatores responsáveis para que o quadro de Adelaide fosse pouco a pouco,
perdendo espaço no programa Zorra Total, até o seu fim, cujo último episódio foi ao ar
no dia 29 de junho de 2013. Se comparamos a personagem Valéria, transexual,
interpretado por Sant’Anna, que também é tão caracterizada pelo preconceito quanto
Adelaide, aquela permaneceu quatro anos no ar, enquanto essa ficou um ano.
Contudo, ainda assim não deixa de ser sintomático que a estrutura televisiva
prevalece sobre o discurso antirracista constituído principalmente pelo movimento
negro, o alcance televisivo dificulta o combate ao racismo quando opera com formas de
linguagem que reproduzem e fortalecem no imaginário social questões históricas que
contribuíram e ainda contribuem para uma visão desfavorecida da população negra.
Sendo capaz até mesmo de inserir na própria pessoa negra uma visão colonizadora,
muitas vezes atuando de forma inconsciente, do seu lugar na história e na sociedade.
94
Disponível em: http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2012/09/04/adelaide-personagem-do-zorratotal-e-denunciada-por-racismo.htm Acesso em: 01/07/2015.
46
4. Fontes
As fontes são de tipos audiovisuais, são quadros do “Metrô Zorra Brasil”,
exibidos semanalmente ao longo do ano de 2012. Ele se desenvolve no interior do
programa humorístico Zorra Total, exibido todos os sábados pela Rede Globo de
Telecomunicações e também está disponível para visualizações no site de
compartilhamento de vídeos YouTube, assim como no próprio site da emissora.
Também será utilizado o DVD Metrô Zorra Brasil: Adelaide, produzido pela
gravadora SOM LIVRE, e lançado também no ano de 2012, contendo 135 minutos de
duração contendo 20 esquetes do quadro, disponível para compra em lojas, livrarias e
bancas de jornal.
47
5. Referências Bibliográficas
ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro:
Zahar, 2011.
ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular? São Paulo: Brasiliense, 2012.
ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela
brasileira. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000.
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
BHABHA, HOMI K. A Questão do “outro”. Diferença, discriminação e o discurso do
colonialismo. In: HOLLANDA, Heloisa B (Org.). Pós-Modernismo e Política. Rocco:
Rio de Janeiro, 1991.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência
simbólica. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014.
_________________. Sobre a televisão seguida de A influência do jornalismo e Os
jogos Olímpicos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.
BREMMER, J; ROODENBURG, H. Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
CHARTIER, Roger. “Cultura Popular”: revisitando um conceito historiográfico.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, 1995.
Congresso Internacional da Brazilian Studies Association – Brasa, 9º, 2008, New
Orleans – Louisiana. A Persistência Política dos Movimentos Negros Brasileiros:
transformações
e
novos
desafios
institucionais.
Disponível
em:
http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Marcio-Andre-Santos.pdf
Acesso em: 11/06/2015.
DAHIA, Sandra L. de Melo. A mediação do riso na expressão e consolidação do
racismo no Brasil. Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 3, p. 697-720, set./dez. 2008.
DIAS, Cássia da Silva; SOUZA, Joseane Pereira de; SILVA, Iara. A utilização de
programas televisivos no ensino de História: as representações de mulheres negras e
indígenas no programa “Zorra Total”. Bahia: Ano I, Nº I, 2013. Pg. 9. Diponível em:
http://www.ufrb.edu.br/historia.com/images/A_utiliza%C3%A7%C3%A3o_de_progra
ma%C3%A7%C3%B5es_televisivas_no_Ensino_de_Hist%C3%B3ria_as_representa%
C3%A7%C3%B5es_de_mulheres_negras_e_ind%C3%ADgenas_no_programa_Zorra_
Total.pdf Acesso em: 29/06/2015.
48
D’OLIVEIRA, Gêisa Fernandes; VERGUEIRO, Waldomiro. Humor na televisão
brasileira: o interessante e inusitado caso do programa Os Trapalhões. Revista
USP, São Paulo, n. 88, dez./fev. 2010-2011.
ENCARNAÇÃO, Luís G. S. O Estado brasileiro, o Movimento Negro Unificado e as
Políticas Públicas para as populações negras brasileiras entre os anos de 1988 e
2008: elementos para uma análise. Simpósio Nacional de História – ANPUH, 26,
2011, São Paulo. Anais. São Paulo.
Encontro de estudos multidisciplinares em cultura. 6º, 2010 – Facon-UFBa. A televisão
como mídia sócio-cultural.
FRANÇA, Vera F. O “popular” na TV e a chave de leitura dos gêneros. In:
Televisão e Realidade. Bahia: Edufba, 2009.
FONSECA, D. J. Você conhece aquela? A piada, o riso e o racismo à brasileira. 1. ed.
São Paulo: Selo Negro/Grupo Editorial Summus, 2012. v. 1.
GAY, Peter. A Experiência Burguesa: da rainha Vitória a Freud – O cultivo do ódio.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
GONH, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e
contemporâneos. Edições Loyola, 3ª edição, 2002.
GRAF, Fritz. Cícero, Plauto e o riso romano. In: BREMMER, J; ROODENBURG, H.
(Org). Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. 2ª ed. – Belo
Horizonte: Editora UGMG, 2013.
LE GOFF, Jacques. O riso na Idade Média. In: BREMMER, J; ROODENBURG, H.
(Org). Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000
LIPOVETSKI, G. L’ère du vide. Essais sur L’individualisme contemporain. Paris:
1983. In: MINOIS, G. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: UNESP, 2003.
MARCONDES FILHO, Ciro. Telvisão: a vida pelo vídeo. São Paulo: Moderna, 1988.
MAZZOLENI, Gilberto. Homo Ridens: o riso como instrumento cultural. Perspectivas,
São Paulo, 12/13, 1989/90.
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: UNESP, 2003.
49
MONTERO, Paula. Cultura e Democracia no processo de globalização. In: A
negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: Editora SENAC São
Paulo, 2000.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1988.
____________________. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional
versus identidade negra. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1999.
NAPOLITANO, Marcos. “Fontes audiovisuais: a história depois do papel” In:
PINSKY, Carla (org). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
OLIVEIRA, Vantiê C. C. A hipótese da codificação negociada: a (im)provável
orientação crítica da programação da rede globo de televisão. Revista Eletrônica
Inter-Legere – Número 03 (JUL/DEZ 2008).
PEREIRA, João Batista Borges Pereira. A folclorização da cultura negra no Brasil.
In: A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: Editora SENAC
São Paulo, 2000. Pg. 35.
PIERUCCI, Antonio Flavio de Oliveira. Ciladas da diferença. 2. ed. São Paulo: Ed.
34, 2000.
PUTINI, J.P. “Um Riso em Cada Canhão”: reflexões sobre humor e prática política em
filmes de guerras cômicos. Revista Anagrama, São Paulo. Vol. 1, Setembro-Novembro
de 2011.
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história
brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
__________________. Fala Sério!. Rio de Janeiro, Revista de História da Biblioteca
Nacional, 01 de Abril de 2012. Entrevista a Marcello Scarrone.
SEMINÁRIO NACIONAL SOCIOLOGIA & POLÍTICA, 5., 2014. Curitiba. "Eu Sou
a Cara da Riqueza": A Manutenção do Mito da Democracia Racial Através da
Estratégia Humorística Racista. Curitiba: UFPR, 2014.
ROSA, Renata. Humor pós-moderno: no rastro do movimento multiculturalista.
Contrapontos – volume 4 – n. 3 – Itajaí, set./dez. 2004.
ZARUR, Luciano. A construção e a desconstrução da autoimagem brasileira pela
televisão. Comum - Rio de Janeiro - v.6 - nº 17 - p. 149 a 191 - jul./dez. 2001.
50
Download

riso e racismo no humor televisivo brasileiro do século xxi