CINDY SHERMAN É LEGIÃO: ARTE CONTEMPORÂNEA E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE Roberta Stubs Parpinelli1 Fernando Silva Teixeira Filho 2 Resumo: A partir da perspectiva pós-feminista de que é preciso inventar outras figurações para o feminino, a proposta deste artigo é refletir sobre a produção artística de Cindy Sherman e perceber como a obra desta artista questiona e abala as tecnologias de gênero que incidem sobre o corpo feminino, e, ao fazer isso, produz linhas de subjetivação que lançam para outros territórios nosso entendimento sobre o corpo, os papéis de gênero e a identidade. Numa aproximação entre arte contemporânea e a postura inventiva de autoras pós-feministas como Rosi Braidotti, Beatriz Preciado e Donna Haraway, apostamos na necessidade de inserir e recuperar a inventividade dentro do feminismo, dentro da filosofia, da academia e, finalmente, dentro de nossas próprias práticas enquanto pessoas situadas num tempo no qual inventar novos e outros modos de ser, estar e desejar é bem mais valioso do que reproduzir valores e práticas já caducas. Em consonância com um paradigma ético-estético-político de pensamento, numa perspectiva pós-identitária e investindo em subjetividades estéticas, a ideia é perceber como a obra dessa artista opera uma re-significação de práticas e pensamentos pela via da criação de outros modos de pensar, agir e significar as relações de gênero, o feminino, o corpo e as relações sociais. Palavras-chave: Pós-identidade. Subjetividade estética. Pós-feminismo. Arte contemporânea. A partir da perspectiva pós-feminista3 de que é preciso inventar outras figurações para o feminino, a proposta deste artigo é refletir sobre a produção artística de Cindy Sherman para perceber como a obra desta artista contemporânea questiona e abala os estereótipos que temos sobre o feminino, e, ao fazer isso, produz linhas de subjetivação que lançam para outros territórios nosso entendimento sobre o corpo, os papéis de gênero e a identidade feminina. Cindy Sherman é uma expressiva artista contemporânea que utiliza o próprio corpo para desconstruir a fixidez da identidade ao explorar outras figurações para o feminino. Cindy Sherman é uma fotógrafa e diretora de cinema americana nascida em 1954 que vive atualmente em Nova Iorque. Sua produção tem como características auto-retratos nos quais ela questiona o papel e o modo como as mulheres são representadas socialmente, denunciando o caráter discursivo da produção do feminino a partir das tecnologias midiáticas, literárias, fílmicas e médicas entre outras. 1 Artista Visual, Psicóloga e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp-Assis. Bolsista FAPESP. Link para portifólio - www.lixoinprocess.blogspot.com. 2 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp de Assis. 3 A terminologia pós-feminismo se refere a uma espécie de re-significação do próprio feminismo a partir das reflexões, principalmente, do pós-estruturalismo no que tange às discussões sobre a diferença e à necessária desconstrução de uma concepção identitária e universal de sujeito. Neste sentido, o pós-feminismo significa uma reflexão acerca de armadilhas identitárias e generalizantes que acometem o próprio feminismo e acaba por reforçar o binarismo de gênero que classifica e separa o masculino do feminino. 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X Trata-se de uma artista que inaugura o que nos anos setenta denominou-se de artistas de performance e body-art (GROSENICK, 2005, p. 300-305). Falar sobre a produção dessa artista fazse contundente pois que junto aos estudos feministas ela tornou-se uma referência para se pensar as questões de gênero bem para se desconstruir as representações tradicionais do feminino. Com exposições nos museus mais importantes de arte contemporânea a artista consta entre os cem artistas mais expressivos na atualidade (HOLZWARTH, 2010). De acordo com Kátia Canton (2009), um dos temas da arte contemporânea é o corpo, a identidade (não apenas a de gênero) e o erotismo. Temas consonantes com a produção dessa artista, respeitada também por explorar diferentes suportes e formas de expressão, tais como: fotografias, instalações, foto-instalações, vídeo-instalações e performances. Interessa-nos o fato de que, através do trabalho de Sherman, podemos pensar as questões de gênero, de corpo e de identidade via multiplicação da mesma. A artista utiliza o próprio corpo como território expressivo de suas obras retirando dele suas essencializações ditas femininas para nos mostrar suas multiplicidades. Essa é uma das estratégias desenvolvidas pelas autoras pós-feministas para desconstruir os essencialismos acerca do gênero masculino ou feminino é fazer ver as linhas constituintes desse processo de naturalização. Esta estratégia é bem visível na obra “Untitled Film Stills”4 (1977-1980), na qual Sherman explora as linhas de esteriotipia que formam o imaginário feminino e cunham um modelo ideal de ser mulher. Se valendo das figuras femininas apresentadas no cinema no período de 1950 a 1960, a artista performatiza inúmeras cenas que compõe o imaginário acerca da mulher, projetando-se em personagens e desempenhando inúmeros papéis, “ atriz, namorada, estudante, dona de casa, moça do interior na cidade grande, sedutora, esportista, desamparada, sofredora, vizinha”, imagens marcadas por “um código gestual padronizado e geralmente trivial, das quais emerge a visão da mulher como pura superfície, como aparência convencional e restrita a papéis socialmente determinados.” (FABRIS, 2003). Ao perfomatizar estes vários esteriótipos femininos a artista deixa em evidência que o "ser" é tanto uma construção imaginária quanto receptáculo de uma política de subjetivação que acaba por definir práticas, desejos, modos de ser e estar no mundo. Fazendo ver algumas linhas esteriotipadas que constituem uma dada política de subjetivação feminina, a artista afronta diretamente as práticas identitárias que definem o que é ser mulher a partir de um ponto de vista heteronormativo. À luz dos escritos de Butler (1993), podemos dizer que, ao performatizar estas inúmeras figuras femininas, a artista nos faz ver que somos subjetivados 4 http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/gallery/2/#/64/untitled-film-still-2- 2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X pelo gênero, pela repetição de normas constitutivas que naturalizam os processos de construção de identidade: “(...) o 'eu' nem precede, nem segue o processo dessa 'criação de um gênero', mas apenas emerge no âmbito e como matriz das relações de gênero propriamente ditas” (BUTLER, p.7). Nestas fotos-performances, Sherman desvela o modo como os “gêneros são forjados e incrustados em uma economia semiótica da diferença sexual.” (COSTA, 1994, p.159-160), o que acaba gerando uma abertura para uma pluralidade de feminilidades, aspecto que desenvolveremos mais a frente. Pode-se dizer então, que os atributos de gênero são, portanto, performativos, ganhando vida e consistência no modo como os sujeitos executam e vivem suas relações cotidianas. É na imersão na tessitura sócio-cultural que estes atributos se in-corporam em nossos corpos e delineiam o que somos e desejamos, sendo nossas próprias práticas de existência o meio pelo qual essas categorias são objetivadas e naturalizadas. Uma vez que naturalizamos e objetivamos o gênero em nossas performances existenciais, podemos, estrategicamente, desconstruir este funcionamento e inventá-lo outro, agenciando e dando visibilidade e passagem a outras e variadas estilísticas da existência. Assim, o mesmo “mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, poderia ser muito bem o dispositivo pelo qual estes termos são desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2006, p.59). É no sentido da desconstrução e desnaturalização que, tal como um plano de forças invisíveis, mas não menos atuantes por isso, há no Untitled Film Stills a suspeita de que aquelas mulheres nada mais são do que ficções podendo portanto serem ficcionadas de outro modo. É neste plano que a obra de Sherman opera algumas desconstruções acerca do feminino e lança a possibilidade de outras linhas de subjetivação. Neste sentido, uma multiplicidade de mulheres são criadas por Cindy. Em alguns trabalhos, ela não apenas sugere outros modos de ser mulher, mas performatiza figuras femininas que se opõem radicalmente a estes esteriótipos que definem um padrão frágil e dócil de mulher. Um dos retratos em questão, faz parte de alguns trabalhos que a artista fez sob encomenda de grandes marcas do mundo fashion, entre elas a Vogue de Paris. Após o sucesso de Film Stills, Sherman ganhou notoriedade como um dos grandes nomes da arte contemporânea e foi convidada para fazer algumas campanhas publicidades para essas grandes marcas. Em seu primeiro editorial de moda realizado em 1984 para a Vogue-Paris, com liberdade total de criação, Sherman performatizou mulheres completamente destoantes de qualquer padrão de beleza. Untitled-137 retrata uma mulher vestida com um casaco vermelho, que pode até ser bonito, porém insuficiente para tornar atraente esta mulher que aparece descabelada, descuidada e com 3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X feição de tristeza, abandono ou desdém. No Untitled 133, feito para a mesma campanha, o que vemos é uma mulher sem maquiagem nenhuma, com um cabelo mal cortado e mal arrumado que inspira mais pena ou rechaço do que admiração e desejo projetivo de ser igualmente bela e feliz. Num olhar mais atento, percebe-se que pouco há de vida nessa mulher de olhar perdido e rosto com linhas de expressão quase inespressivas. Untitled 137 Untitled 133 Valendo-se de sua recém conquistada "fama" e, provavelmente, do fato das pessoas não compreenderem completamente a verve de seu trabalho, Sherman gera, de dentro da barriga do mostro (HARAWAY, 1995), alguns abalos no imperativo do belo, do normal e do esperado que reina unânime na industria da moda e da beleza. Estes retratos são fundamentais para posicionar Cindy como uma artista feminista, visto que ela se propõe visivelmente a discordar e combater a ditadura da beleza que incide sobre o feminino e que forma subjetividades que encarnam estes padrões e os atributos de gênero em seus próprios modos de vida. Num plano molecular, vibra na obra de Sherman a suspeita de que vestimos esses atributos de gênero em nossa pele, performatizando-os em nossas práticas diárias. O que nos lança a desmistificar a idéia de que existe um corpo natural, ao pensar a materialidade deste corpo o destituindo de mecanismos de naturalização advindos da associação entre corpo, sexo e gênero. O que ocorre é uma abertura para a desconstrução de uma lógica heteronormativa que se sustenta numa concepção biologizante que determina que um corpo dotado de um órgão sexual feminino 4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X deve, necessariamente, performatizar o gênero feminino, desejando figuras do sexo oposto e se comportando de acordo com as prescrições ligadas a este gênero. Para desconstruir esta ideia, as autoras feministas se propuseram a desvelar as linhas e tecnologias que se valem dessa concepção naturalizada de corpo para naturalizar também atributos de gênero. A estas tecnologias, técnicas e estratégias discursivas pelas quais é construído o gênero, Teresa De Lauretis denominou tecnologias de gênero (LAURETIS, 1994). Para a autora, tais tecnologias atuam sobre corpos e desejos visando criar, regular e normatizar expressões de masculinidades e feminilidades num esquema heteronormativo e falocêntrico. Segundo Lauretis (1994, p.25) a construção de gênero se faz através de varias tecnologías de gênero " (por ejemplo, el cine) y de discursos institucionales (por ejemplo, teorías) com poder para controlar el campo de significación social y entonces producir, promover e ‘implantar’ representaciones de género”. Num diálogo com Lauretis, acrescenta Peres (2011, p. 100): Trata-se de tecnologias que disciplinam os corpos, regulam os prazeres e adestram os desejos de modo binário e sedentário, produzindo indivíduos marcados por uma engrenagem regulatória e disciplinar que se orienta pelo sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais que determina corporalidades, figurações e discursos de manutenção à ordem heteronormativa, promovendo processos de subjetivação normatizadores heterocentrados. Os corpos passam a ser compreendidos como superfícies prédiscursivas, efeitos do próprio discurso que os produz e os naturaliza. Corpos marcados e subjetivados por regimes de verdade (FOUCAULT, 1980). De acordo com (SWAIN, 2007, p.5) os corpos são sócio-sexuados, o feminino por exemplo “não é um gênero imposto a corpos pré-existentes, cujas variações apenas exprimem as roupagens culturais e históricas; o gênero feminino cria, ao contrário, corpos adequados às limitações deste gênero”. Absorvemos em nosso corpo as mais diferentes tecnologias para deixá-lo jovem, belo, saudável e o mais próximo possível de um ideal normativo. Encarnamos em nossa pele diferentes próteses de gênero que ditam como um corpo feminino deve ser para ser desejável, como devemos expressar nosso desejo e nossos sentimentos. Ao vestir essas tecnologias de gênero e naturalizá-las em nossas performances existenciais perdemos uma dimensão importante da relação que estabelecemos conosco mesmas. Na relação que cada uma de nós estabelece com o próprio corpo, desejo e práticas, as tecnologias de gênero passam a ocupar um lugar que deveria ser concedido a um cuidado de si no sentido dado por Foucault (2004). De acordo com o autor, o cuidado de si permite "aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seus corpos e suas almas, seus pensamentos, suas condutas, seus modos de ser,". Tal como os gregos se valiam deste cuidado de 5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X si para alcançar uma espécie de ascese pessoal de acordo com valores éticos, podemos operar sobre nosso próprio corpo e experimentar uma relação de autoria com nossos territórios existências. Porém, pelo fato dessas tecnologias de gênero procederem por naturalizações e atuarem sinuosamente na produção de subjetividades muitas vezes já dóceis e consentidas à performatizar estes valores sem contestação, estas tecnologias são facilmente maquiadas e vividas como cuidado de si; uma pseudo expressão de auto-cuidado, auto-conhecimento e autoria de si. É desfazendo essa maquiagem que Sherman desvela as tecnologias de gênero que incidem e marcam a superfície de inscrição que é o corpo. Em quase todos seus autoretratos, a artista faz questão de deixar visível e aparente os recursos que ela utiliza para construir cada figuração do feminino que cria. Maquiagem, peruca, assessórios e iluminação deflagram o processo de construção daquele corpo, processo que deve ser percebido ao invés de ocultado. Cada uma das linhas que constroem esses corpos femininos marcam traços e elementos do que poderíamos supor ser a personalidade dessas mulheres inventadas por Cindy. São linhas que, num só lance, singularizam cada perfil criado por Sherman e, ao mesmo tempo, generalizam estes corpos no escopo de um contexto social. Em cada rosto a combinação de diferentes tecnologias de gênero e o esboço de um perfil de subjetividade de aparência única e singular. Porém, o que a artista faz ver em seus auto-retratos, é que, pulsam na suposta singularidade de cada corpo, as linhas que marcam esses corpos como genéricos. Untitled 359 6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X A bela jovem que vemos logo acima, retrato feito em 2012 para uma campanha da marca de cosméticos MAC, se assemelha a tantas outras belas jovens que acreditam que ser bela é fonte de felicidade e possibilidade de inserção social. Com um cabelo impecável e uma maquiagem harmoniosa, uma suposta felicidade emana desse retrato: ela é linda e perfeita, tem tudo para ser feliz. Pessoas lindas e perfeitas se encaixam em harmonia na tessitura social, não sofrem, não demonstram descontentamento e não esboçam o menor movimento de resistência social por estarem demasiadamente adequadas ao mesmo. É no modo como essa mulher é montada, que percebemos as tecnologias de gênero que funcionam nesse corpo e traça um perfil de subjetividade dócil e passivo. O retrato passa a ideia de uma mulher que se sente especial e única, porem é facilmente perceptível que se trata da objetivação de uma performance existencial pautada em clichês e estereótipos. No Untitled 359 podemos ver a passagem do tempo e as marcas que ele deixa ao incidir na transformação do corpo. No entanto, neste corpo em questão há uma nítida resistência ao tempo, o excesso de maquiagem denota o peso de uma tecnologia de gênero que inscreve em nossos corpos a fé de que o corpo belo e jovem é o único corpo possível. Esconder a passagem do tempo sobre o corpo é não se perceber em processo de envelhecimento, é não aceitar esse corpo que também passa, é distanciar-se de si enquanto sujeito que experiencia o tempo em sua vida e ganha intimidade consigo mesmo na medida em que ele passa. É como ato de resistência e possibilidade de desconstrução que Sherman, ao criar essa figura feminina, opta por manter seu cabelo despenteado e evidenciar o visível exagero na maquiagem. A artista nos faz ver os excessos dessas tecnologias de gênero e o peso que estes excessos ganham em nossas vidas e corpos com o passar do tempo. Dando visibilidade às marcas que incidem sobre o corpo, Sherman desconstrói um suposta unidade do "eu", e abre nosso pensamento para compreender o "eu" enquanto processo. Deflagrando as tecnologias de gênero que, historicamente, entram em funcionamento na construção do corpo feminino e/ou masculino, a artista, de algum modo, nos diz que estes corpos são construídos. Ao fazer isso, Sherman traz a tona uma concepção de "sujeito" processual, mais afeito ao devir do que à essencialismos. Segundo Bartholomeu (2009, p.56), mesmo trabalhando essencialmente com autorretratos, Sherman desconstrói completamente a idéia de um "eu" identitário, um "ser" único. Segundo o pesquisador e artista plástico: O todo dos autoretratos de Cindy Sherman não é uma grande assemblage da qual se produza, na totalidade, um eu: cada um dos retratos admite mal os demais não porque se 7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X reportem ao mesmo eu, mas porque, finalmente, parecem não se reportar a eu algum, mostrando-se genéricos. Não se reportar a "eu algum" evidencia, de certo modo, um vazio subjetivo que marca a categoria do feminino visto que, numa leitura feminista, o feminino é uma construção masculina. Ao mesmo tempo, este "eu algum" aponta para qualquer eu possível, não representando somente um vazio, mas também um campo de multiplicidade ainda a ser explorado por este eu em constante transformação. Num vídeo5 no qual a artista fala sobre seu processo criativo e sobre a retrospectiva de sua obra realizada no MOMA em 2012, há uma passagem que deixa bastante evidente este "eu algum". Tal passagem remonta à infancia de Cindy quando, ainda criança, ela pegava os retratos de família, desenhava um circulo em seu rosto e escrevia "eu" logo abaixo do círculo. Mais do que uma afirmação identitária, podemos compreender este ato como um estranhamento de si mesma, uma espécie de auto-desconhecimento que se perfila como força gerativa para a construção de outros "eus" possíveis. Utilizando a si própria como modelo de seus retratos, Sherman segue se desreconhecendo e se aproximando de si mesma na medida em que se estranha. Pode-se dizer que, este estranhamento infinito presente no trabalho da artista lança linhas virtuais de subjetivação, abre frestas para outros "eus" possíveis. É nesta fenda que pode ocorrer a fusão potente de pensamentos, desejos e práticas que destoam da regra; de modos de ser mulher não necessariamente aceitas e condizentes com a heteronormatividade. Abrir frestas para outros "eus" possíveis é uma estratégia etica-estética-política para ultrapassar a ênfase identitária entendida tradicionalmente como fixa, essencialista e universalizante. Aspecto que alinha a produção de Sherman com algumas propostas pós-feministas que lançam mão de figuras pós-identitárias6, gerando um deslocamento nos pólos masculino e feminino e seus correlatos identitários, e lançando o corpo num território de fronteira, mais afeito à experiência que à representação. Ao deslocar-se das demarcações que delimitam o gênero masculino e o gênero feminino, as figurações pós-identitárias lançam o corpo e a subjetividade em um não-lugar identitário, no qual é inviável recorrer a modelos normativos pré-existentes. Ao invés de um modo de subjetivação fechado, as figuras pós-identitárias são afeitas à conexões e simpáticas às dissonâncias. Aqui, o primado da alteridade é incorporado como dimensão ética relacional, escapando do sistema de apropriação, incorporação e totalização (HARAWAY, 1994, p.254), que reduzem o múltiplo e a diferença ao primado do mesmo e do sempre-igual. 5 http://lalulula.tv/tv/art21-cindy-sherman Algumas figuras pós-identitárias: Cyborg (HARAWAY,1994); subjetividade nômade (BRAIDOTTI,1994); mestiço (ANZALDUA, 1987) 6 8 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X Nesta concepção, as figurações pós-identitárias se experienciam em fronteiras e não tem como correlato o amparo de atalhos morais de ação; segue por vias de diferenciação que as abrem e as criam. Isto é, acaba por transgredir fronteiras que viabilizam fusões potentes e a insurgência de possibilidades de vida. Abre-se caminho para conexões não-identitárias e temporárias, uma via ética-estética-política que prevê a negociação constante das partes envolvidas, a criação de linhas e territórios de vida e, finalmente, a não reprodução automática dos enredos tidos moralmente como certos e errados. Como figuras pós-identitárias, podemos dizer que, cada perfil de mulher criado por Sherman é um ponto de multiplicidade e de multiplicação “que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir, por um só e mesmo quadro identificável” (GUATTARI, e ROLNIK, 1999, p. 80). Segundo Rey (2002), a arte contemporânea opera atuando como “elemento ativo na elaboração ou no deslocamento de significados já estabelecidos” (idem, p.123). É isso que a obra de Sherman faz ao operar como ponto de multiplicação. Seu trabalho perturba o conhecimento de mundo, até então familiar, colocando o "espectador" em processo. Segundo Rolnik (2002), fica mais explicito que a “(...) arte é uma prática de problematização: decifração de signos, produção de sentido, criação de mundos”, não se reduzindo ao objeto estético resultante dessa prática, mas voltando-se à prática como um todo: “(...) prática estética que abraça a vida como potência de criação em diferentes meios onde ela opera” (idem, p.56). Ocorre pois, uma aproximação entre arte e vida, o que gera uma suspeita de que a criação, ou o processo criativo, não é propriedade apenas do artista. Suspeita que opera uma horizontalização tanto entre arte e vida, quanto entre artista e espectador. De algum modo, esta proposta anuncia a utopia de um novo tempo, no qual todos são potencialmente artistas em suas práticas e relações mais singulares com a vida. O que fica, é que a vida é produzida e encontra-se inacabada, ela pode e deve ser transformada e inventada por artistas das mais variadas ordens. Podemos, então, entender a vida como obra de arte, o que significa inventar novas possibilidades de vida através de "regras facultativas que produzem a existência como obra de arte, regras ao mesmo tempo éticas e estéticas que constituem modos de existência ou estilos de vida" (Deleuze, 2006, p.123). Neste sentido, podemos dizer que inventar novas possibilidades de vida pressupõe também inventar-se a si mesmo explorando-se outro no vasto campo relacional que constitui a relação sujeito-mundo. Como face de uma mesma dobra, podemos dizer que a arte contemporânea, ao estreitar os laços entre arte e vida, investe na produção de subjetividades mais 9 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X inventivas, e, ao mesmo tempo, lança linhas de subjetivação que favorecem esse modo de subjetivação implicada com a criação e transformação da própria existência. Podemos pensar então em uma subjetividade estética, tal como desenvolvido por TeixeiraFilho (2003) e Rolnik (2002). Este conceito se refere à processualidade que faz vibrar a subjetividade e a lança em movimentos de criação e de devir, favorecendo a construção de outros e novos universos de referência, assim como a construção/desconstrução de significados e aprendizado de novos signos. Segundo Rolnik (2002), investir em subjetividades estéticas mobiliza o desenvolvimento de uma capacidade de reciclagem de repertório e promove a abertura para outros modos de ser, estar, desejar e se relacionar no e com o mundo. São estes outros modos de ser, estar e desejar que Sherman dispara em suas obras. Em sua poética, Sherman fricciona entre o real e o imaginário e compõem suas outras figurações do feminino. Suas, porque são todos retratos seus, seu rosto, sua cara. A mesma cara e outros rostos. Mas quando a cara desaparece, Sherman em seu rosto também desaparece. Em cada foto um rosto diferente olhando para nós. É neste ponto que o pronome suas se converte em outras. Todo autor, todo artista morre um pouquinho quando uma obra nasce. A criação é sempre maior que o criador, a obra é da ordem da multiplicidade e não da unidade. Uma legião de mulheres nascem em Cindy Sherman, mulheres que se multiplicam infinitamente a cada encontro com o "espectador". Cada vez que sua obra encontra um outro olhar, linhas de subjetivação são lançadas para operar aberturas possíveis naquele que é tocado pelas múltiplas figurações do feminino que vibram na obra de Sherman. Referências ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987. BRAIDOTTI, Rose - “Diferença, diversidade e subjetividade nômade”, Revista feminista digital Labrys, estudos feministas, n.1-2, julho-dez. 2002; Nomadic Subjects. New York: Columbia University Press, 1994 BUTLER, Judith. Bodies that Matter. On the discursive limits of “sex”. 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Cindy Sherman is legion: contemporary art and the production of subjectivity Abstract: From the perspective of post-feminist that need to invent other images for the feminine, the proposal of this article is reflect about the artistic production of Cindy Sherman to understand 11 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X how the work of this artist questions and shakes the technologies of gender that focus on the female body, and, doing this, produces lines of subjectivation that cast for other territories our understanding about the body, gender roles and the identity. Rapprochement between contemporary art and the inventive posture of authors post-feminists as Rosi Braidotti, Beatriz Preciado and Donna Haraway, we are counting on the need to insert and retrieve the inventiveness within feminism, within the philosophy of the academy and, finally, within our own practice while people located in a time in which invent new and other modes of being, being and wishes and well more valuable than play values and practices have already fallen. In line with a ethical-aesthetic-political paradigm thought, in a perspective post-identitarian and investing in subjectivities aesthetic, the idea is to understand how the work of this artist operates a re-signification of practices and thoughts by creating other ways of thinking, acting and signify the gender relations, the female, the body and the social relations. Keywords: Post-identity. Aesthetic subjectivity. Post-feminism. Contemporary art. 12 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X