DIMENSOES MULTIPLAS DA FORMACAO DE EDUCADORES DO CAMPO – PERCURSOS DA CONSTRUCAO DA LICENCIATURA NA UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO Marilia Campos UFRRJ [email protected] Alexsandro Soares de Paula RECID/RJ [email protected] Lia Maria Teixeira UFRRJ [email protected] Resumo Pretendemos, neste texto, apresentar nossa experiência de construção da Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). O curso se constituiu a partir de Edital PRONERA/MDA-2009 e está estruturado em 3.540 horas distribuídas em três anos e organizadas em seis etapas a partir da Pedagogia da Alternância. Oferece duas habilitações: Agroecologia e Segurança Alimentar; Ciências Sociais e Humanidades. A formulação do seu Projeto Pedagógico ocorreu ao longo de meses, em parceria com os diversos movimentos que integram a Licenciatura (MST, FETAG, CPT, RECID/RJ, quilombolas e indígenas). Tendo como referência as experiências da Educação Popular e articulando as diversas dimensões formadoras do complexo curricular, a Licenciatura desenvolveu algumas ferramentas didáticopedagógicas: o Trabalho Integrado a partir do Estudo da Realidade de cada assentamento, os Laboratórios Midiáticos (Informática, Visualidades e Audiovisual, Teatro Popular, Produção Textual e Grupos de Estudo), os Cadernos Reflexivos (autoformação) e os cadernos com os Planos de Estudo e Atividades do Tempo Comunidade. Trabalha com os referenciais da educação contextualizada (Estudo da Realidade), da Interdisciplinaridade, da Pedagogia da Alternância, articulando trabalho/arte/mídias como princípios educativos, utilizando os relatos auto-biográficos dos percursos como instrumentos de auto-formação dos educandos e da interrelação entre docência/pesquisa/extensão na práxis cotidiana da vivência do Curso. A sistematização e a análise das produções dos licenciandos nos indicam algumas imagens e pistas desse complexo formativo no que diz respeito às suas três dimensões principais: a) politicoepistemológica – construção em rede de diferentes conhecimentos (escolares, científicos, midiáticos, do cotidiano) a partir da perspectiva da educação popular e das lutas dos movimentos e dos diversos sujeitos do campo; b) didático-curricular – construção de novas organizações curriculares a partir do Estudo da Realidade, de novos Tempos e Espaços educativos, de novas atividades e materiais didáticos; c) formação dos sujeitos educadores e educandos: os espaços de debate coletivo sobre o curso contribuem para a construção de novas experiências e subjetividades, contando também com instrumentos de registro dos relatos de auto-formação (cadernos reflexivos). Palavras-chave: Educação do campo; formação de professores; educação popular. 1 – Contextualização histórica do processo de constituição da Licenciatura em Educação da UFRRJ: A criação de Licenciaturas em Educação do Campo é fruto de um movimento que nos remete aos meados da década de 1990 a partir da demanda crescente das áreas de Reforma Agrária em todo o Brasil - no estado do Rio de Janeiro - de escolarização dos trabalhadores rurais que atuam na Agricultura Familiar, buscando garantir não apenas uma política pública voltada para o “desenvolvimento econômico” dos Assentamentos da Reforma Agrária – bem como dos demais “povos do campo”1 - como também uma política pública voltada para o desenvolvimento intelectual e cultural destes trabalhadores e seus filhos, materializada no ampliação do acesso à escolarização de Ensino Básico e Superior. A proposição de diversas formas de escolarização derivou de orientações advindas de Seminários, Fóruns e Projetos sobre a Educação do Campo, Juventude Rural, Movimentos Sociais, Educação em Contextos Específicos, Escola Ativa e Agroecologia que vêm sendo promovidos nas três últimas décadas. Neste sentido, a UFRRJ tem desenvolvido uma série de atividades, de grupos de ensino, pesquisa e extensão sobre mundo rural, cultura e identidade, questão ambiental e agroecologia, 1 Tal como o conceito está enunciado pelo DECRETO Nº 7.352, DE 4 DE NOVEMBRO DE 2010 DOU 05.11.2010 que Dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA. São consideradas “populações do campo: os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os atingidos por barragem, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural”. tendo em vista o caráter e a formação histórica da própria Universidade 2. Há de se considerar também que a UFRRJ possui dois cursos de licenciatura - Ciências Agrícolas e Economia Doméstica - que foram consolidados em períodos históricos de expansão das instituições de educação profissional e tecnológica agrícola. Dessa forma, ao longo de sua existência, a UFRRJ vem qualificando trabalhadores e profissionais, executando ações de pesquisa e extensão ligadas ao meio rural em suas múltiplas dimensões: insumos, produção agrícola, tecnologias alternativas, educação, desenvolvimento rural e relações sociais, entre outros aspectos. Criou cursos, áreas de pesquisa e extensão, se associando às demais instituições afins e às demandas populares do campo e de áreas metropolitanas, cujas reivindicações determinaram as questões delineadas na agroecologia, agricultura orgânica, agricultura familiar, agricultura urbana e, inclusive, a profissionalização do agricultor/quilombola jovem e adulto.3 A UFRRJ tem parceiros institucionais como a EMBRAPA/Agrobiologia, a EMBRAPA/CTAA, EMATER, a PESAGRO que interagem em trabalhos relacionados com a formação, em nível de extensão e pesquisas, de estudantes e grupos sociais ligados à Agronomia, Engenharia Florestal, Ciências Agrícolas, Economia Doméstica, Zootecnia na SIPA – Sistema Integrado de Produção Agroecológico “Fazendinha Agroecológica”. Este espaço de ensino, pesquisa e extensão foi institucionalizado pela UFRRJ num convênio de apoio recíproco com a EMBRAPA/Agrobiologia e PESAGRO-Rio, tendo como eixo de ação a pesquisa e extensão em agroecologia. Tem sido palco de várias atividades como um importante laboratório de aulas práticas para estudantes do Colégio Técnico e dos cursos de graduação; de pesquisa para estudantes de diferentes cursos de pós-graduação e de extensão aberta à comunidade. No que diz respeito às Licenciaturas em educação do campo, não há duvida de que se encontram contextualizadas no âmbito de uma politica nacional produzida a partir das lutas e demandas dos movimentos sociais do campo. Miguel Arroyo (1999) 2 A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que apresenta essa proposta, foi projetada e engendrada nas relações de poder e de trabalho hegemônicas do rural no Ministério de Agricultura, como tantas outras de identidade rural. 3 A UFRRJ, em sua trajetória histórica, vem atuando no atendimento às demandas populares, por meio de outras intervenções qualificadas que vêm se desenvolvendo em projetos de EJA, como: o PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária) (1997-2003), a Alfabetização Solidária no RJ e outros estados do Nordeste (1997-2003), o MOVA em bairros de assentamento – Sol da Manhã e outros – de Seropédica e Itaguaí (entre 1989 e 1993), Projeto Caminhar (2007-2010). Este último, uma experiência inicialmente voltada para os servidores da UFRRJ, recentemente desdobrou-se na Educação de Jovens e Adultos em parceria com a Prefeitura Municipal de Seropédica. aponta a Educação do Campo como uma questão que passa necessariamente pela dinâmica dos movimentos sociais na medida em que se coloca uma educação dos direitos, uma educação que só avança conforme a conquista de direitos sociais, como também conforme o processo de enraizamento das matrizes culturais pertencentes à história dos trabalhadores rurais. 4 O movimento social no campo representa uma nova consciência dos direitos, à terra, ao trabalho, à justiça, à igualdade, ao conhecimento, à cultura, à saúde e à educação. O conjunto de lutas e ações que os homens e mulheres do campo realizam, os riscos que assumem, mostram quanto se reconhecem sujeito de direitos (p.22). Desde 1998, iniciou-se um movimento de construção da Educação do Campo que se caracterizou por ter como atores protagonistas o MST, a CNBB, a UNICEF, a UNESCO e a UnB. Tais sujeitos se aglutinaram numa articulação nacional cuja tarefa era elaborar uma crítica à concepção de educação oferecida ao meio rural, como também pensar políticas educacionais que dessem conta da realidade dos “povos do campo”, de sua riqueza cultural e de sua particularidade no mundo do trabalho, levando em consideração a herança histórica que atravessa gerações. Uma educação que fosse capaz de incluir as experiências do MST, do movimento indígena, dos pequenos produtores, dos quilombolas, dos pescadores, das populações ribeirinhas, tornando-se uma educação do campo (e não para o campo) de forma que esses sujeitos se tornassem os protagonistas da criação do seu próprio projeto educativo. A discussão principal desta articulação nacional estava centrada na garantia de uma educação de qualidade para as populações do campo organicamente ligada à estratégica de um projeto de desenvolvimento do campo, de empoderamento e de emancipação desses sujeitos coletivos. Em 1998, a referida articulação nacional realizou a I Conferência Por Uma Educação do Campo, com o objetivo de se posicionar frente ao novo momento histórico do país e reafirmar as linhas políticas de um projeto educativo do campo articulado às lutas sociais e a um Projeto Nacional de Educação. Colocou-se, como fator principal, a ampliação da luta na esfera das políticas públicas de forma que o direito à educação das populações do campo não se restringisse à Educação Básica e sim buscasse atingir todos os processos formativos que vão da Educação Infantil à Universidade. Logo nos 4 As principais matrizes culturais do campo apontadas por Miguel Arroyo são: a relação da criança, do homem e da mulher com a terra, a relação com a natureza e o tempo da produção, a celebração e transmissão da memória coletiva e o predomínio da oralidade. (Arroyo, 1999. p. 38 – 40) próximos anos outras articulações com outros atores foram tencionando os poderes públicos e em 2002, a Resolução CNE/CBE no.1 (13 de abril) que tramitava no CNE desde 1999/2001 foi promulgada como "Diretrizes Operacionais da Educação Básica para as Escolas do Campo". Os dois anos seguintes (2003 e 2004) foram marcados pela divulgação das Diretrizes e tentativas de implementação nos municípios e estados por parte do governo federal e setores populares. Em 2004, realizou-se a II Conferência Nacional de Educação do Campo, tendo como atores os movimentos sociais do campo, que exigiam a qualificação prática e teórica, assumindo-a em sua agenda política (ARROYO, CALDART, MOLINA, 2004). Ainda no mesmo ano foi criada a Coordenadoria Geral de Educação do Campo/CGEC na estrutura da SECAD/MEC, buscando-se articular a construção de uma nova base epistemológica sobre o campo e a Educação do Campo, mobilizando pessoas e instituições de pós-graduação e de pesquisa. Como resultado deste esforço, ocorreu, em 2005, o I Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo que buscou apontar eixos temáticos norteadores para a discussão e elaboração de políticas públicas interministeriais (MDA/PRONERA e MEC/SECAD/CGEC). 5 O que de fato e de direito se designa como Educação do Campo? Antes de tudo, um campo que se constituiu a partir dos movimentos de resistência e de luta dos povos do campo. Um território que demanda uma produção de conhecimento não apartada da realidade social e da negação da desterritorialização imposta pelo Capital. Os sujeitos que vivem e trabalham no campo são frutos de processos diferenciados no que diz respeito à materialidade das relações sociais de produção combinadas através de formas e conteúdos de relações pré-capitalistas, sub-capitalistas, capitalistas, o que sempre permitiu a extração intensa do valor e a concentração da riqueza. Produção de conhecimento, desenvolvimento e território são indissociáveis quando se empreende a tarefa de entender a demanda dos sujeitos sociais, bem como a dinâmica do capital no campo brasileiro, possibilitando assim um campo da pesquisa vinculado diretamente ao estudo da realidade em diferentes escalas. Tal vinculação permite reconhecer a diversidade de sujeitos, de territórios, de reprodução sócio-cultural, bem como compreender o campo como “espaço de produção e reprodução da vida, de trabalho, de 5 Eram eles: a área da Educação do Campo; a produção pedagógica dos movimentos sociais e sindicais; escola do campo e pesquisa do campo. novas relações com a natureza, da produção de cultura”. (Molina, 2009, p.10). Como a infância, a juventude, os adultos são afetados pela lógica do capital? Bem advertido pelo mestre Arroyo: “quando a terra, o território, as formas de produção estão ameaçadas, são ameaçadas também a formação da cultura, do conhecimento, das identidades temporais”. (apud Molina, 2009, p.13). A violência da territorialização dos projetos do capital materializados na soja, no gado, no etanol, ou seja, nas maravilhas do agronegócio, bem como nos avanços tecnológicos da agroenergia (terra, água, ar), ameaçam a existência da escola do campo. Uma segunda dimensão da estratégia da CGEC/SECAD foi trazer as questões da Educação do Campo para dentro da esfera pública, entendida como interação entre Estado e Sociedade. Por fim, a garantia da estrutura e do desenvolvimento dos programas, incluindo a inserção no Plano Nacional de Educação, Financiamento, InfraEstrutura, Formação de Educadores, Programa Nacional de Educação de Jovens e Adultos (EJA) integrada com Qualificação Social e Profissional para Agricultores Familiares (Saberes da Terra). Portanto, foi a partir desta conjuntura política e educacional de acúmulo dos movimentos sociais do campo, desde a criação do PRONERA em 1997 e da iniciativa concreta do Estado a partir de 2002, se intensificando a partir de 2004, que surgiram em 2007 as primeiras experiências de Licenciatura em Educação do Campo envolvendo as seguintes universidades: Universidade Federal do Sergipe, Universidade de Brasília, Universidade Federal da Bahia e Universidade Federal de Minas Gerais. Em 2009, já contavam-se dezenas de experiências em andamento. Foi o ano em que a UFRRJ começou a construir o projeto da LEC, dialogando com movimentos sociais e sindicais, a partir de Edital do PRONERA/2009. Muitas das experiências de formação de professores tinham a denominação de Pedagogia da Terra ou similar. Em 2008, ocorreu o II Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo e II Seminário de Educação Superior e as políticas para o desenvolvimento do campo brasileiro como iniciativas das universidades que integram o Observatório da Educação do Campo - CAPES/INEP. As Universidades, por meio de seus programas de pósgraduação em educação, bem como a CAPES, INEP, MEC/SECAD/CGEC, MDA, INCRA/PRONERA, NEAD, CNPq, ANPED, EMPRAPA são os impulsionadores de uma produção de conhecimento voltada para cumprir a demanda dos movimentos sociais do campo através do marco institucional das políticas públicas sem desconsiderar a produção de conhecimento e a práxis política dos movimentos sociais. Em 2010, a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação aprovou uma Resolução que transformou a Educação do Campo em modalidade da Educação Básica – o que deverá produzir uma série de desdobramentos em termos de elaborações de politicas públicas por parte dos diversos entes federativos que ainda estamos por assistir para garantir o acesso das populações do campo à educação b[ásica e ensino superior. Os sistemas de ensino nem sempre têm institucionalizado as escolas do campo; não existem concursos públicos específicos; a alternância não costuma ser adotada nem a educação contextualizada costuma existir. O fechamento das escolas do campo ainda é politica hegemônica. Os desafios da Educação do Campo são muitos e, nesse processo de sua institucionalização, a luta será pela incorporação das experiências herdadas da educação popular, das lutas e dos movimentos sociais do campo na educação escolar, com todas as contradições derivadas desta situação. Completando o quadro, o ex-presidente Lula, no apagar das luzes de seu segundo mandato, ainda assinou um Decreto institucionalizando o PRONERA como instrumento de construção e de implementação de políticas públicas para os “povos do campo”. Produção de conhecimento, sujeitos sociais e políticas públicas movimentam um público acadêmico, militante e institucional que, com centenas de trabalhos apresentados nos círculos de produção de conhecimento, refletem as centenas de experiências que se espalham pelo país e projetam a consolidação de uma área de conhecimento e de uma luta política. Nossa perspectiva de elaboração e realização do Curso de Licenciatura em Educação do Campo na UFRRJ é partir do acúmulo histórico existente e dialogar com base na nossa produção acadêmica com os movimentos sociais, incentivando e fortalecendo a pesquisa, o ensino e a extensão, bem como as políticas públicas da Educação do Campo no Estado do Rio de Janeiro. O Projeto PolíticoPedagógico do Curso de Licenciatura em Educação do Campo traduz a união de esforços de áreas de estudos/experiências engendradas na cotidianidade de sujeitos e atores da UFRRJ e a prática da diversidade e alteridade dos assentamentos rurais do Rio de Janeiro, dos quilombos e das aldeias. Deste modo, o curso destina-se à formação de educadores e educadoras para atuação nas escolas do campo situadas nestes contextos específicos e socioculturais diversificados. Com duração de três anos, o curso de 3.540 horas organiza-se em seis etapas estruturadas a partir da alternância que vem sendo apropriada pelo coletivo de sujeitos e oferece duas habilitações ao educando/a: 1) Ciências Sociais e Humanidades; 2) Agroecologia e Segurança Alimentar. Encontramonos, no momento atual, na implementação de sua Etapa 2. 2 – Concepção e princípios da construção curricular e ferramentas didáticopedagógicas da LEC/UFRRJ: a imaginação no poder Tendo como referência as experiências da Educação Popular (BRANDAO, 1987; FREIRE, 1987, 1993, 1994; CUNHA, DE GOES, 1987; FAVERO, 1983), a Licenciatura desenvolveu experimentalmente algumas ferramentas didático- pedagógicas que articulam as diversas dimensões formativas do currículo, incluindo novos Tempos e Espaços. Em primeiro lugar, é importante apontarmos as diversas dimensões formadoras do complexo curricular: a) a dimensão politico-epistemológica; b) a didático-curricular; c) a da formação dos sujeitos educadores e educandos. Tratando-se de curso de Ensino Superior, as atividades desenvolvidas articulam as dimensões político-acadêmicas num campo relacional entre docência, pesquisa e extensão. Tratando-se de um curso voltado para os educandos do campo, baseia-se na Pedagogia da Alternância (Tempo Escola e Tempo Comunidade). GIMONET (2007, p. 120) chama de Alternância real (ou integrativa) aquela que não se limita a uma sucessão dos tempos de formação teórica e prática, mas realiza uma estreita conexão e interação entre os dois, além de um trabalho reflexivo sobre a experiência. (...) E cada formando que alterna e não a instituição e as aprendizagens de cada um, as relações, conexões e integrações que supõe e que dependem dele mesmo: suas implicações, suas motivações, seu projeto que dão sentido, coerência, unidade e continuidade ao percurso formativo. Quanto à primeira dimensão - a político-epistemológica – o curso busca, enquanto desafio a partir de uma perspectiva de construção em rede de diferentes conhecimentos (escolares, científicos, midiáticos, do cotidiano), priorizar os referenciais sócio-culturais dos povos do campo e as experiências desenvolvidas ao longo de décadas pela educação popular, pelas lutas e pelos movimentos sociais do campo. Além disso, em função da diversidade de sua composição – agricultores familiares das áreas de Reforma Agrária, quilombolas e indígenas – o curso ganha características de educação intercultural. Quanto à segunda dimensão – a didático-curricular – as atividades de docência da LEC/UFRRJ encontram-se vinculadas às atividades de pesquisa e de extensão. Os educandos do mesmo assentamento/quilombo/aldeia encontram-se organizados em grupos de trabalho para realização de pesquisa sobre sua própria realidade (Estudo da Realidade – FREIRE) e esta pesquisa se constitui na base do Trabalho Integrado. Este Trabalho visa articular a pesquisa de cada realidade com os conteúdos das disciplinas trabalhadas na Etapa - produção de conhecimento em rede (ALVES, GARCIA, 2000) e é sempre apresentada pelo grupo para toda a turma e para uma banca de professores ao final do Tempo Escola. Este é um dos mecanismos para garantir a interdisciplinaridade e a educação contextualizada na formação de professores. No Tempo Comunidade, os educandos aprofundam a pesquisa e realizam atividades de intervenção em suas localidades e nas escolas (extensão). A própria dinâmica da alternância já proporciona novas formas de Tempos e Espaços Educativos. Conforme indica GIMONET (2007, p. 19): Com a Pedagogia da Alternância deixa-se para trás uma pedagogia plana para ingressar numa pedagogia no espaço e no tempo e diversificam-se as instituições, bem como os atores implicados. Os papéis destes não são mais aqueles da escola costumeira. (...) o alternante não é mais um aluno na escola, mas já um ator num determinado contexto de vida e num território. Além disso, durante o Tempo Escola nos horários noturnos, os estudantes participam dos Laboratórios Midiáticos em que vivenciam atividades de informática, oficinas de produção textual, Teatro Popular, oficinas de visualidades e de audiovisual e também grupos de estudo. Em todo inicio de Etapa, na abertura do Tempo Escola, os estudantes apresentam suas pesquisas e os resultados de suas ações realizadas no Tempo Comunidade; ao final do Tempo Escola, sempre apresentam o Trabalho Integrado (referenciado na pesquisa e nas disciplinas). Durante o Tempo Comunidade, cada grupo possui um Caderno de sistematização para registro do planejamento (Plano de Estudos) e dos encontros de estudo e de atividades. Quanto à terceira dimensão - formação dos sujeitos educadores e educandos: os espaços de debate coletivo sobre o curso contribuem para a construção de novas experiências e subjetividades. Dessa forma, as reuniões de Colegiado e outras formas de agrupamento construídas na LEC – grupos do Trabalho Integrado (por assentamento/quilombo/aldeia), Núcleos e Equipes - , além de serem responsáveis pela organicidade dos educandos, se constituem em espaços/tempos de aprendizagem coletiva, de crítica e de auto-crítica. Como princípio para formação de professores, a LEC entrega a cada educando um caderno (dito “reflexivo”) para que relate seu próprio processo formativo – uma formação baseada na auto-formação. Conforme nos aponta JOSSO (in PASSEGGI, 2008, p. 44-5): As práticas de reflexão sobre si, oferecidas pelos relatos de vida escritos, centrados sobre a formação, apresentam-se assim como laboratórios de compreensão de nossa aprendizagem do oficio de viver um mundo em movimento, não controlado globalmente e, portanto, parcialmente controlável na escala das individualidades. Essa escala se faz e se desfaz incessantemente e coloca em xeque a crença numa „identidade por vir‟ em proveito de uma existencialidade incessantemente em operação e em construção. Ao final do curso, estes cadernos serão sintetizados por cada educando num memorial sobre o próprio percurso formativo. 3 – Apontando algumas perspectivas: A sistematização e a análise das produções dos licenciandos nos indicam algumas imagens e pistas desse complexo formativo no que diz respeito às três dimensões a que nos referimos no item anterior. No que diz respeito à dimensão político-epistemológica, compreendemos que a dinâmica da LEC traz repertórios novos para o ambiente universitário, valorizando as experiências dos movimentos sociais e as diversas manifestações da cultura popular. Além disso, consideramos de grande importância o fato da LEC/UFRRJ colocar o campo – e com ele, os temas da agroecologia, da produção familiar, da relação sociedade/natureza – no cotidiano da Universidade, tendo em vista o preconceito e a marginalização que a questão do campo sofre. Mesmo uma Universidade que leva “Rural” em seu nome e que possui uma tradição histórica neste terreno, vem sofrendo um processo de transformação na sua identidade social com a ampliação fruto do REUNI. Existem muitos segmentos atualmente na UFRRJ que não possuem uma apropriação sobre o percurso histórico da instituição e que padecem dessa centralização cultural em torno dos valores urbanos e capitalistas. Quanto à dimensão didático-curricular, muitas contribuições vem sendo dadas pelo Curso, conforme pudemos mostrar ao comentar e descrever as diversas ferramentas de ensino-aprendizagem, as tentativas de articulação interdisciplinar a partir do Trabalho Integrado, as atividades de produção nos Laboratórios Midiáticos e as experiências relacionadas ao tempos e espacos da Alternância. Cremos que estas vivências poderão ter desdobramentos em outros cursos na medida em que os professores vêm de vários Departamentos diferentes. Em relação à formação dos sujeitos educadores e educandos, pensamos que os espaços de debate coletivo sobre o curso contribuem para a construção de novas experiências e subjetividades, contando também como instrumentos de registro dos relatos de auto-formação (cadernos reflexivos). Colocar em pauta na Universidade a auto-formação como metodologia de formação do educador contribui para que o conjunto das outras Licenciaturas na UFRRJ atente para a preparação deste profissional no sentido de construir sua perspectiva educativa a partir do exercicio reflexivo sobre suas próprias práticas. Como podemos observar, as práticas do Curso tem a intenção de contribuir especificamente com o debate acerca da Licenciatura em Educação do Campo (ARROYO, CALDART, MOLINA, 2004), focalizando, em especial, as relações estabelecidas entre as histórias de vida dos assentados da reforma agrária e outros “povos do campo” no envolvimento com as conquistas sociais, com o reconhecimento identitário, a produção e utilização de materiais didáticos como fatores políticos e pedagógicos que viabilizem a formação de sujeitos sociais como educadores numa perspectiva popular, histórica, emancipatória e intercultural. Desenvolve-se a dimensão educativa e, ao mesmo tempo, o fazer pedagógico através da organização coletiva na construção de projetos político-pedagógicos emancipadores e, nesse aspecto, as memórias e as histórias de vida constituem-se em mais um mecanismo para fazer emergir os sonhos e as esperanças dos sujeitos envolvidos nesse processo de formação. Processo este que pode ser desencadeado pela via da construção e reconstrução dos sonhos, resgatando as relações que os assentados guardam com o passado, as utopias e trajetórias recentemente vividas. Outro aspecto relevante é a significativa presença de sujeitos que, mesmo distante do domínio da educação formal são importantes e envolvem-se, política e socialmente, com as questões da Educação do Campo. Essas experiências podem contribuir para a gestação de embriões de democratização, socialização de poder, superação dos desafios, afirmação de identidades e seres humanos preocupados com o fortalecimento de ambientes coletivos. Existe hoje, nos espaços formais e informais da produção do conhecimento, uma urgente necessidade de intervenção, propondo reflexões que tenham por meta problematizar as dificuldades que, por ventura, possam ser apresentadas quanto às questões teórico-metodológicas da Educação do campo, na perspectiva crítica, dialógica e histórica do saber. (ARROYO, 2004; FREIRE, 1988). Creio que esses aspectos ressaltam algumas possibilidades em torno dos processos identitários ligados à visão de hegemonia no campo agrário e como essa visão vem sendo, na atualidade, reconfigurada pelos atores políticos nesses espaços de conflitos. Podemos, a titulo de conclusão provisória, olhando as experiências que vivenciamos na LEC/UFRRJ, relembrar aquilo que nos ensinou FREIRE (1994, p. 20): “que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de „escrevê-lo‟ ou „ reescrevê-lo‟ através de nossa prática consciente”. 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