Há um sentido para a morte?
E para o luto?
José Eduardo Rebelo ([email protected])
professor universitário e presidente da
APELO - Associação do Apoio à Pessoa em Luto
reflexão pública. Mas, perante tal prática, será
que aceitamos, de facto, a morte? Admitiremos,
na verdade, a necessidade do luto?
Sendo a única certeza que nos acompanha
durante a vida, o seu termo, desejamos que nos
venha colher lá bem longe em idade, quando
já tivermos experimentado muitos dos doces
sabores que a existência nos
proporciona. Esta caminhada é
regulada pelos afectos, um instinto
de importância tão decisiva na
vida quanto a necessidade de
alimento que nos leva a estabelecer
vínculos muito fortes, como o amor
e a amizade, com determinadas
pessoas. Cimentamos laços de
partilha, emocionamo-nos com
a sua sensibilidade e reagimos
negativamente à sua indiferença.
Os afectos são, portanto, a mola
que nos impulsiona para a vida.
Tendo consciência do seu valor
particular e intenso, poderemos
adivinhar
os
sentimentos
experimentados por quem de
súbito fica privado da pessoa
que generosamente concede esta
indispensável parcela de bemestar. Numa sociedade que valoriza
sobretudo o que é aparente, cada
vez mais implacável para com quem
justificada ou injustificadamente
fraqueja, a derrota é sentida como
inadmissível, mesmo a que nos é
RICHARD, Fleury-François (1802)
imposta pela própria vida.
Valentine of Milan Mourning her Husband, the Duke of Orléans
The Hermitage, St. Petersburg
Reflictamos um pouco.
A morte é sempre aceitável.
Pelo meio do Outono, quando a flora
despida de folhagem nos contagia de frio e,
do céu, as lágrimas de chuva nos alimentam a
nostalgia, acorremos aos cemitérios, por ritual
ou sentimento profundo, para conviver com um
passado apaziguado ou ainda fervilhante de dor.
A morte é, pelo menos durante um dia, tema de
Sendo tão natural quanto a vida, é a sua
consequência inevitável. Pode cruzar-se
connosco em qualquer passo do caminho da
nossa existência. Simplesmente acontece. Por
isso, deveríamos recebê-la com serenidade, como
um acto de reconhecimento pelos momentos de
felicidade que tivemos o privilégio de desfrutar.
Assim, o pensamento sobre a despedida da vida
deixaria de constituir em nós uma obstinação,
quantas vezes mórbida, sobre uma fatalidade
para se transformar num tranquilo crepúsculo
sobre o bem mais supremo que possuímos.
Mas, aceitando deste modo a morte,
deixaríamos de sofrer a perda de afectos que
ela significa? Não. Em qualquer momento que
sejamos apartados do prazer do amor ou da
amizade em relação a uma pessoa querida,
mesmo que seja previsível esse desfecho (como
o caso extremo de uma doença terminal), existe
um tempo de que necessitamos para transformar
os belos momentos de partilha que com ela
partilhámos em doces e suaves memórias. É o
tempo do luto.
Após o choque que sentimos com a notícia
da perda, porque não estamos preparados
emocionalmente para nos vermos privados
de sentimentos tão importantes para a nossa
estabilidade emocional, erguemos todas as
barreiras de que dispomos para tentar não
deixar fugir os afectos de dentro de nós.
Negámos a realidade da perda, mesmo vendo-a
perante os nossos olhos. “Como é possível que
tal tenha acontecido?”, “Não pode ser verdade
que tenha ocorrido tamanha tragédia!”: eis
algumas das expressões da incredulidade em
que necessitamos de acreditar. Tentamos, em
vão, uma explicação para o que não tem solução.
A morte é injustificável.
O tempo, no entanto, decorre. O telefone
toca, mas no outro lado deixou de estar quem
esperávamos. Na rua, ouvimos uma voz, vemos
uma imagem, mas não correspondem às que
desejávamos ouvir e ver. Quando finalmente
sentimos ser irreversível esta ânsia de reencontro
com a pessoa perdida, caímos num estádio de
angústia profunda, de amputação, de verdadeira
derrota perante a vida. É a dor lancinante da
perda, o mais profundo sofrimento do luto.
E o tempo prossegue, imparável. Embora
experimentemos sentimentos, emoções e
comportamentos estranhíssimos em relação ao
que julgávamos que conhecíamos de nós próprios,
embora nos sintamos quase a enlouquecer
de saudade, acabamos, lá bem adiante, por
reencontrar o ameno agrado que só a vida nos
concede.
É esta a expressão do luto saudável. É um
caminho que não pode ser ultrapassado ou
escamoteado. Tem de ser percorrido, passo
a passo, com todo o tormento que implique,
como uma demonstração da dimensão do amor
perdido. E não pode ser um caminho exclusivo
de solidão. Ainda que os sentimentos que nos
ligavam ao ente querido nos sejam muito íntimos,
não só nos devemos abrir à sociedade na partilha
da dor do luto como esta tem a obrigação de nos
aceitar e ajudar.
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Há um sentido para a morte? E para o luto?