verve verve Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP 4 2003 VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/ Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Nº4 (outubro 2003 - ). - São Paulo: o Programa, 2003Semestral 1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. ISSN 1676-9090 VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordenadoras: Teresinha Bernardo e Silvana Tótora. Editoria Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária. Nu-Sol Acácio Augusto S. Jr., Andre R. Degenszajn, Edson Lopes Jr., Edson Passetti (coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Francisco E. de Freitas, Guilherme C. Corrêa, Heleusa F. Câmara, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da Silva, Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza Santos. Conselho Editorial Adelaide Gonçalves (UFCE), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Margareth Rago (Unicamp), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP). Conselho Consultivo Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti (PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara (UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam, Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Editora Imaginário), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia). ISSN 1676-9090 verve revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberações. atiça-me! verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal. SU M Á R I O O indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e o anarquista Edgar Rodrigues 11 John Cage, anarquista fichado no Brasil Pietro Ferrua 20 Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade de controle Edson Passetti 32 Desvio e diferença no pensamento de Foucault: uma transgressão libertária Carlos José Martins 56 Arte e religião Max Stirner 67 A caminho do século XXI — abolição um sonho impossível? Thomas Mathiesen 80 Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração? Carlo Romani 112 Medida e desmesura Marianne Enckell 132 Economia e política, problematizações libertárias Natalia Montebello 145 Infiltrações burguesas na doutrina socialista Errico Malatesta 163 Em memória de Errico Malatesta Max Nettlau 170 Malatesta e a violência Luce Fabbri 186 Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo Maurício Tragtenberg 195 Errico Malatesta — revolta e ética anarquista Nildo Avelino 228 As idéias-força do anarquismo Jaime Cubero 265 RESENHAS Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras Paulo-Edgar Almeida Resende 279 Existência anarquista Acácio Augusto 296 As drogas à luz do dia: o controle social e o uso político dos psicoativos Henrique Soares Carneiro 300 Alfabetizar todos? Francisco E. de Freitas 304 Uma história de amor e prisão Salete Oliveira 311 *** espaçobrilha (para h. de campos) Thiago Rodrigues 315 195 228 265 279 296 300 304 311 315 anarquismo é diferença, memória e atualidade. a anarquia inventa a vida com liberdade, sem fronteiras, hierarquias e desigualdades sociais. os anarquistas evitam melancolias, não crêem no futuro reluzente, atuam no presente. verve trata de atualidades libertárias sem perder a memória. a contundência dos opúsculos redigidos por edgar rodrigues e jaime cubero, dois anarquistas marcantes que atravessaram o século 20, ladeiam percursos: a anarquia como invenção da vida, arte de existir problematizando o presente está acompanhada de leituras com errico malatesta, o contundente anarquista europeu na américa do sul. a prisão (que é a imagem do terror), a colônia penal, o campo de concentração e de extermínio (clevelândia), a prisão domiciliar (como mussolini impôs a malatesta), o banimento, são maneiras variadas de tentar manter a ordem política e econômica da continuidade das desigualdades: todo prisioneiro é um preso político. a prisão está também no cotidiano que uniformiza, impedindo que se ouça outra música (john cage, fichado no brasil), que cada um se reinvente, faça do desvio a transgressão prazerosa, dispense a arte do aprisionamento no objeto, cometa desmesuras. os libertários apreciam os revolucionários da linguagem. verve 4 caminha com haroldo de campos, morto em agosto de 2003 e lhe dedica uma peça de thiago r. verve é uma revista libertária, semestral e autogestionária, realizada pelo nu-sol. 4 2003 o bicho-homem dorme: no seu sonho uma florada verdeclaro (primavera!) primaverdece Haroldo de Campos 10 verve O indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e o anarquista o indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e o anarquista edgar rodrigues Apresentação Edgar Rodrigues é um dos mais importantes pesquisadores da história do anarquismo no Brasil e em Portugal. Chega ao Brasil em 1951, fugindo da ditadura de Salazar. No Rio de Janeiro, cidade onde se instala, publica dois livros que já havia escrito: um sobre a ditadura em Portugal (Na Inquisição de Salazar,1957) e outro sobre a situação social desse país (Fome em Portugal, 1958). Seu interesse pelas práticas anarquistas surge por influência de seu pai que atuava no movimento em Portugal, pela leitura de manifestos, jornais e, em especial, da obra de Kropotkin. No Brasil toma contato com diversos anarquistas e torna-se amigo de José Oiticica e Edgard Leuenroth, passando a colaborar na imprensa libertária. Autodidata, empenha-se na pesquisa de te- verve, 4: 11-18, 2003 11 4 2003 mas ligados à história do movimento anarco-sindicalista, da ditadura em Portugal e das associações libertárias. Realiza entrevistas com militantes, compila documentos, recupera e organiza arquivos, trabalho que resulta na publicação de mais de quarenta livros e mais de mil artigos. As publicações de Edgar Rodrigues são de extrema importância, pois trazem à tona documentos que poderiam se perder não fosse seu interesse em divulgar e pesquisar as práticas anarquistas. O artigo publicado neste número é um inédito enviado por um anarquista que afirma ser salutar pesquisar e divulgar anarquismos. Acácio Augusto O ser nasce herdeiro de atavismos seculares, num universo em competição bélica, religiosa, política, comercial, profissional, intelectual, e científica. Entra na vida recebendo “injeções” de cosméticos, propaganda fantasiosa, mercantilista, educação, instrução e formação direcionadas para a obediência, aceitação do que já encontrou e, para ser um servidor do sistema. Neste mundo de cada um por si, disputa notas altas na escola, um diploma na faculdade, cargos bem remunerados, a fim de garantir o seu espaço vital, ter uma vida folgada. Quando conhece idéias políticas e/ou sociais, e opta por uma corrente ideológica, já é habitante numa sociedade de competições, está subjetivamente condicionado para disputar sua sobrevivência no meio de adversários, visíveis e invisíveis, revelando ambições, vontades 12 verve O indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e o anarquista de sobressair social, profissional, intelectual e politicamente: pensa imediatamente em assegurar seu futuro e da sua prole... Está diante de uma bifurcação, política social: escolhe o caminho que lhe parece levar aos seus objetivos mais rapidamente. A maioria prefere subir na vida ainda que seja explorando terceiros para ser chefe, comerciante ou industrial bem sucedido. Outros escolhem ser políticos, policiais, militares, donos de igrejas, todos com o mesmo propósito: ter assegurado uma vida confortável quase sem nenhum esforço. Os que optam pela via libertária, têm pela frente todas as adversidades: “incompatibilizam-se” com a família, os vizinhos, os colegas de serviço, com religiosos, autoridades, com a sociedade onde vivem! A única coisa de que se podem “orgulhar”, é de poder dizer: sou anarquista!, se no país onde vivem não predominar o autoritarismo, a ditadura. Pela via marxista ainda pode chegar a chefe, punir os que lhe são subordinados, hierarquicamente. Só não pode contestar os comandantes. Pela via anarquista precisa ser “vacinado” contra a empáfia, ter coerência, ser persistente, corajoso, ter espírito de renúncia, ser ateu, solidário, humanista e advogar a igualdade social de todos, de cada um. O anarquismo, só oferece sacrifícios... A curto prazo, os “marxistas” e outras correntes chamadas esquerdas juntaram uma multidão de revoltados furiosos, os agitaram, discursavam às massas e tudo parecia resolvido: meio mundo “era comunista”, mas esqueceram que faltava maturidade à maioria, e aos chefes capacidade administrativa (o ser humano consome 13 4 2003 todos os dias antes de produzir). “Esqueceram” também da instrução, do ensino, da educação racional e perderam sua sustentação. Surgiram divergências, cisões, disputas pelo mando, atentados, fuzilamento de “traidores” e o Estado “comunista” virou um monstro sem cérebro e suas bases ruíram até pela corrupção... Os libertários e anarco-sindicalistas também cresceram bastante nas primeiras décadas do século XX, sem bases sólidas, conscientes, maturidade interior (ao menos a maioria) e começaram a gritar: Façamos a Revolução Social! Morte à burguesia! Esmaguemos a reação! Derrubemos o Estado! E foram tantos os gritos dos trabalhadores libertários, sem base de sustentação, assustando e unindo as forças reacionárias, que estas fortaleceram o Estado e deram “motivo a ditaduras da direita”. Um pouco por medo dos gritos de Revolução já, e outro tanto para se impor às manifestações do proletariado, as greves, contra insurreições populares e comícios de rua e praças, o patronato associou-se, formou poderosos organismos comerciais, industriais, recebeu ajuda das leis do Estado, e em troca financiou eleições de gente de sua confiança, investiu no Estado, dos séculos XIX, XX e XXI. Cercado de polícias e militares treinados para matar; de técnicos e cientistas para aperfeiçoar material bélico, (sempre com as bênçãos da igreja) e jurisprudência, ficaram em condições, inclusive de vender armas e condenar os discordantes. Por sua vez o capitalista tornou-se dono das minas, dos pólos de produção, dos bancos, e apóia o Estado para declarar guerra em nome da pátria. 14 verve O indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e o anarquista E os governantes ainda viraram sócios de grandes e pequenas empresas, cobram-lhes dividendos (parte nos lucros) mesmo quando os empresários e comerciantes têm prejuízos. E faz a cobrança antecipada em forma de impostos: é um sócio sem empate de capital, que ganha até nas falências e em casos de mortes (inventários). Dispondo de tão ágeis servidores e de maquinismos tão eficientes, o Estado é cada vez mais poderoso independente de quem é o chefe de governo: seus “ganhos” dão-lhes poder incalculável. Pelas mãos e os cérebros de seus economistas, o Estado administra e raciona alimentos, instrução, saúde, saneamento, controla a produção e faz a fome virar endêmica em muitas regiões do planeta. Contrata intelectuais, psicólogos, economistas e mestres da linguagem. Elabora programas para a imprensa escrita e falada divulgar noite e dia, repetidamente, até saturar o poder de raciocínio, de avaliação e decisão. Invade palácios e pocilgas, robotizando jovens, velhos, mulheres e crianças, fazendo-os acreditar na “cosmetização” da suas mentes, mascarando suas aparências, suas formas físicas, e terão consumidores de seus produtos de “beleza”, ficarão ricos com ajuda de intelectuais e comerciantes da enganação! E assim despersonalizam, reduzem milhões de seres humanos a indivíduos sem discernimento, emoções, reações sem raciocínio, para obedecer e pensar na aparência e no pão nosso de cada dia, se Deus quiser... Um povo mal alimentado, enganado, deformado em sua mente não desenvolve todas as suas capacidades e potencialidades cerebrais. Atrofiado ganha forma de adulto com uma cabeça incapaz de entender a origem da sua desgraça... É um corpo para trabalhar e aceitar 15 4 2003 sua pobreza, dizer sim senhor, não doutor, aplaudir os que lhe falam de pátria, de cidadania, sem saber o que significa e/ou quem inventou esses palavrões..., e obter mão de obra quase de graça. Esmirrando pela destruição, ignora as origens de sua pobreza e ainda acha que assim é porque Deus quer. Por sua vez, os assalariados que não foram explorados e confundidos pelos mesmos métodos, também não são capazes de se solidarizar com os excluídos e iniciar (associados) a reversão dos sistemas políticos que se fortalecem e se perpetuam sobre o medo de uns e o comodismo de outros. O anarquista brasileiro, Orlando Corrêa Lopes, mantinha como subtítulo de seu jornal Na Barricada (19131914): “Para fazer a revolução é preciso levar uma espingarda na mão e uma idéia no cérebro”. E nós acrescentamos: precisa também de maturidade revolucionária, coerência, saber como lidar com seres humanos em rebelião, e se vitoriosos, suprir as suas necessidades e as dos outros no dia seguinte... O anarquista não pode modificar em pouco tempo, o pensar dos cérebros humanos que a Burguesia, a Igreja e o Estado gastaram séculos anestesiando por gerações e gerações. Primeiro intimidaram o homem! Depois fizeram dele um bruto capaz de matar seus irmãos para garantir a desigualdade, para “defender à pátria”! E para melhorar de vida passam por cima dos mais frágeis como tratores. Na escola ensinam-lhe cidadania, patriotismo... e como eleger chefes! Os anarquistas opõem-se a todos os tipos de crendices, condicionamentos, deformações!!! 16 verve O indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e o anarquista O anarquista quer o ser humano altivo, independente, capaz de se autogovernar sem muletas divinas ou estatais! Vê no indivíduo a figura mais importante a desenvolver-se, preservar, elevando-o como ser humano até onde a inteligência, o raciocínio e a razão o possam conduzir. Para o anarquista um ser humano é igual a outro independente do sexo, da cor, dos diplomas e outras “medalhinhas”, do país de origem: sua proposta de igualdade não é uma fantasia nem é metafísica. Tem consciência das muitas peculiaridades humanas em nosso universo, que precisarão viver suas realidades associadas em coletividades. Muitos consideram isto uma UTOPIA na Terra... Mas seria o caso de perguntar: Existe coisa mais utópica do que acreditar nos religiosos de que após a morte, “os bem mandados” viverão uma “Vida Nova” no Céu? Ou que os políticos governantes vão promover a felicidade de todos? No dia em que os seres humanos não alimentarem nenhum tipo de Utopia (esperança) certamente suicidar-se-ão! 17 4 2003 RESUMO O indivíduo nasce em uma sociedade de competição, na qual o Estado controla, deforma e submete sua vida e sua consciência. Na escolha do caminho mais difícil os anarquistas confrontam e escapam aos moldes do Estado. Palavras-chave: anarquismo, Estado, capitalismo. ABSTRACT The individual is born in a society of competition, in which the state controls, deforms and submits his life and conscience. Choosing the most difficult way, anarchists confront and escape from the models of state. Keywords: anarchism, state, capitalism. Recebido para publicação em 15 de agosto de 2003 18 verve acupunturas com raios cósmicos realismo: a poesia como ela é inscrições rupestres na ponta da língua poesia à beira-fôlego: no último fole do pulmão como ela é (a poesia) fogo (é) fogo (a poesia) fogo Haroldo de Campos 19 4 2003 john cage: anarquista fichado no brasil¹ pietro ferrua* Ainda que possa parecer incrível que um “inocente” compositor de música pudesse ter problemas com a Justiça, isso paradoxalmente ocorreu. E aconteceu no Brasil. Quando, em outubro de 1969, dezesseis anarquistas foram presos com o intervalo de algumas horas ou dias no Rio de Janeiro, faltaram três pessoas da lista dos indiciados: Edgar Rodrigues2, Carlos M. Rama3 e John Cage. Sobre essas prisões e o processo que se encadeou podemos consultar o recente livro4 de Edgar Rodrigues que registrou estes eventos, à exceção de alguns episódios deliciosos, que talvez ele não tenha tido conhecimento, como este que eu vou contar. O serviço secreto vinha observando o movimento anarquista, e eles já desconfiavam disso. Uma das muitas atividades que alguns deles haviam elaborado era justamente um curso sobre anarquismo, apresentado em um teatro local, bem central e muito conhecido, que foi alugado para este evento. Nós também tínhamos conProfessor emérito do Lewis Clark College, Portland, fundador do CIRA (Centre International de Recherche sur Anarchisme), viveu no Brasil de 1963 a 1969. * verve, 4: 20-31, 2003 20 verve John Cage, anarquista fichado no Brasil seguido o direito de usar o interior de faculdades e os outdoors mais bem localizados da cidade, os quais foram cobertos por anúncios e cartazes5 apresentando uma série de conferências sobre a presença dos anarquistas em revoluções passadas, como a Comuna de Paris, a Revolução Mexicana, a Revolução Russa, a Revolução Espanhola e os acontecimentos de Maio de 1968. Algumas precauções foram adotadas para evitar uma repressão imediata e a estratégia funcionou, pois o curso pôde ser concluído e as prisões só aconteceram um ano mais tarde. Para comprometer o menor número de pessoas foi estabelecida a fórmula de apenas um palestrante e foi decidido não transformar o ato em um comício político, apresentando-o como um curso pago6; o que permitiu a realização do projeto. Os policiais designados para supervisionar o evento também tiveram que se inscrever como todos os outros, e criou-se uma brincadeira para identificá-los (os papéis tinham sido invertidos): eles só poderiam ser pessoas desconhecidas pelos camaradas. Os policias acabaram confusos — o que pôde ser percebido em seus relatórios durante os interrogatórios e o processo — pois eles tinham dificuldade em compreender a posição desses “fanfarrões” que eram contra os capitalistas, os fascistas e os bolchevistas, algumas vezes até os colocando no mesmo saco. Podemos então imaginar suas caras quando ouviram este americano (sim, um verdadeiro americano!) que substituía o palestrante habitual e que foi apresentado ao público como o célebre compositor John Cage. Este corrigiu rapidamente o anfitrião dizendo que não gostava muito do título de músico e preferia o de “micólogo”. Fez questão de afirmar que de fato não era o estudo de cogumelos que o interessava, mas a colheita, ou melhor, a “caça” de diversas variedades, segundo a estação e as latitudes. Ele nos confessou, em seguida, que gostava principalmente de os cozinhar para depois comê-los... Nesse 21 4 2003 ponto, começou a divagar sobre cogumelos fritos ou recheados, na omelete ou preparados de outra forma. O assunto poderia ter continuado se ele não tivesse sido interrompido — por um provocador — e lembrado que era uma receita para uma Revolução que esperavam dele, não uma para cozinhar cogumelos. Foi nesse momento que John Cage exclamou: “como vocês querem fazer uma revolução se os telefones não funcionam?”. O que podia parecer uma piada, era para ele uma experiência e uma convicção. A experiência, da qual fui responsável, o tinha marcado a tal ponto que é praticamente a única lembrança escrita que ele deixou (que eu saiba) de nossa aventura juntos. De fato, no seu M: Writings’67-72, ele escreve: “eu espero no hotel do Rio de Janeiro, para saber se devo ou não me encontrar com pessoas que estão estudando o anarquismo (eles haviam estudado até Thoreau e como descobriram que eu gostava do Journal de Thoreau, pediram que eu dividisse minhas impressões com eles): o telefone não tocou”7. Cage ainda não sabia que nós tínhamos tentado em vão conseguir uma linha de telefone num restaurante ao lado, o que, no Brasil dos anos 1960, significava ficar meia hora na fila, esperar o sinal de linha livre, achar o número do hotel, ceder o aparelho para a pessoa de trás, retomar a fila e assim em diante, às vezes podendo chegar a mais de duas horas de espera8. Mas chegou o momento de voltarmos no tempo para explicar como conheci o compositor e como o embarquei nessa aventura. Alguns dias antes tinha recebido um extraordinário convite para jantar na casa de Jocy de Oliveira9, a mais “anarquista” das musicistas brasileiras (o que ela confirmou alguns anos mais tarde10). O objetivo era entreter, durante e depois do banquete, John Cage, o pianista David Tudor, o coreógrafo Merce Cunningham e todo seu grupo. Arnaldo Sant’Anna de 22 verve John Cage, anarquista fichado no Brasil Moura e eu tivemos o privilégio de nos ocupar de Cage durante um momento desta magnífica noite. Após uma longa discussão musical sobre “l’intonarumori” (o “acorde-bruto”) futurístico de Russolo e Pratella (ele nunca tinha visto um e se interessava muito) e sobre o teremin (sintetizador pioneiro do qual meu sogro foi um dos raros especialistas) começamos a falar sobre o C.I.R.A. (Centre International de Recherches sur l’Anarchisme), e ele conheceu nossas atividades e ficou surpreso em saber que anarquistas se reuniam à luz do dia em plena ditadura. Como ele se declarou abertamente anarquista, eu lhe pedi se poderia nos visitar oficialmente, o que nos proporcionaria uma boa propaganda em alguns meios. Ele aceitou com prazer e foi decidido que iria apresentar o anarquismo de Thoreau, porque ele não acreditava muito em revoluções violentas e não conhecia suficientemente os assuntos do curso para apresentar um. A confirmação de sua presença dependia do telefonema que não conseguimos dar. Felizmente, também tínhamos tomado a precaução de enviar alguém para buscá-lo no hotel, com dois carros (se me lembro bem, dois carros idênticos indo em direções opostas eram utilizados nessas ocasiões). Não me lembro quem foi encontrá-lo no hotel, mas ele chegou ao teatro carioca e nos entreteve durante boas duas horas com piadas recheadas de sérias considerações sobre o anarquismo tecnológico. Deixando Thoreau um pouco de lado, cujo papel na cultura americana nós já conhecíamos, ele apresentou idéias de Suzuki, de Buckminster Fuller e de Paul Goodman, que nós ignorávamos ou não tínhamos o hábito de associá-los ao anarquismo. Cage manteve a tese da libertação da sociedade por uma revolução não-violenta e isso graças às novas tecnologias (com as quais se irritavam os anarco-sindicalistas). A visita de John Cage aos anarquistas foi ignorada pela imprensa, mas contribuiu ain- 23 4 2003 da assim para fazer conhecer as atividades anarquistas nos meios artísticos e intelectuais e para consolidar sua posição. Comparecemos em grupo, nos dias seguintes, a todos os seus espetáculos e o reencontramos; no entanto, sua estadia chegou ao fim e foi com tristeza que dele nos separamos. Um ano depois começaram as prisões e alguém lhe deu a notícia nos Estados Unidos. Não creio que ele tenha se abalado pelo fato da ditadura ter citado seu nome. Apesar disso, a fantasia do serviço secreto brasileiro fez John Cage entrar para a história do anarquismo do Rio de Janeiro. Fica também sua mensagem: “conselho aos anarquistas brasileiros: melhorem seu sistema telefônico. Sem telefone será totalmente impossível começar uma revolução”11. Além deste episódio de participação ativa, John Cage sempre apoiou o anarquismo em seus escritos. Folheando sua obra podemos reconstituir sua trajetória, que vai de Lao Tsé a Paul Goodman, passando por Thoreau. Sua prosa era tão assistemática quanto sua música, e é preciso reconstruir pacientemente o quebra-cabeça de seu pensamento: “Sem políticos, sem polícia”12; “Não ao governo, apenas educação”13; “A anarquia é pratica”14; “Nós devemos realizar o impossível, nos desfazer do mundo das Nações, introduzindo o jogo da inteligência anárquica no mundo”15; “Nós sabemos que o melhor governo é não existir governo”16. Ele mesmo definirá seu anarquismo como um tecnoanarquismo à la Kostelanetz17. Mas seu anarquismo também tem outras fontes. Para Max Blechman18, sem dúvida o último a entrevistá-lo sobre a data de sua adesão às idéias anarquistas, Cage respondera: “eu comecei a me interessar pelo anarquismo mais ou menos nos anos 1940... Vera e Paul Williams me ‘converteram’. Mas principalmente James J. Martin”. Ele conhecia a obra de Emma Goldman, e também estava a par dos acon- 24 verve John Cage, anarquista fichado no Brasil tecimentos espanhóis, sempre pregando um anarquismo cotidiano, imediato. De fato, ele considera: “eu dou um exemplo de como isso funciona agora” e revela que o anarquismo para ele é uma segunda natureza: “eu sou anarquista da mesma maneira que telefonamos, que apagamos a luz, que bebemos água”19. Além do mais, ele não se limitou a viver ou a mencionar suas idéias revolucionárias; ele as adaptou às suas modalidades de expressão. Suas composições literárias e musicais são anarquistas tanto pelo conteúdo quanto pela forma. Sua escrita não é convencional e se exprime de uma maneira totalmente original. Seus mesósticos parecem um jogo de palavras cruzadas que lhe permitem condensar seu pensamento (máximas horizontais) e defini-lo (fórmulas verticais). Poderíamos observar que os futuristas e os poetas concretos o antecederam e que ele tomou-lhes emprestado algumas descobertas. Porém, seus antecessores frearam diante de alguns caminhos não os explorando às últimas conseqüências, enquanto ele os sistematiza, fazendo livros inteiros e composições musicais (de vez em quando os gêneros acabam se confundindo). Às vezes, ele constrói estruturas rígidas (como Arnold Schoenberg, do qual ele foi discípulo) acabando por violá-las deliberadamente no decorrer da construção. Seus livros são feitos na forma de estruturas circulares e não têm nem um verdadeiro começo, nem um verdadeiro fim. Tanto a indeterminação quanto a incoerência são evidentes, o todo pendendo para a disciplina e tendo como resultado uma estrutura variável. O mesmo acontece com sua música na qual o elemento anárquico se situa em todos os níveis: o abandono dos cânones tradicionais, a mistura de gêneros, a supressão do maestro, a introdução da noção de silêncio, o uso de sons naturais (barulhos também), mecâni- 25 4 2003 cos, elétricos, eletrônicos, etc... Sua gama de sons e suas experiências são tão numerosas quanto suas obras. Ele dizia: “ficando aberto ao imprevisto espero com alegria o que vai acontecer”20. Em Atlas Eclipticalis (1932) ouvimos 25.000 sons em liberdade durante 160 minutos; em Bacchanale (1936) ele altera os sons do piano colocando entre as cordas papel, porcas, cinzeiros (inventando assim o “piano preparado”); em Construction in metal (1937) utiliza gamelans indonésios junto com chapas metálicas e peças de freios de carros; em Empty Words (1973-78) usa um jogo de vozes, o grito e vocalizes misturando sílabas e letras de um texto de Thoreau; em Europeras (1987-91) mescla gravações em fita magnética com fragmentos de discos, pianistas, cantoras de ópera e muitos projetores; em 59 ¼’ for a String Player (1953), os instrumentos de corda são tocados com ou sem palheta e as caixas de ressonância são batidas como se fossem instrumentos de percussão; em 4 minutos e 33 segundos (1942) o pianista fica sentado diante de seu instrumento sem emitir nenhum som (John Cage gostava de dizer: “eu penso que a melhor composição, pelo menos a que eu prefiro, é a silenciosa (4’33’’). Ela é feita em três movimentos e não tem som. Eu queria que minha música fosse livre dos sentimentos e idéias do compositor. Eu senti e espero ter levado as pessoas a sentir que os sons dos seus ambientes constituem uma música que é muito mais interessante que a música que eles escutariam se estivessem dentro de uma sala de concerto”)21; HPSCHD (1968) foi concebida como uma peça para cravo e aparelhos eletrônicos; Imaginary Landscape n. 5 (1952) é uma composição para 42 gravações fonográficas enquanto que Imaginary Landscape n. 4 (do ano anterior) propunha um som produzido pela emissão de doze rádios; Muoyce [Música + Joyce] (1983) foi formada com sons emprestados 26 verve John Cage, anarquista fichado no Brasil de Finnegan’s Wake e cantado sobre diversos ritmos descontínuos, sem melodia mas com o acompanhamento de sirenes; Variations II (1961) é uma peça indeterminada para um número variável de músicos produzindo qualquer som; Variations V (1965) é composta de três elementos: barulhos amplificados, dança e uma montagem de filmes; Winter Music (1957) pode ser tocada por um número indeterminado de pianistas (de 1 a 20). E assim por diante. Arnold Schoenberg, que foi seu mestre durante algum tempo, ousou dizer de John Cage: “naturalmente, ele não é um compositor, mas um inventor genial”, enquanto que Bruno Maderna disse: “nós somos todos cageanos”22. Já, para Peter Yates: “o compositor de sua geração que teve mais influência, no plano mundial”. Não importa a área em que se envolvia (música, literatura, balé, etc...) Cage sempre se distinguia por este lema: “a revolução não pode nunca parar”23. Sob todos os aspectos e especificamente sobre as idéias anarquistas, ele dirá a Max Blechman, apenas algumas semanas antes de morrer: “tenho uma amiga que está voltando da Espanha onde conhece um escultor que lhe disse: ‘de erro em erro chegaremos a vitória final’. Ela acredita — como ele, como eu, e como cada vez mais pessoas — que o futuro político da humanidade será anarquista. Nós só podemos ter uma humanidade universal e anarquista ... mas é preciso um anarquismo pacífico... ou haverá muito do que poderíamos chamar de dor”24. Os camaradas marselheses que fundaram o “Grupo anarquista John Cage” foram bem inspirados. 27 4 2003 Je te salue, camarade je n’ai pas Oublié tes blagues même cHez les dictateurs elles nous oNt faire rire. Certains ont su en tirer la subst Antifique moëlle et s’en sont Guerris pour les tânchEs immenses qui les attendaient. Aujourd’hui nous te regrettoNs, mais tu nous ses d’A guillon pour les luttes en faveuR de l’anarchie que tu as preChée et que nous, avec ou sans cHampignons dans l’ I ndetermination avec les Sons de tes jeux de mots compTons construire au jour lE jour. Já te saúdo, camarada eu não Olvidei tuas troças mesmo na cHoça dos ditadores elas Nos fizeram rir. Conseguiram alguns reter o âmAgo-medular sendo enerGizado pelas marcas imEnsas que os esperavam Agora sua falta se Ntimos, mas você serve de inspirAção para as lutas em favoR da anarquia que você Quer e que nós com ou sem cog Umelos na Indeterminação com os Sons de tuas palavras em dança consTruiremos dia-A -dia. 28 verve John Cage, anarquista fichado no Brasil Notas 1 Traduzido por Carolina Besse e Thiago Rodrigues. Este camarada foi o único a não ser preso, entre os oficialmente indiciados no momento da acariação sobre o estatuto do Centro de Estudos Professor José Oiticica. Ele figurava como bibliotecário da instituição, mas ninguém conhecia – ou fingia não conhecer – o verdadeiro nome que se escondia por trás deste pseudônimo. 2 Carlos M. Rama vinha periodicamente ao Brasil visitar uma de suas filhas que veio morar no país depois de se casar com um brasileiro. Uma de suas viagens coincidiu com nosso curso e ele teve a bondade de me substituir para falar sobre os anarquistas na Revolução espanhola de 1936-39, assim como havia feito Ideal Peres na semana anterior para nos mostrar a Revolução russa. Carlos Rama, no dia de sua conferência, foi até entrevistado pela imprensa local. Mais tarde eu mesmo o avisei, estando em Montevidéu, das prisões ocorridas. Ele evitou as tempestades da ditadura brasileira, mas entrou em conflito com o governo uruguaio, refugiou-se no Chile de Allende e em seguida teve que se exilar na Espanha, onde morreu muito jovem. 3 O processo dos anarquistas, assim como os acontecimentos que se desencadearam foram relatados por Edgar Rodrigues em seu livro O anarquismo no banco dos réus (1969-1972) (Rio de Janeiro, VJR, 1993). Eu mesmo forneci ao autor uma parte da documentação, mas ele também utilizou documentos oficiais. Na época das prisões o camarada Rodrigues foi preservado das perseguições durante algum tempo, o que lhe permitiu manter contato com os camaradas que estavam livres, ajudar as famílias daqueles que estavam presos, encontrar advogados para a defesa e se tornar útil sob diversos planos. 4 Diego Abad de Santillán, que eu encontrava de vez em quando em Buenos Aires, com quem me correspondia regularmente e que me havia fornecido material para o curso, se espantou ao receber uma cópia do anúncio de nossas conferências, assim como a possibilidade de distribuir este tipo de material durante uma ditadura militar. Eu lhe respondi que não era mais permitido no Brasil do que na Argentina, mas que o fazíamos assim mesmo. 5 A taxa a pagar era modesta. Nenhum pro labore era destinado aos palestrantes e o dinheiro recebido contribuía para pagar o aluguel da sala e a impressão dos cartazes. 6 John Cage. M: Writings ’67-72. Middletown, Wesleyan University Press, 1974, p. 59. 7 Eu tinha me inscrito para a compra de um telefone, para o qual pagava mensalidades regularmente, mas após seis anos ele ainda não tinha sido instalado. Eu me tornei proprietário de um apenas quando estava no exílio. 8 29 4 2003 9 Em seu apartamento no bairro do Leblon, onde na ocasião ela morava com seu marido, o diretor de orquestra Eleazar de Carvalho. 10 O First International Symposium on Anarchism deu-se em Portland entre os dias 17 e 24 de fevereiro de 1980. Foram oito dias de conversas, conferências, discussões, transmissões, projeções, espetáculos, recitais, concertos, etc. A parte mais bem sucedida foi aquela consagrada às expressões artísticas: dança, música, cinema. Nesta ocasião nos deleitamos escutando Jocy de Oliveira, tanto quanto pianista e animadora ao interpretar “Descrições automáticas. Embriões desidratados. Velhos sequins e velhas armaduras” de Erik Satie, como quando ela nos ofereceu a apresentação de um extraordinário e inesquecível espetáculo “Probabilistic Theater n. 1” sua composição para músicos, atores e dançarinos, que foi muitíssimo aplaudida. 11 John Cage. M: Writings ’67-72, op. cit., p. 60. 12 John Cage. Composition in retrospect. p. 43. 13 Idem, p. 126. 14 Ibidem, p. 93. 15 Ibidem, p. 34. 16 John Cage. M: Writings ’67-72, op. cit., p. 101. Ele tinha tanta confiança em Kostelanetz que permitiu que ele palpitasse sobre seus escritos e que fizesse uma montagem, para um artigo que apareceu na revista Social Anarquism (nº 14 de 1989. pp. 13-29) com suas idéias sobre educação. John Cage se limitou a adicionar algumas palavras, aqui e ali, entre parênteses. 17 18 Citação: “Last Words on Anarchy. An Interview with John Cage by Max Bletchman” in Drunken Boat, n° 2, pp. 221-225. A revista apareceu em setembro de 1994 mas a entrevista aconteceu em 24 de julho de 1992, menos de um mês antes da morte do compositor. 19 John Cage. A Year from Monday, p. 53. 20 John Cage. Composition in retrospect, op. cit., p. 32. John Cage. “Interview with Jeff Goldberg” in The transatlantic Review, nº 5556 de maio de 1976. 21 22 Citado por Piero Santi em “Método e caso in Cage” in Spirali nº 42 de junho de 1982, pp. 43-45. 23 Idem, p. 33. 24 Ibidem, p. 33. PS: John Cage tinha sido convidado para participar do programa musical do Primeiro Simpósio Internacional sobre o Anarquismo de Portland, mas não pôde comparecer devido a contratos assinados anteriormente com o coreógrafo 30 verve John Cage, anarquista fichado no Brasil Merce Cunningham, mas ele nos permitiu colocar no programa seu Imaginary Landscape n. 4, incrivelmente interpretado pelo Lewis Clark Chamber Choir dirigido por Gilbert Seeley. RESUMO O autor relata a impressionante história da passagem de John Cage pelo Brasil, no final dos anos 1960. Ferrua nos conta como a presença e a personalidade de Cage trouxeram ao grupo anarquista do Rio de Janeiro um modo diferente de perceber as transformações sociais e a liberdade. Além disso, ele estuda alguns aspectos dos trabalhos musicais e poéticos de John Cage, notando a relação entre arte e política em sua obra. Relação esta que foi uma forte e original expressão de vida. Palavras-chave: John Cage, anarquismo, Brasil. ABSTRACT The author relates the impressive story of John Cage’s stay in Brazil in the late 1960’s. Ferrua reports how Cage’s character and personality brought to the anarchist groups in Rio de Janeiro a different way to see social changes and freedom. He also studies some aspects of the musical and poetical works by John Cage, noting the relationship between art and politics in his ouvre. This connection was a strong and original expression of life. Keywords: John Cage, anarchism, Brazil. Recebido para publicação em 6 de março de 2003 31 4 2003 vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade de controle edson passetti* Conexões libertárias são provocadas por encontros intensos que promovem reviravoltas. Dissociam obra e autoria, abolindo a relação direta, imediata, indissolúvel, a totalidade explicativa e definitivamente verdadeira, a crença em que cada palavra deve convencer que está confessando a vida, expressando a verdade verdadeira. Opor a autoria à vida, isentando a literatura do autor ou do seu ponto de vista, como se dois mundos autônomos existissem, compostos por real e ficção, tampouco nos leva a experimentar libertarismos provocados pelas escolhas dos escritores ou de quem escreve para o público. Há escritas que inventam preciosas reviravoltas em seus redatores. Elas vão de anotações em pequenos papéis, a deliberados diários, a arquivo bloqueado por senha no computador, sem a preocupação com a expressão literária. Entretanto, de qualquer maneira, por um instante, qualquer pessoa é ou já foi um escritor, mesCoordenador do Nu-Sol, Professor no Departamento de Política e no PEPGCiências Sociais, PUC-SP. * verve, 4: 32-55, 2003 32 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... mo que isso tenha se passado somente na memória de cada uma como pequenas ou intermináveis matérias imateriais, escritas no pensamento durante o trajeto de ônibus ou trem, envolvendo pessoas próximas, mortos que adquirem vida ou apenas personagem que aparece para desaparecer em seguida, ou nos acompanhar como lembrança de uma pessoa inexistente. As conexões libertárias fazem mais do que isso. Estabelecem exterioridades, mostram múltiplas subjetividades, fogem dos conceitos, escapam de ser apanhadas pelas formalidades para nos pegar a contrapelo. O libertarismo evita a identidade e a classificação, para festejar coexistências. A obra, a existência da pessoa, um fragmento capaz de gerar transgressões, acontecimentos assim, acompanham os libertários em suas experimentações. O libertário é um viajante, evita itinerários, é um anarquista insatisfeito que se problematiza e que não admite ser confundido com o liberal. Um escritor que se declara liberal, que atua na política como tal, muitas vezes dá, aos seus livros, intensidades libertárias radicais. Talvez isso ocorra pela proximidade entre anarquistas e liberais acerca da redução dos exercícios de autoridade e da importância da liberdade; da liberdade como tema e vivência preciosa; e da instável condição de existência, um escritor, cidadão liberal produzindo literatura, passa a ser apenas uma pessoa libertária, capaz de abolir as hierarquias, de perseguir vidas intensas de pessoas conhecidas ou escancarados personagens como ficções verdadeiras que estabelecem uma nova política da verdade para dissolver a biografia, o depoimento verossímel ou a documentação arquivada. O escritor mostra, com essa atitude, que a invenção provoca reviravoltas e se opõe ao acabado poder da criação; e trata de reais e inventados percursos da vida das personagens, depoimentos ou arquivos, 33 4 2003 incluindo a sua própria experimentação de vida revisitada, pelo ponto de vista de sua existência atual. Um jovem artista, do qual nada sei sobre o que pensava a respeito de política, com suas peças artísticas, provoca sensações, conexões e atitudes libertárias; e isso importa. Um leitor mais apressado poderia dizer que toda arte busca a liberdade, a perfeição, o equilíbrio ou o transtorno. Eu, um anotador de casos, apenas estou interessado no que é realizado e no que faz com que as peças produzidas pelo artista não adquiram vida independente, nem aura (a não ser para o colecionador, o marchand, as regras do mercado ou os ditados dos críticos). Lá com estas obras está a vida do autor, impregnando cada objeto de subjetividades, também parte da longa vida vivida de cada um, um dar de costas à Vida, esta coisa transcendental que se quer modernamente finita em cada humano e infinita enquanto utopia e construção ininterrupta de um modelo. Um escritor fala de um ponto de vista. Se isso é literatura, se tem durabilidade e é preciosa, vai depender das condições de acesso a estes escritos literários. Não havendo acesso livre, apreciações à parte sobre a autoria se desvanecem. O autor, essa criação individual da modernidade, o realizador de uma capacidade superior e particular da cultura ocidental, domina palavras, técnicas, regras e contra-regras, para perpetuar uma maneira de registrar o mundo. Outras maneiras, de outros pontos de vista, de outras regiões, de estados do ser, como disse Antonin Artaud, ou de expressões destes estados do ser facilitadas pela escultura, a pintura ou os bichos fez das atividades de Nise da Silveira uma facilitadora de experimentações para os loucos internados depois reconhecidos artistas (que o mercado, os críticos ou os marchands saudaram mais tarde). De certa maneira, é em busca de sua liberdade que se escreve, pinta, cons- 34 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... trói, redige, ou continua produzindo nas memórias, intermináveis romances, construções impossíveis, preciosas situações poéticas. Além do livro ou de autoria pessoal e de uma coletânia está a revista. Nela é possível experimentar novos espaços, diagramações, a tiragem de um número único, as mudanças que mostram como seus inventores tratam os temas, os assuntos. Revistas de muitos números, industrializadas, reiteram os modelos e projetamse como eternidade do máximo extrair do modelo até o esgotamento da forma para ceder lugar a uma outra versão do mesmo modelo. Elas veiculam semelhanças. Nas bancas de jornais podem ser econtradas para consumo da multidão de alfabetizados. Não falo dessas revistas, nem de projetos de vanguarda aguardando serem saudados como exemplares. Falo de experimentações disponíveis a convulsionar um leitor, menos por obrigação profissional, surpreendendo pelo acaso que a revista lhe mostra: o que ele pensa e inventa também existe na vida de outras pessoas; é possível escapar do modelo tanto quanto se aproximar de diferentes coexistindo. Revistas desta forma não são perfeitas e equilibradas, ainda que possa nelas se constatar cada projeto em curso. A forma da revista está disponibilizada à convulsão provocada pela escrita dos autores. Eles falam de um ponto de vista e reparam em barulhos que a escuta não apreende e em flashes que a visão não capta. A revista, assim, provoca liberações. Falar de liberdade já é em si estabelecer uma conexão libertária voltada para abalar linguagens, obra e autoria, realidade e ficção, escolas e vanguardas. Exercitar liberdade é uma preciosa atividade subversiva. Diante do direito o único, do cidadão a pessoa, do castigo a abolição da pena, da hieraquia as parcerias, da sociedade a associação, do Estado a associação também, da 35 4 2003 filantropia a generosidade, da propriedade privada a multidão de mim, do macro o micro sem pretensão à maioridade, um nomadismo contra territorialidades, heterotopias diante das utopias. Um escritor, um artista, uma revista Pessoas rigorosas indicam as razões de suas escolhas para demonstrar a exposição de seus argumentos. Elas perseguem um percurso em busca de atingir uma finalidade. Mas, ao contrário, ao se considerar a importância dos acasos, a escrita escapa do objetivo perseguido para se apresentar como momento de um acontecimento. Por diversas razões que nenhuma Razão consegue explicar, e pelo itinerário irregular da nossa existência, certas leituras e apreciações nos atingem disponíveis, por instantes livres ou deliberadamente resistentes, diante das obrigatoriedades do trabalho capitalista eletrônico, veloz, extenso, devorador de energias intelectuais. De repente um livro, uma exposição e uma revista provocam conexões libertárias, reviram o estado do ser e se transformam em escrito para uma revista libertária. Uma socialista procurando realizar sua utopia, andando pela França, divulgando suas idéias a partir de seu opúsculo A União Operária: Flora Tristán. Um artista que abandona uma vida burguesa promissora para ir em busca de um paraíso terrestre, na Polinéisa: Paul Gaugin. Avó e neto compõem o duplo que forma o livro O paraíso na outra esquina. Do presente ao passado destas existências, Mario Vargas Llosa (Mario Vargas Llosa, O paraíso na outra esquina, São Paulo, Editora Arx, 2203, 493 pp.) traça mais que um painel sócio-histórico do século XIX, na Europa, França-Inglaterra, de suas bolsas de valores, cleros, rodas de vanguardistas, burgueses, 36 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... revolucionários e colônias, na América do Sul (Peru) ou na Polinésia (lá onde os franceses irão testar suas bombas atômicas, na segunda metade do século XX). Dois livros em um formam um único duplo indissociável. O autor recorre mais uma vez à alternância para apresentar as ambigüidades das pessoas, dos eventos, dos amores, das paixões, das liberdades. Não há um sentido obrigatório para as pessoas, para a história, para as idéias e atitudes. A experimentação da liberdade mostra como é intensa e difícil vivenciá-la. Não cabe ao narrador nos dar um resultado, mas apresentar equações, e assim Llosa apresenta as vidas de liberdade econtradas por Flora Tristán e Paul Gaugin. Não basta se rebelar contra a condição de objeto de um macho para se fazer uma feminista revolucionária. É preciso arriscar naquele instante que se imaginou encontrar a solução para a vida tranqüila. Flora, filha natural de um homem de família rica de Arequipa, vivendo em Paris, foi para o Peru em busca de reconhecimento. Lá encontrou escravos, um clero rígido, militares patriotas, mulher marechal e solitária noviça — que foge do convento para permanecer presa numa casa da vizinhança —, miseráveis, pobres e humilhações. Reviravoltas de múltiplas intensidades fazem emergir uma revolucionária de inspiração saint-simoniana que pretende criar o novo mundo. Nada mais impedirá a vida revolucionária nem mesmo surpreenderá esta pequena andaluza, como chamavam os franceses as mulheres de vasta cabelereira negra. Toda fronteira pode ser transposta, incluindo o amor por outra mulher: Olympia. Depois de ver Olympia de Manet, definitivamente Gaugin soube que desejava ser pintor. Livre da família, dos filhos, do emprego, do que pudesse prendê-lo, mesmo que fosse à utópica Casa Amarela imaginada por Van 37 4 2003 Gogh para desencadear uma associação libertária de artistas. A arte não estava restrita ao impressionismo francês do ácrata Camille Pisarro ao estonteante holandês. Para Paul Gaugin era mais do que isso. Era preciso encontrar o paraíso, ir habitá-lo, conhecer o mundo dos instintos, o primitivo capaz de abalar a civilização. Polinésia, uma, duas, três mudanças e permanências, com breve regresso a Paris. Nos Mares do Sul, um paraíso, depois de sair do continente para a ilha, Inglaterra. Como a avó lá foi, ficou, descobriu, contestou e se retirou. Os percursos destes dois foram paralelos. O dela acontece no final da primeira metade do século XIX; o dele no final do XIX e início do XX. Ambos querem o paraíso, parecem buscar uma finalidade da qual desistem para experimentarem trajetos inventados. A vida está em fazer acontecer no instante e não na utopia — precisam menos da utopia, da transcendentalidade cristã —, reinventada em heterotopia dos percursos. Revirar os instintos ou a sociedade encontrando outros lugares (Polinésia para ele, as peregrinações pelas cidades para ela) é a condição de cada existência. Saem de Paris, Europa, para outros lugares. Mas é fora dela que as inquietações ganham força: o Peru faz explodir a utópica revolucionária que agita cada cidade francesa, cada revolucionário socialista que encontra, cada trabalhador que comparece às sessões de debate promovidas por ela expondo as condições de exploração e morte anunciada, modificando-se, tornando evidente não haver receituário para a revolução social. Com Flora Tristán convivese com diferentes maneiras de atuar para a nova sociedade, evitando modelos, determinismo e leis para se rever princípios e inventar novas possibilidades. O percurso de Gaugin também pode mudar a qualquer momento. Apenas o pônei que puxa sua pequena carroça, 38 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... nas Ilhas Marquesas, no final da vida, é que tem o caminho de cor. Gaugin vai à Martinica, à Polinésia, chega até a pensar que o verdeiro paraíso estivesse na Ilha do Diabo, a prisão nas Guianas, e delira encomendando-se ao Japão, depois de mais uma aplicação de morfina, à beira da morte, para conter as dores deixadas pela doença impronunciável. Com Gaugin convive-se com diversos amigos em todos os lugares, fortes relacionamentos que lhe dão forças para continuar sua luta anticlerical, sustentar os desacatos às autoridades, e mesmo diante de surpreendentes reviravoltas, como escrever idiotices para um jornal religioso para matar a fome, ainda ser respeitado. Loucos agitadores, neto e avó, homem e mulher, artista e revolucionário se complementam. Flora aprende sobre a revolução escrevendo sobre o mundo que ela vive, fora do pedantismo universitário. Paul pinta o mundo a partir de pessoas livres e abomina a escola obrigatória. Para Flora Tristán, tudo pode ocorrer: bons encontros pessoais com Charles Fourrier e Robert Owen; forte lembrança do irlandês parlamentar Daniel O’Connell, ou mesmo um bem-humorado diálogo com um Marx resmungão numa gráfica. Paul Gaugin gostava de mulheres e de garotas e nadou com Jotefa, um mabu, maneira comum de ser homem-mulher entre os maóri. Pinta com suas cores vibrantes, inverte e encontra outra transcendência, arriscando-se, ultrapassando fronteiras, até inventar sua Casa dos Prazeres, já no final da vida, sem nunca deixar de educar a todos à sua volta com as cartas pornográficas, com sua coleção de cartões reproduzindo obras de arte, suas esculturas e bastões. Flora era avessa ao sexo até conhecer o prazer, única vez, com Olympia. Ele foi um apreciador prazeroso do sexo compartilhado, sabendo conviver com as idas e vindas das companheiras maóri e não suportando as regras pudicas da dinamarquesa com quem 39 4 2003 casara e tivera filhos. Flora não suportou o sexo com um homem comum europeu que sobre ela se atirava babando; Gaugin queria mais da mulher que o oferecido pelo limite de uma camisola de esposa. Flora Tristán preferiu seguir a tarefa de revolucionária a manter os encontros regulares com a bem colocada companheira, casada com um patriota polonês. Paul Gaugin se deixou levar pelas garotas e mulheres polinésias. O paraíso na outra esquina, parte de uma referência à brincadeira infantil de se tocar com olhos fechados em busca do paraíso. Traça possíveis percursos de realizações heterotópicas — lugares em que acontecem as utopias. Mostra como ocorre uma heterotopia de percursos, sem começo nem fim; como a de Flora Tristán, no qual se encontram todos os socialismos da época em que os trabalhadores sabiam, com Proudhon, que a propriedade é um roubo, e se experimentam as diversas possibilidades de coexistência revolucionária e sexual; uma heterotopia de percursos, como a de Paul Gaugin, que encontra as diversas coexistências artísticas, mas também a liberdade de não assumir contrato com ninguém, mas fazer viver arte e sexo, deslizes, voltas e revoltas, com coragem para seguir convulsionando. A sociedade européia melhor e mais justa foi o sonho de Flora Tristán; uma Polinésia que não se livrou mais dos efeitos da colônia francesa e suas instituições racionais e clericais, a de Paul Gaugin, registrada em telas e textos, segundo a imaginação, como história efetiva. De ambas as formas se vive liberdade pela horizontalidade das relações, evitando dogmatismos e certezas. Só há liberdade onde há vida precária. Com Flora Tristán e Paul Gaugin o libertarismo permanece vivo na literatura de Llosa, de maneira análoga à que nos tinha levado em Os cadernos de Dom Rigoberto, na companhia de outro pintor, Egon Schiele. 40 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... Sexo e arte não dão sossego à política. Ao tentar matar Flora Tristán, como o fêz o escroto marido abandonado, não se matam escritos, nem tampouco os valorizam mais; por serem libertários eles permanecerão atuais, e isso gera o desespero e a violência dos autoritários; pode-se não morrer mais de sífilis, mas se morre de aids; morre-se de sexo para regozijo dos conservadores. Resta a obra. No passado a de Gaugin, agora a de Leonilson (Leonilson, São Paulo, Pinacoteca e Galeria Luisa Strina, julho de 2003), por exemplo. Você leu, viu ou tocou em alguma delas? Um pouco está nos livros de Mario Vargas Llosa. Dez anos após a morte de Leonilson suas invençõs estão por aí, dizendo fique firme, seja forte: um heterotópico a espera de um autor. Você prefere ler alguma coisa rápida e contundente? Psiu, pegue PS:SP, (Revista PS:SP, São Paulo, Ateliê Editorial, 2003, 104 pp.) leia o conto de André Sant’Anna, Rush (que também está em Geração 90: os transgressores, São Paulo, Boitempo, 2003, com outro conto arrasador, Deus é bom nº. 6) e conheça muito do que foi a ditadura militar, o fascistinha que vive em cada itinerário recomendado a ser percorrido, até dar de encontro com os conformismos alarmantes descritos por Ivana Arruda Leite (que no op.cit., p. 213, crava: “todo elemento diferenciador configura-se, a princípio, como anomia. Entretanto, se surge uma nova anomia, o que era considerado anômico é imediatamente incorporado ao tipo padrão”), e os desconcertantes diversos contos de autores de São Paulo, do início do século XXI, quando não se fala mais de revolução, mas de reformas, de ajustes, de equilíbrio nas finanças para se chegar à metade do século sem risco de falir o sistema previdenciário como planeja o Estado francês na atualidade, de vanguardas e de literatura como isso ou aquilo. 41 4 2003 A liberdade não anda com identidade no bolso, não pode e nem se deixa apanhar por conceitos. Ela está na invenção da vida libertária, despreendida de preconceitos, dos sonambolismos das sentinelas que guardam as escrituras sagradas dos apóstolos das utopias. Não se aprende somente entre os iguais, mas entre os diferentes libertários, fazendo acontecer. Vivemos uma era em que falar é fácil e ser libertário é quase um desempenho teatral. Engana-se aqui e acolá para convencer o idiota a acreditar no que ouve da boca escovada e esconder o que eles fazem ali e aí. Os que se pretendem mais verdadeiros, autênticos, certos, primorosos, históricos, clássicos ou eternos se livram destas baboseiras ao encontrar Flora Tristán, Paul Gaugin (o insosso antropólogo Buell Quain, que também passou pela Polinésia e se instalou como pesquisador no Brasil do Xingu, pode ser visto como seu oposto, um suicida — o homicida covarde, discordando ligeiramente do contundente poeta Sérgio Cohn que diz ser o suicida um homicida tímido — como mostra Bernardo de Carvalho em Nove noites, São Paulo, Companhia das Letras, 2002), Leonilson e psiu PS:SP. Eles desalojam os bonzinhos e os revolucionários de plantão. Estamos numa época em que a política se higienizou e se transformou em propaganda clean. O tráfego permanece congestionado de reformistas e revolucionários envelhecidos. Não se dê sossego! Outro livro Cosmópolis é um livro de Dom Delillo (São Paulo, Companhia das Letras, 2003) que trata de um dia na vida de um homem bem sucedido, poderoso, que do interior de sua limusine comanda, sai para dar ordens e trepar com mulheres, receber seus asseclas e atuar segundo as 42 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... coisas cotidianas que cercam a vida de um poderoso contemporâneo. De repente, num abril de 2000, durante um dia de trânsito congestionado em Manhattan, tudo está para acontecer, ali onde “as pessoas nas sociedades livres não precisam temer a patologia do Estado”, porque somos nós mesmos que “criamos a nossa histeria”. Aqui, um autor liberal permanece liberal. A literatura a serviço de uma admirável neutralidade na exposição. Impossível ao liberalismo puritano estadunidense imaginar outra coisa: “havia pessoas se aproximando do carro. Quem seriam? Eram manifestantes, anarquistas, fossem o que fossem, uma espécie de teatro de rua, ou adeptos do quebra-quebra geral”(p.89). É show ou ameaça como show. “Um espectro ronda o mundo, gritavam”(p.90). Bem, e agora, qualquer pessoa minimamente informada sabe que não se está entre anarquistas, mas entre marxistas, menos Don Delillo. Ele cria um pastiche misturando a abertura adaptada do Manifesto Comunista com atitudes anarquistas para endereçar ao leitor a constatação que a “cultura do mercado é total” (p.91). Vija Kinski, que neste momento acompanha o milionário Eric Packer no interior da limusine, explica, que os anarquistas protestam contra o cibercapital “que vai mandar gente para a sarjeta, pra estrebuchar e morrer” (p. 91), como se não houvesse passado semelhante, continuidade nas dominações, como se o passado fosse menos cruel. Por fim, antes que a frase o espectro ronda o mundo – o espectro do capitalismo apareça num gigantesco painel eletrônico, ficamos com o seguinte diálogo: “Você sabe em que os anarquistas acreditam./ Sei./ Me diga, disse ela. / A vontade de destruir é um impulso criativo. / Esse é também o princípio básico do pensamento capitalista. Destruição imposta. Velhas indústrias têm de ser impiedosamente 43 4 2003 eliminadas. Novos mercados devem ser disputados à força. Velhos mercados devem ser reexplorados. Destruir o passado, criar o futuro” (p.93). Dessa maneira responde e conclui o que registrava na página anterior afirmando que os anarquistas querem deter o futuro, normalizar o futuro, impedir que ele domine o presente. Não estamos mais no campo do escrito de outro liberal Vargas Llosa (tido como inimigo pela esquerda) que faz da literatura uma experiência de liberdade. Com Delillo, em Cosmópolis, estamos diante de um liberal assustado com as perdas humanistas do passado consagradas pelo mercado, numa época de idealização, apogeu e imaterialidade na sociedade de fluxos econômicos eletrônicos programados. Delillo nos quer fazer crer que haverá purificação, processo análogo a de seu personagem que, auto-centrado, é punido pelo autor com o suicídio involuntário. As mortes por excesso de vida, em O paraíso é ali na esquina, são agora substituídas por um niilismo de butique. Quem ganha muito e perde em demasia não merece respeito. Esta parece ser a moral da fábula em Cosmópolis. Isso não é novo, veio junto com o capitalismo e se consagra na reparação por meio da caridade, levando ao redimensionado apogeu da compaixão. Falta piedade a Eric Packer. É isso que reclama Don Delillo. Não há compaixão em Flora Tristán ou em Paul Gaugin, externa Vargas Llosa; são apenas duas vidas em expansão. A autoria se recusa a pacificar, para tornar incontrolável o que a razão pretende domesticar. Em Vargas Llosa o anarquismo é uma utopia que gera vidas livres; em Don Delillo, com sua autoria para o mercado literário, é mais um caricato exercício de baderna. Delillo com seu puritanismo é desonesto: confunde, propositalmente, marxismo com anarquismo. É um neoliberal. 44 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... Estamos diante de um itinerário previsível, de um trajeto linear da história em aperfeiçoamento, no qual os ricos devem tirar lições, e nós, urgentemente, despertá-los para a caridade, restaurando na atualidade as virtualidades capitalistas. Na escritura de Don Delillo não há heterotopias, apenas a utopia no futuro, rumo à cidade celestial e para lá se chegar é necessário que se faça uma viagem aos infernos. Literatura de itinerário, previsível e fabuladora, condena o leitor a ser seu refém. Diante de autores liberais emergem invenções e conservações da vida, desestabilidades, heterotopias, liberdades contrastadas pela busca de restabelecimentos, utopias e culpas a serem purgadas. Onde sexo era experimentação e revolta contra a ordem, como em Vargas Llosa, agora é pecado, infidelidade e abuso de poder aguardando pelos certeiros castigos. O que foi percurso para Flora Tristán e Paul Gaugin é apenas correção de itinerário para os Eric Packer da Manhattan. Se Delillo pretendia com o episódio dos anarquistas escrever a posteriori sobre a antevisão ao 11 de setembro, isso era uma parte da conta de seu agente literário. Nem um leitor idiota será apanhado por essa liquidação de mercado. Se Delillo é um grande autor ou não isso pouco importa. Deixemo-lo para o juízo da crítica. Delillo foi desonesto com o anarquismo e a desonestidade é uma prática abominada pelo puritanismo. Quem sabe ele não está andando por Times Square em busca de uma nova e boa história que entusiasme seu agente! Em tempo, seu livro é dedicado a Paul Auster. Auster é autor, entre outros livros, de Leviatã (São Paulo, Best Seller, 1993), livro dedicado a Don Delillo. Nele se reconstrói a vida de Benjamim Sachs, um anarquista que teria praticado ou não um ato terrorista. Auster trata da trajetória de Sachs por meio da reconstrução de sua exis- 45 4 2003 tência pelo amigo Peter Aaron. Entre outros temas, trata de escritos de Henry David Thoreau — que inspirou a ecologia de resistência — libertário pacifista estadunidenses que procurou realizar sua heterotopia de percurso. Ao leitor é suficiente, para conhecê-la, recorrer a Walden ou mesmo ao contundente Desobediência civil, escrito em 1849, por Thoreau, na cadeia, depois de se recusar a pagar impostos a um Estado cuja meta é guerrear e destruir outras culturas. Thoreau dizia que o melhor governo é o que governa menos e que há liberdade onde não há governo. Herdeiro do puritanismo transcendental de Emerson, ele inventou heterotopia de percursos ao se instalar em Walden, vivendo em equilíbrio com o que estava ali disposto junto à natureza. Fez da amizade com Ellery Channing uma relação imediata, livre de transcendentalidade, um abrigo precário. Queiram ou não, nem todo puritano é conservador. Thoreau aguarda por um libertário romancista. Heterotopias de percurso Michel Foucault afirmou em seu pequeno artigo “Outros espaços”1, escrito na Tunísia, em 1967, que as heterotopias são encontradas em todas as culturas, apesar de não haver uma heterotopia universal. É o avesso da utopia ocidental que pretende a universalidade, um posicionamento sem lugar real. As heterotopias são contraposicionamentos, lugar real de realização de uma utopia. Em poucas palavras Foucault recupera os princípios que podem ser extraídos das emergenciais heterotopias que nos remetem a lugares da crise (momentos ritualísticos vividos por adolescentes, mulheres e velhos nas sociedades primitivas, mas também que atravessam nossa cultura, como na vida temporária nos colégios, no serviço militar e até nas viagens de 46 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... núpcias das virgens) e na nossa sociedade como heterotopias de desvios como as casas de repouso, clínicas psiquiátricas. De maneira clara e incisiva, como era de praxe, Foucault alerta, desde este primeiro princípio, para o fato das heterotopias não serem passíveis de julgamentos que consagrem o que é bem e mal. São caracterizações de espaços reais que realizam uma utopia. Da perspectiva anarquista o estudo de heterotopias mostram as utopias no presente como sendo o atual dessacralizado que pode ocorrer num local ou num percurso. As heterotopias, dizia Foucault, respondem, no século XX, aos espaços de justaposição, simultaneidade, que conjungam o próximo e o longínqüo, e também o disperso. Há uma tendência, alertava, à dessacralização do espaço privado e público, cultural e útil, familiar e social, de lazer e de trabalho. Foucault aproximando-se dos estudos da sociedade disciplinar, que realizou nos anos setenta, pressente, naquele momento, a transformação da sociedade disciplinar, dos lugares, em sociedade de controle, dos fluxos. A noção de heterotopia ganha, então, dimensão outra a ser ampliada expandindo os seis princípios apontados por ele2. O barco foi, desde a modernidade, quem melhor traduziu as heterotopias, deslocando-se pelos mares até continentes, arquipélagos, ilhas, realizando os sonhos de civilizados. O barco levava para outros espaços, esse contínuo percurso de lugar em lugar, deslizava. São com barcos que Flora Tristán e Paul Gaugin puderam ir a outros espaços redimensionar suas próprias existências (ela foi ao Peru para voltar tornando-se uma socialista incansável; ele seguiu para a Polinésia, voltando a Paris e regressando em definitivo para as Ilhas Marquesas). As heterocronias vividas por Gaugin, não se resumem ao que se tornou, século depois, visitar a 47 4 2003 Polinésia, sob um turismo que oferece “três pequenas semanas de nudez primitiva e eterna aos habitantes das cidades”3. Não era turismo, mas atitude de andarilho, sem lugares pré-determinados para visitar, sem hora marcada para o retorno. Da mesma maneira, Flora Tristán, em Arequipa, viu a tentativa de um belo e sorrateiro golpe na herança familiar se modificar em transformação da pessoa e de seus atos. Ir a determinados lugares, como andarilhos4, é experiência heterotópica, quase um sétimo princípio relativo à época de dessacralização do espaço: não é aqui ou ali que a heterotopia se realiza, mas no percurso levado por barcos no passado ou por astronaves no presente. Packer, em Cosmópolis, fez da limusine seu barco no século XXI de onde comanda atravessando um itinerário conhecido, demarcado por mapas de ruas, avenidas e estreitos becos; fez sua heterotopia de tempo, sua heterocronia, acumulando histórias nos arquivos computacionais aos quais está ligado em rede pelo escritório central e nos fluxos pela dinâmica da economia computacional. Packer expressa também a desacralização do público e do privado, cultural e útil, familiar e social, lazer e trabalho. Do interior da limusine percorre o mundo, os fluxos monetários, o sexo, o casamento, os golpes, a segurança: assiste-se o planeta e se assiste ao planeta. Do exterior emergem atentados ao presidente, revoluções instantâneas de anarquistas, justaposição de espaços que o levam a atuar como figurante numa produção cinematográfica onde reencontra a outrora milionária esposa, agora, em apenas algumas horas, reduzida a uma pobretona pelo próprio marido, que atuando como sabotador, invadiu sua conta e transferiu, num átimo de segundo, com os dedos no teclado, todo o seu dinheiro para uma de suas contas bancárias. O li- 48 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... vro de Delillo nos remete à atualidade das heterotopias pelo reverso dos anarquismos5. A dessacralização do espaço ocorre na sociedade de controle de maneira veloz, segundo os fluxos, levando o trabalhador intelectual a atuar despreendido dos lugares fixos. Navega-se no espaço sideral por meio de fluxos computacionais. Não é mais um barco que nos leva a surpreendentes e até exóticos pontos. As aventuras voltam a ocorrer dando fim à espionagem (ultrapassagem da guerra-fria, o paradigma da espionagem contemporânea). Os novos corsários, como sabotadores nas redes e fluxos, emparedam a polícia e provocam os múltiplos dispositivos de segurança, nomeados segundo os sonhos de proteção divina como os programas anjos da guarda ou localizadores de invasores, e podem num segundo se tranformar em agentes de segurança. Se o anarquismo foi para a sociedade disciplinar uma heterotopia, o que será para a sociedade de controle? Os anarquismos foram inventores de heterotopias intensas, o lado de fora da sociedade disciplinar e inspiradores nas revoltas de 1968. Dali se anunciou um deslocamento dos posicionamentos para os percursos. O que estava esboçado na sociedade disciplinar por artistas e socialistas libertários ganhará agora outra dimensão, a da intensidade diante da velocidade. A sociedade de controle6, gera velocidade, atravessa territórios, fronteiras e faz seus fluxos se perderem no espaço sideral. Na história do espaço, dizia Foucault, passamos pelos conjuntos hierarquizados de lugares (as localizações que nos foram legadas da Idade Média), a extensão infinitamente aberta (do Renascimento) e os posicionamentos dispostos segundo séries, organogramas e grades (da sociedade disciplinar). Agora, os fluxos se fazem e refazem segundo velocidades, programas, 49 4 2003 interfaces, protocolos, acrescentados a hierarquias, extensões, posicionamentos. A velocidade nos leva por transportes materiais (barco, automóvel, avião, foguetes) e imateriais (os programas) a espaços, culturas, lazeres, famílias, sociedades; nos leva à exclusiva sociedade da comunicação, da participação constante: todos pela sociedade democrática que nos convoca a atuar na política aperfeiçoando a democracia, o mais precioso valor universal, um investimento em programas que vão da contenção à anulação das resistências. Mais do que um risco para a democracia, como sublinhou Alexis de Tocqueville, a opinião sobre todas as coisas e a participação ativa por meio de atuação na economia e na política, fazem a vida do rebanho contemporâneo, como alertaram Stirner e Nietzsche, chamando atenção para as religiões da razão. Os anarquismos entram para as redes e seus fluxos eletrônicos como sabotadores de programas e inventores de vida. Os anarquismos vivem na sociedade de controle não mais pelos lugares em que criavam heterotopias, mas por percursos em que inventam experimentos. Eles, enfim, não possuem lugares fixos, contantes e imutáveis, como constataram Proudhon e Bakunin a respeito da existência anarquista. Na sociedade de controle o trabalho intelectual comanda. Não são mais os operários que geram confrontos. Por seus sindicatos e organizações atuam, há muito tempo, desde a sociedade disciplinar, sob a forma de adesão, com sua consciência social-democrata, ajustando-se às negociações com empresários e burocracia estatal. Nas sociedades de controle, quando o trabalho intelectual toma a dianteira diante do chamado trabalho objetivo, exigem-se outras maneiras de atuação nesta cosmópolis. O anarquismo como prática social se desloca para o trabalho intelectual (segundo Max Stirner prá- 50 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... ticas libertárias não distinguem, em nenhuma época, operários, camponeses e intelectuais) reaparecendo, desde 1968, nas universidades e associações culturais, inventando práticas sem pretender ocupar o lugar da resistência (estratégia própria dos adeptos do socialismo autoritário que precisam saber e ter um lugar para comandar as massas). Contesta globalizações, revisita-se e problematiza sua história, a doutrina e seus supostos sentinelas, espectros que no presente pretendem manter intocáveis os fundamentos do Anarquismo. Os anarquismos vivem agora mais uma metamorfose, ao lado daquela em que a biologia saltou para a biologia molecular, reunindo em um código genético o que estava disperso. Foi preciso, salienta Deleuze, “que o trabalho dispersado se reunisse nas máquinas de terceira geração, cibernéticas ou informáticas. Quais seriam as forças em jogo, com as quais as forças do homem estariam então em relação? Não seria mais a elevação ao infinito, nem a finitude, mas um finitoilimitado, se dermos esse nome a toda situação de força em que um número finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinações”7. 1968 não foi acaso, nem determinação material, apenas a expressão da falência dos domínios e saberes disciplinares apanhados pelas irreverências das revoltas juvenis, na luta contra o assujeitamento. Os anarquismos passam a ser problematizados num percurso que vai de Max Stirner aos sabotadores anônimos da Internet; não têm sossego, como nunca deram ou tiveram. Apenas os percursos se desdobraram. Os heterotópicos são ainda crianças revolucionando as certezas adultas, o proselitismo radical, o transvestismo do revolucionário em jovem reacionário vomitando, do seu púlpito portátil, programas radicais. Os anarquistas vivem e sobrevivem para burlar o apriorístico e detonar o 51 4 2003 consagrado. Permanecem libertários evitando hierarquias e um saber que faça superior uma de suas práticas. Nas suas diferenças fortalecem federações ou associações autogestionárias, propiciando caducidades aos mercados. Os anarquismos não são alternativas ao mercado, nem se ajustam a programas mais ou menos verdadeiros. Não dependem de consciência superior e de teorias. Diversificam suas decisões depois de ouvir a muitos. Como dissera Bakunin, o justo, e para um anarquista ainda restará a utopia do justo, só se pode tomar uma decisão, depois de ouvir mais de um. Com essa sugestão livrava a prática libertária dos agenciadores e dos condutores das massas, mas não livrava o anarquista do julgamento por meio de um valor superior determinado antecipadamente. Os anarquistas não estão diponíveis aos programas, às centralidades, às consciências superiores. Daqui decorrem as resistências libertárias na sociedade de controle, em que intensidades se interpõem a velocidades. Os anarquistas foram e são nômades. Antes de qualquer coisa lutam contra o Estado e os estados de autoridade. Os anarquismos não fundam na sociedade espaços de ilusão ou de compensação, mas numa época de comunicação e controle, em que não se carece de pastores para conformar os iracundos, não faltam, também, os pregadores, os herdeiros do Anarquismo, seus sacerdotes da verdade infinita. Ninguém é inocente, mesmo! O libertário contemporâneo vive em percurso. Está na universidade, na associação cultural, nos institutos, nas casas, nas relações amorosas, entre amigos, nas redes de Internet, nos sites, nas ruas, entre empregados e desempregados, ocupados e anarco-punks. De fato, não é mais surpreendente que entre os jovens 52 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... libertários sobressaiam os anarco-punks, vindos das periferias das cosmópolis, do desemprego, da lumpenização, do no future, aqueles em que Proudhon e Bakunin encontraram potencial revolucionário e que os liberais e os socialistas autoritários estigmatizaram como massa de manobra. Não causa espanto, também, que entre os universitários os anarquismos venham se disseminando e evitando ser apanhados pelo academicismo, consagrador de modelos, cópias e semelhanças. Na universidade também os anarquismos surpreendem. Mas tanto quanto incomodam, ajustam-se também ao bom e velho academicismo domesticando os anarquismos e os jovens contestadores em acomodados bolsões do Verdadeiro, que cedo ou tarde lhes darão mais do que um título honorífico. Um terceiro outro espanto, mas não derradeiro, é aquele gerado pelo academicismo ao dissociar o anarquismo em teoria (na universidade, na academia) e prática (nas periferias, em qualquer movimento social). Esse sobressalto é fácil de espantar. Apesar de proclamarem-se anarquistas, seus adeptos ao cindirem teoria e prática, pensam prática sem discurso e anarquismo como teoria — o agente soberano do pensamento, o cetro da verdade, o ilumindor de consciência, o organizador do carnaval, enfim, outra vez, mais uma versão do intérprete das forças inconscientes proclamado por Hegel, o lugar do imperador, do tirano, da vanguarda, do corportivismo, do mesmo dominador, da uniformidade. Isso é anarquismo acadêmico, titulado e honorífico! Isso é nivelar o anarquismo ao marxismo, e este não precisa do anarquista; dele se livrou pela teoria e pela prática dos campos de extermínio. Houve um tempo em que não havia anarco-punks e que se estudava o anarquismo na universidade como identidade, para condená-lo à infância da luta operária, 53 4 2003 coisa ultrapassada. Ainda criança, a anarquia desrespeita os verdadeiros sábios que pretendem consolar a vida dizendo, como uma cartomante, isso é verdadeiro, esse é o futuro! Não há futuro, só presente, com heterotopias que reviram pelo avesso os consolos utópicos dos lugares irreais, para acontecer nestes e naqueles lugares na atualidade, e por este percurso, caminho do andarilho, surpreender os itinerários dos viajantes. Notas Michel Foucault. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Manoel B. da Motta (org.), Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, Ditos e Escritos vol. 3. 1 Os seis princípios, brevemente apresentados, são: 1. toda cultura constitui heterotopias e não há uma heterotopia universal; 2. cada heterotopia que não deixou de ocorrer tem funcionamento preciso e determinado no interior de uma sociedade (cemitério); 3. as heterotopias podem justapor espaços incompatíveis como o teatro e o cinema; 4. heterotopias estão ligadas a recortes de tempo, por exemplo: museus e bibliotecas no século XIX, ou com o que há de mais fútil no tempo, as heterotopias crônicas (feiras, cidades de veraneios...); 5. as heterotopias supõem sistemas de aberturas e fechamentos que as isolam e tornam impermeáveis (caserna e prisão) ou que parecem simples aberturas mas escondem reclusões (os quartos de hóspedes das fazendas brasileiras no século XIX ou os motéis norte-americanos no século XX); 6. heterotopias têm funções de espaço de ilusão (os bordéis) ou de compensação (as colônias dos descobrimentos ou a perfectibilidade dos jesuítas). 2 3 Michel Foucault, op.cit., p. 419. Friedrich Nietzsche, em Humano demasiado humano, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, [638], distinguia o viajante do andarilho enquanto maneira de se atingir ou não a meta final. 4 No volume 2 de Verve procurei deter-me nas heterotopias anarquistas, ainda consideradas segundo os lugares. Edson Passetti, “Heterotopias anarquistas” in Verve, São Paulo, Nu-Sol, 2002, vol. 2, pp. 141-172. 5 Para uma noção da sociedade de controle, ver Gilles Deleuze. Conversações. Rio de Janeiro, 34 Letras, 1991. 6 7 Gilles Deleuze. Foucault. São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 141. 54 verve Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade... RESUMO O livro Paraíso na outra esquina, de Mario Vargas Llosa, instiga a uma viagem sem itinerário que problematiza os anarquismos e a noção de utopia. Ensaio acerca do fazer-pensar heterotopias de percursos que nos mostram a dessacralização dos espaços na sociedade de controle e a atualidade dos anarquismos, entre trabalhadores intelectuais e anarco-punks. Palavras-chave: heterotopia, anarquismos, sociedade de controle. ABSTRACT The book The Way to Paradise, by Mario Vargas Llosa, instigates to a trip without itinerary that discusses anarchisms and the concept of utopia. It is an essay on doing-thinking heterotopias of course that shows the desacralization of spaces in the society of control and the contemporariness of anarchism, among intellectual workers and anarcho-punks. Keywords: heterotopia, anarchisms, society of control. Recebido para publicação em 4 de agosto de 2003 55 4 2003 desvio e diferença no pensamento de foucault: uma transgressão libertária carlos josé martins* A edição comemorativa dos 50 anos da revista Critique foi concebida com o objetivo de festejar este meio século de sua existência através de textos que, dos anos cinqüenta aos oitenta, marcaram época. Mas não pretendendo ser apenas um número antológico, fez acompanhar cada um dos artigos republicados de um inédito escrito em eco. Associando passado e presente em um jogo de vozes em que se misturavam as gerações e no qual se quis colocar este aniversário sob o signo do movimento e do futuro1. A questão que quero colocar é: o texto de Judith Revel “Foucault lecteur de Deleuze: De l’ecart à la différence” que se justapõe a “Theatrum Philosoficum”2 de Michel Foucault se presta aos propósitos anunciados por esta edição comemorativa? A tese da autora tem por objetivo demonstrar que o artigo de Foucault, sobre a obra de um outro (Deleuze) singularmente próximo, como um duplo deslocado de seu Mestre em Filosofia pela Unicamp, doutorando em Filosofia na UFRJ e Professor na UNESP-Rio Claro. * verve, 4: 56-66, 2003 56 verve Desvio e diferença no pensamento de Foucault próprio percurso, marca uma mudança essencial de seu pensamento, quando é pela primeira vez explícita, a problematização da noção de diferença, cujas formulações sucessivas permitem dar conta da evolução do pensamento do filósofo desde o começo dos anos sessenta até os últimos tomos da História da sexualidade3. A autora se permite tomar o texto de 1970 como sendo um divisor de águas na obra de Foucault, que se bifurcaria em duas formulações com relação à pesquisa da diferença: uma, que seria puramente reativa, não conceitual. Para caracterizá-la Revel lança mão de um trecho de uma longa entrevista de Foucault com D. Trombadori realizada em Paris em 19784, na qual este fala sobre os autores que o haviam permitido se liberar em relação ao que dominava sua formação filosófica universitária no começo dos anos cinquenta: Hegel e a fenomenologia. E estes autores são Nietzsche, Blanchot e Bataille. O procedimento mais adequado nos parece ser, não o de recortar nesta entrevista só aquilo que diz respeito à recusa do hegelianismo e da fenomenologia, a sua dimensão negativa, reativa, como quer a autora. Mas também e sobretudo o que permitiu a Foucault construir uma saída e que ele reitera inúmeras vezes, fazendo assim ressaltar a importância da sua dimensão positiva, afirmativa. Depois construindo um ligeiro panorama sobre os primeiros livros da obra, sempre a luz do “Theatrum philosophicum”, a autora caracteriza o que no texto de 1970 seria a primeira figura do assujeitamento da diferença — a diferença como especificação — como sendo o resumo programático de As palavras e as coisas, para logo em seguida acrescentar generalizando para todo o período arqueológico da obra: “o que é então uma arque- 57 4 2003 ologia, senão a tentativa de reencontrar o sistema de distribuição de semelhanças e diferenças no interior de um campo histórico e epistêmico dado”? Para mais a frente pontificar: “pois de fato, toda a aposta de A História da loucura, de As Palavras e as Coisas ou de A Arqueologia do Saber parece precisamente ter este projeto de encontrar o sistema de distribuições categoriais que reparte no interior do mundo pensável as similitudes e as diferenças, os espaços e os gêneros, as identidades e seus contrários”. Desembocando por fim na noção de norma como o grande reino do mensurável, que segundo Revel, significa a prevalência não da possibilidade da diferença, mas da figura do desvio na obra5. Como que recuando em relação ao quadro interpretativo descrito até então, a autora se pergunta: “seria necessário considerar o texto de 1970 como uma exceção no interior de um pensamento a quem teria faltado a diferença e que teria sempre permanecido no interior das ínfimas variações do desvio”? Então, mais uma vez partindo de um certo número de indícios que aparecem no interior do artigo de 1970, parece indicar o contrário. “Esses indícios seriam nomes com os quais Foucault semeia seu artigo sem que eles pertençam ao texto comentado: figuras explícitas às vezes — Klossowski, sob o signo do qual se abre e se conclui o artigo, Sade, Bataille, Artaud —; às vezes dissimuladas atrás de alusões veladas — Mallarmé, Brisset, Nerval, Blanchot, Roussel etc., a quem Foucault consagra uma reflexão que parece completamente independente do resto de seu trabalho. Pois é precisamente nesses textos (...) que podemos ler a tentativa de pensar a diferença contra o desvio, quer dizer a possibilidade de uma saída do conceito e da dialética, e o esboço de um pensamento não categorial.6 58 verve Desvio e diferença no pensamento de Foucault Judith Revel menciona o texto sobre Klossowski7 de 1964 como sendo o primeiro marco de uma pesquisa explícita de um pensamento liberado do conceito: “trata-se, com efeito, de uma linguagem para nós tão essencial quanto aquela de Blanchot e de Bataille, pois que a seu modo ele nos ensina, como o mais grave do pensamento deve encontrar fora da dialética sua leveza iluminada”8. Mas logo em seguida, no entanto, comete a nosso ver um equívoco de interpretação se referindo ao texto de Foucault sobre o pensamento de Bataille quanto à noção de transgressão9, que ela reputa como ainda restando “fechada no círculo — círculo virtuoso da ‘moral arcaica’ — que reconduz a anarquia da diferença a uma relação de determinação invertida, através das três mediações da matriz identitária: contradição, não ser, negativo”10. Mas isto é diametralmente oposto ao que Foucault encontra em Bataille: “a transgressão se abre sobre um mundo cintilante e sempre afirmado, não opõe nada a nada, ela não comporta nada de negativo. Ela toma no coração do limite, a medida desmesurada da distância que se abre nela mesma e desenha o traço fulgurante que a faz ser. Ela afirma o ser limitado que nós somos e o ilimitado no qual ela salta ao abri-lo pela primeira vez à existência”11. Na verdade é em “Préface a la transgression” texto de 1963, que Foucault coloca o primeiro marco de um pensamento não dialético, não categorial e portanto, não do desvio e sim da diferença: “encore foudrait-il alléger ce mot de tout se qui peut rappeler le geste de la coupure, ou l’établissiment d’une séparation ou la mesure d’un écart, et lui laisser seulement ce que en lui peut désigner l’être de la différence”12. Pois então vejamos o que diz Foucault sobre a obra de Bataille em 1970 — mesmo ano de publicação de seu “Theatrum Philosophicum” — na apresentação de suas 59 4 2003 Oeuvres complétes: “Bataille é um dos escritores mais importantes de seu século: Histoire del’oeil (história do olho), Madame Edwarda romperam o fio das narrativas para contar o que nunca havia sido contado; a Somme atheológica (Suma ateológica) introduziu o pensamento no jogo — no jogo arriscado — do limite e da transgressão. L’érotisme (O erotismo) aproximou Sade de nós e o tornou mais difícil. Devemos a Bataille grande parte do momento em que estamos; mas o que falta fazer, pensar e dizer sem dúvida se deve a ele e se deverá por muito tempo”13. A entrevista com Trombadori é toda ela marcada pela presença de Bataille, que Foucault faz pairar sobre toda a sua obra, de maneira mais, ou menos, direta, ora formando uma trindade junto com Nietzsche e Blanchot que possibilitou a liberação em relação à dialética e à fenomenologia, ora através da noção de experiência-limite, explícitamente retomada de Bataille: “eu me esforcei, em particular, em compreender como o homem transformou em objetos de conhecimento certas experiências limites: a loucura, a morte, o crime. É aí onde encontramos os temas de Georges Bataille, mas retomados em uma história coletiva que é aquela do ocidente e de seu saber. Trata-se sempre de experiência limite e de história da verdade”14. Desta maneira pode-se ver como o próprio Foucault estabelece a relação entre sua obra publicada em livro e os seus artigos e entrevistas. O que Deleuze reafirma de maneira brilhante: “na maior parte de seus livros, ele assegura um arquivo bem delimitado, com meios históricos extremamente novos, sobre o hospital geral no século XVII, sobre a clínica no século XVIII, sobre a prisão no século XIX, sobre a subjetividade na grécia antiga, depois do cristianismo. Mas é a metade da sua tarefa. Já que, por preocupação de rigor, por vontade de 60 verve Desvio e diferença no pensamento de Foucault não misturar tudo, por confiança no leitor, ele não formula a outra metade. Ele a formula só explicitamente, nas entrevistas contemporâneas a cada um de seus livros”15. Nos parece que para estar a altura da proposta desta edição especial comemorativa dos 50 anos desta importante revista, é necessário fazer ecoar a singularidade dos pensamentos de Foucault e de Deleuze. Para tanto é preciso dar ao pensamento de George Bataille, um dos fundadores de Critique, o devido papel que este tem junto a obra de Foucault e de toda uma geração de intelectuais franceses. Colocar então, o texto que se comenta sob o signo do movimento e do futuro não pode implicar em imobilizar a pesquisa da diferença na obra de Foucault a uma dependência, ou, a uma dívida com a obra de Deleuze, pois esta já teria se formulado explicitamente pela primeira vez no artigo consagrado a Bataille em edição especial que o homenageava na mesma revista em 1963. Este texto, tão belo quanto denso, já traz inúmeros temas que serão desdobrados e extensamente elaborados posteriormente na obra de Foucault, o que não significa dizer que toda sua obra já estivesse contida nele de forma latente. Parece-nos, porém, que este texto, se nos fosse permitido fazê-lo, aproxima-se muito mais daquilo que Judith Revel denominou como “resumo programático” de sua obra, dando conta da evolução de seu pensamento desde o começo dos anos sessenta até a História da Sexualidade. O texto se abre sob o tema da sexualidade, já enunciado nos termos da crítica da vontade de saber que está por trás de nossa crença na hipótese repressiva, que só aparecerá em 1976 no volume I da História da sexualidade: “cremos de boa vontade que, na experiência con- 61 4 2003 temporânea, a sexualidade encontrou uma verdade de natureza que teria por longo tempo esperado na sombra, e sob diversos disfarces, que só nossa perspicácia positiva nos permite hoje decifrar, antes de ter o direito de aceder enfim à plena luz da linguagem. Nós não liberamos a sexualidade, mas nós a temos, exatamente, levado ao limite: limite de nossa consciência, por que ela dita finalmente a única leitura possível, para nossa consciência, de nosso inconsciente; limite da lei, por que ela aparece como o único conteúdo absolutamente universal do interdito ; limite de nossa linguagem(...) Não é então por ela que nós comunicamos com o mundo ordenado e felizmente profano dos animais; ela é sobretudo cisura: não em torno de nós para nos isolar ou nos designar, mas para traçar o limite em nós e nos desenhar a nós mesmos como limite”16. Foucault faz relação da sexualidade com uma mutação radical em nossa cultura, marcada pela figura emblemática da “morte de Deus” cuja obra de Sade é o soberano testemunho: “o que a partir da sexualidade pode dizer uma linguagem se ela é rigorosa, não é o segredo natural do homem, não é sua calma verdade antropológica, é que ele está sem Deus; a palavra que nós demos à sexualidade é contemporânea em tempo e estrutura àquela pela qual nós anunciamos a nós mesmos que Deus estava morto. A linguagem da sexualidade, na qual Sade, desde que ele pronunciou as primeiras palavras, fez percorrer em um só discurso todo o espaço no qual ele se tornara subitamente o soberano, nos levou até uma noite onde Deus está ausente e onde todos nossos gestos se endereçam a esta ausência em uma profanação que de uma só vez a designa, a conjura, se esgota nela, e se encontra reconduzida por ela a sua pureza vazia de transgressão”17. 62 verve Desvio e diferença no pensamento de Foucault Aqui também as referências à “morte de Deus”, a Sade, a Kant e à crítica da antropologia e da dialética, vão ecoar com a sua presença em As Palavras e as Coisas, com a problematização dos limites da linguagem e as conseqüências colocadas pela emergência da questão do ser da linguagem: “este pensamento o qual tudo até o presente nos desviou, mas como para nos conduzir até o seu retorno, de qual possibilidade nos vem ele, de qual impossibilidade tem ele para nós sua insistência? Podemos dizer sem dúvida que ele nos vem da abertura praticada por Kant na filosofia ocidental, o dia onde ele articulou, sobre um modo ainda bem enigmático, o discurso metafísico e a reflexão sobre os limites de nossa razão. Uma tal abertura, Kant acabou ele mesmo por tornar a fechar dentro da questão antropológica à qual ele tem, no fim das contas, referido toda a interrogação crítica; e sem dúvida a tem por consequência estendido como esfera indefinidamente concedida à metafísica, por que a dialética substituiu à colocação em questão do ser e do limite o jogo da contradição e da totalidade”18. “A possibilidade de um tal pensamento não nos vem, com efeito, em uma linguagem que justamente nos oculta a esta como pensamento e a reconduz até a impossibilidade mesma da linguagem? Até a este limite onde vem em questão o ser da linguagem?”19 E mais uma vez, será evocada a figura de Nietzsche para conjurar nosso sono dogmático: “para nos despertar do sono misturado da dialética e da antropologia foi necessário as figuras nietzschianas do trágico e de Dionisio, da morte de Deus, do martelo do filósofo, do super homem que aproxima a passo de pomba, e do Retorno”20. O que se verifica, portanto, é que este texto transgride em muito os limites de seu tempo, lançando setas 63 4 2003 agudas que viriam ferir o cerne de futuras obras de Foucault, o que só confirma o caráter sagital, extemporâneo e libertário de seu pensamento. Notas 1 Critique cinquante ans 1946-1996, n° 591-592, Août-Septembre 1996. Michel Foucault. “Theatrum Philosophicum” in Critique, nº 282, novembre 1970. 2 3 Judith Revel. “Foucault lecteur de Deleuze: de l’ecart à la différence” in Critique, nº 591-592, Août-Septembre, 1996, pp. 727-735. 4 Michel Foucault. “Colloqui con Foucault”, entretien avec D. Trombadori, Paris, fin 1978, Il Contributo, 4º anné, nº 1, janviers-mars 1980, pp. 23-84; trad. fr. Dits et écrits, sous la direccion de F. Ewald et D. Defert, Paris, Gallimard, 1994, vol. 4, texto nº 281. 5 J. Revel, op. cit., pp. 729-730. 6 Idem, p. 731. Michel Foucault. “La prose d’actéon”, dans La nouvelle revue française, nº 135, mars 1964, repris dans Dits et écrits, op. cit., vol. I, texte nº 21. 7 8 J. Revel, op. cit., p. 731. Michel Foucault. “Préface à la transgression”, Critique “Hommage à Georges Bataille”, nº 195-196, Août-Septembre 1963, in Dits et écrits vol. I, pp. 233250. 9 10 J. Revel, op. cit., pp. 731-2. 11 Michel Foucault. “Préface à la transgression”, op. cit., p. 238. Idem. [Nota dos Editores: “Seria também necessário aliviar essa palavra de tudo o que pode lembrar o gesto do corte, ou o estabelecimento de uma separação ou a medida de um afastamento, e lhe deixar apenas o que nela pode designar o ser da diferença”. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa in Michel Foucault. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Manoel Barros da Motta (org.), Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, Ditos e escritos vol. III, p. 33.] 12 Michel Foucault. “Présentation” a George Bataille, Oeuvres complétes 1970, Dits et écrits vol. II, pp. 25-26. 13 64 verve Desvio e diferença no pensamento de Foucault 14 Michel Foucault, Dits et écrits vol. IV, op. cit., p. 57. Gilles Deleuze. “Qu’est qu’un dispositif (“O que é um dispositivo?”)” in Michel Foucault philosophe: Rencontre Internationale. Paris, Seuil, 1988, p. 192. 15 16 Michel Foucault. “Preface à la transgression” in Dits et écrits vol. I, p. 233-234. 17 Idem, p. 234. 18 Ibidem, p. 239. 19 Ibidem, p. 241. 20 Ibidem, p. 239. 65 4 2003 RESUMO Este artigo visa, a partir da edição comemorativa dos 50 anos da revista Critique, que pretendeu colocar este número sob o signo do movimento e do futuro, cotejar o pensamento de Michel Foucault com relação à pesquisa da diferença em sua obra, tomando como eixo a importância da obra de Georges Bataille, fundador da revista que deu lugar ao pensamento de toda uma geração de intelectuais franceses. Palavras-chave: Michel Foucault, diferença, Gilles Deleuze. ABSTRACT This article aims, from the study of the 50th anniversary issue of the magazine Critique, to face Michel Foucault’s thought concerning the investigation of difference in his work, taking as reference the importance of the work of George Bataille, founder of the magazine that gave opportunity to an entire generation of French intelectuals. Keywords: Michel Foucault, difference, Gilles Deleuze Recebido para publicação em 17 de junho de 2003 66 verve Arte e religião arte e religião max stirner* Hegel trata da arte antes da religião. É esse o lugar que lhe cabe, e aliás lhe pertence mesmo de um ponto de vista histórico. Desde o momento em que o homem pressente que possui um além, que não tem a sua completude no estado animal e natural, mas que deverá tornar-se outro — e para o homem atual, o outro que ele deverá tornar-se é seguramente um ser futuro cuja expectativa só se realizará, para além da sua situação presente, num além; de fato, tal como a adolescência é o futuro e o além do rapaz que nela deverá realizar-se, o homem moral é o futuro da criança que apenas possui a sua inocência —; desde o momento em que o homem desperta para esse pressentimento que o leva a dividirse, a partilhar-se entre aquilo que é e o outro em que deverá tornar-se, ele imediatamente aspira com todos os seus desejos por esse segundo ser, esse Outro, não descansando enquanto não vê a estatura do seu além Século XIX, autor de um único livro e alguns escritos esparsos anarquizantes. Textos dispersos. Lisboa, Via Editora, 1979. Publicado originalmente em 1844, na Gazeta Mensal de Berlim, de Ludwig Buhl. Tradução para o português de J. Bragança de Miranda. * verve, 4: 67-78, 2003 67 4 2003 configurada diante de si. Durante muito tempo permanece prisioneiro da hesitação, tendo somente o sentimento de uma forma luminosa que quer elevar-se das trevas do seu interior, embora ainda falha de forma firme e de contornos bem definidos. Juntamente com o povo que tateia na incerta obscuridade, também o gênio hesita durante algum tempo em busca da forma que configurará o seu pressentimento; mas onde ninguém obteve êxito, ele o consegue — ele dá forma ao seu pressentimento, consegue configurá-lo, cria o ideal. Pois o que é o homem realizado, o destino mais autêntico do homem, cuja visão cada um tende a oferecer a si próprio, senão o homem ideal, o Ideal do homem? Finalmente o artista descobriu a verdadeira palavra, a verdadeira configuração, a visão verdadeira que melhor convém às aspirações de cada um, e ao propô-las criou o Ideal. “Sim, é precisamente isso, essa é a figura da perfeição, a expressão da nossa aspiração, a boa nova (Evangelho) trazida pelos nossos batedores há muito enviados em missão sobre as questões do nosso espírito sedento de apaziguamento”, exclama o povo perante a criação do gênio, caindo em adoração! Sim, em adoração! A necessidade ardente que o homem tem de não ficar só, desdobrando-se, de não estar satisfeito consigo, homem natural, procurando antes o segundo homem, espiritual, é apaziguada pelo homem de gênio que leva a divisão ao seu acabamento. Então, e só então, aliviado, o homem respira fundo, pois finalmente foi resolvida a sua confusão interior, voltada para o exterior. Pela configuração do pressentimento que o atormentava. O homem enfrenta-se consigo mesmo. Esse enfrentamento é ele e não é ele: é o além para onde todos os seus pensamentos e todos os seus sentimentos se escoam sem nunca o alcançarem e é o seu além en- 68 verve Arte e religião volvido no aquém do seu presente e neste inseparavelmente entrelaçado. É o deus do seu interior, mas que se mantém na exterioridade, não podendo nunca apreendêlo ou compreendê-lo. Cheio de desejos, estende os braços, mas o enfrentamento é inacessível; pois se fosse acessível, como permaneceria então o que se “enfrenta”? Como se conservaria a divisão, com todas as suas dores e delícias? Exprimindo essa divisão pelo termo que a designa, como se manteria a religião? A arte cria a divisão opondo o homem ao seu ideal, mas a visão do ideal que perdura até ser reabsorvido e reassimilado pelo olhar que mantém firmemente o seu desejo, chama-se religião. Como esta é contemplação, precisa portanto de uma forma ou de um objeto para se opor, e o homem como ser religioso vai relacionar-se com o ideal manifestado pela criação artística; ele considera como um objeto o seu segundo eu exteriorizado. Esta é a fonte milenar de todas as torturas, de todas as lutas, porque é medonho estar fora de si mesmo, e cada um o está quando é para si mesmo o seu próprio objeto e é impotente para uni-lo inteiramente em si, aniquilando-o enquanto objeto, enquanto enfrentamento que resiste. O mundo religioso vive no sofrimento e na alegria que lhe vem desse objeto, vive na separação do homem relativa a si mesmo e a sua existência espiritual não está submetida à razão mas ao entendimento. A religião é uma questão de entendimento. Tal como o espírito do crente é rígido, em consonância com o objeto que ninguém consegue fazer seu e a que é preciso mesmo submeter-se, também a sua rigidez é friável face a esse objeto: ele é entendimento. “Entendimento frio”? Será que só conheceis esse frio entendimento? Não sabeis que nada é mais ardente, mais heróico que ele? “Censeo Carthaginem esse delendam”, dizia o entendimento de Catão, e a ele se atinha inabalavelmente; “a terra gira 69 4 2003 em volta do sol, enunciava o entendimento de Galileu, mesmo quando o débil velhote, de joelhos, abjurava a verdade, e ao levantar-se repetia “e contudo ela gira em volta do Sol”. Nenhuma força é suficientemente grande para nos desviar do pensamento que dois e dois são quatro, e a imutável palavra do entendimento continua a ser: “Esta é a minha posição, não me é possível alterála”. O assunto de um tal entendimento que só é inabalável porque o seu objeto (2 x 2 = 4, etc....) não se deixa abalar, esse assunto deveria ser a religião? É esse precisamente o caso! A religião também tem o seu objeto inabalável sob cujo poder ela caiu e só o artista que o criou poderia retirar-lhe. É que em si mesma ela não tem gênio. Não existe nenhum gênio religioso e decerto ninguém pretenderá que em religião se deva distinguir entre gênios, homens de talento e pessoas sem talento. Nela todos têm as mesmas aptidões, que não diferem das necessárias para a compreensão do triângulo ou do princípio de Pitágoras. Para isso basta não confundir a religião com a teologia, pois relativamente à segunda nem todos têm as mesmas capacidades, como sucede com as matemáticas superiores e a astronomia que exigem um grau de penetração invulgar. Só o fundador de religião é genial, mas ele é também criador do ideal: esta criação impossibilita qualquer genialidade ulterior. Quando está ligado a um objeto, quando a sua liberdade de movimento é definida precisamente por esse objeto (porque o crente cessaria de sê-lo, se quisesse, devido a uma dúvida decisiva sobre a existência de Deus, ir além do seu objeto, que no fim das contas é insuperável, um pouco à maneira daquele que, acreditando em fantasmas, deixaria de fazê-lo se viesse a duvidar de forma decisiva da sua existência, objeto da sua crença. O crente só constrói “provas da existência de Deus” na medida em que, no interior desta se aloja uma possibilidade de movimento livre para o seu entendi- 70 verve Arte e religião mento e a sua perspicácia), quando, dizia eu, o espírito está dependente de um objeto que procura explicar, perscrutar, sentir, amar, etc..., então não é livre, nem genial, já que a liberdade é a condição da genialidade. Uma piedade genial é tão absurda como uma tecelagem genial. A religião permanece acessível mesmo aos espíritos mais insípidos e qualquer néscio desprovido de imaginação pode ter sempre e terá sempre religião: a sua falta de imaginação não o impedirá de viver dependente. “Mas o amor não é a essência mais autêntica da religião? Não é uma questão de sentimento, em vez de entendimento?” Mesmo que fosse um assunto de coração, seria menos por isso uma questão de entendimento? É um assunto de coração logo que empenha totalmente o meu coração. Isso não exclui o empenho total do meu entendimento, sem que aliás lhe acarrete nada de particularmente bom: o ódio e o ciúme podem igualmente relegar do coração. Na realidade, o amor não é mais que uma questão de entendimento e isso em nada menospreza o seu título de assunto do coração. Mas um assunto da razão é que ele não é, pois no reino da razão há tanto amor como esponsais haverá no céu, segundo as palavras de Cristo. É verdade que se fala de amor irracional. Mas, ou ele é tão irracional que não tem qualquer valor e é portanto tudo menos amor como esses entusiasmos por belas caras a que freqüente e apressadamente se dá o nome de amor, ou então só temporariamente ele se manifesta privado de entendimento explícito, podendo contudo vir a ser uma expressão sua. É o que sucede com o amor da criança: ao princípio só é racional em si, sem discernimento consciente, mas não deixa por isso, desde logo, de ser uma questão de entendimento pois está em conformidade com o da criança, nascendo e crescendo com ela. Durante todo o tempo 71 4 2003 em que a criança não manifesta nenhum traço de entendimento, não manifestará igualmente nenhum traço de amor, como qualquer um poderá ter-se apercebido, por experiência própria — ela comporta-se como um ser pura e simplesmente sensível e na realidade ainda nada experimenta acerca do amor. É só à medida que distingue os objetos — de que os homens fazem parte — que ela transfere a sua afeição para uma pessoa de preferência a outra com o temor ou, se preferir assim, com o respeito começa o seu amor. A criança ama porque uma forma exterior ou objeto, uma presença humana, exerce sobre ela o seu império ou o seu encanto — ela consegue distinguir perfeitamente dos outros seres a significação maternal da sua mãe, mesmo que não saiba exprimi-la de forma racional. Antes de a sua inteligência despertar, a criança não ama e o seu mais profundo abandono amoroso não é mais que compreensão íntima. Qualquer um que tenha sabido observar judiciosamente o amor da criança não deixará de confirmar esta proposição com a sua experiência. Mas qualquer amor, e não somente o da criança, cresce ou desaparece conforme a inteligência que possui do seu objeto (é assim que, talvez de modo desajeitado, mas significativo, se ouve freqüentemente referir os amantes). Basta que surja um mal-entendido para que o amor perca mais ou menos da sua força; aliás, emprega-se precisamente a palavra “mal-entendido” para significar um desacordo, designando-se assim um amor perturbado. Com o engano acerca de um ser humano o amor perde-se irresistivelmente e sem apelo: o mal-entendido é então absoluto e a afeição extingue-se. Ao amor é indispensável um objeto, algo “em frente” e possui esta propriedade em comum com o entendimento que constitui, precisamente, a única e autêntica atividade espiritual do ser religioso. O entendimento 72 verve Arte e religião não pode, de fato deixar de aplicar o seu pensamento a um objeto, permanecendo mergulhado nas suas considerações e no seu fervor. Não há pensamentos livres sem objetos, fundamentados na razão, pensamentos esses que aliás considera como “elucubrações filosóficas” e que como tais condena. Mas se o entendimento precisa de um objeto, a sua eficácia cessa imediatamente logo que sugou a sua substância ao ponto de já não achar nesta matéria para a sua atividade, acabando com ele. Com o fim da sua atividade desaparece o seu interesse pelo assunto, porque esta deverá continuar a ser um mistério, se quiser que ele seja abandonado com amor e lhe consagre todas as suas forças. Também aqui sucede o mesmo que com o amor — o casamento somente continua assegurando um amor durável caso os esposos apareçam um ao outro, dia a dia, sob um aspecto novo e apenas se cada um reconhecer no outro uma fonte inesgotável de vida nova, um mistério qualquer de coisa insondável, de inapreensível. Desde o momento em que já não encontram nada de novo um no outro, então o amor dissolvese irresistivelmente na indiferença e no aborrecimento. Da mesma forma, o entendimento só existe enquanto continuar ativo e logo que já não possa seguir exercendo as suas forças na compreensão de um mistério, visto a obscuridade ter desaparecido, abandona então o objeto tornado inteligível e sem sabor. Quem quiser ser amado por ele deve evitar, à boa maneira da mulher sábia, ofertar-lhe de uma só vez todos os seus atrativos. Ser diferente a cada dia e o amor durará séculos! Falando propriamente, é o mistério que faz de uma questão do entendimento um assunto do coração — o homem inteiro, através do seu entendimento, é o seu assunto, é isto que faz deste último um assunto do coração. 73 4 2003 Portanto, se a arte criou o ideal e deu aos homens um objeto com que o espírito trava um longo combate e, através desse combate, valoriza a pura atividade do entendimento, ela é também a criadora da religião pelo que, num sistema filosófico como é o de Hegel, não poderia ocupar um lugar depois da religião. Não somente os poetas Hesíodo e Homero “deram aos gregos os seus deuses”, mas houve ainda outros que fundaram religiões como artistas, mesmo que repugne dar-lhes esse título por considerá-lo, talvez, demasiado insignificante. A arte é o começo, o Alfa da religião, e também o seu fim, o Omega. Ela é mesmo a sua companheira. Sem a arte e o artista, criador do ideal, a religião não poderia nascer; ela passa através da arte devido a esta retomar incessantemente a sua obra e é também através da arte que ela se conserva, pelo fato desta a renovar constantemente. Quando a arte se manifesta em toda a sua energia cria uma religião, atendo-se ao seu princípio — mas já a filosofia nunca é criadora de religiões porque nunca produz formas visíveis que possam servir de objetos para o entendimento; na generalidade, ela não produz nenhuma religião, e as suas idéias, a que não corresponde nenhuma imagem, não se deixam venerar e adorar num culto religioso. Contrariamente a isto, a arte deixa-se arrastar permanentemente pela sua inclinação de produzir à luz do dia, e na mais abundante profusão, enquanto forma ideal, o que de mais puro e melhor existe no espírito, ou antes, produz mesmo o próprio espírito; ela tende a arrancá-lo da obscuridade em que este se acha envolvido durante todo o tempo em que dormita no coração do sujeito criador e, dando-lhe configuração faz dele um objeto. Frente a esse objeto, a esse Deus, encontra-se o homem e, mesmo o artista cai de joelhos perante a criação do seu espírito. E desde agora, devido à freqüência ao seu objeto e ao combate por si travado, a religião segue um caminho oposto ao 74 verve Arte e religião da arte. Esse objeto que o artista, concentrando toda a força e riqueza da sua interioridade para o fazer aceder ao esplendor de uma figura em harmonia com a necessidade e o desejo mais autênticos de cada um, esse objeto, a religião tenta remetê-lo de novo à interioridade a que ele pertence, tenta torná-lo novamente subjetivo. Ela esforça-se por reconciliar o ideal, ou Deus, com o homem, o sujeito, despojando-o da sua dura objetividade. Deus deveria fazer-se interior (não sou eu, mas Cristo que vive em mim); a divisão tende a suprimir-se, a desmanchar-se e o homem separado do seu ideal esforçase, por seu lado, por alcançá-lo (por alcançar Deus e a sua graça, para finalmente o identificar com o seu próprio eu) e também Deus, ainda separado do homem, procura ganhá-los para o reino dos céus: um e outro procuram-se e completam-se sem se tornarem um — aliás, se o fizessem, a própria religião desapareceria pois subsiste somente devido a esta sua separação. Também a esperança do crente é ver um dia Deus “frente a frente”. A arte é também a companheira da religião pelo fato da interioridade humana, enriquecida pelo combate com o seu objeto, desembocar repentinamente, pela mediação de um gênio, numa nova criação que embeleza e transfigura o objeto anterior, remodelando a sua forma. Uma vida humana raramente decorre sem passar por uma transfiguração semelhante, e isto é preciso agradecê-lo à arte. Finalmente, a arte está também no términus da religião. Com o espírito sereno, ela reafirma a sua pretensão sobre as suas criações e, proclamando-as suas, retira-lhes a sua objetividade, libertando-as do além sob cujo poder tinham caído durante o período religioso. É evidente que não se contenta com embelezá-las, ela as destrói. Ao reivindicar a sua criatura, a religião, 75 4 2003 a arte aparece no seu declínio; ao representar, num tom jocoso, como uma alegre comédia, toda a gravidade da antiga crença por esta ter perdido a seriedade do conteúdo que agora deverá restituir ao jovial poeta, a arte reencontra a si mesma e descobre em si uma nova força criadora. Porque — e não a censuramos pela sua crueldade — quanto mais cruelmente destruidora for na comédia, mais inexoravelmente restaurará aquilo que tem intenção de destruir. Ela cria um novo ideal, um novo objeto e uma nova religião. A arte não pode evitar refazer uma nova religião; as pinturas de Rafael transfiguraram Cristo de tal modo que se tornou o fundamento de uma nova religião, a religião do Cristo da Bíblia “purificado de todos os dogmas humanos”. E assim, o entendimento recomeça a sua infatigável atividade reflexiva, perscrutando o seu novo objeto durante todo o tempo que, através de uma inteligência cada vez mais profunda, dele tenha uma consciência íntima — é com o amor mais total que mergulha no objeto, atento às suas revelações e inspirações. Mas esse entendimento religioso ama tão ardentemente, como odeia aqueles que não ardem no mesmo amor: o ódio religioso é inseparável do amor religioso. Quem não tem o mesmo objeto de crença é um herege e aquele que admite a heresia não está verdadeiramente na plenitude da piedade. Ninguém negaria que Felipe II da Espanha foi um espírito infinitamente mais religioso que José II da Áustria, que Hengstenberg o era autenticamente, mas Hegel não. Na medida em que, na nossa época, o ódio perdeu algo da sua força, também o amor a Deus enfraqueceu, cedendo o passo a um amor humano baseado na moralidade e não na piedade. É que este, demonstra mais solicitude pelo bem da humanidade que por Deus. O tolerante Frederico o Grande, não pode verdadeiramente passar por um modelo de religiosidade, mas sim, perfeitamente, por um elevado modelo de humanidade. 76 verve Arte e religião Quem serve Deus, deve fazê-lo completamente. Aliás, é uma exigência contraditória pedir ao cristão que não levante obstáculos à existência judaica — mesmo o cristão mais cheio de mansuetude nada pode contra isso se não quiser ser indiferente à sua religião; agir de outra maneira seria da sua parte um relapso. Se refletir como um homem de entendimento sofre as conseqüências da sua religião, ele deverá excluir os judeus do direito cristão ou, o que é o mesmo, do direito dos cristãos e isto, sobretudo, relativamente ao Estado. Porque a religião é, para todos aqueles que não a seguem com tibieza, um estado de divisão. É esta, portanto, a posição da arte face à religião. Aquela cria o ideal e acha-se no princípio, a outra encontra no ideal um mistério e torna-se em cada homem religiosidade, tanto mais profunda quanto mais firmemente ele se ligar ao seu objeto e dele dependa. Mas logo que o mistério se esclarece, logo que a objetividade e a estranheza são quebradas e, dessa maneira, é destruída a essência de uma determinada religião, a comédia deve realizar o seu dever e libertar o homem, através da prestação da prova evidente do esvaziamento, ou melhor, do despojamento do seu objeto, da sua antiga crença que o encadeava àquilo que agora está devastado. Em conformidade com essa essência, a comédia apodera-se em todos os domínios daquilo que há de mais sagrado e aproveita-se, por exemplo, do sacrossanto casamento, pois o casamento que ela leva à cena já não é santo, tornou-se uma forma vazia a que não se deve continuar amarrado mais tempo. Mas a própria comédia precede a religião, tal como a arte o faz no seu conjunto: ela limita-se a esvaziar o lugar para receber o novo cuja arte tem intenção de dar forma. Se a arte constitui o objeto e se a religião vive somente pelo encadeamento a esse objeto, a filosofia se 77 4 2003 distingue muito nitidamente tanto de uma como de outra. Esta última não se opõe a um objeto à maneira da religião, nem constitui um, à maneira da arte. Respirando liberdade, pelo contrário, ela estende a sua mão destruidora tanto contra a constituição do objeto, como contra a própria objetividade. A razão, espírito da filosofia, ocupa-se somente de si e não se preocupa com nenhum objeto. Para o filósofo, Deus é tão indiferente como uma pedra: ele é o mais decidido dos ateus. Quando se ocupa de Deus não é para o venerar, mas inversamente para o rejeitar — nela só habita a razão que busca a centelha de razão que se ocultou sob essa forma. É que a razão não faz mais do que buscar a si própria, só se preocupa consigo mesma, apenas a si ama ou, falando mais propriamente, não ama, pois apenas consigo se relaciona e não com qualquer objeto. Eis a razão porque Neander dirigiu com acertado instinto o seu “pereat” ao Deus dos filósofos. Acontece que não nos propusemos a falar aqui de filosofia. Ela situa-se para além do nosso tema. Indicado para publicação em 18 de março de 2002 78 verve já fiz de tudo com as palavras agora eu quero fazer de nada Haroldo de Campos 79 4 2003 a caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?1 thomas mathiesen* Sonho impossível? Muitos anos atrás, viajei de Oslo para Estrasburgo, via Londres, e estava envolvido com um trabalho de pesquisa. Foi nos velhos tempos, quando os aviões voavam baixo, de modo que se podia ver alguma coisa pelo caminho. Eu vi as colinas, as planícies e os contornos das cidades grandes — e até de algumas cidades pequenas — da Europa. O sol estava claro e brilhante e o céu azul. Eu me lembro ter pensado que, durante minha vida, iria experimentar uma Europa sem prisões ou, pelo menos, virtualmente sem prisões. Não foi assim que ocorreu. Nas décadas de 1960 e 1970 um conjunto complexo de fatores políticos criou Abolicionista penal, integrante e fundador da Associação Norueguesa para a Reforma Penal (KROM) e professor de Sociologia do Direito na Universidade de Oslo. * verve, 4: 80-111, 2003 80 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? um contexto favorável para uma crítica radical das prisões. A abolição das prisões — de fato, abolição do sistema de controle criminal, como conhecemos hoje — parecia ser meta possível, pelo menos para alguns de nós. Durante a primeira parte da década de 1970, a população das prisões de vários países ocidentais diminuiu, uma tendência que parecia comprovar nosso ponto de vista. Mas no final da década de 1970 e na de 1980, houve uma mudança. A tendência para a diminuição da população nas prisões ocorrida na primeira parte da década de 1970 terminou como “uma curva em forma de U”. No final desta década, a diminuição foi revertida. Durante a década de 1980, os números dispararam. E continuaram na de 1990, dando ao mundo ocidental o índice mais alto, de todos os tempos, da população carcerária. Entre 1979 e 1993, os índices norte-americanos aumentaram de 230 para 532 por 100.000, os canadenses de 100 para 125, os britânicos de 85 para 95, os noruegueses de 44 para 62, os holandeses de 23 para 52, e assim por diante2. Além disso, os índices têm aumentado vertiginosamente desde 1993. As duas únicas exceções ocidentais ao padrão, que eu conheço, são a antiga Alemanha Ocidental e a Finlândia. O que originalmente foi a Alemanha Ocidental mostrou uma diminuição substancial durante a década de 1980. Mas esta diminuição foi substituída por um aumento igualmente substancial no início da década de 1990. A Finlândia, por sua vez, mostrou uma tendência para o decréscimo, mas no princípio os índices finlandeses eram extremamente altos (106 por 100.000, em 1979) e a situação dos finlandeses é muito especial. Em geral, as prisões estão em crescimento, um crescimento muito rápido. Devemos, então, concluir que a abolição das prisões é “um sonho impossível”? À primeira vista, parece que sim. No mínimo, o presente e o futuro imediato pare- 81 4 2003 cem sombrios. O clima político favorece enormemente a prisão; realmente, o clima político aprova o ressurgimento de algo tão medieval quanto a sentença de morte. Hoje em dia, nos Estados Unidos, não existe mais o político manifestando-se contra a sentença de morte. A ordem do dia é: “três vaciladas e você está fora”. Porém, creio que a conclusão do “sonho impossível” é muito apressada. Em um trecho provocativo sobre as vitórias abolicionistas do passado, o criminologista alemão Sebastian Scheerer lembra-nos que “nunca houve uma transformação social significante na história que não tenha sido considerada irreal, estúpida ou utópica pela grande maioria dos especialistas, mesmo antes do impensável se tornar realidade” 3. Como exemplos, Scheerer menciona a queda do Império Romano e a abolição da escravidão moderna. Argumenta que a escravidão foi bem sucedida, aparentando ser extremamente estável, até o dia em que entrou em colapso, e os abolicionistas que estavam por perto eram considerados, no mínimo, pessoas suspeitas. Igualmente, para a maioria dos observadores, o colapso total do Império Romano na sua época era impensável. Outros exemplos na mesma escala podem ser acrescentados. O principal, talvez o exemplo político mais importante do século XX, seja o das transformações políticas que ocorreram na Europa central e oriental durante 1989 e 1990. Agora estamos em 1997. Volte atrás 10 ou 15 anos. Quem ousaria prever aquelas transformações em 1987, dois a três anos antes que acontecessem ou muito menos 1982, sete ou oito anos antes? Em 1982, o domínio soviético estava solidamente enraizado em toda a Europa Oriental e os distúrbios na Polônia tiveram a resposta resoluta, um ano antes, com a lei marcial. Em 1987, com certeza, a glasnost de Gorbatchov estava caminhando, mas poderíamos prever a total dissolução da União 82 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? Soviética e o completo desmantelamento da cortina de ferro em três anos? Pelo menos eu não, e não o fiz. E quem, nessa questão, ousaria prever, em 1989 e 1990, a decepção com os desfechos econômicos e políticos que vieram logo a seguir, no início da década de 1990? Desfechos como estes são fáceis de “prever” em retrospecto, quando conhecemos as respostas. Mas, na verdade, isso é mais um pós-dizer que uma predição. A história da caça às bruxas na Espanha Tudo isso está muito bom, vocês diriam, mas tratase da queda de impérios inteiros como o Romano e o Soviético ou de imensas instituições econômicas como a escravidão. As experiências de tais contextos se aplicam aos sistemas penais específicos, com seus bem pagos legisladores, juízes e inúmeros administradores dedicados? Vou contar-lhes uma história, um pouco longa, mas eu espero que vocês sejam pacientes comigo. Eu não a inventei, ela é verídica. É a história de como todo um sistema penal, aparentemente sólido e duradouro, em uma escala mundial, com seus legisladores, juízes e milhares de administradores, desintegrou-se e desapareceu em um período de quatro anos. O exemplo é histórico, voltando quase quatrocentos anos. Portanto, eu não estou sugerindo que ele possa ser usado por nós hoje em dia como um modelo completo. As condições atuais são diferentes, em parte muito diferentes, porque temos de pensar, entre outras coisas, nos meios de comunicação de massa modernos e suas influências. Voltarei a eles mais tarde. Mas o exemplo, ao menos, mostra que é possível, sob certas condições, ter um sistema penal desintegrado e de modo extremamente rápido. É importante observar isto neste 83 4 2003 momento de crise, no qual o desencantamento e a noção do “sonho impossível” se espalha pelo menos no que diz respeito às prisões modernas. E é importante num momento em que precisamos rever mais de perto as abolições passadas para aprendermos mais sobre as condições da abolição. Nós sabemos muito mais sobre as condições que sustentam os sistemas do que sobre aquelas que favorecem sua mudança radical. A história é sobre a abolição da caça às bruxas na Espanha — cem anos antes da abolição da caça em outras regiões. A caça às bruxas em todo o território espanhol terminou em 1614. Primeiro volte 150 anos antes de 1614 e coloque-se naquele contexto. Em 1487, quem acreditaria, quando Heinrich Institor Krämer e Jakob Spränger publicaram sua principal obra de teologia e dogma legal sobre bruxas Malleus Maleficarum, que a instituição de caça às bruxas algum dia iria desaparecer, assim como, de fato, a própria Inquisição? Conhecemos a história de dois inquisidores, que apelaram à Roma, onde o Papa Inocêncio VIII residia, para se queixarem sobre a resistência contra a perseguição às bruxas, e de como o mesmo papa, no dia 5 de dezembro de 1484, tinha emitido uma bula papal sobre as bruxas, a Summis Desiderantes Affectibus, na qual havia sanção decisiva da igreja à caça às bruxas. Nós sabemos o resto da história, de como Krämer e Spränger, considerando a bula papal uma autoridade básica, continuaram a escrever, em um período de trinta anos, Malleus Maleficarum, um trabalho que foi publicado em 14 edições, sendo que na segunda edição foi incluída a reimpressão da bula do papa — e como aquele livro tornou-se profundamente importante como uma base legal-teológica para a subseqüente caça às bruxas na Europa. Quem teria pensado, naquela época, que um dia tudo isso iria definhar e desaparecer? 84 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? Como eu disse, isso aconteceu 150 anos antes que a caça desaparecesse e entrasse nos territórios da Espanha. Para um sistema penal, não é um período excessivamente longo, mas suficientemente longo e talvez não se possa esperar das pessoas previsões além desse período. No final do século XV, de vários modos, as condições eram muito diferentes daquelas do início do XVII. Mas, em 1610, na Espanha, quem acreditaria que a caça às bruxas, no Império Espanhol, viraria história em quatro anos, já em 1614? Nas primeiras décadas do século XVII, por exemplo, o norte da Espanha viveu uma febre intensa de bruxas, ondas frenéticas de perseguições. A alegação era de que as bruxas francesas, em grande número, estavam cruzando as fronteiras e criando confusões nas regiões espanholas. Em 1610, um solene auto-de-fé ocorreu em Logroño, onde onze bruxas foram queimadas — algumas in effigi porque tinham sido torturadas até a morte — na presença de 30.000 espectadores. Imaginem a multidão e os símbolos de poder e autoridade! Certamente, a época estava contra as bruxas e a favor das caças. O auto-de-fé de Logroño foi uma das maiores manifestações de caça às bruxas durante muitos anos. Para todos os contemporâneos sensatos, a instituição da caça parecia imutável, sólida e estável. Mas havia dúvidas bem profundas no interior da própria Inquisição, escondidas da observação pública. O que era a Inquisição? Usando uma metáfora, era uma enorme aranha de vigilância e força policial estabelecida primeiro no século XIII como uma força especial para combater a heresia e organizada na Espanha no final do século XV, com milhares de empregados e uma ampla rede de serviços de inteligência, forças policiais secretas, autoridades que sentenciavam e prisões; no início do século XVII, estava organizada em dezenove tribu- 85 4 2003 nais de inquisição, mais tarde vinte e um, distribuídos pelo enorme Império Espanhol. Após o auto-de-fé, em Logroño, na província basca, em 1610, aumentaram as dúvidas entre algumas pessoas. O historiador dinamarquês, Gustav Henningsen, descreveu em detalhes como as dúvidas se expandiram4, mas elas também foram descritas antes, notavelmente, pelo historiador Henry Charles Lea em seu trabalho, em 4 volumes, de 1906, sobre a história da Inquisição Espanhola5. Na seqüência de eventos, havia no tribunal de Logroño, uma figura central, o inquisidor Alonso de Salazar Frías. Ele firmou seu nome e concordou com o auto-de-fé, em 1610. Mas estava muito preocupado com a prova. Quando o perdão era concedido, as denúncias e confissões eram retiradas. Sob qual critério poderia se dar maior legitimidade às confissões? Quando havia um enorme falatório sobre bruxas, elas apareciam. Não poderia o falatório ser tanto causa quanto efeito do aparecimento das bruxas? E não poderiam as confissões conter ilusões? Percebam que isso poderia ir de mal a pior para o indivíduo porque implicaria uma categorização legal e correta — e Salazar era um excelente advogado — seria a heresia ao invés da bruxaria, e a heresia, não a bruxaria folclórica, era a prioridade da Inquisição. Mas pelo menos, a pessoa não seria julgada como bruxa. Em termos organizacionais, quando os membros do tribunal local concordavam, la Suprema — que era a autoridade central do Santo Ofício em Madri — raramente intervinha. Mas, quando havia desacordo, podia resultar numa intensa comunicação com a autoridade central. E Henningsen e Lea descrevem como, de fato, Salazar começou a discordar do seu tribunal. Naquele 86 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? tempo, a comunicação era lenta, os desacordos demoravam e as dúvidas também cresciam em outros distritos da vasta instituição. No meu modo de dizer, uma batalha importante, do tipo normativo e cultural, tomou lugar em várias regiões da Inquisição. Finalmente, la Suprema em Madri dividiu-se completamente. O que vem a seguir é um ponto importante: la Suprema tinha uma longa tradição de moderação ao sentenciar as bruxas — como, de fato, a Inquisição italiana fez: as principais perseguições na Europa, predominantemente, ocorriam nas áreas fora da jurisdição da Inquisição. De fato, la Suprema tinha a prática de perdoar freqüentemente aqueles sentenciados à fogueira pelos tribunais locais. As posições liberais tinham voz no tribunal de la Suprema. Em outras palavras, estavam envolvidos dois níveis: a suprema autoridade que deu o apoio e o nível executivo que iniciou a mudança. Reconhecemos este padrão das abolições parciais em nossa própria época, como o famoso fechamento das escolas de treinamento, em Massachusetts, na década de 70, por Jerome Miller. Sua revolta teve o apoio do Governador do Estado, o qual funcionou como um escudo protetor enquanto ele prosseguia com o fechamento6. Há também outra semelhança: em ambos os casos, das bruxas no início do século XVII e das escolas de treinamento da década de 1970, a questão era não a reforma, mas a abolição, rápida e direta, como um golpe. Para encurtar a história, la Suprema autorizou Salazar e seus auxiliares a empreender o que hoje chamaríamos da principal investigação sobre as bruxas bascas — nos termos deles, uma visita ampla com um Edital da Indulgência para todos os membros da seita do diabo — entrevistando mais de 1.800 pessoas na região e resultando em 11.200 páginas de anotações sobre o interrogatório. Eu acredito ser o primeiro grande estudo 87 4 2003 empírico sobre bruxas. O achado mais importante do estudo é que não houve qualquer prova de bruxaria. Deixe-me ser exato: Salazar parece ter acreditado que as bruxas existiam; o nódulo para ele era a questão intelectual, uma prova decisiva. E ele achou que a melhor arma contra o aparecimento de um grande número de bruxas, de fato, era o silêncio: “Eu deduzo”, ele disse, na tradução de Lea, “que a importância do silêncio e da reserva da experiência mostrou que não havia bruxas nem enfeitiçados até que se começou falar e escrever sobre eles.”7. No final, la Suprema decidiu seguir as recomendações de Salazar para suspender os casos de bruxas. Isso foi feito como os advogados fariam: la Suprema solicitou-lhe para preparar um novo conjunto de regulamentações para lidar com as bruxas. Na prática, as novas regulamentações, se adotadas, colocariam um fim aos casos e, de fato, elas foram adotadas, praticamente sem mudanças, pela la Suprema, em 1614. Um inquisidor liberal com apoio superior tornou-se instrumento na subseqüente abolição da caça e queima das bruxas, curiosamente uma reminiscência aos profissionais envolvidos nas reduções das prisões e nas abolições dos tempos mais modernos. O nível superior assim como o dos praticantes eram envolvidos. E minha interpretação é que uma mudança cultural importante aconteceu no interior da Inquisição e a atravessou. Em primeiro lugar, houve uma certa preparação cultural, um tipo de “moderação cultural” contra pelo menos a maioria dos tipos de caça. Esta “moderação cultural”, eu diria, tornou-se a definição autorizada da situação e foi seguida pela abolição a despeito do fato de que no ambiente havia o que hoje poderíamos chamar de um pânico moral em relação às bruxas. 88 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? A irracionalidade da prisão Para um abolicionista, é animador mostrar que a abolição de sistemas penais inteiros, de fato, é possível. Mas, como eu disse, hoje em dia, as condições são completamente diferentes. Se a Inquisição quisesse, ela poderia ter se voltado completamente contra o povo. E completamente contra os meios de comunicação de massa, que não existiam — exceto pelos livros publicados. A mudança cultural na Inquisição, vitória de uma parte de uma cultura alternativa e a compreensão dentro do sistema, foi, portanto, uma condição suficiente para a abolição. Hoje em dia, uma mudança cultural no sistema penal e uma mudança na direção de um senso de responsabilidade pessoal por parte daqueles que lá trabalham é muito necessária. Mas não seria uma condição suficientemente plena porque o sistema penal atual, elaborado por políticos, é muito mais dependente no contexto geral daquilo que chamamos de “opinião pública” e meios de comunicação de massa. Retornarei a este ponto importante mais tarde. Meu ponto de partida é esse: a prisão, sobre a qual eu restrinjo minha análise, é “um gigante sobre um solo de barro”. A expressão é traduzida do norueguês e quer dizer um sistema aparentemente sólido com pilares deficientes, muito semelhante à escravidão, ao Império Romano e à legislação Soviética em seus estágios finais. O calcanhar de Aquiles, o solo de barro da prisão é sua total irracionalidade em termos de seus próprios objetivos estabelecidos, um pouco como as caças às bruxas sem provas. Em termos de seus próprios objetivos, a prisão não contribui em nada para nossa sociedade e nosso modo de vida. Relatórios após relatórios, estudos após 89 4 2003 estudos, às dezenas, centenas e milhares, claramente mostram isso. Como vocês bem sabem, a prisão tem cinco objetivos estabelecidos que são ou têm sido usados como argumentos para o encarceramento. Primeiro, há o argumento da reabilitação. Entretanto, nas décadas passadas a criminologia e a sociologia produziram grande número de estudos empíricos sólidos mostrando, claramente, que o uso do aprisionamento não reabilita o infrator encarcerado. Estou pensando nos estudos experimentais e quase experimentais de uma vasta gama de programas de reabilitação, assim como alguns estudos sobre organização e cultura das prisões — os últimos mostrando que, de fato, a prisão é contra-produtiva pelo menos no que concerne à reabilitação. O tempo me impede de detalhar esses estudos; de qualquer modo, muitos de vocês estão familiarizados com eles. Citarei, resumidamente, uma afirmação reveladora feita há mais de quarenta anos por Lloyd W. McCorkle, um experiente diretor da prisão Estadual New Jersey, em Trenton, Estados Unidos, e Richard R. Korn, diretor de educação e aconselhamento na mesma prisão. “De muitas formas, o sistema social de reclusão pode ser visto como fornecedor de um modo de vida que permite ao prisioneiro evitar os efeitos psicológicos devastadores de internalizar e converter a rejeição social em auto-rejeição. De fato, isso permite ao prisioneiro rejeitar seus rejeitadores ao invés de rejeitar a si próprio”8. Essa colocação resume bem os resultados de milhares de estudos e centenas de meta-estudos de reabilitação que, de fato, seguiram, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, o artigo que eles escreveram. Segundo, há o argumento da intimidação do indivíduo — a noção de que o transgressor que é trazido para 90 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? a prisão ficará assustado e afastado do crime por ter sido levado para lá. Aqui posso ser breve. Em um considerável grau, os mesmos argumentos e estudos vão contra a noção da intimidação do indivíduo transgressor. O sistema social de reclusão e sua subcultura são especialmente importantes. Terceiro, há o argumento da prevenção geral, isto é, dos efeitos da intimidação, da educação ou formação de hábitos na sociedade mais ampla em outros que não foram punidos ou não estão para ser punidos no momento. Percebam que eu estou aqui falando do efeito preventivo da prisão. A hipótese da prevenção geral é menos sensível à pesquisa empírica, mas uma afirmação conservadora seria de que o efeito é no mínimo incerto e certamente menos significativo na determinação do desenvolvimento do crime na sociedade do que as características da política econômica e social. Uma afirmação um tanto arrojada — mas não muito — diria que temos um grande número de estudos sugerindo que o efeito preventivo da prisão é muito modesto ou mesmo mínimo em grupos populacionais nos quais poderíamos desejar que o efeito fosse forte — grupos predispostos ao crime e de constantes infratores da lei — enquanto, talvez, seja mais forte em grupos que por outras razões são de qualquer modo obedientes à lei. Esta é uma forma de resumir os estudos econométricos, estudos históricos antes e após as mudanças legais, estudos longitudinais de vários sistemas legais, entrevistas e questionários dos efeitos das sanções esperadas e assim por diante. Notavelmente, e o mais importante no que diz respeito à utilidade da prisão, é também ser um meio para resumir o efeito da severidade esperada em comparação com a probabilidade esperada da punição. Enquanto esta probabilidade — risco esperado de detenção — parece mostrar um efeito muito modesto em alguns 91 4 2003 contextos, a severidade esperada da punição, que é o âmago da questão da prisão, de fato, não mostra efeito nenhum. Esse resultado aparece em um grande número de estudos. Especificamente mencionarei um deles — o do criminologista alemão Karl Schumann e seus colaboradores, que realizaram um grande estudo sobre a prevenção geral entre os jovens alemães9. Inicialmente, foi um estudo sobre a esperada severidade da punição. Foram estudados seus efeitos sobre o comportamento criminal registrado, assim como o auto-relatado. O estudo mostrou que a esperada severidade da punição, de fato, não surtia nenhum efeito sobre a atividade criminal da juventude, nem, aliás, com a expectativa da prisão do jovem. O que os pesquisadores encontraram foi um certo efeito da experiência subjetiva do risco da detenção, mas que não incidia sobre a “performance” de crimes sérios, nem mesmo sobre a de todos os tipos de crimes, mas somente em alguns tipos insignificantes, como roubo de lojas, assaltos físicos triviais, uso de metrô sem pagar e semelhantes. E mesmo aqui, o efeito medido em análise multivariada, para a Alemanha, foi caracterizado como “rechts bescheiden”, bem modesto. Acrescentarei a isso que os jovens a serem detidos raramente cometem estes tipos de crimes. Eles tendem a praticar os que não apresentaram efeito preventivo10. Vocês podem perguntar: por que esses resultados? Deixe-me lembrar, resumidamente, que a ineficiência preventiva da prisão se constitui em um problema de comunicação. Nesse contexto, a punição é um modo pelo qual o Estado tenta comunicar uma mensagem, especialmente a grupos particularmente vulneráveis na sociedade. Como um método de comunicação, é extremamente rude. A própria mensagem é difícil de ser transmitida, devido à incomensurabilidade da ação e da reação. A mensagem é filtrada e deturpada durante o 92 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? processo e é confrontada com uma resposta cultural nos grupos que a desconsidera, acabando por neutralizá-la. Acrescentem a isso o profundo problema moral enraizado na punição de algumas pessoas com o objetivo de prevenir outros de agir de forma semelhante — um problema moral que não é perdido nos grupos alvo importantes — e vocês terão o quadro geral. O que é surpreendente não é o efeito mínimo, mas a persistente crença política em tal método de comunicação primário. Quarto, há o argumento da interdição dos transgressores. Tradicionalmente, o argumento tem adquirido duas formas: a da interdição seletiva e a da interdição coletiva. A interdição coletiva implica uso da prisão contra categorias inteiras de prováveis reincidentes. Você simplesmente os liquida trancafiando-os e jogando fora a chave. Em grande parte, esta é a política presente nos Estados Unidos. A questão não é reabilitar os transgressores e nem prevenir outros de cometerem atos similares, mas simplesmente tirar os transgressores do circuito social. A interdição coletiva tem sido intensamente estudada tanto na Escandinávia quanto nos Estados Unidos. Mesmo se aceitássemos a sua moralidade, os resultados seriam, usando palavras amenas, muito modestos. Mais uma vez, mencionarei um relato entre inúmeros, o do “Painel de Pesquisa na Carreira Criminal”, patrocinado pelo Instituto Nacional de Justiça, publicado em dois volumes, em 198611. O Painel abordou, de perto, a interdição coletiva. Entre 1973 e 1982, nos Estados Unidos, a quantidade de prisões estaduais e federais praticamente dobrou. Durante o mesmo período, a taxa de crime não diminuiu. Cresceu em 29%, certamente um resultado sombrio. As estimativas disponíveis no Painel mostraram que, dependendo da freqüência de transgressão do indivíduo, a taxa poderia ser ape- 93 4 2003 nas 10 a 20% maior se não ocorresse quase 100% de aumento nos número de prisões. Isto poderia ser considerado um ganho modesto, mas contém três defeitos básicos. É um ganho extremamente custoso, por muito pouco, em vista do aumento dramático da população carcerária. Além disso, muito rapidamente alcança-se um ponto de retorno reduzido. Reduções futuras, eu cito diretamente do relatório, iriam “requerer, pelo menos, de 10 a 20% de aumento nas populações encarceradas para 1% de redução no crime”12. Finalmente, e mais importante, a geração atual de delinqüentes não será a última. Novas gerações aparecerão nas ruas. Isso significa que a redução da taxa de criminalidade, se houver, logo será apagada. Certamente, a interdição coletiva poderia ser renovada para as novas gerações. Mas vocês nunca as alcançariam por causa da mudança sempre presente em novas gerações. Ao mesmo tempo, aqueles que já estão encarcerados teriam de permanecer trancafiados por longos períodos, devido a sua presumida persistência. Em suma, vocês terminariam com uma quantidade enorme de prisioneiros e com efeito negligenciável. Foi exatamente isso que aconteceu nos Estados Unidos e em outros países, como a Polônia, no passado recente. Há também a interdição seletiva — a predição individual de transgressores violentos de alto risco com base nos critérios de antecedentes específicos. Inúmeros estudos mostraram que a predição deste tipo é extremamente difícil e que as chamadas taxas de falso-positivo e falso-negativo — isto é, os erros de predição — são muito altas. Como alguns proponentes da interdição seletiva — participantes em grande escala dos estudos de Rand sobre interdição seletiva durante a década de 1980 — formularam: “apesar disso, agora não podemos 94 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? recomendar basear uma política de sentenciamento nessas conclusões”13. Quinto, e último, acrescentem a esta justiça equilibrada — a resposta neo-clássica ao crime através da prisão e a lista estará completa. Embora admita-se que a prisão não previna nada, supõe-se que ela possa balancear o ato repreensível, equalizando os pesos da justiça. Mas, ela pode? Para falar resumidamente, ela não pode balancear o ato com precisão, porque de um lado temos a transgressão criminal e, de outro, o tempo; são, portanto, entidades incomensuráveis e, acima de tudo, a balança de punição não pode ser “ancorada” com segurança14. Por essas razões, a escala de punições é construída sobre o barro e muda, rapidamente, de acordo com os ventos políticos. Hoje em dia vemos isso acontecer. Pelos mesmos motivos, a balança de punições dá à vítima pouca satisfação. O que é decisivo, mais do que a busca por justiça, é o vento político. O segredo da irracionalidade da prisão A prisão é um sistema profundamente irracional em termos de seus próprios objetivos estabelecidos. Entretanto, a dificuldade é que este seu conhecimento, em grande parte, é secreto. Se as pessoas realmente soubessem o quão fragilmente a prisão, assim como as outras partes do sistema de controle criminal, as protegem — de fato, se elas soubessem como a prisão somente cria uma sociedade mais perigosa por produzir pessoas mais perigosas —, um clima para o desmantelamento das prisões deveria, necessariamente, começar já. Porque as pessoas, em contraste com as prisões, são racionais nesse assunto. Mas a informação fria e seca não é suficiente; a falha das prisões deveria ser “sentida” em direção a um nível 95 4 2003 emocional mais profundo e, assim fazer parte de nossa definição cultural sobre a situação. A direção desse novo clima, é com certeza, difícil de predizer, mas provavelmente implicaria numa ênfase renovada no apoio real às vitimas, assim como nos recursos e serviços sociais ao transgressor, uma vez que a solução altamente repressiva falhou completamente. Os políticos que criaram, mantiveram e, de fato, expandiram o sistema atual, teriam de adaptar-se, rapidamente, a fim de não perder os eleitores, sua principal preocupação. Eu procuro — e isso é apenas uma lista resumida — o apoio às vítimas de diversas formas: compensação econômica (do Estado) quando isso for pertinente, um sistema de seguro simplificado, apoio simbólico em situações de luto e pesar, abrigos para onde levar as pessoas quando necessitarem de proteção, centros de apoio para mulheres espancadas, solução de conflitos quando isso for possível, e assim por diante. As vítimas não recebem absolutamente nada do sistema atual, nem da aceleração e ampliação do sistema presente no entanto poderiam receber muito se houvesse a mudança de direção do sistema na forma como sugeri. Uma idéia e um princípio fundamental seria guinar o sistema em 180 graus: ao invés de aumentar a punição do transgressor de acordo com a gravidade da transgressão, o que é básico no sistema atual, eu proporia o aumento de apoio à vítima de acordo com a gravidade da transgressão. Em outras palavras, não uma escala de punições para os transgressores, mas uma escala de apoio às vítimas. Certamente, esta seria uma mudança radical, mas que seria racional do ponto de vista das vítimas e, provavelmente, também, útil para superar a resistência ao desmantelamento do sistema atual. 96 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? Eu procuro recursos para o transgressor na forma de uma série de medidas. Em termos gerais, a guerra contra o crime deveria tornar-se uma guerra contra a pobreza. Mais uma vez, eu apenas estou lhes dando uma pequena lista; muitos detalhes deveriam ser definidos: moradias decentes, programas de trabalho, de educação e tratamento mas não baseados na força e — mais importante — uma mudança em nossa política sobre drogas. Legalizando as drogas e tornando-as, assim como a metadona, disponíveis sob condições sanitárias e supervisionadas, neutralizaria o mercado ilegal e reduziria drasticamente a quantidade de crimes relacionados às drogas. Por si mesma, percorreria um longo caminho em direção ao esvaziamento de nossas prisões. Uma mudança em nossa política sobre drogas também atingiria o centro do crime organizado da droga, que é dependente das forças do mercado. Em outras palavras, efetivamente ameaçaria e liquidaria o poder dos figurões que hoje em dia não terminam na prisão, porque ela está sistematicamente reservada para os pobres. Vocês podem perguntar: Quem pagará por isso? A resposta é: as prisões. O desmantelamento das prisões daria somas vultuosas de dinheiro, bilhões e bilhões de dólares americanos, que poderiam ser gastos, generosamente, com as vítimas e os transgressores. Temos que admitir talvez a possibilidade de que encarcerar alguns indivíduos permaneça. A forma de se tratar deles deveria ser completamente diferente do que acontece hoje em nossas prisões. Uma forma disto ser assegurado, contra o aumento de seu número devido a uma mudança de critérios, seria estabelecer um limite absoluto para o número de celas fechadas para tais pessoas a ser aceito em nossa sociedade. 97 4 2003 A solicitação de um limite para o espaço da prisão também poderia ser uma arma útil em nossa luta atual contra ela. Em um momento de aceleração dramática deveria ser cuidadosamente considerada como uma estratégia. Mas, excetuando-se a solicitação por um teto, nos poucos minutos anteriores eu expressamente falei sobre o futuro. Voltemos ao presente e para onde estamos — na dificuldade do primeiro estágio: as pessoas não sabem quão irracionais são nossas prisões. As pessoas são levadas a acreditar que as prisões funcionam. A irracionalidade verdadeira da prisão é um dos segredos melhor guardados em nossa sociedade. Se o segredo fosse revelado, destruiria as raízes do sistema atual e implicaria o começo de sua ruína. Três “camadas” funcionam como escudos protetores para a prisão, mantendo a irracionalidade da prisão um segredo. A primeira camada, a mais central, consiste nos administradores, no sentido mais amplo da palavra, do sistema de controle criminal. Os administradores conhecem, sobejamente, o estado sombrio e a falência total das prisões, mas permanecem em silêncio. Três processos contribuem para isto. Os administradores silenciam porque foram cooptados pelo sistema; tornaram-se uma parte e uma parcela dele. A cooptação ocorre através de um processo sutil no qual a evidência contra o sistema — tão abundante no contexto carcerário — é seletivamente eliminada, relegada a segundo plano e não levada em consideração. Quando lembrados disso, os que representam a evidência em vez da própria evidência se tornam alvo de ataque: são definidos e rotulados como teóricos, sonhadores, revolucionários, enquanto a evidência em si não é focalizada, muito menos desafiada. 98 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? Em segundo lugar, os administradores silenciam em lealdade ao sistema. Existe uma cultura de lealdade assim como havia uma cultura de lealdade aos líderes alemães entre a população durante a última parte da Segunda Guerra Mundial. Além disso, o sistema é considerado legal, o que contribui para o espírito de lealdade. Finalmente, os administradores são silenciados pela disciplina. Os processos de disciplina social que operam continuamente na prisão e no contexto penal, variam de um contínuo de medidas ocultas bem sutis a medidas abertas e bruscas. As medidas ocultas e sutis, por exemplo, incluem as várias reuniões onde os meios e os objetivos têm a autoridade das certezas, deste modo inculcando um pulso mais forte, insegurança e silêncio entre aqueles que seriam oponentes. As medidas abertas e bruscas incluem reprimendas e até ameaça de perda de emprego. A segunda camada, ao redor da margem ou borda do sistema carcerário, compreende os intelectuais e os pesquisadores — cientistas sociais no sentido amplo da palavra. Eles também estão silenciosos ou, no melhor dos casos, sussurrando seus protestos. A posição dos inúmeros pesquisadores pode ser vista dentro de um contexto particular. O sociólogo francês Pierre Bourdieu usou o sufixo grego doxa para designar o que é inquestionável e tomado por certo numa cultura. Doxa é algo que você não discute ou debate, porque é bom por princípio e assim sendo é indiscutível. Cada cultura tem sua doxa. Em torno dela, há duas esferas de debate: o ortodoxo e o heterodoxo. No debate ortodoxo, os detalhes são discutidos, mas as premissas básicas do sistema permanecem indiscutíveis e dóxicas. No debate heterodoxo, questões fundamentais sobre as premis- 99 4 2003 sas básicas do sistema são levantadas. A doxa tenta limitar o debate heterodoxo e, se possível, silenciá-lo completamente. Se isso não é alcançado, são feitas tentativas para converter o debate heterodoxo em ortodoxo, um debate sobre detalhes superficiais. Se os oponentes obstinadamente insistem em ser heterodoxos e se o sistema político não é democrático, eles são exterminados como hereges. Nas sociedades democráticas eles não são exterminados mas relegados a encontros, organizações, e jornais periféricos e outros contextos similares. Apenas ocasionalmente são autorizados a entrar nas reuniões e na mídia central, freqüentemente como álibis radicais do sistema. A categoria mais ampla de intelectuais e pesquisadores, bem informados sobre os resultados terríveis das pesquisas das prisões, hoje estão mudando da heterodoxia para ortodoxia e mesmo para a própria doxa. No clima da década de 1970, com a crítica radical das instituições em geral e as prisões em particular, os pesquisadores que conduziram a pesquisa sobre a reabilitação foram muito heterodoxos: eles viram e definiram a pesquisa e os achados como devastadores para o sistema carcerário. Hoje, por exemplo, aqueles que pesquisam a interdição seletiva e a predição de violência, sutilmente mudam os padrões. Eles dizem que as correlações entre os índices sociais e a violência futura, sem dúvida, são baixos e que as porcentagens de falso-negativo e falso-positivo são altas. Mas, eles seguem dizendo que assim também são todas as correlações das ciências médica, psicológica e social. Agora, as correlações de 0,35 com medidas novas e melhoradas, podem crescer para 0,37 ou talvez até alcançar 0,40. Isto, presumivelmente, torna os resultados aceitáveis. Assim, os pesquisadores atuais, em contraste com aqueles de 1970, entraram no debate ortodoxo ou mesmo no 100 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? apoio ao sistema, na doxa. Novamente, a mudança do ponto de vista de parte dos pesquisadores é contextualmente produzida: hoje em dia, o debate público geral é drasticamente diferente daquele da década de 1970. Os pesquisadores também seguiram o mesmo caminho15. Isso nos leva para a terceira camada. Esta, pelas razões que delinearei em um minuto, é a mais importante. Existe ao longo da extremidade ou fronteira do sistema carcerário: é formada pelos meios de comunicação de massa enquanto uma esfera ou espaço público que consegue conter tudo na sociedade moderna ocidentalizada. A informação fornecida pelo sistema carcerário, é sistematicamente filtrada e distorcida pelos meios de comunicação de massa. Isso tem ocorrido de modo crescente durante nosso século. Mas um salto qualitativo significante ocorreu com o advento da televisão após a Segunda Guerra Mundial. Um outro salto qualitativo tremendo ocorreu aproximadamente da metade da década de 1970 em diante, com muitos avanços tecnológicos engenhosos que aconteceram no final do século XX, fazendo com que a televisão alcançasse todos os cantos do mundo. A questão é que com o advento e a aceleração do desenvolvimento da televisão, entramos em algo que é equivalente a uma nova religião. Quando o automóvel chegou, na virada do século, muitas pessoas acreditaram que fosse um cavalo e uma charrete, apenas sem o cavalo. Reminiscentes desta época, ainda falamos em “potência de cavalos”. Mas não era um cavalo e uma charrete sem cavalo, era algo completamente novo, que continha as sementes de uma sociedade completamente diferente. O mesmo aconteceu com a televisão. Quando ela chegou, algumas pessoas acreditaram que era apenas um jornal em movimento. Mas não foi somente isso; 101 4 2003 foi um meio inteiramente novo criando uma sociedade completamente nova e, poderia ser acrescentado, um meio novo que fundamentalmente influenciou a forma e o conteúdo dos antigos meios. A questão da influência da televisão em atitudes específicas e no padrão comportamental é muito discutida e estudada, mas é relativamente insignificante. A questão importante é o “paradigma” total ou a “Gestalt” que emana do meio. O pesquisador da mídia americana George Gerbner descreveu isto suscintamente, da seguinte maneira: “[a questão é o conceito de] uma aculturação ampla ao invés de mudanças estreitas na opinião ou no comportamento. Ao invés de perguntar que “variáveis” de comunicação poderiam propagar que tipo de mudanças no comportamento das pessoas, queremos saber que tipo de consciência comum sistemas inteiros de mensagens poderiam cultivar. Isso se parece menos com perguntar sobre medos e esperanças préconcebidos e mais sobre os “efeitos” do cristianismo no modo como cada um vê o mundo ...”16. O paralelo estabelecido com a religião deveria ser considerado mais do que uma metáfora. Nossa relação com a televisão tem várias características do relacionamento dos fiéis com a Igreja. O pesquisador britânico da mídia, James Curran, colocou essa questão em termos funcionais: “os meios de comunicação de massa modernos, na Inglaterra, agora desenvolvem muitas das funções integrativas da Igreja na Idade Média. Como a Igreja medieval, a mídia liga diferentes grupos e proporciona experiências compartilhadas que promovem a solidariedade social. A mídia também enfatiza valores coletivos que aproximam as pessoas, de um modo que é comparável à influência da Igreja medieval: o senso de comunidade da fé cristã celebrada pelos rituais cristãos agora é substituído pelo senso de comunidade do consu- 102 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? mo e do nacionalismo, celebrados nos “rituais” da mídia, tais como as competições esportivas internacionais (que afirmam a identidade nacional) e os bens de consumo (que celebram uma identidade coletiva de consumidores). De fato, as duas instituições, de algum modo, engajaram-se em um ‘trabalho’ ideológico muito similar, a despeito da diferença no tempo que as separa (...) Os meios de comunicação de massa modernos deram, em épocas diferentes, atenção desproporcional e massiva a uma série de ‘marginalizados’ (...) comparáveis à caça e ao desfile das bruxas pela Igreja medieval e início da Igreja moderna supostamente possuídas pelo diabo (...)”17. A transformação pode ser descrita em termos mais precisos. Como Neil Postman enfatizou18, na sua importante análise da televisão moderna, nós estamos no meio de uma transformação crucial da ênfase na mensagem escrita para a ênfase na imagem. A ênfase na imagem, como aquilo que define o verdadeiro e o falso, o que realmente aconteceu, como se a representação não existisse, implica mudança cultural fundamental no ocidente. A mudança inclui também a imprensa moderna, por exemplo, através da “tabloidização” dos jornais, com grandes fotos “da cena”, grandes manchetes sensacionalistas e textos resumidos. A noção de Foucault de um desenvolvimento “panóptico”, no qual poucos vêem e supervisionam muitos, é paralelo a um enorme desenvolvimento “sinóptico”, contrastante com o primeiro, mas relacionado funcionalmente a ele, no qual muitos vêem, supervisionam e admiram os poucos: as estrelas da mídia no céu da mídia. No sentido duplo da palavra, estamos, como tentei formular em um livro que escrevi sobre esse assunto, vivendo em uma “sociedade de telespectadores”19. 103 4 2003 Em termos do conteúdo da mídia, estamos no meio de uma mudança paralela em direção ao entretenimento. Não temos que concordar com uma implicação do discurso de Postman que a transformação em termos de forma da imagem, necessariamente transforma o conteúdo em diversão, para concordarmos com ele que estamos, de fato, “nos divertindo até a morte”. Mesmo se os noticiários mais sérios e os mais violentos dos eventos relatados são exibidos como “espetáculos” e com um “sabor de entretenimento”... Informação e entretenimento são fundidos no “infotretenimento”. A escrita ainda existe, assim como análises sérias. Mas em termos de tendência, o espaço para as notícias públicas, predominantemente, é preenchido com fotos e tablóides que “divertem”. O tempo não permite uma análise das forças, que por sua vez, moldam essas tendências. É suficiente dizer que uma nova era tecnológica, testemunhando a produção de sistemas inteiramente novos, assim como sistemas de comunicação na área da mídia de massa, com inúmeros satélites preenchendo o céu, permitiu que as forças do mercado entrassem no espaço público de uma forma impensável há três ou quatro décadas. Esfera pública alternativa Minha questão básica é a seguinte. Das três “camadas”, que protegem a prisão e mantêm a sua irracionalidade em segredo: a dos administradores, em um sentido mais amplo da palavra, a dos pesquisadores e a dos meios de comunicação de massa, a mais fundamental é a da mídia. Se a mídia, especialmente a televisão, mudasse o conteúdo do divertimento superficial para o conhecimento crítico criaria uma mudança cultural básica, uma mudança no clima cultural, que teria repercussões em 104 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? todas as áreas de pesquisadores e intelectuais, assim como de administradores. Como eu já mencionei, os administradores e os pesquisadores, dentro e na ponta do sistema, geralmente “seguem o exemplo”. Quando o clima cultural envolvendo a prisão torna-se difícil eles tornam-se difíceis. Quando o clima cultural abranda, eles abrandam. Não são heróis independentes, ao contrário, suas antenas estão basicamente dirigidas para fora, em direção ao clima cultural, mediado como é pelos meios de comunicação de massa. Uma mudança no clima cultural externo, na opinião sobre o que é a “linha correta”, criaria uma mudança paralela entre os pesquisadores próximos ao sistema e os administradores dentro dele. Certamente, ainda estariam envolvidos em longas batalhas, na margem, assim como dentro da prisão. Talvez a mudança cultural básica no centro e na margem deva parcialmente esperar pela próxima geração, mas aconteceria mais cedo ou mais tarde. De tudo isso podemos concluir que muito de nossa luta para alcançar, escancarar, revelar e então eliminar o calcanhar de Aquiles do sistema carcerário — sua irracionalidade fundamental e total — precisa ser direcionada à televisão e aos meios de comunicação de massa em geral, já que são seu escudo mais protetor. Isso faria com que os outros escudos caíssem e liberassem o segredo. Em vista dos grandes interesses econômicos nos “negócios de entretenimento” e dos enormes avanços tecnológicos envolvidos, esta é uma tarefa formidável. Francamente, não antevejo uma luta fácil. Mencionarei brevemente uma linha de ação. Em norueguês, a palavra chave é “alternativ offentlighet”, em alemão é “Alternative Öffentlichkeit”, e em português, a expressão mais precisa é “espaço público alternativo”. A questão é contribuir para a criação de um espaço público alternativo na política penal, 105 4 2003 onde a argumentação e o pensamento honesto e escrupuloso, ao invés da diversão, representem os valores dominantes. Busco o desenvolvimento de um espaço público alternativo na área da política penal contendo três componentes. O primeiro é a liberação do que eu chamaria de poder absorvente dos meios de comunicação de massa; a liberação da definição da situação que implica existência de alguém é totalmente dependente da cobertura e do interesse da mídia. Sem a cobertura e com o silêncio da mídia eu, provavelmente, não existo, minha organização não existe, a reunião não aconteceu. Na sociedade ocidentalizada é, provavelmente, impossível e desaconselhável abster-se completamente da participação da mídia. Mas, certamente, é possível dizer “não!” a muitos programas de entrevistas e “debates” apresentados como entretenimento, mencionados anteriormente, que inundam nossos vários canais de televisão e, mais importante, é certamente, possível não deixar a nossa definição de sucesso ser dependente da cobertura da mídia. Geralmente ela converte e perverte completamente nossas mensagens. O segundo é a restauração da auto-estima e o sentimento de confiança por parte dos movimentos organizados de baixo para cima. Não é verdade que estes movimentos, enfatizando a organização de uma rede de solidariedade nas bases, tenham morrido. O que aconteceu foi que com o desenvolvimento da mídia de massa que eu delineei, eles perderam a fé em si mesmos. Um exemplo importante da história recente da Noruega, da vitalidade real desses movimentos: em 1993, milhares de noruegueses participaram em um movimento amplo para dar aos refugiados da Kosovo-Albânia um abrigo duradouro nas igrejas norueguesas por todo o país. O movimento terminou com uma vitória parcial, na qual to- 106 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? dos os casos relacionados com os refugiados albaneses foram revistos novamente pelo Ministério da Justiça. O exemplo sugere que a solidariedade nestes movimentos organizados de baixo para cima se estende mesmo a grupos “distantes”, como os refugiados, e que eles não morreram com o fim da guerra do Vietnan. O terceiro é a restauração do sentimento de responsabilidade por parte dos intelectuais no sentido mais amplo da palavra. Não estou pensando em todos os pesquisadores ortodoxos na margem do sistema. Não se pode confiar neles como iniciadores de mudança; deles apenas pode-se esperar que sigam o exemplo. Estou pensando nos pesquisadores independentes que estão por aí e, mais importante, toda a gama de artistas, escritores, atores e músicos, além de uma variedade enorme de pesquisadores e cientistas, por exemplo nas humanidades e artes liberais. A questão da prisão não é uma questão para um segmento, mas para todos nós. Sua recusa em participar nos programas dos meios de comunicação de massa seria importante. Eles têm um poder de barganha em relação à mídia. A revitalização da pesquisa considerando os interesses das pessoas comuns como ponto de partida, é igualmente importante. Esta questão é nova, mas, certamente, volta várias décadas na história intelectual ocidental. A área está cheia de conflitos e problemas, mas estes não são insolúveis. Vocês podem perguntar como os três ingredientes que mencionei serão encadeados e desenvolvidos. A tarefa, por certo, é de longa duração. Deixem-me dar um pequeno exemplo: tentamos fazer um pouco disso na Noruega, na organização KROM – Associação Norueguesa para a Reforma Penal, uma organização híbrida, estranha, com intelectuais e muitos prisioneiros, com uma causa comum20. Todos os anos organizamos grandes 107 4 2003 conferências sobre políticas penais. Já organizamos 25 delas e para criarmos uma tradição mantivemos o mesmo lugar: um hotel nas montanhas perto de Oslo. No começo, no fim da década de 1960, a participação era restrita; com o decorrer dos anos ficou muito mais ampla e, hoje em dia, a participação é definida, em muitos círculos profissionais, como “obrigatória”. Toda uma gama de profissões e agências relevantes para a política penal e muitos prisioneiros estão lá. Também organizamos seminários regulares, assim como outras atividades. Em resumo, tentamos criar uma rede de opinião e informação atravessando os limites formais e informais entre segmentos dos sistemas políticos e administrativos relevantes. A questão é precisamente tentar criar um espaço público alternativo onde a argumentação e o pensar escrupuloso sejam valores dominantes; um espaço público com uma cultura diferente que no final possa competir com o espaço público superficial dos meios de comunicação de massa. Esse tipo de tentativa tem a vantagem, ao contrário do que ocorre nos meios de comunicação de massa, de estar baseada em relações organizadas e reais entre pessoas. O espaço público dos meios de comunicação de massa, neste sentido, é fraco: é um espaço público que é desorganizado, segmentado, espalhado por milhões de indivíduos desconectados — este é seu verdadeiro caráter de massa verdadeira — e, igualmente, segmentada em milhares de estrelas individuais da mídia no céu da mídia. Falei do calcanhar de Aquiles da prisão. Este é o calcanhar de Aquiles do espaço público da mídia, que tentamos tansformar numa vantagem para nós. Esta é uma linha de pensamento e trabalho. Obviamente, há outras. Muito do nosso tempo deve ser dedicado a encontrá-las. A tarefa de revelar às pessoas a irracionalidade da prisão, que faria o sistema sucumbir 108 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? semelhantemente à caça às bruxas na Espanha há 400 anos, exige todas elas. Notas Conferência publicada com a autorização da Association for Humanist Sociology. Proferida no Brasil, na PUC/SP, em ocasião do Seminário Internacional de Abolicionismo Penal e publicada em Edson Passetti e Roberto Baptista Dias da Silva (orgs.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo, IBCcrim/PEPGCS-PUC/SP, 1997, pp. 263287. Tradução de Jamil Chade. 1 2 Nils Christie. Crime control as industry — towards gulags, western style?. London, Routledge, 1994. [N. do E. — Publicado no Brasil como: Nils Christie. A indústria do controle do crime: a caminho do gulags em estilo ocidental. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1998.] 3 Sebastian Scheerer. “Towards abolitionism” in Contemporary Crisis, 1986, p. 7. Gustav Henningsen. Heksenes advokat (The witches advocate). Copenhagen, Delta, 1981. 4 Henry Charles Lea. A History of the Inquisition of Spain. New York, AMS Press, Inc. 1906, 2nd. ed. 1966. 5 Andrew Rutherford. The dissolution of the training schools in Massachusetts. Columbus, Academy for Contemporary Problems, 1974. 6 7 Henry Charles Lea. Op. cit., vol IV, p.234. Lloyd W. McCorkle and Richard R. Korn. “Resocialization within walls” in Annals of American Academy of Political and Social Science, 1954, p. 88. 8 Karl F. Schumann et al. Jugendkriminalität und die Grenzen der Generalprävention (Delinqüência juvenil e os limites da prevenção geral). Cologne, Luchterhand, 1987. 9 10 Idem. Alfred Blumstein et al (eds). Criminal careers and career criminals. Washington DC, National Academy Press, 1986. 11 12 Idem. Vol I, p. 128 Jan M. Chaiken and Marcia R. Chaiken. Varieties of criminal behavior — summary and policy implications. Santa Monica, Rand Corporation, 1982, p. 26. 13 Andrew von Hirsch. Past or future crimes: deservedness and dangerousness in the sentencing of criminals. Manchester, Manchester University Press, 1986. Idem. Censure and sanctions. London, Clarendon Press 1993. Para uma crítica ver 14 109 4 2003 Thomas Mathiesen. Prison on trial: A critical assessment. London, Sage Publications, 1990. Idem. Perché il carcere? Torino, Edizioni Gruppo Abele, 1996, (Italian translation of Prison on trial, with a new postscript). 15 Para mais detalhes ver Thomas Mathiesen. “Selective incapacitation revisited” Law and human behavior. Na ocasião da conferência a obra encontrava-se no prelo. George Gerbner and Larry Gross: “Living with television: the violence profile” Journal of Communication. Spring, 1976, p. 180. 16 James Curran. “Communications, power and social order” in Michael Gurevitsch et al (eds). Culture, society and the media. London, Methuen, 1982, p. 227. 17 18 Neil Postman. Amusing ourselves to death: public discourse in the age of show business. London, Heinemann, 1985. 19 Thomas Mathiesen. Seersamfundet. Om medier og kontroll i det moderne samfund (The viewer society. on media and control in modern society). Copenhagen, Socpol, 1987. Idem. “The viewer society: Michel Foucault’s ‘panopticon’ revisited”. Theoretical criminology. [Na ocasião da conferência encontrava-se no prelo. Posteriormente, veio a ser publicada no Brasil: Thomas Mathiesen. “A sociedade espectadora. O ‘panóptico’ de Michel Foucault revisitado”. Margem, São Paulo, Educ, 1999, vol. 8]. Idem. The politics of abolition: essays in political action theory. London, Martin Robertson, 1974. Idem. “About KROM. Past - present - future”. Institute for Sociology of Law. Oslo, 1995. 20 110 verve A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? RESUMO O artigo enfoca, especificamente, os pontos centrais de manutenção da existência da prisão moderna, ressaltando, de forma particular, o papel desempenhado pelos meios de comunicação de massa conectados à proliferação da lógica do sistema criminal. O autor faz uma densa descrição histórica de diferenciados sistemas de punição, mostrando a possibilidade de sua abolição. Palavras-chave: Abolicionismo penal, prisão, comunicação de massa. ABSTRACT The article is specifically focused on central elements for the continuous existence of the modern prison, highlighting, in a particular way, the role played by the mass media associated to the proliferation of the criminal systems’ logics. The author presents a dense historical description of the various systems of punishment, showing the possibility of its abolishment. Keywords: abolition of punishment, prison, mass media. Indicado para publicação em 18 de março de 2002 111 4 2003 clevelândia (oiapoque). colônia penal ou campo de concentração? carlo romani* “Se gli anarchici non se ne curano, la storia la faranno i loro nemici.” Gaetano Salvemini. Em seu ensaio sobre o anarquismo italiano, Carl Levy recorre a estas palavras do velho anarquista para dar vida ao seu argumento de que “aqueles partidos ou movimentos sociais que tiveram redução em sua importância foram negligenciados. O anarquismo foi esquecido, relegado a pequenas notas de rodapé...”1. Não somente o anarquismo sofreu com o esquecimento consentido da maioria, acontecimentos escabrosos ocorridos no passado também o foram. Um deles é o caso da * Carlo Romani é mestre em História Social pelo IFCH/Unicamp e está desenvolvendo tese de doutorado na mesma instituição sobre o povoamento e ocupação da zona de fronteira do Oiapoque na década de 1920. Esta pesquisa tem o financiamento da FAPESP. verve, 4: 112-130, 2003 112 verve Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração? “Colônia Penal de Clevelândia”, um campo brasileiro de confinamento de prisioneiros montado nos anos 1920, que praticamente desapareceu das páginas de nossa historiografia2. A associação direta com o anarquismo deve-se ao fato de que o único contingente de pessoas confinadas nesse campo por motivos absolutamente políticos, foram os simpatizantes libertários. Não há registros de presos de outra corrente política que não a anarquista. O movimento anarquista, que praticamente conduziu toda a luta do operariado brasileiro durante as duas primeiras décadas do século XX, começou a dividir-se após 1920 e parte de seus antigos militantes migrou para as posições bolchevistas articuladas em torno do recém fundado PCB, em 1922. O panorama político nacional, no entanto, não mudou, e tudo continuava sob o comando das velhas oligarquias agrárias que elegeram, em 1922, Arthur Bernardes para a presidência do país. Porém, surgia nesse cenário uma nova força política e militar, organizada a partir do movimento dos baixos oficiais do Exército, denominada Tenentismo. Opondo-se à política conservadora das oligarquias, esse movimento conquistou a simpatia das camadas médias urbanas, a pequena burguesia emergente após o surto industrial vivido durante a I Guerra. Duas revoltas tenentistas armadas marcaram os primeiros anos do governo Bernardes: a do forte de Copacabana em 1922, e a rebelião de São Paulo em 1924. As revoltas tenentistas, apesar de fortes militarmente, careciam do apoio popular, tanto que, nem o proletariado rural nem o urbano participaram de fato desses movimentos. O PCB ainda tentou costurar um apoio entre seus comandados e o movimento militar, já que os comunistas viam na aliança com a pequena burguesia um possível projeto revolucionário para o país. Os 113 4 2003 anarquistas, por sua parte, apesar de não verem nenhum potencial revolucionário no movimento, decidiram apoiá-lo na medida em que ele pudesse se tornar um avanço na conquista de maior liberdade política no país3. Este era o quadro que se desenhava na cena política nacional em meados da década de 1920. A resposta governamental aos acontecimentos não tardou a chegar. Veio através das leis de exceção cerceando as liberdades pessoais e ampliando os espaços de ação para uma política repressiva que, se já era prática comum desde o início da República, passou a tornar-se cada vez mais arbitrária. Esse foi o auge do período do estado de sítio decretado durante o governo Bernardes a partir de 5 de julho de 1924, quando irrompeu o levante tenentista em São Paulo, e que durou até 31 de dezembro de 1926. Foi nesse período em que a prática política de se governar com base nas leis excepcionais, elevou-se a níveis ainda não vistos na República Velha. Ao mesmo tempo, a arbitrariedade policial tornou-se a regra. Em dezembro de 1924, surgiu em São Paulo uma delegacia especializada em controlar e vigiar as atividades do cidadão: o DOPS, ou Delegacia de Ordem Política e Social. Era sua atribuição submeter toda atividade de associação política a um exercício de vigilância permanente. Todos os operários ativistas de qualquer movimento político, eram identificados e fichados. O DOPS paulista seguia a trilha já aberta desde novembro de 1922 no Rio de Janeiro com a criação da 4ª Delegacia Auxiliar, cuja atribuição básica era: “...desenvolver a máxima vigilância contra quaisquer manifestação ou modalidade de anarquismo violento e agir com solicitude para os fins da medida de expulsão de estrangeiros perigosos”4. 114 verve Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração? Paralelamente à expulsão de estrangeiros indesejáveis, centenas de brasileiros, considerados pessoas inaptas a viver em sociedade, foram sumariamente desterrados para o campo de internamento na selva, chamado gentilmente de “colônia penal”. Precursor do atual spa, esta colônia penal, lugar de regime de emagrecimento forçado de sua população, ficou postumamente conhecida como Inferno Verde. Mesmo não havendo a participação direta dos libertários naqueles movimentos revoltosos liderados pelos tenentistas, a reação policial atingiu em cheio a base anarquista no país. Este combate do governo contra os ativistas libertários fez com que “o declínio que então se iniciou não tivesse portanto como base o fracasso da militância anarquista nos sindicatos, mas sua expulsão e eliminação por forças policiais com amplo respaldo político e social.” Esta análise de Ângela de Castro Gomes, pelo perfil ideológico da autora, não pode ser considerada uma propaganda anárquica5. Figuras de destaque do movimento, como José Oiticica e Everardo Dias, permaneceram presas e incomunicáveis durante meses em calabouços fétidos nas ilhas ao largo da Baía de Guanabara. Ilha Rasa, Ilha das Flores, Ilha de Bom Jesus, são bonitos nomes que ficaram para sempre marcados na memória dos anarquistas brasileiros. A repressão mais intensa ganhou corpo quando o governo Bernardes decidiu desterrar esses indesejáveis como forma de impedir o sucesso dos inúmeros pedidos de habeas corpus impetrados em favor das pessoas arbitrariamente presas. Prudentemente, o presidente decidiu deportá-los e confiná-los em locais inóspitos e isolados, de difícil acesso e de impossível defesa jurídica, protelando indefinidamente as detenções efetuadas sem nenhum amparo legal e muitas vezes sem a existência sequer de processos correntes na justiça. 115 4 2003 O Oiapoque, lá onde o Brasil acaba e começa a Guiana Francesa, ou o inverso, como reclamam os seus moradores, foi o palco privilegiado para a instalação de um campo de internamento de prisioneiros em que temos a possibilidade de cruzarmos algumas trajetórias de vida distintas, e que lá se encontraram dividindo o mesmo espaço de isolamento. O Núcleo Colonial Cleveland6, um centro agrícola avançado sob a custódia do Ministério da Agricultura, fundado em 1922 foi transformado em colônia penal, um verdadeiro campo de concentração. Reconstituindo a história do núcleo de Clevelândia, o nome pelo qual ficou conhecido o local, encontramos a versão oficial realizada em 1970 pelo Padre Rogério Alicino. Mesmo permanecendo na vila militar como convidado da Companhia de Fuzileiros da Selva, o relato do padre não deixa dúvidas quanto ao tratamento dado aos presos que lá foram enviados: “a chegada, dentro em prazo breve, de mais de mil pessoas, criou problemas de peso na vida da Colônia. [...] Em primeiro lugar, escassearam os alojamentos. O Engenheiro Gentil Norberto mandou construir outras casas, além de um grande barracão situado perto da atual serraria, ajudando-se da mão de obra dos próprios presos. [...] A fim de desfrutar de toda a mão de obra, agora até de sobra, foi construída, perto do lugar denominado Sibéria, uma usina para a extração da essência de paurosa [...] Os presos, de seu lado, não deixaram de empecilhar a vida da Colônia. Entre eles havia duas categorias: os políticos e os criminosos; estes em maior número e de ‘péssimos antecedentes’, segundo afirma o Senador Calmon”7. A mão de obra escrava confinada na Sibéria brasileira, foi lançada numa vala comum contendo pessoas presas por motivos político-ideológicos e bandidos comuns. Clevelândia foi o exemplo mais cruel desse tempo. Toda uma gama de brasileiros revoltosos: tenentistas, anar- 116 verve Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração? quistas, ladrões, cafetões, vadios, loucos e outros simplesmente considerados como desclassificados pelo governo, foram esquecidos nos confins do Brasil. Inicialmente, foram jogados no porão do navio-prisão “Campos”, aguardando uma espécie de julgamento fantasma que nunca chegou. A primeira leva desses homens foi enviada, em dezembro de 1924, para uma longa viagem de navio com escala em Belém até a foz do rio Oiapoque. De lá, um vapor fluvial, o chamado gaiola, os levou rio acima até o ponto navegável mais próximo da colônia. Seguia-se outra viagem, segundo os relatos, às vezes de canoa, às vezes a pé, atravessando os igarapés, dezoito quilômetros mata adentro, chegando enfim, ao inferno equatorial. Os relatos disponíveis sobre as condições de sobrevivência no local são assustadores8. Os que conseguiam fugir para a Guiana Francesa, enviavam de lá tristes notícias para os companheiros residentes no sul do país: “Saint Georges, 14-12-1925. É verdade que daqui também é difícil sair e é quase impossível a vida, por falta de trabalho, porém livramonos das humilhações e tiranias de que éramos vítimas em Clevelândia”9. Para simplificar a análise dos fatos, utilizando-se a fonte inicialmente encontrada por Paulo Sérgio Pinheiro no relatório intitulado “Viagem ao Núcleo Colonial Cleveland”, dos 946 presos lá internados entre 1924 e 1927, 491 morreram, ou seja, mais da metade10. Boa parte dos sobreviventes que retornaram ao Rio e a São Paulo, de onde foram em sua maioria retirados, permaneceu com traumas e seqüelas para sempre. A malária, o impaludismo e outras doenças adquiridas naquelas paragens distantes, fizeram-lhes perpetuar o sofrimento. Alicino, o biógrafo do Exército, ao recolher o relato 117 4 2003 de um dos habitantes sobreviventes daquela época concluiu que em meados de 1925, após a chegada dos presos provenientes de Catanduvas, rebentou, no meio de todos os moradores de Clevelândia, presos e colonos, uma espantosa epidemia de disenteria bacilar que vitimou a muitos”. A testemunha ocular daqueles trágicos dias de Clevelândia, Manoel Figueiredo da Silva, contou-lhe: “era uma amebiana que liquidava (sic) rápido a vida dos padecentes. Em um dia vi fazer o sepulto de seis pessoas. Era uma mortandade de doer o coração”11! A memória local sobre este trágico episódio de nossa história também foi devidamente aniquilada. Atualmente em Clevelândia existe apenas uma base avançada do Exército brasileiro, a 2ª Companhia de Fuzileiros da Selva, e daqueles anos passados já não resta nenhum legado material, a não ser as covas e os possíveis ossos ainda enterrados no cemitério São Carlos. Na cidade mais próxima habitada pela população civil, Oiapoque, restam poucos traços daqueles acontecimentos. Na pesquisa do padre há mais de 30 anos, a tradição popular lembrava-se em forma de lenda o caso de um preso que, condenado à morte, foi anistiado por ter cantado, à beira da cova por ele mesmo cavada, a despedida de sua mãe: “Adeus Rio Oiapoque/sepulcro dos infelizes/a ouvir minhas preces/até as pedras se maldizem/Já não vejo minha mãe/pois me falta a liberdade/quanto é triste/ter saudade!”12. Distante do local consagrado como palco dos sofrimentos, a memória persiste em grande parte devido ao esforço dos simpatizantes da causa anarquista que observam naquele episódio um marco da luta libertária contra todas as formas de dominação e opressão dos homens. Através de cartas enviadas à imprensa operária e aos jornais da burguesia, sabemos da passagem de pelo menos 20 anarquistas pelo campo de Clevelândia. 118 verve Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração? É provável que tenham sido muitos mais. Vários dos desterrados classificados simplesmente como operários pelo governo, poderiam ter sido militantes junto aos sindicatos ou simpatizantes do anarquismo. Entre os chamados vadios também é possível encontrarmos outros anarquistas, não classificados deste modo com o intuito de omitir o objetivo obviamente político da repressão. De todo modo, dezenas de anarquistas sem nenhuma participação direta nas revoltas ocorridas em 1924, foram confinados com a finalidade de desarticular o movimento junto ao operariado, e instaurar o medo e o terror entre os companheiros que permaneceram no sul e sudeste do país. Alguns dos anarquistas que retornaram de Clevelândia, como foi o caso do carpinteiro Domingos Passos13, não arrefeceram o ânimo após o regresso e continuaram com sua militância operária, apesar de trazer “no corpo os calafrios da maleita que contraíra nas infernais regiões do Oiapoque”. Continuaram trabalhando junto ao movimento sindical, e passaram a ter de enfrentar também a ação dos “grupos de choque” do PCB, que tentavam impedir a atuação dos anarco-sindicalistas. Enfim, após este curto olhar sobre os desterros para o Oiapoque, fica a pergunta: que tratamento deve dar a historiografia a esse funesto episódio da vida nacional? Será que a chamada colônia penal de Clevelândia foi apenas uma “colônia penal”? O internamento forçado de brasileiros e inclusive até de alguns estrangeiros (sabemos da existência de pelo menos quatro estrangeiros com possíveis ligações com o anarquismo que foram lá confinados: o português Atílio Lebre; José Garcia de nacionalidade desconhecida; o italiano De Chiara; o anarquista colombiano Biófilo Panclastra) já não caracterizaria uma espécie de campo de concentração? E se levarmos em conta, então, a mortalidade entre os pre- 119 4 2003 sos da colônia que ultrapassou 50% do total dos presos confinados? O desterro de prisioneiros políticos para locais isolados, muitas vezes até inóspitos, foi uma prática muito utilizada por vários governos, desde os mais totalitários, passando pelos que ainda mantêm uma fachada democrática, representantes da democracia liberal como o caso do governo norte-americano que durante a 2ª Guerra Mundial isolou os habitantes de origem japonesa em campos fechados na Califórnia. Desde o século XIX, o governo francês mantinha uma ilha equatorial abandonada ao largo da costa da Guiana Francesa, a Ilha do Diabo, como principal centro de confinamento de prisioneiros políticos e comuns. A ilha, notória pela quase impossibilidade de se evadir dela, ficou famosa como receptáculo de prisões arbitrárias feitas por mesquinhos interesses políticos e até por motivos de caráter racista. De modo parecido, na ausência de uma possessão ultramarina, a Itália utilizou durante um longo período, desde o século XIX até a queda do fascismo, a prática do confinamento em ilhas no Mediterrâneo, uma forma conhecida como domicilio coatto14. Esta forma de prisão arbitrária decidida sumariamente pelas comissões provinciais, tribunais locais de ação rápida que não permitiam a possibilidade de defesa jurídica, foi caracterizada pelo envio compulsório de prisioneiros políticos e comuns, para locais ermos onde eles detinham apenas restrita liberdade de locomoção. Além do isolamento marítimo, outra prática bastante comum foi a do uso de regiões isoladas, inóspitas, em alguns países até geladas, como é o caso da prisão argentina em Ushuaia15, ou o Gulag da Rússia czarista e posteriormente da URSS estalinista, na congelada Sibéria. 120 verve Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração? A versão brasileira adotada como opção pelos governos republicanos para o confinamento de prisioneiros sempre foi a ocupação da selva equatorial, campos em grandes espaços abertos, cuja fuga do lugar, se não era dificultada pela vigilância, o era pelo completo isolamento. Um trabalho realizado por Paulo Sérgio Pinheiro fez um apanhado geral dessa política de encarceramento ecológico realizada durante a República Velha16. Desde as revoltas ocorridas no governo de Floriano Peixoto, os palcos amazônicos de Tabatinga, Xingú, do Alto Rio Branco e do Acre, este último receptor dos detidos durante a Revolta da Vacina, foram os locais onde se abriram postos avançados para o sacrifício humano. O próprio ministro da Agricultura do governo Bernardes, Miguel Calmon, em discurso no Senado, lembrou desses assassinatos ocorridos em 1904: “fizeram-se deportações larga manu (sic) para a Amazônia, não se sabendo até hoje do paradeiro das centenas, senão milhares, de indivíduos largados ao abandono, sem alimentação nem assistência médica, nas margens dos rios do território do Acre...”17. Com a intensificação da organização do proletariado urbano em São Paulo, a partir do início deste século, profundamente influenciado pela propaganda e militância anarquista, os operários também passaram a ser vistos pelo governo como boas espécies para alimento de serpentes e onças, animais que naquela época ainda povoavam nossas selvas. Segundo o historiador José Maria dos Santos, “o processo de depuração dos meios proletários foi admitido como normal, mesmo sem qualquer perturbação da ordem pública. Em São Paulo deportava-se para a região noroeste de Bauru, que então começava a ser aberta”18. Foi seguindo essas pegadas já deixadas nas páginas tristes e mal contadas de nossa história, que o governo 121 4 2003 de Artur Bernardes fez uso de uma localidade ainda mais ao norte, onde pretendia resolver dois problemas com um único tiro: o de colonizar a fronteira setentrional sob o risco de infiltração francesa e o silenciamento da oposição mais combativa ao seu regime. Nesse contexto surge a idéia de se utilizar uma tentativa de colônia agrícola que de fato nunca se consolidou19, permanecendo mais como um posto avançado do Estado na fronteira, com o firme propósito de abandonar à própria sorte os algozes de seu governo. E para tanto, nem necessitou de uma vigilância muito severa. Pôde utilizar somente um pequeno destacamento militar vindo de Belém do Pará, lá montado para manter a ordem na colônia agrícola, e deixar que a mãe natureza, proprietária daquelas paragens, se encarregasse de intimidar possíveis fugas com a sua força selvagem. Mesmo assim, alguns corajosos preferiram embrenhar-se na mata virgem a ter que forçosamente morrer no inferno equatorial. Pelos relatos e informações colhidas é possível formular a hipótese de que no Brasil, os campos de internamento, colônias penais, locais de degredo ou seja qual for o termo usado para designar estas prisões, foram muito mais campos de “abandono” planejado, em que a morte dos lá confinados não era considerada um fato de maior relevância para os governantes. Neste sentido não me parece lógico “internar” ou “confinar” alguém numa selva. O termo internar implica em manter dentro de, aprisionar em locais fechados, bastante vigiados e com pouca possibilidade de fuga, muitas vezes utilizando edifícios públicos já existentes. O termo confinar já implicaria então, internamento de pessoas em locais distantes, isolados. Uma outra possibilidade de se fazer isto, seria a inclusão de uma grande quantidade de gente em um pequeno espaço ou em um espaço 122 verve Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração? com pouca capacidade de absorção dessa gente, concentrando-as. Carlo Capogreco, em seu estudo sobre os campos de internamento fascistas, observa que “os campos de concentração italianos, portanto, somente em pouquíssimos casos, teriam sido ‘campos’ no sentido corrente do termo. Mais do que em barracões, os internados vinham em geral ‘concentrados’ em vilas, castelos, sedes de fazendas, ex-conventos, escolas ou cinemas, etc...”20. Ainda segundo este autor, os campos de concentração italianos mantinham em seu interior entre 1000 e 1500 prisioneiros. Capogreco usa de ironia ao falar do termo comumente aceito de campo de concentração evitando adotá-lo. Pelo seu julgamento, os prisioneiros de guerra do fascismo italiano não teriam vivido, ou sobrevivido, em regime de concentração. Se os critérios acima são válidos, vejamos a seguir como é que se constituiria então, um campo de concentração fascista “de verdade”. O caso dos campos de concentração italianos montados durante a 2ª Guerra, vêm recebendo, somente nos últimos anos, um tratamento adequado por parte dos pesquisadores, considerando-se a importância do assunto. Giorgio Sacchetti, um historiador das prisões italianas que anteriormente já havia realizado um detalhado estudo sobre os casos de detenção em regime de domicilio coatto, ao debruçar-se sobre o caso dos campos de concentração fascistas, nos fala que em fins de 1943, em “Renicci d’Anghiari, localidade da Valtiberina, se encontra um dos piores campos de concentração da Itália quer pelo número de internados, quer pelo comportamento mantido pelo pessoal de vigilância. No momento da chegada dos anarquistas e dos eslavos se encontravam lá trancados 4500...”21. Segundo o relato do capelão do campo, Giuliano Giglioni, os presos eram separados em grupos através de cercas metálicas e as condições de disci- 123 4 2003 plina e regime interno eram bestiais provocando numerosas mortes: “os primeiros foram sepultados no cemitério paroquial, mas depois da minha ida à Prefeitura de Anghiari, foi reativado o velho campo santo [...] a comida é reduzida, constituída de uma magra ração diária de uma centena de gramas de pão e de pouca sopa, variando entre a cenoura ou batatas com casca e água bombeada diretamente do rio Tevere”22. Provavelmente o historiador Capogreco, valendo-se de seus critérios, não consideraria Anghiari um campo de concentração. Portanto, o uso do termo é bastante discutível e depende bastante da interpretação, ou dos interesses do autor. Como forma de comparação, Pier Carlo Masini fala numa ração diária de “600 gramas de pão e 160 gramas de sopa por dia” 23; durante os confinamentos em domicilio coatto; o prisioneiro português Atílio Lebre, relata que no translado de navio do Rio de Janeiro até Clevelândia, havia como “comida de manhã, um púcaro com mate e uma bolacha; a cada uma das principais refeições, um prato com feijão frade e cem gramas de carne verde pessimamente cozinhada”24; conforme Eugen Kogon, um sobrevivente e também pesquisador do assunto, os campos de concentração alemães durante a vigência do nazismo mantinham um regime alimentar diário para os prisioneiros, da ordem de 400 a 500 gramas25. Em nossa tragédia amazônica, sabemos que os presos em Clevelândia permaneceram alojados em grandes barracões construídos por eles mesmos, chamados de bangalôs, separados conforme suas afinidades políticas ou crimes praticados, vivendo em um local de umidade e calor intenso, em condições insalubres, permitindo a proliferação de doenças como o impaludismo, a malária, diversos tipos de febres e disenterias, absolutamente sem condições de serem tratadas na enferma- 124 verve Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração? ria lá improvisada, sem equipe médica nem medicamentos suficientes. Alguns dos sobreviventes quando de seu retorno ao Rio de Janeiro, foram descritos por Everardo Dias como homens “curvados, magros, amarelados, sem coragem sem ânimo e sem vitalidade” e que mostravam as agruras sofridas em “seus rostos escaveirados e cor de cera apenas os olhos sobressaiam... no mais pareciam múmias”26. Mesmo com todo o sofrimento por que passaram, pelo menos os anarquistas lá confinados souberam se defender e realizar de sua passagem na selva também um aprendizado. Em uma carta enviada à imprensa libertária, Domingos Braz lembra-se do “contentamento e satisfação pela harmonia de ideais, pensamentos e sentimentos mútuos de firmeza, coesão e ânimo para enfrentar as agruras inomináveis de um degredo injusto, inumano, arbitrário e sanguinário — e, então nos lembramos do convívio harmonioso dos camaradas entre as selvas — estudando e sonhando em comum, protestando em comum, tornando mais brandos e minorados nossos sofrimentos e as nossas privações pelo compartilhamento mútuo e recíproco”27. Longe de esmorecerem ante o suplício imposto, os anarquistas recriaram nesse espaço de confinamento os valores da cultura libertária, não se preocupando com o amanhã, mas principalmente com o que era possível de se fazer naquele presente. Assim, anarquizaram a vida na colônia deixando gravados na memória de Domingos Braz aqueles tempos, quando “os momentos de ócio eram dedicados às nossas palestras, aos nossos estudos, às nossas canções, enfim, à expansão da nossa alma de idealistas que vivia opressa e moribunda sob a guante da mais férrea e bruta tirania...”28. 125 4 2003 Abandonados em um regime semi-aberto, onde a vigilância não era muito severa, já que a própria natureza se encarregava de fazê-la, ainda assim, seria “difícil convencer um foragido que voltasse para um campo de concentração, ou pelo menos de internação, à espera da morte”29. A designação de campo de concentração para o campo de Clevelândia foi usada também por Paulo Sérgio Pinheiro, embora o cientista político não adotasse oficialmente esta nomenclatura. Já, em seu trabalho bastante preciso e meticuloso, Alexandre Samis evita falar em campo de concentração, referindo-se sempre à Clevelândia como colônia penal. No próprio Arquivo Artur Bernardes, o mais extenso material oficial existente sobre as prisões e o estado de sítio durante aquele governo, o inventário do fundo usa o indexador campo de concentração, para referenciar a “colônia” de Clevelândia do Norte. Como se vê, até na própria documentação oficial arquivada pelo governo brasileiro, assim ele era considerado. O historiador Capogreco talvez nos dê a explicação do por quê, somente neste século, com a chegada do “nazismo o internamento adquiriu o significado sinistro que a história hoje em dia lhe conferiu, e o Lager (‘campo de concentração’) tornou-se sinônimo de total violação dos direitos humanos e de lugar de extermínio planificado (‘campo de extermínio’ ou ‘campo de morte’)”30. O objetivo deste artigo não é o de ingressar no mérito semântico para se designar e classificar os diversos graus de vigilância e controle possíveis de serem estabelecidos sobre um grupo qualquer de prisioneiros, e que no decorrer da 2ª Guerra Mundial adquiriram conotações totalmente extraordinárias. Após estas breves linhas deixo a seguinte questão e minha particular opinião sobre ela. Se desfrutar o trabalho forçado de prisioneiros políticos na selva amazônica, num lugar cuja alcu- 126 verve Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração? nha era Sibéria e de onde dos mil e poucos que foram, mais de quinhentos nunca voltaram, não caracterize um campo de concentração, o que pode caracterizar um? Talvez somente a existência de câmaras de gás e fornos crematórios. Mas aí já estamos falando de puro e simples extermínio. Notas Carl Levy. “Italian anarchism, 1870-1926” in David Goodway (org.). For anarchism. Londres, Routledge, p. 25. 1 2 As informações sobre esse episódio vêm através das memórias históricas ou da história contada por aqueles que a viveram, como é o caso por exemplo, de Everardo Dias. Bastilhas Modernas: 1924-1926. São Paulo, Editora de Obras Sociais e Literárias, 1926 (livro de memórias das passagens pelas prisões que traz o relato do tenentista Lauro Nicácio, confinado em Clevelândia, pp. 237-49). Também são fontes as cartas deixadas por Pedro Catalo e outros ativistas anarquistas como Pedro Carneiro, Domingos Passos e Domingos Braz e publicadas por Edgar Rodrigues. Novos rumos. Rio de Janeiro, Mundo Livre, s/d. Outros trechos estão disponíveis nas obras Os companheiros, vol 1. Rio de Janeiro, VJR, 1994; Os companheiros, vol 2. Rio de Janeiro, VJR, 1995; Os companheiros, vol 3 e 4. Florianópolis, Insular, 1997; Os companheiros, vol 5. Florianópolis, Insular, 1998. Notícia e correspondências sobre o tema foram publicadas em jornais libertários, principalmente A Plebe, de São Paulo, mas também em O Syndicalista, de Porto Alegre e até A Batalha, de Lisboa. Na historiografia, a triste história de Clevelândia somente mereceu algum destaque quando passou a ser contada por John Foster Dulles, Anarquistas e comunistas no Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1977 (no item Oiapoque, livro VI, 8); posteriormente Paulo Sérgio Pinheiro. Estratégias da Ilusão. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, dedicouse ao assunto no capítulo 5, “Desterro e campos de internamento”. Uma matéria sobre o tema foi publicada no artigo “Clevelândia, o Gulag brasileiro”, Utopia. Rio de Janeiro, n.º. 3, verão de 1990. Contudo, o mais amplo e detalhado trabalho sobre o assunto foi publicado recentemente por Alexandre Samis. Clevelândia. São Paulo. Imaginário/Achiamé, 2002. Antes deste trabalho, foi publicado, também por Alexandre Samis. Moral pública e martírio privado. Rio de Janeiro, Achiamé, 1999. Além destes trabalhos já publicados encontra-se em andamento com previsão de conclusão para dezembro de 2003, minha tese de doutorado: Aqui começa o Brasil! IFCH/Unicamp. Nesta tese, pesquisei como ocorreu o processo de ocupação da região da fronteira do Oiapoque entre 1900 e 1927 a partir da perspectiva dos diversos trânsitos e confinamentos gerados pelas populações do 127 4 2003 lugar, das relações estabelecidas entre elas e dos confrontos e interações estabelecidos entre essas populações e o Estado. 3 Segundo o artigo “Movimento revolucionário”, A Plebe, a. 7, n º. 244. São Paulo, 25/07/1924. Marília Xavier. “Antecedentes criminais de nossa polícia política” in DOPS: a lógica da desconfiança. Rio de Janeiro, Secretaria de Estado da Justiça/Arquivo Público do Estado, 1993, p. 33. 4 Angela de Castro Gomes. A Invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro, IUPERJ, 1988. 5 6 Padre Rogério Alicino. Clevelândia do Norte. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1971. “O certo é que os primeiros colonos chegaram à Clevelândia durante a terceira década do mês de maio de 1921”, p. 88. Idem, pp. 94-95. 7 Foram publicados em diversos números de A Plebe, durante o ano de 1927 e também nos jornais operários: A Batalha, de Lisboa; O Syndicalista de Porto Alegre, La Antorcha, de Buenos Aires, além de alguns jornais da imprensa burguesa. 8 9 Carta de Manuel Ferreira Gomes. Utopia, op. cit. P.S. Pinheiro, op. cit, p. 104. O relatório também foi trabalhado por Alexandre Samis, op. cit., pp. 172-8. O documento encontra-se no Arquivo Público Mineiro, Fundo Arquivo Artur Bernardes, AAB. 10 11 Padre Alicino, op. cit, p. 96. 12 Idem, p. 98. Edgar Rodrigues. Os Companheiros vol. 2. Rio de Janeiro, VJR, 1995, p. 25. Esse conjunto de cinco livros do historiador do anarquismo, compondo pequenas biografias, traz breves relatos de centenas de militantes anarquistas, alguns deles prisioneiros em Clevelândia como foi o caso de Domingos Passos. 13 Sobre o assunto ver: Pier Carlo Masini. Storia degli anarchici italian. Da Bakunin a Malatesta. Milão, BUR, 1974; Carlo Romani. Oreste Ristori. Uma aventura anarquista. São Paulo, Annablume, 2002; Amedeo Borghi. Ricordi del domicilio coatto. Turim, Seme Anarchico, 1954; Giorgio Sacchetti, “Controllo sociale e domicilio coatto nell’Italia Crispina” in Rivista Storica dell’Anarchismo. Pisa, BFS, ano 3 n º. 1, jan/jul/1996; Zagaglia (L. de Fazio) I coatti politici in Italia. Salerno, Galzerano Editori, 1987. 14 Sobre as prisões na Patagônia Argentina, ver a obra completa, os quatro volumes de Osvaldo Bayer. La Patagônia trágica. Entre seus livros, tratam do tema, Severino Di Giovanni, el idealista de la violencia. Buenos Aires, Legasa, 1989 e Radowitzky mártir o asesino?. Buenos Aires, Legasa, 1984. 15 128 verve Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração? 16 Paulo Sérgio Pinheiro, op. cit., utilizando-se de variadas informações, dentre elas merece destaque a obra do historiador José Maria dos Santos. A política geral do Brasil. São Paulo, 1930. “A verdade sobre a deportação para a Clevelândia”. Discurso publicado em A Notícia, 4/2/1928. 17 18 José Maria dos Santos, op. cit., p. 414. 19 Conforme mostra a pesquisa de Carlo Romani, Aqui começa o Brasil!..., op. cit. Carlo Spartaco Capogreco. “I campi di internamento fascisti per gli ebrei (19401943)” in Storia contemporânea, ago/91. 20 Giorgio Sacchetti. “Resistenza e guerra sociale” in Rivista Storica dell’Anarchismo. Pisa, BFS, ano 2, nº 1, jan/jun/1995. 21 Idem, p. 9. Os depoimentos sobre as condições de vida dos internados foram obtidos por Sacchetti e publicados em “Renicci: um campo di concentramento per slavi e anarchici” in I. Tognarini (org.). Guerra di sterminio e resistenza. La provincia di Arezzo 1943-1944. Napoli, 1990. 22 “Vendetta insaziabile (I coatti a Port’Ercole)”, artigo publicado em Lota di Classe. Milão, 2 e 3/03/1895, apud Pier Carlo Masini. Storia degli anarchici italiani nell’epoca degli attentati. Milão, BUR, 1982, p. 60. 23 Carta de Atílio Lebre ao deputado Adolfo Bergamini. Câmara dos Deputados. Estado de sítio, vol 12. Rio de Janeiro, 1925, p. 485. 24 25 Eugen Kogon. L’Etat SS. Le système des camps de concentration allemands. Paris, Seuil, 1947. 26 Everardo Dias, op. cit., p. 237. “A horrível situação dos degredados”, carta de Domingos Braz, publicada em A Plebe, ano XI, n º. 245, 12/02/1927. 27 28 Idem. 29 Paulo Sérgio Pinheiro, op. cit, p. 104. 30 Carlo Spartaco Capogreco, op. cit., p. 663. 129 4 2003 RESUMO Estudo sobre perseguição a anarquistas no Brasil, prisões e extermínios planejados no começo do século XX com a criação do campo de concentração Clevelândia, instalado no Oiapoque. Análise do acontecimento, seus efeitos e resistência do anarquismo registrada em documentos, cartas, periódicos e livros anarquistas, apresentando balanço de estudos historiográficos e políticos sobre o tema. Palavras-chave: anarquismo, Estado, campo de concentração. ABSTRACT Study on the persecution of anarchists in Brazil, imprisonments and executions planned in the beginning of the 20th century with the creation of the concentration camp of Clevelândia in Oiapoque. Analysis of the episode, its effects and the anarchist resistance registered in documents, letters, journals and anarchist books, presenting the outcome of political and historical researches on the subject. Keywords: anarchism, state, concentration camp. Recebido para publicação em 1 de agosto de 2003 130 verve a palavra é isto vulva de cadela úvula vibrante de som migranas fantasmagorias um gosto de escarlate nas narinas Haroldo de Campos 131 4 2003 medida e desmesura marianne enckell * marianne enckell* No seu romance The Secret Agent (1907), Joseph Conrad põe em cena um grupo de terroristas que pretendem desestabilizar o poder atingindo-o diretamente no coração: farão ir pelos ares o observatório de Greenwich, localização do meridiano zero desde 1891. Quando Marcel Camus adapta o romance de Conrad para a televisão francesa, em 1982, situa a ação em Paris: o alvo dos revolucionários é agora o metro-padrão de platina, colocado, desde 1889, no Centro Internacional dos Pesos e Medidas. O observatório de Greenwich serve não só para calcular as latitudes e longitudes, mas é também ele que nos “dá” a hora certa. Se a balança é o instrumento metafórico da justiça, o metro-padrão e a hora certa serão, pelo contrário, instrumentos metafóricos da dominação. * Pesquisadora anarquista, com vasta produção, e diretora do Centre International de Recherches sur l’Anarchisme (CIRA). verve, 4: 132-144, 2003 132 verve Medida e desmesura A unificação dos pesos e medidas e a sua determinação centralizada caminharam ao lado da emergência dos poderes centralizados. Já no século XVI, por altura da reunião dos Estados Gerais, Jean Bodin declarava: “os legisladores, que recomendavam ao povo que tivesse apenas uma forma de pesos, balanças e medidas, que além disso fosse justa, não entendiam simplesmente dos artifícios que servem para a distinção das coisas do comércio mas queriam que o mesmo se aplicasse aos costumes e ações, que cada um deve compor, pesar e medir bem, a fim de poder ser o seu próprio juiz... A moeda é um dos direitos da soberania, e o mesmo se dirá da medida e dos pesos”1. O discurso dos filósofos e dos sábios do século das Luzes introduz a noção de democracia: um homem, um voto, deixa de haver arbítrio e desigualdade. É um discurso de progresso nas ciências, na razão, na sociedade civil e no Estado — que propõe também a uniformização das normas e dos instrumentos de medida. “Concebese bem, escreve a Enciclopédia, que os povos nunca se ponham de acordo para tomarem concertadamente os mesmos pesos e as mesmas medidas. Mas isso é facilmente possível num país submetido ao mesmo senhor”2. Este discurso vai assim contribuir para a centralização da dominação e para a modernização do Estado, bem como para a generalização das relações mercantis e para a codificação da economia enquanto ciência. A revolução democrática traz consigo a igualdade perante a lei, e a igualdade perante os pesos e as medidas. Mas os cadernos de agravos do Terceiro Estado, que deploram o arbítrio e a injustiça das medidas fixadas pelos senhores, limitam-se a reclamar medidas equitativas e únicas para cada cantão, contra o abuso das feudais; não desejam abandonar nem as suas varas nem as suas léguas em benefício de um sistema novo sem 133 4 2003 referência histórica nem territorial. Por baixo das suas aparências progressistas, o sistema métrico submete o conjunto dos cidadãos à razão de Estado. Nos tempos neolíticos dos caçadores e coletores, na área da França, pensa-se que era necessário a cada indivíduo um domínio de 200 hectares para assegurar a sua subsistência. Um agricultor moderno pode subsistir com 0,2 hectares. Mas estaremos falando dos mesmos hectares e das mesmas medidas? As antigas medidas agrárias não se referiam ao tempo de trabalho ou à quantidade das sementes; a unidade variava segundo a qualidade do solo, do relevo, o gênero de cultura, a estação estival ou invernosa. Do ponto de vista técnico e econômico, um hectare não é igual a outro, não podem ser adicionados. Os produtos da terra eram também objeto de medidas diversas, quando se tratava de calcular o imposto, ou de vender, ou de comprar; um cereal de má qualidade era medido em alqueires maiores dos que se aplicavam, com o mesmo nome, ao trigo panificável; para a compra media-se o alqueire “cheio”; para a venda “raso”, e era assim que se calculava o lucro. O agricultor atual cobre anualmente talvez mais quilômetros do que o seu antepassado caçador; a densidade de povoamento não só exigiu a intensificação das culturas e o desenvolvimento das técnicas como multiplicou também os equipamentos coletores, as instalações de utilidade pública, as trocas — queiramos ou não. “O fato brutal é que a nossa civilização é hoje apreciada segundo a utilização dos instrumentos mecânicos, porque as oportunidades de produção comercial e de exercício do poder se encontram aí (...). O que distingue realmente a técnica moderna do ponto de vista social é o fato de tender a eliminar as distinções sociais. O seu 134 verve Medida e desmesura objetivo imediato é o trabalho efetivo. Os meios são a estandardização, a tônica colocada no genérico e no típico. Em suma, um esforço confessado de economia”3. Enumerar, medir, pesar, são antigas atividades humanas. E a diversidade dos modos de cálculo dos pesos e das medidas, das divisões do tempo lunar ou solar não constituíram durante muito tempo qualquer obstáculo à compreensão ou à troca. Tácito ou Marco Polo, viajando nos confins do mundo conhecido, sabiam que os outros povos possuíam outras medidas, outras linguagens; sabiam também que basta entendimento acerca da referência para garantir a compreensão. O que é necessário é uma norma, uma regra. As próprias palavras o dizem. Tudo o que significa deve poder circular: são precisos termos de referência comuns, uma linguagem. Trata-se de algo que faz parte integrante da história da consciência humana. As medidas antigas partiam da medida do corpo (o côvado, o palmo, o passo, a jornada) ou da do céu. Em numerosos casos, a ordem da percepção é suficiente. E eis que de súbito as medidas, corporais e próximas, se tornam científicas, arbitrárias e cósmicas. Todos os antigos padrões deixam de ser lícitos, todos os hábitos perdem a validade. É a sociedade nova, nascida da Revolução, que com um traço rasura o mundo antigo: não é de espantar que o calendário republicano e o sistema métrico sejam introduzidos por decreto no mesmo dia, 18 Germinal do Ano III. “O sistema métrico é um sistema universal, ou ainda de aspiração universalista, que se dirige ‘a todos os tempos, a todos os povos’, contrariamente aos antigos pesos e medidas estigmatizados pelos seus ‘particularismos’. A respectiva assimilação deveria, portanto, fazerse tão ‘naturalmente’ como o triunfo da razão sobre a 135 4 2003 ignorância; os obstáculos com que eventualmente deparasse o novo sistema só poderiam resultar da tenacidade dos preconceitos, ou do encarniçamento dos inimigos das Luzes e, por conseguinte, da Revolução”4. Seriam assim medidos pela mesma vara os campos, os tecidos e o trigo? A passagem à ordem conceitual, à codificação universal torna a referência estranha ao indivíduo. A medida métrica não “significa” nada, socialmente falando. É acompanhada pelo cálculo decimal, que não é tão fácil de realizar quanto pode à primeira vista parecer, depois de séculos e séculos de divisão por dois e de novo por mais dois. “Unidade da língua, unidade do governo, unidade contra os inimigos do exterior e do interior: havia três anos que as pessoas estavam obcecadas pela unidade, aborreciam o arbítrio, sentiam-se universais”5. Em fevereiro de 1812, o Império cede em parte aos protestos e resistências populares e introduz uma reforma, o “compromisso napoleônico”: o sistema métrico continua a ser obrigatório, mas tem-se o direito de utilizar no comércio de retalho o oitavo de hectolitro, o “alqueire”, e o meio-quilo, a “libra”; esta divide-se em dezesseis onças; um pé será igual a uma terça parte do metro, uma toesa a dois metros. Estas unidades estão próximas das medidas tradicionais e da vida cotidiana; o fato de serem idênticas ou ligeiramente diferentes das medidas antigas pouca importância tem para os consumidores: redescobre-se a ordem da percepção. O fato de se medir com instrumentos atuais é, sem dúvida, mais eficaz, mas perdeu em significação. “O que é medir? Não será substituir ao objeto que medimos o símbolo de um ato humano cuja simples repetição esgota o objeto?” — perguntava-se Paul Valéry6. 136 verve Medida e desmesura Perguntemo-nos como calcular um metro sem nos apoiarmos na abertura dos braços, como calcular um segundo sem por a mão no pulso... Perguntemo-nos também se tudo isto será realmente necessário. Os instrumentos e os códigos uniformes (o sistema métrico, na ocorrência), determinados e controlados pelo poder central, com um sentido unívoco, põem a questão do limite entre a norma e a lei. Se considerarmos que a lei é boa, que é natural, assente na razão, e universal, então não se torna necessário estabelecer essa diferença. Mas as variações foram bem observadas pelos que pretendiam fazer as leis para o bem do povo. E mais ainda pela República, que unia o saber e o poder. Em 1749, Guillaute, oficial da maréchaussée de Paris7, declarava cruamente: “deixará de haver motins, tumultos, desordens e a segurança pública reinará se houver o cuidado de regular o tempo e o espaço entre a cidade e o campo através de uma ordenação severa do trânsito, dos horários, dos alinhamentos e da sinalização; e se, por meio da normalização do espaço, toda a cidade for tornada transparente, quer dizer familiar aos olhos da polícia”8. O Congresso Geográfico Internacional de 1881, reunido em Veneza, depois de ter escrupulosamente estudado a questão, decidira que o meridiano de base não podia situar-se fora de um país politicamente estável. Quando a Alemanha reconhece o meridiano de Greenwich dez anos mais tarde, é graças aos esforços do general Moltke para persuadir o Parlamento de que surgiriam dificuldades insuperáveis em caso de mobilização, dada a disparidade horária entre as regiões ou mesmo nos diversos pontos do território de uma só região ou país. 137 4 2003 O desenvolvimento das investigações relativas ao tempo conheceu também um salto qualitativo e produziu depois instrumentos de medida infinitamente mais precisos. Deu-se em paralelo com o progresso dos transportes e das comunicações: cada vez mais precisão, cada vez maior velocidade. E cada vez mais controle sobre a produção e o trabalho humano. Na Rússia da NEP [Nova Política Econômica, 1921] fundou-se uma associação a favor do uso do relógio de pulso, destinada a ensinar aos operários os benefícios da pontualidade9. Quarenta anos mais tarde, o etnólogo francês Georges Balandier, um progressista, um amigo do Terceiro Mundo, realiza uma investigação sobre as noções africanas do tempo — a semana de quatro ou de dez dias, o tempo ritmado pela realização dos mercados, pelas estações, pelo clima. A investigação é financiada pela Federação Relojoeira da Suíça, que quer saber as possibilidades de abrir um mercado africano de relógios de pulso. Balandier conduz o seu trabalho igualmente com a idéia de participar no processo de descolonização e de construção de Estados Modernos na África10. A introdução dos relógios de pulso faz-se assim em proveito dos fabricantes, dos cobradores de impostos, dos empresários, dos hábitos associados ao trabalho assalariado. A medida do tempo é realmente aqui a medida do poder. Foi em 1792 que alguns sábios se mobilizavam com a intenção de medir uma volta ao mundo a fim de determinarem o comprimento do metro, no momento em que a Europa se livrava do feudalismo e preparava a instalação dos seus Estados Modernos; na mesma época, os camponeses queimavam os registros feudais e quebravam os instrumentos de medida da dízima. Haviam começado, alguns séculos antes, por quebrar os sinos das igrejas. 138 verve Medida e desmesura Não é de admirar que o imaginário revolucionário ataque os relógios, as medidas feudais, a moeda quando o valor de um campo se mede pelo preço do seu produto, quando o valor de troca se torna heterônomo, quando o valor do tempo vivido se reduz ao salário por hora e aos pagamentos da segurança social. Os sinos que dobram por Deus e pelo Rei, pela dízima e pelos censos, pelo preço do pão, tocam a sensibilidade do povo em movimento, do Ano Mil à Comuna de Paris. A história das resistências talvez seja tão antiga como a história da codificação das medidas. A medida deve ser justa, sem dúvida, mas é também maldita: foi Caim quem, segundo a lenda relatada por Flávio Josefo, cometeu “a invenção dos pesos e medidas, o que mudou a inocente e generosa simplicidade em que a humanidade vivera até então numa existência dominada pelo logro...”11. A medida é maldita porque é fonte de injustiça quando são os mais ricos e os mais fortes a determiná-la. “A medida não é uma convenção, é sempre um valor. Nunca é indiferente, mas boa ou má”12. Os senhores de Berna do Cantão de Vaud recolhiam o dízimo em alqueires cheios a transbordar; vendiam o trigo em recipientes análogos, mas rasos. As medidas variam com a alta dos preços por toda a França do século XVIII, a fim de aumentarem as rendas senhoriais. O sistema métrico parece trazer solução para tais injustiças e instaurar a eqüidade. Mas será ele possível sem governo central, sem comércio e sem moeda, sem submissão generalizada à dominação? “A imposição da novidade pelos decretos e por uma administração minuciosa era sentida como uma agressão cultural, nomeadamente nos campos. Nas regiões ‘libertadas’ pelos exércitos de conquista, que traziam o 139 4 2003 sistema métrico na ponta das baionetas, este era sentido como uma pura e simples violência. A Itália fornece-nos um exemplo impressionante do fato: quando os exércitos franceses se retiravam, eram repostos os antigos pesos e medidas”13. Para alguns anarquistas, o progresso social caminhava a par do progresso científico, e este só podia ter um sentido. No Congresso da Federação do Jura de 1873, James Guillaume expõe os benefícios que implicam na sua opinião as respostas objetivas que a estatística fornece para os problemas econômicos e sociais: “a estatística se tornará a base da ciência social; esses números inexoráveis, e não esta ou aquela teoria elaborada por pensadores de gabinete, substituirão no futuro os manuais de política e os catecismos religiosos; a estatística formará, enfim, o fio de Ariadne por meio do qual o homem poderá avançar a passo seguro pelo gigantesco Dédalo da organização do trabalho emancipado”14. Uma vez que todos tomassem posse do saber, o poder passaria a ser de todos. Em 1924, a Enciclopédia anarquista apresenta o que pensa serem as vantagens do sistema métrico: “os homens em sociedade utilizaram sucessivamente as medidas naturais; depois criaram padrões de medida; por fim — num esforço por maior objetividade, simplicidade e lógica — instauraram um sistema internacional de medidas. (...) A lei seguiu, embora com bastante atraso, os progressos das medidas resultantes dos progressos industriais e comerciais, bem como dos acordos científicos internacionais realizados pelos sábios. A lei sobre as unidades de medida sancionou as medidas já adotadas, do mesmo modo que a lei sobre os sindicatos 140 verve Medida e desmesura operários sancionou as liberdades conquistadas pela classe operária”15. Doze anos mais tarde, a lei francesa sobre o trabalho generalizava as férias pagas; o metro-padrão, o relógio e a balança nem por isso eram postos de lado. A lei não se limita a sancionar: codifica a razão de Estado, padroniza as relações entre os cidadãos. A inteligência humana, o auxílio mútuo e a liberdade têm outros códigos, que bem poderiam ser os da desmesura. Quando Elisée Reclus propunha que o meridiano de referência fosse deslocado, ou suprimida a era cristã, apresentava para isso boas razões. A Inglaterra orgulhava-se do meridiano de Greenwich, do qual se apropriara; um meridiano de base que passasse pelo estreito de Behring quase não tocaria qualquer terra habitada; não sendo de ninguém, será mais facilmente de todos. O calendário cristão apresenta a particularidade absurda de datar negativamente tudo o que se passa antes de J.C.; num calendário que tomasse como ponto zero um fenômeno universal (como um eclipse de sol) não daria o primado a qualquer cultura, podendo ser admitido por toda a gente. Se houver sistema universal, que não seja pelo menos nem hierárquico, nem imperialista. A última obra de Reclus, a sua geografia social do planeta, devia chamar-se simplesmente O homem16. Por mim, veria de bom grado um tratado de metrologia intitular-se Os cinco sentidos. Vivemos cada vez mais num meio ambiente medido e amoedado. Todos os brinquedos eletrônicos têm um relógio incorporado, os bilhetes de automóvel de tarifa única são válidos durante sessenta minutos, aluga-se um apartamento de 2 cômodos e cozinha, 40 m2, a velha 141 4 2003 piada: “O que é que pesa mais: um quilo de penas ou um quilo de chumbo?” já não faz rir ninguém... Estes padrões de utilização cotidiana já não têm qualquer medida comum nem com as percepções nem com o senso comum. O metro-padrão, que durante um século e meio fora calculado de acordo com o comprimento do meridiano e materializado num pedaço de platina, tornou-se a seguir um múltiplo do comprimento de onda da radiação do krypton 86, noção impalpável entre todas; desde 1983, define-se por uma fração do trajeto da luz durante um segundo, o que é ainda menos concebível. “O perigo é o do fosso que cresce à grande velocidade entre conhecimento comum e conhecimento científico. Não se trata aqui das diferenças de natureza entre as duas formas de conhecimento: falar da chuva e do bom tempo com provérbios ou em termos de altas pressões, seria uma heterogeneidade fecunda — se aceitássemos a interação e o confronto entre os dois discursos. Enquanto se fala da mesma coisa, é agradável podermos falar dela em termos diversos. Mas o drama é o da divergência entre os objetivos do conhecimento, o da separação entre os objetos da ciência e os da vida cotidiana (...). Não há para a ciência papel cultural, tradição a compartilhar. Não tem tradição e, em todo o caso, já não poderia partilhá-la, doravante demasiado isolada, tanto no tempo como no espaço do saber”17. Não se trata evidentemente aqui de propor a abolição dos códigos e das regras, sob pena de com isso perdermos todo o sentido: não é através de uma operação mágico-fenomenista que se anula com um traço a sociedade da dominação. Trata-se talvez de pôr em dúvida a eqüidade do sistema métrico, essa “ironia da história”, como lhe chama Witold Kula; de pôr em dúvida a igual- 142 verve Medida e desmesura dade perante os pesos e as medidas, como constituindo um dos logros da democracia. No projeto anarquista, para além da dominação e da economia, que medidas serão as nossas, que desmesuras? Notas 1 Jean Bodin. La République. 1576. Encyclopédie, ou Dictionnaire raisoné des sciences des arts et des métiers, tomo X, “Mesure”, (apud Witold Kula. Les mesures et les hommes. Paris, Maison des Sciences de l´Homme, 1984) 2 3 Lewis Mumford. Technique et civilization. Paris, Seuil, 1950, p. 243. Bronislaw Backo. “Rationaliser révolutionnairement” in Les mesures et l´histoire. Paris, CNRS, 1984, p. 57. 4 5 Denis Guedj. La Méridienne. Paris, Seghers, 1987, p. 13. 6 Paul Valéry. Variétes, III, (apud Kula, op. cit.). Corpo de segurança constituído por homens a cavalo, durante o Antigo Regime francês. (Nota do tradutor da versão portuguesa.) 7 8 Paul Virilio. Vitesse et politique. Paris, Galilée, 1977, p. 27. 9 Lewis Mumford, op. cit., p. 25. 10 Georges Balandier. Le temps et la montre en Afrique noire. Bienne, FUS, 1963. 11 Witold Kula, op cit, p. 9. 12 Idem, p.25. 13 Bronislaw Backo, op. cit., p. 59. 14 Bulletin de la Féderation Jurassienne. Sonvilier, 1.5., 1873. 15 Encyclopédie anarchiste. Elisée Reclus. L´Homme et la Terre. Paris, 1905, tomo I, em particular p. 326327, e Nouvelle proposition pour la supression de l´ère chrétienne. Bruxelas, 1905. 16 17 Jean-Marc Lévy-Leblond. L´esprit de sel: science, culture, politique. Paris, Fayard, 1981, p. 92. 143 4 2003 RESUMO O artigo problematiza a adoção do sistema métrico como padrão universal, apontando as motivações generalizadoras e implicações políticas desse processo. A unificação dos sistemas de medida impõe um padrão arbitrário que escapa às percepções do senso comum, anulando as referências anteriores que possuíam relação direta com a natureza e com o próprio corpo humano. Palavras-chave: Sistema métrico, universalismo, anarquismo. ABSTRACT The article discusses the adoption of the metric system as universal standard, presenting the universalistic motivations and political implications of this process. The unification of the measure systems imposes an arbitrary pattern that is not recognized by the common sense and erases the previous references that were directly related to nature and the human body. Keywords: Metric System, universalism, anarchism. Indicado para publicação em 3 de março de 2003 144 verve Economia e política, problematizações libertárias economia e política, problematizações libertárias natalia montebello * Um pensar libertário Era o ano de 1936. Rudolf Rocker, anarquista alemão, estava nos Estados Unidos com Milly. Os dois percorreram lugares, fronteiras ideológicas, totalitarismos que lhes eram intoleráveis. Práticas autoritárias reverberam na fé daqueles que acreditam na fatalidade de seus lugares, de seus costumes e tradições: uma verdade que fala por eles, e que se inscreve numa história que é maior do que eles. Rudolf e Milly inventam espaços. Aos Estados Unidos chegaram, não para fugir, mas para viver; nunca para abraçar uma autoridade mais democrática, mas para inventar a vida, pensando-a libertariamente. Não se tratava de achar um lugar. O lugar é sempre uma crença coletiva, uma miragem compartilhada que persiste nos olhos que a vêem. Se o lugar e seu tempo estão no pensar, o pensar está vivo quan* Mestre em Ciência Sociais pela PUC-SP e pesquisadora no Nu-Sol. verve, 4: 145-161, 2003 145 4 2003 do demole convenções e ignora conveniências, e então os espaços não têm forma, pois um aqui e agora evidencia vontades e encontros. Em 1936, Rocker publica seu Nacionalismo e cultura1, escrito na Alemanha, e que, como ele, não seria capturado por idéias, épocas ou geografias. Nacionalismo e cultura faz de uma idéia um olhar sem contemplações sobre o pensamento: pensa-se a sociedade apenas localmente, pois leis naturais, continuidades ou qualquer “última instância” escapam às invenções de sociabilidade, as práticas de liberdade e de autoridade que contam a nossa história. Para pensar o nacionalismo e a cultura, para pensar politicamente, Rocker abre mão, antes de mais nada, do determinismo econômico, grande tentação do pensamento, para encontrar leis que expliquem a história. O determinismo não é mais do que o exercício de um saber que se pretende verdade, que necessita dos efeitos da verdade para assentar sua ordem e demarcar obediências e desvios. Rocker está interessado num pensar que deve estar atento, que deve demolir consensos e mostrar, onde há verdade e práticas autoritárias. O principal determinismo que descreve a história é o determinismo econômico. A política, ciência da regularidade, da preservação das obediências, tem se servido deste determinismo, ou melhor, da suposta preponderância dos motivos econômicos, para preservar hierarquias e privilégios, assim como submissões e demarcações das várias formas da fé cívica, a crença irrestrita numa ordem que, ao ser legítima, se entende por justa. A forma das relações econômicas, assim como a das relações políticas, não pode responder a nenhum determinismo, a nenhuma lei da natureza na história, pois a economia e a política têm por força a vontade, e a vontade é sempre uma irrupção, 146 verve Economia e política, problematizações libertárias uma invenção totalmente dispensável. Se há na história alguma força que volte sempre, essa força é a vontade, a vontade de poder, diz Rocker. Não é o modo de produção que molda as formas políticas, assim como não são os interesses econômicos os que determinam as práticas de dominação. A política e a economia não se separam, a não ser por subterfúgios do pensamento, para efeitos de explicação, mergulhos em diversos marasmos das profundidades ideológicas. Práticas de dominação transformam-se em traços do nacionalismo, ou em obediências que descrevem a cultura, quando são políticas, exercícios políticos de verdades universais, e esta política é sempre uma certa economia, uma certa religiosidade, uma sensação de transcendência que não é uma coisa ou outra, mas tudo ao mesmo tempo, pois a obediência universal só é possível se a fé na ordem preserva suas diversas produtividades, a despeito do cumprimento de promessas. Existe o governo universal, e a obediência universal, não porque ele cumpra aquilo que o justifica, o bem-estar geral, ou tampouco porque aqueles que mais se favorecem de sua existência o preservem, contra a vontade dos desfavorecidos: o governo existe porque cria os meios de seu sustento, e estes meios não são mais do que o trabalho e a fé dos que a ele se submetem. O problema da economia é um problema político, assim como a política é, também, um problema religioso. Ocupa-me aqui este ponto de vista, entre a economia e a política, como problematização da submissão ao poder centralizado. O ponto de vista da economia como problema político prescinde do determinismo econômico como lei da história, pois desta maneira não teríamos mais do que desvendar esta lei e, novamente, obedecer, acatando seus desígnios pelas linhas desta ou daquela verdade. Pensar não é um mergulho, talvez um vôo, tanto faz, pensa- 147 4 2003 se como se vive, quando se está vivo, como diz Artaud, com a força viva da fome. Em lugar de leis ao pensar, o prazer. A vontade investe no prazer, potencializa-se nele para se reinventar. É o prazer da dominação o que transforma a dominação em grande vontade de nossa história, ou na forma mais popular das sociabilidades que inventamos. Este prazer não se exerce segundo o cálculo das vantagens econômicas. “O mórbido desejo de submeter milhões de seres humanos a uma determinada vontade, e de comandar impérios inteiros por caminhos que parecem convenientes aos propósitos ocultos de pequenas minorias, manifesta-se, com freqüência, nos representantes típicos do capitalismo moderno, com maior clareza do que as considerações puramente econômicas e as perspectivas de maiores vantagens materiais. Não só com o desejo de amontoar cada vez maiores benefícios esgotam-se atualmente as aspirações da oligarquia capitalista. Cada um de seus representantes sabe que enorme poder dá a propriedade de grandes riquezas ao indivíduo e à casta a qual ele pertence. Esse conhecimento tem uma atração sedutora e engendra aquela consciência típica dos amos cujas conseqüências são, com freqüência, mais corruptoras que o próprio fato do monopolismo. Essa atitude espiritual do grand seigneur moderno, da grande indústria ou das altas finanças, é o fator que repele toda oposição e não tolera junto a si indivíduos com iguais direitos”2. No anarquismo, a problematização da liberdade percorre práticas e espaços que são, em uníssono, políticos e econômicos. Assim como a liberdade não é uma questão de grau, não é, também, de departamentos. A liberdade não é política ou econômica, pois o governo não é um mal necessário ou um assunto para determinados casos. O governo sobre todos é, sempre, intolerável, e dá 148 verve Economia e política, problematizações libertárias no mesmo se ele se exerce segundo o princípio do intervencionismo irrestrito ou apenas sobre a ordem civil, como mero observador da ordem econômica. Mesmo porque a história, com maior eloqüência do que as divagações teóricas, já mostrou que o Estado tem sempre um tamanho, que se mede pelo consentimento de seus cidadãos, e tem sempre uma função, que é tanto política como econômica, que é a de se preservar. A discussão a respeito das funções do Estado, se políticas, econômicas ou ambas, é, para o anarquismo, uma discussão a respeito da distribuição de privilégios, nunca uma discussão sobre a liberdade. A liberdade está no pensar quando se abandonam as medidas e os lugares certos. A liberdade política não se separa da liberdade econômica, e nisto os anarquismos são claros: não se trata de dois aspectos distantes ou anacrônicos entre si. Enfim, a economia está entre as problematizações políticas como unidade analítica pela qual é possível radicalizar a crítica às práticas que preservam e projetam o exercício, consentido, da autoridade sobre todos. Política e economia A guerra abre caminho, passando dos campos de batalha, das trincheiras e linhas de frente, para o confronto em áreas urbanas, diante de alvos civis, até chegar à guerra sem campo, sem áreas nem tempos, sem povo-alvo. A guerra segue, hoje, os ditames do catecismo terrorista: não há alvo, pois todos o são, não há estratégia, pois a surpresa é o elemento chave, não há tempo de paz, pois a ameaça é constante. Ao Estado não cabe mais ditar a disposição de seus exércitos, a menos que estes pretendam estar em todo lugar, a qualquer momento. 149 4 2003 Exércitos não mais resguardam fronteiras nacionais porque estas, salvo conhecidos casos anacrônicos, não mais interessam. Hoje, muito mais evidente do que antes, o poder se exerce de qualquer lugar. Entretanto, a fórmula do Estado moderno é o resguardo da ordem interna e a garantia da integridade nacional diante das ameaças externas. O Estado existe para nos proteger dos outros, compatriotas ou não. Nem o maior arsenal pode, a todo momento, proteger seus cidadãos de ataques externos. E não é necessário arsenal nenhum para se tornar uma ameaça ao Estado. Mesmo assim, na guerra, ou no conflito sempre iminente com o exterior, radica uma importante produtividade do Estado. O Estado combate o perigo que ele mesmo cria, e recria, como abnegado protetor dos inimigos que existem e estão por vir. Para seus cidadãos o Estado reserva outra grande produtividade, já que o perigo, e talvez o maior perigo, é o que surge entre suas fronteiras. Indivíduos perigosos são a grande produtividade do Estado, pois este, seu criador, é o mesmo que os trata, os mata, os instrui, os regenera. E da mesma maneira que com a ameaça externa, o Estado não nos garante a ordem interna. Em suma, se a política deu ao Estado o monopólio da força física e da violência não é pelo exercício desta força e desta violência que ele persiste, mas pelo grande privilégio, o monopólio. O poder centralizador persiste, não porque ele cumpra ou possa cumprir sua função política, a proteção dos súditos. Persiste porque seu monopólio, como qualquer monopólio, é infinitamente produtivo. Mas a forma política da centralização, o Estado nacional moderno, não é determinada pelo modo e produção existente, o capitalismo, já que não se trata de resguardar privilégios econômicos, ou de cálculos de perdas e ganhos, mas de pro- 150 verve Economia e política, problematizações libertárias longar a ineficácia política em produtividades que escapam à última instância e são, simultaneamente, políticas e econômicas. O mesmo sistema capitalista que ergue o Estado nacional é aquele que, hoje, ignora suas fronteiras e reinventa espaços, não para subverter a ordem do Estado, mas para, junto a ela, permitir novas produtividades. Nomes são adjacências: não interessa o sistema capitalista, interessa a produção. Ganha-se e perde-se, tanto faz, o que importa é não parar, já que a submissão, a obediência cordial, precisa de continuidade. Assim, da mesma maneira, a fábrica, a vila industrial, o regime da produção capitalista, abre-se caminho, superando a localização das fileiras de máquinas, dos espaços perfeitamente organizados, das classes sociais e seus conflitos, para a superprodutividade que prescinde de tempos e de espaços, assim como de classes trabalhadoras e corpos ativos. Os grandes conglomerados econômicos dispensam a espacialidade tradicional do Estado, os horários de produção e lazer, a organização sindical, e elevam-se num não-tempo que é sempre um agora em qualquer lugar. Aqui também não é apenas a produtividade, mas a produtividade constante, a continuidade, que interessam, pois se produz em nome do bem-estar geral, da satisfação de necessidades, mas não são estas as variáveis que importam; importa o sistema, o qual cabe ao Estado, o privilégio do monopólio. Bastante óbvio: o Estado deve evitar que os perigosos, indivíduos, grupos ou outros Estados, nos privem de nossa liberdade civil ou nos matem, e, portanto, cabe a ele o monopólio de fazê-lo; assim como deve evitar, também, que a nossa liberdade econômica seja limitada ou anulada por outros, cabendo legitimamente a ele o poder do monopólio econômico. Não por acaso a grande 151 4 2003 chancela intelectual do moderno e benevolente Estado contemporâneo da democracia universal será o liberalismo que, no século XX, chamou o Estado para reconstruir o mundo pós Segunda Guerra, inventando pressupostos macroeconômicos como necessidade de governo na liberdade econômica. A livre iniciativa deixou de ser a base da perfectibilidade social para ceder espaço, em moldes liberais, à política econômica que deve administrar os ciclos de crescimento e recessão próprios ao sistema, agora não mais perfectível mas caótico. A equação liberal, que apostava na liberdade econômica como medida da ação política do Estado, teve de recorrer à desmesura do poder político para limitar a liberdade econômica. Logo, tanto a política quanto a economia modernas instauraram a medida, o lugar e o momento exatos, como primeira condição da ordem centralizadora que hierarquicamente deveria localizar cada um em seu próprio destino. O controle dos números, para o Estado, significa, modernamente, o controle — ou a encenação do controle, tanto faz — da obediência e da produtividade. Mas os arquivos e as disposições oficiais parecem ter perdido o compasso, já que lugares não mais são visíveis segundo demarcações. Se o moderno Estado nacional perdeu seu campo de batalha e sua fábrica, isto não é seu destino, mas sua força, que não mais podemos encontrar entre suas fronteiras e departamentos, mas que nos envolve por um olhar à distância, via satélite, que está muito mais próximo, porque se exerce de qualquer lugar e a qualquer momento. Até o século XX, lutava-se contra um inimigo, lutava-se contra uma cultura, uma religião, uma ideologia ou uma classe social e seus privilégios. Lutava-se para ocupar um lugar. Foi esta luta que deu ao Estado, sua razão de ser. Nunca devemos esquecer que toda autori- 152 verve Economia e política, problematizações libertárias dade apenas se consolida quando é capaz de criar os problemas que deve resolver. Se, na política, o Estado teve a tarefa de democratizar o mundo, no século XX teve, na economia, a tarefa de humanizar a produção, regando a direitos trabalhistas os privilégios da propriedade privada, outra de suas invenções. Apagaram-se sob gloriosas concessões as mais dramáticas práticas da dominação econômica, mas, com o mesmo gesto, o Estado tornouse o único agente da ordem macro-econômica. À Segunda Guerra sucedeu a reconstrução política e econômica do mundo, pela fórmula da universalização, que reescreve as diferenças como pluralidade, a nova produtividade do Estado. Determinismo econômico Sabemos o quanto já se disse — e ainda se insiste em dizer — a respeito da preponderância dos motivos econômicos sobre a história ou sobre o presente das sociedades — de todas, não importa onde ou quando. Ouvimos, ainda, seguras afirmações de futuros, como cálculos infalíveis baseados em variáveis econômicas. Em raras ocasiões, entretanto, encontramos dissonâncias, ou melhor, invenções nesta música de fundo do pensamento. As ocasiões são raras, mas interessam aos ouvidos ainda não adormecidos. Para falar sobre elas, gostaria, antes, de me deter nestas primeiras considerações. O tema da preponderância das motivações econômicas se repete, invade o ar e parece deslizar-se, comodamente, entre aqueles que escutam. Mais ainda: foi com louvor que o determinismo econômico deu ao pensar sobre as sociedades aquele ar de ciência exata que, burocraticamente falando, sempre lhe caiu tão bem. Encontraremos principalmente no século XIX o cenário 153 4 2003 onde serão ovacionadas, pela primeira vez, as grandes divas destas ciências, repetindo, segundo esta ou aquela grande verdade, as diversas formas do determinismo econômico. Darão o tom, justamente pela última instância da economia, da moderna maneira de aliar ao poder político o sistema econômico. No XIX, dois grandes pensamentos, o marxismo e o liberalismo, debatem-se entre a política e a economia para encontrar combinações, fórmulas, que orientem as sociedades num único caminho que ambas teorias juram existir. É como se a consagração do sistema capitalista, a industrialização, tivesse dado, não só às relações, mas também ao pensamento, o ritmo das engrenagens, a ordem, o enfileiramento, das máquinas, o espaço da produção. E nisto não há nada de surpreendente, se consideramos que, tanto para o liberalismo como para o marxismo, trata-se, em última instância, de reformar, de manter a forma, não necessariamente do sistema econômico — não é aqui que está o grande problema —, mas da velha e boa forma de sociabilidade baseada num centro de poder político, hierárquico e absoluto. Qual é, então, o tom? Vejamos os caminhos. Para o liberalismo, as sociedades evoluíram de formas tribais, selvagens, de produção para a forma capitalista de produção, o sistema mais perfeito, já que nele, segundo certas condições políticas, é possível o princípio do mais forte, uma seleção natural que resguarda as diferenças econômicas na lei do mais apto a gerar lucro. Pela preservação do direito da propriedade privada, cabe ao Estado, mesmo que teoricamente mínimo, o resguardo desta e da vida, ou da produtividade, de seus cidadãos3. Desde suas primeiras encenações até hoje, o liberalismo concentra-se na discussão do grau, da intensida- 154 verve Economia e política, problematizações libertárias de, da ação do Estado. O caminho a seguir é a preservação do princípio da liberdade econômica, da livre iniciativa, sob tutela, é claro, do Estado e seus privilégios. Para o marxismo, as sociedades evoluíram, igualmente, de formas tribais, selvagens de produção para a forma capitalista de produção, que não é o sistema mais perfeito, já que consagra as diferenças de classes, o que significa que ainda resta um novo movimento da história, um confronto de classes, que deverá resultar na anulação desta diferença pela abolição da propriedade privada dos meios de produção. Neste processo, o sabemos muito bem, cabe ao Estado — do proletariado? — comandar a última transição, para o totalitarismo comunista, este sim o sistema mais perfeito. Trata-se da igualdade econômica, segundo a livre iniciativa do Estado, ou do partido, ou da elite pensante... Malgrado a ausência de detalhes e considerações importantes a que estas poucas linhas, por serem poucas, me levam, observemos os efeitos destas teorias. O liberalismo não só não reduziu o âmbito do Estado, mas tem servido como grande base teórica da ininterrupta reformulação e prolongamento deste, atualizando como parâmetros democráticos grandes dominações universais. Já o caminho marxista guarda valiosos troféus na história que certificam a velha e certeira afirmação da crítica radical: por meios autoritários alcançam-se resultados autoritários. Em suma, não são as relações econômicas, mas os delírios políticos os que têm determinado uma grande continuidade sobre a qual se inscreve a história: a vontade de poder. Entre o imperador, o rei, o presidente, o congresso, o parlamento ou o partido não há evolução: o trono está sempre ocupado. Assim como também não há evolução entre o modo de produção de subsistência e o modo de produção capitalista, ou comunista, sempre que, do tro- 155 4 2003 no, se ditem os privilégios. Mas não há evolução, não só porque alguma forma de centralismo nunca é preferível a outra, mas, antes de mais nada, porque traçar uma certa evolução onde há vida não é mais do que tentar apagar a vida com verdades. Crítica radical O XIX é, também, o lugar de dissonâncias que até hoje incomodam. Destoam, por vontade de afirmação, criativamente, das questões de grau e dos caminhos certos. Diversas problematizações anarquistas têm em comum a urgência de pensar a economia como lugar privilegiado de relações livres, sempre que destituídas das intermediações dos idealismos políticos. Para os anarquismos, o problema do Estado nunca foi um problema de grau ou de transição. Deste ponto de vista, eles acionam uma reinvenção da política que é, ao uníssono, uma demolição, de suas instituições e seus diversos catecismos, e uma afirmação de vida e pensares políticos, justamente porque afirmativos. Nos anarquismos não há concessões para a política, que realiza a mágica de dar a alguns a voz de muitos. Desta forma, se o agir em nome de todos é sempre o exercício da autoridade sobre todos — e não importa se a ação é adornada pela benevolência sobre todos ou apenas apresentada como vontade do Senhor —, não se trata de administrar a ação do Estado, mas de inventar relações sem ele. Demolindo esta política, as relações econômicas são urgências que o pensar interessado deve resolver, não segundo este ou aquele princípio distributivo geral, sobre este ou aquele princípio de justiça geral, sobre esta ou aquela ideologia geral, mas sobre esta e aquela condições específicas, dissonantes, surpreendentes. Daí que o federalismo, a descentrali- 156 verve Economia e política, problematizações libertárias zação política e econômica, seja, de diversas maneiras, a grande interrupção, a grande interrogação, que os anarquismos desenham livremente, ignorando a linha reta e contínua da autoridade dos nossos vários senhores. Como pensar afirmativo, o anarquismo não se interessa por determinismos. Determinar é sempre exercer uma autoridade universal e irrestrita, e não há diferença entre o pensamento e a vida — a menos que o pensamento invista em aniquilá-la. Claro que ao abrir mão dos determinismos ou das grandes leis das ciências, o anarquismo investe num pensar que requer, sempre, ser inventado; e sua vida, sua força, a força de sua crítica e de sua afirmação está justamente em prescindir do amparo de qualquer música de fundo. Novamente, não havia um caminho traçado entre o modo de produção de subsistência e a produção de excedente econômico na forma capitalista, assim como não há um cálculo de vantagens econômicas que orienta, em última instância, os acontecimentos que supostamente movem a história. Nisto os anarquismos, como pensares insuportáveis, apresentam-se como a única crítica radical diante do moderno consenso da necessidade da centralização política como duplo perfeito das relações econômicas. Rocker e algumas sinalizações do século XX Há uma vontade que se inscreve no percurso da nossa história como força que, em boa medida, o desenha: a vontade de poder. Talvez seja o prazer da dominação o que mais nos mova, o que melhor descreva a paisagem dos nossos tempos — os que passaram e os que ainda inventaremos. Move-nos, a vontade de poder ou o prazer da dominação, como por um encantamento que é muito 157 4 2003 mais forte que aquele que podemos derivar de motivos puramente econômicos. A história, diz Rocker, move-se muito mais segundo a vontade de poder do que segundo o cálculo de vantagens econômicas. Ver na história uma sequência de determinismos econômicos não é mais do que solapar uma história de violências, de dominações que, longe de responderem a qualquer lei, apenas expressam escolhas, vontades, percursos que respondem a presentes, que não se inscrevem em paisagens inevitáveis. Também em 1936 aparecerá a Teoria geral do emprego, do juro e da moeda4, de John Keynes. Aqui encontraremos as primeiras grandes linhas da macroeconomia, ou a visão do sistema econômico que consagrará o papel do Estado como grande regulador de seus ciclos. Para Keynes, o Estado precisa conhecer, reinventar suas cifras, prever e orientar, como uma série de cálculos5 entre os quais o sistema capitalista é capaz de gerar crescimento, sempre que todos sejam devidamente remunerados. O Estado deverá manter o fluxo das trocas do sistema capitalista em constante movimento e, de preferência, expansão. Criam-se, assim, as instituições que oferecem as cifras oficiais, apresentando os indicadores da política econômica a ser implementada a todo momento, tanto dentro das fronteiras nacionais, como no novo espaço das relações econômicas: o fluxo. Rocker destruirá a noção do determinismo econômico na história, enquanto que Keynes determinará que a história econômica se expressa pela competência do Estado em administrar as caóticas relações capitalistas. Em 1936, também, transbordam, na Espanha, práticas libertárias que interrompem tanto a continuidade política do Estado como a continuidade econômica do modo de produção capitalista. A Guerra Civil Espanhola mos- 158 verve Economia e política, problematizações libertárias trou aos submissos olhos do planeta que a insurreição política, longe de estar necessariamente acompanhada da paralisação econômica, ou de tornar a economia função dos conflitos políticos, permite, quando afirmativa, a reinvenção das relações econômicas segundo necessidades locais — prescindindo, diga-se de passagem, de leis econômicas. Keynes será uma chave crucial da reconstrução do mundo na segunda metade do século XX, a Guerra Civil Espanhola permanece como afirmação de liberdades políticas e econômicas, silenciada pela escolha, deste mundo — perfeitamente coerente à sua reconstrução — pelo totalitarismo como “problema preferível” a ser equacionado, e Rocker ainda nos diz que uma crítica radical à política só é demolidora e afirmativa quando subverte todos os privilégios, políticos e econômicos. Invenções libertárias de sociabilidade são problemas de difícil equacionamento por qualquer ordem centralizadora. Não serão afirmações macroeconômicas, que preservam e prolongam a fé no Estado, as que conversarão com as várias irrupções de liberdade no marasmo dos determinismos. O coletivismo, o cooperativismo, o federalismo descentralizado, a autogestão, enfim, desenhos anarquistas de espaços sem delimitações, nunca serão equacionados. Ao investir em invenções, o anarquismo não é pluralista, mas insuportavelmente surpreendente. O anarquismo, diz Rocker em Anarcosindicalismo6, “(...) é uma corrente intelectual bem definida na vida de nosso tempo, cujos partidários investem na abolição dos monopólios econômicos e de todas as instituições coercitivas, tanto políticas quanto sociais, dentro da sociedade. Em lugar da atual ordem econômica capitalista, os anarquistas desejam o livre estabelecimento de uma 159 4 2003 livre associação de todas as forças produtivas, fundada no trabalho cooperativo, cujo único impulso seja a satisfação das necessidades de cada membro da sociedade, descartando no futuro todo interesse especial das minorias privilegiadas na unidade social. Em lugar das atuais organizações do Estado, com seu inerte mecanismo de instituições políticas e burocráticas, os anarquistas querem que seja organizada uma federação de comunidades livres, que se unam umas às outras por interesses sociais e econômicos comuns e que solucionem todos os seus assuntos por mútuo acordo e livre contrato”7. Notas 1 Rudolf Rocker. Nacionalismo y cultura. Buenos Aires, Americalee, s/d. 2 Idem, p. 32. Observemos, entretanto, que, para o Estado, uma vida produtiva, economicamente ativa, ou potencialmente produtiva, não tem valor algum, a não ser como resultado estatístico. De outra forma, o quanto vale, ou produz, uma vida vadia? Não digo, é claro, que encontremos respostas em nossos bons e justos textos oficiais, mas certamente as encontraremos em todas as instituições, instâncias e práticas que do Estado reverberam e que repetem seu princípio de ordem e progresso — do sistema jurídico e penal à tal da opinião pública, da escola à família, passando por qualquer instituição de observação e controle, ou seja, por qualquer reclusão, entre quatro paredes ou a céu aberto. A moral do Estado é eloqüente. 3 John Maynard Keynes. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo, Abril Cultural, 1983. 4 No seu conto Tigres azuis, Borges nos lembra, ao narrar a história de pedras que subvertem as matemáticas, que foram as pedras gregas que legaram à humanidade, como primeiros algarismos, a palavra “cálculo”. O cálculo, aqui, é a pedra. Cf. Jorge Luis Borges. La memoria de Shakespeare. Madrid, Alianza Editorial, 1997. 5 6 Rudolf Rocker. Anarcosindicalismo: teoría y práctica. Barcelona, Ediciones Picazo, 1978. 7 Idem, p. 5. 160 verve Economia e política, problematizações libertárias RESUMO Do ponto de vista libertário, a economia e a política são problematizadas investindo em afirmações que prescindem de centralizações e determinismos. A atualização do Estado capitalista no século XX é interrogada com pertinência pela crítica anarquista de Rudolf Rocker. Palavras-chave: Estado, anarquismo, Rudolf Rocker. ABSTRACT From a libertarian perspective, economy and politics are discussed in such way as to avoid centralization and determinisms. The revision of the capitalist state in the 20th century is appropriately questioned by the anarchist criticism of Rudolf Rocker. Keywords: state, anarchism, Rudolf Rocker. Recebido para publicação em 17 de agosto de 2003 161 162 Haroldo de Campos quando se vive sob a espØcie da viagem o que importa nªo Ø a viagem mas o come o da 4 2003 verve Infiltrações burguesas na doutrina socialista infiltrações burguesas na doutrina socialista1 errico malatesta* Já faz um certo tempo que os socialistas reformistas puseram-se a modificar não somente a tática, mas também as teorias do socialismo, para justificar todas as suas renúncias. Um certo número de idéias e preconceitos de ordem moral, política e econômica, que são em sua essência burgueses, infiltram-se assim, pouco a pouco, na doutrina socialista. A gravidade deste fenômeno será facilmente compreendida se se considerar que ele toca não somente facções mais moderadas do partido socialista democrata, mas que ele começa a se manifestar igualmente nas outras facções que se proclamam revolucionárias e intransigentes. Os jornais, por exemplo, nos informam que mesmo o bem conhecido socialista italiano intransigente Arturo Labriola, defendeu em uma de suas últimas conferências que “o problema mais urgente que se deve resolver não é o da distribuição da riqueza, mas o da organização racional da produção”. verve, 4: 163-169, 2003 163 4 2003 É um erro sobre o qual é importante ater-se, porque ele compromete as próprias bases da doutrina socialista, permitindo deduzir logicamente conclusões que nada têm de socialistas. Os conservadores de todas as escolas sustentam, desde Malthus, que a miséria não é devida à repartição injusta da riqueza ou à insuficiência da indústria humana, mas ao fato de que a produção é limitada. Em razão de sua origem, historicamente, e em razão de sua própria essência, o socialismo é a negação desta tese. Ele é a afirmação de que o problema social é antes de mais nada uma questão de justiça social, uma questão de distribuição. Mas desde que os socialistas se puseram a pactuar com o poder e com as classes proprietárias, isto é, desde que deixaram de ser socialistas, sustentam também as teses dos conservadores, sob uma forma um pouco renovada. Se a tese adotada por Labriola fosse verdadeira, o antagonismo entre patrões e operários não seria mais irredutível, pois a solução seria o interesse comum dos assalariados e dos patrões em aumentar a quantidade de produtos. Em outros termos, o socialismo seria falso, pelo menos como meio imediato para resolver a questão social. E, de fato, já vimos Turati, sustentar que os operários devem tomar o cuidado de, durante as greves, não arruinar o patrão nem sua empresa; antes de Turati, Ferri também dizia que os socialistas devem favorecer o enriquecimento dos burgueses. Por sinal, todos os representantes mais notórios do socialismo democrático italiano nos repisam continuamente que seria vantajoso para os proletários italianos serem governados por uma burguesia rica, culta, “moderna”. Fazer com que o proletariado consciente abandone o caminho da luta de classes e lançá-lo no impasse do 164 verve Infiltrações burguesas na doutrina socialista reformismo burguês é o objetivo da nova propaganda dos socialistas, e esta propaganda é ainda mais perigosa por apoiar-se em um fato real: os produtos não existem atualmente em quantidade suficiente para satisfazer as necessidades de todos, mesmo em limites restritos. Após ter impressionado as pessoas demonstrando-lhes este fato, eles fazem do que é o efeito a causa, graças a um artifício enganador, e tiram disso as conclusões errôneas que são úteis ao objetivo que eles se propõem. É preciso revelar abertamente seus procedimentos. Não há nenhuma dúvida que a produção em geral, particularmente no que concerne aos artigos de primeira necessidade, é imperfeita, insuficiente, ridiculamente limitada em relação ao que ela poderia e ao que deveria ser. Aquele que tem fome e que passa diante das lojas repleta de víveres, aquele a quem tudo falta e vê como os comerciantes têm dificuldade em vender as mercadorias, muito abundantes em relação à demanda, podem pensar que há abundância de bens para todo mundo e falta somente dinheiro para comprá-los. Enganados pelos números mais ou menos cabalísticos das estatísticas e talvez por disporem de um argumento surpreendente e penetrante para sua propaganda, certos anarquistas sustentaram que a produção efetiva ultrapassa em muito as necessidades racionais e que bastaria que o povo se tornasse senhor dela para que todo mundo pudesse viver na abundância. As pretensas crises de superprodução (isto é, o trabalho que falta porque os patrões não conseguem vender os produtos acumulados) servem com freqüência para confirmar no espírito da maioria esta impressão superficial. 165 4 2003 Mas todos aqueles que sabem raciocinar um pouco friamente não tardam a perceber que esta pretensa riqueza nada mais é senão uma ilusão. O que a grande massa da população consome não é suficiente para cobrir as necessidades mais elementares. A maioria dos homens é mal nutrida, mal alojada, mal vestida e lhe falta quase tudo; muitos morrem de fome e de frio. Se se produzisse realmente o necessário para satisfazer todo mundo, onde se acumularia o excedente anual da produção, visto que a maioria não consome sequer o mínimo? E os capitalistas, que fazem produzir para vender e para extrair lucro, seriam, portanto, bastante loucos para continuarem a fazer o que eles não poderiam vender? Pode acontecer que se produza mais do que é necessário em um dado momento, por causa da concorrência que fazem os capitalistas e da ignorância em que cada um deles se encontra quanto à quantidade que os outros podem lançar no mercado em um dado momento; por causa do espírito de especulação, da sede do ganho, do erro nas previsões. E isto particularmente na indústria manufatureira, cujas capacidades de produção são as mais elásticas. Mas, então, a crise não tarda a se produzir, a suspensão do trabalho vem restabelecer o equilíbrio e, em definitivo, normalmente só o que é consumido é produzido. É o consumo que determina a produção, não o inverso. Além disso, no que diz respeito aos produtos alimentícios, que têm uma importância vital, basta ver as terríveis conseqüências, nos países agrícolas, de uma colheita insuficiente para viver de um ano para o outro, se bem que a maioria dos homens esteja mal alimentada. 166 verve Infiltrações burguesas na doutrina socialista Se o conjunto da riqueza produzida todos os anos — da qual mais da metade é hoje absorvida por um pequeno número de capitalistas — fosse repartida entre todos de modo eqüitativo, as condições dos trabalhadores não seriam notavelmente melhoradas. A parte que lhes caberia não seria aumentada por coisas indispensáveis, mas por uma grande quantidade de coisas sem importância, praticamente inúteis e, às vezes, nocivas. Não haveria mudança sensível no que concerne ao pão, à carne, à moradia, ao vestuário e a outros objetos de primeira necessidade, mesmo que a parte consumida ou desperdiçada pelos ricos fosse repartida entre todos. Estamos, portanto, de acordo: a produção é insuficiente e é preciso aumentá-la. Mas por que não se produz mais atualmente? Por que há tantas terras que não são cultivadas ou o são mal? Por que tantas máquinas e tantos braços não empregados? Por que não se constróem casas para todo mundo, por que não se fabrica em quantidade suficiente para vestir todos os mal vestidos quando os materiais abundam, assim como os homens capazes e impacientes em utilizá-los? A razão é bem clara, e nenhum daqueles que se dizem socialistas deveria ignorá-la. É porque os meios de produção, a terra, as matérias-primas, os instrumentos de trabalho não pertencem àqueles que necessitam dos produtos. Eles constituem a propriedade privada de um pequeno número de pessoas que deles se servem para fazer os outros trabalharem em proveito delas mesmas, na medida e na forma que melhor corresponde aos interesses próprios desta minoria. Não é porque ele é um ser humano que o homem tem, atualmente, o direito a uma parte dos produtos: ele só come e só vive se o capitalista, o proprietário dos 167 4 2003 instrumentos de produção, obtém seu lucro explorando seu trabalho. Ora, o capitalista não tem interesse em desenvolver a produção para além de um certo limite: ele tem mesmo interesse em manter constantemente uma certa escassez. Em outras palavras, ele faz produzir enquanto pode revender o produto mais caro do que seu custo de produção; e aumenta sua produção enquanto seus lucros aumentarem paralelamente. Mas tão logo ele perceba que, para vender, é-lhe necessário vender mais barato e que a abundância levaria a uma diminuição absoluta de seu lucro, ele pára a produção e chega até mesmo — assim como há mil exemplos disso — a destruir uma parte dos produtos disponíveis para aumentar o valor dos produtos restantes. Assim, para aumentar a produção de modo a que ela possa satisfazer as necessidades de todos, é preciso que ela esteja orientada em função destas necessidades e não em função do lucro de um pequeno número somente. Todos devem ter o direito de usufruir destes produtos; todos devem ter o direito de utilizar os meios de produção. Se todos aqueles que têm fome tivessem o direito de pegar o pão do qual precisam, seria necessário produzilo para todo mundo e, a partir daí, as terras seriam cultivadas e a velha rotina substituída por métodos de cultura mais produtivos. Mas se, como é o caso atualmente, as riquezas existentes em meios de produção e em produtos acumulados pertencem a uma classe particular, e se esta classe, à qual nada falta, pode fazer fuzilar aqueles que gritam muito alto porque têm fome, então a produção permanecerá mantida em um limite fixado pelos interesses dos capitalistas. 168 verve Infiltrações burguesas na doutrina socialista Conclusão: é na distribuição restrita que é preciso procurar a causa atual da falta de produção, é esta causa que é preciso destruir para eliminar seu efeito. Para que se produza em quantidade suficiente para todos, é necessário que todos tenham direito a um consumo suficiente. Assim se acha demonstrada a tese socialista: o problema da miséria é antes de mais nada um problema de max nettlau distribuição. Nota Texto originalmente publicado no jornal Il Pensiero, n º 10 em 16 de maio de 1905; extraído do livro “Anarquistas, Socialistas e Comunistas”, publicado pela Ed. Cortez, 1989, edição esgotada. Tradução de Plínio A. Coêlho. 1 Indicado para publicação em 11 de novembro de 2002 169 m 4 2003 em memória de errico malatesta1 max nettlau* De 1871 a 1889 Ao meio-dia da sexta-feira, 22 de julho de 1932, morreu em Roma, Errico Malatesta. A morte o libertou de uma cruel doença, mas também de uma refinada privação de liberdade que somente os ex-socialistas autoritários sabem impor, com o desejo de inutilizar suas vítimas libertárias a partir do isolamento. Lênin isolou Kropotkin em um povoado e soube evitar que fosse se recompor em um clima propício. Mussolini, ex-socialista, isolou Malatesta em sua própria casa, e quando o velho tentou refrescar-se no mar, uma perseguição policialesca o forçou em poucos dias a voltar à cidade calorenta, ardente. Outros socialistas elegeram o deserto como residência aos seus adversá* Historiador anarquista e destacado arquivista do movimento. Publicou uma das mais importantes biografias de Errico Malatesta. Sua extensa coleção de livros, periódicos e documentos encontra-se hoje no International Institute of Social History, Amsterdã. verve, 4: 170-185, 2003 170 verve Em memória de Errico Malatesta rios anarquistas, tornando praticamente impossível que os doentes pudessem encontrar algum alívio. O calabouço do tirano era preferível à crueldade hipócrita do isolamento. Além do mais, os socialistas autoritários de todos os tempos conservam os calabouços para povoálos com outras vítimas. Malatesta nasceu em 4 de dezembro de 18532, e ultrapassou a idade de Kropotkin (1842-1921) em alguns meses, cedendo a vida de ambos à mesma doença, acentuada e inflamada no curso de uma longa luta contra a morte. O clima da Inglaterra, úmido, debilitou provavelmente a saúde dos dois homens. Kropotkin estava acostumado ao frio seco da Rússia, Malatesta ao clima ameno italiano. Malatesta foi também vítima do trabalho. Fazia instalações elétricas e teve freqüentemente que trabalhar em condições muito perigosas aos pulmões combalidos. Precisou colocar seu corpo em contato com as pedras frias, entre correntes de ar que lhe trouxeram uma pneumonia em certa ocasião, quase o levando à morte. Seguiu com uma dilatação nos brônquios que o fez precaver-se do tempo, sobretudo no inverno e a primavera. No verão de 1931, que foi extremamente quente, teve de afastar-se do mar, e um companheiro americano que o visitou pôde informar que o velho estava muito mal. Meses depois enfrentou uma grave doença em sua companheira. Quando, ao findar o ano, fortaleceu-se com a melhora de sua companheira, pôde gozar algumas semanas de relativa saúde, mas em abril se viu atacado pela mesma doença que venceu sua vida. Na última carta que recebi de Malatesta (31 de maio), ele escreve: “Sim, meu amigo, estou bastante mal e longe de sarar. Depois de uma má temporada, tive uma bronquite que me colocou a um passo da morte. Não estou bem, talvez não seja ainda um convalescente, melhoro lentamente e talvez possa salvar a vida de novo”. 171 4 2003 O pior ocorreu entre 15 e 20 de abril, e a partir de então, passou a respirar com auxílio de oxigênio. O coração estava debilitado como conseqüência dos constantes esforços e da alimentação insuficiente. Lutou até o último instante contra a morte. Bertoni me mostrou uma carta de Malatesta recebida em 16 de maio: “Passo uma parte do dia meio dormindo, como um animal. Geralmente não consigo descansar à noite. Vivo uma tragédia íntima, a do afeto que recebo dos companheiros e o tormento de não merecer isto. Há algo pior, é a consciência que tenho de não poder fazer nada. Francamente, quando se sonhou tanto e se esperou por tanto, é doloroso morrer como eu, às vésperas de acontecimentos tão desejados”. Ao período de abatimento e, sem dúvida, de esgotamento e debilidade física, seguiu a melhora que se refere a carta de 31 de maio. A melhora se manifesta também por uma avidez por notícias, verdadeira sede de estar junto dos acontecimentos. Era muito difícil agradar a Malatesta, tendo em vista que não se podia falar com liberdade, temendo por violação ou seqüestro de correspondência. O mesmo ocorria com os impressos. Creio que não reagia lendo a correspondência recebida em tão precárias condições. Eu não me atreveria a completar a informação, supondo que demoraria a se curar, ainda que não deixasse por esperar por isso. Ignoro, no entanto, as circunstâncias concretas de sua morte: não sei se faleceu como conseqüência da debilidade de seu coração, por falta de forças para reagir, ou ainda se foi vítima de uma recaída ou ataque violento. O fato é que nos deixa, e como esteve sempre conosco e foi um militante desde 1871, o sentimento é maior na proporção à proximidade que teve de nós em nossos anos de vida anarquista. 172 verve Em memória de Errico Malatesta Malatesta nasceu de pais da pequena burguesia, ocupados com o crescimento de seus negócios. Morreram cedo, depois de matricularem Errico na educação do Liceu. Tinha apenas dezessete anos quando começou seus estudos de medicina na Universidade de Nápoles. Nesta cidade, viveu, parece, sob a tutela de uma tia idosa que o deixou livre para que se desenvolvesse e instruísse, seguindo suas próprias iniciativas. Na infância, contemplou a ruína do absolutismo dos Bourbons em 1860: uma parte da epopéia de Garibaldi se desenvolveu perto do povoado natal de Malatesta, Santa Maria Capua Vetere, na fortaleza de Cápua, assim como a luta de Volturno, em 1860. Os garibaldinos e o exército piamontês se confundiram. Mazzini e pouco depois Garibaldi cederam e entrou o rei Victor Manuel. Malograram as esperanças republicanas, impondo-se o novo governamentalismo. Como não haviam conseguido os objetivos nacionais da época (Roma e Veneza), seguiu até 1870 uma década de conspirações, insurreições, intrigas diplomáticas, nas quais se misturava o fantasma da guerra. Republicanos e partidos populares podiam ser úteis, entretanto, à monarquia, e foram por ela manipulados, controlados e submetidos à paralisia, sem permitir a realização de seus próprios designos. Tudo parecia viver como possibilidade, em potência. Agitadores e propagandistas não provocaram muitos inconvenientes. A fachada era liberal. Como o Papa dispunha de Roma e do Estado Papal, o anticlericalismo foi a religião oficial da dinastia. No Liceu de Nápoles, pôde observar o adolescente Malatesta todas estas peculiaridades, mas seu espírito permanecia na antiguidade: o republicanismo austero dos heróis históricos da Grécia e de Roma. Este espírito clássico fascinou Malatesta. 173 4 2003 Sonhava com a República da igualdade, do tiranicídio, do tribunal popular, na barricada rebelde. O próprio Malatesta descreve estes sentimentos de 1868 em um de seus raros artigos introspectivos, de 1884. Já fora do Liceu, sendo estudante de Medicina, participou de manifestações populares, e para mostrá-lo com suas próprias palavras, transcrevemos as seguintes: “Como republicano, contemplei pela primeira vez o interior de um cárcere da monarquia”. Sei por uma carta do próprio Malatesta, que pretendeu entrar em uma organização mazziniana secreta. Os veteranos da mesma, que observavam a conduta do candidato durante certo tempo com o objetivo de aceitar ou não a admissão, informaram, muito justamente, que Malatesta tinha um espírito independente, propício à desobediência, pouco disposto a submeter-se à rigorosa disciplina intelectual e moral que Mazzini impunha aos homens de sua confiança. Como conseqüência de tudo isso, foi negada a candidatura do jovem Malatesta. Sobreviveu à Comuna de Paris, de março a maio de 1871. Foi um acontecimento que entusiasmou Malatesta, a ele introduzido pelo advogado Carmelo Palladino, homem generoso, situado no ambiente do grupo de Bakunin, no ambiente da Internacional, com suas lutas entre autoritários e anti-autoritários, luta que crescia naquele momento na organização. Ingressou à seção de Nápoles quando tinha dezessete anos e alguns meses, contribuindo para a preponderância que teve, em 1871, a seção fundada em 1869. A comuna acabou afogada no sangue do povo; Bakunin lutara na Itália contra Mazzini, o inimigo da Comuna; brigava com Marx e Engels em Londres, instigadores de Cafiero, que obedecia então à sua influência, para malograr e paralisar a obra de Bakunin (feito que corres- 174 verve Em memória de Errico Malatesta ponde à viagem de Lafargue à Espanha um pouco depois). As perseguições das autoridades e a dissolução da seção em agosto, imprimiram uma vida agitada à seção de Nápoles em 1871. Foi Malatesta um dos membros mais ativos. Congregou estudantes e trabalhadores na seção, soube abrir os olhos de Cafiero, que passou a ser seu amigo. Sabe-se que Cafiero, depois de visitar Bakunin em Locarno em 1872, entregou-se totalmente à causa anarquista. Malatesta se complicou durante a perseguição contra os militantes da seção, e quando esta voltou a reconstituir-se mais ou menos ilegalmente com o nome de Federação dos Trabalhadores Napolitanos no inverno de 1871-72, Malatesta atuou como secretário federal e redator do programa onde se incluem habilmente os princípios da Internacional de 1864 e as idéias anarquistas de Bakunin. É o primeiro trabalho intelectual de Malatesta que se conserva. A atividade em favor da Federação da zona de Nápoles continuou em 1872. Não tomou parte da Conferência Constituinte da Federação Italiana que se reuniu em Rímini em agosto, que rompeu com o Conselho Geral de Londres, que o nomeou secretário da seção de estatística, a qual tinha um objeto mais importante do que indica o modesto nome. Em setembro foi a Zurique e contatou Bakunin e outros delegados italianos de convenções anti-autoritárias. Em Zurique, encontrou os delegados espanhóis que voltavam do Congresso de Haia: Farga Pellicer, Alerini, Morago e Marselau. Em diferentes reuniões com Bakunin, constituíram a Aliança dos Revolucionários Socialistas, grupo internacional secreto. Depois de 1871, Malatesta lia normalmente as publicações da Internacional espanhola como La Federación de Barcelona, e outros. Com certeza vi exemplares encaminhados a Malatesta em uma coleção de Roma, em 1903. Em Zuri- 175 4 2003 que, Malatesta conheceu militantes destacados. Com eles, Bakunin e outros camaradas, assistiu ao Congresso anti-autoritário de Saint-Imier (Jura), que atacou profundamente a facção marxista da Internacional. Não queria viver como emigrado e voltou a Nápoles para continuar suas campanhas de propaganda. Ao dirigir-se à Bolonha para assistir ao Congresso italiano, foi detido, permanecendo cinqüenta e quatro dias na prisão. Foi depois a Locarno, encontrou Bakunin, a quem propôs a idéia de mudar-se para Barcelona tendo em vista os acontecimentos esperados e que ocorreram, efetivamente, pouco tempo depois, em junho, em Sanlúcar de Barrameda, onde estava Morago; em Alcoy, onde estava a Comissão Federal, em Barcelona com a intervenção de J. García Viñas, Paul Brousse e outros. Uma viagem de Bakunin e Malatesta a Barcelona tinha que ser necessariamente secreta e exigia cuidadosa preparação e meios. Para pactuar com Malatesta, Cafiero foi rapidamente a Barletta (Apulia), mas o prenderam, sendo libertado seis meses depois sem ser processado. A Internacional foi perseguida na Itália por arbitrários procedimentos em 1873, o que gerou mais de uma insurreição de caráter geral em 1874. Não se tratava de uma insurreição isolada; tratava-se de incorporar aos garibaldinos que ainda atuavam e aos mazzinistas avançados, supondo que podiam chegar a uma subversão como conseqüência das revoltas locais de origem social, tais como falta de alimentos, greves, descontentamento dos camponeses, etc. Malatesta se inteirou do plano ao sair da prisão e se dedicou a trabalhar nisso de Nápoles à Sicília. Houve quem cometesse erros, contudo Malatesta fez tudo o que pôde para conseguir armamentos e preparar a ação. Nem ali todos atenderam à convocação e o que se fez em Apulia do 10 ao 14 ou 15 de agosto de 1874, próximo ao Castelo do Monte, teve poucas reper- 176 verve Em memória de Errico Malatesta cussões. Tratava-se de um desafio ao Estado e ao sistema atual, ataque este que não pode ser esquecido. Malatesta, vendo que estavam todos presos, dirigiu-se a Locarno sendo preso em Pistoia, antes de chegar. Seguiu-se um enorme processo contra ele e outros companheiros em Trani (Apulia) em agosto de 1875. A atitude dos processados atraiu a simpatia de todos, sendo absolvidos e saudados como heróis vitoriosos. Malatesta se mudou para Lugano, onde viu Bakunin pela última vez, e discutiu com Cafiero em Locarno a reorganização do movimento. Não demorou a fazer sua primeira viagem à Espanha, visitando Morago em Madri e Alerini na prisão em Cádiz. Queria promover a fuga deste último, o qual se negou por acreditar estar próximo da liberdade legal. Durante o inverno de 1875-76, Malatesta empenhouse ativamente na propaganda em Nápoles. Foi então que Merlino (1856-1930), seu companheiro do Liceu, entrou no movimento, atraído ao campo das idéias, sem intervenção de Malatesta, depois de trabalhar como advogado no escritório de Gambuzzi, ex-companheiro de Bakunin. Uma reunião em Roma (março de 1876) prepara a organização da Internacional. Malatesta foi um dos que participou, e quem se viu obrigado a voltar a Nápoles. Queria defender os sérvios na guerra contra a Turquia, mas foi detido duas vezes, na Áustria e na Hungria, e devolvido pela polícia à Itália. Interessavase pela causa das nacionalidades oprimidas, sentindose obrigado a interessar-se por aquele prelúdio da grande guerra russo-turca, como se tratasse de uma questão de honra. Em 1874, em Apulia, não chegou realmente a abater-se, e sentia uma espécie de rivalidade vendo que os republicanos garibaldinos lutavam como voluntários. Os internacionalistas desejavam mostrar igual espírito militar combativo. 177 4 2003 Ao regressar à Itália, começou a relacionar-se com os companheiros de Florença, e passou certo tempo em Nápoles com Cafiero e Covelli. Concordavam na teoria, sobre passarem do coletivismo ao comunismo anarquista, determinação a que chegaram os primeiros na Itália, discutindo e tratando de reorganizar a Internacional no Congresso de outubro em Florença, para empregar toda a força em um movimento revolucionário de caráter geral, social e anarquista, desta vez sem a cooperação dos republicanos. Contavam com o descontentamento social do povo urbano e camponês e resolveram começar pelas meridionais italianas, com a intenção de que a revolução poderia ter alguma efetividade antes de ser combatida. Durante este período, supunha-se que os trabalhadores do campo e da cidade se uniriam contra as forças governamentais antes que essas pudessem controlar a situação. A traição de um camponês que tinha influência em uma localidade, e com o qual contavam, comprometeu os conjurados, que se viram obrigados a antecipar o movimento, começando em abril e não em maio. Fazia frio; nas montanhas de Nápoles havia neve, e os revolucionários foram abatidos pelo frio e pelas privações. Cercados pelo exército, 23 revolucionários tiveram que se render, entre os quais estavam Cafiero e Malatesta. Era a noite de 11 para 12 de abril, em uma granja isolada cujo proprietário os traiu, delatando-os aos soldados. Esteve preso muito tempo e quando da morte do rei, grande parte dos supostos delituosos foram anistiados, sendo julgados e absolvidos os restantes em Benevento em agosto de 1878. A população ficou extraordinariamente impressionada, ao constatar a dignidade e integridade dos prisioneiros. Com freqüência se reprovou os anarquistas dizendo que os atos insurrecionais que criam em nome da anar- 178 verve Em memória de Errico Malatesta quia são pouco reflexivos, simplistas. Em 1877, assim como em 1874, aconteceu algo fragmentado, uma parte incompleta do plano total, um feito que devido à defesa não poderia se tornar público. Malatesta conversou posteriormente comigo sobre este assunto, explicando o verdadeiro caráter daqueles movimentos e deve-se considerar que assim como durante os anos 1860-70, a década seguinte, para muitos na Itália, o Estado era débil e havia esperança na possibilidade de mudanças políticas. Malatesta foi maltratado na Itália, no Egito, na Síria, na França, na Suíça, na Romênia e na Bélgica, em toda a Europa, entre 1878 e 1879, até achar asilo seguro em Londres na primavera de 1881. Foi a Genebra quando da fundação de La Révolte, e esteve em Paris quando surgiram os primeiros grupos anarquistas; na Bélgica quando o blanquismo revolucionário tinha influência. Chegou a Londres quando se preparava o Congresso Internacional Socialista em 1881. Enquanto isso, na Itália a mesma Internacional fôra reduzida ao silêncio, perseguida com grandes processos e quebrada com a deserção de Andrea Costa, que desde 1879 se entregou ao socialismo de aspirações parlamentares e arrastou por seu antigo prestígio os internacionalistas da Romênia. Malatesta, para ater-me só a ele, foi importante para contê-lo, mesmo estando só e distante. Em nenhum lugar encontrou apoio, exceto em Londres, de onde precisamente não podia influenciar o povo italiano contra o parlamentarismo. O Estado italiano se consolidou assim como outros Estados, aos quais o estatismo dava atribuições sociais e grande preponderância que desembocou na guerra universal, no funestíssimo período de 1880 a 1930, aproximadamente. Ainda perduram as formas estranhas e únicas de que se valeu o estatismo. 179 4 2003 Ninguém protestou como Malatesta contra o desvio, mas não pôde contê-lo e paralisou sua ação impetuosa. Em Genebra, de princípios de 1879 até sua expulsão da Suíça poucos meses depois, conheceu Kropotkin, vendo-se ambos com freqüência em Londres em 1881 e 1882. Deve-se ressaltar o fato de que um grupo limitado, íntimo, formado por Bakunin desde 1864 e reconstruído em Genebra em 1872, a Fraternidade Internacional, voltou a reconstituir-se no verão de 1872, elegendo Kropotkin como secretário. Malatesta e Cafiero estavam presos, mas figuravam como membros do grupo. Kropotkin e Malatesta foram os mais ativos propagandistas do reduzido círculo, obtendo confiança ilimitada um no outro, uma confiança que não foi homogênea nas idéias e táticas, apesar de ambos terem sido anarquistas comunistas convictos. Em um ensaio de Malatesta sobre Kropotkin, publicado em fins de 1930, e na Revista Blanca em 1931, explicou discretamente mas com firmeza, a diferença que o separava de Kropotkin, mostrando que não estavam de acordo na grande maioria dos assuntos. Pode se comprovar a diferença lendo os escritos antigos e os recentes dos dois revolucionários. Unidos por amizade indestrutível, cada um considerava a atividade do outro como de grande importância, abstendo-se mutuamente de diminuir a eficácia com a crítica, já que esta levada às últimas conseqüências produzia separação e cisão. Estiveram tacitamente de acordo em seguir cada um seu caminho, e com o passar do tempo, por este e outros motivos, deixaram de se ver com freqüência. Malatesta explica que a posição crítica não podia continuar quando começou a guerra mundial, encontrando-se com Kropotkin e produzindo-se uma cena penosa para ambos, porque foi um rompimento. 180 verve Em memória de Errico Malatesta Sabemos o que há no fundo de tudo isso. Malatesta não carecia de fé revolucionária, e a manteve até a última hora, mas supunha que o otimismo e certa expectativa de Kropotkin careciam de base realista. A espontaneidade criadora, a abundância, a cooperação harmoniosa quase automática, podem se produzir por uma evolução de condições favoráveis, mas não são, evidentemente, dados presentes, atuais, palpáveis e sólidos com os quais se possa contar hoje e amanhã, no dia seguinte que eclodir a revolução e antes desta para que seja eficaz, Malatesta buscava fundamentos mais reais e muito mais exeqüíveis e abundantes do mundo do qual há de sair toda evolução. Daí a simpatia de Malatesta pela organização, a relação mútua, os pactos, a pressão que se explica pela ausência efetiva de abundância, a qual não é ainda um feito, ainda que os depósitos estejam até o limite. Pensava Malatesta em todas estas coisas e se prevenia à rapidez dos amorfos, dos organizadores, dos que crêem na abundância absoluta e na felicidade automática, etc. Malatesta foi como o estorvo, o alvo predileto dos ataques, odiosos muitas vezes, dos fanáticos de uma prosperidade anarquista. Kropotkin julgava muitas coisas de maneira diferente, e o conhecem pouco aqueles que o julgam por “A conquista do pão”. A distância que o separa de Malatesta não o diminui, apesar de tudo. No fundo, as idéias de todo pensador anarquista emanam da ausência íntima do próprio ser, que expressa os desejos limitados pelo próprio caráter. No fundo, Malatesta e Kropotkin são muito diferentes. Merlino, não tão unido pelos laços indicados antes, iniciou uma crítica às idéias de Kropotkin em certo artigo de revista que foi publicado em novembro de 1893. No mês seguinte, Kropotkin começou a escrever um artigo que numerou como o primeiro de uma série, tal- 181 4 2003 vez o prólogo de um livro sobre tais críticas. Em janeiro, Merlino foi detido na Itália e semanas depois La Révolte foi suspensa. A série de artigos não foi escrita, e se foi, não chegou a ser publicada. De 1879 a 1887, Malatesta se contrapôs à tendência amorfa, partidária da espontaneidade, que torna impossível todo acordo para a ação revolucionária; também se mostrou contra a tendência de Costa, que representava deserção, a escapatória rumo ao parlamentarismo. Buscava uma cooperação para destruir o Estado e o capitalismo com os revolucionários autoritários, imaginando se separar deles no momento da derrubada do atual regime, e até atacá-los se impedissem os anarquistas de realizarem seus feitos característicos. Blanqui e os blanquistas pareciam constituir então um fator sério, mas Blanqui morreu e seus seguidores perderam o brio, que nunca havia sido colocado em prova. Malatesta expôs a idéia no Boletim do Conselho de Londres, e com mais franqueza na carta circular dirigida aos mais próximos da Fraternidade, carta que me enviou em 1930 e que eu preparava para o suplemento de La Protesta interrompido naquela ocasião. Se existiu blanquismo revolucionário, morreu com Blanqui no final de 1880. Malatesta lutou para dar coesão efetiva à Internacional que pretendia fundar. Os não partidários da organização só admitem um organismo sem outros órgãos além de um escritório que seja por sua vez uma caixa de correio para as cartas. As seções acabariam por não fazer nada para que ninguém oprimisse ou dominasse os outros. Um alemão e um russo constituíam o escritório com Malatesta. Nada se fez; não havia nada para se fazer e nada foi feito, sendo extinto o escritório pouco depois. Para apartar-se daquela inatividade forçada, foi ao Egito em janeiro de 1882 com alguns companheiros italianos desejosos de lutar nas fileiras árabes na in- 182 verve Em memória de Errico Malatesta surreição, então, contra os ingleses e outros exploradores europeus no Egito. Era o tempo da insurreição de Arabi Pashá, que tinha certo fundo social. Foi impossível vencer os ingleses, e uns meses depois, no começo de 1883, mudou-se para a Itália, disposto a lutar abertamente contra o desvio de Andrea Costa e a reorganizar a Internacional italiana. Foi detido e encarcerado até o final de 1883. Com luce fabbri cresatti Merlino e outros companheiros, enfrentou um grande processo. A acusação se referia ao Conselho e à nova Internacional de Londres, tal como haviam feito em Lyon para condenar Kropotkin e tantos outros a muitos anos de prisão. Em liberdade provisória, antes do fim do processo, fundou La Questione Sociale, pensado como Il Popolo, em Florença entre 22 de dezembro de 1883 e 3 de agosto de 1884. Apesar de estar condenado a três anos de reclusão, e Merlino a quatro, apelou e enquanto se resolvia a apelação esteve em liberdade até a decisão inapelável do tribunal, em janeiro de 1885, que confirmou os três anos. Podese dizer que às vésperas de ser condenado, tinha certa liberdade para renovar seus crimes de excitação e organização clandestina. De qualquer maneira, conseguiu fazer o melhor periódico que tiveram os anarquistas italianos. Entre camponeses foi escrito para combater aos desvios autoritários e reformistas e constituir grupos numerosos que tiveram desde então relações mais estreitas, apesar de que seu projeto de Internacional, explicado no Programma de organizzazione della Associazone Internazionale dei Lavoratori (Florença, 1884, 64 páginas) não ter sido realizado. A epidemia de cólera paralisou todos os esforços na segunda metade de 1884, e Malatesta acorreu a Nápoles, onde a situação estava difícil, para atender os doentes no hospital. Ao regressar a Florença, e tendo em vista a imi- 183 4 2003 nente condenação, preferiu a rebeldia e se ausentou de novo. Em fins de 1884 desapareceu e de Florença seguiu para Londres, de onde saiu com uns tantos companheiros militantes para Buenos Aires. Fugido da Itália, expulso de tantos outros países continentais, não sendo possível a atuação eficaz a partir de Londres, preferiu ausentar-se da Europa. Na Argentina, desenvolveu grande atividade propagandística unindo os companheiros de língua italiana e espanhola, fundando uma nova publicação, Questione Sociale (que nunca pude ver), ajudando na formação dos primeiros sindicatos, de espírito muito combativo, como a organização dos padeiros, etc. Pelo despertar dos elementos vitais, numerosos ainda que dispersos, a propaganda intensiva e coordenada data, na Argentina, da atuação de Malatesta de 1885 a 1889. A ação das massas trabalhadoras na Europa, que parecia anunciar o ano de 1889 e confirmar o seguinte, fizeramno escolher este último período para voltar à luta. Deve ter chegado à França em meados de julho ou no mais tardar em agosto de 1889. Termino a evocação de Malatesta em sua primeira juventude, aos trinta e cinco anos, na plenitude do vigor. Posso atestá-lo, já que o conheci em Londres meses depois, em novembro de 1889. Ainda que de mim só pudesse esperar que absorvesse seu tempo, foi, desde que nos conhecemos até sua morte, o companheiro mais amável, em toda nossa relação. As últimas palavras que me dirigiu foram as contidas na citada carta, que é de 31 de maio de 1932. Como sabia que falava então de Barcelona, as últimas palavras da carta diziam: “Minhas grandes lembranças a Urales, a Soledad e a Federica”. Nos satisfazia extraordinariamente dizer: “Estou um pouco melhor a cada 184 verve Em memória de Errico Malatesta dia que passa”, e logo chegou a notícia irrevogável de sua morte. Notas Este é o primeiro escrito de uma série de três publicados por Max Nettlau em memória de Malatesta. Tradução de Gabriel Passetti, de Max Nettlau. “En memoria de Errico Malatesta” in E. Malatesta. Escritos. Fundación Anselmo Lorenzo, Madri, Colección Clásicos Anarquistas 1, 2002. 1 Errico Malatesta nasceu a 14 de dezembro de 1853 no povoado de Santa Maria Capua Vetere, próximo a Nápoles. Malatesta. Etineraire, une vie, une pensée. Paris, 1989, no 5/6. [N. do E.] 2 Indicado para publicação em 11 de novembro de 2002 185 4 2003 malatesta e a violência1 luce fabbri* É a primeira vez, creio, que a figura lendária do velho revolucionário italiano, morto em 1932 aos 79 anos, aparece num filme. Peter Lilienthal2 a situa no pólo não violento de uma situação idealmente conflitiva, cujo pólo oposto é ocupado por terroristas letões, no ambiente multinacional dos refugiados, acolhidos pela ainda vitoriana Londres de 1910. A exibição do filme na retrospectiva de Lilienthal programada pela Cinemateca (com o apêndice de uma apresentação privada que por gentileza do Instituto Goethe foi oferecida aos atrasados) proporciona a ocasião para evocar uma personalidade interessante, que tem contribuído para fazer história mais do que admitem manuais e enciclopédias. Sua lenda surgiu no final do século XIX, mas sua vida, mesmo obstinadamente coerente, esteve sempre submersa em seu tempo, que, no final, já era tempo de aceleração de mudanças. Não sou imparcial ao falar dele, pois gostava muito dele, como se gosta de um bom avô. * Anarquista, escritora e historiadora. Filha de Luigi Fabbri, viveu em Montevidéu, Uruguai, de 1935 até sua morte em 2000. verve, 4: 186-194, 2003 186 verve Malatesta e a violência Acredito ser meu dever fazer esta declaração logo de início, para prevenir o leitor. E devo confessar que este carinho me inibe, pois nunca gostei da hagiografia. Mas penso que o Malatesta simbólico do filme requer a terceira dimensão do Malatesta histórico, não para os amantes do cinema (uma criação artística deve bastarse a si mesma), mas para os amantes da história. Da República à Internacional Nascido no seio de uma família abastada do reino de Nápoles — mais precisamente em Santa Maria Capua Vetere — em 1853, isto é, sob essa dinastia Bourbon à qual restava sete anos de vida, cresceu na atmosfera ardente criada pela expedição de Garibaldi, que em 1860 produziu a união de todo o Sul ao reino da Itália. A expedição havia sido conduzida com entusiasmos republicanos e teve um desenlace monárquico. Errico, como grande parte da juventude de estudantes napolitanos, no marco dessa desilusão, começou como partidário de Mazzini, o grande republicano, apóstolo da Jovem Itália e da Jovem Europa, que tanto havia contribuído com o processo de independência e de unificação e o tinha visto terminar de forma tão oposta a seus ideais. Aos quatorze anos, Malatesta foi preso pela primeira vez por ter escrito uma carta, julgada ofensiva ao rei Victor Manuel II, mas em 1870 já estava afiliado à Primeira Internacional. Nunca quis ser um teórico. Costumava dizer que seus motivos eram absolutamente primários: combater a injustiça, contribuir para melhorar a situação dos que sofrem opressão e exploração. “Violaria todos os princípios, se fosse necessário, para salvar a vida de um só homem”, o ouvi dizer mais de uma vez. “O amor — escrevia em 1892 — é o fundo moral do nosso programa”3. 187 4 2003 Identificada a causa do mal-estar social ao poder político do Estado e ao poder econômico do capital, pertenceu à ala bakuninista da Internacional (que, depois da dissolução, prevaleceu na Espanha e na Itália) e participou do trabalho conspiratório imposto ao novo movimento pelas perseguições. No turbilhão da história menor Houve uma tentativa insurrecional em 1874, outra, limitada à região de Benevento, em 1877. Errico participou das duas, mas diria que na segunda desempenhou, junto com Cafiero e o russo Stepniak, um papel protagonista, se a característica dos participantes não tivesse sido, justamente, a de rejeitar todo protagonismo. Os processos que seguiram a estas tentativas revolucionárias foram outras tantas ocasiões para difundir os princípios da Internacional. O banco dos réus se transformava invariavelmente em tribuna. Como conseqüência do processo de 1875, alguns jurados inscreveram-se na Internacional e o advogado defensor de Malatesta em 1878, Saverio Merlino, também se deixou convencer pelos argumentos de seu defendido, e foi logo, por muitos anos, militante anarquista. (Mais tarde ingressou ao Partido Socialista, sustentando em seu seio uma posição não marxista que, através de novas edições de seus escritos, está suscitando interesse na Itália atual, meio século depois de sua morte). Nos últimos trinta anos do século XIX encontramos Malatesta em qualquer ponto da Europa Ocidental no qual se estivesse preparando ou já tivesse eclodido um movimento emancipador, mesmo que sua finalidade não coincidisse totalmente com seus ideais. Em 1875, estourava uma revolta em Herzegovina (os Bálcãs contra a opressão turca); ele tentou juntar-se aos insurretos, 188 verve Malatesta e a violência porém foi detido, à beira do Sava, pela polícia húngara, que o entregou à polícia italiana depois de mil peripécias. Pouco depois tentou chegar, com o mesmo objetivo, à Servia. Era o espírito de Garibaldi que fermentava na juventude revolucionária. Mais tarde, porém, Malatesta limitou sua ação ao campo social. Em 1878, pouco depois do processo pela expedição de Benevento, é detido no Egito; deportado a Esmirna, foge e chega a Genebra, onde ajuda Kropotkin a publicar Le Révolté. Expulso da Suíça, vai à Romênia, mas em pouco tempo o encontramos em Paris como orador de rua. Expulso mais uma vez, vai à Bruxelas, de lá a Londres, e depois, clandestinamente, de novo a Paris, onde é detido por ter violado a expulsão. Só em Londres pôde, depois de tudo isto, morar alguns anos com relativa tranqüilidade e continuidade. Este é só um exemplo do que foi sua agitadíssima vida, completamente impossível de sintetizar. Momentos Certa vez fugiu escondido numa caixa, que o policial que o vigiava se ofereceu gentilmente a transportar. Outra vez, procurado, ocultou-se numa prisão de Nápoles, de cujo diretor fizera-se amigo numa detenção anterior. Durante uma manifestação na qual ele figurava como orador, no norte da Itália, chegou uma companhia de carabineiros com o objetivo de interromper o evento na primeira palavra considerada subversiva: temeu-se um conflito. Mas ele falou, como napolitano que era, das condições de miséria em que se encontrava o sul da Itália, de onde procediam todos os carabineiros (e ainda procedem); o capitão teve que sair rapidamente com seus homens, com os olhos cheios de lágrimas. 189 4 2003 Em 1884, sob liberdade condicional, organizou um grupo de companheiros de idéias para contribuir com o cuidado dos doentes de cólera, durante uma grave epidemia desta doença que se desencadeara em Nápoles. Enquanto ex-estudante de medicina, esteve no comando de toda uma seção, que foi a que obteve a maior porcentagem de cura. No término da epidemia, o atestado laudatório outorgado pelas autoridades sanitárias fôra rejeitado; ele publicou com seus companheiros um manifesto no qual afirmava que a causa da epidemia era a miséria. Logo em seguida teve que fugir da Itália, já que, enquanto isso, a Corte de Cassação falhara contra ele (era acusado de ter exaltado a Comuna de Paris em outro manifesto). Em suas andanças, freqüentemente padeceu de fome e privações de toda espécie. Mas sempre pôde subsistir dando aulas particulares, ou graças ao ofício de eletricista mecânico, que aprendera quando abandonou seus estudos de medicina para se tornar operário. Este foi sempre seu meio de vida, pois, quando seus pais morreram, destinou a totalidade do dinheiro herdado à divulgação de suas idéias, e doou, a seus inquilinos pobres, alguns imóveis que lhe teriam permitido viver comodamente. Inconvenientes de ser um mito. O “Lênin da Itália” Por ter iniciado muito jovem a sua militância, viveu ativamente a transição entre os séculos XIX e XX, entre o surgimento do movimento socialista na Primeira Internacional e os movimentos de massa que, na Europa Ocidental, seguiram-se à Revolução Russa e à Primeira Guerra Mundial. Chegou, sem dúvida, ao auge de sua notoriedade quando, logo após a Guerra, voltou à Itália vindo de Londres — apesar da oposição do governo 190 verve Malatesta e a violência italiano e, portanto, mais uma vez clandestinamente —, e foi aclamado por multidões exaltadas que o idealizavam, conhecendo apenas sua fama de lutador obstinado. A confusão entre o inconsistente revolucionarismo das massas, que o viram, por um momento, como o Lênin da Itália, e seu pragmatismo libertário e concreto, obrigara-o a perder tempo e energia numa cansativa luta contra seu próprio mito. Em cada discurso rejeitava, com o máximo de energia, as aclamações que tendiam a transformá-lo num chefe, numa tentativa de fugir do personalismo e suscitar a iniciativa criadora das bases sociais. Dirigiu, nesses agitados anos, o jornal anarquista Umanitá Nova. Das suas colunas e da tribuna, esforçou-se inutilmente para que a retórica revolucionária se transformasse em ação construtiva. Nesse sentido, lutou desesperadamente para que a ocupação das fábricas pelos operários, que se produziu em toda a Itália em 1920, fosse permanente. O abandono das fábricas abriu as portas ao fascismo, que, em poucos anos, destruiu toda vida independente. Em 1926 foi publicado o último número da última publicação dirigida por Malatesta: a revista Pensiero e Volontá. O pensamento O caráter distintivo de Malatesta no espectro das múltiplas tendências socialistas do fim do século foi a rejeição do determinismo difuso entre todas elas — inclusive as libertárias — graças ao cientificismo positivista e de uma interpretação primária do marxismo. As idéias de Malatesta foram voluntaristas, baseadas na reivindicação dos direitos dos trabalhadores do campo e da cidade, mas orientadas para uma sociedade centrada no homem enquanto tal em seus dois aspectos, individual e social, uma sociedade liberada da opressão econômi- 191 4 2003 ca e política, cimentada nos dois valores fundamentais da liberdade e da solidariedade. Era partidário do “gradualismo revolucionário”, pois acreditava que a revolução não deve impor nada pela força, e, portanto, deve limitar-se às realizações que encontram o consentimento da maioria. Mas reivindicava para as minorias não só as liberdades clássicas, mas também a liberdade das realizações experimentais. Era, então, pluralista e partidário da tolerância para todas as formas de organização que não implicassem em imposição e exploração do trabalho alheio. Concordava com a idéia de seu amigo Kropotkin (desenvolvida em seu conhecido livro Apoio Mútuo) de que há nos seres vivos um instinto solidário que não anula, mas que complementa a darwiniana “luta pela sobrevivência”. Mas não compartilhou o espontaneísmo kropotkiniano e estava convencido da necessidade da organização, tanto para os movimentos de reivindicação como para a sociedade futura. Por isso se manteve em constante, ainda que cordial, polêmica com as tendências individualistas, que negavam o Estado partindo de Stirner e Nietzsche. Era favorável ao movimento operário, mas não foi sindicalista, pois nunca considerou positivo o monopólio sindical da luta e da reconstrução. Seu ideal era uma sociedade organizada como federação coordenadora de autonomias, nos mais distintos âmbitos, sobre a base de uma propriedade social (não estatal) da terra e dos meios de produção. Considerava a violência um fenômeno autoritário. Admitia e pregava a insurreição popular contra o Estado repressivo, por considerá-la legítima defesa, mas a limitava à ruptura das estruturas de exploração e de poder. Para as soluções reconstrutivas, confiava apenas no exemplo e na persuasão. Resolutamente contrário ao terrorismo (O terror foi sempre instrumento da tira- 192 verve Malatesta e a violência nia), e ao ódio como motor revolucionário, afirmava: “Não somo vingadores ou justiceiros”. O roubo na joalheria, tentado pelo grupo de letões que protagonizava o filme de Lilienthal e que acabou com a morte trágica de um dos líderes do grupo, deu-lhe motivo para escrever o artigo “Capitalistas e ladrões”, que o próprio filme cita no final. Nele, compara o roubo com a apropriação do trabalho alheio que caracteriza o capitalismo. Quase ao mesmo tempo, era publicado em Pagine Libere de Lugano (número de 1º de janeiro de 1911) um artigo do então socialista Benito Mussolini, que continha uma acalorada apologia dos terroristas tragicamente mortos em Londres e de seus métodos. Encerro este rascunho com umas linhas escritas por Malatesta numa carta pessoal aos meus pais, no seu último ano de vida, sobre os sentimentos de justiça e amor como forças sociais. “Justiça significa dar aos outros o equivalente daquilo que você recebe; significa l’echange égal de Proudhon, significa reciprocidade, proporção, e portanto, implica cálculo, medida... O amor, entretanto, dá tudo o que é possível e gostaria de dar cada vez mais, sem contar... Em economia, “dar a cada um segundo seu trabalho” seria justiça, “dar a cada um segundo suas necessidades” seria mais do que justiça. Penso que no espírito humano existem dois sentimentos contrapostos: o sentimento de simpatia, de amor para os semelhantes, que é sempre fator de bem, e o sentimento de justiça, que é causa contínua de luta, pois cada um acha justo aquilo que lhe convém. Aquele que se apoderou da terra acha justo que aquele que dela queira tirar proveito lhe pague um tributo. O conquistador, já que teve a força e a habilidade de vencer, acha justo dominar o povo conquistado... O comunista autori- 193 4 2003 tário e o fascista dirão, já que o indivíduo é um produto social, é justo que se submeta à Sociedade e ao Estado que pretende representá-la... Até o antropófago deve ter sentido, em sua turva consciência, que era justo matar e devorar seu inimigo vencido, já que este o teria devorado caso fosse o vencedor...”. Desta maneira justificava Malatesta sua afirmação, numa carta anterior, que meu pai objetara: “Nosso programa, baseando-se no amor, vai além da própria justiça”. Ao escrever estas palavras, Errico Malatesta estava apenas com sua companheira e sua filha adotiva, vigiado dia e noite pela policia de Mussolini, sem poder receber nenhum visitante, já que este seria imediatamente detido, com o único horizonte da morte próxima. Nota Luce Fabbri. “Errico Malatesta y la violencia”. Jacques, Montevideo, 1984, no 39. Tradução de Natalia Montebello. 1 2 A autora se refere ao filme Malatesta, de 1970, do diretor alemão Peter Lilienthal e escrito por ele, Michael Koser e Helthcote Williams (N. do E.). 3 En dehors, Paris, 17/8/1892. Indicado para publicação em 11 de novembro de 2002, por sugestão de Margareth Rago. 194 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo1 maurício tragtenberg * Errico Malatesta via no anarquismo um alvo a realizar subtraído a qualquer apriorismo filosófico ou científico. Não subordinava o anarquismo a nenhuma teoria, não o estabelecia enquanto sistema; para ele, o anarquismo era, antes de mais nada, uma atitude: antiautoritarismo e solidariedade social. Uma visão bem diferente de outros teóricos do anarquismo, para os quais, como Kropotkin, o anarquismo se constituía enquanto sistema ou em obediência às leis da ciência. Para Malatesta, o anarquismo é o objetivo prático a conseguir através da ação social das massas; o anarquismo consiste no complexo de métodos e formas de ação, tendo como base a vontade realizadora. Desenvolve Malatesta uma concepção voluntarista em contraposição à concepção determinista (Kropotkin) para quem o Foi professor no Departamento de Política e na Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, na Unicamp e na FGV. * verve, 4: 195-227, 2003 195 4 2003 anarquismo seria “inevitável”, determinado por uma lei do progresso. Malatesta define que a existência de uma vontade capaz de produzir efeitos novos, independentemente das leis mecânicas da natureza, constitui uma pressuposição necessária para aquele que defende a mudança social2. A finalidade da propaganda anarquista, para ele, era formar essa vontade, difundindo idéias e exemplificando com fatos. Para que o anarquismo seja uma realidade enquanto vida de grupos sociais, dizia ele, era necessário que interviesse a vontade organizadora de seus membros, capazes de estabelecer, com base na liberdade, todas aquelas relações fundadas na autoridade. A destruição dos órgãos autoritários e a ampliação de novas estruturas fundadas na liberdade, segundo ele, não se dará por via espontânea e automática; tanto para a destruição como para criação a vontade humana está presente. A harmonia entre os homens não se deve a uma ação espontânea da natureza, somente pela ação consciente e voluntária será ela conseguida, diz Malatesta. Não negava ele a existência de relações de causalidade nos fenômenos sociais e históricos, apenas regia pela negação da subjetividade, da vontade humana no processo histórico. Uma vida consciente e ativa pressupõe a eficiência da vontade, sujeita às limitações de ambiente e época histórica. Cabe às ciências sociais, diz ele, estudar as leis gerais que regem o desenvolvimento das sociedades e ao mesmo tempo fazer com que as vontades dos indivíduos concorram unanimemente a um objetivo comum perseguido por todos. Para Malatesta, a noção de anarquia está fundada no respeito à personalidade humana e no amor às pesso- 196 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo as. A luta pela libertação da humanidade da opressão e exploração, para ele, só pode ser fruto de uma vontade: a vontade daqueles que desejam tal libertação. Ao justificar por que intitulara de Volontá a revista por ele publicada em Ancona (Itália), Malatesta explicava que este nome era uma reação às teorias deterministas e fatalistas que negam o livre-arbítrio do homem. Para ele, tais teorias são paralisantes da ação humana, além de extinguirem qualquer entusiasmo humano. Além do mais, dizia ele, o título Volontá aplica-se muito bem ao desejo de uma sociedade em que os homens cooperem voluntariamente para o bem coletivo. Criticava ele os deterministas mecanicistas de sua época no meio anarquista que pretendiam reduzir o movimento social a uma lei mecânica, onde tudo está predeterminado por antecedentes físico-mecânicos. Num sistema deste tipo não há lugar para o sujeito, para a vontade e a para liberdade, argumenta Malatesta. Pergunta ele: ao aplicar-se aos fatos sociais e morais da vida humana a interpretação mecânica dos fenômenos como na física, química, fisiologia, chega-se à conclusão de Laplace, segundo a qual tudo que sucedeu deveria ter sucedido daquela forma. Que lugar haveria num sistema destes para a vontade, responsabilidade e liberdade? Se o homem não influi nas coisas, para quê educação? Se o homem nada tem a aprender num universo determinístico, a pedagogia é totalmente desnecessária. Por valorizar o fator vontade, Malatesta opunhase na sua época a todos os deterministas mecanicistas, viessem da corrente anarquista, como Kropotkin, viessem da corrente marxista, como Kautsky, Labriola. Assim, reagia ele à interpretação determinista que Karl 197 4 2003 Kautsky, o maior teórico da II Internacional, dava aos conceitos de “miséria crescente”, “concentração do capital”. Da mesma forma não idealizava as massas; para ele havia massas reacionárias, conservadoras e revolucionárias. O predomínio de uma dessas tendências submetia-se à lei do ascenso e descenso do movimento das massas. Em períodos de ascenso social, as massas tornam-se audaciosas, criativas e reivindicativas; num período de descenso do movimento social, apareciam apáticas, submissas e recolhidas à vida privada. É claro que aí se coloca o problema, segundo os marxistas reside na “vanguarda”, segundo os anarquistas reside nas minorias; essas minorias — incluída a minoria anarquista — devem, segundo ele, estar sempre junto às massas, formar núcleos que organizem a vontade de mudança social. Embora trataremos com mais detalhes deste aspecto mais adiante, avançamos por ora, dizendo que ele via na minoria uma vanguarda, porém, fundamentada numa poderosa “retaguarda”. Critica Malatesta qualquer idealização da massa, pelo fato de a miséria e opressão que ela sofreu milenarmente terem efeitos negativos na sua conduta; aos efeitos deprimentes da miséria e opressão, ele opõe os efeitos construtivos da influência moralizadora do trabalho. Vê ele uma missão para a minoria anarquista e voluntarista: derrubado o Estado burguês, a anarquia só pode vir na medida em que a massa conceba-a e desejea; porém, nunca viria se não houvesse uma minoria anarquista que preparasse o ambiente para isso. E isso através do exemplo: essa minoria anarquista, estruturando formas livres de vida, leva-as à sua multiplicação no âmbito social. 198 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo O anarquismo não está vinculado a nenhuma escola filosófica específica, o indivíduo pode ser anarquista sendo espiritualista ou materialista. Pois ele nasceu da rebeldia às injustiças socias. Quando um grupo de homens percebeu que a miséria e dor dos trabalhadores não são devidas a nenhuma lei inexorável, mas fruto de uma organização social dividida em classes, cabendo lutar para suprimir essa desigualdade, surgiu o anarquismo, diz Malatesta. Diferente de Malatesta, Kropotkin concebia o anarquismo como uma filosofia científica no sentido positivista do termo, admitia que o anarquismo tinha como base a interpretação mecânica dos fenômenos da natureza englobando as sociedades humanas, acreditava encontrar na natureza a comprovação do seu ponto de vista, segundo o qual a anarquia era a ordem natural, pela qual a harmonia reinará em todas as coisas, inclusive nas sociedades humanas. Liberdade para todos Dessa maneira sintetizava Malatesta o anarquismo. Tratava-se não de uma liberdade teórica e jurídica, senão de uma liberdade de fato, que consiste na ausência de toda coerção violenta do homem sobre o homem e na faculdade de cada um dispor de si mesmo e fazer o que quiser, tendo como limite a liberdade dos outros. No entanto, para Malatesta, isso não era um ideal de realização longínqua, mas também uma norma de conduta, de luta a partir do aqui e do agora, no contexto da sociedade existente. Esse aspecto, mesmo entre os anarquistas, é tratado abstratamente. Muitas vezes, eles agem autoritariamente hoje, reservando-se para amanhã agirem libertaria- 199 4 2003 mente. Contra esse tipo de inconsistência, Malatesta pregava constantemente. Uma vez, na pequena aldeia da Umbria, em Foligno, em junho de 1897, um Círculo Católico quis inaugurar sua sede com uma procissão religiosa. Os anticlericais da localidade, incluindo os anarquistas, dissolveram a procissão a paus e socos. Este é um dos casos em que o dogmatismo, mesmo anti-religioso, conduz a atitudes autoritárias na prática. Num artigo intitulado “Per La Libertá”, L’Agitazione de Ancona de 2 de setembro de1897, escreve Malatesta a respeito: “que isto seja visto como um triunfo liberal e que os liberais façam isso, uma experiência secular provou-o, o que por liberdade entende a classe social que triunfou com a revolução de 1789: a burguesia. Começou seu reinado assassinando os prisioneiros e guilhotinando em massa a nobres e populares, “realistas” e comunistas; defendeu-se com inaudita ferocidade sempre que viu seus privilégios perigarem, restabelecendo a odiosa ordenação Real que contém uma arbitrária de prisão ou de desterro. Parece-me que nas violências contra os clericais, tomaram parte os anarquistas e isso me envergonha. Sabemos — escreve Malatesta — que, apesar dos programas, o espírito de violência e dominação, a tendência a abusar da força e a voluptuosidade de impor aos demais as próprias idéias, estão muito vivas no ânimo daqueles que se proclamam partidários da liberdade, mesmo da liberdade absoluta. Está na hora de limitar e deter o avanço do autoritarismo que existe em nossos meios e dizer bem alto que não é anarquista o que não respeita nos outros a liberdade que reclama para si, que, odiando os esbirros, adota suas posturas quando tem oportunidade de fazê-lo. Devemos opor à propaganda a propaganda e não recorrer à repressão. Caso o contrário, a população acreditará que seremos tiranos 200 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo iguais aos outros quando formos mais fortes, que a anarquia será vã palavra como foi vã a palavra liberdade, da qual os burgueses, antes de seu triunfo, diziam ser defensores”. Da mesma maneira, polemiza Malatesta com aqueles anarquistas que defendem o ponto de vista segundo o qual a liberdade plena é para a futura sociedade; no caso da sociedade atual, enquanto existir como é, devem ser negados aos inimigos qualquer liberdade ou qualquer direito. Malatesta critica veementemente essa concepção que permite a liberdade na sociedade futura, negando-a no presente. Assim pensando, é que se estabeleceram e se estabelecem as tiranias presentes e futuras. Liberdade para todos, sem outro limite que a igual liberdade aos demais, isso não significa respeitar a opressão, a exploração que são o oposto da liberdade, argumenta ele. Raciocina Malatesta: o adversário pode estar errado, sua propaganda pode produzir danos, no entanto, tem direito à liberdade mais completa. De outra maneira: quem julgaria qual é a verdade permitida e a verdade proibida? O direito a combater e suprimir o erro pela violência é teoria de inquisidores, serviu de justificação a todas as tiranias. Os anarquistas só usam violência para resistir e subtrair-se a ela. São partidários de que a liberdade que reclamam para si seja estendida a todos sem exceção, seja a liberdade de imprensa, palavra e reunião. Porém, a liberdade para saquear, incendiar e assassinar, pregada pelo fascismo, é arbitrariedade infame, prepotência e violação de todas as liberdades. No artigo “Religione e questione sociale” em L’Agitazione, Ancona, 12 de agosto de 1897, escrevia Malatesta: “Somos inimigos da religião como somos inimigos da 201 4 2003 economia política burguesa, que substitui os decretos de Deus pelas leis naturais...” e, finalmente, justifica dessa forma a dominação e exploração da maioria por uma minoria. Porém, diz ele, é possível que da idéia de Deus uns deduzam que é importante lutar pela igualdade e liberdade humana e outros infiram o dever de obediência e resignação ante a hierarquia. Da mesma forma acontece com a hipótese darwiniana: uns deduzem a justificação do regime burguês e outros a razão de ser do socialismo, acrescenta. Muito mais importante do que crer ou não crer em Deus era o fato de o trabalhador rural poder olhar seu amo de frente, esclarece Malatesta. Nesse sentido, diz ele, possui a fé que remove montanhas, porém não a fé cega, mas resultado de uma firme vontade unida a uma forte esperança. Questão de organização Uma das maiores preocupações de Malatesta dizia respeito à organização operária e sindicalismo. Dava ele à discussão a respeito de organização a importância máxima, pois via na anarquia uma organização libertária em substituição a uma organização autoritária. Em 1886, na Argentina, via-se nascer as primeiras organizações operárias por sua obra. Exerceu imensa influência nos fundadores do anarco-sindicalismo francês, Pelloutier e Pouget, que visitavam-no por ocasião de seu exílio em Londres. A partir de 1897, sua propaganda em favor do anarco-sindicalista na Itália cresce e influencia Armando Borghi, o grande organizador operário de Bolonha. 202 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo Bem antes de falar-se em sindicalismo, Malatesta pregava a “ação direta”, a “greve geral” e a solidariedade de classe acima da divisão dos partidos políticos operários. Num artigo publicado no número 847 do jornal Il Risveglio de Genebra, em 1 de maio de 1932, escrevia ele a respeito: “Devemos procurar influir diretamente sobre a massa e conseguiríamos isso se vivêssemos em seu seio, se fizéssemos uma propaganda clara, simples, vinculada ao quotidiano em lugar de assumirmos ares filosóficos, querer a todo preço aturdir o mundo e permanecermos entre nós discutindo bagatelas, dizer coisas terríveis que... jamais se realizam.” Incitou sempre seus companheiros a permanecerem no meio da classe trabalhadora, esclarecendo-a de que ela não pode emancipar-se senão pela abolição de qualquer poder político. Pregava a criação e participação nas associações operárias onde existirem. Segundo ele: “a concordância, a associação, a organização são a lei da vida e o segredo da força hoje como após a revolução”, conforme artigo seu no jornal La Révolte, em 1 de outubro de 1892, Paris. Para ele, a greve tinha uma função educativa, especialmente na sua preparação, os trabalhadores aprendem a lição da solidariedade, do apoio mútuo, embora não seja a greve que irá resolver a questão social. Porém, considerava Malatesta, o movimento sindical que começa reivindicativo tende rapidamente a degenerar. “Quanto mais forte se torne este movimento, mais ele se torna egoísta, conservador, ocupado exclusivamente com seus interesses imediatos e restritos e desenvolve em seu seio uma burocracia que, como sem- 203 4 2003 pre, não tem outro objetivo senão o de fortalecer e de crescer”3. Embora os sindicalistas revolucionários representem uma posição avançada na luta sindical, adverte Malatesta que “cada instituição possui uma tendência a desdobrar suas funções, a se perpetuar e a se tornar seu próprio objetivo”. A questão é que o mercado de trabalho é regulado por normas capitalistas, daí os trabalhadores são colocados em posição de concorrerem entre si; o interesse de cada trabalhador é ter seu emprego, em conseqüência concorre com os desempregados de seu país e com a mãode-obra estrangeira. O sindicalismo está condenado a ocupar-se mais dos interesses de certa categoria profissional de operários do que dos interesses do público em geral, do interesse dos sindicatos mais do que dos interesses dos desempregados e dos interesses da classe operária. Os sindicatos, à medida que são abertos a todos, perdem em importância suas opiniões sobre a organização social global; à proporção que o sindicato cresce numericamente, seus fundadores perdem-se na grande massa, enquanto que a maioria se ocupa das pequenas questões do momento. Conclui Malatesta: “Assim, pode-se ver desenvolverse em todos os sindicatos que atingiram uma posição influente a tendência a assegurar — em acordo ao invés de contra os patrões — uma situação privilegiada, a criar dificuldades para a admissão de novos membros, uma tendência a entesourar fundos que eles temem depois comprometer, a procurar o favor dos poderes públicos: a se absorver inteiramente na cooperação e em todas espécies de mutualidades e a se tornar em elemento conservador na sociedade”4. 204 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo Entendia ele que o movimento sindical não poderia substituir o movimento anarquista, caberia ao anarquismo uma função estimuladora no sindicato, combater tudo o que tenda a tornar o sindicalista egoísta, conservador, o orgulho profissional, o espírito corporativista, as grandes cotizações, acumulação dos capitais investidos, confiança nas boas funções do governo, burocratas remunerados e funcionários permanentes. Vaticina para os anarquistas o mesmo fim que coube aos social-democratas, logo após eles terem entrado no parlamento: “Ganharam em força numérica mas se tornaram cada dia menos socialistas. Nós — escreve ele — nos tornaremos cada dia mais numerosos, mas cessaremos de ser anarquistas”5. Paralelamente à sua crítica ao sindicalismo, ele não poupava crítica à greve geral, como substituto da insurreição, achando seus defensores que ela obrigaria a burguesia a render-se premida pela fome! Houve até militantes que procuravam armazenar ervas e “pílulas” capazes de sustentar indefinidamente o corpo humano sem necessidade de alimentá-lo, colocando os proletários em condições de esperar num jejum pacífico que os burgueses viessem desculpar-se e pedir perdão! Para ele, por sua natureza, o sindicalismo operário tende ao reformismo. O movimento operário, se não for fecundado pela crítica dos revolucionários libertários, longe de levar à mudança social, levará à maior adaptação à sociedade existente. O sindicato não pode ser um veículo a-histórico para mudança social, ele é fruto do regime capitalista; um regime socialista deverá encontrar outros órgãos para que cumpram as tarefas desse novo regime. 205 4 2003 Malatesta insistia em que os sindicatos, como as cooperativas, podem ser órgãos provisórios que sirvam à transição ao anarquismo. Queria ele dirimir a confusão existente entre sindicalismo e movimento anarquista; o sindicato deve ser autônomo ante qualquer partido ou tendência para cumprir seu papel de resistência dos trabalhadores ante ao capital e o anarquismo deve ter um movimento autônomo ante qualquer organização operária existente, para cumprir seu papel de incentivador, organizador da revolta social, dos trabalhadores, setores médios, homens e mulheres, trabalhadores urbanos ou rurais. Explica Malatesta que aos anarquistas não interessa dominar a União Sindical Italiana, não pretende o poder porque não quer dominar. O homem que pensa com seu próprio cérebro é preferível àquele que quer dominar tudo e aprova cegamente tudo. Admitia que, para ele, os sindicatos têm uma função positiva sob o capitalismo, agregar os trabalhadores e organizá-los na luta econômica. O capital opõe trabalhadores de um setor industrial aos de outro setor. Exemplifica ele com a Federação Americana do Trabalho, nos Estados Unidos; a grande luta dessa Federação é contra os forasteiros, recém-chegados à procura de uma carteira sindical, aqueles que não podem obter trabalho nas fábricas, que recorrem à Federação, que vão oferecer sua força de trabalho a um patronato que os emprega por salários inferiores aos do mercado. É característica do sindicalismo norte-americano que quando consegue alcançar o número de sócios que permite à organização tratar o patronato de igual para igual, procura impedir a entrada de novos sócios. Nesse contexto, os operários qualificados desdenham os manuais, os brancos oprimem os negros, os “verdadei- 206 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo ros” norte-americanos desprezam os trabalhadores de origem chinesa ou italiana. Num período revolucionário, diz Malatesta, os sindicalistas serão muito valiosos, com a condição de que sejam menos sindicalistas. Há anarquistas que vinculam diretamente o movimento operário ao anarquismo: são os anarco-sindicalistas. Na ação sindical, o grave não é aceitar um cargo de direção, é perpetuar-se nesse cargo. É importante, adverte Malatesta, que o pessoal dirigente se renove mais rapidamente, seja para capacitar um número maior de trabalhadores nas funções administrativas, seja para impedir que o trabalho de organizador se transforme em profissão, imbuindo as lutas operárias com a preocupação da perda do cargo. Os sindicalistas como os anarquistas têm aversão ao comunismo estatal, querem também prescindir do governo substituindo-o por sindicatos e atribuem a eles a função de controlar as riquezas, requisitar víveres, distribuí-los, organizar a produção e a distribuição dos produtos necessários à sociedade. Não haveria inconveniente, argumenta Malatesta, se os sindicatos o fizessem desde que abrissem suas portas para todos e deixassem os dissidentes se auto-organizarem. Porém, a expropriação e distribuição de bens devem ser definidas através de assembléias populares, especificando os grupos ou indivíduos encarregados de fazêlas. Ocorre que, se existe um pequeno número de pessoas que por um longo hábito são consideradas chefes dos sindicatos e existem secretários permanentes e organizadores oficiais, seriam eles que organizariam a 207 4 2003 revolução tendendo a considerar como intrusos os que quiserem tomar iniciativas independentes deles e desejarão, embora com as melhores intenções, impor sua vontade, mesmo usando força. Qual seria o resultado disso? pergunta Malatesta. Ele mesmo tem a resposta: o regime sindicalista se transformaria na mesma tirania em que se transformou a chamada ditadura do proletariado. O remédio contra esse perigo radicaria na existência de uma massa de indivíduos capazes de iniciativas e tarefas práticas, na massa não abandonar causas coletivas nas mãos de qualquer um e delegar só para cargos determinados e por pouco tempo. Tal espírito só pode ser criado por sindicato onde a influência libertária for importante. Há partidos políticos que pretendem atrelar o sindicato a suas posições e práticas, isso deve ser combatido, da mesma maneira deve ser rejeitada a posição de “excluir a política dos sindicatos”, o que esconde uma mentira. A política é parte integrante da vida social, à medida que existe um Estado a serviço de uma classe dominante que impregna com sua presença a esfera econômica, política e social. Nenhuma organização operária pode ser independente de partidos a não ser que se transforme num. Portanto é vã a espera em excluir a política dos sindicatos. Qualquer greve econômica transforma-se numa greve política e é neste âmbito que a solução do dilema autoridade e liberdade terá lugar. Enquanto os trabalhadores reivindicam pequenas concessões da classe dominante, a luta é mantida pelos capitalistas no âmbito econômico; tão logo estes se vêem prejudicados — argumenta Malatesta — como na rebelião de Mussolini na Itália e Franco na Espanha, empregam seu poder econômico para financiar um novo regime que possa melhor servi-los. 208 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo A aceitação da sociedade de classes, a limitação da luta a migalhas econômicas, é característica da Federação Americana do Trabalho e das trade unions inglesas; ao fazer isso o sindicato transforma-se numa correia de transmissão dos desejos da classe dominante. A ação puramente sindical tende ao reformismo, ela pode chegar a encarnar a idéia de mudança social, por influência daqueles que têm um ideário claro a respeito. A organização anarquista Malatesta polemizou muito contra aqueles anarquistas individualistas que negam a necessidade de uma organização. Para ele a organização não é somente a prática da cooperação e da solidariedade, condição de existência da vida social, ela constitui um fato que se impõe a todos. O homem só é verdadeiramente homem na sociedade, contando com a cooperação de seus semelhantes. O erro maior dos inimigos de qualquer forma de organização consiste no fato de acreditarem que não pode haver organização sem autoridade, preferindo renunciar a qualquer tipo de organização para não aceitar a mais mínima autoridade. O homem conheceu várias alternativas de sociabilidade: sofrer a autoridade dos outros (escravos), impor sua vontade aos outros (ser a autoridade) ou viver com os outros mediante um acordo fraternal (ser um associado). Ninguém pode eximir-se dessa necessidade social e os anti-organizadores radicais não deixam de sofrer os resultados da organização geral da sociedade em que vivem; inclusive na sua rebelião contra a organização se organizam com aqueles que estão de acordo e utilizam os meios de que a sociedade dispõe. 209 4 2003 No caso do movimento anarquista, ou ele parte para ação organizada ou sucumbirá na impotência e no isolamento e cairá numa completa apatia. Pode declarar que quer conhecer algo e não quer fazer algo, porém, para Malatesta, o socialismo e o anarquismo são finalidades, projetos a serem postos em prática. Se os anarquistas não conseguem reunir-se em associação, precisando de chefes, isso quer dizer que eles devem capacitar-se a viver anarquicamente antes de mais nada. É na impotência da ação coletiva do povo que surgem as burocracias que ocupam seu lugar, burocracia policial para garantir a ordem nas ruas; se o produtor não tem contato direto com o consumidor para satisfazer uma demanda econômica, surge o intermediário, o comerciante para ocupar um espaço. Quanto menos organizado estiver o povo, tanto mais estará dependente da ação de um indivíduo investido como chefe. O que elimina a liberdade e torna impossível a iniciativa não é a organização, é o isolamento que torna os homens impotentes. É na cooperação com os outros homens que o homem encontra espaço para desenvolver sua iniciativa. Para Malatesta, uma organização anarquista deverá estruturar-se com base na plena autonomia e liberdade e, portanto, sob a plena responsabilidade dos indivíduos e dos grupos; o livre acordo entre os envolvidos na luta por um fim comum, o dever moral em manter os compromissos aceitos. Os grupos, as federações devem desenvolver uma prática que não contrarie o programa definido e aceito por todos. Os congressistas, numa organização anarquista, embora possuam todas imperfeições dos órgãos representativos, estão imunes ao autoritarismo na medida 210 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo em que não legislam nem impõem ao grupo suas próprias deliberações. Servem para manter e aumentar as relações pessoais entre os militantes mais ativos, sintetizando os estudos a respeito das formas de ação na sociedade, formulando opiniões correntes entre os anarquistas. Elaboram estatísticas, porém suas decisões não constituem regra obrigatória, senão para aqueles que as aceitam e enquanto as aceitarem. Numa organização anarquista todos os membros podem expressar todas as opiniões e empregar todas as técnicas que estejam de acordo com os fins estabelecidos. Uma organização dura enquanto o consenso superar o dissenso, caso contrário, ela se extingue e dá espaço a outras que apareçam. A duração de uma organização libertária deve ser o resultado da afinidade entre seus membros e de sua adaptabilidade às situações que mudam. Há inúmeros libertários, diz Malatesta, que só aceitam atuar em organizações anarquistas ou que tenham o anarquismo como finalidade; tal método condenará o anarquismo à esterilidade. O trabalhador que compreender que sua força é a solidariedade com seus iguais, que compreender a burguesia e o Estado como parasitas, mesmo que não o diga, é um anarquista, escreve Malatesta. Fortalecer os movimentos sociais populares é uma conseqüência lógica da adoção das idéias anarquistas e deveria fazer parte do programa de qualquer entidade anarquista. A diferença entre a organização anarquista e a estatal é que a organização anarquista é voluntária, estruturada livremente pelos diretamente interessados, enquanto a organização estatal é coativa, imposta segundo os interesses de classes ou grupos dominantes. Or- 211 4 2003 ganização autoritária é aquela em que os adeptos põem seu direito de iniciativa e de intervenção em mãos de alguns indivíduos que devem pensar por todos e servirse da força coletiva para realizar sua vontade particular, enquanto na organização anarquista cada membro é um indivíduo autônomo que se associa em condições de paridade com os que têm os mesmos objetivos, para encontrar na associação o apoio que lhe falta se agisse isoladamente. Assim, a organização direta, livre, sem obrigações impostas, é a anarquia. A anarquia é uma sociedade fundada no livre acordo de vontades livres, de todos e de cada um. Explica Malatesta, no plano teórico somos pela liberdade contra a autoridade, no plano prático, somos pela livre ação do povo contra toda ditadura. Quando falamos de interesse geral, exemplifica Malatesta, entendemos o bem de todos, isto é, de cada indivíduo e não este pretenso interesse social que sempre foi a mentira que serviu para justificar todas as tiranias. Esse bem só será alcançado garantida a liberdade individual total. O interesse geral deve ser a soma dos particulares; quando em conflito, é preciso que se harmonizem na base de concessões mútuas. Se, ao contrário, é um governo que deve findar com esses conflitos, significa a pretensa harmonização, na prática o sacrifício da maioria e o triunfo dos governantes e seus amigos. Anarquia, para Malatesta, significa não-governo e ainda com mais razão não-ditadura, entendida como governo absoluto sem limites ou controles constitucionais. Ironicamente nota Malatesta: quem diz que a anarquia não é um ideal sublime? Mesmo os prefeitos e os magistrados concordam com isso; enquanto esperam, prendem-nos e nos fuzilam! 212 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo Coisas administradas pelo livre acordo significam anarquia, administradas pelos burocratas do governo é Estado, igual à tirania. Anarquia e socialismo são interligados como o fundo à forma, o fim ao meio. O socialismo sem anarquia é o Socialismo de Estado, que é uma impossibilidade, pois o socialismo seria destruído pelo órgão que deveria mantêlo: o Estado. Quanto à imposição do anarquismo, Malatesta é taxativo: diz ele, não queremos e não podemos impor a anarquia pela força a quem quer que seja. Fazê-lo seria uma contradição em termos. Se os trabalhadores, escreve ele, quiserem ter seu governo, nós lhes deixaremos toda a liberdade de construí-lo com quem eles quiserem. Mas sob a condição de que, também, tenhamos a nossa liberdade de experimentar nossas idéias, nossos sistemas, toda a forma de organização libertária de que formos capazes, sem ter que prestar juramento, pagar impostos, sem que sejamos obrigados a fazer o que quer que seja, senão o que consideremos livremente ser nosso dever fazê-lo. Salienta Malatesta, a anarquia não se impõe pela força e não poderíamos querer impor aos outros nossas próprias concepções, sem cessar de ser anarquistas; desejamos viver anarquicamente tanto quanto as circunstâncias exteriores nos permitirem, assim como nossas capacidades. O que queremos fazer pela força, esclarece Malatesta, é expropriar aqueles que detêm os meios de produção e que obrigam os deserdados a trabalhar para eles e também, evidentemente, destruir o poder governamental: sem isso a expropriação não seria possível, assim como a reorganização da sociedade que a seguiria também 213 4 2003 não, em proveito de todos e segundo as vontades variáveis dos interessados. Num artigo publicado em Umanitá Nuova, a 22 de abril de 1930, salienta Malatesta, ao criticar a visão determinista de Kautsky quanto à revolução: acreditamos que a revolução é um ato de vontade, vontade dos indivíduos, das massas, pensamos que ela exige para ter sucesso certas condições objetivas, mas que não acontece fatalmente por fatores econômicos e políticos. Sem propriedade e sem Estado, diz ele, a revolução seguirá as linhas traçadas pelas necessidades práticas e que a livre experimentação modificará pouco a pouco. Acentua Malatesta o papel das minorias na emergência de uma nova idéia, nova instituição, todo progresso. Declara enfaticamente que a pretensão do anarquismo é a elevação de todos os homens ao nível de forças conscientes da vida social. Porém prevê dificuldades no caminho, argumentando que para conseguir tal finalidade é necessário acabar com a violência que ressua esses meios aos trabalhadores e isso só pode ser feito pela violência, não por uma razão de princípio, mas porque é impossível de outra maneira. Esclarece com toda nitidez que anarquismo não significa a pregação de um golpe para tomar o poder, mas o contrário, suscitar todas as forças populares para que a era da livre evolução comece, conclamando todos os partidos, todas as organizações operárias, para galvanizar a massa, dividida entre diversas organizações. Critica aqueles que pretendem esperar que as massas se tornem anarquistas para depois fazer a revolução, convencido está que elas nunca se tornarão, ao persistirem as instituições que as mantêm escravas. Apela a uma estratégia de aproximação com as massas, aceitando-as como são para fazê-las avançar o mais lon- 214 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo ge possível. Tal trabalho, diz ele, nada tem a ver com aqueles que pregam no deserto para pura satisfação de seu orgulho intelectual. A revolução como concebem os anarquistas é a menos violenta possível, ela procura interromper toda violência tão logo cesse a necessidade de se opor à força material do Estado e da burguesia. Os anarquistas só admitem a violência como legítima defesa. Pois, segundo Malatesta, o ideal serve para frear, corrigir e destruir este espírito de violência que a revolução como ato material teria a tendência de desenvolver. Malatesta não incide no basismo segundo o qual “as massas têm sempre razão” ou “a voz do povo é a voz de Deus”, ressalta que não pretende segui-las em seus humores mutáveis, o anarquismo significa um programa a cumprir, porém, como o objetivo é libertar e não dominar, trata de habituar as massas à livre iniciativa e à livre ação. Para ele, é a liberdade que educa para a liberdade e para a solidariedade. Uma sociedade comunista ou anarquista deve nascer do livre acordo, senão será uma sociedade de caserna com igualdade formal e aparente no meio da desigualdade, com base na regra: para cada um o que ele quiser, o que supõe a abundância e o amor. O espírito de fraternidade, a aptidão a fazer concessões, a tolerarse e suportar-se, não se criam, menos ainda se desenvolvem por meio de leis e graças a policiais. Para ser realmente a comunidade das almas, explicita Malatesta, e não um retorno à escravidão, o comunismo ou o anarquismo deve nascer localmente, entre grupos com afinidades, graças à experiência, das vantagens materiais que ele permite, à segurança que ele inspira, o fato de satisfazer os sentimentos de sociabilidade e de cordialidade que estão na alma de todo ser humano e 215 4 2003 que se manifestam e se desenvolvem tão logo cresce a necessidade de lutar contra os outros para assegurar a própria vida e a das pessoas que lhe são caras. Em suma, o comunismo ou o anarquismo, prega Malatesta, deve estar nos corações antes de estar nas coisas. É como uma família ou um grupo de companheiros que vivem juntos, esclarece Malatesta. Vive-se como comunista ou anarquista se se ama e na exata proporção em que se ama. Somente se houver acordo e amor entre os membros do grupo, se dará mais àquele que é mais fraco, àquele que mais necessita e todos ficam felizes e orgulhosos de contribuírem para o bem comum. Malatesta reage contra aqueles que defendem o ponto de vista segundo o qual no momento da revolução deve-se esquecer a doutrina, à medida que doutrina significa programa, esquecê-lo no momento de realizá-lo é colocar-se a serviço daquele que conseguiu dominar e explorar a revolução. Para ele, o socialismo ou anarquismo é uma questão de consciência e vontade. Quando os trabalhadores não suportam mais seu estado de inferioridade moral e material, quando os homens de coração se revoltarem contra um mundo de infâmias e sofrimentos inúteis, quando um número suficiente quiser acabar com isso, aí então o socialismo existirá. Do contrário, não. Pois, os grupos e indivíduos agem à medida que se desenvolve neles o estado de espírito necessário à ação, o espírito de iniciativa, e desaparece a tendência a esperar ordens e ação dos chefes, que se denomina, errônea e habitualmente, espírito de disciplina. A respeito do conceito de disciplina — esclarece Malatesta — constitui ele a grande palavra que serve para paralisar a vontade dos trabalhadores conscientes. Não deve ser uma disciplina bovina, devoção cega aos 216 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo chefes, uma obediência àquele que sempre diz para não se mexer. A disciplina revolucionária significa: coerência com as idéias aceitas, fidelidade aos engajamentos assumidos, sentir-se obrigado a participar com os companheiros de luta, o trabalho e os riscos. Somente os velhos conspiradores mazzianos concebiam uma “revolução disciplinada”, desconhecida para a maioria e que sequer tinha início. Havia um Comitê Central que nomeava os subcomitês, elaboravam-se os planos, enviavam-se as ordens e, geralmente, não se obtinha sucesso. Malatesta preconizava a união das esquerdas, do proletariado contra a burguesia e o governo, em artigo publicado em 22 de abril de 1930. Reafirma em artigo publicado na revista Volontá, a 1 de maio de 1920, e salienta, entre os deveres, ser o mais importante a solidariedade mais ativa com as outras forças revolu-cionárias, qualquer que seja sua orientação, para defender a revolução de todas as tentativas de reação interna ou vinda do exterior. Explica que a liberdade não significa isolamento. Grande parte da atividade jornalística de Malatesta é dedicada à crítica aos erros e omissões da II Internacional e do Partido Socialista italiano e sua política reformista. Assim, critica ele o que chama “os socialistas democratas” que pretendem conquistar o Poder Público e aumentar sua ação estatal via tributação para converter a riqueza privada em pública. Daí prometem um governo com seus fiscais, coletores, oficiais de justiça, policiais, administradores, corpo legislativo para fazer leis e ministros para executá-las. O Estado Socialista representaria a todos, todos os poderes sairiam do povo. De nada vale dizer que não havendo classes sociais o go- 217 4 2003 verno representará a coletividade. Malatesta aproveita a ocasião para desenvolver uma engenhosa teoria, segundo a qual os governantes constituem uma classe e se desenvolve entre eles uma solidariedade mais poderosa que a existente entre as classes operárias. Argumenta ele, é exato dizer que hoje o governo é escravo da burguesia, mas isso tem mais a ver com o fato de que seus membros são burgueses do que com fato de serem governo. Propriedade e governo operam juntos; ao abolir o governo sem abolir a propriedade, os proprietários reconstruirão o governo. Quem está no governo quer lá permanecer e fazer triunfar sua vontade. “O governo”, salienta Malatesta, “engendra em torno dele uma classe que lhe deve seus privilégios e que está interessada que ele permaneça no poder”. Os partidos do governo são no plano político o que as classes proprietárias são no plano econômico. Adverte Malatesta: “quem fala em abolir o governo e substituir a administração dos homens pela administração sobre as coisas, esquece que quem tem a administração das coisas tem domínio sobre os homens”. O princípio do governo que conservam — os socialistas — e reforçam destruiria o princípio de igualdade social e abriria uma nova era de luta de classes, salienta Malatesta. Num artigo publicado a 16 de maio de 1926, no jornal Il Pensiero, Malatesta já apontava o fato de o Partido Socialista italiano ir a reboque da burguesia, acentuando: “os representantes mais distintos do socialismo democrático italiano nos repetem continuamente que seria vantajoso para os proletários italianos serem governados por uma burguesia rica, culta e moderna”. Parece estarmos ouvindo o discurso de certa “esquerda” no Brasil de hoje. 218 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo Parlamento Um dos temas fundamentais dos escritos de Malatesta é o tema do Parlamento, o sentido da luta parlamentar, como obstáculo à formação da consciência social do trabalhador, como “fábrica de ilusões”. Ao Parlamento liga-se o eleitoralismo, que acaba dominando nos partidos acima de qualquer ideologia ou propaganda política. O Parlamento é parte integrante de um regime político individualista onde vigora a chamada “soberania popular”, onde a lei é feita por quem o povo elegeu, teoricamente ela representa a vontade de maioria, na prática “ela é o resultado de uma série de transformações e de ficções que falsificam a expressão autêntica da vontade popular”, diz Malatesta. Num artigo de 16 de maio de 1906, Malatesta critica todos quantos cultivam o “fetichismo parlamentar”, isto é, enchem o povo de ilusões de que tem amigos no Parlamento; isso leva-o a esperar que algo ocorra. Por outro lado, muitos socialistas parlamentares em seus discursos eleitorais acentuam o Parlamento não servir para nada, daí a pergunta de Malatesta: “por que eles se esforçam para fazer com que ele sirva para alguma coisa”? Critica ele aqueles que são revolucionários na campanha eleitoral, e após as eleições voltam ao regaço conservador após “fazerem discursos eleitorais que pareciam apelo às armas”. Manifesta-se contra a autoridade à medida que é a violência do pequeno número contra o grande número, também seria contra a autoridade se ela fosse conforme “a utopia democrática, a violência da maioria sobre a minoria”. Salienta ele que o Parlamento acaba por criar uma categoria de “político” com seus interesses específicos, 219 4 2003 geralmente opostos ao do povo. O reformismo socialista liga-se à ação parlamentar. O caminho do reformismo é o da legalidade, é tranqüilo, mas cheio de armadilhas. Toda vez que alguns se propõem a conquistar os poderes públicos, indo ao Parlamento e aos Conselhos Municipais e provinciais, moderam cada vez mais seu programa, colocando-se ao abrigo de relações de colaboração mais ou menos disfarçada com a classe burguesa, procurando proteção nas áreas governamentais. Procuram reformar o regime sem tocar nas suas bases; podem suavizar o mal agudo, mas consolidam as causas do malestar social. Na época da ocupação das fábricas em Turim, o Parlamento tudo sufocou, deixando os trabalhadores entregues ao fascismo. Enquanto isso, uma fração do Partido Socialista ofereceu-se para, aliada da burguesia, salvar suas instituições. Daí a proclamação de Malatesta: que os trabalhadores intimem os que dizem seus amigos a deixarem o Parlamento e lutarem ao seu lado. Na comédia parlamentar, as eleições são fraudadas pelo governo e pela classe capitalista, daí a grande maioria do Parlamento ser composta de burgueses e seus representantes; os proletários eleitos só servem para um simulacro de oposição. Se a grande maioria de eleitores é composta de assalariados, deveriam eles compor a maioria no Parlamento, a burguesia deixaria expropriar-se em obediência à maioria? Lembra Malatesta: o fascismo nada ensinou a essa gente? Esclarece: “desde o início do desvio parlamentarista nós lhes dissemos — aos socialistas — se algum dia fossem maioria parlamentar seriam expulsos aos pontapés no traseiro e que lhes seria necessário se submeter ou recorrer à insurreição, com a diferença de que o povo teria se tornado menos apto à insurreição devido à propaganda eleitoralista. Acreditam que a burguesia desarmaria 220 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo seus fascistas, os mandaria para casa, deixaria os carabinieri (polícia) e os magistrados serviriam fielmente aos governantes socialistas?” Conclui ele: a tática eleitoral e parlamentar acabou com o espírito revolucionário das massas e conduziu à abdicação do socialismo. Os socialistas podem chegar ao governo, porém, ocuparão postos subalternos se deles a burguesia precisar para conterem a onda popular. Poderiam fazer até uma boa obra administrativa, “seriam bons administradores e talvez liberais” – esclarece Malatesta – “socialistas, não”! Julgava ele, em artigo no jornal Umanità Nuova, de 22 de agosto de 1922, enquanto partidos estiverem atacados pela peste do parlamentarismo, nunca farão revolução. Isso não quer dizer que ele se posicione contra toda e qualquer reforma social. Esclarece Malatesta: “incitamos os trabalhadores a querer e a impor todas as melhorias possíveis e impossíveis e é por isso que gostaríamos que eles não se resignassem a viver em más condições hoje esperando o paraíso futuro. E se somos contra o reformismo, não é porque as melhorias parciais não nos interessam, mas porque acreditamos que o reformismo é um obstáculo não somente à revolução, mas até mesmo às reformas”6. Diz ele, temos horror pela mentira democrática que, em nome do povo, oprime o povo no interesse de uma classe, “o parlamentarismo corrompeu e castrou os socialistas, corromperá e castrará os comunistas”7. Após enunciar que uma insurreição implica preparo técnico, acentua: “como acreditar nisso quando se vê os que falam nisso preocupados com as eleições municipais, submeter-se a decretos governamentais sobre invalidez e seguro-velhice, enquanto dizem querer expropriar a burguesia”8? 221 4 2003 Esclarece Malatesta, que combate o Partido Socialista quando ele exige e pretende disciplinar as massas para aceitarem uma nova tirania, quando quer que as massas sigam cegamente os “chefes”, da mesma maneira como combate as Câmaras do Trabalho e Cooperativas quando se tornam órgãos de conservação e colaboração com a burguesia. Porém, quando o Partido Socialista permanece no terreno revolucionário, quando as organizações operárias permanecem órgãos de luta contra o patronato e as cooperativas sob gestão direta dos trabalhadores, toda nossa simpatia e cooperação lhe são dadas9. Em outro artigo publicado em Umanità Nuova a 1 de maio de 1920, Malatesta define sua posição a respeito da célebre proposta de “ditadura do proletariado” dos bolcheviques. Para ele, nada mais é do que o governo absoluto de um, ou melhor, dos chefes de um partido que impõem a todos o seu programa particular, quando não, seus interesses particulares. Ela se apresenta sempre como provisória, mas, como todo poder, tende a se perpetuar e a aumentar seu próprio poder e acaba, ou por provocar uma revolta, ou por consolidar um regime de opressão. O comunismo imposto levaria a perder o apoio das massas e só poderia contar com a ação estéril e perniciosa da burocracia. Embora respeitasse a sinceridade e admirasse sua energia, Malatesta não deixava de notar que o conceito ditadura do proletariado significa ditadura de todos, o que é impossível, o proletariado fica na posição de povo nos regimes liberais, serve para esconder as coisas. Na realidade é uma ditadura de chefes de um partido, com sua força armada, que poderá ser empregada contra os trabalhadores para consolidar interesses de uma nova classe. 222 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo Razão pela qual escrevia de Londres a 30 de julho de 1919: “Lênin, Trotsky e companhia certamente são revolucionários sinceros em relação a seu modo de compreender a revolução e não a trairão; mas preparam os quadros estatais que servirão àqueles que, em seguida, virão se aproveitar da revolução e matá-la. Serão os primeiros a serem vítimas de seu método e a revolução cairá com eles, temo por isso. É a história que se repete: mutatis mutantis, é a ditadura de Robespierre que levou-o ao cadafalso e preparou o caminho para Napoleão”. Temia Malatesta que o poder nascido da revolução utilizado contra os reacionários e inimigos externos, após serem vencidos, servisse para se impor às massas, deter a revolução e defender novos privilégios. Mostra Malatesta, em artigo de 1 de maio de 1920 em Umanità Nuova, “quando o governo ditatorial for formado e os órgãos estatais criados, os socialistas sinceros que não desejariam chegar aonde este fato tenderá necessariamente a conduzi-los, serão as primeiras vítimas de seu sistema”. Lênin e Trotsky reprimiram Makhno e Cronstadt, Stalin liquidou o último de seus adeptos. Lênin morrera a tempo. Acentua Malatesta que a revolução não teme a reação daqueles que foram expropriados de sua propriedade e perderam os meios de ataque, temível é a reação daqueles que aspiram à ditadura. Malatesta critica a polaridade estabelecida na norma: uns trabalham, outros os defendem, assim foram justificados exército, polícia, e quaisquer instituições parasitárias e opressivas. Propõe o término da dualidade, um maneja a pá e outro a espada, pois o que tem a espada explora o que tem a pá. Conclui ele, “nós não desejamos este tipo de comunismo, aquele que trabalha deve 223 4 2003 e pode se defender, se precisar contratar um protetor permanecerá escravo”10. Polemizando com um defensor do bolchevismo, em artigo do Umanità Nuova de 18 de julho de 1920, argumenta Malatesta que Maxim, o defensor do leninismo, deveria mostrar por que as dificuldades seriam resolvidas por uma ditadura e não pela ação direta dos trabalhadores; prossegue: “ele deveria nos demonstrar como e por que os homens mais ativos e inteligentes seriam mais úteis estando no governo onde desperdiçariam o melhor de seus esforços para se manter no poder, ao invés de estar no meio das massas, trabalhando, incitando os outros a trabalhar e tomando todo tipo de iniciativas benéficas”. Conclui salientando que “este modo de pensar de ‘Maxim’ é o de todos reacionários e conservadores: o medo e o desprezo da massa e a fé na virtude taumatúrgica (milagrosa) que a ‘autoridade’ confere a quem dela está investido. Ele é um adepto fervoroso do chicote, mas pelo menos, nos diz que deve ter este chicote na mão”. No fundo da questão teórica da ditadura há sempre esta questão prática: quem deve ser o ditador? O movimento operário fica premido entre essa corrente autoritária e a eleitoralista reformista que esquece os fins, “uma longa experiência nos ensinou que os interesses eleitorais levam sempre a melhor sobre todas as razões doutrinárias concernentes ao futuro”11. A respeito da formação da III Internacional, pergunta ele: seu Programa será discutido, proposto e formulado num Congresso? Como será convocado? Os delegados de todas organizações operárias e partidos subversivos poderão participar com direitos iguais? Critica tanto a idéia da formação de uma Internacional Comunista como uma Socialista ou Anarquista, pois 224 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo elas visariam um programa particular e não a Internacional dos Trabalhadores. Essa, sim, deveria unir todos os trabalhadores, sejam eles anarquistas, socialistas, sindicalistas, respeitando os métodos de luta de cada um, preservando a identidade de fins, uma Internacional assim se constituiria em alavanca da luta social. Em artigo publicado no Umanità Nuova a 2 de setembro de 1920, salienta ele a importância da URSS como “farol”, uma esperança, contínua fonte de inspiração para o proletariado mundial, criticando o regime de concessões mútuas da diplomacia soviética, que poderá despedaçar o ímpeto revolucionário abrindo o caminho à “restauração”. Critica ele a volta da diplomacia secreta na URSS, resultando que “uma coexistência do sistema comunista e do sistema capitalista seria eventualmente tentada e a revolução seria finalmente assassinada”. Em outro artigo publicado a 4 de maio de 1922, Malatesta mostra que os anarquistas sempre lutaram pelo poder aos sovietes; assim, Emma Goldman e Alexandre Berkman, anarquistas norte-americanos, gostariam de fazer tudo que pudesse ser útil aos sovietes. Porém, o governo russo dá mais importância à sua manutenção no poder do que à revolução e joga os anarquistas na prisão, fuzilando-os. Malatesta encontra-se em Spezia (Itália) com um enviado do governo russo, Sandomirsky, atestando que “ele reconheceu como verdadeiras todas as acusações que lhe apresentamos contra o governo de Lênin: supressão total de toda liberdade de imprensa, reunião, associação, greve, as falsas acusações de banditismo lançadas aos anarquistas que eles queriam suprimir; a onipotência da polícia secreta, as prisões, as torturas, 225 n 4 2003 deportações assassinas, execuções sumárias de anarquistas, socialistas e comunistas dissidentes”. A isso nada é preciso acrescentar. Finaliza Malatesta, analisando criticamente a “justiça revolucionária” do Estado Operário a serviço de um governo que, para permanecer no poder e impedir que a revolução se desenvolva, emprega meios de repressão iguais aos utilizados pelo antigo regime militar. Os tribunais militares, a pretexto de defender a “revolução” como os outros defensores da “ordem”, dirigem seus golpes contra os revolucionários que eram uma ameaça para o poder recentemente estabelecido. Diz o partido dominante na URSS que representa uma classe, quando a revolução fôra feita para abolir as classes. Dizem que representam o proletariado fabril, mesmo assim “os conscientes”, mas só os inscritos no PC e assim só a camarilha governante. Estes querem ter o direito de vida e morte e dispor do destino de um povo que fez a mais gloriosa das revoluções, exclama Malatesta. Notas 1 Texto originalmente publicado como introdução ao livro Anarquistas, Socialistas e Comunistas; uma coletânea de diversos artigos de Errico Malatesta, publicado pela Ed. Cortez, 1989. Tradução de Plínio A. Coêlho. Edição esgotada. 2 Luigi Fabbri. Malatesta. Buenos Aires, Editorial Americalee, 1945, p. 192. Errico Malatesta. A Anarquia. Brasília, Novos Tempos, 1988, p. 71. [Reeditado na Coleção Escritos Anarquistas, vol. 1. [N. do E.]. 3 4 Idem, pp. 75-6. 5 Ibidem, p. 77. 6 Umanità Nuova, 1 de junho de 1920. 226 verve Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo 7 Idem, 3 de setembro de 1921. 8 Ibidem, 20 de julho de 1920. 9 Ibidem, 25 de agosto de 1920. 10 Idem, 1 de maio de 1920. 11 Ibidem, 3 de outubro de 1920. Indicado para publicação em 11 de novembro de 2002 227 4 2003 errico malatesta — revolta e ética anarquista nildo avelino* O anarquismo em sua gênese, em suas aspirações, em seus métodos de luta não está necessariamente vinculado a nenhum sistema filosófico. O anarquismo nasceu da rebelião moral contra as injustiças sociais. A partir do momento em que aqueles homens que se sentiram como sufocados pelo ambiente social em que estavam obrigados a viver e cuja sensibilidade caiu ferida diante da dor alheia, e ante a sua própria, e em que estes homens se convenceram de que grande parte da dor humana não se deve fatalmente a inexoráveis leis naturais ou sobrenaturais, senão que provém de fatos sociais que dependem da vontade humana — então se abriu o caminho que devia levar ao anarquismo. Errico Malatesta, Pensiero e Volontà, 01/09/1925 * Mestre em Ciências Socias pela PUC-SP e integrante do Centro de Cultura Social de São Paulo. verve, 4: 228-263, 2003 228 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista Errico Malatesta é, sem dúvida, uma das referências internacionais do movimento anarquista, figurando entre aquelas vozes que deram ao anarquismo seu corpo de concepções e práticas históricas. Juntamente com Proudhon, Bakunin e Kropotkin, Malatesta forma o quarteto que “pensou” o anarquismo, pesem as valiosas e quase desconhecidas contribuições de William Godwin e Max Stirner, e reservou para as gerações futuras um certo número de práticas com as quais os grupos e indivíduos pautaram sua atuação. Conhece-se algumas razões da pertinência histórica desse quarteto. Proudhon, o tipógrafo de Besançon, produziu a obra que o tornou o revolucionário mais conhecido de toda a França: O que é a Propriedade? Ou estudos acerca do princípio do direito e do governo, em 1840. A resposta entusiástica se tornou a máxima revolucionária mais famosa do século XIX: “É o roubo! E, implicando a negação da propriedade na negação da autoridade, deduz-se imediatamente de minha definição este corolário não menos paradoxal: a verdadeira forma de governo é a anarquia”1. Ao contrário da tradição socialista de sua época, Proudhon concebeu algo completamente original em relação àquilo que ofereceram as concepções do saintsimonismo e pela tradição autoritária remanescente do jacobinismo; com efeito, ele proporá algo novo: inventou uma concepção antiestatal de gestão econômica, escapando da moda de sua época e dos prejuízos dela advindos. O que tornou possível para Proudhon esse gesto inventivo? Não se trata de responder nesse artigo a essa pergunta; mas, ela situa-se naquilo que podemos chamar de problematização do pensamento ou, em todo caso, na maneira pela qual verdades “menores” colocam em questão aquilo que até então era tido por verdadeiro; na maneira como saberes descentralizados e não-hierar- 229 4 2003 quizados, questionam, interrogam e, como que lançando um desmentido, retiram sempre os efeitos de poder pelos quais o verdadeiro era legitimado. Trata-se de um pensamento que não nasce dos conceitos, mas da sua negação e da declaração da sua insuficiência diante da vida; simultaneamente, é um pensamento que parte intuitivamente de um imediato sentimento da vida para depois devolvê-lo “teoreticamente”. O que está em jogo, portanto, é resolver o problema da vida, ao qual tudo o mais deve orientar-se para sua solução. “Um dia perguntei-me: Por que tanta dor e miséria na sociedade? Terá o homem de ser eternamente infeliz? E, sem me deter nas explicações dos empreendedores de reformas, que atribuem à miséria geral, uns à imperícia do poder, outros aos conspiradores e aos motins; outros ainda à ignorância e à corrupção gerais; cansado dos combates intermináveis entre a tribuna e a imprensa, quis eu próprio aprofundar o problema. Consultei os mestres da ciência, li cem volumes de filosofia, direito, economia política e história; e quis Deus que vivesse um século em que tanta leitura me fosse inútil!”2. Bakunin foi um jovem entusiasta da esquerda hegeliana que penetrou nos segredos da filosofia alemã entre os anos de 1835-1836; com efeito, “esta foi para Bakunin então uma realidade, uma verdade que podia situar-se no lugar ocupado pelas supostas verdades religiosas”3. Acreditou, com isso, na possibilidade da completa expansão da Liberdade e Solidariedade no mundo inteiro e em pouco tempo passou a ser o revolucionário mais temido da burguesia européia, o conspirador incansável da ordem pública e o combatente de todas as barricadas; o revolucionário sobre quem pairava a impressão de que no “primeiro dia da revolução é uma verdadeira jóia, mas no dia seguinte deve ser fuzilado”4; de quem o general da Revolução de 1848, Flocon, teria de- 230 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista clarado que “se houvesse na França trezentos homens como Miguel Bakunin, todo governo seria impossível”5. Um homem que tendo ainda conhecido de perto o terrível poder do czar russo Nicolau I, o encarceramento e evasão da sua tenebrosa fortaleza de Pedro e Paulo, tornou-se uma lenda para os círculos operários europeus do final do século XIX. E foi exatamente com uma descrição lendária que Zola a ele se referiu num dos seus romances: “Besteiras! Mas que seja... Aliás, essa tal de Internacional vai funcionar mesmo, dentro em breve. Ele está tratando disso”. “Ele quem?”. “Ele!” Esta última palavra fôra pronunciada a meia voz, com fervor religioso, em direção ao Oriente. Falava do mestre, de Bakunin, o exterminador. “Só ele pode, tem força para isso — continuou. Esses teus sábios são uns idiotas com suas teorias da evolução. Dentro de três anos a Internacional, sob as ordens de Bakunin, vai esmagar o velho mundo”6. Kropotkin foi a grande personalidade internacionalmente reconhecida pela comunidade científica por suas pesquisas na Sibéria em geografia e geologia, realizadas para a Sociedade de Geografia Russa, mantendo estreita relação com a Geographical Society, colaborando na imprensa especializada de sua época como o Geographical Journal, The Nineteenth Century e a British Encyclopedia; “poeta da ciência”, como dirá dele Malatesta, a quem se deve o desmentido das teorias do darwinismo social de Huxley. Também o “príncipe” do anarquismo, para mencionar o termo bastante inapropriado lançado pelo historiador Woodcock; em todo caso, foi certamente o “intérprete da utopia anarquista” mais lido pelos círculos operários, artísticos e intelectuais, nas regiões onde a cultura anarquista preponderou. A esse respeito, pode-se citar como exemplo o folheto por ele escrito em 1881, “Aos Jovens”, de grande circulação 231 4 2003 e influência, traduzido para doze idiomas e levado para os países da América do Sul e para os Estados Unidos7. Também autor da obra, provavelmente a mais celebrada no meio anarquista, A conquista do pão, de 1892, em que buscou as bases científicas ao slogan do “bem estar para todos”, erguendo em teoria a solidariedade entre os homens e desenvolvendo os princípios morais da sociedade futura. Kropotkin encontrou para o anarquismo uma justificação científica, operando em seus postulados uma sistematização sem precedentes e cuja implicação foi um afastamento do problema da vida. Disse que “a ciência contemporânea conseguiu deste modo um duplo objetivo. Por um lado deu ao homem uma preciosa lição de modéstia, ensinado-lhe que é tão-somente uma partícula infinitamente pequena do universo. Com isso, o retirou de seu estreito e egoísta isolamento. Dissipou sua ilusão de crer-se centro do universo e objeto da preocupação especial do criador. Ensinou-lhe que sem o grande Todo, nosso “Eu” não é nada e que para determinar o “eu” um certo “tu” é imprescindível”8. Malatesta foi um jovem estudante de medicina que interrompeu os estudos para dedicar a vida ao movimento anarquista; homem de poucos escritos, de ação comedida, mas de grande influência entre aqueles com quem conviveu e de incansável militância. Manteve ação ativa na Internacional e se tornou mundialmente conhecido, não por algum sistema de idéias, mas, paradoxalmente, pelas polêmicas sustentadas com democratas, socialistas, comunistas e anarquistas, pelo substrato pedagógico e ético que essas polêmicas contém e pela sensibilidade política que elas transmitem. Ao contrário de seus predecessores, não valorizou nem a ciência, nem a filosofia, mas inventou uma concepção que ficou conhecida como voluntarismo anarquista que postulou o 232 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista anarquismo como um estilo de vida em que se reclama uma atitude diante da autoridade. É preciso reconhecer que há entre esses homens diferenças, muitas vezes, insuperáveis. É preciso ver que o anarquismo, embora possa ser concebido como “um conjunto de postulados básicos convergentes”9, no seu desenvolvimento histórico há pouca ou quase nenhuma linearidade, mas há alguma descontinuidade. E penso que essa descontinuidade é fundamental para entendê-lo de uma forma mais libertária e mais anárquica, evitando a celebração unitária e reducionista das teorias totalizantes. Malatesta se diferenciou dos outros militantes anarquistas que procuraram fundamentar suas premissas socialistas libertárias ora na razão (como Godwin), ora nas leis sociais (como Proudhon), ora num certo evolucionismo (como Kropotkin); a singularidade de Malatesta reside no fato dele ter buscado a validade da proposta socialista libertária em fundamentos éticospolíticos, ou seja, no movimento real dos indivíduos e das associações de indivíduos. Há em Malatesta uma menoridade10 em relação aos seus predecessores e contemporâneos; uma menoridade, entretanto, que não é da ordem da teoria: seu pensamento é inseparável de sua ação e sua conduta é resultante de seu amplo envolvimento com a realidade de sua época. Malatesta conviveu com os últimos anos da vida de Bakunin, conheceu os terrores da repressão à Comuna de Paris, assistiu à criação e à extinção da seção italiana da Primeira Internacional, a formação da Segunda, o triunfo da Revolução Russa e a sua posterior decadência. Viveu e morreu sob o fascismo. Essa trajetória, da qual os limites desse artigo não nos permitirão dar conta, é todavia o que possibilita ver em Malatesta “um exemplo de 233 4 2003 integração de teoria e prática, raro nos dias que correm”11. Tudo ocorre como se o anarquismo, partindo com Proudhon de um intuitivo sentimento de vida, formulando-se como solução para o problema da vida, ganhasse em extensão com a ação e o sentido dado por Bakunin e, posteriormente, em sistematização pela interpretação de Kropotkin, o que vai provocar um certo esvaziamento ético de seus postulados, um certo afastamento daquela imediata intuição da vida que lhe é originário. Finalmente, a anarquia é retomada dentro de uma dimensão ética-política com Malatesta. É o que este artigo pretende esclarecer. Descontinuidades Até a influência de Bakunin a partir de 1868, a AIT (Associação Internacional de Trabalhadores), fundada em 1864, tem como seus principiais elementos constitutivos os sindicalistas britânicos e os mutualistas franceses unidos pelo desejo de “melhorar” as condições da classe operária no seio da sociedade existente e no desprezo, principalmente entre os franceses, pela luta política. As razões dessa “melhoria das condições” podem ser buscadas naquela “prudência” própria a Proudhon e que deve ser atribuída à sua concepção de progresso. A correspondência que jogou Proudhon e Marx em campos inimigos ressalta não apenas a diferença de caráter entre os dois socialistas, como também a posição de ambos em relação ao socialismo. Marx, em sua carta, manifestou a necessidade do que chamou de um coup de main, o “momento de ação” ou choque revolucionário; Proudhon lhe respondeu que “nossos proletários têm tal sede de compreensão que seríamos por eles muito 234 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista mal recebidos se nada lhes déssemos a beber senão sangue”12. Para Proudhon “quem diz revolução diz necessariamente progresso” e isso não apenas retira o valor de qualquer Revolução como ruptura brusca, mas ainda a coloca num campo negativo como apelação à força e como arbitrariedade e, neste sentido, como contradição e contra-revolução. Para ele, o progresso nunca se apresenta como uma repentina metamorfose, e sim como prolongamento e conseqüência das etapas do desenvolvimento que a precede; o “golpe” não é mais que um movimento sucessor da velha ordem pela nova ordem que se descobre pelo corte e pela descontinuidade. É por isso que a “pregação” revolucionária é para ele uma arrogância desmedida, onde: “acumular os ressentimentos e, se é possível fazer essa comparação, armazenar, por compreensão, a potência revolucionária, é condenar-se a franquear de um salto todo o espaço que a prudência ordena recorrer no detalhe e pôr, no lugar do progresso contínuo, o progresso em saltos e tremores”13. Essas foram as noções que animaram a ala mutualista francesa e suíça da Internacional, as mais expressivas até a chegada de Bakunin. O enfraquecimento dessa tendência pôde ser percebido já em 1867. No congresso de Lausanne, as tendências de melhoria das condições abrandaram sensivelmente e a Internacional se viu empurrada pela força dos acontecimentos em direção ao coletivismo inspirado por Bakunin. Já não se trata de melhorar as condições e reformar a sociedade existente, mas de destruíla para construir outra nova, e assim o coletivismo se desgarra e se impõe progressivamente, enquanto os “progres-sistas”, em cada greve declarada, perdem ter- 235 4 2003 reno em proveito dos partidários da ruptura revolucionária. Bakunin terá um papel eminente nesse processo de radicalização da Internacional e com ele o anarquismo viverá sua “época das revoluções” nesse contexto de vicissitudes do movimento operário europeu que compreende o período de 1830-1870, cujo ápice pode ser visto na aparição da 1ª Internacional e seu declínio na repressão à Comuna de Paris. É sem dúvida um dos períodos mais turbulentos da história do movimento operário. Nesta época a Europa é constantemente convulsionada por revoltas e insurreições populares que são em si a demonstração da força de sua organização. O grande tremor que iria sacudir o mundo em 1848 havia destronado a monarquia francesa e implantado o governo provisório. Disse Bakunin: “me levantava as quatro, às cinco horas da madrugada e me deitava as duas, permanecendo todo o dia em pé, assistindo as assembléias, reuniões, clubs, manifestações, passeios ou demonstrações; em uma palavra, absorvia por todos os meus sentidos e por todos os meus poros a embriaguez da atmosfera revolucionária”14. É desta forma que até 1870 o efervescente clima revolucionário europeu, com o crescimento espantoso da AIT e sua radicalização sem precedentes sob a influência de Bakunin, acalentou nos militantes a certeza da greve geral, como o estopim para a Revolução Social. As crescentes greves a partir de 1866 foram seguidas de uma adesão em massa à Internacional; em Lyon se disse, após um episódio grevista, que “não foi a Internacional quem empurrou os operários para a greve, e sim a greve que os lançou na Internacional”15. Durante o Congresso de Genebra, em 1866, o número de adesistas na França não ultrapassou 500; em 1868 eram apenas 2.000; mas, em 1869, e nos primeiros meses de 1870, 236 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista os inscritos somavam 245.000 membros16. Nesta altura o proudhonismo “esfriou” e prevaleceu o coletivismo inspirado por Bakunin. Toulain, um dos mais expressivos proudhonianos, cedeu lugar a Eugène Varlin, um dos maiores expoentes do anarco-sindicalismo francês, considerado o “antecedente vivo de Pelloutier, Griffulhes, Merrheim, Monatte, etc.”17. No entanto, em 15 de Julho de 1870 foi anunciada a guerra franco-prussiana. Paris foi encerrada num círculo de fogo e Napoleão III rendeu-se em 2 de Setembro. Ao receber a notícia, o Império se desintegra e proclama-se a República. Em 28 de março de 1871 é proclamada a Comuna com 229.000 votos. Em maio, Thiers reúne 130.000 soldados que afogam em sangue as barricadas dos comunardistas. A seção franco-suíça da Internacional fornece muitos dos seus combatentes. Um dos mais célebres entre os jovens combatentes internacionalistas foi Eugène Varlin. Combateu em todas as barricadas da Comuna e, quando não restou nenhuma, abandonou-se ao azar. Reconhecido e denunciado por um padre na Place Cadet foi detido pelo tenente Sicre que o conduziu de mãos atadas às costas. O jovem membro da Internacional foi, segundo Lissagaray, um dos maiores historiadores da Comuna, o nervo das associações operárias do final do Império. Incansável, modesto, um dos primeiros que em 18 de março trabalhou durante toda a Comuna e esteve em suas barricadas até o fim. A sua morte é terrível e marcará profundamente a geração anarquista seguinte: “Aquele Varlin que arriscara a vida para salvar os reféns da rue Haxo foi arrastado mais de uma hora pelas ruas escarpas de Montmartre. Sob uma chuva de golpes, sua jovem cabeça meditativa, que só tivera pensamentos fraternos, converteu-se em montão de carne informe, com um olho pendendo da órbita. Quando che- 237 4 2003 gou à rue des Rosiers, ao estado maior, já não caminhava, era carregado. Sentaram-no para o fuzilamento. Os soldados destroçaram o cadáver a coronhadas. Sicre roubou seu relógio e se enfeitou com ele”18. Cem mil pessoas caíram vítimas da repressão à Comuna. Thiers, defendendo o “máximo rigor”, proferiu a frase que se tornou célebre: “O socialismo estaria acabado por muito tempo”19. De fato, o afogamento em sangue da Comuna foi igualmente o extermínio do movimento revolucionário francês; com ela, a seção da Internacional francesa, a mais expressiva, desaparecu deixando-a à disposição das manobras de Marx e Engels20, que culminou na expulsão, em setembro de 1872, durante o congresso de Haia, da ala anti-autoritária e federalista representada por Bakunin. Será preciso uma análise mais detalhada para se tirar maiores proveitos do impacto que a feroz repressão que se abateu sobre o movimento operário nesta década de 1870 imprimirá nos corações dos militantes. Entretanto, podemos supor que tenha sido o bastante para uma reavaliação de suas táticas, o que pôde ser ouvido anos mais tarde nas palavras de Reclus, ex-preso comunardista, ao declarar que “aqueles dentre nós que combateram pela Comuna conhecem essas terríveis ressacas da maré humana. Na partida para os postos avançados, acompanhavam-nos saudações comoventes, lágrimas de admiração brilhavam nos olhos daqueles que nos aclamavam, as mulheres agitavam seus lenços carinhosamente. Mas qual foi a acolhida dos heróis da véspera que, depois de ter escapado do massacre, retornaram como prisioneiros entre duas fileiras de soldados? Em muitos bairros, o povo compunha-se dos mesmos indivíduos; mas que contraste absoluto em seus sentimentos e em sua atitude! Que conjunto de gritos e de maldições! Que ferocidade nas palavras de ódio. [...] 238 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista [Concluindo que] Já não basta lançar-se furiosamente à batalha [...]. A primeira condição para o triunfo é nos livrarmos da ignorância”21. Daqui por diante, os métodos de ação anarquistas sofreriam uma sensível mudança, sobretudo com a atuação da conhecida corrente anarco-comunista representada por Kropotkin, Reclus e Malatesta. Os chamados “à Revolução”, a ação de sublevar as massas descontentes e incitá-las ao motim foram, certamente não abandonados, mas relativizados pela geração seguinte de anarquistas. Um certo ingrediente ético-pedagógico seria intensificado nos métodos anarquistas com objetivo de fomentar não apenas a revolta, mas “forças conscientes”. Um outro impulso seria dado ao anarquismo numa direção distinta daquela que inspirava Bakunin. Com efeito, essa jovem geração de anarquistas que se declarará comunista, acolherá não apenas o encanto incendiário de Bakunin, como também a amarga lição dos tempos. A emergência de Errico Malatesta A pessoa Neste contexto é que emerge a figura de Errico Malatesta. Nascido em 14 de dezembro de 1853, em Santa Maria Capua Vetere, uma cidade pouco habitada perto de Nápoles, de uma família pertencente à pequena burguesia. Conhece Saverio Merlino, com quem polemizou mais tarde, quando se dedicou aos estudos clássicos em uma escola religiosa. Aos quatorze anos, escreveu uma carta insolente ao rei Victor Manuel II que o levou à prisão onde ficou detido um dia. De volta à família, o pai, de formação liberal, tentou dar-lhe lições de moderação. Não pretendia segui-lo e deste ouviu as 239 4 2003 seguintes palavras: “Pobre filho meu, sinto em dizerlhe, porém acabarás na forca!”22. É provável que o impulso antimonarquista e até mesmo seu republicanismo “precoce” fosse devido ao fato de ter contemplado, ainda na sua infância, os efeitos do absolutismo dos Bourbons e a epopéia garibaldina na sua cidade natal, palco de violentos enfrentamentos. Já em Nápoles, fora da Faculdade de Medicina, Malatesta participou das manifestações populares motivadas pela unificação italiana, declarando a Max Nettlau, “Como republicano contemplei pela primeira vez o interior de um cárcere da monarquia”23; foi republicano desde os quatorze anos e manteve vivas simpatias por Giuseppe Mazzini, escrevendo em 1926, aos 73 anos que, “no fundo de nosso coração e nos sentimentos que ele nos inspirou, fomos mazzinianos como Mazzini foi internacionalista”24. Os veteranos da sociedade secreta mazziniana observavam o comportamento de seus candidatos ao ingresso durante um certo tempo, sendo depois proposta a admissão; foi informado a Mazzini que Malatesta tinha um espírito “independente, propício à desobediência, pouco disposto em submeter-se à rigorosa disciplina intelectual e moral”, teve seu pedido de adesão a Alleanza Republicana Universale negado, o que o lançou às fileiras da Internacional, em 1871, conhecendo, entre outros, Giuseppe Fanelli. Dedicou-se de corpo e alma à seção italiana, interrompendo seus estudos de medicina na Universidade de Nápoles. Atirou seu patrimônio na propaganda e na organização anarquistas. Dirigiu-se ao congresso de Saint-Imier, em 1872, porém antes encontrou-se, pela primeira vez, com Bakunin, em Zurique, onde permaneceu dezesseis dias. A relação entre os dois passou a ser estreita e freqüente fazendo do jovem italiano um secretário ocasional de Bakunin. Com efeito, observou 240 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista Nettlau que: “Bakunin viveu conosco por que sobreviveu durante mais de meio século na modesta figura de Malatesta”25. Não obstante, algumas distinções marcarão os métodos de ação entre Bakunin e Malatesta. Ao contrário de Bakunin, Malatesta não foi o “incendiário”, o propagandista poderoso, ardente e irresistível ao qual se atribui a personalidade de Bakunin. Malatesta, veremos, também tinha o “diabo no corpo”, mas a fascinação e o entusiasmo que exerceu era de outra natureza. Não lançou mão de grandes palavras, tampouco utilizou uma literatura rebuscada e eloqüente. Segundo Luigi Fabbri, “seu melhor livro, Malatesta o escreveu com sua própria vida”26. Em Malatesta isso é enfático. Fabbri recorda o dia em que o conheceu como sendo “o da impressão mais forte de sua longínqua juventude”. Neste primeiro encontro, iniciou com ele uma discussão num sábado que durou até às três da manhã do dia seguinte, interrompida para descansar e despertar às sete da manhã para continuar a conversa que terminou ao anoitecer. Depois disso, a anarquia que lhe era a fé mais radiante de sua primeira juventude, tornou-se saber vital. Malatesta convenceu mais pela sua pessoa do que por uma lógica aparente. Ao falar, o interlocutor era atraído não por um palavreado rebuscado, mas por um despertar das “melhores qualidades”. Esse “fundo” de sensibilidade política a tudo que é intolerável e inaceitável, que podemos chamar “racionalidade estética”, contido nas palavras de Malatesta, é de onde resultou sua eficácia persuasiva que provocou enorme influência nos lugares mais díspares e antagônicos. A ex-rainha de Nápoles, Maria Sofia, nutriu profunda impressão por 241 4 2003 Malatesta; noutra ocasião Malatesta, durante um processo, fez correr as lágrimas de alguns juízes e policiais ao falar das famílias operárias. Fabbri menciona como o juiz Alípio Alippi, católico e reacionário, lhe falou sobre Malatesta, a quem tinha conhecido por razões de ofício, declarando que “se todos os anarquistas tivessem sido como Malatesta, a anarquia teria podido ser uma realização da palavra de Cristo”27. E quando, em 1913-14, aos guardas encarregados em vigiar dia e noite a porta de sua casa, foi perguntado se ele não escaparia durante seu revezamento, eles responderam que: “Um homem tão bom como ele não pode fazer nenhum mau”. Do mesmo modo aconteceu durante um encontro em Persieto no ano de 1920. O pequeno coreto da praça reservado para seu discurso, foi cercado por uma numerosa patrulha de carabineros muito bem armados. “Parecia uma provocação!”. Perguntou-se a Malatesta se não era necessário exigir a saída da força pública: “Não — respondeu —, deixem-nos tranqüilos; também falarei para eles”. Começou falando da miséria das famílias camponesas de Itália dentro das quais o Estado recruta, aproveitando-se do impulso da fome de que padece, a maioria dos carabineros e agentes de polícia; falou das mães cujos filhos muitas vezes não voltam a ver novamente. Assustado pela impressão das palavras de Malatesta em sua tropa, o tenente acreditou mais prudente fazê-la sair e deixar o meeting se desenvolver sem vigilância alguma28. Pesando sobre Malatesta o ammonizione, espécie de liberdade vigiada, encontrou em 1876, num bairro da periferia de Nápoles, um antigo diretor de um cárcere de Trani, que o recebeu com grande alegria. Malatesta contou-lhe que era perseguido pela polícia e não sabia mais onde esconder-se para passar a noite: “Vem à minha casa — lhe disse Battistelli —; te esconderei”. “On- 242 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista de? No Cárcere!” [exclamou Malatesta] “Malatesta aceitou. Assim foi que, por alguns dias, para não ser encarcerado, o temido internacionalista se refugiou... no cárcere!”29. Fabbri recorda como Malatesta se levantou contra um companheiro, fazendo-o corar e calar-se, por ter falado com pouca consideração a respeito de uma prostituta. E ao passar seus últimos anos na Itália fascista, viveu em estreita humildade devido à ajuda de companheiros do exterior. Porém, foi ainda essa ajuda que também lhe permitiu auxiliar, uma vez e outra, em socorro de algum desventurado além da fronteira, anarquista ou não. Certa vez, num momento de crise quando morou em Londres, os amigos o aconselharam a vender coisas na cidade. Adquiriu um carrinho de mão e alguns doces e saiu. No primeiro dia aproximou-se um menino mal vestido que lhe pediu um doce. Malatesta deu-lhe, seguido de carícia afetuosa. Aos poucos chegaram mais e mais crianças até que Malatesta se viu cercado delas, que ganharam todos os doces. Ao ser perguntado por Kropotkin como andava o novo ofício, respondeu sorridente: “Clientela não me faltaria, porém me faltam os meios de adquirir as mercadorias”30. É preciso insistir que essa disposição para a generosidade, que não deve ser confundida com fraqueza, se trata de uma bondade viril. Se trata de uma capacidade de julgamento e de diferenciação que repousa sobre a sensibilidade. Isso era para ele nada mais que anarquia, era arma de luta e fermento de rebeldia. Para Malatesta a existência anarquista não se limita à persuasão lógica e teórica acerca das injustiças da organização social; não basta a simples manifestação do convencimento de uma melhor organização. O valor anarquista reside num sen- 243 4 2003 timento que se pode ter pela vontade. Esse sentimento é a generosidade voluntária e deliberada pelo próximo, pelo desejo do bem-estar alheio e pela sua liberdade: “Que não nos venham com ‘filosofias’ [dizia] a nos falar de egoísmo, altruísmo e outros quebra-cabeças. Estamos de acordo: somos todos egoístas, todos buscamos nossa satisfação. Porém é anarquista aquele cuja máxima satisfação é a de lutar para o bem de todos”31. Para Malatesta o ódio à opressão e o desejo de poder expressar a própria personalidade não bastam para fazer de alguém anarquista; essas aspirações devem ser acompanhadas pelo desejo de que todos desfrutem de igual liberdade, e da junção destas surge um estilo com o qual não se obtém mais que rebeldes anarquistas. Malatesta fez do sentimento de simpatia uma posição política que para ele era o mesmo valor que a solidariedade para Kropotkin, mas em oposição aberta a este se recusou transformá-lo em arte de teoria. Esse sentimento o fez pronunciar que se dispunha a “sacrificar todos os princípios para salvar um homem” e que “se para vencer se devesse elevar a forca nas praças, preferia perder”. Mesmo pesando sobre as costas uma condenação, em 1884, dirige-se a Nápoles para ajudar no combate a uma epidemia de cólera; segundo consta, seus conhecimentos de medicina fizeram com que o setor que orientou tenha registrado mais curas, pelo que lhe foi endereçado um despacho oficial de agradecimentos pelo empenho. Malatesta respondeu: “a verdadeira causa da cólera é a miséria e o único remédio eficaz para evitar o regresso da epidemia era a revolução social”. É preciso mencionar ainda o fato de Malatesta ter abandonado a faculdade de medicina muito cedo, e de ter, aos vinte anos, aprendido a profissão de mecânico 244 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista eletricista na oficina de seu amigo internacionalista, Agenore Natta, profissão que manteve até a morte. A lamentar fica apenas o fato de Malatesta nunca ter se ocupado em sistematizar seu pensamento. Fabbri sublinhará que seu maior impedimento material foi que deveu trabalhar sempre para viver. Desde então, Malatesta se entregou a um trabalho extenuante. Durante seu exílio em Londres, Pietro Gori encontrou Kropotkin para visitarem Malatesta; ao chegarem, viram-no suspendendo um letreiro de uma firma comercial. Kropotkin, então, exprimiu: que homem admirável!, ao que acrescentou Gori: “Sim, Malatesta é admirável; porém que triste mundo é esse que obriga a uma inteligência tão alta a gastar tempo, energia e saúde em um trabalho como esse, que tantos outros saberiam realizar, impedindo-lhe de efetuar aquilo que só ele sabe fazer! E que grande erro de nosso movimento não achar um modo de permitir a este homem cumprir aquele trabalho, mais útil à humanidade, de que tão capaz ele é!”32. E foi ainda Fabbri quem o encontrou em Roma, em 1923, já com setenta anos, na mesma circunstância que fez Gori pronunciar essas palavras. De fato, para Malatesta viver com menos sacrifícios dependia da recusa voluntária aos privilégios que lhe trouxesse sua grande inteligência; poderia ter colecionado títulos e adquirido status sem, no entanto, abandonar suas posições anarquistas tal como fizeram seus velhos amigos Kropotkin e Reclus; era, porém, contrário ao conforto da profissão literária e desprendido dos luxos da vida. Dentre os grandes “teóricos” do anarquismo internacional, e aqui poderíamos dizer Godwin, Proudhon, Bakunin e Kropotkin, Malatesta foi o anarquista de carne e osso; jamais foi um “revolucionário especialista”, 245 4 2003 nem santo, nem herói, nem sequer um homem “predestinado”; foi um companheiro entre os outros. Jamais impôs seus argumentos sob o peso da sua personalidade ou em nome de qualquer outra verdade científica ou filosófica. Evitou a idéia vulgarizada do “super-homem”, do culto à personalidade e durante o congresso de Berna, em 1876, Malatesta protestou contra o costume de chamarem a si mesmo de “bakuninistas”: “por que não somos, já que não compartilhamos de todas as idéias práticas e teóricas de Bakunin, e sobretudo por que seguimos as idéias e não os homens, e nos rebelamos contra o costume de encarnar um princípio em um homem”33. Por isso Malatesta jamais se utilizou de truques oratórios, sabendo fazer transbordar em seus escritos uma lógica sensível e de sentido comum. Sobre o homem que foi Malatesta, é preciso dizer ainda que se trata da atitude anarquista na sua mais clara expressão: recusou-se a vincular o anarquismo a qualquer sistema filosófico ou científico. Anarquia era para ele uma conduta, um modo de vida individual e social, ou, como gostava de dizer, “uma hipótese experimental aplicada à arte de viver em sociedade”. A ação Malatesta conheceu e conviveu com uma galeria de grandes homens. Garibaldi, Mazzini, Marx e Bakunin foram os primeiros mestres de sua juventude; ingressou na seção napolitana da Internacional aos dezessete anos, da qual se tornou secretário no inverno de 1872. Mas foi de Bakunin que recebeu uma forte influência. No mesmo ano, foi a Zurique encontrar a delegação espanhola que regressava do congresso de Haia, e também com o próprio Bakunin. Durante inúmeras discussões, funda com ele e outros companheiros a Aliança 246 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista dos Revolucionários Socialistas; assistiu o congresso anti-autoritário de Saint-Imier do qual resultou a reprovação das propostas marxistas e autoritárias. Retornou à Itália para assistir a um congresso em Bolonha, sendo preso e encarcerado por 54 dias. Ao ser posto em liberdade, pretendeu fazer uma viagem secreta com Bakunin para Barcelona, e ao fazer os preparativos, juntamente com Cafiero, foi novamente detido por mais seis meses. A década de 1860-70 foi particularmente repressiva na Itália, sobretudo devido às ações dos garibaldinos e da Alleanza de Mazzini; foi então que, em 1874, preparando uma insurreição generalizada, Malatesta percorreu de Nápoles à Sicília, organizando ações e fornecendo armamentos. Ao fim dessa revolta, seguiu-se um imenso processo contra ele e outros revolucionários em Trani. Vai para Lugano (Suíça), em 1875, e verá Bakunin pela última vez. De volta à Itália, Malatesta se envolve em novo levante, e é novamente detido juntamente com outros 23 revolucionários. Não podendo mais permanecer na Itália, percorre respectivamente Egito, Síria, França, Suíça, Bélgica, exilando-se finalmente em Londres, em 1881. Conhece em Genebra, no ano de 1879, Kropotkin, a quem vê com freqüência em Londres; em 1882, irá ao Egito na tentativa de sublevar os árabes contra os ingleses. Depois segue, com outros companheiros, para Buenos Aires, onde manterá uma intensa propaganda coordenada durante os anos de 1885 a 1889, dirigindo o jornal bilíngüe La Questione Sociale e fundando, com outros companheiros, o sindicato dos padeiros, um dos mais combativos. No ano seguinte vai à Patagônia dedi- 247 4 2003 car-se ao garimpo, tentando obter ouro para a propaganda anarquista34. Ao regressar à Europa, no verão de 1889, Malatesta encontrou o anarquismo debilitado e o socialismo parlamentarista fortalecido. Max Nettlau observará que na década de 1880 o anarquismo se resumia a três concepções: o individualismo americano de Tucker, o coletivismo espanhol e o comunismo franco-italiano35; as cisões resultantes dessas diferenças teóricas reduziram a propaganda anarquista à quase esterilidade. Foi quando Malatesta escreveu seu “Appello”, insistindo na necessidade de abandonar todos os “exclusivismos de escola” para a formação de associações livres, por livres pactos. Segundo Malatesta, “fora destes extremos não teremos razão de dividirmos em pequenas escolas pelo furor de determinar com excesso as particularidades, variáveis segundo o lugar e o tempo, da sociedade futura [...] não é lícito dividirmos por puras hipóteses”36. As palavras de Malatesta, na época, soaram como heresias. O ambiente era constituído pelos anarquistas que consideravam como fórmulas definitivas as idéias de Kropotkin por um lado, e por outro, pelos anarquistas ultra-individualistas que se especializaram em atacar os “organizadores” e “moralistas” da anarquia. Os escritos de Kropotkin eram considerados como as últimas palavras da anarquia, e vivia-se um ambiente tranqüilamente sem organização e sem relações organizativas. Malatesta, sem polemizar abertamente com Kropotkin, passa a escrever sobre as necessidades da organização. Suas idéias foram mais bem acolhidas na Itália e na Espanha, onde pronunciou diversas conferências em Barcelona e Sevilha e manteve estreito contato com Ricardo Mella. 248 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista Retornou clandestinamente à Itália e fundou no ano de 1897, em Ancona, o periódico L’Agitazione, iniciando a conhecida polêmica com Merlino, contra suas tendências parlamentaristas, que durou um ano. Foi preso durante uma manifestação em 1898 e condenado a “domicilio coatto” (desterro) por cinco anos numa ilha inóspita em Ustica. Isso não estava em seus planos. Na noite de 09 de maio de 1899, atirou-se na água com outros companheiros e nadaram até um barco próximo da ilha. Parte para os Estados Unidos no mesmo ano, quando polemiza com o anarquista individualista Giuseppe Ciancabilla e sua publicação L’Aurora. Será vítima de um atentado durante uma conferência em Nova Jersey, após uma calorosa discussão com um ouvinte que após interrompê-lo várias vezes saca uma pistola e o fere na perna. O autor do disparo, imobilizado por Gaetano Bresci (futuro assassino do rei de Itália, Humberto I), não era anarquista, desmentindo o que se atribuiu muitas vezes a Ciancabilla37. De volta a Londres em 1900, dirigiu-se a Paris no 1º de Maio de 1906 aguardando uma grandiosa manifestação, no apogeu do anarco-sindicalismo. Retorna à Londres decepcionado. Estando em sua residência, Fabbri o surpreendeu com a “fé diminuída, que era muita em 1897 e até há pouco, no movimento sindicalista”38. Em Paris, teve a impressão que o sindicalismo estava em sua fase descendente e que diminuiu, ao invés de aumentar, a combatividade dos anarquistas; impressionoulhe o fato de que o vigoroso caráter de lutadores se imobilizou e se acomodou nos postos de responsabilidade e direção das organizações sindicais. A hostilidade de revolucionário só se fazia sentir contra as últimas rodas da engrenagem estatal, enquanto que com os principais responsáveis se discutia afavelmente. 249 4 2003 Malatesta sentiu atenuar-se o espírito de rebelião no sindicalismo francês, fazendo com que seus militantes escolhessem caminhos mais cômodos. Ele estava convencido da necessidade dos sindicatos, bem como das associações culturais, agrupamentos recreativos, etc., porém afirmou que tudo isso resulta inútil “sem a luta e a revolta diretas e ativas, sem fatos revolucionários concretos”39. No ano seguinte, durante o Congresso Internacional Anarquista de Amsterdã, todos foram tomados por uma surpresa geral ao verem Malatesta se opor ao sindicalismo tal como era apresentado. Em 1913, Malatesta resolve voltar à Itália diante dos acontecimentos que levaram à “semana vermelha”. Toma essa decisão pesando-lhe sessenta anos, idade com a qual muitos revolucionários se retiram da vida pública para dedicarem-se às suas memórias. Funda, juntamente com Luigi Fabbri e César Agostinelle, um dos mais expressivos periódicos de Itália: Volontà. Conhece o então diretor da folha socialista Avanti!, Benito Mussolini, de quem dirá “esse homem é revolucionário apenas no jornal. Não há nada que fazer com ele!”40. É obrigado a evadir-se novamente para Londres, no ano seguinte, onde debaterá abertamente com Kropotkin e o grupo dos “quinze” na polêmica contra a guerra que assume a extensão da ruptura pessoal entre os dois velhos amigos. Malatesta retorna à Itália em 1919, em plena ascensão fascista. Lá é recebido como uma grande figura pública, por uma multidão que o aplaudiu sob bandeiras vermelhas nos bairros populares por onde passava. O Corriere della Sera dizia que “o anarquista Malatesta é hoje uma das maiores personagens da vida italiana. As multidões das cidades correm ao seu encontro e lhe entregam as chaves de suas portas, como costumava fazer em outro tem- 250 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista po, só que já não há portas”41. Em Milão, funda o periódico Umanità Nova, em 1920. Foi preso mais uma vez em 1919, juntamente com outros companheiros fazendo greve de fome em protesto. Na primeira página o Umanità Nova estampou que Malatesta corria um grande risco de morrer devido sua idade e grande debilidade física. A Itália comoveu-se e ocorreram, de imediato, inúmeras greves e atentados. O fascismo fecha a edição de Umanità Nova. Malatesta fazia sua última viagem ao estrangeiro clandestinamente, em setembro de 1922, por ocasião das comemorações do cinqüentenário do congresso anti-autoritário de Saint-Imier e do qual era o último participante vivo. Nessa ocasião, publica longo artigo lembrando “A Primeira Internacional”. Por ocasião de seu 70º aniversário, um grupo de amigos ofereceu a Malatesta os meios de continuar trabalhando pela causa. Por iniciativa do periódico Fede!, dirigido por Luigi Damiani, foram recolhidos alguns milhares de liras para que o já velho militante pudesse iniciar uma nova publicação regular. Em 1º de janeiro de 1924, surge em Roma Pensiero e Volontà (Rivista quindicinale di studi sociali e di coltura generale. Roma, 1924-1926), publicação que Malatesta não redigiu como atividade periodística. Nela se encontram os seus escritos mais extensos e, na falta de palavra melhor, mais maduros, relatando suas recordações de Bakunin e Kropotkin e delimitando os erros e êxitos destes militantes. Malatesta passou os últimos anos de sua vida em prisão domiciliar; isso também foi um ato voluntário, pois seu amigo Fabbri lhe havia sinalizado várias vezes para deixar a Itália. Malatesta não quis! Sua oficina tinha sido saqueada pelos fascistas, as casas onde fazia 251 4 2003 algum trabalho mecânico eram por eles revistadas, ficando limitado a viver da ajuda de seus companheiros. Mussolini impôs-lhe um duro silêncio. Colocou diante de sua porta uma vigilância de 24 horas, e o simples ato de cumprimentar-lhe na rua levava quem o praticasse a um interrogatório. Era uma figura demais notória para ser fuzilada e muito corajosa para se deixar em paz: foi preciso matá-lo aos poucos! Quando morreu em 22 de julho de 1932, em Roma aos 79 anos, apenas sua companheira, filha e sobrinhos, puderam acompanhar o féretro. O espectro de sua pessoa era tal que o comissário de polícia dizia em nota confidencial que “hoje, o célebre anarquista Errico Malatesta faleceu, em Roma. Peço que a vigilância sobre os elementos anarquistas e subversivos seja intensificada, a fim de se impedir todo e qualquer tipo de manifestação. Recomendo a maior atenção, visto que Malatesta tinha muitos partidários, há vários anos que aqui se encontrava e fazia uma propaganda eficaz”42. Os fascistas o enterraram em vala comum e jogaram sobre sua tumba uma cruz, contrariando os pedidos da família para se fazer um enterro ateu. O pensamento Malatesta é considerado, com unanimidade, o mais realista entre aqueles pensadores anarquistas internacionais; a atualidade e a contemporaneidade de suas idéias está nesta perspectiva, como se constata nas inúmeras polêmicas que travou dentro e fora do movimento anarquista sobre individualismo, comunismo, antimilitarismo, sindicalismo, parlamentarismo, disciplina, violência, greve, etc. Em todos esses assuntos, seus interlocutores eram surpreendidos pela ducha fria 252 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista do pragmatismo e realismo malatestiano. Nettlau dizia que todos os outros pensamentos “parecem diferenciarse de Malatesta”, e que embora internacionalmente se tenha seguido a figura mais brilhante de Kropotkin, “oxalá depois de sua morte se chegue a compreender enfim Malatesta!”43. “Compreender, enfim, Malatesta” significa abdicar de um pensamento único do anarquismo, muito em voga ontem e hoje. Significa entender o anarquismo como processo e devir, e os anarquistas como sujeitos moralmente autárquicos, que se bastam a si mesmos, com potencialidades associativas. Não nos espanta que Malatesta, ao contrário de seus predecessores, tenha sido odiado pelos anarquistas ansiosos em fazer valer seu ponto de vista; suas opiniões eram tidas como fantasias e quimeras e “teve Malatesta que resistir à crescente inimizade de quase todas as tendências anarquistas”44. Ele foi o principal responsável por manter o anarquismo fora de dogmatismos e comodismos, que hoje, mais do que nunca, deve obter a máxima importância. Malatesta pronunciou, por ocasião do 50º aniversário da morte de Bakunin, calorosas e não menos duras observações: “eu fui bakuniniano, como todos os camaradas de minha geração, infelizmente já distante no tempo. Hoje, depois de longos anos, não me considero mais como tal. Minhas idéias se desenvolveram e evoluíram. Hoje, penso que Bakunin foi muito marxista na economia política e na interpretação histórica. Creio que sua filosofia se debatia, sem conseguir sair, numa contradição entre a concepção mecanicista do universo e a fé na eficácia da vontade sobre os destinos do homem e da humanidade”45. Para ele, no momento em que os anarquistas se rogaram “filósofos” e “científicos”, originou- 253 4 2003 se uma confusão de palavras e idéias nocivas ao anarquismo. Na polêmica com Kropotkin, o grande anarquista entusiasta do desenvolvimento científico desse período, por exemplo, Malatesta criticou a confusão que se estabelece entre ciência e anarquismo. Em sua obra A ciência moderna e a anarquia, Kropotkin tentou fundamentar os ideais do socialismo com base em resultados da investigação científica. Malatesta, não apenas foi o crítico destas concepções mas seguiu outros caminhos. Sem a ambição de ser “teórico” não formulou nenhum sistema. Ao contrário, dizia que se pode ser anárquico sob qualquer sistema filosófico: “há anarquistas materialistas como há outros, como eu, que [...] preferem declarar-se simplesmente ignorantes”46. Era anarquista não por que a ciência indicou, mas por que quis. Para Malatesta, as ciências e as teorias, sempre hipotéticas e provisórias, são um meio cômodo de reunir e relacionar fatos conhecidos e um instrumento útil para a investigação, o descobrimento e a interpretação de novos fatos, mas jamais serão a verdade; isso porque a ciência, sobretudo a “ciência social”, é quase sempre um verniz com o qual alguns cobrem seus desejos e vontades. Ele não acreditou na infalibilidade do Papa, da Moral e da Sagrada Escritura, mais do que na ciência e neste sentido a dúvida lhe pareceu a posição mental de quem aspira aproximar-se da verdade, pois ela se coloca no campo infinito da investigação e do descobrimento, e apenas admite verdades provisoriamente e relativamente na espera de novas verdades: “Nenhuma fé, pois, no sentido religioso da palavra”: à vontade de crer Malatesta opôs a vontade de saber. 254 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista Malatesta discutiu abertamente suas divergências com Kropotkin um ano antes de vir a falecer, em seu último escrito de 15/04/1931, artigo onde recorda seu velho amigo: “Pietro Kropotkin — Ricorde e critiche di un vechio amico”. Kropotkin, na sua tentativa em fixar o lugar da anarquia na ciência moderna, disse que a anarquia é uma teoria do universo baseada na interpretação mecânica dos fenômenos, e que alcançava toda natureza incluindo a vida social. Malatesta respondeu que “isso é filosofia, aceitável ou não, porém certamente não é nem ciência nem anarquia”47. Para ele, anarquia é uma aspiração humana que não parte de nenhuma verdade, ou suposta verdade, ou necessidade natural, e cuja realização depende unicamente da vontade dos homens. Ela aproveita os meios que a ciência põe ao seu alcance, tanto quanto aproveita igualmente os progressos filosóficos: “porém não pode ser confundida, sem cair no absurdo, nem com a ciência, nem com qualquer sistema filosófico”. Se por um lado, dirá Malatesta, Kropotkin se mostrou severo em relação ao fatalismo marxista, por outro caiu num fatalismo mecanicista ainda mais paralisante. Assim é que sua filosofia não poderia deixar de influir na sua visão de futuro: tendo o comunismo anárquico que ocorrer necessariamente, as dificuldades eram suprimidas ou ocultadas na forma de um otimismo exagerado e dentro de uma uniformidade mórbida. Aqueles que pensaram o “anarquismo cientifico” não conseguiram escapar à moda de sua época. Nestas concepções, observou Malatesta, há “um pouco de sobrevivência das idéias religiosas” incorporadas pela ciência, na qual a divisa “tudo ocorre pela vontade de Deus”, foi substituída por “tudo ocorre segundo a natureza” ou “tudo 255 4 2003 ocorre segundo a ciência”. Para Malatesta, tudo ocorrerá ou não segundo a vontade dos indivíduos livremente associados. Entregar os destinos humanos ao providencialismo científico, não é menos diferente que entregá-lo nas mãos de Deus! A solidariedade para Malatesta não está dada na natureza, quando muito trata-se apenas de um slogan em que alguns homens se aferram. Ao contrário, a luta, a competição, os interesses discordantes constituem a realidade vivida: “Quando se diz que a liberdade de um indivíduo acha, não o limite, mas o complemento na liberdade dos demais”, se expressa em forma afirmativa um ideal sublime, talvez o mais perfeito que se possa destacar na evolução social; porém, se com isso se pretende afirmar um fato positivo, atual, ou que poderia atuar-se depois de destruir as instituições presentes, muda-se simplesmente a realidade objetiva por concepções ideais de nosso cérebro. [Já que a realidade] prova que muitas vezes nossa liberdade acha um limite na liberdade dos demais”48. Polêmicas não menos penosas Malatesta sustentou durante toda sua vida; a mais longa delas, objeto de livro, foi sobre o parlamentarismo, mantida igualmente com um velho amigo de militância anarquista, Saverio Merlino. Merlino foi propagandista do anarquismo por mais de vinte anos, e igualmente crítico das posições comunistas kropotkinianas. A partir de 1897 passou a defender as eleições como forma de luta, reclamando a importância das chamadas liberdades políticas e da sua defesa devendo ser travada em todos os terrenos, incluindo o eleitoral: “nos dias que correm, cabe ao partido socialista (no qual incluo também os anarquistas não individualistas) a defesa da liberdade. Esta luta, na minha 256 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista opinião, deve ser travada em todos os terrenos, incluindo o das eleições, mas não exclusivamente nele”49. Malatesta respondeu imediatamente dizendo que “habituar o povo a delegar para outros a conquista e defesa dos seus direitos é a maneira mais segura de deixar livre curso à arbitrariedade dos governantes. O parlamentarismo vale mais do que o despotismo, é verdade; contudo, só quando aquele representa uma concessão feita pelo déspota, com medo do pior. Entre o parlamentarismo que se aceita e gaba, como se fosse uma meta intransponível, e o despotismo que se suporta, porque a tal se é forçado, com o espírito absorto pela desforra, é mil vezes melhor o despotismo”50. Malatesta desenvolveu essa polêmica com Merlino, a mais longa que sustentou, até janeiro de 1898. Cabe mencionar que a polêmica não é apenas de altíssima qualidade, mas também é tomada de respeito, honestidade e clareza que Malatesta preservou em relação a Merlino até sua morte. Por ocasião desta, disse que Merlino “foi um dos escritores mais capazes, mais claros e mais convincentes, entre os que escreveram sobre o tema que tanto defendemos. [...] Colocamos sobre a sua campa a flor do reconhecimento, fazendo votos para que um dia a nova geração tenha a possibilidade de conhecer a sua obra anarquista, que ignora totalmente”51. Vontade anarquista Exceto os seus numerosos artigos, aos quais sempre foram escritos tendo por objetivo debater e orientar o público anarquista, serão seus cinco ensaios considerados os mais representativos de seu pensamento: “Entre Camponeses”, “No Café”, “Em Tempo de Eleições”, “A anarquia” e “Nosso Programa”; destes cinco ensaios, os 257 4 2003 três primeiros são escritos na forma de diálogos dirigidos ao público geral, onde questões cotidianas levam a exposições muito completas das concepções anarquistas. O mais célebre deles, “Entre Camponeses” (Fra Contadini, 1884) chama seu interlocutor a absorver as idéias sem disso aperceber-se; trata-se, em suma, de uma técnica que, levando o interlocutor a contradizerse, o faz problematizar a si mesmo e onde, ao invés de “informar”, “forma” nele valores que, ao contrário do discurso impessoal, recobre uma dimensão ética da adesão voluntária de seu interlocutor. Mesmo em um texto supostamente “informativo” como “A anarquia”, depara-se com alocuções como: “imaginem, pois, que ao homem de pernas atadas, do qual falamos, o médico expõe toda uma teoria e dá mil exemplos habilmente inventados para persuadi-lo de que, com suas pernas livres ele não poderia caminhar nem viver, este homem defenderia enraivecidamente suas correntes e consideraria como inimigos aqueles que quisessem arrebentá-las”52. Os diálogos de Malatesta não visam construir uma teoria, nem uma norma ou demonstrar o bem; sua concepção anarquista é avessa a isso, ele não subordinou o anarquismo a nenhuma teoria filosófica ou científica. Para ele, o anarquismo é uma atitude anti-autoritária e de solidariedade social, um alvo a realizar por uma vontade criadora e para a qual a finalidade da propaganda é a persuasão; aqui o sujeito ético é peça fundamental, pois de sua vontade depende a atitude anarquista. Vêse relativizada uma certa idealização das massas, própria a Bakunin. No voluntarismo malatestiano, o apelo é do “indivíduo” ao “indivíduo”; vê-se igualmente um caminho oposto trilhado por seu velho amigo Kropotkin, para quem “toda sociedade que romper com a propriedade particular, ver-se-á forçada, no nosso entender, a organizar-se em comunismo anarquista”53. 258 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista Para produzir efeitos anarquistas é necessário uma vontade anarquista, e para formar essa vontade há a propaganda que, por meio da educação, difunde os valores e os sentimentos anárquicos o mais amplamente possível. Para Malatesta, ainda que destruído o Estado e a propriedade, a anarquia não nascerá por obra da natureza nem por força dos fatos, é preciso querê-la; e neste sentido, discorda tanto de Bakunin como de Kropotkin. Nele, o único fato inegável é que queremos viver a anarquia porque queremos tirar da vida a máxima satisfação possível, e quando se nega a vontade e a faz parecer risível frente a todo esforço para um objetivo qualquer, é porque esse objetivo repugna nossos sentimentos fazendo a ação impossível. O que é vontade? perguntava-se. “Não sabemos, assim como não sabemos o que são, em sua essência, a matéria e a energia”54. O fato é que queremos viver uma vida consciente e ativa e essa vida exige certas disposições necessárias que podem ser inconscientes, mas que estão sempre nos ânimos de todos: “ide persuadir de que os anarquistas têm razão a alguém que seja insensível aos males alheios, que se apraz em viver do trabalho dos demais, que se satisfaz circundado de escravos obedientes! Um sentimento não se comunica senão despertando um sentimento análogo no ânimo alheio. E a anarquia reside completamente em um sentimento: o respeito à personalidade humana e o amor a todos”55. É por isso que a palavra vontade sintetiza bem a concepção de sociedade anarquista para Malatesta, uma vez que não pode ser mais que uma sociedade de homens que cooperam voluntariamente para o bem de todos. Ademais, a vontade lhe aparece como única força criadora tangível, única força que, operando por minorias e núcleos diversos de anarquistas, é capaz de ir subtraindo às “multidões volúveis” sua adaptação ao ambiente e 259 4 2003 seu estado de apatia. É preciso liberar das “massas” sua vontade para que ela perca o hábito de se deixar governar e para isso é preciso um longo e paciente trabalho de preparação e organização popular, sem cair na ilusão da revolução “a curto prazo”, que apenas é factível pela iniciativa de poucos e por curto período. Ambrósio — “Porém, se os homens não quiserem pensar nisso?” Jorge — “Tanto pior para eles. Você não quer compreender: não há nenhuma providência, seja divina ou natural, que se ocupe do bem dos homens. De seu bem, é necessário que os homens se preocupem por si mesmos, fazendo o que julguem útil e necessário para conseguir o fim. E você dirá ainda: porém, e se não querem? Nesse caso não conseguirão nada e permanecerão presas das forças cegas que lhes circundam. É o que acontece hoje: os homens não sabem como fazer para serem livres, e os que sabem, não querem fazer o que é preciso para libertar-se. E por isso continuam sendo escravos. Porém esperamos, mais cedo do que você pensa, que eles saibam e queiram. Então, serão livres!”56. Notas Pierre-Joseph Proudhon. Las Confesiones de un revolucionario para servir a la Historia de la Revolucion de febrero de 1848. Buenos Aires, Editorial Americalee, s/d, p. 137. 1 Pierre-Joseph Proudhon. O que é a propriedade?. Lisboa, Editorial Estampa, s/d, p. 13. 2 260 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista Max Nettlau. Socialismo Autoritario y Socialismo Libertário: estúdios y sugerencias sobre la accion internacional del anarquismo en la lucha contra la reaccion mundial. Barcelona, Guilda de Amigos del Libro, s/d, p. 47. 3 Rudolf Rocker. As idéias absolutistas no socialismo. São Paulo, Ed. Sargitário, 1946, p. 65. 4 5 Idem. 6 Émile Zola. Germinal. São Paulo, Circulo do Livro, s/d, p. 251. Cf. Marinice da Silva Fortunato. A categoria solidariedade humana no pensamento de Kropotkin. São Paulo, Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1998, p. 107. 7 Piotr Kropotkin. Etica (parte primera). Origen y evolucion de la moral. Buenos Aires, Editorial Argonauta, 1925, p. 19. 8 Jaime Cubero. As idéias-força do anarquismo. Centro de Cultura Social, datilo, 1991. 9 Menoridade enquanto ausência de pretensões à maioridade, permanecer menor. A esse respeito ver Edson Passetti. Éticas dos amigos — invenções libertárias da vida. São Paulo, Imaginário/CAPES, 2003. 10 11 Mauricio Tragtenberg. “A atualidade de Errico Malatesta” in Folha de São Paulo, 16/01/1973, p. 06-07. 12 Cf. Armand Cuvillier. Proudhon. México, Fondo de Cultura Econômica, 1986, p. 138. Peter Heintz. Problemática de la autoridad en Proudhon – ensayo de una crítica inmanente. Buenos Aires, Editorial Proyección, 1963, p. 54. 13 Mikhail Bukunin. Confesión ao Zar Nicolás I. Barcelona, Ed. Labor, 1976, p. 69. 14 15 Jacques Freymond (dir.). La Primeira Internacional, Tomo I. Madri, Edita Zero, 1973, p. 16. Cf. Juan Gomes Casa. Nacionalimperialismo y Movimento obrero en Europa – hasta después de la segunda Guerra Mundial. Madrid, CNT-AIT, 1985, p. 66. 16 17 Idem, p. 71. Prosper-Olivier Lissagaray. História da Comuna de 1871. São Paulo, Ensaio, 1995, p. 285. 18 19 Idem, p. 284. É conhecida a posição de Marx-Engels diante da guerra franco-prussiana; Marx, que chamava a seção internacionalista franco-suíça de “asnos proudhonianos”, escrevia a Engels em 20/07/1870: “Os franceses precisam de umas chicotadas. Se os prussianos saem vitoriosos, a centralização do poder do 20 261 4 2003 Estado será útil à concentração da classe operária alemã. A preponderância alemã, ademais, transportará o centro de gravidade do movimento operário europeu da França para Alemanha; e basta comparar somente o movimento em ambos os países desde 1866 até agora para ver que a classe operária alemã é superior à francesa, tanto do ponto de vista teórico como na organização. A preponderância, no teatro do mundo, do proletariado alemão sobre o proletariado francês, seria ao mesmo tempo a preponderância de nossa teoria sobre a de Proudhon”. Apud Juan Gomes Casa, op. cit., p. 74. 21 Élisée Reclus. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. São Paulo, Imaginário/ Expressão & Arte, 2002, p. 51. 22 Luigi Fabbri. Malatesta. Buenos Aires, Editorial Americalee, s/d, p. 62. Max Nettlau. “En memoria de Errico Malatesta” in Errico Malesta. Escritos. Fundación de Estúdios Libertarios Anselmo Lorenzo, 2001, p. 363. 23 24 Vernon Richards. “Apuntes para una biografía” in Malatesta, vida e ideas. Barcelona, Tusquets Editor, 1977, p. 296. Max Nettlau. Socialismo Autoritário y Socialismo Libertario: estúdios y sugerencias sobre la acción internacional del anarquismo en la lucha contra la reacción mundial. Barcelona, Guilda de Amigos del Libro, s/d, p. 52. 25 26 Luigi Fabbri, op. cit., p. 60. 27 Idem, p. 23. 28 Cf. Luigi Fabbri, op. cit., p. 24. 29 Idem, 73. 30 Luigi Fabbri, op. cit., p. 25. 31 Errico Malesta. Volontà. 15/06/1913. 32 Luigi Fabbri, op. cit., p. 54. 33 Vernon Richards. op. cit., p. 295. Ver a respeito Christian Ferrer. “Gastronomia e anarquismo — vestígios de viagens à Patagônia trapeiro”. Verve, São Paulo, Nu-sol, no 3, 2003, pp. 137160. 34 Max Nettlau. La anarquía a través de los tiempos. Barcelona, Edições Júcar, 1978, p. 121. 35 36 Max Nettlau. “En memoria de Errico Malatesta” in Errico Malatesta. op. cit., p. 374. 37 Cf. Vernon Richards. op. cit., p. 338. 38 Luigi Fabbri. op. cit., p. 119. 39 Idem. p. 120. 262 verve Errico Malatesta — revolta e ética anarquista 40 Ibidem, p. 130. 41 Idem. p. 140. Júlio Carrapato. “Breve posfácio” in Errico Malatesta e Francesco Saverio Merlino. Democracia ou Anarquismo? A célebre polêmica sobre as eleições, o parlamentarismo, a liberdade, o anarquismo e a ação revolucionária que apaixonou a Itália rebelde. Faro, Edições Sotavento, 2001, p. 257. 42 43 Max Nettlau. La anarquía a través de los tiempos. op. cit., p. 144. Max Nettlau. “En memoria de Errico Malatesta” in Errico Malatesta, op. cit., p. 379. 44 Errico Malatesta. Escritos revolucionários. Brasília, Novos Tempos, 1989, p. 130. 45 46 Errico Malatesta. Pensiero e volontà. 01/07/1925. 47 Idem, p. 56. 48 Errico Malatesta. Escritos. op. cit., p. 21. Francesco Saverio Merlino. Il messaggero. 29/01/1897. Errico Malatesta e Francesco Saverio Merlino. op. cit., pp. 10-11. 49 50 Errico Malatesta. Il messaggero. 07/02/1897. Idem, p. 13. 51 Errico Malatesta. Il risveglio. 26/07/1930. Ibidem, pp. 214-215. Errico Malatesta. A anarquia e outros escritos. São Paulo/Brasília, Centro de Cultura Social/Ed. Novos Tempos, 1987, p. 10. 52 53 Piotr Kropotkin. A conquista do pão. Lisboa, Guimarães & Cia. Editores, 1975, p. 45. Errico Malatesta. Pensiero e volontà. 01/02/1926 in Vernon Richards, op. cit., p. 63. 54 55 Luigi Fabbri, op. cit., p. 196. Errico Malatesta. Hacia una nueva humanidad. Porto Alegre, Edições Proa, 1969, p. 136. 56 Recebido para publicação em 10 de março de 2003 263 4 2003 assinado: Edgard Leuenroth 264 verve As idéias-força do anarquismo as idéias-força do anarquismo1 jaime cubero* Apresentação A inauguração do Centro de Cultura Social de São Paulo é anunciada pela A Plebe, com a publicação do anúncio: “Sábado, 14 de janeiro de 1933, às 20:00hs, no salão da Quintino Bocayuva, 80. A Comissão convida para este ato”. Remanescente da grande atividade “anarco-sindicalista” e assim como os sindicatos, o CCS é uma organização pública do movimento anarquista destinada a estudar e debater os problemas sociais tendo por objetivo “promover nos meios populares, principalmente entre os trabalhadores, onde as possibilidades de cultura são limitadas por toda sorte de empecilhos, o estudo de uma nova ordem de coisas baseadas em princípios de justiça e de equidades sociais, que facultem a cada indivíduo e * Jaime Cubero participou da reativação do Centro de Cultura Social de São Paulo, nos anos 1980. Aglutinou anarquistas e libertários e tornou-se referência para militantes e pesquisadores, acolhendo-nos com generosidade, humor e contundência (Nota dos Editores). verve, 4: 265-277, 2003 265 4 2003 à coletividade, o gozo de uma situação de liberdade e bem estar, resultado do esforço comum e a que todos fazem jus” (Estatutos). Nele, as tradições anarquistas foram transmitidas de geração em geração. Edgard Leuenroth, Pedro Catallo, Florentino de Carvalho, entre outros, que lutaram ao lado da primeira geração de imigrantes anarquistas em São Paulo, formaram a geração seguinte dos irmãos Cuberos, José Oliva Castillos, Lucca Gabriel, Nito Lemos, Antonio Martinez, entre outros. Sua trajetória pode ser dividida em três fases: a primeira vai da sua fundação em 1933 até o seu fechamento pela ditadura getulista em 1937 e diz respeito à sua forte atuação, junto com a Federação Operária de São Paulo, nas lutas antifascistas que culminariam no enfrentamento entre anarquistas e integralistas na praça da Sé em 1934; a segunda refere-se ao período que vai da sua reabertura em 1945 até novamente ser fechado em 1969, após a promulgação do Ato Constitucional de nº 5; e a terceira fase diz respeito às atividades desenvolvidas após a abertura democrática em 1985 até os dias de hoje. Nildo Avelino É comum e da tradição na divulgação de textos e conferências de propaganda sobre anarquismo, começarse com definições e explicações sobre a palavra anarquia, a partir da origem etimológica (do grego: an privativo, negativo e arkhê, poder = ausência de poder), ou seja, na (sem) arkhê (autoridade, governo), “estado de um povo que se rege sem autoridade constituída, sem governo” (Malatesta). É evidente a preocupação de libertar a palavra das conotações seculares que a tornaram 266 verve As idéias-força do anarquismo sinônimo de desordem, caos, bagunça e desorganização. Mas os termos verbais ou escritos, que expressam o conteúdo dos conceitos, têm seu sentido alterado com o tempo, muitas vezes de forma capciosa, exigindo para seu emprego, definições que tornem clara a intencionalidade e o sentido. Por exemplo: julgamos que os conceitos de poder, governo, assim como o de socialismo e outros, devem ser bem claros e definidos quando empregados no sentido anarquista. Há uma diferença sutil no discurso, mas importante na realidade entre poder político e poder social. O primeiro exerce o poder de coação: uma ou mais pessoas têm o poder de obrigar outras a fazer o que não desejam. Ocupam o governo do Estado, o Kratos, o poder político no sentido grego, qualquer que seja sua forma, teocracia, aristocracia, monarquia, oligarquia, democracia, em todas as instâncias; e é contra esse poder hipertrofiado nos Estados Nacionais modernos que os anarquistas lutam hoje. Os anarquistas sabem, e todos os estudos históricos o demonstram, que o exercício desse poder corrompe seus detentores que acabam sempre por exercitá-lo em benefício próprio, de uma forma ou outra, em diferentes graus, sempre em detrimento do povo. Transcrevemos trecho de uma carta — testemunho insuspeito — de Lord Acton, John Acton, historiador inglês, de Cambridge (1834- 1902) para o bispo Creighton: “... Não posso aceitar por norma que o senhor estabelece, segundo a qual devemos julgar o papa e o rei diferentes dos demais homens com a presunção favorável de que não cometem injustiças. Se cabe alguma presunção é a oposta contra os mantenedores do poder, que se acrescenta conforme se acrescenta o poder. A responsabilidade histórica tem que compensar a responsabilidade legal. O poder tende a corromper e o poder 267 4 2003 absoluto corrompe absolutamente. Os grandes homens são quase sempre maus homens, ainda quando exerçam influência e autoridade, mais ainda quando se acrescenta a tendência ou a certeza de corrupção pela autoridade. Não há pior heresia do que a de que o cargo santifica quem o exerce”(citado por Herbert Read em Anarquia e Ordem). O outro poder, o poder social, é o poder participado, exercido por todos nas decisões coletivas: o poder de uma assembléia de tomar decisões. Exemplo de proporções enormes foi o poder que tinha a C.N.T. espanhola, com milhões de filiados, durante a Guerra Civil, de decidir pela organização autogestionária e pelas experiências práticas do anarquismo durante a Revolução. É o poder que é exercido por todos em qualquer prática autogestionária nas decisões realmente coletivas. O termo governo tem o sentido de autoridade diretora e o sentido restrito é o do governo político, centralizador do Kratos social, mas por extensão tem o sentido de gestão, organização, ordenamento. As expressões desgoverno (avião, carro desgovernado) têm o sentido de desorganização e se (tenho a impressão que poderia ser suprimido o “se”) análogo ao sentido pejorativo de anarquia. A proposta anarquista é pela organização e, nesse sentido, pelo autogoverno, como sinônimo de autogestão. A frase de Elisée Reclus, “a anarquia é a mais alta expressão da ordem”, tão repetida ao longo dos anos pelos anarquistas, em contraposição ao poder coator do Estado, causa principal das desordens, injustiças e misérias sofridas por toda a sociedade, em última análise, tem o mesmo sentido. Não há expressão mais aviltada do que o termo socialismo. Assim como para a imensa maioria das pessoas, é inconcebível às sociedades humanas se organizarem 268 verve As idéias-força do anarquismo sem Estado, tal a desinformação. Para a maioria das pessoas, socialismo passou a ser sinônimo de estatização. Intelectuais das mais variadas tendências, nas universidades, na grande imprensa escrita e em todos os meios de comunicação, repetem a mesma pregação. Tudo o que se refere a socialismo passa pelo Estado. Que diferença do conceito de socialismo hoje, e do que era discutido nos principais congressos do século passado [XIX]! Com o ruir do sistema monolítico da Rússia e do Leste Europeu, só se ouve o apregoar estridente de que chegamos ao fim da história, com o capitalismo e a economia de mercado como a suprema via da felicidade humana ab-aeterno. Como se estatização fosse socialismo e não um modo de capitalismo. Quando dizemos que o anarquismo é antes de tudo sinônimo de socialismo, temos que dar um mínimo de clareza ao nosso conceito de socialismo: daí a expressão Socialismo Libertário. Socializar é tornar a propriedade e os instrumentos de trabalho, enfim, toda a riqueza e o que a produz à disposição de toda a sociedade, acabando com a exploração do homem sobre o homem. Mas, para o Socialismo Libertário, não basta socializar os bens materiais. É preciso socializar o saber, a informação e todos os bens culturais. Jamais haverá socialismo se não se fizer a socialização do poder: a primeira coisa a ser socializada é o poder, que começa na autogestão das lutas. Destruir o poder político e fortalecer o poder social, o que significa a autogestão, a real igualdade e liberdade em todo o processo de transformação. Todas as tendências “socialistas” ou pseudo-socialistas, que através de suas vanguardas dirigentes lutaram pela conquista do Estado, por via parlamentar ou revolucionária, nada mais fizeram do que criar novas castas de privilegiados, perpetuadores do capitalismo e da exploração. A História reforça com poderosos exemplos a posição dos anar- 269 4 2003 quistas na grande pendência da 1ª Internacional: libertários contra autoritários. Bakunin nunca foi tão atual, seus argumentos hoje estão apoiados em fatos. O anarquismo não é uma doutrina rígida, com artigos de fé, tábuas de lei, com profetas, com excomunhões, processos de heresias e sanções. É antes um conjunto de doutrinas e princípios, cujos postulados básicos são convergentes, e sempre aberto às novas contribuições. Esses postulados básicos formam um fundo comum, que no amplo universo das múltiplas e alternativas atividades libertárias são o anarquismo propriamente dito. O sentido de justiça e eqüidade, a revolta contra a exploração econômica do homem pelo homem, o combate ao Estado com a consciência plena de que é a instituição que garante o regime de exploração e o privilégio como fonte geradora de opressão e violência sobre o indivíduo e a coletividade, a liberdade como um dos mais altos valores humanos (liberdade e autonomia plenas a partir do indivíduo para a associação livre), solidariedade e apoio mútuo. Para Proudhon: “... desde o ponto de vista social: liberdade e solidariedade são expressões distintas do mesmo conceito. Enquanto a liberdade de cada um não encontra barreiras na liberdade dos outros, como diz a Declaração dos Direitos do Homem de 1793, mas em apoio, o homem mais livre é aquele que mantém as maiores relações com seus semelhantes”. Combate a todas as formas de autoritarismo, combate a todo poder de coerção, a tudo o que restringe, limita, sufoca e asfixia o potencial criativo do ser humano. Todo ser humano tem necessidade de desenvolver seu físico e sua mente em graus e formas indeterminadas, todo ser humano tem o direito de satisfazer livremente essa necessidade de desenvolvimento, to- 270 verve As idéias-força do anarquismo dos os seres humanos podem satisfazer essas necessidades por meio da cooperação e da vida associativa voluntariamente aceita. Cada indivíduo nasce com determinadas condições de desenvolvimento. Pelo fato de nascer com aquelas condições tem necessidade — em termos políticos, têm o direito — de se desenvolver livremente. Sejam quais forem suas condições, ele terá a tendência de se expandir integralmente. Ele terá o desejo de conhecer, saber, exercitar-se, gozar, sentir, pensar e agir com inteira liberdade. Essa necessidade é inerente ao próprio ser. Se o crescimento físico fosse limitado por qualquer meio artificial, tal fato seria qualificado de monstruoso. Mas, a limitação do desenvolvimento de sua sensibilidade, do seu desenvolvimento intelectual e moral anulando todo o seu potencial criativo, seria lógico considerar-se também uma monstruosidade. No capitalismo, esse crime se dá em todas as instâncias da vida social e ninguém considera isso um crime, somente os anarquistas. A descentralização, a autonomia e o federalismo são as vias pelas quais o anarquismo propõe a construção da nova sociedade. A descentralização máxima é o indivíduo. Da plena liberdade e autonomia individual para a organização segundo os interesses e as necessidades, para as instâncias mais complexas até a completa malha social, os princípios não se alteram. Começando pelo indivíduo como a unidade celular da sociedade até o mais amplo tecido social, o princípio de autonomia está presente. Os interesses específicos de cada instância não ultrapassam a própria esfera e não sofrem nenhuma interferência. Os interesses comuns de diferentes níveis e setores — profissionais, de produção de bens, geográficos que vão desde o espaço físico das comunidades à ecologia de grandes regiões, etc. — resolvem-se pelas federações que as necessidades práticas indicarão. A 271 4 2003 união de interesses com objetivos comuns, sem quebra da autonomia é a característica básica do federalismo. Assim, as uniões locais se organizam em regionais até as confederações internacionais. Tendo como fundamento a liberdade e a igualdade, o projeto anarquista de socialismo nos leva a clarear alguns aspectos dos conceitos de liberdade e ética para os anarquistas. O que é a liberdade? Tema de grandes controvérsias através da História. Há livre-arbítrio ou determinismo? Praticamos nossos atos por escolha ou não? Somos apenas dirigidos pelos nossos impulsos interiores aos quais não controlamos? Acontece que o homem é um animal racional: verdade que todos aceitam. Ser racional é ser capaz de escolher, capaz de preferir, de pesar, de comparar esta ou aquela solução, captar as possibilidades das possibilidades. O homem prevê as conseqüências de seus atos. Pode imaginar que se proceder assim poderá suceder isto ou aquilo. Tal ato poderá levar a tais ou quais conseqüências. É porque pode julgar, pode comparar, pode medir, pode escolher. Se o homem fosse apenas um autônomo, não teria noção de futuro. Ao ter noção de futuro demonstra independência, capacidade de escolher no suceder que sobrevém. É por isso que o homem é um ser autônomo e conhece a liberdade. Quando temos um impulso para um ato determinado e refletimos sobre as conseqüências, ao pensarmos, se nos revela uma série de possibilidades que vamos analisando racionalmente. Reprimimos o impulso, vencemos o desejo e resolvemos não fazer o que desejamos. Negar esse fato prático que verificamos em nossa vida seria negar praticamente também todo o poder da educação. Nossos maiores obstáculos contra os quais temos que lutar são justamente a pregação e a crença de que só podemos resolver os magnos problemas econômicos e sociais à custa da li- 272 verve As idéias-força do anarquismo berdade, abdicando da liberdade. Mas a liberdade é muito mais. E é através da conquista da própria liberdade que podemos garantir a solução que buscamos para esses problemas. O caminho da liberdade é o da prática da própria liberdade. É como a prática da liberdade que formamos homens livres. Liberdade não é somente ausência de restrições: é responsabilidade, opção e livre aceitação de obrigações sociais. Todos os nossos atos são passíveis de juízos de valor e de conotações éticas. Tudo o que foi exposto até aqui tem implicações éticas. Há vastíssimos estudos sobre ética, desde a transcendente (religiosa), até a ultraracionalista, amoral, que pretende justificar posições totalitárias; racistas, de casta, do Estado, etc... A que nos interessa é a ética imanente, que fundamenta as doutrinas libertárias, estudada e defendida por Proudhon e desenvolvida por Kropotkin, com bases sólidas, que aceitam uma ordem natural entre os homens, fundada nas tensões que formam e que procuram conservar-se porque na realidade toda ética está fundada nelas e nos interesses por elas criada. Portanto, se a sociedade for organizada sob bases simples e naturais, formará naturalmente sua ética, não como uma necessidade apenas, mas porque o homem sabe descobrir o que lhe convém para ordenar as suas relações, porque sabe escolher. Por isso, os homens, quando se reúnem para um fim comum, logo sabem deduzir de sua organização as regras e princípios justos (ajustados) que permitem conquistar da melhor forma o fim que visam, como têm-se verificado ao longo da História na constante da polarização entre liberdade e autoritarismo, e em todos os movimentos que buscam a superação social. Dessa forma, a organização anarquista desenvolve sua própria ética, fundada num dever-ser próprio, que, como todo ato ético, é frustrável. O ato antiético para o anarquista é tudo 273 4 2003 o que ofenda a norma da organização, o que ofende a solidariedade, seu fundamento, e que se estende à espécie humana. E o vigor, o desenvolvimento, as grandes possibilidades do projeto anarquista dependem fundamentalmente da coerência de sua ética. As diferentes tendências e visões que no evoluir das idéias foram se sucedendo, como o anarco-individualismo, o mutualismo, o anarco-coletivismo, o anarco-comunismo e o anarco-sindicalismo, ainda vigente, pois é simplesmente a atuação dos anarquistas no movimento sindical com características próprias, hoje praticamente se diluíram e podemos falar de anarquismos sem adjetivos. Ricardo Mella, um dos maiores teóricos do anarquismo espanhol, apresentou um trabalho no Congresso Revolucionário Internacional de Paris, em maio de 1900, com o título, “O Socialismo Anarquista”, contendo críticas às propostas que alimentavam grandes discussões sobre como deveria ser a sociedade futura. Idéias extraordinariamente atuais na análise sobre as tendências: “Se afirmamos a liberdade no sentido de que cada indivíduo e cada grupo possam atuar em cada instante, e nós todos a afirmamos, é claro que queremos os meios para que tal autonomia seja praticável”. “E porque nós os queremos, somos, sem dúvida, socialistas, isto é, afirmamos a justiça e a necessidade da posse comum da riqueza, porque sem essa posse comum, que significa igualdade de meios, a autonomia seria impraticável”. “Entendemos, creio que sem divergências, por posse comum da riqueza a posse comum de todas as coisas, de tal maneira, que estejam à livre disposição de indivíduos e grupos. Isto faz supor que será necessário estabelecer um oportuno acordo para que se faça uso metó- 274 verve As idéias-força do anarquismo dico da faculdade de dispor livremente das coisas. A investigação das formas possíveis daquele necessário acordo dá origem às diferentes escolas assinaladas (o grifo é nosso)”. “Se trata, pois de questões de pura formalidade”. “Será necessário, a partir de nossas afirmações genuinamente socialistas sistematizar a vida geral em plena anarquia? Será necessário decidir-se desde já por um sistema especial de prática comunista? Será necessário trabalhar para a implantação de um método exclusivo?”. “Se assim fosse, estaria justificada a existência de tantos partidos anarquistas quanto idéias econômicas dividem nossa opinião”. “Por outra parte, demonstraríamos com tais propósitos, que pretendíamos algo mais que a igualdade de meios como garantia da liberdade: demonstraríamos que tratávamos de dar uma regra à própria liberdade, ou melhor dizendo, ao seu exercício”. “Sistematizar o exercício da autonomia é contraditório. Livre o indivíduo e livre o grupo, nada pode obrigá-lo a adotar tal ou qual sistema de convivência social. Nada será também bastante poderoso para determinar uma direção uniforme na produção e distribuição da riqueza”. “Posto que afirmamos a total autonomia individual e coletiva, teremos de admitir, como conseqüência, a faculdade de todo mundo proceder como queira, a possibilidade de que uns ajam de um modo e outros de outro, a evidência de múltiplas práticas, cuja diversidade não será obstáculo à harmonia e à paz social que aspiramos. Havemos pois de admitir, resumindo, o princípio 275 4 2003 da cooperação livre, fundada na igualdade de meios sem ir mais longe nas conseqüências práticas da idéia”. “Por que o anarquismo há de ser comunista ou coletivista?”. “Só o enunciado dessas palavras produz no entendimento a imagem de um plano preconcebido, de um sistema fechado...”. “A afirmação de que tudo é de todos não implica que cada um possa dispor de tudo arbitrariamente ou conforme determinada norma. Significa unicamente que estando a riqueza à livre disposição dos indivíduos, fica ao sabor destes a organização de seu usufruto”. “A investigação das formas de organizar este usufruto é certamente útil e necessário, sobretudo a título de estudo, não a título de imposição de doutrina. Mas a própria investigação não dará nem será necessário que dê unanimidade de opiniões, nem é desejável que determine um credo social. Em matéria de opiniões, é preciso ser respeitoso com todas. A liberdade de levá-las à prática é a melhor garantia desse respeito”². O pluralismo que caracteriza o movimento anarquista é condizente com a natureza humana. A máxima igualdade é aquela na qual cada um possa exercer plenamente sua diferença. Se não dispõe da posse atual dessa igualdade, os anarquistas já são donos virtuais dela. Notas 1 Tema da segunda palestra no Curso de Anarquismo, em 11 de maio de 1991. ² Ricardo Mella. Ideario, Ediciones CNT, 1975, pp. 32-33. 276 verve As idéias-força do anarquismo RESUMO Seguindo por outras direções, os anarquistas buscam criar caminhos para a liberdade. Caminhos que levam para uma sociedade libertária, na qual, como discorre Ricardo Mella, vivencia-se a expressão da diversidade humana. Palavras-chave: Anarquia, liberdade, diversidade. ABSTRACT Following other directions, anarchists seek to create paths to liberty. Paths that lead them to a libertarian society in which, as described by Ricardo Mello, one can live the expression of human diversity. Keywords: anarchy, liberty, diversity. Indicado para publicação em 10 de março de 2003 277 4 2003 enquanto os mortais aceleram urânio a borboleta por um dia imortal elabora seu vôo ciclâmen Haroldo de Campos 278 verve Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras Resenhas hibridações, desarranjos, fusões e fissuras paulo-edgar almeida resende* Pierre-Joseph Proudhon. Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria (Tradução e notas de José Carlos Orsi Morel). São Paulo, Ícone Editora, Tomo I, 2003, 438 pp. O jovem Proudhon, nascido em 1809, publica a Filosofia da Miséria em 1846, quando ainda era empregado na firma dos irmãos Gauthier, seus ex-colegas de estudo. Nesta empresa de transporte fluvial, sediada em Lyon, convive com marinheiros, estivadores, comerciantes, mecânicos, carroceiros, oficiais de justiça. Está, portanto, a par do movimento operário de Lyon. Intelectualmente, entra em contato com a filosofia crítica de Kant, a filosofia política de Fichte, a dialética hegeliana, e Feuerbach. Tem como guias, dado o descoProfessor no Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, autor – junto com Edson Passetti – de Proudhon. São Paulo, Ática, 1986. * verve, 4: 279-296, 2003 279 4 2003 nhecimento da língua alemã, Karl Grün, da esquerda hegeliana, e Bakunin. Completa-se assim o arco de sua formação, em que se perfilam filosofia alemã, economia política inglesa e socialismo francês. Ratifica em seu texto questões anteriormente trabalhadas em Celebração do domingo (1839), Criação da ordem na humanidade (1843) e sobretudo Advertência aos proprietários (1842). Indispõe-se simultaneamente com a direita e a esquerda de então, vale dizer, com economistas liberais manchesterianos e com socialistas saint-simonianos e fourieristas. Os primeiros, criticados pelo seu dogmatismo, baseado em interesses e privilégios do presente. Os segundos, pelo misticismo e pelo receio de certa impostura apriorística, sem respaldo na realidade. Visa o socialismo com luz própria. Com os marxistas, ou mais precisamente com Marx e Engels, as relações começaram à base de certa reverência. Na Sagrada família, Proudhon é guindado às alturas. O que é a Propriedade é para o quarto estado o que foi a obra de Sieyès para o terceiro estado, segundo Marx. Mas a Filosofia da miséria é duramente criticada na Miséria da Filosofia. Esta mudança tem na carta convite de Marx a Proudhon, seu ponto nevrálgico. Marx convida Proudhon a participar de encontro em Bruxelas, convite não aceito, com justificativa que explicita toda a divergência posterior entre anarquistas e marxistas: ou o operariado se liberta pela sua própria iniciativa, ou estará sujeito a novo tipo de dominação. Tal convicção será reproduzida por Bakunin por ocasião dos debates na 1ª Internacional, e que levará ao impasse e dissolução do encontro, selando em definitivo a ruptura. Mais tarde, em carta a Engels, por ocasião da guerra francoprussiana, Marx, pelos anos 1870, apesar de toda a crítica aos limites das nacionalidades, destilará seu fel, mais amplamente, contra os franceses, que precisam 280 verve Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras ser surrados. A vitória de Bismark sobre Napoleão III será interpretada como a vitória do nosso socialismo sobre o socialismo de Proudhon. Na presente edição, foram traduzidos apenas os primeiros sete capítulos da Filosofia da Miséria. Os demais são prometidos para futura edição do tomo II. São colecionados temas diversos, recorrentes na literatura anarquista, por quem pode ser considerado autêntico founder, sem a rede de segurança da narrativa acadêmica. Tem sob seus olhos fragmentos lançados pela economia política e pelo socialismo utópico, em que encontra incoerências. Ao falar do edifício social, suas colunas, capitéis e bases, madeiras, pedra e metal, materiais reunidos para a construção de um templo magnífico, a propriedade construiu choupanas. Tratase, pois, não apenas de reencontrar o plano do edifício, mas também de desalojar seus ocupantes. Em prefácio muito bem elaborado, e sobretudo em oportunas, seguidas e extensas notas, José Carlos Orsi Morel mostra-se qualificado leitor de Proudhon. Oferece subsídios oportunos para a contextualização do acidentado percurso temático, reunido no tomo I. Do ponto de vista epistemológico, é de se ressaltar o que pode ser tido como a contribuição pioneira de Proudhon, a assimilação crítica da filosofia alemã, do socialismo francês, da economia inglesa e da teologia judaico-cristã, com hibridações, desarranjos, fusões e fissuras, bem antes do que foi atribuído a Marx. A dialética hegeliana sujeitou-se à correção de que carecerá o marxismo. A dialética triádica — tese, antítese e síntese — perderá seu gran finale. Sem a síntese, a história permanece em aberto. Proudhon problematiza a certeza dos economistas com o presente, com a dinâmica de mercado. São demasiado otimistas diante dos fa- 281 4 2003 tos consumados. É igualmente cético com a certeza na previsão do futuro dos socialistas. Diríamos hoje que Francis Fukuyama herda toda uma tradição do século XIX, quando proclama o fim da história. Fim da história à esquerda, com o postulado da luta de classe, que encontrará sua resolução na sociedade sem classe. Fim da história à direita, com o estado positivo, superando as fases teológica e metafísica. Para Augusto Comte o espírito positivo, em mãos de sábios e cientistas, reordenaria toda a sociedade dentro de rígidos padrões de racionalidade. Para Marx, o proletariado tem vocação universal, antepõe-se pela razão histórica ao entendimento corporativo da realidade pela burguesia.Em Proudhon, a síntese cede vez à dialética serial, já esboçada na obra Da criação da ordem na humanidade. Os capítulos da Filosofia da Miséria operam enquanto apronto para a partida, visando a superação do regime proprietário, rumo à ordem anárquica, em um processo que permanece em aberto. No seu Prólogo, fala da hipótese de um Deus, tida como necessária para justificar a crítica à transcendência, que tem em Deus sua figuração exacerbada. Poderíamos aí ver a releitura da concepção de sístole e diástole de Feuerbach, tão valorizada. O homem inicialmente, como que atemorizado diante de suas próprias potencialidades, em um movimento de sístole, em um movimento de transcendência, envia para o Além seu próprio sangue. No momento seguinte, reassume suas potencialidades enquanto atividade coletiva, em um fluxo de diástole. Na descida da “região fantástica, a razão impiedosa nos bate à porta, e é preciso respondê-la” (p. 42). Na ultrapassagem dos dogmatismos teológicos ou cientificistas, todos marcados por graus variados de transcendência, o operário escreve a história coletiva. 282 verve Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras Os economistas “afirmam que o que deve ser é. Os socialistas dizem que o que deve ser não é ainda. Os primeiros comportam-se como defensores da religião, da autoridade e dos outros princípios contemporâneos e conservadores da propriedade,(...). os segundos rejeitam a autoridade e a fé, apelando para a ciência, ainda que uma certa religiosidade, e um desdém pouco científico pelo fatos sejam o caráter de suas doutrinas” (p.42). Reiterações da crítica à economia política e ao socialismo No capítulo I, são desenvolvidas críticas à economia política ou à tradição, e feita a crítica interna do socialismo ou da utopia, o que de fato será reiterado nos demais capítulos, para não dizer em todas suas obras. Quanto à economia política, “apesar da etimologia do nome, nada mais é do que o código ou a rotina imemorial da propriedade” (p. 86). É a história natural dos costumes, tradições, práticas e rotinas relativas à produção e distribuição das riquezas. Trata-se da fisiologia da riqueza, prática organizada do roubo e da miséria. Ligada a ela, a Jurisprudência, condecorada pelos legistas com o nome de razão escrita, na verdade nada mais é do que compilação de rubricas do banditismo legal e oficial, vale dizer, da propriedade. “A economia política e o direito formam a teoria completa da iniqüidade e da discórdia” (p. 90). É a consagração do egoísmo. Quanto ao socialismo, como Vishnu, sempre morrendo e sempre ressuscitando, na seqüência de encarnações, afirma a anomalia da presente constituição da sociedade, afirma que a ordem civilizada é fictícia, contraditória, geradora de opressão, miséria e crime. Constitui o direito novo, com a oposição do princípio da associação ao princípio da propriedade. Trata-se da exaltação 283 4 2003 da comunidade, pedindo contas da desigualdade das condições, que geram o luxo e a miséria. Os socialistas são desafiados pelos economistas a produzir o sistema em que se possa prescindir da propriedade, da concorrência, da polícia. O próprio Proudhon, na sua crítica interna, vê as tentativas socialistas se perderem no oceano proprietário. Constata a perseverança do mal e o fracasso das tentativas reformistas e se pergunta: quando ocorrerá o julgamento? (p. 92). O socialismo grita que já é tempo de fazer vela rumo à terra firme e de entrar no porto; mas dizem os anti-sociais: não há porto, nossa circunavegação é eterna (p. 94). Economia política e Socialismo são apresentados como duas potências, que disputam o governo do mundo, anatemizando-se mutuamente, com o fervor de dois cultos hostis. Aos operários, que se queixam da insuficiência do salário e da incerteza do trabalho, a economia política opõe a liberdade de comércio. Aos cidadãos que buscam as condições de liberdade e da ordem, os ideólogos respondem com sistemas representativos. Desta forma, a sociedade encontra-se dividida em dois grandes partidos. Um, tradicional, essencialmente hierárquico, e que, segundo o objeto que se considere, denomina-se realeza ou democracia, filosofia ou religião, ou em uma única palavra, propriedade. O outro, ressuscitando a cada crise da civilização, proclama-se anárquico, refratário a toda e qualquer autoridade: é o socialismo. Mas os contendores estão de acordo com relação à autoridade comum da ciência. Os socialistas gritam novidade tão velha como o mundo: organizai o trabalho, sem dizer no que consiste esta organização. Até o momento foi dado apenas à economia política traduzir suas idéias em atos, ao passo que o socialismo apenas entregou-se à sátira. Por isso, cabe reduzir ao seu justo valor as declamações dos socialistas. 284 verve Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras Contra socialistas e economistas, Proudhon afirma não ser necessário organizar o trabalho, como pensam os primeiros, nem afirmar que ele já está se organizando, como dizem os segundos. O decisivo é que o trabalho se auto-organize, sem nenhum ponto de perfeição definitivo, mas em um perpétuo devir (p. 98). O socialismo e a economia política, fazendo-se uma guerra burlesca, perseguem entretanto a mesma idéia no fundo: a organização do trabalho. O que fazem as partes em litígio? Nada. Apenas levantam questões para terem a oportunidade de se dirigirem mutuamente injúrias. Camille Desmoulins é lembrado, ao responder a Robespierre: infelizmente, queimar não é responder. Neste tipo de debates, volta-se sempre ao fogo e à guilhotina (p. 104). Nestes solenes debates, mais parece a Proudhon que o processo inteiro decorre do fato de que uma das partes não quer ver, enquanto a outra recusa-se a caminhar. As práticas socialistas são então entrevistas no interior do próprio movimento operário (p. 101). Há necessidade de se descobrir uma fórmula de conciliação superior às utopias socialistas e às teorias truncadas da economia política. Malthus teve o grande mérito de reduzir ao absurdo toda a economia política. Quanto ao socialismo, já foi julgado há muito tempo por Platão e Thomas Morus em uma única palavra: utopia, quer dizer, não-lugar, quimera (p. 109). O presente, exaltado pelos economistas, encontra poucos defensores, mas o desagrado com a utopia não é menor, e o mundo inteiro compreende que a verdade está na fórmula que venha conciliar os dois termos: conservação e movimento (p. 110). 285 4 2003 O valor enquanto relação social No Capítulo II, a teoria do valor, já presente em Locke, no século XVII, com a metáfora da água que brota da fonte e é recolhida na bilha, encontra em Proudhon a explicitação de ser relação essencialmente social, na medida em que o valor de uso se transforma em valor de troca. Pelo trabalho, ao mesmo tempo, a riqueza e a sociedade são gestadas (p. 121). Vale dizer, o valor se coloca sucessivamente sob três aspectos: valor útil, valor trocável e valor social (p. 177). Tal é, pois, a marcha do desenvolvimento econômico: no primeiro momento, apropriação da terra e dos valores naturais. Depois, associação e distribuição pelo trabalho. A utilidade é a condição necessária da troca, mas elimine-se a troca e a utilidade será nula: os dois termos estão indissoluvelmente ligados até à igualdade completa, embora os caminhos estejam semeados de abismos, o gládio está suspenso sobre as cabeças. Mas para conjurar todos os perigos, erige-se a razão. A divisão do trabalho como forma de realização da igualdade No Cap. III, sobre a divisão do trabalho, Proudhon, nas pegadas dos filósofos modernos, cita La Rochefoucauld, Helvetius, Kant, Fichte, Hegel, Jacotot, e busca suporte para a extensão da idéia de igualdade positiva. Todos os homens são iguais na comunidade primitiva, iguais por sua nudez e ignorância, iguais pelo poder indefinido de suas faculdades (p.179). Se a inteligência difere nos indivíduos apenas quanto à aptidão própria de cada um, enquanto que, naquilo que ela tem de essencial, a saber, o julgamento, ele é em todos quantitativamente igual, daí resulta que, mais cedo ou mais tarde, o progresso geral deve conduzir todos os homens da igualda- 286 verve Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras de original negativa para a equivalência positiva de talentos e conhecimentos. Portanto, a hierarquia das capacidades não poderia ser admitida como princípio e lei da organização social: apenas a igualdade é a regra, como também o ideal. A igualdade negativa da miséria, nos começos, representa apenas o vácuo, devendo reproduzir-se, positivamente, no último termo da educação da humanidade. A divisão do trabalho é o modo segundo o qual se realiza a igualdade das condições e das inteligências. Ela, pela diversidade de funções, dá lugar à proporcionalidade dos produtos e ao equilíbrio nas trocas. Abre o caminho da riqueza e nos conduz a idealizar todas as nossas operações. Mas, nessa hora solene da divisão do trabalho, o vento das tempestades começa a soprar sobre a humanidade. O trabalho, dividindo-se segundo a lei que lhe é própria e que é a condição primeira de sua faculdade, atinge a negação de seus fins e destrói-se a si mesmo.A divisão fora da qual não há progresso, nem riqueza, nem igualdade, subalterniza o operário, torna sua inteligência inútil, a riqueza nociva e a igualdade impossível (p. 181). Assim, a divisão, depois do trabalho, é causa primeira da multiplicação das riquezas e da habilidade dos trabalhadores, mas também causa primeira da decadência do espírito, da miséria civilizada (p. 182). O trabalho, que deveria trazer a consciência ao seu clímax e torná-la cada vez mais digna de felicidade, conduzindo pela divisão parcelar ao desmoronamento do espírito, diminui o homem da mais nobre parte de si, e o projeta na animalidade. A partir deste momento, o homem decaído trabalha como um bruto e conseqüentemente deve ser tratado como um bruto. Mas é insuficiente a formulação de Blanqui, o economista, irmão do revolucionário (p. 190), que postula a associação do trabalho e do capital e a participação do operário nos lucros em um começo de solidariedade industrial. Proudhon adapta ao seu raciocínio crítico a metáfora da 287 4 2003 circulação sanguínea de Feuerbach. Trata-se, segundo ele, na proposta de Blanqui, de fazer com que o sangue, provindo da digestão coletiva, ao invés de ser levado totalmente à cabeça, ao ventre e ao peito, chegue também aos braços e às pernas. Mas é um ato insano, pela insignificância do que chegará a cada operário. Máquina no desenvolvimento da liberdade No capítulo IV, a introdução das máquinas na indústria é vista em oposição à lei da divisão do trabalho. A máquina reúne as diversas partículas de trabalho, que a divisão tinha separado. É um resumo de várias operações, uma condensação de trabalho. Trata-se de uma abreviação da mão-de-obra, que multiplica a força do produtor. Com o desenvolvimento da máquina na economia, é dado desenvolvimento à liberdade (p. 223). A máquina é o símbolo da liberdade humana, a insígnia de nossa dominação sobre a natureza. Liberdade é inteligência: eis todo o homem. Quando, no entanto, a razão pronunciou-se pela boca dos economistas, que não havia regra para o valor e que a lei do comércio era a oferta e a procura, a liberdade entregou-se ao fogo da ambição, do egoísmo e do jogo. O comércio transformou-se em mera aposta, submetida a regras de polícia. A miséria (p. 227) irrompe das fontes de riqueza. A liberdade é tão mais perfeita quanto mais ela se determina e aprimora pelo trabalho, vale dizer, que o trabalho é a educação de nossa liberdade (p. 254). Para que a causa da miséria seja contornada, solicitar ao governo que tome tal iniciativa, é fazer como os camponeses que, ao ver a tempestade aproximar-se se põem, rezam a Deus e invocam os santos. Os governos, nunca é demais repetir, são hoje os representantes da divindade. O ato de des- 288 verve Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras confiança popular para com a divindade nos diz também aquilo que devemos esperar do poder: nada. A concorrência como conciliação da satisfação do egoísmo com necessidades sociais No capítulo V, Proudhon se pergunta: entre a hidra de cem goelas da divisão do trabalho e o dragão indomado das máquinas, no que se transformará a humanidade? A concorrência abriga caracteres do falso e do verdadeiro. Trata-se de resolver o problema da concorrência, quer dizer, conciliar a mais alta satisfação do egoísmo com as necessidades sociais. A concorrência é necessária para a constituição do valor, ou seja, para o próprio princípio da distribuição, e, conseqüentemente, para o advento da igualdade. Enquanto um produto for dado por um único fabricante, o seu valor real permanece um mistério, por dissimulação de parte do produtor ou por incúria ou incapacidade. Se a garantia do salário é impossível sem o conhecimento exato do valor produzido, este valor só pode ser descoberto pela concorrência, não pelas instituições comunistas ou por decreto do povo. Se for ordenado que o trabalho e o salário estão garantidos a todos, logo um imenso relaxamento vai suceder à tensão ardente da indústria. Embora se possa admitir com socialistas que um dia a atração do trabalho possa servir de alimento à emulação, sem segundas intenções de lucro, estamos ainda na terceira época da evolução econômica, na terceira idade da constituição do trabalho, quer dizer, em um período em que é impossível para o trabalho ser atrativo. O trabalho atrativo é efeito de um alto desenvolvimento físico, moral e intelectual (p. 269). Como manifestação mais alta da vida, da inteligência e da liberdade, carrega em si sua própria atração, mas não pode ser separada sua atração do 289 4 2003 motivo de utilidade, portanto de um retorno ao egoísmo. Vale dizer, Proudhon nega o trabalho pelo trabalho. Quando o homem busca apenas em seu trabalho o prazer do exercício, logo deixa de trabalhar, ele brinca (p. 270). O trabalho verdadeiro, aquele que produz riqueza e que nos dá a ciência, o conhecimento de como fazer, tem necessidade de regra, de perseverança, de sacrifício. A faculdade de trabalhar distingue o homem dos brutos. A agricultura francesa de seu tempo é diagnosticada severamente pelo atraso, pela falta de concorrência, pelas disputas de retalhos de terreno, pela concorrência; não via trabalho nos campos, mas no tabelião. Pagar os menores salários e fazer os menores investimentos, diminuir custos, não a melhoria do solo e a qualidade dos produtos, é o que predomina. Semeia e a providência faz o resto (p. 275). O homem abandona sua preguiça apenas quando a necessidade o inquieta. O meio mais seguro para nele extinguir o gênio é libertálo de todos os cuidados, de subtrair-lhe o apetite dos lucros e das distinções sociais que pelo trabalho resultam, criando-se em torno dele a paz completa, e transportando para o Estado a responsabilidade de sua inércia. A conclusão de uma tal reflexão é radical: em contraposição ao quietismo moderno, a vida do homem é uma guerra permanente, guerra contra a necessidade, contra a natureza, com seus semelhantes e, conseqüentemente, guerra consigo mesmo. A teoria da igualdade pacífica, fundada sobre a fraternidade, tem como princípio a mendicidade, o panegírico da miséria. Não se enfrenta o sistema de contradições, visando à justiça social, com visão harmonista, com promessa de paraíso terrestre. Fora da concorrência, resta apenas o encorajamento, a mistificação, ou o sacrifício, uma hipocrisia. A concorrência é a força vital que anima o ser coletivo; 290 verve Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras destrui-la, se tal suposição pudesse ser feita, seria matar a sociedade. Em resumo (p. 306), a concorrência, como posição ou fase econômica, é considerada, na sua origem, resultado necessário da intervenção das máquinas, da constituição da oficina e da teoria da redução geral dos custos. Considerada em sua significação própria e na sua tendência, ela é o modo segundo o qual manifesta-se e exerce-se a atividade coletiva, é a expressão da espontaneidade social, o emblema da democracia e da igualdade, o instrumento mais enérgico da constituição do valor e o suporte da associação. Como impulso das forças individuais, ela é o penhor de sua liberdade, o primeiro momento de sua harmonia, a forma da responsabilidade que as une e que as torna solidárias. Não obstante, a concorrência, abandonada a si mesma e privada da direção de um princípio superior e eficaz, nada mais é do que movimento vão, oscilação sem objeto do poder industrial, arrastado entre dois extremos, igualmente funestos: as corporações e o patronato hierárquico de um lado e o monopólio do Estado ou o despotismo da comunidade de outro (p. 307). A sui generis imbricação da concorrência e do monopólio No Cap. VI, Proudhon disserta sobre o monopólio no sentido de comércio, exploração ou gozo exclusivo de uma coisa. O monopólio é o oposto natural da concorrência. Esta simples observação basta para fazer cair utopias derivadas do pensamento de abolir a concorrência, como se ela fosse o contrário da associação e da fraternidade. Mas desde que a concorrência é necessária, ela implica a idéia do monopólio, como que sede de cada individualidade concorrente. Monopólio é a forma 291 4 2003 da posse social, fora da qual não há trabalho, não há produção, troca e riqueza. Toda posse imobiliária é monopólio. O monopólio não carrega em si a idéia de injustiça. Mas da mesma forma que a concorrência, pode tornar-se anti-social e funesto. Reprimir os abusos, denunciá-los, é o que fazem magistrados e a nova escola de economistas. Nos capítulos anteriores, Proudhon dissertou sobre a divisão do trabalho como especificação do operário, considerado sobretudo como inteligência. O advento das máquinas e a organização da fábrica foram vistos como expressão da liberdade do operário em ação de concorrência. O monopólio apresenta-se então como tradução da liberdade exitosa, o preço do esforço despendido, a glorificação do gênio. É a autocracia do homem sobre si mesmo, é o direito de todo produtor de usar suas faculdades, de dispor dos instrumentos que ele mesmo criou, de gozar do fruto da descoberta e dos benefícios da aventura. No começo de cada indústria, o homem, que inventa, está isolado. A sociedade manifesta-se por dupla maneira, via conservação e via desenvolvimento. O desenvolvimento efetua-se pelo impulso das energias individuais. A massa é de natureza infecunda, passiva e refratária a qualquer novidade (p. 313). Ela é matriz estéril por si mesma, mas na qual vêm se depositar os germes criados pela atividade privada. Vã a hipótese de que o trabalhador de alta capacidade possa se contentar, em favor dos pequenos, com a metade de seu salário, supor que forneça gratuitamente seus serviços, e que produza para o rei, vale dizer, para a abstração que se chama sociedade. Por esta via, fundamenta-se a sociedade sobre um sentimento, que, erigido em princípio, transforma-se em falsa virtude. Mas a caridade, tomada como instrumento de igualdade e lei de equilíbrio, seria a dissolução da sociedade. A igualdade produz-se entre os 292 verve Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras homens pela rigorosa e inflexível lei do trabalho, pela proporcionalidade de valores, pela sinceridade de trocas e equivalências de funções, afirmação que esclarece a concepção autogestionária e libertária do socialismo de Proudhon. Igualdade vista como conjunto de equivalências e não como identidade única, daí a importância do indivíduo como fonte de criatividade, energia, iniciativa. A crítica ao comunismo é formulada, e permeia toda a obra, enquanto ameaça de absorção de toda iniciativa no Estado, reduzindo os indivíduos a uma igualdade bruta e elementar. Todos, em tal caso, seriam igualmente nulos. O grande problema do comunismo é caracterizado por não acreditar na igualdade de modo espontâneo e na educação, e sim em decretos soberanos: “Fraternidade, irmãos o quanto quiseres, desde que eu seja o primogênito e vós o caçula” (p. 319). Caridade é misticismo: “três mil anos de experiência ensinaram-me que qualquer um que me fale de Deus, ou quer a minha liberdade ou a minha bolsa” (p. 320). Sendo a humanidade individualizada na pluralidade, o homem torna-se fatalmente monopolizador. O problema social consiste em saber não como se abolirão, mas sim como se conciliarão todos os monopólios, cujos efeitos mais notáveis podem ser relidos na história da humanidade, dividida em vários agrupamentos, com acréscimos de riqueza, graças à divisão do trabalho, às máquinas, à concorrência. Resulta do efeito do monopólio a ficção econômica, pela qual o capitalista passa a ser considerado produtor, e o capital como agente de produção. Tal sociedade, em suas relações econômicas, divide-se em capitalistas e trabalhadores, empresários e assalariados. Da mesma forma que a concorrência, o monopólio está envolto nas contradições econômicas. Se a concorrência é guerra civil, o monopólio é visto como massacre dos prisioneiros. O monopólio leva o as- 293 4 2003 salariado à bancarrota e vive de seus despojos. O monopólio perverteu até mesmo a idéia de associação. Diante de tal contexto, todas as seitas socialistas, possuídas de confessa fragilidade diante do capital, na expectativa de realizar suas idéias quando tiverem em mãos o poder e o dinheiro, são aparentadas com a economia política. No caso dos socialistas, é como se tratasse de fundar nova casa para o monopólio (p. 351). O capital e o poder, órgãos secundários na sociedade, são sempre os deuses que o socialismo adora. Se o capital e o poder não existissem, os socialistas os inventariam, menosprezando suas próprias críticas. A ordem invertida: a polícia ou o imposto No capítulo VII, como conseqüência do desenvolvimento das contradições econômicas, a ordem nas sociedades mostra-se para Proudhon como que invertida. O que deveria estar em cima, está colocado embaixo. O que deveria estar iluminado, está rejeitado na sombra. Assim o poder, bem como o capital, auxiliar e subordinado do trabalho, tornam-se, pelo antagonismo da sociedade, espião, juiz e tirano das funções produtivas. O Estado, a polícia, ou seu meio de existência, o imposto, são o nome oficial da classe que se designa em economia política sob a rubrica de improdutivos. O proletariado, que antes trabalhava apenas para a casta que o devorava, a dos capitalistas, deve trabalhar mais para a casta que o flagela, a dos improdutivos (p. 365). O Estado, seja qual for a forma que lhe afete, será para o povo, uma danação legítima. O imposto, em princípio, penalizaria o monopólio. O povo faria leis contra o poder, contra o princípio de autoridade e de hierarquia contra a liberdade e a propriedade. Os partidários do poder, os doutrinários dinástico-republicanos, que diferem entre 294 verve Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras si apenas pela tática, evitam o confronto decisivo: do trabalho contra o capital, da liberdade contra a autoridade, do produtor contra o improdutivo, da igualdade contra o privilégio (p. 433). De nada serve mudar os depositários do poder, e trazer variantes às suas manobras. É preciso encontrar a combinação através da qual o poder se anule perante a sociedade. Cabe aos trabalhadores vencer ao mesmo tempo o poder e o monopólio, fazer surgir das entranhas do trabalho a autoridade maior, que envolva o capital e o Estado e que os subjugue. Considerações finais Atenta aos desdobramentos do movimento operário na primeira metade do século XIX, a obra de Proudhon coloca em destaque a insuficiência da política, os limites do pacto social na sociedade do capital e as potencialidades da sociedade do trabalho. É um crítico dos formalismos de participação, que ao invés de consolidarem a sociedade, esmeram-se no seu governo, com reposição da autoridade. Permanecem as garantias relacionadas com a inferioridade do trabalho em relação ao capital. No decorrer de sua volumosa obra, cabe sobretudo ressaltar sua visada de um regime econômico que é o contrário do regime governamental, característica recorrente de todo discurso anarquista de crítica ao comunismo e, por extensão, ao marxismo. Não obstante, são afirmações que não se fecham em círculo enquanto proposta de um sistema clauso de idéias ou projetos. O sistema da humanidade se dá a conhecer, segundo sua teoria das séries, enquanto tendência, movimento, direção da história através das lutas do presente contra a tríplice transcendência: da religião sobre as mentes, do capital sobre o trabalho, do Estado sobre a sociedade. Filosofia da miséria não apenas nos situa no grande deba- 295 4 2003 te das idéias no século XIX. Torna-se um clássico, porque veicula temas de atualidade. Vale a licença para reproduzirmos uma de suas citações de Plínio sobre o monopólio fundiário: Latifundia perdidere Italiam. Onde Itália, leia-se Brasil. existência anarquista acácio augusto* Raquel Azevedo. A resistência anarquista — uma questão de identidade (1927-1937). São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2002, 381 pp. Os recentes estudos historiográficos, que não se preocupam exclusivamente com os grandes fatos históricos, mas também em captar seu cotidiano, quando se dedicam a estudar as experiências anarquistas explicitam uma atitude inquieta e inquietante por parte dos libertários, ao notar os abalos que causam esta atitude na vida diária. É justamente esta abordagem da história que escolhe Raquel de Azevedo em seu estudo acerca de como se deu a resistência anarquista no período de 1927 a 1937, apresentando, logo em seu primeiro capítulo, uma discussão sobre a maneira de tratar a história do anarquismo no Brasil. Propõe preencher uma lacuna na pesquisa histórica, analisando o cotidiano e o imaginário anarquista entre o encerramento do estado de sítio no governo Artur Bernardes (1927) e a instauração da ditadura varguista (1937). Ao escolher esta abordagem a autora, através de uma extensa análise dos jornais anarquistas (em especial o Estudante de Ciências Sociais na PUC-SP, bolsista de iniciação científica CNPQ e integrante do Nu-Sol. * verve, 4: 296-299, 2003 296 verve Existência anarquista jornal A Plebe, principal veículo da imprensa libertária da época), da imprensa oficial — por via das notícias no jornal O Estado de São Paulo — e de documentos dos arquivos do DOPS, faz um relato das experiências anarquistas em um período em que o anarquismo era apontado pela historiografia marxista como “morto” ou “superado”. Nas pesquisas acadêmicas e nos livros didáticos de colegial é comum vermos a presença anarquista no Brasil reduzida às primeiras duas décadas do século XX como um movimento pré-político. Atenta aos embates e conflitos causados pela intensificação da repressão policial, as disputas com os comunistas — após a fundação do PCB em 1922 — e a institucionalização do movimento operário, Azevedo está interessada em captar as saídas que criaram os anarquistas para resistirem às transformações pelas quais passava a sociedade. Ao contrário de outras correntes políticas, como o comunismo, que surgiam no meio operário e tentavam adaptar-se às circunstâncias, aceitando, por exemplo, o sindicato ligado ao Estado, os anarquistas estavam interessados em afirmar uma existência pautada na autogestão, nas relações anti- hierárquicas e em uma atitude anti-autoritária, indo além das lutas trabalhistas e visando uma transformação do indivíduo. Os anarquistas afirmam que sem uma transformação dos costumes nas relações cotidianas é impossível pensar uma transformação da sociedade. Mesmo não tendo a mesma expressão que possuíam no meio operário no período entre 1906 e 1924, os anarquistas continuam, após este momento (o intervalo causado pelo estado de sítio de 1922 a 1926), associando-se para produzir jornais, escolas autogestionárias, centros de cultura, apresentações teatrais, comitês em defesa dos presos políticos, ligas anticlericais e viver a vida segundo seus costumes libertários. A autora vê nesta 297 4 2003 atitude do movimento anarquista a afirmação de uma identidade coletiva, mostrando de que maneira entre anarquistas, através da imprensa libertária, nos textos e nas figuras, e no posicionamento que tomavam frente aos acontecimentos, havia sempre a lembrança de um passado “glorioso”, da presença anarquista nos sindicatos e da força transformadora que possuía o trabalhador consciente sobre o autoritarismo na sociedade. Mas é importante estar atento ao fato de que — como o próprio livro mostra — havia um esforço por parte da imprensa oficial, da polícia, dos comunistas, dos fascistas e das demais forças que combatiam os anarquistas em identificá-los, seja como portadores de idéias exóticas, atrasadas ou românticas, seja como os estrangeiros perigosos, sempre com uma dinamite à mão pronta para explodir, ou ainda como os “agitadores violentos perturbadores da ordem pública”. Portanto, a construção de uma identidade podia ser uma forma de resistir, mas era também um artifício para destruir os anarquistas. Além disso, não há hegemonia no pensamento anarquista. Como os próprios militantes da época costumavam dizer, havia sempre “acaloradas discussões” sobre os mais diversos temas, inclusive sobre a idéia de anarquismo de cada grupo ou indivíduo, tornando ainda mais difícil a idéia de uma identidade coletiva. O interessante é notar como um trabalho com o recorte de uma década é capaz de resultar em quase quatrocentas páginas, mostrando a generosidade da autora com quem se dedica a pesquisar os anarquismos, que pode certamente usar este material como fonte, e sua firmeza em constatar a capacidade dos anarquistas em não se engessarem em idéias acabadas e projetos a serem seguidos à risca, criando inúmeras possibilidades de existir e resistir. A compila- 298 verve Existência anarquista ção de documentos, como atas de reuniões e artigos de jornais e a elaboração de tabelas mostrando a significativa participação anarquista nas greves, sindicatos e manifestações, mostram a criação de associações e grupos não necessariamente de operários e a promoção de eventos e festas, explicitando como os anarquistas foram em seu cotidiano e asseguraram a continuidade de uma cultura libertária que questiona a cultura da autoridade na qual se baseia a sociedade. Cabe notar também que a publicação de um estudo como este é sinal de uma presença cada vez maior de anarquistas na universidade. Isto mostra que assim como os anarquistas presentes neste livro não tinham no sindicato um local exclusivo de atuação, eles estão onde quer que seja possível a realização de uma vida libertária. E a conclusão a que chega a autora, confirma: “o atrelamento das organizações operárias brasileiras teve vida longa, enquanto que a experiência libertária retirou-se do ambiente sindical, ressurgindo em ameaças de explosões, não mais de ‘bombas de dinamite’, mas em atitudes rebeldes e contestadoras dos micro-poderes, como ocorreu nas agitações que percorreram o mundo em maio de 1968" (p. 363). 299 4 2003 as drogas à luz do dia: o controle social e o uso político dos psicoativos henrique soares carneiro* Thiago Rodrigues. Narcotráfico, uma guerra na guerra. São Paulo, Desatino, 2003, 126 pp. O livro recém-lançado Narcotráfico, uma guerra na guerra, de Thiago Rodrigues, mestre em Relações Internacionais pela PUC-SP, consegue em poucas páginas sintetizar os aspectos centrais do fenômeno do comércio das drogas proibidas, não só resumindo de forma muito informativa os contextos de três países — Colômbia, Bolívia e Brasil — diretamente envolvidos nas redes de grupos mafiosos e de corrupção estatal, mas, sobretudo, desmontando as armadilhas conceituais mais correntes que deturpam a natureza precisa dos conflitos ligados às drogas e imiscuem visões preconceituosas e denominações deliberadamente imprecisas que dificultam a apreensão dos significados geopolíticos dessa guerra às drogas que, como de forma muito feliz indica o título da obra, faz parte da natureza bélica mais geral dos conflitos sócio-econômicos da atualidade. O primeiro conceito a ser desnudado na sua impropriedade é o de “narcotráfico”, inaplicável, por definição, às substâncias excitantes e/ou alucinógenas, mas que é usado para designar um conjunto de drogas, a maioria das quais não narcótica, cuja única característica comum é o estatuto jurídico de ilicitude. A imprecisão na classificação, assim como todos os demais malentendidos ou equívocos deliberados fazem parte de um “imaginário” social meticulosamente construído ao longo das décadas de proibicionismo que se sucedem desde, Professor no Departamento de História da USP e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip). * verve, 4: 300-304, 2003 300 neiro* verve As drogas à luz do dia: o controle social e o uso dos psicoativos que nos Estados Unidos grupos puritanos se articularam para impor a Lei Volstead, em 1919, proibindo o comércio de álcool. Das bebidas espirituosas para um conjunto de substâncias distintas, o móvel oculto dessas proscrições de plantas e psicoativos sintéticos é a busca do controle social das populações, especialmente as marginalizadas ou estigmatizadas tais como os pobres, os imigrantes, as minorias étnicas. A hipertrofia do poder dos Estados, submissos aos ditames da ordem mundial construída ao longo do século XX pelo sistema imperial estadunidense, adentrou as esferas da vida privada, no seu núcleo mais hedonista, o do comportamento de busca do prazer através dos meios psicoquímicos, não simplesmente para extirpar e proscrever usos culturais milenares, mas para obter mecanismos de coerção e vigilância. Essa utilidade política do proibicionismo, evidente diante do número recorde e crescente de prisioneiros no sistema penal estadunidense, mais da metade dos quais encarcerados por delitos ligados às drogas proibidas, une-se a profundos interesses econômicos que fazem do comércio clandestino destas substâncias um dos maiores mercados do mundo. A imprecisão classificatória, a começar da definição de “narcotráfico”, estende-se a diversos outros conceitos, tais como, por exemplo, o de “cartel”, aplicado aos grupos colombianos e que Thiago Rodrigues demonstra ser impróprio para definir um tipo de comércio clandestino fragmentado, que não desapareceu com a morte dos mais notórios barões da cocaína dos anos 1980, como Pablo Escobar, mas que se difundiu numa divisão de tarefas mais complexa. A rica e densa narrativa de Rodrigues sobre os casos colombiano, boliviano e brasileiro, mostra como inte- 301 4 2003 graram-se interesses de Estado, na constituição de “narcogovernos”, como o de Garcia Meza na Bolívia, ou numa outra forma, no caso brasileiro, na convergência de fatores que redundaram na organização de grupos como o Comando Vermelho, originário das leis da ditadura que acabaram por construir as condições do seu nascimento no presídio da Ilha Grande. A conclusão mais contundente do livro é que “a Proibição instaurou o narcotráfico”. A exclusão de certos produtos de grande demanda da esfera do comércio lícito criou as condições de alta lucratividade econômica e de imensos recursos políticos estatais de controle do comportamento público. Além de situar historicamente as origens do proibicionismo, de investigar a evolução recente do fenômeno em três países da América do Sul, o livro busca compreender os sentidos políticos e ideológicos do imaginário contemporâneo das drogas no qual a noção antropológica de “contaminação” assume enorme relevo, pois os estigmas produzidos em torno das drogas ilícitas, irracionalmente assim classificadas em distinção das substâncias legais, como o álcool e o tabaco, servem como ordenadores morais e servem para localizar “bodes expiatórios” para a identificação das causas da violência, do medo e das inquietações mais paranóicas, confundindo propositadamente as conseqüências com as causas do problema. Dialogando com a bibliografia mais crítica, Thiago Rodrigues, conclui seu livro afirmando corajosamente uma posição ética e política que não aceita a atitude contemplativa e contemporizadora de uma certa ciência social adaptacionista, mas insere sua obra no cerne do debate, engajando-se e assumindo uma postura libertária que se distancia tanto dos paladinos da re- 302 verve As drogas à luz do dia: o controle social e o uso dos psicoativos pressão como do reformismo descriminalizador. Thiago Rodrigues aponta a perspectiva da liberação das drogas como a única que pode recuperar o arsenal dos psicoativos para os usos sociais possíveis, retirando-os da esfera das leis penais, ou seja, deslegalizando-as. Resta saber se, nesta hipótese, que equipararia as drogas a outros produtos de consumo da cultura material, tais como os alimentos, por exemplo, subsistiriam ainda os mecanismos de vigilância sanitária e controle de qualidade estatal. Subsiste também a questão de como organizar-se-ia a produção e o comércio em larga escala, dado que a auto-produção através de cultivos domésticos não permitiria suprir os produtos de alta tecnologia e fabricação industrial tais como as drogas sintéticas; caberia, neste caso, uma intervenção estatizante, criticada por Rodrigues por consistir num risco de colocar os consumidores sob um “controle mais refinado e talvez mais profundo”? Opondo tanto a “legalização liberal” quanto a “legalização estatizante” à pura liberação, Rodrigues não responde às questões suscitadas por tal situação, mesmo porque não é a intenção do livro “resolver a equação” do problema nem apresentar fórmulas prontas e acabadas mas, acima de tudo, recusar a banalização dos lugarescomuns e instigar a desconfiança. Nesse sentido, podese afirmar ser o livro perfeitamente bem-sucedido em trazer, mais do que meras informações (no que ele é muito abundante), uma atitude crítica sistemática que desmonta desde os conceitos aparentemente consensuais até as idéias reformistas supostamente de cunho progressista. O único reparo a fazer, necessário para uma segunda edição, é quanto a alguns erros de revisão, tais como a identificação equivocada do atual presidente boliviano, da data da anistia no Brasil e alguns outros deslizes que não comprometem a excelên- 303 4 2003 cia deste que é, talvez, o melhor trabalho de divulgação disponível no Brasil sobre os diversos aspectos da questão do “narcotráfico”. Resta-nos agora esperar a publicação da tese completa de Thiago Rodrigues, já no prelo pela Editora da Universidade Católica (Educ), para o aprofundamento da discussão sobre um dos temas mais candentes da atualidade. alfabetizar todos? francisco e. de freitas* Paul Goodman. La des-educación obligatoria. Barcelona, Libros de Confrontación, Serie: pedagógica 3, 1973, 181pp. A liberdade tem sido “venerada” por todos que pensam as práticas de homens e mulheres como algo que fosse possível dar a si mesmo ou a alguém. Este fato tem produzido discussões que a minimizam, sem, entretanto, problematizá-la como invenção diferenciada dos “seres vivos racionais” em algum momento. Em especial, a educação, teima em esquivar-se do problema. Daí o mérito de Paul Goodman em fazer a crítica ao projeto de desenvolvimento dos Estados Unidos e, de forma específica, ao sistema escolar quanto à centralização e burocratização que reduz o espaço de discussão dos envolvidos diretamente. Reconhecendo a inexistência destas condições, num espaço que não é isolado e nem o único, o leva tanto quanto a Illich a exigir o fim da escola compulsória, pois não haverá “ressonância interna”, conseqüentemente, nem haverá um contínuo de intenProfessor no Departamento de Metodologia do Ensino no Centro de Educação na Universidade Federal de Santa Maria-RS, mestre em História pela UFSC-SC e pesquisador no Nu-Sol. * verve, 4: 304-311, 2003 304 verve Alfabetizar todos? sidades entre o já estabelecido internamente e o exterior, dificultando apreender o obstáculo das relações de acomodação e dependência. Deste ponto de vista mais geral, tenho a sensação de que o livro La des-educacion obligatoria, publicado em espanhol em 1973 e jamais editado no Brasil, pode ser considerado como uma das ações de Paul Goodman no combate à coerção e ao sentimento do dever como instrumentos constitutivos da liberdade. Em Paul Goodman, é possível identificar uma singularidade sem haver uma individualidade já no primeiro momento que se embrenha no “mundo desumano e inumano” — 9 de setembro de 1911 em Greenwich Village Nova York —, pois não conheceu o cuidado proibitivo por parte da família, favorecendo assim, a sua curiosidade, o que muito provavelmente, facilitou-lhe num futuro próximo, não só o andar por ruas, parques, museus e bibliotecas de Nova York, mas também o contato com as mais variadas e diferentes culturas, afirmando o gosto por uma formação distante de crenças. Não será igualmente equivocado dizer que a trajetória de Goodman mostrou-se multifacetada e latejante em busca ressignificações. Graduado em Literatura Inglesa (1931) na Universidade de Nova York e Ph.D em Literatura na Universidade de Chicago, exerceu a docência nesta universidade até 1940, momento em que é pressionado a abandonar suas atividades por não esconder sua bissexualidade. Passa a produzir poemas, pequenas histórias e sinopses de novelas, ao mesmo tempo em que participa de círculos literários e de teatro, sendo considerado um artista marginal. Em 1945, por negar-se a prestar o serviço militar obrigatório é preso e escreve o Manifesto Anarquista na prisão. No final da década de 1940, encontra com Fritz Perls. 305 4 2003 Deste encontro surge uma parceria importante, pois elaboram a primeira apresentação teórico-prática da “Gestalt-terapia” e fundam o Instituto da Gestalt Terapia em Nova York e Cleveland. Paralelamente à produção intelectual, Paul Goodman organizava movimentos como o Free Speak Moviment e ações anti-racistas e contra a Guerra. Goodman se utiliza da “gestalt-terapia” para passar de artista e escritor, a crítico social, tendo como preocupação central, as questões político-pedagógicas, impulsionando desta forma, a “gestal-pedagogia”. A descoberta de Paul Goodman pela juventude americana — nos anos 1960 — está relacionada aos seus livros: Growing up absurd e Drawing the line, os quais forneciam os argumentos teóricos para a problematização da sociedade consumista americana. Entretanto, o especial interesse de Goodman, está no sistema escolar americano. A este, dirige sua crítica desprovida de complacência e generosidade, por entender a escola como um desperdício econômico, além de produzir prejuízos consideráveis à juventude. Os fundamentos da crítica ao ensino obrigatório fundam-se a partir dos problemas da estrutura deficiente de uma economia que favorece uma classe média alta, em detrimento da classe inferior. Segundo Goodman, não basta discutir problemas como a pobreza, a delinqüência, realizar cursos de requalificação de mão de obra e formar um corpo de voluntários, pois isso só confirma a deficiência da estrutura econômica. São elementos constitutivos da crítica, a evasão escolar, principalmente, no ensino superior; a unificação com base nos princípios científicos, “conduzindo diretamente a um fascismo de centro” (p.15); o espírito de 306 verve Alfabetizar todos? automação que predomina na Vida e na Escola; e, especialmente, na configuração da sociedade estadunidense, da utilização de índices de crescimento e o Produto Nacional Bruto (PNB) como medidas de saúde econômica, produzindo um crescimento desregulado que gera mais danos que benefícios, pois não elimina a tirania sobre a pobreza. Este conjunto de problemas exige uma mudança de pensamento, os quais remetem, segundo Goodman, a reavaliar a concepção sobre: “trabalho, ócio e desemprego” a partir da desconstrução da relação entre “bem estar econômico” e a simples abundância. Simultaneamente, será necessário rever a valoração social da tecnologia científica e da ciência que dá ênfase à produção — incluindo a expansão do conhecimento — pois esta, quanto mais se expande, cada vez mais é menos útil e, menos hábil, torna o homem médio, na medida em que consiste em aprender a viver dentro de uma elevada tecnologia. Os desenvolvimentos espontâneos e inacabados, baseados numa estrutura desastrosa — centro, subúrbios e um aglomerado urbano congestionado — seguem uma política de autopistas, impostos, de comércio e escolarização, intensiva urbanização; inviabilizando as pequenas propriedades como “modo de vida” (p.15). Esta é a “vitalidade política” que eventualmente renova a constituição, ou então, transforma-se em violência e em injustiça aprofundando ainda mais a crise política mesmo que, por ventura, preserve as formas democráticas, esvaziadas de conteúdo. O que se percebe é que já em 1964, a crítica de Goodman ao projeto americano de desenvolvimento direciona-se à economia, à política, à filosofia e, de forma específica ao sistema escolar, em face da centrali- 307 4 2003 zação e a burocratização nas escolas, que reduz o direito à discussão dos envolvidos diretamente. Ao esvaziar o sistema escolar compulsório da preocupação com o desenvolvimento de uma futura utilidade prática para a criança, no mundo das transformações e, em seu lugar, implementa uma tecnocracia inadequada, porque cada vez mais, a escola simplesmente adequou-se a um sistema mecânico que se distancia de incluir as crianças em uma “humanidade unida” e reforça o isolamento das classes. Ainda que bem intencionadas, as escolas deparam-se com as garras burocráticas de uma concepção uniforme e de “inclusão” no sistema obrigatório de ensino em média, na época, de doze anos, numa espécie de jaula a começar pela universidade, logo, é um projeto do tipo “beco sem saída”. Considerando que o projeto de desenvolvimento estadunidense faz mais mal do que bem aos americanos, a melhor coisa é livrar-se dele. Principalmente, porque Goodman entende que o sistema obrigatório de ensino é uma armadilha universal que não serve para nada. É isso por não haver autenticidade nas situações de aprendizagem, o que provoca uma cisão artificial entre sociedade e escola; os jovens são apartados do mundo dos adultos, e não há uma espontaneidade no ensino. Esta constatação imbricada com os aspectos econômicos, políticos e de padrão de vida, coloca Goodman diante de um dilema: se por um lado o ambiente escolar é ruim, também o ambiente doméstico e das ruas, para muitas destas crianças é péssimo. Isso porque as cidades e os subúrbios são locais nos quais os adultos não dão atenção aos jovens. E, estes, ao abandonarem as escolas estão com corpo e espírito tão doentes que necessitam de algum tipo de “consolo e de atendimento”, seja da própria escola, das instituições recreativas ou em acampamentos. 308 verve Alfabetizar todos? Por isso, Paul Goodman defende a eliminação total da escola para algumas classes — crianças com lares em condições toleráveis, ainda que não tenham um bom nível de cultura, mas que tenham vizinhos suficientemente numerosos para fazer companhia um aos outros para que não se sintam “diferentes” do grupo. A substituição total da escola justifica-se, segundo Goodman, pois qualquer criança “normal” consegue recuperar, em um período de 4 a 7 meses, o trabalho realizado nos sete primeiros anos letivos, desde que tenham bons professores. Para a ausência da escola, Goodman esboça algumas alternativas. Utilizar os prédios da própria cidade como escola — bares, ruas, lojas, cinemas, museus, parques e fábricas — como estratégia de contraposição às abstrações, num currículo “real”. Outra proposição é utilizar profissionais como farmacêuticos, donos de lojas e mecânicos na introdução dos jovens no mundo dos adultos, amenizando a distância entre os velhos e jovens, além de minimizar a autoridade dos educadores. No que diz respeito à obrigatoriedade da presença nas aulas, propõe que os alunos dediquem-se a desenvolver projetos que sejam estimuladores do viver aqui e agora. Em termos do funcionamento administrativo centralizado do sistema de ensino, Goodman defende a criação de pequenas unidades espalhadas entre 20 a 50 lojas, ou clubes que disporiam seus equipamentos no desenvolvimento de atividades recreativas e sociais direcionadas ao ensino formal com “classes” de 25 a 30 participantes de diversas idades. Em ocasiões especiais, estes grupos se reuniriam para discutir a idéia de compartilhamento em uma comunidade maior. Faz parte deste processo de descentralização a constituição de grupos de jovens a serem enviados para pequenas fazendas, economicamente “marginais”, cabendo ao fa- 309 4 2003 zendeiro, não bater nas crianças e, a estas, desenvolver trabalho de campo. Esta prática proporcionaria aos proprietários destas fazendas algum suporte financeiro, já que os recursos destinados à manutenção das escolas, lhes seriam repassados, bem como transformaria-se num projeto de equilíbrio entre a população rural e a urbana. Goodman enfatiza que este não é um projeto de educação para o ideal, mas sim, para um mundo que valha a pena viver o “aqui e o agora”, pois a juventude pobre da América não ascenderá à classe média só por freqüentar a mesma escola da classe média, pois a automatização, a informatização e as comunicações produzem transformações no mercado de trabalho que exigem atividades voltadas à preservação das necessidades de cada região. Acoplado a este objetivo, Goodman busca uma diminuição do sistema educacional monolítico, transformando a educação mais utilitária na medida em que os recursos financeiros investidos na formação dos jovens seriam entregues diretamente a estes, aos quais caberia viabilizar os seus próprios projetos educacionais. Por outro lado, isso significaria romper com o conformismo e combater a comunicação de massa, pois estimularia a cada indivíduo sentir-se à vontade diante da tecnologia e não alienado. Ao interromper, por razões óbvias, este concentrado e pretensioso esforço de resenhar um autor como Paul Goodman, muito provavelmente, várias turvações devem ter entrado em suspensão, produzindo possíveis enganos ao captar as “tessituras” dos seus “gritos”. Seja como for, as imperfeições de nitidez estão conectadas ao impacto da primeira leitura deste autor, muito provavelmente por conta do nebuloso “descontrole” que foi instalado como efeito das labaredas de um pensamento quente que derrama, consome, ergue uma outra coisa, 310 verve Uma história de amor e prisão mas que também oprime. Talvez por abordar um “velhonovo” tema, ainda às escuras, no permeio da tradição e da inovação, a eliminação da escola, entretanto, continua como um acontecimento problemático, na medida em que esta permanece como algo fundamental à vida. Paul Goodman não hesitou diante dos vários acontecimentos e das diversas vias semelhantes, mas de ordens díspares que se abriam diante de si. Tomou o problemático como ponto de organização para a “ressonância interna” produzindo diferenças que desassossegam o espaço sacro — a escola — aproximando-o das práticas no campo dos anarquismos. um história de amor e prisão salete oliveira* Manuel Rivas. O lápis do carpinteiro. Rio de Janeiro, Objetiva, 2002, 148 pp. Manuel Rivas escreve o Lápis do carpinteiro e o inscreve na tensão entre a ficção e a realidade. Trata-se de uma narrativa proliferada, na qual o narrador desdobra-se incontáveis vezes. Quem é o narrador? Ele é reescrito, não pela mão que toma o lápis mas, multiplicado pelos olhos do autorpintor-leitor que destoam e ecoam matizes de personagens possíveis. O que é o autor? Uma história de amor e prisão atravessada pela experiência de duplos em discórdia: prisão-inveja; amorliberdade. O espaço-tempo é o da Guerra Civil Espanho* Pesquisadora no Nu-Sol e PRODOC-CAPES/PEPG Ciências Sociais PUCSP e professora na Faculdade Santa Marcelina. verve, 4: 311-314, 2003 311 4 2003 la. O amor-liberdade da subversão. A prisão-inveja do Franquismo. O livre-amor preciso e intransferível entre Daniel La Barca e Marisa. A inveja-prisão do guarda Herbal, carcereiro devoto-amoroso do fascismo. De histórias díspares o livro provém de inúmeros lugares e emerge vigoroso já na dedicatória que se imiscui na tessitura da narrativa. Diluição profusa de circunstâncias, objetos e gestos. O livro é dedicado a Conchiña e à memória de seu grande amor Paco Comesaña, “doutor que lutou contra o mal de ar”. Sua figura estilhaça-se em diversos médicos que o atravessam ao longo do livro para confluírem na composição da personagem de Daniel La Barca. Um médico libertário que lutou contra a atmosfera do totalitarismo, inspirado e expirando paixão por Marisa, extensão amorosa de Conchiña. La Barca, na juventude, mirava Marisa, no fim da vida, ele em sua beleza tísica, ainda a mirava, “seus velhos olhos olhavam para ela tatuados de desejo” (p. 13). Após tantos anos juntos, respondia enamorada quando ele perguntava: como era mesmo o poema do melro? Ela, simultaneando asas e miradas apaixonadas de uma vida inteira, declamava de cor: “Tanta paixão e tanta melodia tinhas em tuas veias apressadas que uma paixão à outra somada já em teu corpo exíguo não cabia” (p. 12). A luta do corpo contra a escassez de ar. A atmosfera árida de pássaros confinados que transmutam-se na prisão A Falcona — situada atrás do palácio Raxoi, próximo à praça do Obradouro, que dava em frente à catedral. “Lá começava o Inferninho. Cada catedral medieval, o grande templo de Deus, tinha por perto um Inferninho, o lugar do pecado. Porque atrás da prisão ficava o Pombal, o bairro das putas” (pp. 22-23). Os arredores da pri- 312 verve Uma história de amor e prisão são condensavam, simultaneamente, o enunciado franquista que dividia o espaço reservado às mulheres na Espanha: metade freiras, metade putas. Face reversa do inferninho-catedral composta pela extensão prisional no território da casa dos loucos, o manicômio de Concho, lá, cuja a passagem das horas era compassada pelos toques do relógio da Igreja. O estarrecimento manicomial. Lugar-cárcere do primeiro encontro entre La Barca e o pintor que queria retratar as paisagens da dor psíquica, aquela lavrada nos rostos “(...), não por insanidade, mas por um fascínio abismal. A doença mental, pensava o pintor, desperta em nós certa repulsa. O medo diante do louco precede a compaixão, que às vezes nunca chega. Talvez, achava ele, porque intuímos que essa enfermidade faz parte de uma espécie de alma comum e anda por aí solta, escolhendo um ou outro corpo conforme lhe convenha. Daí a tendência a fazer o doente invisível. O pintor lembrava de, quando era criança, uma casa sempre fechada ao lado da sua. Um dia ouviu gritos e perguntou quem estava lá. A dona da casa lhe disse: Ninguém. (...) O cenário do manicômio era estarrecedor. (...) O que impressionou o pintor foi o olhar dos que não olhavam. Aquela renúncia às atitudes, o absoluto deslugar por onde caminhavam” (p. 35). Segue no traço do lápis do carpinteiro, a espera da compaixão do pintor esboçada ao lado de seu medo. A loucura não é invisível, se faz escancarada em insuportáveis verdades diria a cruel-crueza de Antonin Artaud. O deslugar do insuportável é confinado no lugar comum prisão-manicômio. No cárcere que o pintor, também, viria habitar e encontrar no seu algoz Herbal o duplo que ele continuaria a acompanhar em forma de voz no ouvido mesmo depois de morto. Mais um feixe de duplicação de narradores articulado por Rivas. 313 4 2003 Para o franquismo o perigo do pintor residia no fato de que ele pintava idéias, o de La Barca em permanecer vivo todas as vezes que sua morte esteve prestes a se consumar; ao se fazer livre, de forma incessante, mesmo quando confinado. Permanecer livre independente da situação, este é o maior perigo identificado pelos autoritarismos em qualquer tempo ou espaço. Herbal, o servo voluntário da inveja-prisão traça em papel, com o lápis de carpinteiro que herdou, a sua sombra apequenada que acompanha o embate de La Barca ao longo do livro. Anota cada gesto do médico, seus erros gramaticais transformam beleza tísica em beleza física, apresenta relatórios, delata. Confessa em rascunhos sua obsessão amorosa pela libertária Marisa. “O doutor La Barca tinha namorada. E essa namorada era a mulher mais linda do mundo. Do mundo que Herbal conhecia, e, certamente, do que não conhecia” (p. 45). Herbal confinado em seu mundo repleto de fronteiras demar-cadas pelo desejo de propriedade da vida do outro, extensão do desejo fascista. Fronteiras do carcereiro, do fascismo, da prisão, da inveja que não suporta os apaixonados-livres cujo gesto espontâneo é o do abraço, da festa, da dança, do combate. “E como se abraçavam, Herbal?, perguntou a menina do clube. Ja vi homens e mulheres fazendo de tudo, mas aqueles dois bebiam um ao outro. Lambiam-se a água com os lábios e com a língua. Sorviam o líquido nas orelhas, na cava dos olhos, pescoço acima do peito. Estavam tão encharcados que deviam se sentir nus. Beijavam-se como dois peixes” (p. 112). A única coisa boa das fronteiras são as passagens clandestinas diz Rivas pela boca de La Barca. Para além disto, fica para o leitor interessado na vida, livre e apaixonada, sob o sol alto ou sob tempestades, a coragem da ultrapassagem e da diluição de fronteiras. Thiag 314 verve o espaço quando brilha se admira dos nadas que Thiago Rodrigues 315 4 2003 NU-SOL Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. hypomnemata Boletim eletrônico mensal, 1999-2003 vídeos Libertárias, 1999 Foucault-Ficô, 2000 Um incômodo, 2003 CD-ROM Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um incômodo) Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2003 1. a anarquia Errico Malatesta 2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston 3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T. 4. municipalismo libertário Murray Bookchin 5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux 6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky 7. a bibliografia libertária - um século de anarquismo em língua portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva 8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin 9. deus e o estado Mikhail Bakunin 10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin 11. escritos revolucionários Errico Malatesta 12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares 316 verve 13. do anarquismo Nicolas Walter 14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau, Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero 15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton, Schuster, Kyrou, Legrand 16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda, Berkman 17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti 18. análise do estado - o estado como paradigma do poder Eduardo Colombo 19. o essencial proudhon Francisco Trindade 20. escritos contra marx Mikhail Bakunin 21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud 22. a instrução integral Mikhail Bakunin 23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino, Enckell 24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag 25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón 26. a revolução mexicana Flores Magón 27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo Livro Pierre Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário/Nu-sol, 2001, 134 pp. 317 4 2003 Publicações Libertárias em Língua Portuguesa verve Revista Semestral do Nu-Sol Nas livrarias e em www.nu-sol.org letralivre Revista de Cultura Libertária e Literatura Assinaturas: [email protected] e Caixa Postal 50083 20062-970 Rio de Janeiro/RJ libertários Revista de expressão anarquista Nas livrarias e bancas de jornais. Assinaturas: [email protected] utopia Revista Anarquista de Cultura e Intervenção www.utopia.pt Novos Tempos Nas livrarias e bancas de jornais. Assinaturas: [email protected] 318 verve Libertários Revista de expressão anarquista Quem tem medo do anarquismo? No 1 - 3o trimestre de 2002 Nicolas Walter, Luc Spirlet, Federação Anarquista Francófona, Frank Mintz, Frédéric Goldbronn, Xavier Federação Anarquista, Héloïsa Castellanos, Alexis Vencia, Alexandre Samis, Renato Ramos, Bruno Rocha. Miséria da economia, economia da miséria No 2 - 2o semestre de 2003 Ronald Creagh, Miguel Chueca, Francisco Trindade, Luciano Lanza, Piotr Kropotkin, Frédéric Blanchet, Antônio José Botelho, Noam Chomsky, James Herod, Organisation Communiste Libertaire, Edson Passetti, Daniel Aarão Reis Filho, Alexandre Samis. Resenhas. Editora Imaginário Tel. 3864-3242 Rua Ciro Costa, 94 cj. 1, Perdizes, São Paulo - SP 05007-060 [email protected] 319 4 2003 Robson Achiamé, editor Caixa Postal 50083 20062-970 - Rio de Janeiro - RJ [email protected] Telefax: (21) 2544-5552 ÚLTIMOS LANÇAMENTOS Discurso sobre o filho-da-puta – Alberto Pimenta - 80 pp. Eric & Graciliano – Olavo Cabral Ramos Filho - 32 pp. Sociobiologia ou ecologia social? – Murray Bookchin 88 pp. Sobre o anarquismo (2a ed.) – Nicholas Walter - 96 pp. Van Gogh – O Suicidado pela Sociedade (2a ed.) – Antonin Artaud - 64 pp. Direito à preguiça – Paul Lafargue - 72 pp. 320 verve Publicações da Faculdade e do PEPG em Ciências Sociais da PUC-SP Revista MargeM Rua Monte Alegre, 984 Perdizes, São Paulo – SP 05014-901 Tel. 3670-8111 www.pucsp.br/~margem [email protected] Publicação semestral da Faculdade de Ciências Sociais e dos Programas de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e História da PUC/SP, MargeM representa projeto editorial singular no panorama das publicações científicas ou acadêmicas que, ao longo de dez anos, consolidou-se como espaço aberto para a expressão de uma reflexão crítica e propositiva, disposta a provocar o debate sobre as questões contemporâneas que desafiam intelectuais, educadores e cidadãos. MargeM organiza-se ao redor de uma temática nucleadora que reúne o dossiê, um espaço para outros artigos, resenhas, entrevistas e apresenta, a cada número, uma proposta plástica, gráfica, de um autor, artista ou produtor cultural, compondo espaço intertextual de debate e ressonância. Foram publicados até o momento 16 (dezesseis) números sendo que mais 2 (dois) estão para serem lançados até o final de 2003. Constamos de vários indexadores nacionais e estrangeiros. Editada pela EDUC, Editora da PUC/SP, Margem tem alcance internacional estando presente, através de permutas e assinaturas, nas mais conceituadas instituições culturais do mundo. 321 4 2003 Caderno Metrópole Publicação do Núcleo de Estudos de Pesquisas Urbanas (NEPUR), EDUC/FAPESP. Nº 10 - Sumário (151 pp.) 1) “Irregularidade urbanística: questionando algumas hipóteses”, de Adauto Lucio Cardoso. 2) “A Região Metropolitana e o Parlamento Comum: a Carta de vereadores da Grande Natal”, de Maria do Livramento M. Clementino. 3) “O Novo Capital Social das Cidades Brasileiras”, de Suely Leal. 4) “Participação e Arenas Públicas: um quadro analítico para pensar os conselhos municipais setoriais e os fóruns de desenvolvimento local”, de Gisele dos Reis e Jussara Freire. 5) “Poder Local e Políticas Públicas: Um Estudo Exploratório Sobre Conselhos Gestores”, de Celene Tonella. 6) “Governança Urbana e Participação Cidadã: a experiência do OP em São Paulo”, de Félix Sanchez. NEPUR Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Rua Ministro Godói, 969, 4o andar, sala 4E-18 São Paulo-SP 05015-001 Tel. (11) 3670-8517 322 verve Recomendações para colaborar com verve Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Conselho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à revista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à formatação: Extensão, fonte e espaçamento: a) Artigos: os artigos não devem exceder 26.000 caracteres contando espaço (aproximadamente 15 laudas), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. b) Resenhas: As resenhas devem ter até 6.000 caracteres (com espaço), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. Identificação: O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas, para identificá-lo em nota de rodapé. Resumo: Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 linhas, em português e inglês. Notas explicativas: As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de fim de texto. Citações: As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto observando o padrão a seguir: 323 4 2003 I) Para livros: Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página. Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação. São Paulo, Imaginário, 2001, p. 74. II) Para artigos ou capítulos de livros: Nome do autor. “Título” in Título da Obra. Cidade, Editora, ano, página. Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores, p.76. III) Para citações posteriores: a) primeira repetição: Idem, p. número da página. b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página. c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor, ano, op. cit., p. número da página. IV) Para resenhas As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o título, da seguinte maneira: Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de páginas. Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp. V) Para obras traduzidas Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de páginas. Tradução de [nome do tradutor]. Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail. 324 verve As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico para o endereço [email protected] salvos em extensão rtf. Na impossibilidade do envio eletrônico, pedese que a colaboração em disquete seja encaminhada pelo correio para: Revista Verve Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUCSP. Rua Ministro Godói, 969, 4o andar, sala 4E-18, Perdizes, CEP 05015-001, São Paulo/SP. Informações e programação das atividades do Nu-sol no endereço: www.nu-sol.org 325