§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§ O PRÍNCIPE ÉTICO A MÁ FAMA A B Menezes §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§ _______________________________________________________ “Não aceito glória de homens, mas eu bem sei que não tendes em vós o amor de Deus”. João, cap. V vers, XL e 41. “Eu amei de verdade os primeiros dias dos Beatles. Mas então nós ficamos famosos, e isso estragou tudo”. George, um beatle “... Deixe o copo encher até a borda, que eu quero um dia de sol num copo d’água...”. R M Júnior “A vida é uma tragédia para quem sente, mas é uma comédia para quem pensa”. Samuel Johnson “E quem me ofende humilhando pisando pensando que eu vou aturar; tô me guardando pra quando o carnaval chegar...”. “E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar; tô me guardando pra quando o §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§ A MÁ FAMA A B Menezes §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§ _______________________________________________________ “Não aceito glória de homens, mas eu bem sei que não tendes em vós o amor de Deus”. João, cap. V vers, XL e 41. “Eu amei de verdade os primeiros dias dos Beatles. Mas então nós ficamos famosos, e isso estragou tudo”. George, um beatle “... Deixe o copo encher até a borda, que eu quero um dia de sol num copo d’água...”. R M Júnior “A vida é uma tragédia para quem sente, mas é uma comédia para quem pensa”. Samuel Johnson “E quem me ofende humilhando pisando pensando que eu vou aturar; tô me guardando pra quando o carnaval chegar...”. “E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar; tô me guardando pra quando o carnaval chegar...”. Julinho da Adelaide “Os detalhes fazem a perfeição, mas perfeição, não é detalhe”. Michelangelo Buonarroti “Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos e que o mais seguro de todos é valer pela opinião de outros homens”. “(...); preferi dormir, que é um modo interino de morrer...”. “O mundo era estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas”. “Suporta-se com paciência a cólica do próximo”. M. de A. “A natureza e as leis dela se escondem na obscuridade. Disse Deus: Que exista Newton! e tudo se transformou em claridade”. Alexander Pope “Há esperanças, menos para nós”. Franz Kafka “Antes da derrocada, o coração do homem é soberbo, e antes da glória há humildade”. Provérbios, cap. XVIII vers. 12 ========================================================== Não, por força da modernidade, não usei pena nem caneta e sim o teclado para compor este singelo e despretensioso opúsculo que é dedicado a quatro pessoas que foram por demais extremosas entre si sendo, no entanto, igualmente estimadas e, nesta TEIA, incluo você, a razão. A Tio Germano Ettore José Della Santa Isabel Francisca da Conceição; Albertina Maria de Santana &&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&& AO LEITOR Compreensivo e audacioso leitor, não é mais da literatura moderna que o próprio autor disseque sua obra num prefácio, mas julgando não haver melhor mentor que pudesse fazê-lo, fi-lo eu. O que disse Cervantes sobre seu fidalgo Quixote quase transponho aqui: não sou pai, antes, nem diria que sou padrasto do herói da narrativa que, fecundo que é, não poderia mesmo ter o legado do meu gene fraco. Como seu biógrafo, me atrevi a dar minhas próprias interpretações aos seus engenhos de natureza próspera, cabendo aí, uma contemplação que poderá ser rotulada como repleta de devaneios e destemperos verbais, essa interpretação cabe à sua parte compreensiva, para a audaciosa, chegará a hora. O que encontrar no romance de ‘rabugens de pessimismo’ credite a mim, coisa que nem admira nem consternará, é fato. Ao dar início neste intento serei claro: não espere o ledor encontrar um embate psicológico entre as mínimas personagens que se verá logo mais; quanto ao herói da narrativa, a franqueza também se fará presente. As especulações acerca da sua conduta serão extensas, mesmo não cabendo ao narrador querer diminuir suas expectativas neste prólogo miserável; me sinto perplexo desde já. E não sem motivo. Ao analisar a breve biografia do nosso herói, que atende pelo insuspeito nome de Denver, muito se perguntará: o que há nele de tão extraordinário para que mereça a dor da pena? Não há exagero no relato? Por que consagrar tempo papel e tinta para relatar um algo que possivelmente todos já se cansaram de ver? Será que, na verdade, sua vida foi torta e curva e carecendo de uma base para sustentá-la, como este ponto de interrogação? Talvez o próprio leitor, fazendo uso do seu polido discernimento, descubra isso no decorrer da escrita. Adianto ainda para que não se enfastie ao perceber a demora da aparição do nosso herói: é com efeito. Antes vem um ensaio, que é ferramenta para amaciar o terreno e isso nasceu de um segredo íntimo que agora o torno público partilhando-o com o amigo: há medo com o tema. Não é uma cópia do velho. Os que disserem que ele se valeu do ilegal para conseguir seus objetivos, não se enganará; o coração do homem é naturalmente inclinado para acreditar no contrário do bem. Os que disserem que não, que ele é demasiado honrado para aceitar negociatas terá sua reflexão atormentada pelo mar de evidência tanto negativa quanto positiva. Aliás, em vez de engajar-me nessas explicações destituídas de objetivos, e um tanto confusas, talvez seja melhor, ainda que breve, falar do título: a fama é boa para quem se entende com ela, para quem não, ela é torpe. Quando se chega a ela não há volta que não uma. Daí o motivo que me fez coser no título a possibilidade de lê-lo de trás para frente com o mesmo sentido; reponha a capa aos olhos e confira. Agora que está conferido vem a explicação: é apenas onde se pode chegar a metáfora! Estou ansioso para ver estas questões resolvidas. Pouca vez estive assim. Sem dúvidas pode-se fechar o livro nas primeiras páginas e amargar o desperdício do investimento. Ao superar os primeiros capítulos, o leitor, perspicaz que é, saberá se valerá o tempo avançando nos próximos, como tenho esperanças de que existem leitores que são delicados e cuidadosos e por isso mesmo não se deixam vencer, eles serão sim avaliados; é onde entra a sua parte audaciosa, leitor sagaz. Aliás, a maior maldição a que um escritor pode sofrer é esta: ter de ser lido. Findo aqui este inútil e descompassado preâmbulo. Convenho acreditar que ele possa vir a ser um trunfo, mas é arriscado. De modo que já está escrito deixemo-lo e, por fim, comecemos. O Autor. ===================================================================== ====== Página Primeira _____________________ _____________________________ Capítulo ZERO Meu nome não existe; na verdade é um nome que importa nada e não é impossível que até o fim da narrativa você prossiga a desconhecê-lo. Herman Melville iniciou seu célebre Moby Dick assim: “Trate-me por Ismael”; adoto um método diferente do dele: deixando meu nome na sombra manifesto uma das únicas virtudes do meu comportamento erradio, que é a reserva. Já não sou dono do maior patrimônio que uma pessoa pode ter, que é a juventude, que a tudo cura. Ando com os sentidos quase dormentes. Queria eu que eles estivessem lestos, mas é apenas um meio inoportuno de eu querer explicar os motivos que me moveram a narrar esta história, de como eu a vivi, das personagens que preferi ocultar, das que eu dei mais importância em detrimento a outras... Vá lá: não há ressentimentos do que eu fui e do que agora sou, do que fiz e do que deixei de fazer em prol das minhas convicções, etc., sou dessas pessoas que depositam fé no impossível; prefiro o porque junto, que é o da explicação, ao por que separado, que é o intimidatório; o da pergunta. Item, capto em mim a técnica sutil do óbvio e percebo que olhos também servem para chorar e bocas nem sempre para sorrir e assim ando por aí, a descobrir o descoberto. A tarefa não será das mais fáceis, mas existem seres que se incumbem de realizar tarefas ainda mais inglórias do que esta, como Hércules que realizou com sucesso seus doze terríveis trabalhos, por outro lado medito: esta minha batalha será imensamente árdua, intensa, tão difícil quanto querer emocionar a Deus que não se emociona nunca, porque já conhece e é íntimo de todas as emoções. Era um tempo difícil. Minha dieta, por exemplo, era feita à base de biscoitos. E tinha de comprar os piores, que eram para durar mais, o estômago aflito. Foi numa noite, uma noite como tantas outras ou como nenhuma, pois não existem noites nem tampouco dias iguais, em suma, uma noite inessencial, uma noite de um inverno qualquer, pobre, aflita e covarde, vamos a ela. Capítulo I A CENA DO MEDO (A DAMA AMADA) Acordei pouco antes das dez da manhã. Ao fim da noite anterior, como em todos os outros últimos, me entreti assistindo ao telejornal cuja encantadora apresentadora tinha, dependendo do poder destrutivo da noticia-destaque, um sorriso que ainda irei fabricar a palavra para se adequar a ele. Não sei se me distraía com ela ou se com a notícia, fosse a notícia ou o sorriso que fosse. Era uma beleza olímpica. Arquivei na memória detalhes que a tela perpassava deliberada e escassamente, notei que, na direita, ela usava anéis de pedras minúsculas e discretas no mínimo e no indicador e, entre os outros, enclausurava uma caneta de corpo cilíndrico e negro; não era a mesma em todas as noites. Seu pescoço de deusa abrigava duas pintinhas perpendiculares que, de quando em vez, eram ocultadas pelos modelitos de gola alta, da mesma forma com que lua e estrela são encobertas por nuvem e eclipse, os olhos raros. Era afinal uma maneira algo confusa, ingênua até, de eu encontrar alguma satisfação naqueles diálogos estéreis; à razão da verdade, meu espírito tem andado por esses dias tão frágil quanto um segundo. Curto como o fim de um instante. Como é próprio dos gatos e de outros bichos, espreguicei-me covardemente na minha aconchegante e sóbria cama; nela estiquei os músculos e as idéias, pensando exatamente no que iria fazer naquele dia que, pela generosa fresta da janela sem gelosia, percebi nublado. Banho, dentes escovados, cabelos penteados com um pente que me acompanhava de há muito, roupa passada sem o vapor e a fragrância típica da delicadeza da mão feminina, saí de casa contando que iria alimentar o estômago e as esperanças, antes, porém, à porta, me concentrei por uns poucos instantes, deslumbrando o tempo, averiguando o dia... Adaptei um leve sorriso ao semblante pesado, um sorriso assim de concreto. Cumprimentei o vira-lata do vizinho com um assobio abafado, ele parecia desconfortável na sua posição de dormir; era como se as suas quatro patas fossem um estorvo para sua dormida, à minha passagem, ele lançou-me um olhar pálido, quase de súplica, como se quisesse dizer-me num gesto não-verbal: “me leva contigo”, o olhar vulgar. Percebi que seu único predador era o tempo que nos consome a todos No entanto, um balanço de quem lançara um olhar mais triste para o outro teria uma difícil resolução, nos igualamos na piedade de um sobre o outro e fomos os dois, cada qual ao seu modo e meio, dar curso ao dia. CAPÍTULO II DE COMO ERA UM LUGAR O lugar era desapercebido de várias coisas elementares, outras, porém, passavam despercebidas da vista e do tempo, descendo pela rua de barro ou saibro (para soar mais elegante) passei a observar todas as coisas que me cercavam, o olho de cirurgião. Primeiro o esgoto. Era a céu aberto e as construções, rudimentares. Como é comum nos confins das periferias de uma grande cidade da América Latina. Crianças eram muitas. De quatro, de seis, de oito, de doze, de treze anos, algumas delas possivelmente tinham como destino a escola, outras, pelos trajes que usavam, decerto zanzavam perigosamente sem rumo pelo mundo afora, as pernas comandando a cabeça. As casas eram mal feitas, para não ter nenhum débito com a verdade posso assegurar que elas eram horríveis, foram com certeza construídas sob a supervisão do esmo. Supervisão do esmo? Não, esta comparação é como as casas; mal feita. Acompanhado de um livro, comecei a reparar também nos transeuntes, mesmo nos que estavam inertes. Entre estes, um senhor de muitos dias de quem eu ganhava o primeiro bons-dias de todos os dias, afeiçoei-me ao seu maquinal ritual e sua fisionomia inesquecível: A cabeça dura estava enfiada dentro de um chapéu roto com as abas retorcidas e gastas pela a ação do uso, os gestos tardios. Entre uns olhos miúdos e desbotados e a boca, orlada por um valente bigode, tinha algo muito parecido com um nariz. O velhinho de todas as manhãs mantinha seu rito sentado num meio-fio, usado como assento. Pitava sossegadamente seu cachimbo cuja fumaça era imediatamente tragada pelo ar. Frio não estava, mas ele tinha enrolado no pescoço um grosso e sebento cachecol azul, tinha dessa vez a companhia de mais dois de idade próxima ou acima da dele que revolviam a conversa matinal sobre os temas de sempre; escândalos políticos da moda. É assim neste país, semelhante aos ternos que jazem por longos anos em nossos armários, os mesmos escândalos e os mesmos ladrões saem e entram na moda por diversas vezes. São cíclicos. Um dia pensei em falar sobre política com ele, mas de antemão já sabia sua resposta sobre a honestidade dos homens do poder e se, por acaso, existia algum honesto: - Nem um único? - Nenhum único. Verdade é que não sei se há de fato honra em ver - ou ser - um homem sendo deteriorado pelo tempo; o que antes era um homem ereto e agudo, o tempo transformou numa carcaça de carne curva e enrugada, como a casca de uma velha árvore; sem elasticidade. Há poucas vantagens em ser adulto, uma delas é não precisar comer comida ruim até o fim, e acho que só. Não fugimos jamais dessa ordem fatal neste mundo divino e supradivino, como já escreveu alguém. Será este o estatuto universal? Uma oficina que consertava motos sobre a calçada, uma mercearia, logo depois uma padaria e uma borracharia; todos estes estabelecimentos estavam vazios. Mais um pouco à frente um caminhão preto dos anos cinqüenta com o logotipo de um armazém estampado na porta, era parte de uma cena interessante para não dizer criminal; estacionado às margens de um córrego tendo o auxílio de um potente compressor a diesel, desassoreava o leito do córrego causando danos e um desequilíbrio que logo seria compensado adiante: a areia alva iria, talvez, ajudar a equilibrar uma edificação qualquer ou quem sabe um muro. Até chegar à via principal levei, se tanto, uns oito minutos, tempo necessário para saber que existiam aquelas coisas ali. Até chegar ao ponto de ônibus contei as viaturas de embarque que passaram por mim. Entre vans de lotação e os ônibus propriamente ditos foram exatamente cinco, e ao perceber isso a minha mente coou essa conjunção: “Quando eu chegar ao ponto demorará no mínimo vinte minutos para passar uma condução”. Lei de Murphy. Manteiga no chão. Fiquei por mais de vinte minutos em pé, já que o banco de concreto, infecto que estava, não permitia seu uso. De lá pude analisar quase que morfologicamente a paisagem que se desenrolava na confusa e cinzelada expansão, penso mesmo que o sol se comovia porque pingava sua luz entre uns cantos, acho que eram gotas de lágrima em luz ou vice-versa. No aspecto urbanístico a desolação também era vigorosa, até potente, o outono nunca passou por ali e a primavera por certo jamais floriu; eram facilmente ignorados porque não havia árvores para que elas pudessem se manifestar, nos lugares mais humildes, onde os recursos de qualquer sorte teimam em não chegar o costume de se plantar árvores simplesmente inexiste, o que enfeia a paisagem até de um oásis. Em frente ao ponto de ônibus havia uma olaria onde o sol atuava densamente na cabeça dos operários que não tinham sequer a proteção de um capacete, a vida exposta. Nove homens trabalhavam na ensolarada e desprotegida olaria, nove homens não, oito. Um dos trabalhadores era uma mulher que, talvez por ser mulher, fazia o menos penoso dos serviços braçais, apenas aguava os tijolos com uma mangueira salpicada de cimento, para quê eu não sei, não entendo de tijolos e tampouco de olaria, o que dá no mesmo. Ao ver a olaria tão próxima daquelas casas, imaginei: “Por que então que os moradores não terminam logo as casas?”, pensava: “Puxa vida, daqui de onde estou, vejo parabólicas, antenas para televisão via satélite alguns carros na garagem e até outros sinais de poder de aquisição e não obstante as pessoas permitem que as suas casas fiquem assim se deteriorando”. A única coisa que não requer manutenção e ainda assim continua do mesmo jeito eternamente é o Universo. Quanto não iria faturar o dono da olaria caso os moradores decidissem de uma única vez terminar as lajes que estão faltando e os muros pela metade, tudo pela metade! Mas isso possivelmente aumentaria o desequilíbrio na Distribuição de Renda. E os muros? Que muros! Não existia muro na olaria o que eu considerava um fato gravíssimo, pois o lugar era muito perigoso, mas, os ladrões não roubam no que eles costumam chamar de “suas áreas” e os de fora talvez não agüentassem levar tijolos embora, porque pesados. Mas de qualquer forma desconfiei, calculei que pelo menos uns seis cachorros garantiam a permanência dos tijolos durante a noite. E tudo isso porque nosso país é apenas um país grande, estando longe de ser um grande país. Enfim chegou a condução. Torci para que chegasse primeiro um ônibus, era mais apropriado para mim por manter uma distância um tanto maior entre os passageiros que uma lotação, pois eu, na figura taciturna de um misantropo, me sentia além de mais seguro, sobretudo um pouco mais distante das pessoas. A torcida não deu o resultado esperado e o que chegou primeiro foi a lotação. Era uma dessas vans importadas, das que fizeram a alegria de grandes bancos e montadoras asiáticas. Lugar para sentar não tinha. Estava lotada. O jovem cobrador usava um boné com o distintivo de um time de basquete americano, cujo nome eu não me recordo, falava de uma aventura que tivera no dia anterior; nos fundos, uma senhora maldizia e generalizava a condição dos que usam este tipo de transporte: “Quem anda nisto aqui é pobre! Porque os ricos andam de carro próprio e os pobres que têm carros os deixam na garagem porque não tem dinheiro para colocar gasolina, a situação está difícil”. Todos sabem queixar-se, é uma das coisas mais fáceis de fazer na vida, queixar-se. Entre outras infâmias, a senhora prosseguia nas suas diatribes contra o sistema, estava muito possivelmente amargurada com algum problema que trouxera de casa e o desabafo certamente lhe fazia bem: “Estou cheia de problemas pra resolver e ainda tenho que enfrentar isso!”, prosseguiu ela dizendo que tinha dois mil e quinhentos problemas para resolver, era um fórum concentrado, e ambulante. Desci uns seis ou sete pontos depois. Perguntei ao moço cobrador do preço da passagem e ele falou apressadamente. Tirei do bolso da calça jeans umas moedas que foram mais do que suficientes para saldar o preço da passagem, tirou do seu bolso, ou de outro lugar qualquer de modo que a ação foi muito rápida, um porta-moedas preto, me deu o troco e fechou a porta de correr sem ao menos dizer obrigado, algumas pessoas não costumam dizer ‘obrigado’, tampouco ‘por favor’. CAPÍTULO III A TOLICE Duas conduções depois daquela, cheguei ao meu destino. No centro da cidade as coisas são um pouco diferentes, a arquitetura os asfaltos, o comércio. O comércio talvez não padeça da chaga que vitima os da periferia. Tirei esta conclusão após vislumbrar algumas filas se formando em alguns estabelecimentos que vendiam supérfluos. Até a pressa é diferente. A pressa de quem anda no centro da cidade é um gênero de pressa totalmente diferente de outras pressas; é uma pressa preocupada, atenta a quaisquer (palavra fantástica, faz plural no meio!) surpresas que possam vir a acontecer e as surpresas também não são surpresas no centro da cidade. Alguém terá de inventar um artifício novo para chamar a atenção e desequilibrar a rotina no centro da cidade. Um assalto diferente um malabarismo diferente ou um tipo de prestidigitação que ponha termo a todas as outras enfim, algo que cause espanto. Subi até o décimo oitavo andar de um edifício que não cabe dizer o nome porque difícil, (por algum motivo insondável, os empreendedores se apaixonaram por batizar com nomes estranhíssimos os condomínios da cidade; são nomes de países da Europa, talvez porque os da África e alguns da América não confiram o mesmo status, de pintores renascentistas et cetera de outros que oferecem igual glamour). Os engenheiros, aliás, teriam de criar soluções de arquitetura para que os apartamentos dos edifícios começassem a partir do décimo andar, porque nos primeiros andares ninguém gosta de morar de comprar nem de alugar, só de vender. Fui recebido por uma gentil secretária que dentro de seu tailleur quase branco, com um discreto brasão bordado na altura do bolso do peito, abusava do direito de ser bonita, simpática, educada e inteligente, uma combinação rara nas mulheres. Seus longos cabelos de fios furta-cores deslizavam uns sobre os outros, os olhos translúcidos. Tais olhos tinham um brilho impossivelmente úmido, a cor de avelã. Sua pele tinha certamente a textura macia da de um pêssego, fios dourados forravam as suas coxas e pernas de modo que reluziam sedutoramente com o auxílio da serena e clara luz que alimentava a sala e seu perfil, era uma mulher, por essas e outras razões, edível. Após trocarmos alguns silêncios com notas eloqüentes, desses que trocamos no elevador, pedi para ser anunciado e ouvi o que ouve todo aquele que quer falar com alguém importante: “Ele está em reunião, você quer aguardar?”. Aguardei. Como faz todo aquele que precisa falar com alguém importante. Gostei dela por um fator muito simples: ela não me bombardeou com perguntas irritantes que já se tornaram clássicas das secretárias: Quem quer falar com ele? Fulano. Fulano de onde? As secretárias, seres criados e treinados para bem executar arte da dissimulação, invadem a privacidade das pessoas sem a menor cerimônia tal qual fazem os detetives profissionais. No auge da sua simpatia, ela me ofereceu chá: “Só bebo café, e bem forte. Chá, só em Casa de Chá e preferencialmente com dança do ventre.” respondi metendo um sorriso maroto na boca, tentando devolver à altura a maneira delicada com que ela me tratou, mas perdi. Ela mexeu o pescoço de um modo todo delicado e sorriu suavemente, preferi tardiamente não ter feito aquele comentário imbecil, que depois julguei infeliz. “Por favor, dona Maria Eugênia, prepare um café bem forte e traga até a recepção, tudo bem?”. Com um possível “Claro!” ouvido do outro lado da linha, ela abriu um sorriso que vi não ser burocrático e disse: “obrigada.” Ela sublinhou o “café bem forte” ao telefone olhando para mim justamente nesta frase. É próprio da maioria dos homens ver num gesto feminino de simpatia uma paquera ou um assédio até, mas eu não pensava assim e fui levado, por essa asneira, a crer que aquela moça deslumbrante tivesse se interessado por mim e pela minha obesidade, refeito da tolice, aguardei ansiosamente o ‘café bem forte’, as palmas das mãos indecorosamente suadas. Só de pensar qual seria o nome dela eu me deliciava, tenho uma mania incurável por nomes de mulheres, arriscava prognósticos quase certeiros na tentativa de saber de antemão o dela, comecei a lista associando sua beleza a nomes de garotas belíssimas que eu conheci: Camila, Patrícia, Ágatha, Priscila, Aléssia, Ana Paula, Thaís, Kelly, Flávia, Rafaela, Michele, Paloma, Daniele, Carolina, Larissa... Criei um tanto de coragem e perguntei-lhe: a surpresa foi maior que a coragem, bem maior: “Puxa! Tem certeza?”, exclamei eu em dúvida; uma dúvida sarcástica, ela desabotoou um meio-sorriso sem graça e foi cuidar dos seus afazeres. CAPÍTULO IV A ESPERA Com a xícara recheada de um café tão negro como a língua de um papagaio na mão esquerda e me refazendo da surpresa nova (o nome dela era uma espécie de prestidigitação ou assalto novo), caminhei até a extensa e imponente janela de vidro temperado e fiquei admirado com o passo rápido das pessoas lá embaixo andando às rápidas, é curioso: parece que numa sala com arcondicionado e cheiro gostoso de poltrona de couro por toda parte (o couro tem um cheiro muito peculiar) as coisas passam lentas do lado de fora. Saí de casa eram mais ou menos umas onze horas. Cheguei ao escritório perto das quatorze. Apenas fui recebido por quem eu esperava já depois do expediente, muito depois, as horas passando em regime de compasso e o relógio da parede no seu tic-tac indiferente. O relógio é um sujeito desprovido de sentimentos, pode estar você feliz, pode estar triste, ele prossegue o seu andar infrene, alheio a tudo e assim o fará para todo o sempre ou até o sol se apagar ou a ira de Deus cair sobre nós, como preferem os puristas. Sorte minha é que eu estava levando comigo o livro que já mencionei anteriormente. Costumo sempre andar com alguma coisa para ler. Mas eu patinava na leitura e estava ficando chato eu sozinho naquela sala com aquele livro que eu não estava entendendo nada, é difícil entender Dostoievski, vez por outra eu resmungava alguma coisa, aflorando meu jeito rabugento de ser. No entanto, há aprendizado até no sofrimento. A introdução do livro era repleta de informações, algumas conflitantes. Falava-se muito da vida dele nela, que era um jogador compulsivo (o que o levou a escrever, (em trinta dias!) O Jogador) que teve a desdita de quase ser morto numa simulação de execução, que esta execução fora comutada, que fora preso e passou oito anos fazendo trabalhos forçados na frígida Sibéria, mas o que mais chamou minha atenção, confesso, foi o fato de ele ter criado uma revista chamada “EPOKHA” que circulou pela Rússia por apenas um ano no século dezenove. Nada se cria. Tudo se copia. Até isto. Sem a companhia da belíssima Ambrosinilda (sim, este era o nome dela, possivelmente fruto de uma promessa) esperei com o livro e a paciência para finalmente ser atendido depois das vinte e uma horas, o “café bem forte”, que foi meu desjejum, corroeu as paredes do meu frágil estômago; ácido clorídrico e cafeína definitivamente não fazem um bom dueto. Isso me deixou fatigado o que talvez tenha contribuído para eu não deglutir o livro a goles suaves, porque as palavras entravam a solavancos. Não consigo ler com o incômodo da fome, talvez ninguém consiga, espero que este fenômeno aconteça apenas comigo. O Dr. Mivla Rutra me pediu mil perdões desnecessários por fazer eu ter de esperar por ele tanto tempo, “Tempo é uma coisa que eu tenho de sobra”, falei ao Dr. Rutra escondendo minha visível irritação. “Esse monitor de acesso rápido à Internet poderia ficar um pouco mais distante da mesa da secretária, quem quer ver ou escrever um e-mail, se constrange com a proximidade... E a cadeira é muito baixa, dói o pescoço, a não ser que este seja...” Observei com astúcia, porém, quando vi que me empolguei, suprimi a fala imediatamente. O Dr. Rutra sorriu inabaladamente e prometeu rever a ergonomia, apenas a ergonomia, eu, imperito, deixei de atentar para uma regra básica em que muitas vezes a isenção é a melhor opinião. CAPÍTULO V O MEL QUE ADOÇA A BOCA (DA HUMANIDADE) Fui convidado a entrar em sua sala e lá deleitei meus olhos: esculturas de bronze, uma vasta biblioteca com a primeira edição de “Guerra e Paz” (uma raridade). Manuais de jatinhos executivos de alto luxo também estavam sobre a mesa, como um hangar gráfico: o de um Citation X o de um Global Express e ainda o de um Gulf Stream V. Não sei se essas aeronaves eram todas dele, mas também não sei o que faziam sobre uma mesa de escritório tantos manuais de aviões tão caros e preciosos, os ricos se comprazem com o que é precioso, ainda mais se for em grande quantidade. Canetas com aquela estrela branca na tampa (que sugere um monte branco) despontavam do bolso dele e, se não bastasse, umas outras estabeleciam uma constelação num elegante porta-canetas, que não era preto. Era último andar, cobertura. O lado de fora reservava uma outra surpresa; uma enorme piscina flamejava derredorada por um belo jardim em estilo art nouveau, pensei comigo: “Ele nunca mergulhou neste oásis”. Talvez propositadamente ele tenha me deixado por alguns segundos ou mesmo alguns minutos contemplando aquela coisa toda. As consumi com os olhos. A única coisa grande que eu fitei com uns olhos rutilantes foi a piscina, o resto foi o detalhe; as canetas os manuais, o livro raro. As pessoas de um modo geral gostam mesmo do que é enorme nas formas, vêem uma escultura enorme e aplaudem com bramidos em uníssono, uma edificação enorme idem, as pequenas por sua vez passam inobservadas; a sequóia só é bem contemplada quando cresce e se torna um monstro colossal, poucos pensam: “Imaginem isso, era apenas uma sementinha...”. CAPÍTULO VI O INCIDENTE FATAL Conheci o doutor Rutra (não sei se ele era ou não doutor, o domínio sobre o dinheiro costuma dar a qualquer um o vaidoso título de “doutor”) numa dessas ocasiões prosaicas que costumam acontecer em seriados de televisão ou algo que o valha. Dirigindo meu enfermo, velho e carcomido carro por uma estrada debilmente iluminada numa noite de muita chuva, me deparei com uma inesperada situação: um carro com os faróis ainda acesos tinha se desgovernado e saído da estrada parando do outro lado da pista na contramão. As jantes dianteiras amassaram-se o que conseqüentemente esvaziou os respectivos pneus. Falava toda a sorte de impropérios que um homem irritado normalmente fala, uns que eu até nem conhecia. Ele estava encharcado de chuva e cólera. Nervosíssimo. Parei o enfermo no acostamento de forma brusca e imprudente o que custou o agravamento de sua doença com um pneu furado. Um pouco mais dono de si, o doutor Rutra prontamente agradeceu por eu ter parado e lhe oferecido auxílio, as pessoas gostam de ser auxiliadas. Perguntei-lhe o que havia acontecido, mas logo me apercebi que aquilo não era o mais importante para o momento, importante era arranjar um jeito de se mandar dali porque a chuva deixou de ser chuva e se transformou num temporal perigoso, a melhor saída, era pôr o estepe no meu carro e sairmos o mais depressa possível e encontrar um lugar mais seguro. Como as coisas costumam ser intricadas para mim, foi uma verdadeira tortura trocar o pneu do carro; estacionado no acostamento onde o asfalto se confundia com a lama o macaco não ficou firme e caiu por várias vezes, o que transferiu a ira dele para mim. Conseguimos achar no meio do mato uma tábua que veio a ser a nossa de salvação, fazendo ela de alicerce, conseguimos enfim trocar o pneu e nos mandarmos dali. Estávamos próximo do Aeroporto Internacional. Paramos num posto de gasolina onde havia uma aconchegante e seca loja de conveniência muito conveniente para nós. Conversamos e nos apresentamos reciprocamente e juntos demos algumas gargalhadas do que nos havia acontecido. “Pronto, agora eu ligo para o seguro... Eles mandam um reboque e depois... Bem, depois que se dane, o que eu quero agora é ir embora e chegar em casa o mais rápido possível”. O Dr. Rutra parecia uma pessoa muito preocupada, até pensei que tivesse sido a primeira impressão, pois o encontrei numa situação em que as pessoas não costumam estar lá muito felizes, mas esta primeira impressão logo foi dissipada; ele falava de modo emblemático, entortando as palavras. As frases que saiam da sua boca muito raramente eram completadas, “Vou pegar um táxi...”. Fiz pouco caso da atitude inquieta com que ele falava para mim: eu também estava preocupado em ir cumprir o meu compromisso que era inadiável. O Dr. Rutra me olhou densamente e neste olhar possivelmente achou a soma do meu valor; abriu a carteira repleta de cartões de crédito. Cartões exclusivos, cartões platinados que eu nem sequer sabia que existiam. Sacou o talão de cheques (igualmente exclusivo) e me inquiriu sobre quanto era o “serviço”. Indignei-me. Um favor não pode ser taxado que não por outro favor. E de preferência em ocasião distante. “Agradeço-o, mas mantenha sob seu poder o talão, não quero recompensa. Eu não vendo favores”. Dei-lhe as costas e entrei no meu carro que estava com os bancos encharcados, ele fitou-me bravio: “Dinheiro se paga, mas favor é coisa que não se taxa, por isso não costumo pedi-lo a ninguém.” Grunhiu ele secando o bigode com a palma da mão. Acionei a partida e eis que a fubreca velha, agora mais enferma do que nunca, talvez em coma, me deixara na mão, ou melhor, no pé. Abri o capô e fui direto ao cerne do problema, destaquei as presilhas da tampa do distribuidor e sequei o cachimbo com a flanela que se escondia em algum lugar dentro do carro. Enquanto eu fazia o conserto mecânico o Dr. Rutra continuava a fitar-me com olhos fugazes, não sei se se o carro pegasse na primeira partida ele iria ou não falar comigo. “Conhece de mecânica?” Perguntou ele olhando desconfiado o motor. “Sei o básico. Virabrequim, camisas, cilindro, comando de válvulas, giclê, essas coisas assim eu não entendo muito bem não, mas me viro quando a coisa é simples”. Tentei ser o mais natural possível, mas não consegui. “Está irritado comigo, rapaz?”. Meus olhos crepitantes deviam ter me denunciado, dissimulei: “De modo algum, não há porque estar...” Fechei o capô e dei na partida; para minha admiração o carro pegou na primeira. “Quer ir comigo? Eu já perdi meu compromisso mesmo, termino de fazer o “serviço”. Ele sorriu, deu meia-volta por trás do carro e sentou-se de novo no banco encharcado, ele já se encontrava vazio. Até a casa dele foi mais uma hora rodando os pneus sobre os asfalto. Falamos sobre várias coisas do seu interesse e um pouco do meu, literatura, artes, política (ele tinha parentes na política) música e carros, os gostos quase sempre divergiam, mas mantivemos um certo nível de convergência em alguns pontos. Carro foi o tema que eu mais apreciei, tenho uma velada paixão por carros e ele me disse que a sua garagem era repleta deles; blindados, de coleção, picapes, et cetera e tal. Comentei com ele que os carros deviam ser como o cavalo de Átila, que esterilizava o chão onde batia com a pata, mas que faziam justamente o contrário, e ele se deliciou ao saber que um cavalo tinha uma pata tão poderosa; para me testar, perguntou se eu sabia o que disse Michelangelo quando terminou de esculpir a estátua de Davi: olhei-o de modo interrogativo e ele, ainda mais deliciado esnobou o italiano: “Parla! Parla!”. À porta da sua casa eu me despedi. Ele me perguntou como poderia retribuir a gentileza e eu lhe falei que fizesse com outros o que eu fiz para ele. “Esses ‘outros’ pode ser você?”. Sorri. Ele tirou do bolso uns papéis cheios de rabiscos. Escolheu o que estava em melhor condição e me pediu que anotasse um número de telefone, atendi seu pedido e anotei. “Me liga na segunda”, disse-me laconicamente. Agradeci com um forte aperto de mão e confirmei minha intenção de ligar-lhe meneando a cabeça positivamente. CAPÍTULO VII O ENSINO Depois daquela espera em que eu quase morri de fome ele me convidou para ir comer alguma coisa; não poderia aceitar, disse eu para a própria mente, não estava devidamente trajado para entrar nesses templos da gastronomia que a cidade oferecia. Depois de passar para ele o motivo da minha recusa ele me disse paulatinamente, como que batendo nas sílabas: “Quem disse que iremos a algum lugar assim? Eu gosto de ser adulado, badalado, quem não gosta? Você não gosta? Nesses lugares aí que você mencionou não acontece nada disso; os garçons são em sua maioria petulantes, lêem com perícia erudita os nomes dos pratos franceses, pensando se tornarem com essa arrogância mais importantes que o cliente, e eu não tenho mais paciência para aturar grosserias deste tipo, mal suporto a minha! Deixa eu te falar uma coisa rapaz, não liga para essas coisas não, não se impressione não, nem quero que você se deslumbre com nada do que está vendo por aqui, entendeu? Minha vida é muito corrida, vê estas sacolas?”, “Sim?”, “Sabe quanto que eu paguei nesses ternos? “Nem imagino”, “Muito menos do que você pensa, rapaz! E tudo em quatro vezes! Não sou de ficar desperdiçando dinheiro não, você já leu Maquiavel? “Não”, “Pois deveria ler! Com ele você iria descobrir como um estadista tem que se portar nas mais diversas situações, como um diplomata usa o seu prestígio para conseguir suas benesses, como se faz para mostrar que se distribui o que tem sem ao menos subtrair uma única moeda do cofre, o segredo está não em como ganhar o dinheiro e sim em como gastá-lo, ele foi um pragmático! O mais pragmático realista de todos os tempos! Seja você um homem completo! Precisa urgentemente saber o que quer da vida, pois tenho certeza de que não sabe, não acertei, não acertei?”. Aquiesci, mas não sem antes lhe fazer umas observações que foram rapidamente suprimidas pela sua fala sem fim sempre citando parte dos escritos do pensador e político italiano Nicolau Maquiavel: “Ele defendia que para chegar e manter o poder, os governantes não poderiam ser constrangidos por moralidade que fosse... Uns fins nobres podem justificar meios cruéis!”. Não entendi o que o motivava a desferir aquelas reflexões na minha cara, pois julguei não ser apropriado, mas fiquei quieto, já havia falado demais. O Dr. Rutra tinha mais ou menos uns sessenta e dois sessenta e três anos; mas não os aparentava. Os cabelos dele eram todos brancos, cãs como a neve, era verdade, mas era um tipo de branco que não conferia avanço na idade, e sim um branco que conferia respeito, maturidade e elegância. Logo abaixo do nariz aquilino, abrigava um hirto e sério bigode prateado, tinha um corpo atlético e os músculos de sua face eram rijos; a barba era rala e crescia irregular, como que pontilhada em alguns pontos da suas faces. Seus traços físicos eram de europeu, alto, peso bem distribuído, sem barriga, tinha também alguns detalhes que eu achava engraçado, quando ele falava, todo o músculo na altura do sincipúcio se movia e ele mexia o maxilar com muita folga, coisa que ele depois me disse que tinha sido resultado de um desastre aéreo sem maiores conseqüências. Era um homem cheio de idiossincrasias, criava as mais avarentas interpretações para as coisas mais simples que eu nem acreditava que poderia haver gente no mundo capaz de pensar nesses modos, mas me parecia um cara leal, porém áspero. Disse para eu ter cuidado com as mulheres o que logo me causou um frio na espinha..., “Será que a secretária me dedurou, aquela alcagüete de uma figa!”, sussurrei comigo mesmo. Mas depois veio o alívio, ele passou a me contar a história (ele tinha muitas histórias ou estórias interessantes para contar) de um amigo seu americano que comandava um dos setores do Departamento de Repressão de Drogas do Estados Unidos. Contou-me que o sujeito foi destacado para uma missão na Colômbia. Pelo que disse o Dr. Rutra, ele era um homem muito digno, honesto, impoluto, de conduta irrepreensível, a probidade em pessoa. Ao chegar ao hotel, um cinco estrelas classe A, ele fez questão de frisar, foi recepcionado por um espécime feminino que adjetivos para ilustrar as suas qualidades curvilíneas tornam-se meros enfeites em árvores de natal, uma mulher que deixaria um frade em sérias possibilidades de perder sua inalienável condição de votante. Para resumir o que me contou o Dr. Rutra, não demorou muito para que ela o convencesse a provar do seu sexo e posteriormente a dividir com ele um pouco do seu vício; corrompeu-o no corpo na alma e na moral, como algumas mulheres notáveis do passado também fizeram com homens igualmente notáveis; o poder das mulheres sobre os homens é uma coisa tão misteriosa quanto o lugar de onde se originam os pensamentos. O poder letal que levou Eva a convencer Adão a desfrutar com ela do Pecado Original; o poder ignóbil que levou a mulher de Jó a sugerir que este ‘amaldiçoasse a Deus e morresse’, por causa de suas repentinas perdas e moléstias; o poder silencioso que outra Eva, esta a Braun, exercia sobre o ‘Der Fürver’ Adolf Hitler; o poder destrutivo que levou os altos comandos políticos europeus a quase se digladiarem entre si por uma certa Margaretha Geertruida Zelle, mais conhecida pela alcunha de Mata Hari, ou o poder misterioso e talvez até fantasioso de uma Lady Godiva a fazer mudar a mente malévola do seu temível marido, o conde Leofric, e fazer-lhe cumprir uma promessa da qual por certo não se agradou, e o poder das de Atenas, servil, obediente... CAPÍTULO VIII O EQUÍVOCO Muita conversa depois sobre as inconstâncias da minha personalidade controversa e os deslizes da minha impossibilidade, eis que veio nenhum jantar nem nos templos gastronômicos nem onde a ralé mata a fome, fomos num outro cômodo de seu charmoso escritório onde havia uma bem equipada cozinha. Abrindo a geladeira se serviu de um lanche natural e de uma garrafa de água escocesa Gleanneagles. Muito depois de abocanhar por várias vezes o lanche, ofereceume um outro que tirou de um tupper ware e colocou sobre a pia. “O que você gostaria de fazer, digamos de interessante e com isso ganhar dinheiro?”. Perguntou-me desobedecendo a etiqueta falando de boca cheia. “Fala algum idioma?”. Emendou logo depois sem esperar que eu desse a resposta para sua primeira indagação. “Sim, falo” respondi desdenhosamente. “Qual?”, “Este que você ouve, naturalmente”. Quando acabei a frase ele me olhou repreensível e falou: “Não brinque comigo rapaz!”. Ele sempre me chamava de rapaz. Talvez por algum motivo qualquer, já que meu nome é um tanto complicado. “Me perdoe a piada, mas...”, “Perco o amigo, mas não perco a piada” completou ele com uma metade de riso ameaçador, daqueles que os dentes ficam ocultos. “Estou no último ano de jornalismo, pretendo seguir a carreira de articulista de um grande jornal e ser ombudsman só para sacanear a casa, deve ser muito divertido, mas se esse plano não vingar trabalharei para que me mandem para uma sucursal num desses países exóticos onde as mulheres vivem cobertas da cabeça aos pés; a burqa dá uma estranha sensação porque elas ganham ares fantasmagóricos metidas naqueles panos... tenho fascínio por essas coisas malucas vindas do Oriente, o senhor conhece o Oriente?”. Ele não respondeu, prosseguiu devorando uma outra coisa que só de ver me enjoei com fome. “Agora me fale de coisas sérias...”. “É para eu deixar de batucada e falar em coisas...”. “Costuma sair, ir para algum lugar interessante?” “Sair? Na minha atual situação não posso nem ficar, quanto mais sair...” “Trabalha? Ou se sustenta fazendo perguntas inúteis às pessoas que conhece?”. “Trabalho sim..., lhe falei, comprimindo a súbita vontade de lhe mandar ao diabo, trabalho num laboratório. Faço resenhas sobre os últimos lançamentos farmacêuticos na revista que eles editam, enfim, é um trabalho maçante...”. “Não é a profissão que denigre o homem; é o oposto!” “Aposto que não faria o meu trabalho, aposto!”. “Namora, é casado? Com essa idade tem de estar casado!”. “É, isso é uma grande verdade, imensa!” “Qual! A verdade não tem tamanho moço; verdade é verdade! Não existe partícula de verdade, aprenda, aprenda!” “Sim, sim... mas aquela foi a pergunta mais difícil que o senhor me fez, pois namorar e ser casado é quase uma questão semântica; uns dizem que sim e não namoram nem são casados, outros que dizem que não namoram e não são casados, namoram e são casados. Ainda outros não fazem nem uma coisa nem outra e dizem os dois, é difícil...”. “Começou a estudar muito velho...”. “Aposta você nisso? Que é ser velho?”. “Se eu fosse o senhor me preocuparia mais com a vida!”. “Eu também, se fosse o senhor!”. “Vamos embora”, falou ele correndo, deixando a cozinha tristemente suja que estava um brinco. CAPÍTULO IX O TEMPO DO ONTEM Fiz um tremendo esforço para sair do calor das cobertas; no frio do inverno a cama tem um poder magnético tão extraordinário, mas tão extraordinário que merece uma enorme e profunda reflexão filosófica que não farei agora e talvez não a faça nunca porque eu precisaria de muita sinceridade e sinceridade tem de ser como o cheiro das mulheres: natural. O céu estava cinéreo naquele dia; um cinza-inglês. Devorando apressadamente uns biscoitos ruins que só, cheguei ao laboratório para o labor daquele dia. A cidade era assaz - quero dizer - bastante vasta e tudo nela parecia brutal e desconexo e assim eu nela vivia sem a querer decifrar. A filial brasileira do laboratório Rachié Associados era endereçada às margens de uma rodovia que, de tão movimentada, mais parecia uma avenida. Cumprimentado com um bom dia todos os do meu setor, encaminhei-me até a sala do meu chefe e fiz-lhe algumas perguntas que ele certamente não entendeu o sentido, mas respondeu pronta e gentilmente. Ocupava uma sala com mais quatros pessoas, que expeliam pelas ventas e bocas mais fumaça do que chaminé de padaria com forno à lenha. No quadro de avisos toda a sorte de manifestações: avisos de doação de sangue para um colega que sofria de leucemia e necessitava de alguém que pudesse ser-lhe compatível nos glóbulos, mas, no meu pensamento, me indispus. Outros avisos eram mais amenos, entretanto, não dei muita bola para eles e fui sentando à minha mesa onde li uma sugestão de matéria para a revista que o laboratório publicava. De início não me interessei muito pelo mote da matéria, mas depois aquilo foi amadurecendo dentro de mim até que eu me rendi, e fui buscar subsídios para dar corpo à reportagem. CAPÍTULO X PARA LER AO CONTRÁRIO A universidade estava atrasada fazia mais de um ano e eu precisava desesperadamente saldar este débito com a maior de todas as urgências, tratava minhas dívidas àquele tempo assim: as velhas eu não pagava e as novas iam deixando ficarem velhas, mas esta condição com jeito de máxima de devedores compulsivos e contumazes, não tinha respaldo na livre vontade; existia pela enorme força da dificuldade. Não queria e nem pensava no doutor Rutra como solução, me envolver com usurários era uma coisa tão temida como quem teme um câncer, usurários têm cara de gente malvada. É fácil reconhecer um apenas no primeiro olhar. Muitos, eu acredito, emprestam dinheiro aos miseráveis apenas para depois arrancarem a alma do infeliz devedor não somente com juros desleais; eles têm um talento nato para minar a resistência quase sempre fragilizada da sua presa, daí a receber o montante emprestado de volta e juro sobre juro, é um pulo, o usurário-predador é um gênero humano que tem de ser evitado a qualquer custo nem que custe todo o custo. A minha carga de trabalho era amigavelmente agradável, na maioria das vezes eu fazia serviços externos o que me dava a chance de, no auge e limite da imprudência, assistir uma sessão de matinê nos cinemas dos Shopping Centers. Divertia-me, mas a falta de companhia me limitava a ir poucas vezes por semana ver filmes, invariavelmente americanos, o que talvez me fizesse até bem. Na odiosa condição de inadimplente cheguei à universidade para as provas finais, mas só teria o diploma se conseguisse quitar o meu débito junto à entidade, algo que não seria lá muito fácil. Num gesto altamente intempestivo tranquei a matrícula e dei uma banana para a faculdade com o gesto e tudo o mais. Tive plena certeza das faltas que eu iria sentir: a falta das garotas, dos fins de aula às sextas-feiras, dos botecos. Feri-me na própria carne, mas ao menos ia me livrar definitivamente daquelas conversas idiotas com os colegas do sexo masculino que só sabiam falar de futebol, coisa que eu demonstrava abominar e não entender, e, aliás, fazia questão de dizer que não torcia por time nenhum, nem para o que estava ganhando nem para a Seleção quando em época de Copa do Mundo. Eu falava para eles que gostava era de golfe, tênis, pólo aquático, esportes mais nobres. O esporte bretão, eu dizia, definitivamente não me despertava maiores paixões, talvez isso fosse, (eu prosseguia para os que insistiam em saber o motivo da repulsa) algum trauma de infância e o que eu precisava mesmo era de um neuropsicoterapeuta qualquer para me aliviar desse ódio inútil, se é que existe algum ódio que seja substancialmente útil. Lembro-me que, em garoto, os colegas me chamavam para jogar as peladas de sempre na rua; fomos, sem querer, precursores dos empreendedores citados no capítulo III: o nome do jogo de bola no Passeio Público era chamado pelo indigerível nome de Futstreet. A brincadeira era uma espécie de seletiva para o esperado torneio “Escola versus Escola”. Jogar bola na minha rua era sempre um ato de coragem e rebeldia, a vizinhança não via com bons olhos a transformação da rua em campo de jogo receosa das suas vidraças do silêncio e das arengas que temperavam as disputas; elas nunca eram insossas. Por total falta de sorte, dois vizinhos ranhetas tinham suas casas em lados opostos, o que facilitava a possibilidade de a bola superar facilmente os muros quando quicava ou era mal tratada por pés inábeis; essas bolas voltavam à rua invariavelmente em duas bandas. As convocações promovidas pelos meus ‘amigos’ estavam mascaradas pelos mais sórdidos motivos possíveis; cochichavam entre si desse modo os bandidos: “Vamos levar o Miolo (foi assim que me alcunharam os camaradas tendo em vista o tamanho da minha cabeça e das idéias) porque ele atrapalha os caras no meio do campo...”. Até hoje essa detestável referência me rodeia o pensar. Fiquei terrivelmente magoado com eles, mas havia embasamento legal para eles se referirem assim de mim: Houve um jogo importante para o time da nossa classe e neste fatídico dia faltaram pelo menos uns dois que jogavam muito bem e eis que depois de muitos pedidos sinceros e sentidos (pedidos estes que eu deveria ter indeferido) me convenceram a ir participar do jogo. Depois de muita insistência fui escalado para ir defender o gol, que besteira eles fizeram. Num dos últimos lances da partida um cara, me lembro bem, muito desengonçado, veio correndo pelo meio e chutou forte, mas para fora do gol, para infelicidade do time eu preparei a ‘ponte’ e voei para alcançar a bola perdida; alcancei-a. Quando caí no chão o estrondo de xingamentos foi tão ensurdecedor que eu até me assustei; na minha imprecisa tentativa de defender a bola, esta, redonda como uma uva, esbarrou em alguma parte do meu corpo e ela que tinha como destino certo a linha de fundo entrou amargamente no gol o que custou a desclassificação do meu time e a minha prematura aposentadoria do futebol. Sempre, quando eu jogava, os times eram muito ruins, horríveis mesmo. E minha colaboração contribuía ainda mais para os fracassos que eram até naturais, perdíamos de muito. De dezessete a um, de vinte e três a dois, quando conseguíamos perder de quinze já era considerado um bom resultado, dada as vergonhosas goleadas que estávamos acostumados a sofrer. Depois dessas experiências sofríveis decidi que teria que dar um outro destino à minha vida que não a bola, decidi estudar e deixar esse negócio de bola pra lá. Jogar futebol (bem) é uma coisa muito difícil. Os mais entendidos do que eu no assunto chegam até mesmo a dizer que o futebol é ‘a arte suprema’. Não sei se é. Também não sei um monte de outras coisas, aliás, apenas considero arte aquilo que não consigo fazer com excelência; se pinto? Não. Logo, arte. Se canto? Não. Arte também. E tantos e muitos outros ofícios mais e menos complicados. Mas voltemos à tese. Proporcionalmente, jogar futebol bem é mais raro e difícil do que qualquer outro esporte. A história está aí para provar. No Boxe podemos selecionar uns cinco ou seis excelentes pugilistas; na Fórmula 1 talvez oito grandes pilotos deixaram seus nomes perpetuados, no Tênis poderemos somar uns sete extraordinários; no Basquete outros tantos. Mas no Futebol a coisa é diferente. Quase todo o planeta habitado pratica este esporte, o que teoricamente favoreceria o aparecimento natural de mitos e foras-de-série à larga, mas o que acontece é o oposto; dentre tantos milhões (quiçá bilhões) que chutam e chutaram bola por aí apenas um foi coroado rei e o que está mais próximo dele na fria hierarquia natural dos rankings provavelmente ocupe a vigésima posição... CAPÍTULO XI UMA PERSONALIDADE ASSIMÉTRICA Simetra era uma velha amiga dos tempos em que eu usava barba frondosa e cabeleira desgrenhada para impressionar a mulherada e fumava como um desgraçado para acompanhar a moçada que ingressava nos bailes de debutantes e nas formaturas dos amigos mais espertos. Ela era a mulher com quem eu queria dividir minha existência em a. S. e d. S. Como se faz nos livros de História. Toquei a campainha que tinha um som estridente e assustava se fosse usada como despertador. Simetra estava toda de rosto amassado. Atendeu a porta dentro de sua roupa de dormir e fora de si, sem sequer ver antes quem era no olho mágico, tive essa certeza porque ela veio falando de longe, ouvi sua voz rouca chegando pouco a pouco, longe da porta, quando de repente, esta se abriu ainda no meio de uma frase sua: “... Ontem lhe falei que hoje eu iria...”. Quando se deu conta de que era eu, seus olhos se arregalaram instantaneamente e, num misto de surpresa e embaraço, me abraçou desconfiada. Fiquei esperando ela se arrumar e enquanto isso acendi a tevê. Zapeei os canais para ver se tinha algo de interessante na programação. De posse do controle remoto perguntei o que tinha de fazer para mudar para o sistema a cabo, de modo que o que a TV aberta oferecia era o mesmo de sempre, ela resmungou alguma coisa que eu não entendi porque estava com a boca inundada de espuma de creme dental, mas eu logo desisti; tentei o rádio. O aparelho de som de Simetra era tão cheio de botões fosforescentes e luzes balançando de um lado para o outro que mais parecia o painel de um Boeing de última geração, deveria haver um curso específico para poder operá-lo, receei em apertar algum botão que não fosse apropriado e fui procurar o controle remoto, mas não o achei e desisti de ouvir música também; “Fica à vontade aí!” gritou ela já sem espuma na boca. À vontade eu estava, quem não estava à vontade comigo eram os aparelhos dela. Algum tempo depois ela chegou, toalha em cone no corpo, o cabelo molhado. A toalha moldava em seu corpo uma espécie de mini-saia flanelada e, como eu a olhei por meio de espanto: “Que foi? A saia está muito justa?”, “Está injusta”, ela sorriu dissolvendo o embaraço. Passou a procurar desesperadamente o isqueiro que estimava ter largado perto do sofá, “Usa o meu”, falei-lhe com a chama azul do isqueiro apontando para os seus dedos que seguravam o cigarro, “Ué, mas você não havia parado de fumar?! Não acredito que você voltou a fumar!”, “Calma, minha doce e amável Simetra, faço uso do isqueiro apenas para emergências como esta.” “Que susto!”, me devolveu ela tragando do cilindro concentrado de milhares de males espremendo os olhos enquanto a fumaça roçava no seu rosto puído... É engraçado; as pessoas fazem umas coisas esquisitas umas com as outras, ela assustou-se porque pensou que eu havia voltado a fumar, mas não se assustou por não ter parado com o maldito vício dela mesma. Depois de duas tragadas: “Quer ouvir música?”, “Se for possível, quero”, falei-lhe sorrindo. Ela apenas tocou sobre uma das caixas marfim que estavam próximas de seus pés e eis que a música tomou conta de todo o ambiente, eu me matando para tentar ligar o som e ela num simples toque fez com que a geringonça funcionasse sem ajuda de botão ou controle que fosse, como quem faz mágica ela deu vida ao treco sem ajuda de penduricalhos, o moderno sujeito provavelmente era importado de outro país, no mínimo. “E aí, como vão as coisas?” Perguntou-me ela lançando-me um olhar tempestuoso, como se soubesse de antemão que o tempo não estava bom para mim, mas, como me ensinou a melhor professora que eu tive na vida, quando alguém perguntar: “Como vão as coisas” não é para nós nos debruçarmos e começar a falar que as contas estão todas atrasadas que o chefe é um calhorda que isso que aquilo outro... Mas com Simetra as coisas eram diferentes, ela me conhecia bem, sabia que eu não estava nos meus melhores momentos. “Você deveria continuar lecionando, falou-me ela detendo o olhar na fumaça, na Prefeitura as coisas não eram mil maravilhas, mas você ao menos estava com uma carinha melhor”. Simetra fez-me lembrar dos amargos tempos em que eu lecionava nas escolas municipais, adiantando as matérias, dava aulas de História e Sociologia, e era mais conhecido pelos romances que mantinha com minhas alunas adolescentes do que com a qualidade das aulas propriamente dita e isso me frustrava incessantemente, falar sobre as teses positivistas de Auguste Comte e tentar explanar que a História tem um papel fundamental no presente e futuro das nações e das pessoas não davam o resultado pretendido por mim, ingressei no jornalismo porque pensei que daria uma contribuição maior ao meu ego e aos outros que iriam ler o que eu escreveria nos jornais. “Mas e você como está?”, “Estou numa de horror também... Você bem sabe que o que acontece com os outros me afeta profundamente como se fosse comigo... Talvez você não se lembre mais da Fátima... Ela está arrasada, pegou o marido traindo-a com sua melhor amiga”. “Então ele operou um verdadeiro milagre, Simetra! Traindo uma, ele conseguiu trair duas!”, “Não enche! O caso é sério. E não pára por aí não. Ela acha que sua mãe tem um caso com ele também, pagou detetive e tudo para ver se pegava os dois sacanas, mas ainda não conseguiu nada, coitada da Fátima, ela não merece isso”. “E quem merece? Quando você vir ela, diz que eu me disponho a tocaiar o marido e a mãe dela, cobrarei um precinho camarada”. Apontei com sarcasmo. Simetra abalava-se demais com o que acontecia com os outros, era uma pessoa de uma sensibilidade notável, quando um corredor espatifou seu carro num muro – um muro numa curva! -, numa morte transmitida ao vivo para todo o mundo, ela quase enfartou, me ligou para que eu fosse às pressas lhe prestar consolo, como se fosse aparentada com a vítima, também eu fiquei comovido, mas tentei falar-lhe que o poder do impacto era o que causava toda aquela procela; não adiantou, ela chorou por todo o domingo e semana seguinte, verteu lágrimas de quem perde uma mãe, não era para menos, as melancólicas epígrafes dos jornais do mundo naquela triste segunda-feira davam a dimensão de quem havia se ausentado da vida: “EM ÍMOLA, O MAIOR PILOTO DO MUNDO ACELEROU, BATEU E MORREU”, Anunciava um periódico francês, exaltando o talento do homem imolado, “É VERDADE, ELE NÃO EXISTE MAIS”, dizia este outro no dia em que o esquife aportou no país. Dentro de toda aquela tempestade que se fez com a morte daquele rapaz uma coisa tocou-me especialmente: quando o Parlamento húngaro silenciou por um minuto em respeito e honra a memória dele. O seu mito tornou sua morte ainda maior, e vice-versa. “Lute (...) lute muito... como você sempre lutou na pista... seja bravo, como você sempre foi... e que Deus esteja contigo...”. Estava. “Ele tinha pressa”, lembro de ter falado para Simetra no dia do desastre. “E por isso morreu”, respondeu ela dissolvendo as palavras na boca, “Morrer não é o pior”. Não me recordo da sua resposta. A morte causa esses tormentos à nossa vida, eu preferia até que hecatombes viessem e num só golpe ceifasse a vida de toda uma geração, e o leitor amigo entenderá o que falo agora: é muito penoso ver quem amamos indo embora antes da gente, se fôssemos todos juntos de uma leva, o sofrimento a dor e a angústia (o pior de todos os sentimentos) desconheceriam o que é fazer quem fica, chorar. A melancolia por outro lado é o mais terno dos sentimentos, pelo menos é amiga dos misantropos, não que ser melancólico esteja diretamente ligado à misantropia, palavra feia, é verdade, mas que faz um dueto perfeito com melancolia e não apenas por serem paroxítonas... Identifiquei que aquele era o maior defeito de Simetra, e que ela iria sofrer à beça, porque as pessoas de uma forma geral se metem em muitas confusões e, sem querer, fazem os outros sofrerem por tabela. “Você sabe o que é poliandria?” Perguntou-me ela sem fazer mesuras. “Deve ser sacanagem em grande escala” respondi gaiato. “Pois bem, poliandria é o contrário de poligamia, é quando a mulher tem vários maridos ou vários amantes” “Tá vendo, acertei, é mesmo sacanagem por atacado!”. “Mas, prosseguiu ela, como o machismo é enorme em todas as classes sociais, as pessoas desconhecem o vocábulo, se estiver numa roda e você perguntar: ‘o que é poligamia?’ todo mundo responde mais que rapidamente, o machismo, ainda bem, está com os dias contados!”. “O feminismo por outro lado tem acabado com o cavalheirismo” contraataquei, mas de forma tão frouxa que ela destruiu minha argumentação com isto: “O feminismo é também outro monte de porcaria! Detesto feministas engajadas em causas estúpidas. A mulher tem de ser o que ela é sem imposição de qualquer fator que seja, é ridículo ter de ficar brigando por melhores salários por melhor colocação no mercado de trabalho ou por qualquer idiotice dessa, basta cada uma saber o que tem de fazer; estudar, batalhar para não depender de um homem que a sustente pela vida inteira e isso não careceu de revolução para acontecer, foi uma coisa natural, a informação está aí para quem quiser e as mulheres perceberam isso naturalmente sem precisar de greves nem de passeatas, foi tudo como deve ser”. “Com um discurso desses, você poderia pleitear uma cadeira na...”, “Coisíssima nenhuma! Interrompeu-me Simetra com pura cólera nos olhos, quando ficava nervosa, seus olhos mudavam de cor e ela fazia duas coisas: arregalava os olhões azuis ou verdes sutis, que já eram sensivelmente projetados, e fumava como um cão, mesmo quando não tinha cigarros por perto. A alma, coisa que as mulheres têm mais do que os homens, se aflige de modos variados e imediatos, mas a alma que se mantém neutra nas divergências quotidianas da vida moderna leva imensa vantagem sobre aquela de essência competitiva que, à maneira de um bule a ferver, explode quando atiçada pelo fogo da contenda. Verdade é que as mulheres, com a ajuda da sua entrada em massa no mercado de trabalho e noutros, arrecadou além de dinheiro e prestígio, artigos humanos que antes só eram pensados e cabiam na figura do homem. Nos dias de nossa época, as mulheres são mais tudo do que os homens; ouve-se isso em qualquer lugar onde se concentrem idéias: as mulheres são mais competentes do que os homens. As mulheres são mais inteligentes do que os homens, as mulheres estão traindo mais do que os homens, as mulheres estão bebendo mais do que os homens, as mulheres... CAPÍTULO XII DESDÉM CERTEIRO “... Panaméricas de áfricas utópicas/ do mundo do samba/ mais possível novo Quilombo de Zumbi/ e os...”, Quando acabou esta estrofe, Simetra baixou imediatamente o volume e falou: “Cara! Ouve só isso! Eu ouço essa música desde quando simpatizava com o comunismo e não sabia que ela falava isso!”, “Panaméricas de áfricas?” Disse eu um pouco sem saber do que se tratava. “Não...: ‘À mente apavora o que ainda não é mesmo velho...’”. “Que mente, Simetra?” “É claro que ela não pode mesmo apavorar!” “Você está delirando, deixa disso vai, olha aqui, eu conheci um cara...” “Fica quieto, deixa-me pensar um pouco...”, “Tá bom, vou deixar você navegar na letra da música, que maluquice, eu hein!”, “Ah, você não entende, o processo que ele usa é ao mesmo tempo simples e hermético!” “Que processo, Simetra, você enlouqueceu de vez?” “Quem você esperava que fosse quando eu toquei a campainha?”, “A faxineira, hoje é dia de ela vir aqui”, respondeu absorta. “Mentira, conheço quando você está mentindo, você olha de lado e fica toda encabulada, qual é? Fala logo para mim, você está namorando?” “Quase”. Respondeu ela sem olhar, “Quase!, Que interessante...! Você está ‘quase grávida’ também?”, “Você sabe que eu não gosto de falar dos meus romances com você, é sempre traumático e eu não estou a fim...” estávamos muito afim um do outro neste momento. Se o leitor conhece a lenda de Ártemis, filha de Zeus e irmã gêmea de Apolo, eu o congratulo, mas o que o leitor certamente não sabe é que neste tempo eu comparava Simetra a Ártemis: a da lenda obteve do pai permissão para não casar nunca; ao passo que a nossa Simetra é o contrário de Ártemis: parecia ter esta resolução definida a mando do coração, que é pai de todos os homens. Quando éramos adolescentes tentamos engatar um namoro, mas não deu certo, ela não gostava de mim como eu dela e acabamos por tentar manter uma amizade falsa; falsa por minha parte, pois sempre achava que ela me daria uma chance algum dia, mas o tempo foi passando, passando e lá se foram quase vinte anos e eu ainda conservei a intenção e a esperança de tê-la comigo um dia. Ela não era muito de namorar, o que levantou sinceras e doloridas suspeitas de uma condição homossexual, logo dissipada com um namoro duradouro que só acabou porque a morte separou-a do noivo às vésperas do casamento. Mas como a paciência é a arte de ter esperança esperei-a por um longo e penoso tempo, mas a paciência e a arte se foram e o que ficou foi uma boa amizade. Ela tornou-se uma médica de sucesso. Clinicava num elegante endereço na área mais nobre da cidade que morava e, mesmo quando o tempo lhe era escasso visitava algumas favelas e tinha muitos pacientes que ‘adotou’ como seus. Eu dizia a ela que aquilo era uma loucura, que o Governo era quem tinha de se preocupar e resolver os problemas dos excluídos, “Mas aí é que está o problema; ele nem se preocupa e nem resolve!”, falava-me ela, eivada de razão. Por diversas vezes ela fora assaltada enquanto prestava assistência médica nestes locais infectos de tudo, num caso dramático que ela me contou, quando chegava à casa de uma mulher que estava muito doente foi surpreendida por um assaltante que lhe levou a bolsa com os remédios que levava para sua paciente e qual não foi a revolta do meliante quando soube que o remédio era para sua própria mãe o que de certa forma trouxe até uma ‘segurança’ para ela pois, após este episódio o filho-ladrão ofereceu-lhe algo parecido com um salvo-conduto e ela pôde atender em paz o lugar humilde que tanto necessitava de seus préstimos. “Que cara que você conheceu?”. “Ele se chama Mivla Rutra...”. “Que nome! Ele é bonito?”, interrompeu ela. “É um monstro, parece o Quasímodo, mas então ele...”. Contei tudo sobre o Dr. Rutra, ela não se mostrou nem um pouco entusiasmada, o que era de se esperar, nem quando eu lhe falei da proposta que ele me havia feito, que eu julgava interessante, ela desdenhou, achava que aquilo não era nada de extraordinário e que eu poderia fazer coisa melhor, eu ainda não havia contado a ela que tinha mudado de endereço por força do vício e dos maus negócios em que me meti e que estava morando num lugar feio e que por obra do acaso ela poderia estar, a qualquer hora dessas, atendendo meu vizinho ou eu. “Vejo que você nem ligou para o que eu disse...”. “Não é isso. É que você pode fazer coisa melhor, está precisando de dinheiro?” Essa pergunta de Simetra atingiu-me como um direto no queixo. Por pouco eu não baqueei. Não poderia aceitar seu dinheiro, estava precisando demais, e não obstante tinha que recusar e para isso transformei a sua silhueta de modelo americana recém balzaquiana na silhueta de um temido usurário, não me foi fácil fazer as duas coisas; recusar e transformar. “Só muito dinheiro me salva, minha doce e amável Simetra” falei-lhe sorrindo para despistar quaisquer possibilidades de ela perceber que eu lhe mentia na sua própria face, pois eu, como ela, mentia muito mal. “Vamos deixar isso pra lá” falei eu tentando mudar o rumo da conversa, não sei se resistiria a outra tentação de ela me oferecer ajuda e eu ter de recusar novamente, pois, como um outro doido varrido, resisto a tudo, menos a tentações. “Não sabe você o que me pediram para fazer no laboratório!”. “Vou continuar sem saber se você não falar, meu bem”. “Sabe que eu escrevo para a revista do laboratório não é?”. “Sim, e daí?”. “E daí que os malditos me pediram para escrever sobre os efeitos de uma nova droga que eles estão lançando no mercado que promete ser uma revolução no mundo do esporte, o nome do troço é Razax Y8. Esse tal complexo vitamínico, ou sei lá o que, que eles criaram, para trocar em miúdos, está na linha tênue entre o dopping e o estímulo tolerável pelos comitês e federações esportivas do mundo, entendeu?”. “Tá, e o que há de terrível em escrever sobre isso?”. “De terrível, tudo. Eles querem que eu entre nos meandros do futebol, que entreviste jogadores, que faça uma pesquisa entre os potenciais atletas que, eventualmente, poderão ter uma espécie de patrocínio e um monte de outras coisas que eles ainda não me adiantaram. A verdade é que estamos atrasadíssimos com a promoção do produto; na Europa e no Estados Unidos, já existe até uma corrente de protesto contra o remédio, eles (os manifestantes) dizem que se trata de dopping puro, mas parece que a matriz do Rachié no EUA detém um grande poder nos comitês e com isso eles estão debelando a onda de protestos...”. “Que coisa enroscada, não? Bem, deixa ver se eu entendi o resto: como você odeia futebol, não quer fazer a matéria, acertei?” Simetra tinha uma excelente percepção, mas não precisava ser uma expert para saber que aquilo era, supostamente, um sacrifício dantesco para mim. “Goste daquilo que faz, já lhe falei isso mil vezes! Fazer o que gosta é uma coisa muito difícil de se alcançar, e sabia que eu posso lhe ajudar?”. “Como? Você vai fazer a entrevista no meu lugar?”. CAPÍTULO XIII TIPO EXPORTAÇÃO Saí da casa de Simetra com a noite já dona do dia, queria ficar na casa dela por mais algum tempo, mas o telefone dela tocou e era o seu mais novo caso de amor. Por osmose, fui tocado a abreviar minha permanência em sua sempre agradável companhia. Ir imediatamente para casa estava fora de questão, não queria chegar cedo e fazer da ociosidade a minha colega de prosa. Andando sobre a calçada passei perto de um hospital onde havia um volume incomum de gente e de carros; formava-se até uma pequena frota de biscateiros, dessas pessoas que aproveitam qualquer tipo de aglomeração para venderem de cachorro quente a pastéis, de pipocas a cartões telefônicos. Entrei no hospital. Encontrei um berçário onde várias crianças choravam em sincronia de orquestra e percebi que apenas uma ou duas choravam por fome por dor ou por sede, as outras tantas certamente imitavam a ou as regentes. Voltei ao tumulto da rua. Como todo bom curioso fui também bancar o olheiro e me informei sobre o que acontecia ou de quem se tratava, de modo que apenas um simples sobressalto na saúde de qualquer personalidade seja esportiva política ou artística causa comoção entre a população que tem como combustível altamente inflamável a mídia querendo vender todos os seus subprodutos. Fiz a pergunta à pessoa errada, ela estava na minha mesma condição, ou seja, queria também saber de quem se tratava. Eu andava excitado por aqueles tempos, minha situação desagradável perante vários credores; me convenci de que era um mau-tudo: mau inquilino, mau aluno, mau amigo, mau colega, mau cliente de administradora de cartões, mau filho, mau consumidor; tudo que se esperava de mim um reparo financeiro se tornava positivamente num fardo negativo e com isso eu angariava inimigos, inimigos que eu apenas conquistava pela habilidade (ou falta dela) de lidar com a devida harmonia com a minha vida financeira e com meu vício. Não tinha instrução financeira. A esta altura, tudo me era um aprendizado e eu aprendi também que o tempo tem duas velocidades distintas; a velocidade de receber e a velocidade de pagar. Essa irritabilidade sensata não me privava da sensibilidade da vida; eu me orgulhava de ser um bom observador. Isso me dava alguma esperança de no futuro reaver as rédeas das finanças e das cartas, coisas que eu considerava grandes, e, como quem é cuidadoso no mínimo também o é no máximo, tranqüilizava-me... As vinte e três horas já se tinham passado e a meia-noite se aproximava rapidamente. Eu andava como que sem pressa e igual expectativa, como andam pingüins em bando, com a diferença de que estava sozinho. Vislumbrei logo à minha frente um espalhafatoso luminoso de néon anunciando uma marca famosa de refrigerantes, estava com sede e até me apeteceu a possibilidade de bebericar num botequim qualquer, um bom refresco, mas pensei comigo: “Essas letras vermelhas e brancas envolventes e entrelaçadas umas nas outras não irão me convencer a aumentar suas vendas”. Não era muito de mim, nem da minha instabilidade, levar ao fim as palavras que acreditava ser de ‘ordem’, de que eu faria aquilo, de que eu faria isso e, ato contínuo, parei na primeira portinhola que vendia as tais letras e as bebi com um fervor invulgar, o conteúdo da garrafa não fazia a menor diferença. Bebi letra por letra num efeito mágico. As ruas, talvez por força da violência, ou outro motivo mais grave, ficavam vazias quando escurecia e assim paravam. Os motoristas evitavam a parada logo embaixo do semáforo; o meu país acrescentou um penduricalho às tantas modalidades de crimes que já existem; assaltar as pessoas dentro do carro em pleno trânsito e levá-las para um passeio macabro tornou-se uma prática rentável para os bandidos. Não demorará muito e isso, como o futebol, o café e o carnaval, também será exportado. Descobri que as fases do sinal quando mudam do vermelho para o amarelo e do amarelo para o verde fazem um ruído tímido e inquietante apenas notado quando as ruas estão vazias e os carros não estão nem buzinando nem perto dos postes do sinal. Folhear jornais nas bancas noturnas era outro gostoso passatempo. Vasculhava as capas das revistas com olho crítico, uma, duas, mais outra, seis, mais uma e nada; nem perdia meu tempo para ver nas que estavam em destaque; olhava nas que estavam escondidas; nada. Nas de menos prestígio; nada. Desisti. Por algum tempo pensei que estivesse na Finlândia na Suécia ou num desses países nórdicos, mas quando eu falava com o jornaleiro lembrava que estava aqui mesmo, no país da miscigenação. Como era uma segunda-feira pós-feriado prolongado, as principais manchetes dos periódicos eram mosaicos de carros em fila indiana, centenas, milhares deles comportadamente perfilados esperando a bendita hora de engatar uma marcha, numa estressante corrida metro a metro. Detendo atenção nas fotos fazia meu o pensamento daquela massa de gente deliciosamente irritada dentro daqueles casulos de aço; todos teriam assunto para conversar com os colegas de trabalho: “Sabe quantas horas eu levei para subir a serra? Oito horas!”, “Isso não é nada! Passei doze horas para descer e quinze para subir, você não sofreu nada! Ganhei de você!”. Sim, alguns falam isso de forma auspiciosa, como se o martírio por algum fenômeno incidente se transformasse numa espécie de frenesi e deleite, dentro em breve algum esperto patrocinará um torneio que premiará quem conseguir a proeza de ficar mais tempo preso nas estradas da vida. Marquei com Simetra uma outra ocasião para ela me dizer como poderia me ajudar na matéria, tive muita vontade, mas pouca grana, para convidá-la para um jantar; naqueles tempos, o dinheiro era mais difícil de ver do que funeral de anão, se o leitor já acompanhou o cortejo fúnebre de um, deveria ser de um Daniel Quilp. Os horários de Simetra estavam flexíveis, o que batia com minha rotina também maleável. CAPÍTULO XIV O NOME DE HERA No dia e local previamente marcados cheguei com disposição e uma flor solitária (num embrulho magnífico!) que havia comprado para dar a Simetra, ela era apaixonada por flores; flores e chocolates. Até calculei a possibilidade de presentear-lhe com uma barra de meioamargo, mas lembrei-me que ela apenas apreciava chocolates de uma marca que eu já citei o nome em forma de mulher notável no capitulo VII, se eu desse um bombom qualquer, que não fosse efetivamente aquele, não faria o mesmo efeito que uma flor, as flores, ainda bem e por enquanto, não ganharam signos que fizessem uma melhor do que outra. Doze minutos de espera da hora combinada, ela era britânica também neste quesito, Simetra chegou a bordo de um táxi branco e dele desceu com uma outra mulher possivelmente um pouco mais velha que ela; loira, olhos negros como a nossa jabuticaba, o que me fez acreditar que se negava a usar a cor natural do seu cabelo, e muito alta, parecia uma forma achatada de vida e eu até brinquei no meu pensamento; quando um rolo compressor passa sobre as personagens dos desenhos animados e estes saem andando como se tivessem sido atingidos por uma inofensiva pena, tal qual era a figura da amiga de Simetra. Aquela convidada inesperada inibiu minha ação de dar a flor tão bem embrulhada para Simetra, julguei que seria deselegante da minha parte oferecer uma única flor para duas damas. Corri até o bem cuidado jardim da lanchonete americana (ponto de referência para o encontro) e, descaradamente, furtei uma florzinha mixuruca toda cheia de poeira e poluição do trânsito, desfiz o belo arranjo e manufaturei dois embrulhos para duas flores, beijei as duas. Simetra foi logo elogiando minha atitude de moleque romântico: “Que lindinho! Amo você!” “Ama mesmo? Olha que isso me envaidece, e como sabes, não sou um homem imune à vaidade”, trocei. Depois de me apresentar à amiga, Simetra começou a falar-me porque poderia me ajudar na matéria, mas antes, eu quis saber a origem do nome confuso da sua amiga macérrima, dei uma de filólogo: “Como! É lindo!”, eu gostava de exagerar em quase tudo na minha vida, enxergava epifanias nas mais improváveis coisas, “Donde vem esse nome?”. “Vem da Mitologia Grega, a pura, falou ela com uma voz tonitruante, extremamente pausada, na verdade, prosseguiu ela, minha mãe queria que meu nome fosse qualquer um desde que tivesse a letra X”, “Letra X?”, perguntou Simetra assustada, “Sim, minha mãe considerava a letra X a mais... Vamos dizer assim... A mais versátil do nosso alfabeto e ela pensava que o poder da versatilidade da letra iria se transferir para mim de uma maneira que eu não sei explicar lá muito bem, mas no que se refere à letra ela tem mesmo razão vejam só: com X escreve-se ‘inexorável’, substituindo o z, escreve-se também ‘expedir’, que substitui o s, escreve-se ainda ‘enxame’ que substitui o ch, escreve-se ‘exceção’ que substitui sei lá que letra, talvez nem se precise dela nesta palavra; como escreveríamos ‘tóxico’ sem o x? e por aí afora...”, “Tudo bem, acontece que no seu nome não existe letra x nenhuma!” falei exasperado, “Verdade!”, socorreu-me Simetra, “Calma pessoal eu ainda não terminei de explicar a vocês! Acontece que meu pai não acreditava nessas bobagens e preferiu outro tipo de bobagem; ele era vidrado em Mitologia Grega e prometeu que quando eu nascesse meu nome seria Édipo. Já estava tudo acertado e ele até convencera a minha mãe, apenas não contava com um outro detalhe que poria em terra sua intenção de pôr-me o nome do rei grego: nasci mulher. Aí, tan tan tan! Ele teve esta sublime idéia: Saneta ed Opide que é o contrário de Édipo de Atenas, sei que é uma coisa meio maluca, mas...”,“Meio maluca? É completamente doida!”, gargalhou Simetra. A amiga da minha amiga era dona de uns olhos atentos, escondia neles um quê de mistério, seu rosto enxerido, suas mãos no mesmo tom dos olhos eram irrequietas, mas, primeiras impressões são um calabouço cuja entrada é tão traiçoeira como as ressacas do mar. Apenas não tinha concordância o seu nome grego. Devia ser chamada Hera. A descontração foi a deixa que eu precisava para relaxar, nunca marquei um encontro com Simetra para não ficar tenso e preocupado mesmo quando era um encontro casual onde não havia nenhuma esperança de beijá-la a menos que fosse no rosto, eu me arrumava defronte ao espelho como um noivo se prepara para contrair as primeiras núpcias, olhava dali olhava daqui, devolvia ao lugar um fio de cabelo que desertara... Mas não tinha jeito, sempre eu mudava alguma coisa no meu visual na esperança de ela fazer algum comentário; debalde esforços, ela nunca reparou na minha cheia beleza nem na minha vazia feiúra. CAPÍTULO XV A PRESUNÇÃO Após as confraternizações e algumas tulipas de chope (já noutro endereço) demos início ao motivo do encontro. “A Saneta, começou Simetra, pode ajudar você naquela questão...”, fiquei em dúvida quando ela falou naquela questão, juro que por um momento suspeitei, lívido, que sua amiga viesse me socorrer na minha falência financeira, “Você sabe aquele garoto do futebol... O menino que anda fazendo aquelas jogadas sensacionais...”. “Nem preciso responder-lhe, Simetra”. “Não falei a você que ele não sabia?” Comentou ela desdenhosamente para sua amiga como se eu não estivesse presente, “Como você ainda não o conhece? Você não é jornalista, professor e o diabo a quatro?” falou inquieta Saneta, “Sou e daí? Nem por isso sou obrigado a saber sobre isso aí... ”, “De que mundo você participa afinal?! Saber dele é elementar!”, “Ah, é assim? Eu também posso considerar elementar você saber quem foi Vladimir Nabokov, por acaso a senhorita poderia me responder?” falei irado. “Lolita... E, hum... Fogo Pálido! Isso atinge seus anseios?”. Meu tiro saiu deveras pela culatra. Deveria subestimá-la com algum outro autor talvez de origem escandinava ou islandesa, aí sim eu queria ver ela se virar, o idiota do Nabokov mais uma vez me deixou encabulado numa situação de revés. “Quem é afinal o grande jogador do futebol mundial?” Me rendi, perguntando dissimulada e desinteressadamente sobre a quem elas se referiam. “É o seguinte, a Saneta trabalha comigo no meu consultório, e ela também faz assistência social em um posto de um bairro próximo daqui, e o que acontece é que ela conhece a família desse garoto que está despontando agora no futebol, inclusive ele próprio. Sua mãe anda muito preocupada com o futuro dele e pediu para Saneta arranjar alguém de confiança para servilhe como uma espécie de tutor, para acompanhá-lo nas entrevistas, para assessorá-lo nos contratos que estão pipocando por tudo que é lado, eu já o vi umas duas ou três vezes, é um garoto muito simpático, mas que poderá se perder se não tiver alguém para orientá-lo e aí lá se vai mais um talento embora por falta de... Você entende, não é?” “Se eu entendi bem, o tutor que vocês esperam encontrar senta-se aqui com vocês, correto?”, “Olha, sei que você está precisando de grana! Aquela proposta ridícula que aquele amigo esnobe te ofereceu não chega nem aos pés dessa oportunidade e você pode realmente ajudá-lo! Sei que tem capacidade de ser o managger ideal para o garoto, é tudo que ele precisa, vai lá, ajuda ele e se ajuda também!” “Eu, dono de três diplomas nesta vida miserável, estudo a vida inteira para não ser nada nela e eis que vou acabar me tornando tutor de jogador de futebol? Poupe-me Simetra! Esses caras quando começam a ganhar dinheiro e ficam famosos tornam-se pessoas vaidosíssimas, cheias de não-me-toques, ficam em sua maioria arrogantes e se são de família humilde e ascendência africana vão logo procurando uma loiraça para incrementar a miscigenação de uma forma pouco ou quase nada ortodoxa, seus egos inflam tanto que... Deixa pra lá... Eles se tornam tão antipáticos que se pudessem batizariam o próprio mundo com os seus nomes, consideram-se semideuses!” “Isso são estereótipos que estão minguando, você tem até razão em alguns pontos já houve muitos casos assim, mas no geral a coisa não é bem assim, falou Saneta, e ele é uma pessoa diferente, se conhecê-lo pessoalmente, tenho certeza, mudará de idéia”. “O que acha Simetra?”. Perguntei isolando meu olhar a ela, o que deixou Saneta um pouco desconcertada, “Não a trouxe aqui sabendo que não seria bom para ambos, acredite, se der certo, você terá um mérito enorme...”, “Mérito, mérito, mérito! As pessoas só pensam nos louros da vitória, quando lhes incorrem o fracasso... Não sou um desgraçado de um materialista Simetra, você sabe disso, eu quero apenas conciliar a minha vida com os meus ideais”, “Cansei desse papo idiota Simetra, falou Saneta muito irritada retocando o batom, igual fazem as mulheres quando se irritam, sobretudo quando tem razão, vamos ter de achar um outro cara que possa ajudar o nosso pimpolho”, “Mas eu ainda não disse que recusava, disse o que eu pensava e isso é um crime tão grande assim que pode causar a ruptura dos ideais?” “Aceita ou não aceita?”, “Vamos falar com o garoto, quem sabe ele não seja o salvador da espécie...”, “Muito engraçadinho o senhor, não?”, censurou-me Saneta ed Opide. Com um nome desses, só com um motivo muito forte para censurar alguém. Sei que cultivei para a amiga da minha amável Simetra uma imagem de arrogante e até um pouco pedante, citar um escritor russo é um ato inaceitável de pedantismo, muito embora, ler autores ilustres do passado não signifique que a pessoa que os tenham lido absorva a cultura ou a forma visionária que eles encaravam o mundo e as coisas ao seu redor, Alberto Moravia poderia ser a deixa perfeita para entabular com uma mulher cobiçada o assunto sexo, mas depende também do modo como esta encara a obra de um autor; o tempo e o artista são seres (eu considero o tempo um ser) mutantes, suas obras eu também entendo que são, elas se metamorfoseiam de acordo com o balanço e o ritmo em voga, não ficam presas na clausura do tempo nem numa ilha e, se presas ficam, é na ilha de Lillipute onde Gulliver naufragou. CAPÍTULO XVI O RECADO “Você é mesmo um cara muito do folgado, minha paciência com você está acabando, seu pedro já me ordenou fazer o que eu quisesse com você, tamo (sic) desconfiado de que você vai se mandar daqui porque esta semana tinha menas (sic) roupa suja pra lavá (sic) do que na semana passada e nóis ouviu um diz que me disse danado de que você tava (sic) insatisfeito com nóis (sic), o que nóis tem pra falar pra você é que incomodados que se mude, só tô deixando esse bilhete na sua porta porque não encontramos você em casa de jeito nenhum, assim que você chegar pode ser a hora que for bata na minha porta que eu e pedro quer falar com você”. Logo após ler este doce recado, como uma carta de namorada, fui correndo saldar mais esta dívida. A minha locadora era uma mulher de modos intensos e me preocupava o seu humor. Rechonchuda e de andar redondo, tinha as sobrancelhas muito espessas, como se criasse duas taturanas acima dos olhos. Semelhante à anatomia dos sapos, não tinha pescoço. Manicure e pedicure eram para ela tão desnecessários e inúteis como um sapato sem sola. Os dentes que lhe sobraram da infância eram enegrecidos de podre e separados entre si; sua língua presa lançava perdigotos no interlocutor desprevenido, sua feminilidade brutal. Falava grosso. Coisa que me irritava profundamente, a fala é uma manifestação violenta por si só e quando feita altissonantemente torna-se desvantajosa para os ouvidos. Os vizinhos falavam coisas horríveis ao seu respeito, entre as tais, a sua mesquinharia se destacava largamente; tinha o mau hábito de reparar no prato de comida dos irmãos cuidando para que não estivesse mais cheio do que o seu. Sua asquerosa alma egoísta também criou feridas no seio da família, desunindo-a. A bem da verdade, me diziam os vizinhos, ela era um lixo de gente, ouvi falar ainda que herdara de algum parente distante a estupidez agregando com o tempo esses tristes acessórios à personalidade. Não era aconselhável desafiar a neurastênica por motivo algum, preveniam-me os vizinhos. O conselho não se fazia necessário, sabia que não poderia me igualar no palavreado desvairado daquela dona, mas ao fim todos têm as suas devidas recompensas e ela teve a dela. Reuni esforços além dos limites e saldei os dois meses de atraso com um sorriso de orelha a orelha como quem acabara de saldar uma dívida de morte ou ainda como quem se livra paliativamente de uma doença mensal. Aos meus vizinhos eu delegava o mais notório desapego, um homem que vive sozinho gera os mais escabrosos comentários por parte dos vizinhos, sejam vizinhos ricos sejam vizinhos pobres, na verdade eu pouco me importava com fofocas, mas havia um dos vizinhos que por força da proximidade acabei por fazer amizade, ele trabalhava numa transportadora, vivia às turras com a mulher, que tinha uma filhinha de um outro casamento. Não sou especialista em patologias psíquicas ou físicas, mas interpretei que um pouco da histeria da esposa do meu amigo tinha alguma relação com a minha temida locadora. Sempre que podíamos, eu e esse meu amigo, que sofria na unha da esposa, conversávamos um pouco, a maioria das vezes em que nos encontrávamos era quando eu chegava do laboratório ou das minhas andanças noturnas, e, nas crises freqüentes que ele passava em seu casamento, a rua tornava-se invariavelmente seu destino, quando não seu refúgio. A idéia de casamento amadurecia na minha mente à medida que se aproximavam as datas do meu aniversário, ouvia falar que era hora de ter alguém para cuidar de mim, até aí eu concordava, tinha até saudade dos meus tempos de criança quando minha mãe controlava totalmente a minha vida, mas afastava a idéia de casar-me porque receava que a esposa escolhida não tivesse o perfil sempre protegedor e administrativo da minha mãe e ainda relatos como este do meu vizinho me desestimulavam profundamente. CAPÍTULO XVII AS BANANAS E AS PERNAS Na estrada, ouvindo um disco de música clássica que me relaxou ainda mais quando passou pela Terceira Estação, eu me desligava do mundo como se estivesse no divã de uma psicanalista, não estando na Inglaterra, sentia-me desconfortável andando do lado direito do carro, mas isso era resquício do meu outrora dogma machista. Simetra agendara um encontro com o garotoprodígio numa cidade a uns cento e oitenta quilômetros de distância onde ele e o time faziam a pré-temporada. A viagem foi tranqüila. Pedi a ela que parasse o carro para eu matar meu desejo de comer bananas, comer bananas na estrada é diferente de comprá-las no supermercado ou mesmo em feiras de rua. Arrancando do cacho uma banana, a ofereci para minhas amigas. Elas recusaram peremptoriamente a oferta, fazendo cara de nojo. Banana não é fruta para gente esnobe. Como dito, Simetra agendou com ele a visita. Tinha de agendar, o menino já estava ficando importante. Depois de rodar por duas horas e meia por uma rodovia que parecia rodovia de algum lugar do Primeiro Mundo, muito embora isso se justificasse por haver a cada setenta quilômetros uma praça de pedágio; um abuso que o Mundo Um não comete, chegamos ao Resort um pouco depois do almoço. Os atletas estavam fazendo a sesta e Saneta, devidamente identificada, solicitou à recepcionista a presença do menino até nós. Aguardamos por uns trinta minutos até que nos apareceu a figura de um rapazote absolutamente com jeito de jogador de futebol; andava como se sob seus pés houvesse, em vez de sola, molas que o fazia balançar como bambus balançam ao vento, suas pernas eram sensivelmente arqueadas como as de um vaqueiro, e muito grossas. O pescoço, pela timidez, enterrado na cabeça, os olhos raros, como uma flor sem cor. O cabelo curto e ralo era um pouco macio porque estava na raiz, tinha pouco mais que um metro e setenta de altura; o peso era-lhe absolutamente proporcional. A canela tosca, os bíceps torneados e bem definidos, os braços curtos e roliços mantinham-se grudados ao corpo, os seus modos eram tímidos e calculados o seu olhar trêfego manifestava desconfiança. Longe de ser bonito, distante de ser feio, domava uma estampa delicada. No geral, suas feições eram como as de uma moça, tal a singularidade feminil com que falava e se portava, um ar de bom moço emanava do seu rosto, o que lhe proporcionava uma empatia instantânea. Tinha o raro dom de ouvir calado, sem réplicas nem objeções, a simplicidade monástica. Ele não se sentia à vontade conosco, todos o olhando, (inclusive a recepcionista) como se fosse um extraterrestre que acabara de estacionar no centro de Pequim. A uns metros próximos, ainda no hall do hotel um funcionário do clube o acompanhou até nós, mas se deteve quando nos enxergou. Saneta tratou de nos apresentar mutuamente, ele apertou a minha mão com receio e não me olhou nos olhos; quando desfaleceu a sua mão na intenção de levá-la de volta ao corpo eu reapertei-a firmemente e o trouxe à atenção com um leve solavanco e olhando dentro dos seus olhos fugidos arrisquei-me, lhe fiz a primeira repreensão: “Quando apertar a mão de uma pessoa aperte-a com firmeza olhando-a nos olhos, pois de modo contrário parecerá que não se importou em cumprimentá-la, compreende?”, adverti-o para saber qual seria sua primeira reação perante um desconhecido que já chegava lhe impondo condições, até antevi que fosse esquivo e mesmo maleducado, mas ele me respondeu com cativante pusilanimidade: “Compreendi sim. Não irei repetir esse gesto com mais ninguém na minha vida. Nunca mais. Se você tiver conhecimentos para me passar, me passe logo, porque estou ansioso para aprender logo”, “Ótimo, garoto!”, foi a minha fagueira resposta mostrando-lhe todos os dentes, a senha que eu precisava, fora revelada. Conversamos por uns quarenta curtos minutos, ele era muito agradável no falar, Simetra tinha, mais uma vez, razão quando me adiantou as suas qualidades. Eu fiquei impressionado com a simplicidade dele, percebemos rapidamente que estava sendo muito assediado pelas pessoas, e sua timidez, embora eu erroneamente a considerasse com prazo de validade, era autêntica. Ele tinha um porte que impressionava, apesar da timidez, sua voz saia da boca desembaraçada; era até muito articulado nas palavras para um tímido médio, porém, seu vocabulário era limitado. Apenas falava quando solicitado, o que indicava sabedoria. Fomos então convidados para assistir a um jogo-treino que iria acontecer nas próximas horas, ansiei para vê-lo jogar, era o meu primeiro contato direto com o futebol depois de muitos e muitos anos e como a impressão geral que ele me causou foi muito positiva contei os minutos para vê-lo em ação. CAPÍTULO XVIII UM SHOW DE TALENTO (LOGO, O GOL) O jogo-treino começou um tanto que morno. Já se passavam dez ou doze minutos e ele ainda não tocara na bola, não era nervosismo, suas passadas eram serenas, pude notar, afinal, ele já havia feito jogos importantes pelo clube. Para me aquietar ele matou a bola no peito com a mesma elegância que um lorde inglês enverga sua bengala arrumando a cartola com um simples toque, com o lado de fora do pé esquerdo arrastou a pelota por uns centímetros que pareceram metros tamanha a habilidade com que ele realizou a tarefa aparentemente simples, neste mesmo lance dois adversários chegaram com muita força para tomar-lhe o domínio da bola; com o mesmo pé esquerdo que dominara a bola segundos antes, ele abandonou a bola encarregando o direito de dominá-la e como que de calcanhar puxou a bola por detrás das pernas e deixou atônitos os dois viris marcadores enfiando um passe de chapa primoroso que foi resultado do primeiro gol do jogo, que lance! Eu lembro de ter lido as crônicas de um prestigiado colunista esportivo que disse que por mais craque que seja um jogador, ele não tem mais que quatro ou cinco minutos de lances geniais numa partida inteira, quando tem. Concordo e desconcordo. Se ele visse o treino do garoto aquele dia, certamente mudaria de opinião. Depois do gol senti que ele ficou mais solto em campo, lépido, era um jogador dotado de condições extraordinárias para a prática do esporte; fez cruzamentos com as duas pernas e se não me falta memória acho que o vi batendo falta com a direita; eu jurava que ele fosse canhoto. O jogador canhoto não engana que é destro, o canhoto é todo cheio de modos diferentes, é cheio de manhas. Suas qualidades extrapolavam às de um meia-armador ofensivo, de um avante e de um meio-de-campo. Era completo em quase todos os quesitos que eu avaliei, apenas não o vi cabecear. Sua visão de jogo era espetacular, ele jogava muito sem a bola o que é muito importante de se fazer com o futebol com poucos espaços como é praticado hoje em dia, se acaso estranhar o fato de ele jogar sem bola lhe adianto que não há nisso nenhuma novidade; Van Gogh pintava sem pincel e os quadros valem o que todos sabem, o estilo galante; ele penusiava a bola com a magia que um artesão manuseia o barro e faz sua obra-prima. Outra qualidade “sine qua non” para alguém que jogava como ele: sabia como poucos que vi jogar se sair das pancadas, em pelo menos três ocasiões o vi safar-se de voadoras criminosas, pulava das faltas com a agilidade de um felino. Passes com a esquerda e com a direita ele realizava com a mesma facilidade que uma fruta madura cai do pé. Os dribles eram insinuantes, alguns até inéditos; curtos e longos, quando vinha na corrida e quando tinha um oponente parado à sua frente; passava pelos zagueiros como um peixe atravessa por entre as águas. O que parecia espesso, ele tornava diáfano num piscar de olhos. Noutro momento do jogo, ainda no primeiro tempo, ele pegou a bola na linha de fundo e o auxílio para que ele pudesse realizar o passe não veio o que o obrigou a nos brindar a todos com uma jogada digna de um malabarista; na chegada do seu primeiro marcador ele prendeu a bola com os dois pés e ao mesmo tempo projetou o corpo para frente desviando-o do marcador que sem saber direito o que estava acontecendo viu a bola passar sobre sua cabeça trazida pelos dois pés que a prendia a questão de instantes. Essa arte, meio mágica meio moleque-peladeiro me fez lembrar de uma letra: “Parábola do homem comum/ roçando o céu/ um/ senhor chapéu!”, (a exclamação é apócrifa). Na seqüência da jogada ele, de trivela, fez um cruzamento perfeito na cabeça do centroavante que correndo, chutou com a cabeça, tanta foi a força do golpe na bola, dois a zero, a torcida anestesiada. O segundo tempo chegou e com ele a expectativa de que lances como estes, debilmente descritos aqui, se repetissem com o passar dos minutos, faltava o gol dele. Dizem que o mais difícil num jogo não é fazer o gol e sim criar a situação para que este aconteça, mas a torcida, o torcedor, lembra mesmo é de quem faz o gol, você, leitor paciente e amigo, (diria até mais paciente que amigo) que está aí defronte a estas palavras lembra-se da jogada que originou um gol memorável ou do próprio gol? O segundo tempo foi mais truncado e as jogadas não aconteceram como no primeiro. Os adversários estavam por já ressabiados com a fera, mas o menino era mesmo danado, para quebrar o gelo, ele recebeu uma bola na entrada da área, passou os dois pés sobre ela tão rápida e sincronizadamente que eu confundi o que era bola e o que era pé, com um deles (não deu para identificar qual foi) deu um sutil toque para frente deixando pra trás mais um marcador, quando deslizou sobre a grama, a bola criou um efeito inesperado; quicou num relevo do gramado, o lance acontecia do lado esquerdo, sua patada esquerda era extremamente potente, quando todos esperavam, inclusive o goleiro, que viesse um torpedo subatômico, eis que ele, por algum meio e como por encanto, deu um tapa tão de leve por debaixo da bola que estancou a correria dos que acompanhavam a jogada; esse simples, porém, inexplicável toque causou um efeito fantástico, o goleiro que esperava o torpedo havia se armado todo, como um pára-quedas, para fazer uma defesa rápida como que de reflexo, mas a bola, obediente como um míssil teleguiado, sobrevoou tão lenta e venenosamente sobre sua defesa e ele que, estático, preferiu, num último recurso,(o recurso dos vencidos) tentar arrancar a bola do gol com um golpe de vista inócuo, a bola desceu raspando o travessão e repousou nas redes lentamente, lance de gênio! Com a bola nos pés o garoto era mesmo o diabo, ou seria um deus? O que o diabrete fez naquele dia de céu azul como anil e nuvens brancas e baldias, em que as garotas sempre pouco afeitas a deter atenção neste esporte ficassem enternecidas, fagueiras, como se estivessem apreciando vitrinas ou fazendo compras com um cartão de crédito sem limites. Mas valia demais ver aquele espetáculo! Que ação! Que gana! Que arte! Que improviso! Que espírito! Que talento que era aquele menino! CAPÍTULO XIX A PACIÊNCIA A imprensa já o cobiçava como um garimpeiro cobiça o ouro, e ele era ouro puro. Logo que findou o show inesquecível coalhou-se o pequeno craque de repórteres por todos os lados dirigindo atenções apenas a ele, como se fosse um jogador de um esporte individual. Os microfones de rádios e emissoras de toda parte não o intimidavam, respondia a todas as perguntas pronta e gentilmente, as mesmas perguntas se repetiam por várias e cansativas vezes, mas ele tinha a paciência de um monge tibetano, eu não teria, e ainda nem chegara a imprensa internacional... Nessa altura Simetra já demonstrava claros sinais de fadiga, me pediu para ir comprar cigarros porque dizia que tinha vergonha de fazê-lo sozinha, vergonha de fumar, não, só de comprar. Fui. Chegando de volta ao hotel fui interpelado por um funcionário do clube que queria saber quem eu era e que relação tinha com o garoto-prodígio. Não achei pertinentes as suas inquirições e lhe dei uma resposta que não saiu em palavras, mas sim num grunhido igual a quando se ouve uma pergunta que não quer se responder e se responde para que quem perguntou perceba que não se quer responder. O funcionário do clube portava um rádio transmissor, depois da minha indelicadeza, ele imediatamente relatou ao seu superior da minha recusa em falar-lhe sobre o que havia perguntado, ao perceber que ele sacou do transmissor desacelerei o passo para saber com precisão com quem ele falava, mas a conversação voltava chiada, ele não fez questão de esconder que sabia que eu queria ouvir o diálogo. CAPÍTULO XX A ESTRATÉGIA E A DOR Uma semana depois que nos vimos pela primeira vez, voltamos a nos encontrar no flat onde o clube o havia instalado. Demonstrei a ele toda a sinceridade do mundo em minhas posições em relação ao seu comportamento dentro e fora de campo. Ele era muito dócil, não fez qualquer objeção e confessou-me que estava muito inseguro em relação às coisas que lhe estavam acontecendo tão repentinamente e colocando sua vida de ponta cabeça, ele se dispôs a aceitar todas as minhas decisões que muitas vezes podiam, lhe adiantei, ir de encontro dos seus interesses. O primeiro ato para levá-lo a ser um homem e um profissional de sucesso foi tomado rapidamente: convidei-o para que me mostrasse o carro que tinha na garagem. O carro, por influência e incoerência direta dos amigos, é o primeiro sinal de deslumbramento que um jogador comete ao receber os primeiros polpudos salários, descendo pelo elevador não lhe perguntei sobre qual era a marca e o modelo do carro, queria ver com os próprios olhos o que o meu sentido adiantava. Com seu jeito de garoto que senta na última cadeira da fileira na classe, ele abriu a porta do bólido e mostrou-me orgulhoso o interior do veículo; era lindo o carro. Um modelo conversível com capota rígida que se confundia com um sedan, lhe falei com dor no coração: “Quanto vale a máquina?”, “Uns setenta mil...”, falou-me como se fosse eu quem lhe tivesse dado o dinheiro para efetuar a compra. “Setenta mil..., dólares?”, interroguei eu coçando a cabeça. “... Sim...”. O sim foi cabisbaixo trêmulo vago e mudo, “Teremos de vendê-lo...”, falei isso para ele com revelada tristeza, era como o pai dizer para o filho que teria que ser vendido o trenzinho com que ele tanto sonhava, “Por quê?” Foi sua única e sôfrega pergunta. “Precisaremos de caixa para contratar um psicólogo um nutricionista e um fisioterapeuta”, falei, saindo subitamente do interior do veículo, para não ser tentado a mudar de idéia. “Eu não estou doente, para quê tudo isso?”, “Para que você possa dentro em breve realizar coisas importantes na sua vida; para que possa influir, lutar, brilhar, vencer, ser forte, conquistar! Acha isso uma boa proposta?”, ele suspirou detendo os olhos de cordeiro no volante da máquina. O leitor apressado conclui daqui que ele era um sujeito perdulário, um exibicionista. Não era. O gérmen externo que contamina as pessoas é mais perigoso e nocivo que o gérmen interno delas. “Sim, acho uma boa proposta claro, mas não sei... Não queria me desfazer do carro, fiquei umas duas semanas sem dormir quando o comprei de tanta ansiedade, era tudo que eu queria ter na vida, mas se o senhor achar que será melhor para mim, eu aceito, na verdade eu queria era ajudar algumas pessoas que precisam de mim, foi errado eu ter comprado o carro, mas você sabe como é...”, “Sei sim, eu entendo dessas coisas. Será uma decisão muito difícil, mas você não irá se arrepender confie em mim. Ah! E a esta lista acrescentemos dois ou três professores... Ou um que reúna os predicados de que precisaremos”, “Professores?”, me perguntou assustado, “Sim, professores. De inglês, de italiano e de espanhol”. Ele suspirou levemente, com os olhos de quem está prestes a começar uma maratona. Para a nossa sorte, Denver era um sujeito dócil, tão dócil como quem pede dinheiro emprestado, com a diferença de sua docilidade ser permanente. Outra pessoa que não tivesse essa qualidade dificilmente aceitaria aquela proposta. Descontadas as parcelas que faltavam, vendemos o carro. Ele ainda não havia instalado a família numa casa decente e já havia gastado uma fábula na compra de um supérfluo necessário. Filho benjamim entre os irmãos, ele era só por isso naturalmente mais enlevado. Conheci sua mãe. Conversamos sobre as qualidades dele e ela muito me falou da sua difusa personalidade; exagerou em alguns momentos, como é natural de uma mãe quando fala dum filho, na soma do seu entusiasmado relato, moldei nele um pelintra, ou algo próximo a um. Ela só não destacou sua rara inteligência. Ela me agradeceu pela iniciativa de convencê-lo a se desfazer do carro que já gerava comentários entre a família. Família, como todos sabem, é uma coisa muito delicada e a sua era grande, ele teria que ter muito jogo de cintura, e igual volume de dinheiro para agradar a todos. Com a contratação dos profissionais já mencionados, começamos a traçar, sempre em conjunto, as metas que teriam que ser alcançadas, nas reuniões que forcei para que fossem freqüentes, apontava o que eu achava estar errado em sua preparação; queria que ele treinasse mais, que se esforçasse um pouco além do que estava fazendo. Ele não era lá muito de sair, mas sempre tinha as festinhas patrocinadas pelos companheiros nos hotéis e casas noturnas que de quando em quando ele se deixava convencer e lá ia desfrutar dos prazeres e perigos da noite. Os jogos iam passando e o assédio aumentando por todos os lados, surgiu sua primeira convocação para a Seleção, era a senha que faltava para que seu nome explodisse de vez América adentro. O time que ele jogava não era assim um grande time, dos de massa, era de médio porte, mas já fazia um barulho danado por causa do novo fenômeno. Quanto a minha vida fui ajeitando dali arranjando daqui. Pedi demissão do Rachié Associados. O Razax Y8 do qual eu fiz algumas matérias tinha se tornado um sucesso mundial com grandes atletas fazendo uso dele e batendo recordes, alguns protestos ganhavam força na medida em que recordes iam sendo quebrados... A indenização do laboratório foi irrisória, mal deu para eu me empanturrar de felicidade. O segundo ato para transformar o garoto num sucesso absoluto, foi menos ousado, abrimos um escritório que cuidava de todos os seus interesses comerciais e pessoais. Meus conhecimentos jurídicos eram pífios, não sabia como lidar com passes, contratos, e todas as et cetera que advinham de administrar a carreira de um profissional do esporte, ainda mais com todas as brechas e interpretações que as leis permitem fica confuso saber manejar isso também. Um advogado amigo era permanentemente consultado para nos auxiliar. O mais importante para mim naquele momento foi saber que a equipe que cuidava do garoto estava sempre convergindo positivamente nas decisões. De início, recusamos alguns contratos. Para que ele usasse uma marca de chuteiras também recusamos porque não concordamos com os valores oferecidos, para aparecer na televisão envergando algum produto de marca famosa, ou mesmo os famigerados bonés, também. Era ainda muito prematuro, recusamos alguns convites para ele participar de campanhas publicitárias de caráter e conteúdo duvidoso, não podíamos expô-lo a nenhuma situação que julgássemos ser constrangedora e que estivesse na contramão de nossos princípios, umas outras empresas foram também contatadas, mas as respostas foram orgulhosamente recusadas, é assim mesmo, em muitas ocasiões as pessoas substituem o orgulho pela inteligência. Não nos demos por vencidos e continuamos também a selecionar os programas que ele poderia participar, aparições em mesas-redondas ele próprio pedia para não freqüentar, nada de programas apelativos, desses que põem os convidados em situações que beiram o burlesco. Suas aparições na televisão se restringiam a entrevistas e a programas absolutamente ligados aos jogos que seu clube iria fazer, nada de perguntar sobre a última namorada, sobre qual sua preferência musical, a casa humilde da mãe, a cor da cueca com que dormia, nada podia ser explorado pela impressa, se quisessem, (e eles queriam), eles mesmos teriam que procurar e achar por si próprios, nada de falar nada sobre a vida pessoal, nem um pio. As especulações eram naturais, mas nunca de fonte confiável. Todo esse cuidado e excessivo zelo tinham os seus motivos embasados no mais altos critérios, queríamos, e ele também, se não seria impossível viabilizar tamanha força para mantê-lo o mais distante possível da mídia, fazer dele não apenas um simples jogador de bola que ganha rios de dinheiro se deslumbra e esquece do tempo, queríamos fazer dele um homem admirado por seu conjunto, sua inteireza. Não que ele fosse como a célebre estátua da visão do profeta Daniel que tinha a cabeça de ouro bom, peito e braços de prata, ventre e coxas de cobre e pernas de ferro e argila. O trabalho seria imenso, mas prazeroso. CAPÍTULO XXI OS EMISSÁRIOS (Quele Victoire!) O estádio estava lotado naquela quente tarde de um álacre domingo, os ânimos quentes. Nas dependências das tribunas de honra havia quatro representantes vindos do estrangeiro com a missão de avaliar se tudo o que falavam do menino era realmente fatos ou apenas mais um factóide produzido com a ajuda da inebriante mistura entre a verve e o calor tropical dos brasileiros. O jogo valia pelas quartas-de-final de um campeonato que garantia vaga para um torneio ainda mais importante que este, era o jogo decisivo. No primeiro jogo ele não participou porque estava machucado e seu time perdeu por dois gols a zero, precisaria agora de pelo menos dois gols de diferença para ao menos levar a partida para ser decidida nos pênaltis. O estádio não estava tomado para ver o clube jogar, seu time não era de encher arquibancadas nem de quadras poli esportivas que dirá de um grande estádio; era o efeito Denver que começava a inflamar e trazer torcedores de outros times para ser testemunhas de espetáculos que fazia décadas não acontecia por essas plagas. O jogo começou descontraído porque o adversário não acreditava em hipótese alguma que pudesse ser surpreendido por um placar que ultrapassasse a marca de dois gols, e logo no primeiro ataque o time fez calar a voz de mais de setenta mil pessoas que torciam pelo time da casa e principalmente pelo mais novo e arrebatador fenômeno do esporte nacional, o 1 a 0 tornava ainda mais improvável a possibilidade de vitória do time do nosso menino prodígio, mas ele começou a jogar e dar espetáculo, como de costume. Denver sofreu uma falta violenta na entrada da área, ajeitou com delicadeza a redonda e num passe, com a velocidade de um relâmpago, expulsou-a do chão e a endereçou para o fundo das redes do goleiro inimigo que nem se mexeu. Estrondo de trovão nas arquibancadas, 1 a 1. No segundo tempo outra vez o adversário passara à frente no marcador, 2 a 1. Pareceu que aquele gol incendiou o garoto de tal modo que ele passou a correr e a orientar os seus companheiros de forma ainda mais insinuante, a tarefa parecia estar para todos, perdida, não para ele. Denver carregou a bola desde a linha de fundo e chutou forte de canhota quase sem ângulo, dois a dois. Aos vinte e cinco do segundo, invadiu a área driblando, passou pelo goleiro que se jogou aos seus pés e estufou as redes, a galera foi à loucura, 3 a 2. Aos trinta e cinco, um lance de rara beleza: ele recebeu a bola de costas para o gol amortecendo-a primeiro no peito e depois na coxa. Entrou na grande área fazendo embaixadas ora com a coxa ora com os pés, passou por três zagueiros dessa forma sem deixar a bola tocar o chão uma vez sequer, como se estivesse jogando futebol na gravidade zero da lua, ainda com ela sobre total controle jogou-a por sobre os ombros do goleiro que veio como um alucinado para cortar o lance, se livrou do último marcador que estava já embaixo das traves com um drible tão humilhante que este bateu a cabeça no poste, e empurrou a bola com displicência olhando para a torcida que, diferentemente alucinada, não acreditava no que seus olhos viam, 4 a 2. Quando tudo parecia já mais que perfeito ele recebeu a bola num contra-ataque fulminante e de fora da área disparou uma bomba indefensável de direita que acabou por liquidar a fatura, a torcida, sem acreditar no que via, esgoelava o nome dele sem parar num coro único e estrondoso, foi a glória e o triunfo total, pleno e absoluto! Os emissários franceses que foram ao estádio para avaliar as reais condições do nosso talentoso atleta faziam comentários esfuziantes, alguns deles diziam que nunca viram algo assim na vida toda, eles ficaram embasbacados com o que acabaram de presenciar. Quelle victoire! Quelle victoire! CAPÍTULO XXII SEM COMPARAÇÃO Para a maior rede de televisão do país ele deu a seguinte entrevista, depois do jogo, ainda no vestiário. Interrogado sobre as comparações inevitáveis com os eternos craques do passado: “Prefiro que não me comparem com ninguém. Há vários grandes jogadores atuando hoje no exterior e mesmo aqui no Brasil que eu nem chego perto. Não vou mentir, sei que estou me destacando, mas tudo isso está acontecendo a custo de muito esforço e dedicação, eu amo o que faço. Se você me perguntar, só há uma coisa que eu posso dizer que tenho maior que todos os outros jogadores; é o amor com que eu jogo; eu respiro e vivo futebol todas as vinte e quatro horas do dia, a bola e eu, somos um”. Os emissários estrangeiros já estavam coçando as mãos para oferecer uma proposta irrecusável para levá-lo embora para a Europa. Vetamos imediatamente qualquer negociação, seu contrato iria vencer nos próximos meses, decidimos que apenas iríamos negociá-lo após o fim dos dois campeonatos e principalmente da Copa do Mundo que se aproximava, ele era o principal artilheiro dos campeonatos inclusive pulverizando o recorde de gols dos dois, e conseqüentemente do semestre. A jóia tem que ser valorizada, quanto mais rara maior o valor e não havia jóia igual a ele vagando pelo mundo. Em conversas com o fisioterapeuta perguntei da possibilidade de ele ter um treinamento alternativo, mas que não obstante estivesse de acordo com os métodos de seu clube, ele me informou que sim, que poderia criar métodos alternativos que posteriormente iria conferir-lhe uma melhor performance aeróbica e anaeróbica. Tudo isso feito com todo o critério possível, alugamos, à socapa, uma chácara nas redondezas da cidade, lá preparamos toda uma série de treinamentos que iam desde cobranças incansáveis de falta e pênaltis, com um detalhe que lhe tornava a tarefa um pouco mais sofrida; a bola tinha um peso um pouco maior que as oficiais com que ele treinava, para bater pênaltis usava a bola oficial, para as faltas de longa e média distância a bola mais pesada e íamos intercalando o uso de uma e de outra até encontrarmos a equivalência pretendida. Sua rotina foi totalmente modificada; horários para acordar e dormir, nada de noites de farra, alimentação controlada. E muita leitura. Não era difícil convencê-lo a ler autores que nem em sonho ouvira falar, e ele surpreendentemente se apegava à literatura e as outras de interesse geral com um carinho que me deixou tocado, os autores eram os mais diversos possíveis, mas ele confessou-me que se identificava mais com autores nacionais cuja linguagem era-lhe familiar, apreciou também alguns ingleses, a meta que ele se impôs era de três livros por mês: invariavelmente superava, verdade é que num curto período o menino já lia as crases todas e dizia orgulhoso de si: “Iremos aa escola hoje?”, mais: “Vocês têm de levar esse problema aas autoridades competentes”, e por aí ia. Aprendeu por si só que a leitura é um prazer que pode ser estimulado conforme se cresce o conhecimento. Tratar da sua mente era uma de nossas maiores preocupações, e ele colaborava prontamente, nunca resmungou de nada, aceitava e dava até palpites para poder melhorar cada vez mais seu desempenho, o que nos deixava muito orgulhosos, a bem da verdade ele se superava, não havia um dia para acordar e dizer-nos que estava cansado e que não iria treinar, acordava cedo e quando não tinha treino no clube programávamos os nossos próprios, tudo em conjunto com a direção do clube. Ele se empolgava com seus próprios resultados, sua resistência aumentou a níveis salutares e sua precisão se tornou quase mortal, batia por volta de duzentas faltas todos os dias; cento e cinqüenta com a perna direita, e cinqüenta com a esquerda, a direita carecia de mais acertos. Os pênaltis eram mais de cem todos os dias também, e seu índice de acertos estava na casa dos noventa e oito por cento, mas ele queria mais, nos dizia que só sossegava quando alcançasse os cem por cento; “Meus limites não têm fim”, era sua frase preferida, mas apenas dita a nós, nada de falar isso para a imprensa, podia ser mal interpretado. Enquanto ele entregava a alma aos treinamentos que pareciam até para nós estafantes, seus companheiros se divertiam nos bares e boates. Nas festas de carnaval, (as preferidas dos boleiros) ele internava-se na chácara e entregava-se profundamente a treinar, treinar e treinar, todos esses trabalhos eram muitas das vezes solitários, mas ele direcionava toda a sua força para estar degraus à frente dos adversários, e isso para ser conseguido, só a custa de muita obstinação e sacrifício. Ele já se tornara célebre nos meios de comunicação, o fascínio talvez aumentasse grandemente porque ele não dava bola para quem o bajulava, suas entrevistas eram sempre concisas e objetivas, o que deixava alguns repórteres esportivos desconcertados, pois estavam desacostumados a falar com jogadores bem articulados. Seu nome encabeçava listas para participar de festas, promoções e eventos. Chegavam ao escritório convites aos borbotões por semana, eram festas por todo o país, algumas revistas e jornais mais sensacionalistas anunciavam sua presença nestes eventos, mas ele nunca aparecia... CAPÍTULO XXIII DESENHO ANIMADO Quebrando o silêncio para uma repórter que lhe perguntou sobre seu comportamento recluso ele disse que preferia ficar em casa a participar de festas e coisas assim, dizia que não gostava de muito barulho e festas definitivamente não faziam a sua cabeça. “Minha vida é diferente da de outros colegas meus, cada um tem seu próprio estilo, treino durante horas o dia inteiro e ao final dele não tenho mais pique para ficar na rua, além do mais tenho de estudar, essas coisas...”. Foi a primeira vez que ele falou, ainda que de modo sucinto, sobre sua vida pessoal, mas foi como um recado: me deixem em paz. A final daquele campeonato do jogo dos cinco a dois, chegou e foi decidida longe de casa, no primeiro jogo 1 a 1 foi um resultado positivo em face da má atuação de todo o time, e até dele mesmo. O treinamento intensivo talvez fosse uma forma encontrada para que ele não cometesse o erro de muitos grandes jogadores que surgem e logo caem no mais completo ostracismo: a inconstância nos jogos, esses jogadores jogam uma partida excelente e ficam dez sem fazer nada, como se fosse uma coisa combinada, com ele não acontecia isso, esse jogo foi uma exceção raríssima. A tensão era muito grande antes do início da peleja, havia rumores na imprensa de que ele já tinha sido vendido para a Europa, nós nos divertíamos com isso, ele estava também um tanto perturbado porque sua avó não gozava de boa saúde; encontrava-se internada em estado grave. Não houve promessas, mas ele nos garantiu que a vitória não iria lhe escapar de modo algum, nós e todo o time confiávamos nele, com sua fibra e sua garra ele contagiava a todos facilmente. O primeiro tempo terminou em zero a zero, resultado que dava o título ao adversário, no segundo tempo com o clima de já ganhou prestes a ganhar vida na boca dos torcedores eis que ele mostrou porque vinte e um clubes de toda a Europa haviam feito propostas fabulosas pelo seu talento. Prestem muita atenção no que ele fez: Arrancando com a bola dominada no meio campo ele veio tabelando e envolvendo o inimigo; na intermediária livrou-se de um zagueiro que tentou pará-lo com um carrinho desleal, invadiu a área e ladeado pelos dois últimos zagueiros que o vinham acompanhando desde a arrancada ele criou um lance que não se vê e não se poderia imaginar nem em animações de computação gráfica: bruscamente ele parou a bola estancando a corrida; os dois zagueiros continuaram correndo. Quando perceberam que corriam sozinhos voltaram imediatamente; neste exato instante, Denver, por elevação, jogou a bola sobre os dois atônitos zagueiros que tornaram a voltar na direção do gol no que abalroaram o goleiro e a bola entrou lentamente no gol vazio. Toda a narração parece longa e incoerente com a realidade da jogada, mas não há outra forma de fazê-la e por isso o narrador pede desculpas; desculpas desnecessárias, porque o talento dele não pode ser traduzido em simples palavras, ainda que elas tenham temperatura. A torcida não entendeu bem o que aconteceu e aquele 1 a 0 entupiu noventa mil gargantas. Fim de jogo fim de festa, foi duro para ele explicar como havia feito a pintura, foram três longas horas de cansativas entrevistas para todos os órgãos de comunicação do país. O que o irritava, ele nos contava posteriormente, era ter de explicar como fizera o gol ou a jogada e, já com grande influência literária, perguntava-nos se quando Da Vinci criava obras-primas como a La Gioconda, era obrigado a revelar os métodos e as técnicas que empregava, ríamos à beça. Se essas palavras saíssem da boca de qualquer outra pessoa poderia parecer presunção, mas ele falava de modo tão ingênuo e ínclito que não cabia imaginar petulância nem atrevimento. Outra tarefa espinhosa que ele tinha pela frente era lidar com os elogios, pois, de um ataque podemos nos defender, mas de um elogio... O que mais impressionava é que ele ia fazendo essas coisas com uma naturalidade de mãe; como se fosse possível realizar coisas tais. Não sei se me explico. Acho até que comecei a sonhar com os sonhos dele. CAPÍTULO XXIV A ESTRÉIA E A INQUISIÇÃO Um mês antes, seu primeiro jogo pela Seleção foi um acontecimento, um divisor de águas na sua curta e prolífica carreira. O jogo foi contra um dos maiores rivais da Seleção e o estádio, como estava se tornando normal em jogos em que ele estava presente, tomado por uma indócil torcida munida de muita esperança de ver se repetir jogadas que nem na ficção ou em pés alheios eles poderiam sonhar. Ele começou jogando, envergava nas costas o mais célebre número que qualquer outro esporte jamais conseguiu celebrizar. Todos os críticos estavam em polvorosa, queriam saber se ele iria fazer com a camisa da Seleção o mesmo que fazia com a camisa do clube que defendia. Há um preconceito natural de que um jogador faça milagres no time e fracasse na Seleção, em suas declarações ele se mostrava indiferente às expectativas, para ele não fazia diferença nenhuma jogar aqui ou acolá, com esta camisa ou com aquela camisa, e foi o que ele fez, não tomou conhecimento da tradição e do respeito que a outra seleção impunha na do Brasil. O gol mais fantástico que eu vi na minha vida tinha sido um feito no distante ano de 1986, no Mundial do México. Acreditava que seria impossível alguém fazer algo mais maravilhoso que aquilo em termos de gol. Enganei-me. Recebendo uma bola em posição duvidosa, Denver titubeou se a marcação do árbitro havia sido feita ou não, como era muito atento, bem antes que os outros jogadores se apercebessem que não havia marcação de impedimento, ele arrancou em disparada para cima do goleiro, desviou a bola dele com uma ginga de mestre, mas a bola correu mais do que ele esperava; o drible fora muito longo, ele correu a toda velocidade e quando a bola estava exatamente sobre a linha de fundo ele perdeu totalmente o ângulo para tentar empurrar para as redes a bola no gol solitário; num átimo digno de um mago dos contos medievais, ele se aproveitou da velocidade da bola e com o lado de fora do pé esquerdo tocou-a como que de rosca e a redonda, como num compasso, fez uma meialua extraordinária, um efeito semelhante ao que um ás da sinuca consegue fazer na mesa, e o goleiro que se recuperara e voltara em desespero para o gol escorregou no contra pé e viu, impotente, a bola, fazendo giros contínuos em seu próprio eixo, suavemente adentrar em parafuso seu gol vazio. Parecia efeito especial de filmes de Hollywood, nunca se produziu em matéria de gol nada igual. Após este lance, alguns, num sinal de delírio compreensível, chegaram a dizer que se ele vivesse nos tempos da inquisição seria acusado de bruxaria. A imprensa não sabia mais como tratá-lo: gênio, mágico, fenômeno. Todos os adjetivos possíveis iam-se esgotando a medida que o tempo passava e ele ia ficando, como um bom tinto francês, cada vez melhor. Esse lance criou uma impressão tão forte em todos os que o estavam acompanhando que queríamos saber de onde ele tirava dos pés e da cabeça inspiração para protagonizar lances tão sensacionais, mas ele apenas se limitava a dizer que era fruto de dedicação aliado a muito treino. Mentira. Existem outros jogadores que se passarem os dois próximos séculos se dedicando a treinos sem fim, nunca conseguirão fazer o que ele andava fazendo. Sua modéstia não era falsa, era dele mesmo diminuir o tamanho de sua arte e isso não foi, de modo algum, imposto pela equipe que o auxiliava. Lances como este não estavam no organograma, era seu próprio talento se manifestando para o mundo. Os dois campeonatos foram vencidos pelo seu time e ele ganhou a Bola de Ouro como melhor jogador, faturou o prêmio como revelação e como artilheiro, todos os outros que eram oferecidos pela confederação ele ganhou, até o fair play teve como endereço a sua residência, neste quesito ele também era nota dez, ele não reclamava das marcações dos árbitros nem quando ficava patente a má-fé desses homens de preto, sempre execrados pelas torcidas, cartão vermelho? Ele não sabia o que era. Amarelo tomou alguns porque o homem de preto, vez por outra, o apoquentava com essa maldade. Ele não cometia faltas de jeito nenhum, não servia, porém, para ser o capitão da equipe simplesmente porque não falava em campo, coisa que um bom capitão tem de fazer de toda forma, ele era um líder natural dentro de campo, o adorno da braçadeira não lhe fazia a menor falta. Será que este capítulo explica o outro em que fiquei em débito? CAPÍTULO XXV O LOGRO Ao fim do campeonato precisávamos angariar fundos, se quiséssemos mantê-lo no clube ou ao menos no país, não seria tarefa fácil. Simetra aguardava-me ansiosamente na ante-sala do escritório, precisava falar-lhe sobre os últimos acontecimentos: ela estava especialmente linda naquele dia; vestido claro, penteado novo e outros detalhes que omito aqui por obra de uma coisa que me ocorreu agora: eis a vantagem dos livros sobre os filmes! Num filme vê-se uma linda mulher descer uns degraus segurando um leque e um olhar sensual: tem data de validade, passam-se os anos e a mulher não estará tão elegante quando da época da filmagem, pois a moda muda e é muda. Quanto a Simetra, continuará elegante perpetuamente porque quem desenhará o corte do vestido, quem irá fazer o penteado ao seu gosto será você leitor, que não tem prazo de validade nenhum. Saneta se apaixonou por um suíço que vivia há muitos anos no Brasil e foi passar as festividades de fim de ano na terra de Piaget. Falamos um longo tempo sobre tudo o que havia acontecido nos últimos tempos e revelei-lhe minha intenção de ir embora e entregar o garoto para uma empresa de marketing esportivo, “Você já comentou isso com ele?”, perguntou-me Simetra num tom preocupado, “Ainda não, e é por isso que a chamei aqui, sabe Simetra, as coisas estão ficando ‘pesadas’, tenho que lhe confessar que estou perdendo as rédeas da situação, todos a todo o momento querem falar com ele, veio até uma rede de televisão da Indonésia solicitar exclusivas dele, você sabia que existe futebol na Indonésia? Eu tenho quase certeza de que não existe, mas eu estou ficando com medo, a coisa está crescendo muito além das nossas possibilidades, eu não imaginava que a repercussão dele iria ganhar toda essa aura de magia... De indignação também, porque ele não fala nada, apenas joga e treina, sabia que os repórteres andam o vigiando para saber os mais picantes detalhes de sua vida particular? Por certo você já tomou conhecimento do que alguns primos dele andaram fazendo e o estardalhaço que isso criou; é transtorno atrás de transtorno, não estou conseguindo segurar essa onda não, andam me cobrando um monte de coisas, mas você sabe da minha candura, até hoje tudo o que lhe pedi foi para que autografasse uma camisa que eu dei para a filha do meu vizinho, ninguém sabe que eu trabalho para ele, alguns, é verdade, estranham que eu esteja viajando muito, mas não dou maiores informações, não quero de modo algum que eles descubram que eu estou fazendo o que faço, o que é que você me diz, afinal, foi você quem me meteu nisso tudo...”. Simetra me acompanhou atentamente, e quando ela fazia isso uma onda de calor percorria a minha face e todo meu peito, o fascínio que essa moça exercia sobre mim era um algo que eu não conseguia explicar. “Eu acho que você tem de fazer o que lhe convém, se acha que não dá mais, não faça. Eu vivo lhe dizendo isso afinal, mas deixá-lo sozinho nas garras desses lobos vai ser muito triste... O que pensa que poderia ser feito para que a mudança fosse menos penosa possível?” “Olha Simetra, a primeira coisa que temos que fazer é viabilizar fundos para que ele não deixe o país porque é ainda muito prematuro, e talvez isso não faça bem para ele, se houvesse um meio de angariarmos fundos para comprar o seu passe...” “Ei!”, interrompeu Simetra sobressaltada, e aquele seu amigo rico, ele não poderia ajudar?”, “Não sei Simetra, acho que...”, “Não sei Simetra! Não sei Simetra! Você não acha nada, vamos lá falar com ele!”. Falar com o Dr. Rutra não era tão fácil assim como ela imaginava que fosse, os meus contatos com ele se resumiram a alguns breves telefonemas, mas era possível que ele se interessasse pela proposta; ele gostava era de dinheiro, e poderia ganhar muito se aceitasse depositar na conta do clube uma certa quantia requerida. Liguei para o doutor Rutra, mas não obtive sucesso na primeira empreitada, dois dias depois ele agendou comigo o que chamava de “reunião particular para um amigo”, gente importante é cheia de excentricidades desta natureza. O décimo oitavo andar do prédio estava asseado como da outra vez em que lá estive. Fomos, eu e Simetra, muito bem recebidos pela bela Ambrosinilda, naquela tarde ela estava particularmente mais bonita, com um penteado diferente quase que não a reconheci, nos atendeu com a mesma educação de outrora, porém um tanto mais contida; a presença de Simetra a inibiu de produzir maiores simpatias. Desta vez não esperei tanto tempo para ser atendido, o doutor Rutra despachou um homem que usava um capote já fora da moda e nos convidou a entrar em sua sala repleta de preciosidades. “Simetra, este é o doutor Rutra, doutor Rutra, esta é minha amável amiga Simetra”, ela me olhou de quina, censurando o “amável”. Após os cumprimentos formais e recíprocos o doutor Rutra começou: “Muito bem, o que traz aqui os meus dois amáveis amigos?”, ele fez troça com o “amáveis”, desempenhando bem o papel do homem astuto que era, percebeu a leve censura da qual eu fora vítima, a este momento flagrei os olhos de Simetra brilharem ante todas as preciosidades, algo que eu custei a compreender de modo que ela não era de se deslumbrar com essas coisas, “Sabe doutor Rutra...” Contei a ele tudo que estava acontecendo, que era o assessor de Denver e toda a ladainha que estava de cor e salteado na ponta da língua, a ponta da língua que, aliás, é o maior órgão do corpo humano, tudo cabe nela. Ele a ouviu como que aparvalhado, uns jornais da semana anterior que estavam sobre sua mesa traziam na foto de capa o próprio Denver que sorria feliz por mais um gol e mais uma vitória. Suas ressalvas foram muito contundentes até, acho mesmo que ele duvidou de que conhecíamos Denver e pudéssemos estar ali para lográ-lo de alguma forma, como velhacos oportunistas, mas essas foram as minhas impressões. Nunca é saudável querer saber o que se passa na cabeça de outra pessoa, é uma tarefa danosa, lembro uma ocasião em que vi uma pessoa chorando lágrimas de sangue e tinha a certeza que ela chorava por um motivo doloroso e óbvio e, todavia, o que se passava em sua cabeça era algo dignamente impensável por mim e todos os outros, eu por minha vez, que mostrei, naquela mesma ocasião, na minha intimidade absolutamente impenetrável, reflexos que causaram interpretações danosas por alguém que eu tinha muita estima e que não obstante foi tola por querer fazer traduções da minha mente. Enquanto eu falava, o doutor Rutra simplesmente fitava longamente o rosto de Simetra, que, ao meu ver, ou se fez dissimulada ou ignorou a atitude inconveniente do meu amigo, mas as surpresas se encontram onde não as esperamos, e por um momento senti que os atos de cordialidade entre aqueles dois ilustres desconhecidos extrapolavam os limites da simpatia, os olhares sonoros, pareceram-me, ao fim da audiência, recíprocos. O doutor Rutra pediu para conhecer o garoto, falei que teríamos de agendar com ele; por dentro eu gargalhava sobejamente, o doutor Rutra tinha de esperar a agenda de alguém! Eu me deliciava com essa possibilidade, era como se ele tivesse que esperar por mim por longas e famintas horas, como eu me diverti! Findada a curta reunião me despedi de Ambrosinilda com muita vontade de pedir-lhe o número do telefone particular, acho que fui movido mais pela vontade de causar ciúmes em Simetra do que propriamente conversar com aquela ninfeta de olhos açucarados, mas, a idéia e o ciúme, ficaram encerrados na sala do doutor Rutra, eu tinha o horrível hábito de pensar numa coisa enquanto ainda estava tratando doutra (não procure em dicionários, doutra é uma palavra inútil inventada por mim), talvez o doutor Rutra fizesse melhor uso do ciúme e da idéia. CAPÍTULO XXVI A BRIGA Tentei convencer Simetra a ir jantar comigo, eram quase dezoito horas, o lusco-fusco aparecia tímido, o clima quente contribuía para que ela usasse um generoso decote; seus ombros nus despertavam-me suspiros incontidos, tão difíceis de ocultar quanto uma tosse. Sua elegância natural quando auxiliada por artifícios que para qualquer outra mulher poderia passar despercebidos, eram-lhe acentuados enormemente; a cor da sua pele tinha um quê de raro, não era nem muita clara nem muito escura; a cor metálica do bronze era a mais próxima acertadamente. Os cabelos, igualmente metálicos, chegavam-lhe até o meio das costas e moldavam, logo abaixo da testa, um sinuoso pega-rapaz que ela fazia questão de conservar. Os olhos grandes mudavam de cor sob a influência da emoção, sofriam os efeitos do mimetismo; azul-turquesa quando nervosa, verde sutil e indefinível quando calma e sorridente, eles continham o mapa que conduzia ao seu ser, eram também inquietos e penetrantes, como os de uma coruja mal-educada, eu queria que eles fossem melífluos, mas eram devaneios do meu espírito inflamado pela perturbação da sua presença. O rosto suave e delgado expressava constante segurança, os dentes alvos e assimétricos eram expostos com calma freqüência, seu sorriso ausente roubava-lhe uma nesga de simpatia. Até seu andar era elegante; lento e compassado, não abusava de saltos altos preferindo os rasos e com isso não fazia como algumas mulheres que se equilibram com uma habilidade inconsciente em plataformas de alturas estonteantes; raramente usava calças. Toda essa conjunção contribuía para um vagar espontâneo e majestoso, como é próprio das aves de grande porte. Fisicamente, Simetra era assim. De espírito, era uma pessoa de temperamento forte e de muita personalidade. Desde muito cedo se dedicara, com ardor invulgar, ao estudo da medicina, curso normalmente freqüentado pela elite social da qual ela própria não pertencia, não desperdiçava seu tempo com divagações sobre “as necessidades e as éticas da medicina”, que, devendo ser vário, é escasso; investigava-os atentamente, a premissa antes da conseqüência, o que vem depois antes da conclusão, como acontece com pessoas de grandes dotes intelectuais. Sentamos à mesa de uma sofisticada sorveteria que tinha uma bela decoração em tons pastel, o barulho e a algazarra de um ônibus escolar que passou enquanto entrávamos causou-nos um estranho eco. Ela pediu o seu sorvete preferido, de pistache. Simetra gostava de tudo que fosse verde, não abandonava o branco que a profissão exigia e usava o verde porque o CRM por certo coibiria tal ação, a cor do sorvete deveria ser para ela mais saboroso do que a iguaria com que era confeccionado. Um telão exibia as imagens de um canal a cabo com as últimas notícias do esporte. Naquele mesmo dia, Denver fizera um jogo importante e o resultado era exibido ali em primeira mão para nós, os comentaristas falavam entusiasticamente sobre seus feitos nesta partida, comentamos juntos eu e Simetra o que é que ele tinha aprontado dessa vez. Logo as imagens substituíram os largos elogios a ele feitos e arrancou de todos que saboreavam sorvetes e acepipes exclamações e urros sensacionais, sua popularidade já se tornara consolidada, vamos ao que nos revelou a imagem. A jogada foi aparentemente simples, um cruzamento da linha de fundo e um gol de cabeça, nada de mais. Apenas mais um gol de cabeça. Mas o diferencial que não reparamos era como ele havia cabeceado. Quando a bola vinha em sua direção ele dividiu espaço na pequena área com o goleiro; quando Denver ameaçou cabecear, o goleiro se jogou ao chão como que tentando acertar o lado que a bola iria, acontece que ele a reteve na cabeça, isso mesmo! A reteve na cabeça por um milésimo de segundo e quando viu o goleiro desmantelando-se no solo empurrou a bola que estava como que colada no seu cocuruto para o encontro comum das redes. Estava de fato ficando perigosa aquela brincadeira, ele reinventava o futebol de modo tão natural e simples que os outros não conseguiam entender, a sua compreensão de ver futebol era diferente de outros, para ele era possível operar esses milagres com extrema facilidade, pois a sua aptidão natural o colocava como que no panteão dos grandes gênios da bola, ele equilibrava com extremo talento uma mistura que não costuma dar muito resultado positivo; preciosismo com eficiência. “Como é que ele faz isso?!”, irrompeu Simetra com a testa sensivelmente vincada, tamanha a admiração que ela teve ao rever o lance, “Talvez nem ele saiba, esse garoto, tenho certeza, não é daqui não..., mas, mudando um pouco de assunto... Como ele se chama...?”, “Ele quem?”, me respondeu assustada como se eu lhe tivesse dito uma ofensa, “O seu mais novo namorado...”, “Você não tem jeito mesmo! É Adriano... É médico também...”, “Adriano, nome de um bom Porto”, falei-lhe detendo o olhar na minha taça que havia derretido, como se minha visão fosse de raios-X, como a do super-homem. “Adriano Rogério e ele é melhor que um Porto” riu ela sem se dar conta do meu olhar, “Odeio gente que usa nome e prenome!”, “Não adianta, você não muda mesmo! Será que vai ser assim por toda vida?”, “... In my life... l love you more”, cantei-lhe com olhos pidões. “Essa música é muito triste, me traz lembranças muito ruins... Acho que precisamos reavaliar a nossa situação, ou melhor, a sua. A minha está resolvida e sempre esteve”. Falou-me perdendo a vontade do seu pistache, “Não há o que ser avaliado, Simetra, aliás, a culpa é minha, o certo mesmo seria eu não mais procurá-la, porque isso se torna uma ferida que não sara nunca; te vejo, volta tudo de novo, eu queria ser um tipo capaz de suportar isso, mas tudo bem, tudo bem, dizem que tudo passa e tudo passará, mas neste caso acho que não vai ser assim não, enfim, enfim, enfim é a melhor palavra para definir o que fizemos de nossas próprias vidas; não deu enfim...”, larguei sobre a mesa duas notas de dinheiro para pagar a sobremesa e saí de sua doce companhia, ela me seguiu com olhos azuis, escondeu atrás das orelhas umas mechas de cabelo, baixou a cabeça e recolheu as mãos para o colo. Daquele dia em diante tomei uma atitude drástica em relação a ela e a mim mesmo; não mais iria procurá-la para falar sobre nada nem mesmo do Denver, para mim estava tudo acabado, decisão que eu já deveria ter tomado há alguns anos, me doeu, mas por fim tomei. Quando pensei que tinha vencido, recuei até a mesa: “O que há entre mim e você?” “Entre eu e você nunca existiu nada...”. Só faltava eu dizer pra ela, “tudo bem, sinhá não pede, sinhá manda”, como diziam os escravos. Foi a gota d’água. CAPÍTULO XXVII O SENHOR DAS PALAVRAS E A PALAVRA DO SENHOR Segui pela alameda extraindo da atmosfera o aroma dumas aléias e a esperança de encontrar rapidamente um táxi que pudesse levar-me dali e lá deixar as minhas mágoas. Como profilaxia, disse a mim mesmo que era exagero estar sofrendo daquele jeito, convenci-me de que era muito barulho por nada. Um táxi rapidamente chegou e me acolheu, como chega nos filmes. Passei o dorso da mão por todo o rosto num sinal de fadiga e o motorista do táxi, que são em sua maioria analistas do asfalto, logo me perguntou o que me havia acontecido, desconversei, mas ele num gesto atrevido de invasão, interrogou-me se era mulher o real motivo do meu terrível estado. Parecia que as iniciais do nome dela estavam estampadas na minha cara. “Tu sabe o que os homens costumam fazer para destruir ar mulere?”, perguntou-me o chofer cerrando as mãos no volante com muita força, ele parecia excitado, como se estivesse vindo ou aguardando algum encontro amoroso, “Que a sorte dele tenha sido, ou seja, melhor que a minha”, resmunguei de mim para mim. “Não sei, chamam-na de minha querida, dizem que as amam, et cetera”. Ele sorriu: “E é?”, como se eu lhe tivesse contando uma anedota infame sobre portugueses ou minorias discriminadas, “É o melhor jeito de acabar com as mulheres!”, o taxista tinha um forte sotaque nordestino, um verdadeiro e digno acento na voz, o que me animou a puxar mais conversa com ele, pelos adesivos que estavam colados nas portas, o táxi não era próprio, “Como estão as coisas na praça? Os assaltos não o intimidam?”, perguntei-lhe. “Nhá pois! Mas a gente não pode ingeitar os serviços que aparecem pra gente fazer né mermo? A mulé é que fica escumando lá em casa, mas se eu não trabalhar quem é que leva o feijão e o leite pra casa?”, talvez o seu ‘ingeitar’(não sei se uma palavra como essa que não existe se escreve com g ou com j) sugerisse ‘rejeitar’ e a exclamação ‘nhá pois’ se exprimisse por ‘verdade, tem razão!’, até aí tudo bem, porém, tomei a liberdade e lhe fiz uma breve correção: “Ninguém ‘escuma’ de raiva e sim ‘espuma’ de raiva”, ele me contradisse, falou que tinha certeza que o termo ‘escuma’ existia sim senhor e que ele estava certo. Quis contra-argumentar, insisti com ele que a palavra não existia. Por fim, acabei consentindo mesmo que contrariado, ele pediu para que eu ‘procurasse saber’, ri por dentro, ignorei sua ignorância: “Já fui assaltado quatro vezes, sem contar as vezes da mesa...”, comentei, “E foi, foi? Se fosse na minha terra esses cabras levava uma peixeirada que ia ter que botar remédio com uma pá!”, respondeu-me. Gostava de conversar com pessoas de outras regiões, a mutação da língua me fazia lembrar do quanto é rica a cultura do país, esquecemos a arenga por causa da palavra e falamos sobre amenidades, proibi-lhe apenas de falar sobre mulheres. A saturação fez a proibição. Amarrei com ele um compromisso, anotei seu telefone e ele acabou por se tornar o chofer oficial de nossa equipe. Diferentemente dos filmes, paguei a corrida com mais de uma nota, e recebi o troco. Como não acontece nos filmes. Quando cheguei a casa estava exausto, o dia fora-me estressante. Deitei-me na cama e logo o cansaço das pernas subiu para a cabeça o que me fez querer adormecer rapidamente, antes, porém, fui até a estante onde nalgum lugar dela se escondia o Aurélio (nome com as cinco vogais!) que fui consultar, por via das dúvidas, posto que o chofer me falara com muita convicção, surpresa: a tal da ‘escuma’ existia e era é sinônimo de espuma e, portanto sua ‘mulé’ poderia ficar ‘escumando’ sim! O ignorante era eu. Eu, que imaginava que o chofer fosse capaz de escrever feijão com g. O nosso léxico nos prega peças que as pesquisas fazem se tornar clara com o tempo; da mesma forma que se escreve ‘aspecto’ (a forma mais conhecida) para exprimir qualidade e/ou característica de algo e/ou de alguém, se escreve ‘aspeto’ que tem o mesmo sentido do primeiro substantivo aqui citado e apenas se distingue por suprimir um c que por sinal é mudo e já daí revela sua inutilidade. Por essas e outras, gozo (e descoso também) da opinião do maior de todos os literatos tupiniquins que apregoava a supremacia do algarismo sobre o alfabeto, dizia ele que algumas letras não eram mais do que “trapalhices caligráficas”, teremos que fazer-lhe uma vênia neste quesito, na sua dissertação ele foi mais longe e ousou escrever interrogando: que serviços diversos prestam o d e o t de modo que os dois têm quase o mesmo som. O mesmo ele falava do b e do p, o mesmo do s, do c e do z, o mesmo também do k e do g, e por aí afora. Aos algarismos ele reservou melhor sorte: veja os algarismos, não há dois que façam o mesmo ofício; 4 é 4, e 7 é 7, e admire a beleza com que um 4 e um 7 formam esta coisa que se exprime por 11. Agora dobre 11 e terá 22; multiplique por igual número e dá 484, mas, prosseguia ele, onde a perfeição era maior era no emprego do zero, o valor do zero é em si mesmo, nada; mas o ofício deste sinal negativo é justamente aumentar. Um 5 sozinho é um 5; ponha-lhe dois 00, é 500. Assim o que não vale nada faz valer muito, coisa que não fazem as letras dobradas, apregoando aí a limitação do alfabeto, ele aprovava da mesma forma com um p como com dois pp. Na minha obliqua intimidade atentei me rebelar, me insurgir contra a resolução do grande mestre, que se tivesse nascido inglês teria outro respeito, se ele ainda estivesse por aqui iria sugerir e debater com ele algumas doces armadilhas que a Inculta & Bela muitas vezes nos deixa cair e encabular; não há armadilhas nos algarismos. 1 é 1 sempre. Mas a nem sempre é a. Tomemos como exemplo saber que quando dizemos ‘pois não’ queremos dizer ‘sim’ e quando dizemos ou escrevemos ‘pois sim’ queremos dizer ‘não’, quando olvido não me refiro ao aparelho auditivo e sim esqueço algo, com l estamos na verdade querendo esquecer. Coisa igual os algarismos não são capazes de encenar, daí a humilde discordância da supremacia de um sobre o outro. Adormeci, com uma maçã mordida e escurecida pela oxidação, ao som de um programa de televisão que tinha como entrevistada uma velha historiadora que falava de modo tão íntimo das figuras históricas da Família Imperial brasileira que parecia ser-lhe todos eles seus contemporâneos. Dormi silenciosamente. CAPÍTULO XXVIII CALMA COM ÂNSIA (Servil...livres) Conversei com Denver um pouco antes de irmos para mais uma sessão de treinamentos e testes na chácara da qual a imprensa toda já sabia o endereço, no escritório falei-lhe sobre minhas pretensões em relação a deixá-lo por conta de uma empresa profissional. Denver merecia tudo o que estava acontecendo na sua vida até ali, fadada ao sucesso absoluto, era um garoto muito aplicado e por vezes se superava em vários quesitos; nos idiomas era como um autodidata, aprendia com uma rapidez espantosa: “Daqui a quatro meses lerei Dante, Cervantes e Dickens no original”, me garantia ele orgulhoso dando mostras de que suas predileções literárias ficaram incrementadas. A afeição dele pela leitura havia ficado tão íntima e extremosa que causou-nos um certo impacto, cogitei pegar carona nos estudos de línguas que sugeri que aprendesse, mas a minha preguiça, amiga de todas as horas, me impediu de fazer maiores progressos na cogitação que, não sendo autônoma, carece de outros impulsos. “Lembra daquela marca que recusou o patrocínio quando você os contatou pela primeira vez?”. “Lembro”. Falei-lhe triste. “Pois aqui está a proposta que eles nos ofereceram!” Falou radiante Denver. Era uma proposta muito mais interessante que todas as outras que ele havia recebido, mas ainda não estava no que eu entendia que fosse a ‘perfeita’, faltava alguma coisa. “Isso já poderá ser decidido pela empresa...”. “Não!, me interrompeu ele furioso, de jeito nenhum! É você quem vai mediar o contrato comigo! Você me ajudou muito até agora, não pode desistir e além do mais teremos que conversar sobre os seus ganhos, quer ver... Me leva onde você mora.” “O quê? Levar onde?”. “Onde você mora. Eu quero ver onde é”. Ele foi logo se levantando e me puxando pelo braço, não tive nem tempo de reagir ante a sua agilidade, sem querer saber se eu queria ou não levá-lo até a minha humilde moradia ele me pôs no seu carro, um modelo menos suntuoso do que aquele que vendemos, e nos dirigimos para lá, visitar meu bangalô. Eram umas nove da manhã, apenas algumas pessoas estavam na rua, o dia estava chuvoso e deixamos o carro numa rua próxima onde tinha asfalto, subimos a ladeira de barro sem a menor cerimônia. Um molecote cheio de desarranjos passou por nós dois e olhou bem para o rosto de Denver e não acreditou que era ele em carne, osso, chapéu e espírito: “É você mesmo? Não acredito!”, o menino não se agüentou e começou a gritar o nome dele sem parar, a muito custo o convencemos a ficar quieto, oferecemos a ele uma camisa autografada caso cessasse com a barulheira, ele aceitou. Cessou a grita. Chegamos a casa. A bagunça era a habitual. Ao menos não havia bilhetes mal-educados exigindo a minha presença numa certa casa. Ele me falou calmamente estas palavras: “Acha que pode isso? O cara que é meu amigo não pode viver num lugar desses! Iremos agora mesmo providenciar um apartamento decente e nem adianta você dizer o contrário”. Não disse. Fui instalado num belo edifício num bairro de classe média que meus diplomas e naipes não conseguiram alcançar, até esse momento aquelas coisas poderiam ser aceitas, o seu salário aumentara vertiginosamente e toda a sua família já desfrutava dos frutos do seu espantoso sucesso, mas não interferia nos negócios. O menino tinha um coração de ouro, apenas precisava ser lapidado. Os romances com modelos estonteantes ele mesmo fez questão de evitar, era visto nos jornais sempre com moças que não faziam parte do show biz, conquanto depois essas moças ganhavam uma tão instantânea notoriedade que acabavam por ilustrar as capas das mais diversas e esdrúxulas revistas. “Sempre saio atrás quando me envolvo com alguém, tenho receio de que elas apenas queiram se aproximar de mim por causa da minha imagem, do dinheiro...”, confessava-me Denver com medo do óbvio, “Não se afobe, nada é pra já, quando estiver no tempo certo encontrará a pessoa dos seus sonhos”. Ele era diferente de mim neste quesito, queria constituir uma família rapidamente, e eu num sinal claro de misantropia queria dissuadi-lo da idéia, mas ele era decidido nesse tema, minha misantropia não era contagiosa. Saíamos agora com alguma freqüência, a pedida costumava ser a mesma de sempre: tomar vinho em algum lugar aconchegante da cidade. O encontro com o Dr. Rutra foi mais parecido com uma festa do que com uma reunião para tratar de negócios que envolviam muito dinheiro. Ele não parava de fazer a corte ao nosso pequeno gênio. Por vezes tomou para si o papel dos jornalistas e repórteres que lhe faziam perguntas sem o menor sentido; diante de uma celebridade os homens mudam seus modos e adotam os modos de outros por contaminação, mesmo sendo ele um homem que vivia em meio às excentricidades de pessoas que usam a falta do pensar para criar bobagens, meio de vida e até de sobrevivência para alguns, no que tange ao desconhecido e inominável valor de alguém que alcança o sucesso e ganha a aura que antes só cabia na cabeça de heróis mitológicos a questão é mais simples. A linguagem que o Dr. Rutra usou para tratar Denver foi das mais servis. Às vezes beirava caricato para um homem na sua posição. Foi quando eu descobri que não importa ao homem terreno o montante de suas posses materiais, chega um tempo em que elas tomam um lugar secundário em suas reações e são substituídas pelas incongruências que a falta de pudor faz qualquer um fazer; convidou o garoto para conhecer uma de suas fazendas no interior do Estado, a casa de praia maravilhosa que possuía nos arredores de um paraíso ecológico, que a filha e o filho mais velho juntamente com a esposa iriam ficar entusiasmados com sua presença num jantar da família, que poderia oferecer-lhe oportunidades de ganhos espetaculares porque sabia dos atalhos e meandros das Bolsas de Valores dos comércios e mercados de capitais de todo o mundo, que sua influência nas teias do poder era muito maior do que ele próprio deixava transparecer, que os veículos de imprensa podiam fazer isso e aquilo com ele, que tinha eles o poder de levá-lo ao céu e ao abismo no mesmo empuxo, que poderia acontecer-lhe coisas dantescas se não seguisse os seus conselhos e falou e falou sem parar, como ele usava fazer sempre. Todas essas indicações, todas essas observações foram feitas com tanta eloqüência e tanta convicção e força que se nós dois não estivéssemos calejados de cantilenas dessa feita pensaríamos que tivéssemos encontrado o próprio Deus entregando a Moisés os mandamentos para encontrar a felicidade. “Dr. Rutra isso tudo pode nos ser útil, mas por ora queremos saber se há interesse de sua parte em viabilizar uma certa quantia para podermos fazer com que Denver continue no clube ou no máximo que seja negociado com outro que seja daqui mesmo e, naturalmente, o senhor teria os ganhos por se tornar o mantenedor dele no país e com isso avaliaríamos com o nosso e vosso advogado qual seria o seu percentual no passe dele”. “Seu passe está estipulado em quanto, rapaz?”, perguntou ele menos eufórico, a simples menção à palavra mágica faz com que homem e pedra se tornem uma matéria de natureza idêntica. “Temos de depositar na conta do clube três milhões de dólares nesta semana. Foi o acordo prévio que firmamos com o presidente do clube”. “Quanto vale o passe?”, insistiu ele. “Hoje, fala-se em pelos menos vinte, vinte e cinco milhões”. “E quanto poderá valer daqui a algum tempo?”. “Fazer previsões é um tanto complicado, senhor, sobretudo se essas previsões se referirem ao futuro, abandonei o modo formal como lhe falava antes e adotei um tom mais sério e prudente, para ele perceber que não nos intimidava, mas dizem alguns especialistas, continuei, que se ele mantiver a média de gols e de boas apresentações esses números poderão alcançar a estratosfera, e é para isso que estamos trabalhando, como o senhor já sabe, existe uma equipe que assessora o Denver, que vai de nutricionista a professores de línguas, que estamos prestes a vê-lo no panteão dos grandes esportistas do mundo, e sabe qual é o objetivo? Transformá-lo no atleta melhor remunerado do mundo, e nós acreditamos que poderemos tornar isso possível, basta ver que sua média de gols aumentou sensivelmente desde de que adotamos treinamentos específicos, hoje ele faz 1,1 gol por jogo, é uma média extraordinária, mas ainda não é tempo de deixá-lo ir embora do país, se ele fizer cinqüenta por cento na Europa do que faz aqui, seu passe será tão valorizado que não arriscamos valores. Elaboramos um plano de ele só deixar o país quando terminar a Copa do Mundo tempo em que estará no ápice e aí negociaremos com quem oferecer a melhor proposta”. “Muito interessante, ele será leiloado feito gado! Mas como é que podemos começar... Bem, você crê mesmo que eu tenho três milhões de dólares assim disponíveis?”. “O senhor apenas falará se lhe é ou não possível. Mais a mais, temos um plano B na manga e não nos fará muita falta se o senhor recusar a proposta”, falei num tom seco e rígido. Denver demonstrava uma leve irritação com todo aquele falatório, ele havia declarado várias vezes para a imprensa que não queria deixar o país naquele momento, que ainda não estava preparado e o tempo certo para isso acontecer ainda não havia chegado, mas tendo em vista a desilusão que estava sendo a tediosa audiência com o Dr. Rutra ele reconsiderou a possibilidade de ser vendido e que Deus conduzisse o seu destino dali por diante. “Ponha-me em contato com o presidente, eu aceito a proposta”. CAPÍTULO XXIX A REVELAÇÃO Posto que tardia, devo-lhes informar duas coisas: a droga revolucionária do Rachié Associados, o Razax Y8, e o que me fez de repente um entendedor e apreciador do jogo. Ao jogo. A paixão pelo futebol não me chegou sem prévio aviso, o fracasso da infância foi o que me fez esconder e anunciar aos amigos que amava a bola. Nos esconderijos eu acompanhava o desenrolar dos campeonatos, sabia de cor a escalação dos jogadores do meu time do coração e me correu um longo e tenso frio pela cerviz quando a mitológica Saneta acompanhada da não menos Simetra me deu a notícia que conhecia o Denver, e pensavam em conjunto na possibilidade de oferecerme o cargo de preceptor do garoto. O charme feito na ocasião, à guisa de mentiras, foi apenas para valorizar o serviço de um profissional que ainda nem nascera, mas que sentia a iminência de ver tornar um grande atleta nacional numa referência em aspectos que poucos atletas conseguiram obter tivesse o alcance que tivessem. Quanto ao medicamento do Rachié... melhor calar; existem coisas que é melhor omitir por falta de sorte e, como se sabe, neste mundo até a sorte é injusta. CAPÍTULO XXX A MUDANÇA E AS CLASSES Os dias foram passando e mais títulos foram chegando, sua mudança de time foi ficando inevitável e acabou por se tornar na mais rumorosa negociação de toda história do Brasil feita entre clubes nacionais. Houve intensos protestos da torcida do seu primeiro time. Manifestações ensandecidas bem acabada na imagem da sala de troféus saqueada e as dependências do clube arrasadas por vândalos e bárbaros travestidos de torcedores de futebol. Sua presença era obrigatória nos jogos da Seleção e quando assinou contrato com seu novo time (um de massa) pediu que contivesse uma cláusula que o liberasse para os jogos da Seleção desde que tivessem um mínimo de trinta e seis horas entre um jogo e outro, “Com a tecnologia aérea, brincou ele à época, podemos estar em qualquer parte do mundo em menos de um dia”. Esse simples, porém, valioso gesto de amor à camisa da Seleção lhe valeu elogios que pipocaram da Ásia ao Oriente, das Américas à Europa passando pela Oceania e desembocando nos Mares do Sul; como uma boa nova vinda do céu. Fazer sua personagem crescer era uma coisa até dispensável porque ele criou uma série de métodos e meios diferentes não só de jogar como também de relações públicas. Seu marketing pessoal era excelente. Os superlativos a ele dirigidos também foram escasseando bem como os adjetivos. Seu carisma era além-mar, desconhecia barreiras sociais e de classes, só não se sentia à vontade quando era convidado para estar na presença de alguma autoridade que queria pegar carona em sua popularidade sempre na linha ascendente. Certa vez, depois de uma final do campeonato sul-americano de Seleções toda a delegação foi convidada a ir até o Planalto receber os cumprimentos, dada a irrepreensível campanha brasileira na competição que mais uma vez lavava a alma do povo tão sofrido e carente de soluções para suas amarguras que não o futebol, mesmo sendo este catalisador e baluarte da nossa imagem positiva além das fronteiras. A política ele abominava de todo o jeito e não queria publicidade do que fazia fora dos campos, mesmo depois de ver celebrada sua posição como figura de maior destaque entre todas as figuras de destaque do país, ele prosseguia no seu ritual de manter uma vida contrária ao que pedia a posição. Não ostentava. Os suntuários eram para ele como nada, bolsas Louis Vuitton e outros desses acessórios para mostrar que era o tal, eram devidamente dispensáveis; esses artifícios para ele não tinham a menor razão de ser. Quando foi pego batendo bola com uma garotada do subúrbio do outro Estado em que ele foi morar foi um estrondoso escândalo que ganhou as páginas e as telas dos principais veículos de comunicação do país, “Como, dizia um deles, como que um cara que vale ninguém sabe quantos milhões de dólares, põe suas pernas em risco numa brincadeira nos guetos da vida?”, ele não ligava, recebia uma repreensão do clube e as coisas rapidamente voltavam ao normal com mais um ou dois lances mágicos nos domingos ou meio de semana. Falar e dar entrevistas na terceira pessoa era uma outra coisa que ele também abolira, nada de: “Nós conseguimos um bom resultado” ou: “A gente têm condições de alcançar tal objetivo”, Nada disso. O tratamento de si próprio era executado na primeira pessoa, sempre. Um dos grandes nomes da renascença escreveu certa vez que os detalhes é que fazem a perfeição, mas que ela, a perfeição, não era detalhe, e todos estes detalhes a que Denver se prestou a atentar traziam na soma e no conjunto um saldo positivo de grande valia. Ele também não se envolvia em polêmicas de qualquer ordem. Desenvolveu em sua personalidade a capacidade de concordar com os seus interlocutores desde que a concordância não lhe trouxesse prejuízo. A sua lenda ia crescendo num ritmo assustador, e ele com ela. Aprendia tudo que a ele era apresentado com muita facilidade. Autodidata em algumas áreas do conhecimento, o próximo projeto era aprender a língua de Goethe, o que ele considerou ser o seu maior e mais difícil projeto. Havia uma razão para se aprender esta língua. Dentro da nossa cartilha para transformá-lo não em uma unanimidade, pois ela é burra, mas em um consenso que transformaria a sua homogênea imagem num verdadeiro marco do esporte. Outra coisa também ficou acertada: ele apenas iria fazer propaganda daquilo que usaria, até aí sua honestidade desabrochava de modo totalmente independente, eram os detalhes que estavam fazendo dele a estrela maior de uma constelação brilhante. CAPÍTULO XXXI QUEM DIRIA? Diogo Andrade foi-me apresentado numa tarde de novembro. Sujeito gorducho de barba cheia e barriga idem, orelhas grandes e nariz proeminente, princípio de calvície na parte detrás da testa, olhos enxeridos como os de um furão; comia de tudo. O homem era uma máquina devoradora de comida, tinha sempre à mão qualquer guloseima para saciar a fome, ou ao menos atenuá-la; era mais estômago do que homem. E bebia também. Num curto diálogo com ele quando o vi pela primeira vez no escritório: “Bebe alguma coisa?”, “Ôpa, de tudo!” “Água raiz, perfume, querosene?...”, ele não gostou da piada e talvez nem você que a lê, porque assim fria, posta nesse papel amarelecido pelo tempo e sem os sons e as caretas a anedota fica assim morna e sem sabor, como as mamadeiras que os bebês recusam. Era jornalista de um importante jornal que os outros da equipe (à minha revelia) haviam contratado para cuidar da assessoria de imprensa de Denver, pedi eu mesmo para que algumas decisões fossem tomadas sem que eu participasse efetivamente, para não me sobrecarregar tanto e me desobrigar de eventuais e possíveis fracassos. Suas ações deliberadas e arrogantes descompassavam da equipe, mas ele era necessário, sabia como lidar com os imbatíveis chatos que amolavam o nosso craque. Fiquei sabendo depois que era chamado na intimidade (ou na maldade) de “seu Chupeta”, quis saber o porque da alcunha maliciosa e até um tanto engraçada, chamei o Régis que era o fisioterapeuta que cuidava das pernas de Denver e responsável direto pela vinda do Andrade para trabalhar conosco e ele me falou sorrindo ironicamente: “É por causa da sua pança! Ele parece uma chupeta de vulcão!”, riu o gaiato. Não me alegro com a injustiça. Mesmo quando praticada por mim. CAPÍTULO XXXII HÁ UM TEMPO, PÁRA TUDO O sonho do menino não tinha limites e era sem fim, mas a minha fraca coerência tinha os dois. Denver foi convidado para participar de uma conferência em que seriam discutidos problemas referentes à educação e ao combate à fome. Ficou sensibilizado. Mas não foi. O tempo não era adequado. Nem era problema nosso a escassez de víveres no mundo tanto menos o analfabetismo, declarou sua assessoria em nota. Anunciávamos isso para os quatro ventos, poucos entendiam a nossa posição concernente ao tema. Na verdade, nossa participação na questão, que na realidade não nos pertencia, estava ainda sendo gestada, era um zigoto que repousava e crescia junto com o seu sucesso. CAPÍTULO XXXIII A COPA Veio a Copa do Mundo, e com ela todas as esperanças para que o maior fenômeno do futebol mundial arrebentasse e conquistasse o mundo definitivamente. Ele desembarcou na Copa sob os olhares e as desconfianças dos que o acompanhavam e faziam apostas até em quebra do recorde de gols que perdurava desde o distante campeonato de 1958, tarefa aparentemente fácil para Denver; se o Brasil chegasse à final, eram sete jogos para ele fazer treze gols. Não, ele não prometeu quebrar recordes e fazer todos os gols que a Seleção precisaria para se sagrar campeã de mais uma Copa, mas todos sabiam que se o deixassem jogar, ele a ganharia com a mesma facilidade com que respirava. O seu currículo dava-lhe as credenciais para falarem o que estavam falando dele: em todos os campeonatos de que participou pulverizou de fato todos os recordes de gols; ganhou a todos eles de modo incontestável. Protagonizou os mais sensacionais lances e fez campeonatos que outrora eram vazios e sem empolgação em verdadeiros e antológicos certames que o país pôde presenciar estupefato. Pelo seu segundo clube conquistou todos os títulos possíveis; regionais, nacionais, sul-americanos, intercontinentais, mundiais e a outros promovidos a toque de caixa apenas para contar com sua esplêndida presença, pela Seleção em apenas vinte e nove jogos já figurava na lista dos que mais marcaram com a camisa canarinho, ele, literalmente sozinho, restabeleceu a honra e o prestígio que o time havia perdido com seguidos fracassos e resultados negativos inéditos. Um time dos Emirados Árabes enviou ao clube em que ele jogava no Brasil um cheque em branco pedindo que preenchessem o valor que quisessem para tê-lo em seu time. Foi um furor, nada mais que trinta e cinco clubes da Europa lhe fizeram propostas, seu passe já estava sendo avaliado em mais de cem milhões de dólares e dependendo de seu desempenho na Copa do Mundo, diziam alguns analistas, poderia facilmente ultrapassar os duzentos, trezentos milhões de dólares. O mundo inteiro já estava fascinado pela sua incrível capacidade de atrair a mídia e dela fazer o que bem quisesse, foi o único jogador na história a ganhar o prêmio anual da entidade máxima do futebol como melhor jogador do mundo jogando fora da Europa e ele repetiu a façanha por mais duas vezes, o seu sucesso foi tão extraordinário que até países como o Estados Unidos manifestaram o desejo de tê-lo atuando no país, um rol de empresas se uniu na tentativa de contratá-lo, mas os esforços deram os frutos esperados e toda a pressão foi suportada. Após o Mundial, as ofertas seriam, todas, uma a uma, estudadas pela junta que dele cuidava, agora em número maior, muito maior. O primeiro contrato com uma empresa de material esportivo deu as diretrizes de como seria firmar contrato com o mais poderoso e caro garoto propaganda do mundo: contrato de um ano (nada de contrato vitalício) pelo valor de vinte milhões de dólares. Esta proposta demorou mais de um ano para ser aceita, todas as empresas que nos procuravam voltavam com um não garrafal quando os valores das ofertas eram inferiores a este, muitos críticos pegaram pesado ao dizer que “a equipe que cuida do Denver deve estar alienada” porque ninguém seria louco de pagar quase dois milhões de dólares por mês a um jogador no Brasil. Era uma utopia. Como de costume, não respondemos às críticas, o próprio Denver era uma utopia. A idéia era acabar com a ditadura das empresas que patrocinavam outros jogadores e deles faziam o que queriam e pagavam idem, conosco seria diferente e foi. A fabricante de material esportivo alemã que firmou o contrato para explorar a imagem de Denver tinha planos ambiciosos para ele e não ofereceu resistência para aceitar as nossas exigências, mas havia uma cláusula em seu contrato que obrigaria que ele usasse a marca alemã mesmo se o time que ele fosse jogar no futuro usasse outra marca, assunto para os próximos capítulos. Cabe falar-lhes que Denver era como uma personagem de si mesmo. Quando entrava em campo todos os átomos do seu corpo se modificavam tomando a forma de outra figura; o campo de jogo fazia dele outro. Seus olhos de cordeiro rapidamente se transformavam em olhos de lince quando pisava o gramado. O primeiro jogo foi contra um time poderoso da África, a Nigéria, foi espetacular, digno dos maiores jogos da história das copas do mundo. Terminou 6 a 5 para o Brasil. Denver foi o autor dos seis gols brasileiros estabelecendo logo de cara um recorde incrível de modo que quem havia marcado mais gols em um só jogo por copas tinha marcado cinco e, por tabela, ele quebrara também o recorde de gols pela Seleção, que também era de cinco gols numa única partida. A primeira rodada daria uma mostra do que seria para ele e para a Seleção aquele Mundial, ele se preparara longamente para disputar aquela Copa, vivia e respirava ela todos os dias. O assédio da impressa depois daquele jogo se tornou quase que incontrolável. Batalhões foram destacados apenas para proteger a Seleção mesmo nos mais simples treinamentos, torcedores de todo o mundo que estavam lá para assistir à Copa afluíam aos treinos da Seleção para tentar vê-lo já que os ingressos para os jogos do Brasil eram vendidos no câmbio negro por até dois mil dólares. Todo esse barulho parecia não perturbá-lo, parecia até que não era com ele que se fazia toda aquela confusão; o mesmo jeito simples de falar a mesma timidez no olhar, apenas uma coisa não mudara: a boca fechada para falar sobre assuntos pessoais, na verdade ele não estava nem aí para o assédio dos fãs e da imprensa de todo o mundo, tratava todos com respeito, mas era notado nele que dava mais atenção aos que não eram privilegiados, passava mais tempo dando entrevistas para emissoras de rádio do interior e o mesmo fazia com jornalistas dos países menos favorecidos, mas o efeito era possivelmente ao contrário do que ele criou, porque com isso o fascínio pelo seu mito aumentava cada vez mais, parecia até que esse era mais um plano articulado pela sua “equipe” mas isso nunca foi por nós orquestrado, agia naturalmente e por isso as coisas davam, até aquele momento, tão certas para ele. Os gols que fizeram o Brasil sair disparado no seu grupo saíram como já esperavam os torcedores brasileiros; com ele articulando as jogadas, liderando a equipe. O seu primeiro gol numa Copa do Mundo foi da forma que ele mais gostava de fazer gols; de falta. No ângulo. Alguns cronistas dizem que gol de falta e de pênalti é gol de ‘bola parada’. Não é. De bola parada seria se o gol viesse até a bola. Logo depois veio o empate. Denver tornou a desempatar com um chute forte de fora da área; o time africano veio pra cima com tudo e empatou dois minutos depois. No segundo tempo parecia que a coisa ia desandar e o time africano, que jogava muito, passou pela primeira vez à frente no placar. Logo Denver fez de cabeça e acalmou a torcida, aos vinte do segundo tempo ele virou para o Brasil com um gol que merecia uma placa: depois de receber um cruzamento da esquerda ele saltou no ar e desferiu uma bicicleta mortal na meta do excelente goleiro africano que depois o aplaudiu com rara deferência. O Brasil cedeu novo empate e aos trinta e quatro eles viraram para 5 a 4, o que deixou os brasileiros atordoados, mas em campo estava o desequilibrador das partidas o goleador máximo do planeta bola: Denver recebeu a bola na intermediária e saiu driblando um a um seus marcadores, invadiu a área e sofreu pênalti, ele mesmo bateu de esquerda no canto direito do goleiro e fez 5 a 5. Aos quarenta e três o golpe que liquidou a ofensiva e brava seleção africana, Denver veio tabelando na área e por cobertura fez o gol da vitória muito comemorado por todos, a torcida vibrava com grande euforia, o time e Denver vencera e convencera. Era para Denver uma importância fundamental não menosprezar os torcedores inimigos, mesmo quando era violentamente xingado por eles, ele não ia até eles para revidar fazendo gestos nem esgares, fazia questão de comemorar os gols com sua própria torcida o que não inflamava a ira dos outros torcedores. Ele tinha, se o Brasil chegasse à finalíssima, mais seis jogos para quebrar mais um recorde em sua efêmera e prodigiosa carreira, nas coletivas não dava importância às especulações sobre para que time iria depois da Copa (seu contrato venceria justamente ao final desta) e sobre qual o valor atual do seu passe, “Minha preocupação é jogar”, se limitava a dizer “Não posso me concentrar em atuar e pensar em transferência de clube ao mesmo tempo; o escravo de dois amos fatalmente prestará um desserviço a um deles”, concluía deliciando a imprensa com seus adágios. As correspondências que chegavam de todo o mundo ele fazia questão de ler e responder a algumas, mas isso lhe roubava o tempo de devorar a literatura que se tornara seu passatempo predileto, ele já estava se familiarizando com o alemão e trouxera, entre seus agora inseparáveis livros, um Goethe para melhorar sua constância com a língua. Entrevistas exclusivas ele não dava para ninguém, os pedidos eram muitos, mas ele, diplomaticamente, dizia que se desse para um teria de dar para todos, o que não seria possível naquele momento, pois dirigia sua força apenas para arrebentar na Copa. Veio o segundo, jogo, foi contra uma seleção média da Europa a Bélgica, que a exemplo do Brasil ganhara seu primeiro jogo e poderia ali garantir sua classificação para a próxima fase que seria as oitavas de final, o jogo começou nervoso, Denver estava sendo implacavelmente marcado, reminiscência da sua fama e dos seis gols, e antes dos vinte minutos do primeiro tempo ele já sofrera a décima oitava falta, estava sendo caçado dentro de campo, o árbitro conivente com a pancadaria fez vistas grossas para as entradas criminosas que os jogadores inimigos vinham dando em Denver e nem sequer mostrou um cartão amarelo para aplacar os ânimos. Seria um jogo complicado. Os seis gols do primeiro jogo deixaram ainda mais despertos os adversários do Brasil. Denver livrou-se de dois marcadores e explodiu a torcida num coro único ao abrir o placar aos trinta minutos, com sete gols no certame ele já liderava com folga a artilharia, o segundo tinha apenas dois gols, a pancadaria correu solta e pela primeira vez na História de uma Copa do Mundo, um jogo foi interrompido para que um árbitro fosse repreendido pela má condução da partida; um membro da FIFA interveio para avisar das faltas que estavam sendo cometidas contra a maior estrela da Copa, o primeiro tempo acabou em 1 a 0, mas o jogo foi duríssimo. O começo do segundo tempo foi alucinante, o Brasil atacava incessantemente, mas num contra ataque sofreu um gol inesperado. Num passe de quarenta metros numa espetacular visão de jogo Denver deixou na cara do gol o centroavante da Seleção que enfim desencantara e, pôs à frente do marcador o Brasil para explosão da torcida, foi uma pena, mas apenas foi possível dar nota dez para o passe maravilhoso do Denver, o jogo acabou em 2 a 1 e carimbou a classificação antecipada da Seleção para a segunda fase. Destaque absoluto do jogo, ele protagonizou os mais belos lances do jogo e chamou para si toda a atenção e créditos pela vitória, foi também o mais caçado: sofreu nada menos que vinte e seis faltas durante a partida, algumas luxações, mas estava confirmadíssimo para o próximo jogo dali a dois dias, no entanto, os seus maiores adversários eram os repórteres e jornalistas que queriam por tudo a graça de uma exclusiva sempre e democraticamente negada. Apesar das inevitáveis recusas não ganhou a marca de “mascarado” nem de “estrela”, ao contrário; Denver fazia questão de não gozar de nenhum privilégio, querido pelos companheiros, era protegido por quem quer que dele quisesse se aproximar no intuito de prejudicá-lo, suas coletivas eram tão disputadas e acirradas e não era novidade acabar ou começar em tumulto, isso o deixava contristado, pedia para que houvesse organização para poder falar e por vezes fez ameaças de que se os jornalistas não se entendessem entre si, ficaria mudo, eles aquiesciam. O ameaço intimidava seus amigos. O terceiro jogo chegou e com ele a angústia do time asiático que precisava da vitória de qualquer maneira para garantir a vaga, não seria jogo fácil, como não foi. Só no segundo tempo é que o Brasil fez um gol através de Denver que mais inspirado do que nunca dava espetáculo; no primeiro tempo driblou, deu chapéu fez passes de letra cansou de deixar os companheiros na cara do gol, enfim, deitou e rolou. O gol foi uma pintura, reproduziu em minúcias um gol que dizem que aconteceu num tempo remoto, ele recebeu a bola dentro da área e aconchegou-a no peito, deu um lençol no primeiro marcador e o mesmo fez com o segundo o terceiro e finalmente com o goleiro, entrou com bola e tudo, a torcida, em pleno êxtase, delirou de alegria, a esse tempo, enquanto ainda comemorava a obra-prima, toda a torcida que estava torcendo contra, aplaudiu de pé num coro único que arrepiou até os telespectadores, os narradores extasiados não sabiam o que dizer ante tão monumental feito, ele não apenas desequilibrava os jogos, mas dava também uma aura de saudosismo ao torneio que, no jogos da Seleção, batiam todos os recordes de audiência no mundo, era o jogo mais esperado, celebridades das mais variadas áreas chegavam para assistir aos jogos das tribunas de honra, o local mais disputado. A marca geral das audiências americanas era medida com muito entusiasmo: superou as audiências dos jogos de Baseball e seus disputadíssimos All Star Games. Os 2 a 0, decidiram a partida despachando a seleção asiática sem dó nem piedade, o segundo gol do Brasil saiu também em jogada iniciada por Denver quase no finzinho do jogo. Todos davam como certa a decisão da Copa entre Brasil e uma outra seleção que, até então, era tida como a sensação do torneio; mesmo jogando o fino da bola, a Seleção do Brasil não tinha a melhor campanha da primeira fase, os alemães e os argentinos tinham montado um verdadeiro esquadrão, venceram todos os jogos e não tomaram nenhum gol sequer, os críticos do Brasil e do mundo diziam que o time era muito dependente do talento do seu astro maior e na falta dele as coisas poderiam se complicar. O adversário das oitavas era uma pedreira, a Itália, que ficou em terceiro no que era considerado o “grupo da morte” tamanha era a força das seleções, e a Itália chegou às oitavas na condição de invicta venceu um jogo e empatou os outros dois, mas no saldo de gols acabou ficando em segundo lugar. O jogo foi emocionante, vamos a ele. Os italianos saíram na frente numa bobeira da defesa brasileira, aos trinta do primeiro tempo, eles ampliaram o marcador, e quase decretaram a derrota do Brasil, mas nos momentos difíceis Denver crescia ainda mais, o jogo virou 2 a 0 para os italianos que tinham uma seleção muito poderosa, sobretudo na defesa, tomaram apenas um gol na primeira fase e ainda assim de pênalti, era a Copa da retranca, até mesmo o Brasil adotou um esquema altamente defensivo e o que fazia a diferença na frente era mesmo Denver que quase que sozinho ia levando o time nas costas. Eram já vinte minutos do segundo tempo, a Itália segurava o resultado jogando até com o Primeiro Ministro na defesa, Denver muito marcado produzia pouco e apanhava muito, aos trinta e cinco minutos ele arrancou pela direita e levou consigo três marcadores para a linha de fundo, num passe de mágica se livrou dos três e rolou devagar para o primeiro gol brasileiro, explodiu a torcida. 2 a 1. Aos quarenta, ele recebeu a bola na intermediária soergueu-a com o lado do pé esquerdo no mesmo instante em que os seus marcadores italianos se entreolharam confusos sem saber o que Denver iria fazer: como quem usa de uma colher para beber sopa, Denver tirou a bola do chão e a elevou no ar esticando a perna na vertical e, no momento exato do passe, deixou a bola percorrer os vinte centímetros de seu pé e jogou-a; um jogador do Brasil se infiltrou na zaga italiana, recebeu o passe na frente do goleiro e fuzilou para empatar o jogo. Era inacreditável, mas o Brasil conseguira empatar um jogo que parecia perdido. Quando todos esperavam os pênaltis Denver tornou a arrancar e sofreu mais uma falta; esta na entrada da grande área. Ele arrumou com carinho a bola; ficou como que procurando na circunferência desta o lado mais macio para tocar, os italianos já sabendo da sua pontaria certeira mandaram dois zagueiros para ficar em cada trave auxiliando o goleiro, Denver se concentrou. Como se batesse do lado mais interno possível do pé direito; a bola viajou lentamente até encontrar o ângulo esquerdo do ótimo goleiro italiano que nem se mexeu, 3 a 2. Foi o jogo mais difícil do Brasil até aquele momento, mas o que todos queriam saber dele na coletiva ao fim do jogo foi como fez para a bola grudar no lado de dentro do seu pé esquerdo e executar aquele passe fantástico. Foi o assunto de toda a semana, passou à exaustão nos telões dos estádios antes dos jogos e se repetiu até o limite mais tolerável. Na entrevista, Denver falou de um sonho que emocionou a todos: disse que um dia sonhara com o jogo em que o Brasil perdeu para a mesma seleção italiana na Copa da Espanha em 1982. Ele disse que entrou com o jogo em andamento tentou, tentou, mas não conseguiu empatar a partida. Confessou que foi um dos dias mais tristes da sua vida, muito embora não o tenha vivido, que aquela seleção (com certa dose de exagero e de emoção) para ele era a melhor da história. As lembranças, oriundas dos videoteipes melancólicos e sofridos que disse ver e rever até que a cabeçada do doutor entrasse, que o juiz israelense marcasse o pênalti sobre o nosso camisa dez, mas não adiantava e nem no sonho ele conseguia desempatar aquele jogo. Foi um espetáculo inesquecível deveras. Não me lembro de nenhum outro jogo ter merecido um poema. E este ganhou um de um dos nossos maiores poetas, foi um poema em prosa, veja: “Vi gente chorando nas ruas/ quando o juiz apitou o final do jogo perdido/ vi homens e mulheres queimando com ódio os plásticos verde e amarelo que até minutos então/ eram sagrados!/ vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam porque não achavam consolo na bebida/ vi tanta coisa/ senti tanta coisa nas almas/ e chego a pensar/ afinal/ que a derrota/ para a qual nunca estamos acostumados/ de tanto não a aceitarmos/ e não a admitirmos previamente/ é afinal um instrumento de renovação da vida/ perder/ implica remoção de detritos/ começar de novo.” Na concentração da Seleção as coisas começavam e se descontrair com a melhora do time, os tumultuados treinos eram secretos, mas pouco adiantava, sentado ao pé de uma árvore Denver lia um livro que teve suas vendas alavancadas imediatamente quando a imprensa anunciou título e autor, era assim; como um Midas de calção e chuteiras, tudo que ele colocava a mão virava ouro. Dezenas e dezenas de propostas de contratos chegavam para serem analisados no seu escritório no Brasil, mas que só iam ser considerados ao fim da Copa. Como era seu costume, à surdina, ele visitava nas férias os Estados mais afetados pela seca, mas não dava dinheiro aos flagelados, com uma junta examinava o que precisaria ser feito, e pouco a pouco foi colocando em ordem seu mais ambicioso plano. Dentre os contratos que chegavam ao escritório muitos pedidos de palestras para empresas, fomos amadurecendo a idéia, tudo à sorrelfa... O próximo jogo pelas quartas-de-final era considerado mais difícil do que o último. Era contra os francos favoritos ingleses que faziam uma campanha primorosa na Copa; pelas oitavas, ganharam da seleção de Gana tida como a maior surpresa da competição num terrível 1 a 0 muito contestado pelos africanos, as especulações do técnico inglês que dissera no dia anterior que tinha um antídoto para derrubar o esquema do Brasil a quem chamou, perdendo a tradicional compostura inglesa, de “Little Team”, dizia que era só neutralizar Denver que o jogo e a vaga para a semifinal estava garantida. O inglês falou pelos cotovelos. Disse ainda que poderia perder para o Brasil, mas jamais para Denver. “Ele não é o rei”, sentenciou de vez o treineiro. A Inglaterra fez 1 a 0 ainda no primeiro tempo e deixou o Brasil agonizando, pela primeira vez na Copa Denver não atuava bem, estava sofrendo marcação cerrada, ainda pior do que as anteriores, de dois brutamontes ingleses especialmente destacados para este fim. Ele não conseguia dominar a bola, nem sequer carregá-la para articular as jogadas do time, e sem ele para levar o time à frente a Seleção penava. Os ingleses, donos do jogo, mandaram duas bolas na trave, a sorte os abandonou e poderia ter liquidado a fatura já no início do segundo tempo, o Brasil estava apático, mas eis que Denver conseguiu causar a expulsão de um de seus implacáveis marcadores numa jogada que fatalmente terminaria em gol. Aos vinte, o time e Denver acordaram e os dois passaram a tocar a bola com mais calma e precisão, os ingleses no seu jogo duro de sempre, ainda eram melhores em campo, Denver recebeu um lateral, driblou um e chegou à linha de fundo, cruzou e mandou a bola na cabeça do avante que empatou o jogo, os ingleses foram para cima ansiosos para fazerem o segundo gol e quase marcaram, com o jogo bem disputado Denver resolveu ajudar o time na defesa. Antes da linha que divide o meio campo ele ergueu a cabeça e percebeu o arqueiro inglês adiantado; desferiu um chute potente de direita, a bola viajou pelo campo tendo como endereço a meta inglesa, o goleiro inglês voltou alucinado para o gol na tentativa de evitar o inevitável; a bola entrou impiedosamente e o Brasil fez 2 a 1, Denver ajoelhou-se no mesmo lugar de onde chutara e chorou copiosamente, era o gol da vitória o gol do sacrifício o gol da redenção o gol que entraria para a história de todos os mundiais. Após o jogo vinha o que lhe mais angustiava; a coletiva. Pedia-se a ele que fizesse comentários sobre o que o técnico inglês declarara antes do jogo decisivo, mas era esquivo, queria dar ênfase ao jogo e propriamente à vitória e à semifinal, mas os impertinentes interlocutores não lhe davam trégua e queriam arrancar dele o que todos queriam ouvir e ele, misto de irritado e consciente acabou falando sucintamente: “O técnico inglês tem razão, não vou discordar dele; eu não sou o rei”. O sabor ambíguo da frase estampou os principais jornais esportivos do mundo, sua forma meio irônica meio diplomática fugia da demagogia com elegância. Respondendo às perguntas em inglês, espanhol e italiano, Denver quebrava protocolos, sentia-se à vontade conquanto contrariado apenas com inquirições que entendia não serem relevantes: “De que planeta você é?”, perguntou um jornalista francês, “Do seu”, respondeu sorrindo Denver, sem traços de arrogância. A pergunta do jornalista francês era perspicaz: de que mundo viera Denver afinal? Ele não era desse mundo, nem de outro, talvez ele não tivesse mundo nenhum era uma emanação vinda de um lugar desconhecido. Todos os que tinham as credenciais para lhe fazer perguntas encantavam-se com a sua capacidade de raciocínio e as referências que sempre fazia; citava escritores e pensadores do passado com extrema propriedade malgrado não demonstrando pernosticismo, essa condição mesmerizava não só os que acompanhavam as entrevistas bem como todos que a elas assistiam em casa, com o cosmético da tevê. Com câmeras por todo o centro onde a Seleção treinava, era difícil despistar fotógrafos e cinegrafistas, sempre atentos para um eventual flagrante para estampar páginas e rechear as matérias que, neste tempo de globalização e velocidade da notícia, qualquer foto dele e da Seleção com mais de duas horas de vida era considerada idosa, calculava-se que apenas do Denver já tivessem tirado milhares de chapas e que este número dobraria se a Seleção chegasse à final. Por entre árvores um deles conseguiu captar a imagem de Denver chorando abundantemente escorado no caule de uma imensa e cônica árvore. As fotos causaram rumores, mas logo a assessoria de impressa da Seleção veio a público para revelar que o motivo das lágrimas era a morte de um amigo recente que ele perdera de forma trágica. Isso foi o suficiente para congestionar o ambiente da concentração, todos queriam que o próprio Denver falasse sobre o ocorrido, mas ele apenas se manifestou através de uma educada nota à imprensa que esclarecia os motivos de ele não falar e que nada iria influenciar seu desempenho no próximo jogo, como sugeriu alguns órgãos de imprensa. A verdade é que tudo que ele fazia transformava-se em notícia, como tinha mania de chutar tudo que estivesse ao alcance dos pés, fez algumas embaixadas com uma caixa de fósforos que logo ganhou as manchetes dos jornais com o resultado de a fábrica ganhar a maior publicidade da sua história; todos os estoques foram vendidos imediatamente. Era assim, sua vida, já ameaçada a se transformar num permanente tumulto, poderia com seu sucesso rompante romper todas as expectativas possíveis e levar sua popularidade para muito além dos patamares que cogitavam os analistas, mesmo em caso de sucesso dele e da Seleção. Uma grande empresa de consultoria realizou uma pesquisa na Europa no Japão e no Estados Unidos para melhor avaliar a penetração e aceitação do seu nome; foi um estrondo. Sua postura dentro e fora de campo trouxe os resultados que a nossa equipe esperava, sua imagem era associada a carisma, determinação, empenho, mocidade, sucesso, saúde, humildade, sinceridade, dinamismo e honestidade; eram os ingredientes necessários que as empresas queriam para associar suas marcas ao seu nome, ele tinha a capacidade para vender qualquer tipo de produto, seu alcance ia das camadas sociais mais pobres até as mais abastadas independente de credo de raça ou outros fatores, era o perfeito produto para vender qualquer produto. Angariou todas essas qualidades por falar com clareza de raciocínio e simplicidade, o tom da voz clara e audível e a boa dicção reforçavam essa condição, era craque também nos recursos audiovisuais, a intimidade que demonstrava quando se encontrava defronte as câmeras era admirável, a discrição na vestimenta e a biografia sem nenhum escândalo de grandes proporções conferiam a Denver o papel perfeito de garoto exemplar, mas ele não se entusiasmava com isso, sempre quieto e avesso aos holofotes, sua vida quase reclusa era um contraponto incomum: jovem, bem sucedido na carreira, famoso e prestes a entrar no seleto grupo dos ricaços ele fazia pouco caso de tudo isso, na verdade chegava a até ignorar ou mesmo desconhecer a sua real influência e importância, não agia como uma celebridade. Seu caráter minimalista só fez fermentar o bolo da sua fama. A semifinal foi contra a toda poderosa seleção da Alemanha que vencera a França num jogo dramático decidido apenas na “Morte Súbita”, mas o que ocupava comentaristas de todo o mundo era encontrar uma forma de parar Denver, o que poderia ser feito? Como impedi-lo de fazer gols nos momentos decisivos? Qual zagueiro do passado seria capaz de marcá-lo a contento? Enquetes eram promovidas no intuito de saber como neutralizar a maior expressão e talento da Copa, nas mesas-redondas o clima era acalorado por discussões sem fim, muitos diziam que se ele sofreu dificuldades contra italianos e ingleses, certamente não suportaria a marcação implacável dos alemães, outros discordavam, diziam que quem vencia a marcação dos italianos não precisava provar mais nada a ninguém, debates e debates apenas davam mais sabor e expectativa à semifinal. Por mais incrível que parecesse o maior temor e onde a guerra parecia ser ainda mais belicosa era na outra semifinal que reunia as seleções da Argentina (time fabuloso) e a do Japão que surpreendeu o mundo e chegou às finais da Copa com todos os méritos. Os japoneses venceram absolutamente todos os jogos, fizeram quatorze gols e sofreram apenas um em cinco jogos, tinham o segundo maior artilheiro da competição a melhor defesa e o segundo melhor ataque, um time formado por samurais invencíveis que certamente orgulharia o antigo Império. Eles fizeram um time para vencer a Copa do Mundo, estavam a trinta e cinco jogos invictos, o maior adversário deles, isso era cogitado, era a falta de tradição, mas nunca houve um placar Tradição 1 tal Seleção 0. O problema era da Argentina, talvez o time mais homogêneo da competição: chegara à Copa na condição de franco favorito ao título. Fizeram jus à condição, ganharam e confirmaram que eram mesmo os melhores do Mundial até ali ao lado dos japoneses e dos e alemães, o Brasil, desacreditado, tinha apenas a esperança de um fora-de-série que muitos acreditaram não ser suficiente para levar o time à final. O clima era de guerra, recados eram enviados reciprocamente entre as quatro melhores seleções o que apenas aumentava, promovia atiçava e deixava os ânimos em ebulição. Não era para menos, aquela Copa tinha sido uma das melhores dos últimos tempos e certamente a que mais empolgava o público nos quatro cantos do mundo, o único fator negativo, eram os esquemas táticos sempre dando prioridade ao resultado em detrimento do espetáculo, a isso se excluem as seleções argentinas e japonesas que enchiam os olhos. Seria certamente o maior jogo da Copa. As apostas na Bolsa de Londres para a conquista da Copa davam ampla maioria para a Argentina seguida de Japão, Brasil e por fim a Alemanha, nunca em toda a história foi feita tanta aposta, com a ajuda da Internet se podia apostar dez minutos antes do início dos jogos, o primeiro jogo das finais foi entre Japão e Argentina, um espetáculo memorável, deveria ser de fato a final do Mundial não fosse o injusto labirinto da tabela de classificação. A audiência global para este jogo foi de quatro bilhões e meio de espectadores desde o sul das Antilhas se estendendo até as mais longínquas províncias do Zimbabwe, quase toda a terra habitada estava hipnotizada pelo maior espetáculo do seu esporte mais popular, naquela tarde, de um sábado de nuvens esparsas, as duas seleções escreveram para sempre seus nomes para a posteridade. Os argentinos saíram na frente com os japoneses empatando logo em seguida e virando logo depois, os argentinos, melhores em campo, lutaram com a tradicional raça platina e a muito custo empataram no fim do primeiro tempo. O jogo contava com a presença da Sua Majestade o príncipe do Japão e toda a sua comitiva, pelo lado argentino, o presidente e as figuras mais populares do país foram lá quando souberam que o adversário iria contar com uma assistência real, foi um pandemônio para a organização da Copa achar, em última hora, lugares para monarcas e presidentes. O segundo tempo começou tenso com os dois times bastante cautelosos, mas ainda assim entregando-se ao ataque. Aos trinta minutos a Argentina fez 3 a 2 e aos trinta e cinco o Japão empatou. Este resultado perdurou até o fim do segundo tempo, na prorrogação os dois times tentaram buscar o Gol de Ouro a qualquer custo, mas esbarraram nas excelentes defesas dos seus respectivos goleiros, o empate persistiu e a decisão foi para os pênaltis. Quem bateu primeiro foi a Argentina; que converteu, 1 a 0, o Japão perdeu sua cobrança e os argentinos, precocemente, já contavam com a vitória; na segunda cobrança, mais um para a Argentina; 2 a 0, o Japão conseguiu enfim fazer o seu gol, 2 a 1, os argentinos bateram sua terceira cobrança e converteram, 3 a 1; os japoneses não podiam perder sua terceira cobrança, e não perderam; 3 a 2, a Argentina bateu seu quarto pênalti e converteu, 4 a 2; os japoneses fizeram sua quarta cobrança; 4 a 3, se a Argentina fizesse estaria na final, mas perdeu com seu melhor jogador errando o alvo, o Japão converteu sua quinta cobrança e ficou tudo igual; 4 a 4, as cobranças seriam então alternadas, quem fizesse e o outro errasse estaria na final, o silêncio em todo o estádio era altíssimo, tanto que poderia ser escutado em qualquer parte do mundo mencionada anteriormente, as duas seleções que se digladiaram durante cento e vinte minutos lançavam agora suas sortes ou seus desgostos em tiros livres que, se errassem, seriam desferidos no coração de toda uma nação que acompanhava em hipnose aqueles tão dramáticos momentos de decisão, “o certo seria o presidente e o príncipe fazerem as cobranças”, dizia um locutor de uma emissora espanhola. A Argentina obedecendo à ordem da seqüência bateu primeiro: o goleiro japonês espalmou a bola que bateu no travessão e entrou sofregamente. Os argentinos vibraram comoventemente, era a vez do Japão. O cobrador fechou os olhos, que pela natureza não eram tão abertos, e disparou um tiro à meia altura, sem chance de defesa, 5 a 5. Narrar aqui as cobranças é até mesmo um tanto sofrido, quando estava 9 a 9 o placar, os argentinos perderam sua décima cobrança, a chance da final inédita estava nos pés de um japonesinho de olhos assustados e arregalados, a catimba do goleiro argentino foi tanta que levou um cartão amarelo, o Japão ia bater e..., bem, foi muita responsabilidade para o jovem atacante, ele se desconcentrou e, muito abalado, alegou uma disfunção qualquer em seu organismo e pediu ao árbitro para não bater; ele estava em estado de choque, com os nervos completamente abalados foi amparado pelos companheiros, em outro fato inédito no futebol, outro jogador foi destacado para efetuar a cobrança e, tão sereno que foi até a bola, demonstrava que ia liquidar de vez com os argentinos; bateu forte no canto direito, o arqueiro argentino operou o milagre e defendeu uma bola impossível, começaria tudo de novo. Quando chegasse à Argentina o goleiro ganharia uma estátua de bronze esculpida na Praça de Maio. Isso deu moral aos argentinos, um zagueiro se encarregou de bater, bateu no meio do gol e deixou a bomba para os nervosos japoneses; um dos jogadores mais experientes do time. Ele, sempre olhando em direção ao chão, não deu bola para as provocações do goleiro argentino que viu o bom efeito que fez a sua irritante catimba, era muita pressão, o japonês correu para a bola e bateu para fora, os argentinos explodiram de felicidade, estavam em mais uma final de Copa do Mundo, o Japão saiu de cabeça erguida e entre choro e emoção se despediu da torcida e foi cumprimentar um a um os argentinos; venderam a derrota por um preço salgado demais. Pênaltis são o maior pesadelo para quem tem que os bater numa decisão. No Mundial do Estados Unidos, em 94, pela primeira vez na história uma Copa foi decidida na cobrança desses temidos tiros livres, mas produziu também a cena mais melancólica e triste de toda aquela Copa, quando o jogador italiano perdeu a cobrança que fez seu país perder o título, ele, num misto de incredulidade e angústia, lançou um olhar furtivo para o horizonte cheio de incertezas e depois, curvando o pescoço, fitou sombriamente o gramado; foi o retrato máximo da derrota, disparada, a mais emocionante captação de imagem de todo o enfadonho Mundial. Agora era a vez do Brasil que assistiu de camarote ao estrondoso e márcio confronto entre Japão e Argentina e viu que teria problemas duríssimos pela frente caso chegasse à final, mas a preocupação era antes da Argentina, os frios e precisos alemães que depois de muitos anos voltaram a formar uma equipe forte, pronta para ganhar mais uma Copa. As ruas de todo o país estavam enfeitadas com bandeiras por toda parte, fitas verde e amarelas decoravam as principais avenidas e prédios país afora, camelôs vendiam às pencas camisas com as cores do Brasil, as ruas ficavam desertas quando se aproximava a hora dos jogos da Seleção o país, tomado por uma euforia incontida, porém cautelosa, acreditava na vitória, as pesquisas davam 98% de chances de vitória se, claro, Denver atuasse bem, todas as esperanças estavam nele depositadas, nunca o Brasil fora tão dependente de um único jogador para conquistar uma Copa, na história, talvez o que mais se assemelhou a esse fenômeno foi a Copa do Chile em 62, mas o time era, num âmbito geral, muito mais forte do que este. Pela primeira vez em muitos anos os dois times finalistas teriam uma semana para descansar, o que fatalmente melhoraria a qualidade do espetáculo, antes, as tevês do Brasil davam as últimas notícias da Seleção e o embarque no ônibus emocionou toda a nação: “Uma palavra, por favor...!”, se ouvia de um dentre tantos jornalistas, mas todos embarcaram sem dar declarações à imprensa, exceto um, o solícito, o que arranjava meios de fazer o que queria agradando os outros: “Torçam muito, porque a Seleção deles é muito forte, mas avisa aí para o Brasil inteiro que iremos lutar até o fim de nossas forças”, disse o porta-voz da felicidade, o homem que tinha sob sua responsabilidade a vitória e a redenção... Houve até um boato que correu à boca pequena nos bastidores do Mundial de que o técnico alemão havia ordenado que um de seus jogadores “quebrasse” o Denver logo no início do jogo, nem que isso custasse a expulsão de um jogador, isso pegou muito mal, o que fez o presidente da federação alemã reunir a imprensa e dizer que a Alemanha “com toda a sua história e serviços prestados ao futebol” não iria empregar um meio vil como este para alcançar os objetivos, e concluiu dizendo “que não precisaria de outros artifícios que não o bom futebol para vencer o Brasil”, verdade ou não, criou-se um clima hostil entre brasileiros e alemães. Começou o jogo da morte. Os alemães, como era esperado, jogaram esperando o Brasil que também não se arriscava no ataque: foi um início diferente do da outra semifinal, as duas seleções se respeitavam. O primeiro ataque foi do Brasil; Denver acertou um bom lançamento em profundidade em que achou um meia livre na ponta, este cruzou e a cabeçada fulminante do centroavante quase resultou em gol. Uma enorme faixa foi colocada pelos anfitriões da Copa que foram eliminados nas quartas-definal, nas dependências do estádio dizia quase em tom de súplica: “DENVER, POR QUE VOCÊ NÃO NASCEU AQUI?”, esse gesto de carinho por parte dos bons cicerones deu maior motivação ao Denver e à equipe, mas não sem antes comovê-lo. Os alemães sofreram um pênalti indiscutível, o dez deles correu para a cobrança, mas desperdiçou, alívio geral no lado de baixo do Equador, mas a alegria não perdurou e, de cabeça, depois de uma cobrança de escanteio, os alemães saíram na frente. Era preciso empatar o jogo antes de findar o primeiro tempo, mas a barreira e o eficiente esquema de retenção montado pelo técnico alemão era aparentemente intransponível. Em toda a história das copas do mundo o jogador que mais sofreu faltas num jogo só, foi um argentino, que em 82 sofreu nada menos que 38 faltas em noventa minutos, mas também este recorde estava com os minutos contados; em quarenta minutos de jogo Denver já sofrera vinte e duas faltas. Ele não parava em pé, a ordem do treinador alemão era tirá-lo de ação custasse o que custasse e isso ele deixava bem claro em suas orientações aos berros na beira do campo, corroborando a possibilidade de o boato que vazara da concentração alemã ter mesmo sido verdade. Denver já até saíra de maca o que deixou apreensiva a torcida e o time, voltou mancando um pouco, mas o médico informou rapidamente às emissoras que se tratava apenas de uma simples pancada e a dor passaria logo. O árbitro era atuante, já pendurara três alemães com cartão amarelo, era uma tática usada pela Seleção e pelo técnico; no primeiro tempo Denver abusava dos dribles e pendurava a zaga de todo o time inimigo, no segundo tempo eles esmoreciam um pouco e ficava mais fácil jogar. O segundo tempo começou ainda mais tenso para o Brasil do que o primeiro. Aos vinte minutos Denver sofreu a quadragésima falta (ou quadragésima terceira, difícil saber), num lance raro e talvez inédito: nas suas típicas e temidas arrancadas ele deixou para trás um beque que o atingiu de carrinho por trás o que descontrolou seu equilíbrio, mas não o suficiente para derrubá-lo, cambaleando, ele se livrou do segundo marcador que dispensou os mesmos recursos do primeiro, mas não conseguiu estancar a arrancada de Denver que, sentindo muita dor, mas com a bola sob controle deu mais um drible humilhante no terceiro, que da mesma forma que os outros dois tentou em vão derrubá-lo, a cena foi triste, quando deu mais dois passos para centrar a bola na área, Denver caiu de dor, o árbitro imediatamente tirou do bolso um mesmo cartão e o distribuiu aos três agressores que praticaram o antifutebol, a torcida comemorava; esperto, o técnico alemão alternou os marcadores escolhidos para marcar Denver, esculhambando todo o seu esquema tático, “Se eu não fizer isso iremos perder o jogo, esse menino joga demais, é de outro mundo”, confidenciara a um assessor ainda durante a partida. A verdade era que os alemães venciam por 1 a 0 e os trinta minutos do segundo tempo também. Denver durante todo o jogo não teve uma chance sequer de gol, as faltas muito longe da área impossibilitaram um chute direto, mas aos trinta e seis, ele carregou a bola sem driblar a ninguém, apenas levou-a escondendo ora num pé ora noutro, mas muito rápido. Chegou até a área. A chance de ouro que ele queria; tocou-a para um companheiro próximo e recebeu-a de volta com três zagueiros obstruindo até mesmo sua visão, Denver, pôs a bola não se sabe em que perna e pé e entre quase onze jogadores alemães dentro de um espaço que se tornou minúsculo, ele bateu forte, cruzado, de bico, vencendo o goleiro alemão, 1 a 1. Foi a única chance real de gol criada pelo Brasil e por ele, que não desperdiçou e na base da raça, acendeu um fio de esperança no coração de milhões de torcedores. Os alemães com seu jogo covarde se retraíram, como era de se esperar. O técnico deles berrava acintosamente para não deixar que Denver conseguisse dar continuidade a nenhuma jogada, ele esbravejava quando ele tocava na bola, sua falta de compostura causou-lhe a expulsão; ele reclamava demais com o árbitro, achava que este aceitava e marcava sempre faltas quando Denver caía. Os alemães normalmente muito frios, não sentiram a ausência do seu instrutor, continuavam com o mesmo ritmo de jogo, cadenciado, explorando as escassas possibilidades de contra ataque quando não obstante o Brasil apelava para o mesmo artifício; escanteio para o Brasil. Denver pediu a bola, não queria que ela fosse alçada na área, dada a estatura dos alemães, recebeu, se livrou numa ginga só de dois brutamontes e rente à linha de fundo refez o lance do jogo-treino tão debilmente descrito no capítulo XVIII, como se estivesse disputando uma pelada no subúrbio; prendeu a bola nos pés, e puxou-a por sobre a cabeça do incrédulo marcador alemão que nunca vira nada igual na vida e nem imaginara ser possível uma jogada daquela, alucinado, impediu a passagem da bola bisonhamente com a mão, como se estivesse jogando vôlei com a diferença de que, em vez de cortá-la, segurou-a, o susto dele foi tão grande que quando se deu conta do que havia feito, jogou assustado a bola ao chão quando ouviu o silvo estridente do árbitro assinalando a penalidade máxima. Os alemães levaram as mãos à cabeça em sinal de espanto e desilusão, deu pena de ver aqueles homens de constituição muscular privilegiada, subjugados por uma falha que eles jamais contariam que pudesse acontecer-lhes. Eram quarenta e dois do segundo tempo. O goleiro alemão era uma fortaleza humana. Defendera no Mundial duas cobranças em tempo normal e praticamente garantiu seu time na decisão por pênaltis contra os também favoritíssimos franceses. Era o grande goleiro da Copa, escalado em todas as seleções da semana. Tinha um metro e noventa e quatro de altura e quando suas mãos, semelhantes a asas de um albatroz, se estendiam cobriam uma boa parte de dentro do gol, mas ele causou muito tumulto até que o Brasil pudesse efetuar a cobrança, alegou que tinha um dor no peito ocasionada num lance anterior, mas o que ele queria era ganhar tempo e estressar nosso cobrador. Denver estava com a bola embaixo do braço, fora consultado se se encontrava em plenas condições psicológicas para efetuar a cobrança: “Deixa comigo”, foi a resposta curta e tranqüilizante que ouviu seu interlocutor, pôs a bola na marca de cal; ajeitou-a com carinho. Dizem que a visão de quem vai bater um pênalti é de que o goleiro é um dragão maior que a meta, e que na perspectiva do goleiro, o tamanho da trave é maior que o de um transatlântico, mas a maior responsabilidade, todos sabem, é de quem bate, o goleiro está ali, se a bola vier até ele, ótimo, ele a defende, se for gol, paciência, ele não poderia mesmo fazer muita coisa, mas ao batedor o drama é maior, se perder, terá a garantia de ver seu nome perpetuado no infinito como um perdedor, se fizer, não fez mais que a obrigação, lá estava então, o maior defensor, a maior envergadura conhecida, e o maior batedor, o único futebolista profissional conhecido capaz de bater um pênalti com a esquerda e com a direita com igual precisão, ironia maior o destino não poderia causar, o destino de dois homens dependiam de seus pés e suas mãos; ninguém poderia trocar um pela outra. Mão na cintura, Denver tomou uma meia-distância diagonal à bola. Olhar congestionado, semblante pesado e suor abundante, ele correu e com o pé direito prestes a mandar a bola em direção ao gol, parou, e em menos de meio milésimo de segundo coisas grandiosas aconteceram; ele travou o pé direito a meio centímetro da bola; olhou nos olhos do goleiro, que ficara imóvel esperando o chute, ao ver que o goleiro não se deslocava só lhe restou colocar a bola o mais distante possível do alcance do goleiro que, como uma águia, voou com seus braços de albatroz mas não conseguiu evitar a bola que entrara no seu ângulo superior esquerdo, não havia a menor chance, “Foi um risco” disse depois Denver, que confessou o medo e disse ter sido o seu pior momento em toda a curta carreira, a sua alegria e a da Seleção e de boa parte do mundo foi indizível, mas quando todos pensaram que estava tudo acabado e definido, o árbitro concedera mais cinco minutos de prorrogação e a Alemanha era só pressão, numa saída rápida, Denver escapuliu pela direita correndo rente a linha lateral, lançou a bola para si mesmo e quando deu um salto para pegá-la adiante, dois alemães o acertam ainda no ar, Denver rolou no chão de dor e todo o banco de reservas do Brasil, já escaldado, invadiu o campo e por pouco não se iniciara uma pancadaria total, o árbitro perdeu o controle da partida, a polícia entrou em campo para evitar uma tragédia, enquanto isso, Denver se contorcia no chão sem atendimento médico, a entrada fora criminosa, ele saiu de maca e a apreensão dos atônitos brasileiros era a tônica do que seria a próxima semana até a finalíssima contra os mais do que nunca temidos argentinos. Denver saíra de campo para não mais voltar e depois de muita confusão o jogo recomeçou sem sua maior estrela. “As tomografias ainda não podem assegurar se ele terá ou não condições de jogar a final, é ainda muito precoce qualquer tipo de análise e qualquer que for feita não passará de especulação”, falou um abatido médico da Seleção, as especulações dando conta de que era uma estratégia para confundir a Argentina foi tema de acirradas discussões, mas as imagens mostradas em todos os ângulos revelavam que a coisa não se tratava apenas de estratégia, o primeiro alemão que o acertou ainda no ar deixou carimbados na coxa do Denver todas os cravos de sua chuteira, até mesmo a imprensa alemã, num desencargo de consciência, deplorou o comportamento dos seus compatriotas com desagravos como este: “DESPEDIDA VERGONHOSA”, estampou um vespertino alemão, a ojeriza criada em todo o mundo pela atuação cruel dos alemães no jogo contra o Brasil por pouco não teve desdobramentos diplomáticos. Denver estava incomunicável, apenas alguns insossos boletins davam conta de sua saúde, “DENVER FORA DA FINAL”, eram as chamadas de jornais escritos, revistas, não apenas esportivas, mas de interesse geral, telejornais e toda a imprensa, até o sisudo, conceituado e prestigioso jornal americano The New York Times trazia em sua chamada de capa uma seqüência de fotos do pequeno gênio brasileiro dando vida à dor em caretas horríveis, essa seqüência rodou o mundo pelo realismo e expressão de agonia na face distorcida do maior destaque daquele Mundial. A comoção internacional que se fez durante aqueles dias foi colossal; às redações das emissoras chegavam receitas de curas milagrosas, de rezas, leituras de mantras. Simpatias e toda a sorte de coisas imagináveis que a cabeça dos aluados pode produzir. A confirmação de que ele falaria em viva voz acalmou um pouco os ânimos, na terça-feira às quinze horas uma entrevista coletiva estava marcada para que Denver pudesse enfim dar cabo das especulações, em nota divulgada ao fim do alegre e triste domingo da vitória do Brasil, ele conversou por telefone prolongadamente com alguns amigos e familiares tranqüilizando-os, mas deixando aflito todo um país. Terça-feira, 17 de julho, quinze horas em ponto. Denver estava com um profundo olho vermelho e vago, dilacerado pela possibilidade de ver seu maior sonho esvair-se das mãos sem nada poder fazer. A primeira pergunta ele respondeu com voz sumida, como se ela quisesse entrar em sua boca ao invés de sair, palmas das mãos segurando o queixo, barba por fazer, ele ignorou a segunda pergunta e, muito emotivo começou a proferir as palavras internas, mas não sem antes lançar um úmido olhar ecumênico para a exacerbada platéia: “Não há porque todos ficarem enternecidos por causa da minha provável ausência no jogo decisivo da Seleção, quero deixar claro que lutarei até o fim de minhas forças para enfrentar a Argentina, agradeço a solidariedade de toda a gente que comigo tem compartilhado a imensa dor, o Brasil terá todas as condições de vencer e coroar a boa campanha com o título, no mais, não há muita coisa a dizer, por favor, sejam breves em suas perguntas.” “Você tem ressentimentos dos alemães?” “Não.”, respondeu ele, como pediu que fossem feitas as perguntas. “Toda a imprensa internacional, tem relatado seu drama, com muito destaque e otimismo, acha que o Brasil poderá vencer sem você?” “Há um exagero. É natural. Isso faz com que as vendas dos jornais sejam maiores... e o Brasil poderá sim ganhar, com ou sem mim”. “A natureza da sua contusão não é propriamente de ligamentos ou ruptura de músculos; pessoalmente, você não acredita e sabe que poderá jogar?” “Gostaria de saber um monte de outras coisas! Mas vou ser sincero mais uma vez e dizer que não existe nenhum plano mirabolante... a possibilidade de eu jogar ou não é a mesma” Depois de dezenas de outras perguntas como esta, Denver deixou a sala de impressa do luxuoso hotel onde a Seleção se concentrava. Visivelmente entristecido, mas demonstrando uma capacidade incrível de permanecer sereno, enquanto o time treinava, ele se tratava no quarto com gelo e remédios convencionais. No sábado os japoneses ficaram com o terceiro lugar numa belíssima festa promovida pela organização do Mundial, o jogo que valia muito para o Japão, teve uma grande audiência dando mostras do que seria a grande final no dia seguinte. O Japão venceu por 3 a 1 uma Alemanha desfalcada e desmotivada, mas pareceu que venceu a Copa tamanha a festa depois do jogo. Um show de pirotecnia marcou aquela decisão do terceiro e quarto lugares, o que viria a seguir para o “Jogo do Século” seria um marco, a Seleção mais tradicional de todas as copas contra o sua maior rival, as atenções estavam todas voltadas para se saber se Denver iria ou não jogar. Os argentinos por sua vez não deram muita bola e diziam que viessem os brasileiros como viessem iriam ganhar a Copa, “Não temos medo do Brasil, já ganhamos deles diversas vezes e essa será apenas mais uma vez”, declarava um dos orgulhosos jogadores argentinos. Em Londres, as apostas tinham uma simulação e outra: com Denver em campo, o Brasil tinha 70% da preferência dos apostadores, sem ele, os argentinos superavam os 90%. Os torcedores argentinos cantavam em prosa e verso a conquista do título que ainda nem chegara, promoviam buzinaços e algazarras em frente ao hotel do Brasil como se estivessem em Buenos Aires. Como os do Brasil, seus treinos eram secretos e disputados, com um time afinado e muito entrosado, a base já estava formada e o mesmo time jogava junto há três anos, era uma verdadeira orquestra platina em campo. A defesa era equilibrada, o meio de campo criativo e talentoso e o ataque tão eficaz quanto o resto do time, o banco de reservas da Argentina também causava temor ao adversário: era formado por titulares de times de primeira linha da Europa, era muito discutida a ausência de um ou outro jogador entre os titulares, doce problema para o técnico; a saber, ou eles escondiam ou desdenhavam mesmo da presença ou não de Denver em campo, para eles do alto dos seus egos inflados, não poderiam amedarem-se de um único jogador mesmo se tratando de quem se tratava, mas era simulação, vendo e revendo os teipes dos jogos do Brasil os argentinos sabiam que seria muito difícil tentar pará-lo, (em tempo remoto eles também criaram problema semelhante aos seus adversários), mas já estava decidido, se Denver jogasse, dois homens iriam se incumbir da mais dura tarefa da Copa. 21 de Julho 16:00. Céu aberto e tempo bom, temperatura no andar dos 24º. O segredo mais bem guardado do mundo chegou junto com a Seleção ao Estádio Nacional. Na escalação oficial que os times são obrigados a fornecer a toda imprensa não constava entre os que iniciariam o jogo o nome de Denver, os argentinos não sabiam disso e mantiveram o time que vencera a batalha contra o Japão. Quando as duas seleções se perfilaram para ouvir e talvez entoarem seus respectivos hinos a audiência global já batia todos os recordes da história, nunca, desde a chegada do homem à lua, um evento atraiu tamanha proporção, os patrocinadores comemoravam, a entidade que organiza o torneio quadrienal também comemorava; fora o maior êxito publicitário e financeiro de todos os tempos. Houve relatos em todo o mundo de que ocorrências policiais simplesmente minguaram até desaparecerem, ruas e cidades pareciam como se fossem fantasmas, indústrias flexibilizaram seus horários para que os operários pudessem assistir ao jogo, o consumo de energia na maior parte do mundo estagnou-se como se toda a terra estivesse realizando uma única função e usando apenas determinados aparelhos elétricos. Agências de notícias cancelaram qualquer outra atividade que não fosse a cobertura do jogo, catástrofes naturais simplesmente não foram registradas. Até os astronautas em órbita na Estação Espacial Internacional interagiram com o jogo escolhendo o cara ou coroa e desejando boa sorte para as duas seleções, enfim, foi de fato o dia em que o mundo parou. As imagens de tevê focalizavam incessantemente Denver sentado no banco de reservas com uma cara alegre, lendo uma revista de histórias em quadrinhos, que as potentes teleobjetivas captaram para delírio dos fãs deste gênero. A festa de encerramento encantara espectadores e telespectadores pela beleza e performance dos artistas que deram mais luz ao espetáculo, na tribuna de honra quem fora designado para entregar a cobiçada Taça Fifa aos vencedores foi ninguém menos que o então Prêmio Nobel da Paz, que antes do início da partida fizera um breve e aplaudidíssimo discurso pela paz, nunca a entidade que administra o futebol concentrara tantos esforços para fazer brilhar como nunca a final de uma Copa do Mundo. Começou o jogo e o nervosismo. Os argentinos foram logo para cima do Brasil e no primeiro ataque conseguiu um córner numa bela defesa do arqueiro brasileiro, o Brasil muito nervoso em campo não conseguia impor seu ritmo, e os argentinos pressionaram com uma marcação muito forte na saída de bola brasileira. Aos doze minutos numa linda troca de passes entre seus atacantes a Argentina quase marcou, e a torcida que estava dividida no estádio, lançou um grito de pavor em favor do Brasil, três minutos depois, com os talentosos argentinos jogando na área do Brasil, um passe encontrou o vice-artilheiro da Copa que driblou o goleiro e fez Argentina 1 Brasil 0. O banco do Brasil entrou em desespero. Muitos não sabiam se Denver tinha ou não condição de jogo e se estava ali apenas para causar um efeito psicológico nos argentinos, a torcida brasileira pedia a sua presença em campo, mesmo que estivesse machucado. Os argentinos continuaram atacando e o Brasil apenas se defendia como podia e tentava reagir em alguns bons contraataques. Aos vinte e seis minutos de jogo, o delírio. O técnico do Brasil chamou a sua maior estrela e esperança de gols. Denver levantou com um sorriso apreensivo do banco, e a torcida também. Neste mesmo momento o técnico argentino chamou um dos homens que estava escalado para marcá-lo. Denver fez um breve e fotografado aquecimento com o preparador físico e, abrindo devagarzinho o fecho-écler do agasalho oficial da Seleção, todas as centenas de câmeras no estádio esqueceramse do jogo para registrar o momento mágico; calmo, Denver ergueu as meias que estavam arriadas, colocou a camisa amarela para dentro do calção parcimoniosamente. Correu os dois polegares dentro do calção. Ouviu as últimas instruções do técnico. Deu uns três saltos se apoiando na perna machucada e entrou em campo com a aura da vitória orlando seu corpo. Recebeu a braçadeira de capitão. As duas substituições foram feitas ao mesmo tempo, os argentinos haviam armado um esquema atentando para esta ocultamente e temida possibilidade. Seu primeiro toque na bola foi muito aplaudido o que ele fez então, era para avisar: olha; eu cheguei. Recebendo uma bola sem perigo no meio campo ele passou o pé esquerdo sobre ela e com o direito cutucou-a para frente e depois voltando com o esquerdo produziu um drible sensacional que levantou a galera, deu moral ao Brasil. A partida ganhou outra dinâmica. Os argentinos jogando sempre pra frente e se apoiando nos seus orgulhos não se abalaram com a entrada de Denver e mantiveram seu ritmo de jogo, aos quarenta minutos reclamaram da não marcação de um pênalti que não havia acontecido de fato. Denver tinha uma sombra que o perseguia por todos os lados do campo, e a implacável marcação tentava tirar a sua concentração: puxava-lhe o calção, lhe direcionava impropérios que as câmeras traduziam pela leitura labial. Numa ocasião chegara a até cuspir em seu rosto em meio a um grande tumulto dentro da área em decorrência de uma cobrança de escanteio, Denver com a fúria inofensiva de um passarinho, lançou-lhe um olhar aziago e com a manga da camisa limpou o excremento bucal, o argentino não deveria tê-lo provocado daquela forma. O troco veio em grande estilo e em outra roupagem; passados alguns minutos, Denver encarou-o e colocou a bola por entre as pernas do perverso cuspidor, quando este tornou a ficar em pé e voltou para desferir um golpe como revide, Denver por elevação deu-lhe um chapéu desconcertante, fez lembrar as touradas em Madri, a torcida em coro: “olé, olé!, olé!”. O primeiro tempo terminou em 1 a 0 para a Argentina, que estivera melhor durante os 45 minutos iniciais, mas que sentiu o baque da entrada de Denver que reprimiu um pouco o ímpeto inicial deles. A Argentina estava um pouco mais desgastada que o Brasil, jogara 120 minutos na semifinal e ainda houve o desgaste da semana, sem saber que esquema adotar para tentar anular o craque brasileiro. Começou o segundo tempo. O Brasil mudou um pouco o estilo e pressionou os argentinos nos primeiros minutos. Numa falta violentíssima, à guisa da do alemão sobre Denver, um zagueiro brasileiro foi expulso, a torcida argentina comemorou esfuziantemente, as coisas se complicariam ainda mais para o Brasil. Denver, pois a mão na cintura e ergueu os olhos na direção do céu, como se tentasse pedir para as forças divinas uma inspiração para superar a dura marcação. Os argentinos mais leves em campo comandaram uma reação fulminante, numa rápida troca de passes, uma bola foi alçada na área, o goleiro brasileiro se antecipou atabalhoadamente à zaga se desequilibrando e soltando a bola nos pés de um atacante que, também desequilibrado, chutou a bola para o gol vazio, mas esta bateu na trave. No rebote, o zagueiro chutou-a de qualquer maneira, a bola bateu nas costas de um brasileiro e voltou, dessa vez sem chances de que a sorte a acompanhasse no retorno, a Argentina fez 2 a 0. Não foi um gol digno de uma final de Copa. Os jogadores o banco e a torcida comemoram, as cabinas das emissoras argentinas que transmitiam o jogo explodiram numa felicidade ímpar. Os jogadores brasileiros em campo se entreolharam com desânimo e pavor estampado no rosto. Capitaneando o time, Denver foi até as redes e resgatou a bola e o moral do time, levou-a até o grande círculo e conversou com todos os jogadores, chamou para si toda a responsabilidade. Os jogadores entenderam o recado. O técnico mandou que passassem a bola imediatamente para Denver, que disfarçadamente levou seguidas vezes as mãos à perna contundida. A apreensão no banco de reservas foi enorme, o técnico do Brasil em prantos pedia que Denver ignorasse a dor e ao menos permanecesse em campo; em mais uma série de faltas sofridas, ele caiu. O desespero do Brasil aumentou grandemente quando ele saiu de maca, por ordem do técnico outro atacante começou a se aquecer. Todos os olhos do estádio ficaram vidrados no médico que o atendeu, o pesar e a preocupação contaminaram até os torcedores argentinos. O clima dentro de campo era lúgubre. Aqueles instantes nem pareciam de uma final de Copa do Mundo, nas arquibancadas as pessoas rezavam pedindo a Deus que não fosse nada de mais grave e que Denver voltasse o mais rápido possível. Ele já estava a três preciosos minutos sendo atendido. Pelo rádio, o técnico conversava com o médico para saber se Denver poderia voltar ou não, o médico pediu para que esperasse mais um pouco, o técnico do Brasil se desesperava. O atacante já estava na beira do campo, só esperando autorização para entrar. O homem que sobe a placa indicando a substituição se preparava. O jogador assinou a súmula. Toda a torcida pediu para que Denver continuasse. A tensão subiu vertiginosamente e os gritos de “volta, volta, volta”, eram de arrepiar, as câmeras, maiores aliadas dos telespectadores, flagraram as pernas do Denver sangrando e um novo hematoma na região próxima a primeira contusão, seu rosto, totalmente desfigurado pelos esgares de dor, tinha um aspecto horrível, todo o seu sofrimento era transmitido ao vivo para uma platéia que, à moda dos romanos, se compadecia quando a fera era a vítima e não o gladiador. Quatro minutos já se passavam, a Argentina atacava cada vez com maior perigo, o técnico do Brasil fez a última consulta ao médico; não dava mais para esperar, o atacante, impaciente à beira do campo, olhava atordoado para o técnico, esperando a ordem para entrar. A aflição se desfez quando o médico respondeu que Denver iria voltar, o atacante voltou ao banco de reservas compreensivelmente resignado, a torcida explodiu mais uma vez quando viu Denver de pé, ainda que resfolegando com dificuldade, esperando a bola sair, para que ele próprio saísse da agonia, juntamente com bilhões de espectadores. Com um curativo feito às pressas e o sangue estancado, ele voltou manquitolando para dentro do campo, trazendo consigo as esperanças. Eram quinze minutos do segundo tempo. Denver cadenciou e mudou radicalmente seu modo de jogar, ficou parado em campo orientando e fazendo alguns passes, na única brecha que os argentinos deram a ele, acertou um passe perfeito, o centroavante correu, evitou a saída da bola e lançou na área para de carrinho o zagueiro do Brasil fazer o gol. 2 a 1. O estádio veio abaixo. Os argentinos não se intimidaram e continuaram as pressões. O Brasil, apenas se defendendo, tirava fôlego e respirava quando Denver dominava a bola e suprimia o ritmo alucinante de jogo imposto pelos excelentes jogadores argentinos, o Brasil melhorou um pouco e não ficou tão dependente das iniciativas de Denver criando boas chances, mas nunca uma real situação de gol. Trinta e cinco minutos de jogo, e quase o Brasil marcou num chute forte de fora da área, os argentinos sentindo o cansaço natural de quem atacava e buscava o jogo desde o início, diminuiu o ritmo. Era o que o Brasil precisava. Denver se isolou na área argentina e pedia a bola incansavelmente, mas ela não chegava e quando chegava era facilmente cortada pelos argentinos. Denver ficara por todo o jogo sem praticamente entrar na área argentina, em função da enorme marcação feita sobre ele, apenas cortejava uma beirada dela mais era logo impedido de caminhar mais, num bate e rebate num meio campo, Dever fez um corta-luz e nessa jogada se livrou de dois beques, pediu a bola de volta e a recebeu de frente para o gol argentino, ele, em vez de dar vazão à jogada, parou e tentou cavar uma falta, os argentinos, malandros e espertos com a sua malícia, também pararam e apenas o cercaram. Denver, enclausurado, teve mais um de seus repentes de gênio: encarou os três marcadores que o cercavam, puxou a bola de uma perna à outra, com o bico da chuteira do pé direito ergueu levemente a bola na direção de sua canela esquerda, numa espécie de tabela consigo próprio, conseguiu passá-la entre os argentinos que não acreditaram em sua ousadia, resultado; deram-lhe uma rasteira por trás no que o árbitro, a dois passos da jogada, assinalou a falta. O protesto dos argentinos foi sonoro e incivilizado. Peitaram o árbitro no que o obrigou a distribuir dois cartões amarelos. Ora, a falta havia sido marcada a meio metro da meia-lua da grande área, era a chance que ele pedira a Deus, a torcida criou um silêncio funéreo que foi crescendo à medida que o cortejo argentino se descompunha. Convencer os argentinos a ficarem na barreira sem se adiantarem foi um dilema; eles ignoraram a marca de spray, e nem um cartão aplicado no homem base da barreira conteve-os sobre a linha, foi necessário que o árbitro expulsasse um argentino para que os outros o obedecessem. Os argentinos sabiam do perigo. O que pensar de um homem capaz de efetuar dez cobranças de falta e obter êxito em quase nove? Dali para Denver era mais que meio gol, ele ajeitou a bola com tanto carinho e tanta concentração que causou temor até entre seus companheiros. Os argentinos com seus maiores homens na barreira não tinham alternativa que não confiar nas mãos de seu goleiro. Como de costume, Denver pôs as mãos à cintura, como uma xícara de duas asas, correu para a bola e ameaçou que ia bater, quando a barreira pulou para tentar interceptar a bola, ele deu a famosa paradinha e quando os argentinos voltaram ao chão, viram, impotentes, a bola passar sobre as suas cabeças e entrar no ângulo do goleiro, que apoiando as costas ao pé da trave não se conformava em ter deixado a bola entrar e dava socos ferozes no gramado, imaginando que este fosse as pernas do habilidosíssimo Denver. Argentina 2, Brasil 2. O gol produziu uma espécie de alucinação coletiva tão intensa que todos os rostos pareciam iguais, tinham a mesma feição de alegria de quando se recebe um presente. Como Fênix, Denver voltara a campo para ajudar o Brasil a empatar o jogo. O fim do segundo tempo se aproximava inexoravelmente, e os dois times já não se arriscavam tanto em ataques. Quando o árbitro apontou para o centro do campo, um breve alívio pairou sobre os olhares cansados de todos os envolvidos naquela inesquecível partida de futebol. Até mesmo os soldados que garantiam a segurança se mostravam inseguros na emoção. Bilhões de pessoas em todo mundo não tiraram os olhos da tela nem mesmo no intervalo, queriam saber todos como iria ser o fim daquela guerra entre os titãs incansáveis e valentes. Os massagistas e as comissões técnicas dos dois times entraram em campo para oferecer todo tipo de apoio, mas houve uma cena que comoveu o mundo. Com os médicos desatando seu curativo na esperança de aliviar-lhe a dor, Denver lançou um olhar sereno para o vazio, os pensamentos que passaram naquela cabeça aquele momento foram os mais desejados de se tornarem públicos, com um auxiliar lhe entregando uma garrafa d’água para amainar sua sede ele bebericou o líquido e deixou a garrafa cair sobre seu corpo enfraquecido; com parcimônia, trouxera de volta o rosto na direção do vazio contemplando o nada por longos e infindáveis instantes, a este momento, tendo todas as lentes do mundo a lhe mirarem sem pudor, um narrador brasileiro, com muita presença de espírito, disse, voz empastada de emoção: “....Taí...um grande brasileiro... um artista de dotes inexplicáveis, sendo observado por dez bilhões de olhos”, onde o locutor foi buscar inspiração para proferir aquelas palavras ficou difícil saber, a solução para a interpretação exata daquele olhar carregado de mistério e nenhum destino, lançado e flagrado por lentes naturais e artificiais talvez tenha se assemelhado a maior e mais enigmática reflexão da dramaturgia em todos os tempos proferida pelo príncipe dinamarquês Hamlet no mais inesquecível dos solilóquios: “Ser ou não ser, eis a questão”, da mesma forma que a tela O Grito, do pintor norueguês Edvard Munch, expressa o símbolo da solidão moderna onde a voz parece sair da tinta, aquele olhar lançava um grito de alerta. A prorrogação começou com os times muito mais tensos e qualquer possibilidade de erro era evitada se evitando jogar futebol. Com o avanço dos primeiros minutos, os times se soltaram um pouco mais e, ainda que timidamente, tentaram ensaiar jogadas ofensivas, Denver era quase como o famoso adágio bíblico: “Mais vale um cão vivo do que um leão morto”, ele não era nem um nem outro; era uma fera ferida, durante os quinze minutos da prorrogação ele nada fez, nunca na vida tivera sido tão omisso num jogo quanto fora naquele meio tempo. Escondeu-se das bolas. As devolvia rapidamente quando algum companheiro lhe passava ela. Não era nem sombra do corajoso e voluntarioso jogador de poucos minutos atrás. Terminado o primeiro tempo da prorrogação, as duas seleções trocaram rapidamente de campo, agora era o tudo ou nada. O Gol de Ouro iria ser perseguido como se persegue a salvação num naufrágio. Com os nervos e os espíritos à flor da pele, os jogadores tentavam em vão se equilibrar nas suas emoções e deram alguma emoção ao jogo, precisava. Numa descida rápida os argentinos conseguiram infiltrar-se na retranca armada pelo Brasil e chutaram uma bola perigosa sobre o gol brasileiro, a torcida argentina fez um “Uhhhh!”, que estremeceu as estruturas do estádio. Qualquer tentativa ofensiva era acompanhada de uma descarga de adrenalina gelada. Denver parecia não estar em campo. Escondia-se. Estava jogando de zagueiro a um certo tempo do jogo. Os argentinos acreditavam que poderiam fazer o gol e se arriscaram mais do que o Brasil; os dois times queriam mesmo que a sorte fosse decidida nos temíveis pênaltis. O jogo era teste para cardíaco. Os argentinos tentaram pela derradeira vez chegar ao título num chute de fora da área, tiro de meta para o Brasil. Os cronômetros marcavam exatamente doze minutos e trinta segundos do segundo tempo da prorrogação. Restavam dois minutos e meio para o fim do jogo e o começo do suplício. O goleiro brasileiro cobrou o tiro de meta sossegado e lentamente, como que pedindo para findar a agonia nos pés de Denver que pedira a bola. Ele a carregou claudicante até uns cinco metros da linha que divide o campo, pé ante pé. Foi quando o primeiro argentino veio para lhe dar o primeiro combate; Denver fez uma jogada de efeito, um elástico, deixando na saudade o atacante argentino e partiu para um rush fabuloso; sempre dominando a bola com a pata canhota ele recebeu mais dois jogadores argentinos ainda distantes da intermediária, pôs o bico da chuteira embaixo da bola e num toque rápido passou por entre os dois argentinos que tentaram em vão fechar sua passagem, com absoluto domínio da bola deu um toque curto e se distanciou um pouco dela; uma barreira de quatro argentinos o esperava com o propósito de não deixar passar nem um nem outra, quando chegou à barreira de zagueiros, Denver pôs os cravos da chuteira sobre a bola e ofereceu-lhes a costa no mesmo instante em que se equilibrava na circunferência traiçoeira da bola e, como se bailasse sobre ela, tirou-a da direção do primeiro defensor puxando-a para si com os mesmos cravos; com o outro pé, que estavam muito próximos entre si, puxou-a novamente livrando-se do segundo oponente, já com o corpo aterrizado, deu um leve toque de lado e se livrou do terceiro marcador que passou lotado, e como último recurso puxou-lhe pela camisa, rasgando-a, já dentro da área, numa ginga de corpo deixou sentado mais outro zagueiro, driblou também o goleiro que se jogara em seus pés procurando em vão a bola, e empurrou para dentro do gol toda a alegria, toda a fantasia e todo o ar represado nos pulmões de milhões de brasileiros em todo o mundo que gritaram: gol do Brasil! Findou-se ali uma das mais belas páginas de toda a história dos mundiais e porque não dizer dos esportes genéricos? Os doze segundos que Denver levou para carregar a bola de um gol ao outro, eternizou-se para sempre na memória e no coração de todos os povos do mundo. Naquele momento, todas as línguas se tornaram uma, todos os pensamentos se tornaram um. Até a exigente torcida argentina aplaudiu de pé a vitória brasileira, até eles que colocaram em campo toda a rivalidade política, esportiva e social para ser decidida dentro de campo, se curvaram diante da maior e mais sublime de todas as vitórias que é saber perder com honra, e foi isso o que fizeram os argentinos. Quando o árbitro apitou o final do jogo perdido, viram-se tantas coisas, sentiram-se tantas dores nas almas, mas afinal quem está pronto para vencer, também deve o estar para perder, e os argentinos incrivelmente, estavam. Parte da torcida ignorou os cordões de isolamento. Invadiram o campo derrubando placas e fazendo uma algazarra incontrolável, o mosaico que formava uma bandeira brasileira se desfez na balbúrdia. Caído, com uma chusma de gente sobre si, Denver agradecia aos céus pela vitória. Chorava, mas não de alegria e sim de dor, como confessou posteriormente. Alçado à condição de maior herói do país, Denver se comoveu e a muito custo manteve consigo a camisa amarela com que fizera o mais antológico gol de todos os tempos, ele havia prometido a camisa para uma Organização Não Governamental que cuidava da desativação de minas terrestres em Angola e outros países, eles iriam leiloá-la, fosse o resultado que fosse. Amparado, até os ânimos se esfriarem um pouco, ele foi conduzido pela organização do evento até a tribuna de honra especialmente montada para as entregas da taça e das medalhas, neste percurso, Denver caminhava debilmente se arrastando com dificuldade sobre as pernas esquerda e direita. Caminhou o passo dos vencedores, com o mesmo e preocupante olhar de minutos atrás, parecia fora de si, acompanhado dos amigos que o ajudaram a conquistar o título ele chegou às tribunas, antes de receber a taça das mãos de um incrédulo e entusiasmado Nobel, ele ouviu uma enxurrada de palavras elogiosas ao pé do ouvido, e mais uma vez, quebrando todos os protocolos de antemão ensaiados, flertou a taça com um olhar de gozo e descaso, como um bêbado que mira a última garrafa de uma série; pensas leitor do bem, pensas que ele ergueu a taça como fizeram todos que a conquistaram? Não senhor; ele apenas ninou-a levemente contraindo-a no peito, como quem nina a um bebê e entregou-a aos outros companheiros. Do presidente da FIFA recebeu a medalha de campeão e as saudações de sempre, esperou uns cinco minutos com um ar de impaciência e desceu, sua missão estava cumprida. Desceu a escadaria em meio a apalpos de toda a parte e desapareceu na entrada do túnel... CAPÍTULO XXXIV CAUSA E EFEITO O gol feito por Denver tomou proporções maiores que a própria conquista do Mundial, numa imagem empolgante, uma a câmera instalada ao pé da trave argentina, registrou os momentos em que Denver começara a avançar em direção à meta argentina; a cada drible efetuado, uma parte das arquibancadas levantava-se acompanhando-o na corrida, um a um, os adversários sendo driblados, e a torcida levantando, como se já tivesse em seus planos que ele, a partir daquele lance iria liquidar a fatura. Duas horas depois do título toda a comissão técnica e alguns jogadores se reuniam para a mais disputada de todas as coletivas, centenas de profissionais da comunicação se acotovelaram para ouvir a voz do homem que desequilibrara a Copa e o mesmo fazia com o mundo. Perna enfaixada, Denver chegou amparado pelos médicos e por um ar preocupado, como não compreendendo o motivo de toda aquela celeuma, ele foi fuzilado por perguntas, e as respondeu a todas, num inglês que ainda carecia de ajustes: “Bem, pessoal, iniciou Denver, não há razão para tumulto, por favor!”. “Como você se sente depois de fazer o que fez? Você tem a dimensão exata de sua importância de agora em diante, não apenas no âmbito do esporte, você tem em mente que é hoje a maior personalidade do mundo?”, perguntou um jornalista italiano. “Bem, eu não quero fazer disso um palanque para debater idéias filosóficas nem tampouco de cunho social. Eu coloco a conquista da Copa no seu devido lugar, relego a ela a condição de uma mera conquista esportiva, o meu país e todo o mundo vão continuar a sofrer todos os problemas que sempre sofreram; um título, naturalmente, não vai mudar absolutamente nada, assim, eu quero dizer a vocês que não me encanto a ponto de deslumbrar-me com o fato. Vejam vocês: a banalidade é o principal fator para que as pessoas não dêem valor para as coisas, entendam, por favor; se a morte não fosse uma constante no mundo e apenas alguns casos dela fossem relatados aqui e ali, um médico que salvasse uma vida teria um valor muito maior do que tem normalmente; de modo que pessoas morrem todos os dias, torna-se um algo sem a devida importância, a raridade faz a preciosidade, se houvesse uma Copa do Mundo por mês, se acontecessem lances e gols como esses que você acompanharam, com uma maior freqüência, a esta hora estaríamos todos em casa, brincando com os nossos filhos, falo isso agora, porque o mundo teria de deter sua atenção a temas mais importantes do que um evento esportivo, se houvesse uma concentração de esforços e de cooperação entre as pessoas, por certo o mundo não viveria como vive, mas esta questão não é da minha conta, nada posso fazer e nem quero, que fique claro, para mudar o sistema, lhes digo apenas que estou muito feliz em poder ter ajudado o Brasil a conquistar o título e sei que neste momento milhões de brasileiros estão muito felizes, qualquer coisa acima dessas impressões serão por mim descartadas, agora, por favor, me perdoem, qual era mesmo a sua pergunta....?”. CAPÍTULO XXXV NÃO PERDOE, LEITOR Os jornais de todo o mundo estamparam nas suas capas as fotos de Denver e da Seleção campeã do mundo. No Brasil, um importante e centenário diário, pela primeira vez na sua história, não publicou nenhuma legenda sequer, apenas uma foto de Denver consumiu todo o espaço da capa no momento em que acariciava a taça. Com o perdão da hipérbole, e o mesmo das incomparáveis tarefas de um e de outro vou transpor aqui o último versículo do último livro dos Quatro Evangelhos, em que o evangelista João enuncia: “Há, de fato, também muitas outras coisas que Jesus fez, as quais, se alguma vez fossem escritas em todos os pormenores, suponho que o próprio mundo não poderia conter os rolos escritos”. Não perdoe, leitor, não perdoe. CAPÍTULO XXXVI AS IMPRUDÊNCIAS AFLORAM... Sim, este era o nosso pupilo, desafiando interesses de todas as partes ele conseguia se impor. Ainda no hotel da Seleção pouco antes do embarque, causou-se um desconforto porque ele havia consultado o presidente da confederação para saber se havia a possibilidade de ele não embarcar para o Brasil junto com o time, o presidente desembestou a falar: “Você enlouqueceu? Se chegarmos no Brasil sem você o povo manda o avião de volta! Nem sonhe com essa possibilidade”. Isso não vazou por nenhum meio, Denver era muito discreto e fez a petição com toda simplicidade que o acompanhara até ali, ele temia ser por demais ovacionado pelo povo, “Não queria ser idolatrado, apenas a admiração seria suficiente...”, confessava-nos Denver, mas era imprudência sua, se não quisesse isso, não teria feito o que fez. “E, no entanto, se move”, disse Galileu entre dentes quando foi intimado pela Santa (?) Inquisição acusado de heresia por defender que a terra gira em torno do sol. Move-se sim, Galileu, e como se move! CAPÍTULO XXXVII NA ESCOLTA E NA TIMIDEZ Ao entrar em espaço aéreo brasileiro, o avião que trazia a Seleção campeã de volta à pátria, foi ladeado por uma escolta triunfal; caças da Força Aérea Brasileira. A capital federal havia se preparado para receber o escrete de ouro, como nunca havia sido feito antes, milhares de pessoas foram até o aeroporto recepcionar o time, no Palácio do Planalto, o presidente e seus ministros aguardavam o time, iriam ser condecorados com a maior comenda da República: a Ordem do Cruzeiro do Sul. Quando o Airbus finalmente parou na pista e a porta se abriu, todos esperavam que Denver fosse o primeiro a aparecer levantando a taça e o orgulho nacional, se enganaram. Ele não foi o primeiro, nem o último, tampouco tinha nos braços a taça que acalentou tão docemente quando da final. Denver se misturou entre os jogadores e comemorou com moderação, ele apenas não era moderado quando estava em campo. Ele fugiu de tudo e de todos, alegou necessidade de descanso, indeferiu todos os pedidos para entrevistas e participações nos vários eventos criados para celebrar a conquista, disfarçadamente, numa manobra de guerra, conseguiu se refugiar num pequeno hotel em Itapira uma pacata cidade nos arredores do Estado de São Paulo. Os hóspedes, os citadinos, ninguém acreditava que ele pudesse estar lá. Muitos se assustaram com a sua presença e aconteceram muitas situações curiosas, ele se deliciava daquilo tudo. Os meses se passaram, e na onda de toda festa pela conquista Denver recebeu homenagens de todo o tipo em todos os lugares, políticos citavam seu nome nos discursos, ele era a bola da vez, mas de todas as homenagens houve uma que deu o que falar. CAPÍTULO XXXVIII DE TODAS AS HONRARIAS, A MAIOR Como já mencionado Denver havia cedido antecipadamente sua camisa para ser leiloada pela ONG, que faria o leilão via Internet. O leilão, como toda a sua carreira, fora um sucesso; o pedaço de tecido amarelo foi arrematado por nove milhões e oitocentos mil dólares. A surpresa não tinha sido o valor da peça preciosa e sim o seu arrematante; o museu do Louvre. Encantados que ficaram, os diretores do museu decidiram manter uma sala com a camisa rasgada em exposição permanente juntamente com todos os gols em formato digital que ele fizera naquele Mundial, foi a maior de todas as honras que ele poderia sonhar. Isso remeteu a uma frase dita por um dos maiores dramaturgos do país, que certa vez disse sobre um certo brasileiro: “Ele poderá chegar no céu e falar assim com Leonardo Da Vinci, com o Michelangelo e com o Beethoven: ‘E aí ‘colegas’, como é que vai?”. Depois dessa homenagem grandiosa – uso “grandiosa” porque meu vocabulário não encontra outra palavra -, me convenci de que Denver não tinha nascido nem aqui nem em alhures. CAPÍTILO XXXIX O LEILÃO E AS BOLSAS Por fim a Copa se foi, mas os dividendos dela permaneceram. Sem contrato, sua permanência no país era agora de uma vez por todas inconcebível e insustentável, como o ser. Todos os grandes clubes europeus enviaram seus agentes quando não seus próprios presidentes para viabilizar a contratação, a essa altura, uma empresa esportiva (a poderosa IMG) já detinha o poder dos seus novos contratos, mas que apenas seriam formalizados com o consenso de sua velha equipe que ele não abandonara. Da Itália: Juventus, Roma, Milan, Napoli, Parma, Internazionale, Lazio, Verona, Udinese, e mais outros tantos clubes fizeram as suas propostas. Da Espanha, Real Madri, Barcelona, Atlético de Madri e Real Bétis. Da Inglaterra, Arsenal, Liverpool, Manchester United, Leeds e Chelsea. Da Alemanha, todos mandaram emissários, do rico Bayer de Munique ao K.F.1804. Da França, Olimpique de Marselhe e Paris Saint Germein, e ainda outros clubes de menor expressão, que viam nele um investimento com o qual poderiam enfim sair do ostracismo. O mundo Árabe também se rendeu especialmente pelo seu talento, ofereceram até jazidas de petróleo por um contrato de poucos anos, vários consórcios com empresas de grande porte foram firmados para contratá-lo, no total, Denver recebeu propostas de nada menos que quarenta e oito clubes. Os americanos fizeram a melhor de todas as propostas, mas estava em jogo não apenas o fator financeiro, mas também algumas dúvidas que os críticos de sempre lançaram: “Será que ele fará o que fez se jogar na Europa, na Itália?”, diziam analistas do mundo inteiro. Como é comum em qualquer área da atividade humana, Denver tinha os seus detratores, que diziam não ‘achar graça’ nele, mas era porque não procuravam, se procurassem, achariam sim. As ações das empresas que apressadamente anunciavam sua contratação subiam vertiginosamente nas bolsas de todo o mundo. Quando se descobria que era boato, caíam ainda mais e passavam a valer menos que antes do anúncio com forte odor de fraude. Com o trauma do efeito bumerangue, algumas empresas participantes dos consórcios pararam de fazer anúncios. As reuniões varavam madrugadas, Denver apenas acompanhava de longe, permanecia treinando exaustivamente, na mesma aconchegante chácara, que agora não era mais alugada. O preço do seu passe foi fixado em trezentos milhões de dólares, as televisões promoviam sorteios para quem acertasse qual time levaria do país o maior craque da atualidade. Programas de tevê no mundo inteiro promoviam enquetes para saber qual seria o melhor time que merecia tê-lo como astro maior. Deu Real Madri. A rede de tevê inglesa British Broadcast Corporation (BBC) anunciara uma entrevista exclusiva com ele, o que causou mal estar nos meios de comunicação nacional, o acordo estava próximo de ser anunciado. Um luxuoso hotel no Rio de Janeiro foi o palco para o anúncio, jornalistas de todo o mundo aguardavam ansiosos no anfiteatro que fora adaptado para o evento. Denver chegou com seu jeito de sempre, brincalhão e sorridente distribuiu bom humor, fechou a cara apenas quando fotógrafos e cinegrafistas se desentendiam na busca do melhor ângulo, sentando na sua cadeira, Denver quebrou o gelo e fez gozação da confusão deles: “Eu não entendo essa gente, seu moço, fazendo alvoroço demais”, os repórteres foram à loucura, ele conseguia animar as coisas, seu encanto pessoal garantia a festa. Ânimos controlados, um representante da empresa fez o anúncio do novo time que Denver iria defender; Juventus de Turim. Os italianos pagaram os trezentos milhões de dólares que tantos rumores causaram mundo afora, as ações do conglomerado da qual o time italiano faz parte, subiram às nuvens, os valores foram tão assustadoramente altos que atingiram mais que o valor efetivo do passe, a Itália inteira comemorou; Denver era o fantasista que os italianos tanto ansiavam para adornar seu dificílimo campeonato. A sede do time em Turim foi tomada por uma legião de tifosis que cantavam o hino do clube tão euforicamente que parecia que a Itália havia vencido a Segunda Guerra, todos os jornais deram destaques intensos ao jogador e repetiam os seus feitos na Copa do Mundo. O acordo era bom para ambas as partes, a mesma cláusula que constava no contrato anterior também vigorava neste; independentemente do número de jogos por ano que a FIFA decreta, Denver seria liberado para todos os jogos do Brasil que ele fosse convocado, desde de que houvesse um limite de trinta e seis horas entre um jogo e outro, a Juventus foi uma das poucas equipes a aceitar essa condição, mas havia ainda uma outra que era ainda mais difícil de ser digerida. O seu salário foi acertado e causou discussão: ele iria receber, livre de impostos, que seriam pagos pelo clube, a bagatela de vinte e quatro milhões de dólares só no primeiro ano de contrato. CAPÍTULO XL A CLÁUSULA A empresa de material esportivo que patrocinava Denver tinha uma outra cláusula que o impedia de vestir um uniforme de outra marca, salvo o da Seleção. Até aí os italianos fizeram uma concessão inédita; seria mais fácil deixá-lo usar outra marca do que cancelar o contrato com o seu patrocinador oficial, e mais uma vez, algo sem precedentes aconteceu, Denver era o único atleta de esporte coletivo que usaria uma camisa de marca diferente da dos outros jogadores, isso também causou zanga, mas a “Velha Senhora”, como também é conhecida a Juventus na Itália, não quisera medir esforços para ter em seu time o maior expoente que o futebol já produzira desde há muito. Sua despedida do Brasil foi dolorosa e compreendida, ao desembarcar na Itália, Denver foi saudado por uma multidão de torcedores, pediu para chegar normalmente à sede do clube, mas não havia outro meio que não de helicóptero que estacionou no meio do gramado do estádio da Juventus. CAPÍTULO XLI A MELHOR PRÁTICA, O MAIOR PRÊMIO Quando eu encontrava com o Andrade logo me vinha à mente a imagem de um vulcão em erupção e ele se debatendo em sua boca, nossas relações eram as mais limitadas possíveis, alguns desentendimentos foram causados por causa dos seus modos de estróina que por pouco não vieram a influenciar negativamente o nosso querido menino, o escritório continuava despachando normalmente, o fisioterapeuta Régis e a nutricionista Andréa acompanharam Denver em sua aventura italiana, no Brasil, muito ainda precisava ser feito para atender às necessidades dele. Simetra havia se desligado por completo de mim, nem mesmo durante a Copa mantivemos contato, mas ela fazia parte da turma que auxiliaria o desenvolvimento de um certo projeto. Saneta por sua vez casou-se na Europa e recentemente se mudara para o Brasil, seu marido Jean Glimm se tornara uma de minhas companhias mais freqüentes, publicitário, ele me ajudava nos assuntos relacionados à mídia envolvendo o nome de Denver e nos divertíamos muito. Minhas idas a Itália se tornaram cada vez mais intensas, não me agradava a idéia de deixar o país, tínhamos agora em mente mais um grande projeto envolvendo as discretas atividades filantrópicas de Denver. O Dr. Rutra Mivla, que muito lucrou com a contratação milionária de Denver, se encontrava numa situação complicada entre credores, seus negócios agropecuários e de investimento iam de mal a pior e ele foi obrigado a hipotecar alguns bens, com o novo projeto de Denver na prancheta, partimos para sua execução, o primeiro passo era providenciar um meio de transporte rápido seguro e veloz. O Dr. Rutra nos ofereceu o seu melhor e mais potente jato executivo, com a chancela de Denver executamos a compra trazendo a reboque os dois experientes pilotos. Entramos em contato com universidades e centros de excelência de ensino em toda parte do mundo, Denver era assediado para proferir palestras nas empresas e nas escolas, elaboramos um meio de conciliar suas tarefas, e seus treinos (que continuavam sendo intensos), elaboramos uma planilha sob a consultoria de um grande ensaísta brasileiro que nos auxiliava. O mercado calculava que suas palestras tinham um valor de mercado de até dois milhões de dólares em qualquer parte do mundo, e ele passou a fazer pelo menos uma conferência mensal, mas o preço e a moeda que ele usava eram outras. CAPÍTULO XLII ÀS PALESTRAS Cobrávamos pelas palestras. Mas nunca em espécie. Toda a empresa que o contratasse teria de, em vez de desembolsar dinheiro vivo, custear estudos de meninos e meninas carentes nos respectivos países que ele fosse se apresentar, quando feitas em países desenvolvidos, as respectivas empresas cumpriam determinações de uma fila de outros países mais necessitados. Todas as empresas, por meio e força de contrato, eram obrigadas a não divulgar, sob qualquer circunstância, o conteúdo e tampouco gravar imagens destas sob pena de multa pesada que fora estipulada num valor tão alto que algumas até se recusaram a aceitar tal disposição, mas era a nossa posição e não seria mudada. Empresas que quisessem contratá-lo para palestras teriam de adotar duzentas crianças do jardim à universidade. Uma criança, numa média que depende de país para país, leva de dez a doze anos para se formar ao custo de pelo menos vinte mil dólares cada uma, o que acabava saindo até mais interessante para as centenas e centenas de empresas que se dispuseram a marcar com ele uma visita, e como eram disputadas essas visitas! Tínhamos a agenda lotada, desde aquela data até os próximos quatro anos. Eram palestras em Bancoc, na Tailândia, em Caracas, em Belgrado, Bruxelas, em Casablanca, em Bordeauax, em Wellington, Madri, Maputo, Beirute, Tel Aviv, Quebec, Califórnia, Madagascar, Antuérpia, Vevey, Detroit, Atlanta, São Caetano do Sul, Stutgart, Bavária, Montpellier, em Osaka, em Seul, e diversas outras cidades de grande importância. CAPÍTULO XLIII A ENTREVISTA A mais tradicional de todas as emissoras da Grã Bretanha não havia blefado quando anunciou que teria uma entrevista exclusiva de Denver, as chamadas foram se intensificando e sua assessoria, por fim, assumiu que ele estaria presente na tão aguardada entrevista. Foram destacados para a tarefa um correspondente brasileiro e dois âncoras da BBC para fazer-lhe as perguntas. O programa seria transmitido simultaneamente para várias emissoras em canal aberto, num acordo espetacular. A audiência esperada era enorme. Numa noite de quinta-feira fria de um inverno rigoroso, Denver decidiu acabar com o silêncio sobre sua vida particular que ele até então havia escondido com ferrenha disposição. Os Pubs londrinos ficaram lotados, densos, como os seus tradicionais fogs. Para ouvir a fala daquele ilustre estrangeiro as tevês remanejaram sua grade de programação, a novela das oito foi adiada, e toda a programação das grandes e pequenas emissoras no Brasil sofreram iguais alterações para transmitirem ao vivo o sinal da esperadíssima conversa com a pessoa mais admirada do planeta. Resenhas foram escritas pelos mais respeitados colunistas dos principais jornais e revistas do mundo, a cada novidade em suas atitudes absolutamente inesperadas, Denver ganhava a capa da prestigiosa Time americana, e até comentários feitos em informes de economia, política e ciência. Com todo esse cartaz no mundo inteiro, ele recebeu um convite para visitar a Casa Branca. De forma polida, ele escreveu, de próprio punho, que não poderia ir. Não inventou desculpas esfarrapadas para isso, disse apenas que admirava a pessoa do presidente, mas que por motivos particulares preferia se manter longe de assuntos e pessoas envolvidas com a política. Juntamente com a carta, mandou ao presidente uma camisa da Seleção brasileira com uma carinhosa dedicatória, a carta, que fora divulgada pela Casa Branca, ganhou destaque em todos os órgãos de imprensa, diziam que o presidente não conseguiria receber a visita dele por causa das infindáveis crises políticas, mas os americanos não eram os únicos a receberem uma negativa do nosso craque. O do Brasil também sentiu o sabor de não contar com sua presença num jantar comemorativo, até a realeza inglesa ele se recusou a visitar. Segue alguns trechos da entrevista: Jornalista britânico: “Qual o motivo que o leva a manter um comportamento distante da mídia?” Nosso craque sorriu sem graça: “Sabe, as pessoas falam demais... É esse o motivo que me faz ser uma pessoa reclusa. Tento agradar a todos, mas essa é uma tarefa impossível e não poderia ser diferente. Vivo recebendo críticas infundadas... Que não se referem à minha atividade profissional, e isso me entristece, não há motivos para eu abrir as portas da minha casa, falar da namorada, dos meus familiares; por que abastecer a imprensa com essas frivolidades de modo que existem coisas mais importantes para serem discutidas?” Âncora brasileiro: Por que só agora você resolveu falar? “O melhor modo de ser ouvido é falando pouco. Mas decidi falar agora para aliviar a tensão, e para as pessoas que admiram o meu trabalho não pensarem que eu sou um ‘esquisitão’ e vivo longe do mundo. Não, não é nada disso. Gosto de fazer um monte de coisas simples, mas faço isso apenas para e com as pessoas que me acompanham, não vejo motivos para sair por aí fazendo a festa dos paparazzis, estes, aliás, sempre andam atrás de mim quando estou saindo de um teatro, de um jantar, de um cinema, talvez por eu sempre me deixar fotografar e não me esconder eles não estejam assediando tanto, o objeto do desejo deles é me pegar em alguma situação embaraçosa... Enfim, é o trabalho deles e eu não me incomodo com isso, os deixo tirar fotos à vontade....” A entrevista prosseguia calma até lhe perguntarem sobre as palestras, tema sagrado para ele, que foi franco e disse que preferia não abordar esse tema porque envolvia muitas outras pessoas, perguntaram-lhe ainda sobre religião. Sobre Deus. Porque não aceitava os convites para visitar os chefes de Estado e neste ponto ele, surpreendendo a todos, foi ácido: “... Vejam vocês que eles me convidam para festas e lautos jantares - e gastam muito dinheiro com isso - observe; se eles querem me deixar feliz, convidem paras suas festas pessoas da sociedade que são quem bancam suas luxúrias, não que os governantes não devam fazer suas recreações, não é isso, mas tenho certeza que o cidadão comum iria ficar muito satisfeito se fosse convidado por um presidente... Para falar de suas impressões da vida... No que é que eu poderia contribuir para esses governos? Hoje, não conheço a miséria. E a pobreza passa longe de mim. Os problemas sociais do mundo eu só conheço via satélite, que experiência gratificante eles poderiam ganhar com a minha presença?”. A sua estranha sinceridade deixava os jornalistas à vontade para questioná-lo de modo mais contundente. Interrogaram-lhe sobre a influência que a literatura ocidental tinha em seu comportamento. Bem informados, eles sabiam e comentaram que ele lera toda a obra de Dickens, do tcheco Kafka e até alguns poemas do hermético James Joyce e de outros grandes escritores brasileiros, perguntaram os jornalistas: “A música, o piano, a literatura, não são exatamente o passatempo predileto da maioria dos atletas profissionais... Mesmo os de alto nível... Ainda mais desses autores, qual a influência deles em seu modo de vida...?” “Bem... bem..., eu penso que a literatura pode ser encarada de várias maneiras... Existem pessoas que não compreendem o seu real valor. No meu caso específico, eu penso que ela apenas me abriu novos horizontes, mas não acredito que tenha influenciado diretamente o meu estilo de vida, meu modo de pensar... Minha personalidade. Há coisas que são intrínsecas a uma pessoa que talvez fatores externos não exerçam influência... talvez. Eu tenho de melhorar muito como ser humano. Há ainda barreiras que eu preciso transpor... Controlar a ansiedade, o ego, por exemplo, é uma dessas coisas, você acha que eu, qual narcisista, não fico vendo e revendo meus gols e falando para os meus amigos: “Olha aí, vê que coisa linda?”, depois paro para pensar e vejo que isso não está certo, por fim, sou apenas um homem e como todos, não sou infalível, cometo erros. Preciso melhorar muito para me tornar uma boa criatura... Por outro lado me pego às vezes com medo. Tenho medo de todo esse sucesso estrondoso. Não estava nos meus planos acontecer tudo isso. De certa forma toda essa repercussão me aflige e volta e meia me pego preso à reflexões... Me vem à mente as histórias do líder dos The Doors, Jim Morrissom... de James Dean, Ritchie Valiens, da princesa de Gales também...Vocês sabem que eles tiveram um enorme sucesso e a morte chegou-lhes rapidamente, o volume do meu sucesso, na verdade, me incomoda.” Aquilo pareceu para todos que acompanhavam a entrevista numa imponente sala que servia de cenário fragorosamente decorada nos moldes de um castelo inglês do século XV, um comentário aziago, seu ar de preocupação ao relatar aos interlocutores o desfecho dramático das outras vidas que, iguais à sua, abalaram o mundo e acabaram precocemente. Mas era indecifrável e algo inequívoco tal intento de saber o que se passava por sua mente brilhante, sua personalidade neblínia. O que mais há de se falar dele? Estou cansando e acho que vou desistir: o homem era espetacular! CAPÍTULO XLIV O VALOR DE SER LATINO Ele surpreendia e encantava a todos, com seu jeito moleque e sua incrível capacidade de quebrar protocolos; conquistava cada vez mais fãs mundo afora, para ele tanto fazia um monte de coisas. Verdade seja dita, Denver vivia do mesmo modo que vive um peixe no meio do oceano que estão envoltos num literal mar de sal e, contudo quando o fritamos temperamos com o mesmo sal cujo meio o vivia, ele não se contaminava com as influências negativas do mundo. Dava importância era para a bola, continuava a tratá-la com o mesmo carinho dantes, com o mesmo empenho. A sua estréia na Juventus de Turim foi mais um dos vários acontecimentos marcantes em sua assombrosa trajetória rumo ao Olimpo. O jogo foi contra um time dos Emirados Árabes, que assinaram contrato com os italianos para jogar em suas terras uma vez a cada três meses, a cota paga pelos árabes, por jogo, para ver o maior craque do mundo de perto não era nada desprezível. Eles pagavam três milhões de dólares para vê-lo em ação. O cachê da Juventus saltou de um milhão de dólares que cobrava para realizar amistosos, para três milhões. O craque que os italianos haviam contratado se transformou no melhor e mais rentável negócio legal do mundo. Todos os carnês para as duas próximas temporadas encontravam-se esgotados, a média de público nos jogos do time aumentou 45% em relação à última temporada, ele continuava deslumbrando o mundo com jogadas sensacionais, prosseguia como que reinventando novos dribles, novas possibilidades de se livrar das cada vez mais fortes marcações. O departamento médico, apesar das muitas pancadas que sofria, não tinha em Denver uma visita constante, dotado de uma coordenação muscular quase perfeita, ele pouco se contundia, seus reflexos instantâneos o impediam de sofrer tanto, mas os pés estavam marcados e as pernas, cansadas de apanhar. A FIFA programou uma festa em Portugal para entregar a ele e à seleção brasileira os prêmios pela conquista do Mundial; Denver arrematou a chuteira de ouro, como artilheiro, a bola de ouro, como melhor jogador, e o Fair Play, por ter sido o jogador menos violento da Copa. A assinatura de outro contrato, o mais importante de sua vida, ainda não havia sido efetuado. Como o primeiro, que demorou mais de ano para sair, depois que ele explodiu para o mundo, esse foi ainda mais negociado e teve um sabor de vitória. Em nossas planilhas, havia uma condição para que ele não tivesse sua imagem muito desgastada ou mesmo arranhada por associar seu nome a diversos produtos, recusamos jogos de vídeo games que levasse seu nome, brinquedos, bolas, e mais de oito mil diferentes produtos que chegaram ao escritório. Queríamos que uma única empresa tivesse a sua marca, uma única. Vinte e cinco empresas se candidataram para tê-lo como garoto propaganda, nenhuma delas, no entanto, que concentrasse suas atividades comerciais em bebidas alcoólicas ou tabaco e tam pouco usasse mão de obra infantil para manufaturar seus produtos. Essa empresa, segundo as regras das cláusulas, poderia explorar sua imagem no mundo inteiro e mesmo usar a sua logomarca na camisa de treino que ele utilizasse, independentemente do patrocinador do eventual clube que ele jogasse. Uma grande montadora alemã ganhou a concorrência e preencheu os requisitos pare ter o nome de Denver associado ao seu, mas as negociações foram estressantes por causa das divergências dos seus executivos e conselhos administrativos, a última reunião, com a participação de Denver, foi uma das mais recompensadoras experiências que eu tive na vida: “Acho esses valores absurdos, toda essa soma não se justifica. Esse valor não pode ser pago a um latino apenas por ter se destacado... Ao menos se fosse um europeu! Alguém que tivesse no sangue uma ascendência mais nobre... Não posso aceitar e nem contem com o meu voto para assinar o acordo, não admito e nem posso tolerar de forma alguma que alguém que vem de um lugar perdido do Terceiro Mundo, chegue à sede da nossa empresa e nos faça exigências absurdas como estas, é uma afronta à memória dos fundadores da companhia! Vocês não podem se iludir, se deixarem enganar com a imagem de bom moço dele! Temos uma reputação por trás de nós, temos os acionistas e a nossa história para zelar! Nossos carros são produzidos com a mais rigorosa supervisão e temos de estender esse rigor além da linha de montagem! Não podemos aceitar imposições de quem sequer conhece um tanto assim (ele falou medindo um espaço entre um dedo e outro) da importância que temos no mundo. Sejamos coerentes, ele é apenas um esportista metido a besta, que acha que pode e acontece; quem diabos ele pensa que é? Não contem comigo! Daqui a pouco tempo provavelmente ele estará envolvido em casos de corrupção e estupros de modelos, todos são assim e este aí não será diferente! Denver ouviu todo o discurso sem dizer palavra. Sem alterar o semblante também. Parecia sereno e com o tráfego do olhar inerte, alguns conselheiros tomaram partido em favor dele mencionando que haviam sido feitas exaustivas pesquisas que apontaram para a aceitação do seu nome e que ele se adequava à nova política da empresa em atingir os promissores mercados emergentes latinos e asiáticos. Os representantes da empresa por nós contratada se olhavam constrangidos com a atitude intempestiva daquele conselheiro pessimamente informado e extremamente arrogante. Os valores estavam quase acertados, mas o senhor que tinha trejeitos de ditador era irredutível ante a contratação naqueles termos, mas sua principal preocupação era com a personagem. A discussão se acalorava, um bloco queria-o irrevogavelmente, outro, mais conservador, mantinhase neutro. O homem que chegou a até insultar a honra do nosso prodigioso artista, era intratável, sentado à cabeceira da longa e imponente mesa reluzente, ele se alimentava de um autêntico charuto cubano sem se importar com a fumaça e com a arrogância que expelia, Denver por fim, advogou por si: “Bem, distintos cavalheiros, começou ele num alemão que carecia de retoques, vejo que a divergência traz problemas, e eu não quero ser objeto de problemas e sim de soluções. Quanto ao senhor que não tem o menor respeito pelas pessoas, lhe informo uma coisa: eu, latino que sou, tenho hoje, muito, muito, muito, muito, muito, muito, muito, muito mais do que pede a minha necessidade para viver, e estou me lixando para esse maldito contrato que vai enriquecê-lo ainda mais do que a mim, ao passo que minhas necessidades estão por já saciadas, lhe digo que essa sua mesma arrogância de hoje, será reclamada no futuro. Afinal, eu estou ainda mais empenhado em ser contratado pela sua empresa, mas apenas com uma nova e irrevogável condição, o valor... Aumentará...! E vos digo que a razão é íntima e pessoal... Não quero chantajeá-los, mas se não aceitarem, daqui mesmo eu faço uma ligação para uma outra gente que torce pela não evolução deste nosso triste encontro, e assim..., bem, assim eu, o latino, serei o mais novo contratado do seu maior concorrente, ...neste momento”. Os executivos não acreditavam na firmeza com que Denver acabara de lhes falar, seguro, tom de voz firme, postura ereta e olhar duro, apenas seu alemão não ficou à altura das sensatas dissertações. Ele não deixou dúvidas de que sabia o que queria. O conselho que apoiava a contratação, que era a maioria, acabou por se render a mais este novo desconhecido talento seu, eles nem mesmo sabiam que ele, ainda que com dificuldade, fosse capaz de se expressar naquele idioma. O contrato foi formalizado, antes, porém, Denver pediu desculpas ao senhor do charuto, tentativa essa absolutamente ignorada por ele. Na saída deste, todos elogiaram a atitude coerente e corajosa do pequeno e mencionaram o orgulho que tinham de contar com ‘a maior eminência do mundo esportivo do momento’. Denver não era muito de prometer coisas, menos ainda quando a promessa se tratava de gols, mas para finalizar a frutífera reunião, ele se adiantou, interrompeu os acalorados apertos de mãos, e anunciou, voz alta e limpa, agora em inglês, para dar mais solidez e credibilidade à previsão: “No próximo jogo, farei três gols para comemorar o acordo. Um para cada item; um para o ar, um para a terra e outro para o mar!”, a quem entender, possa. Quando saímos da reunião, perguntei a ele porque repetiu tantas vezes a palavra “muito”ele respondeu: “Esqueci completamente o que falar a aí travei no muito.” CAPÍTULO XLV A HOSPEDAGEM Mais alguns milhões eram então recrutados por ele para financiar os seus projetos altruístas, que rendiam boas matérias para a imprensa sensacionalista. Ao passo que todos foram acostumandose com suas proezas dentro de campo, as extracampo começaram a despertar e atrair as atenções de grupos humanitários e outros menos ortodoxos. Denver passou a fazer viagens que a imprensa intitulava como “misteriosas”, o que iria fazer alguém como ele em lugares onde não havia Ritz, Plazas Atheneé’s, Hiltons e Mofarrejs?. Ele se transformara num homem desprovido de grandes ambições, suas palavras sintonizavam com suas ações e uma ostentava a outra se combinando entre si. Numa certa ocasião quando teve um raro dia para si, decidiu-se por dar umas voltas de carro pelo rico norte italiano, seu carro sofreu uma pane elétrica quando circulava por um vilarejo, de cara limpa, pediu abrigo numa casinha muito humilde e lá passou a noite repousando e encantando os hospitaleiros anfitriões ao mesmo tempo. CAPÍTULO XLVI O REENCONTRO E A DECEPÇÃO Simetra passou a auxiliar ao Denver e a contribuir com seus conhecimentos. Na Itália, decidimos conversar depois de tanto tempo afastados um do outro: “Olá, Simetra, como você tem passado?”, perguntei-lhe com um terno sorriso, “Ora, ora, então quer dizer que acabou a greve? Resolveu por fim quebrar o silêncio?”, respondeu-me com seus modos habituais, quando me falou sobre “quebrar o silêncio”, me lembrei de um episodio que me aconteceu quando certa vez pedi para uma pessoa muito querida me estender a mão e ela me estendeu o silêncio e só algum tempo depois é que eu fui perceber que o silêncio é assim uma espécie de mão invisível. “Não somos donos das palavras que saem da nossa boca, infelizmente”, falei-lhe descalçando as grossas luvas que me aliviavam o frio, “Estou de casamento marcado...”, falou ela imitando meu gesto, “Bem acertei quando disse que não somos donos das nossas palavras... Até bem pouco tempo, era você quem pedia para não falar sobre “meus romances”, agora, vejam só, me anuncia seu próprio enlace, que hilário! Vai casar-se com o vinho do Porto?”, “Pensei que a mudança de vida houvesse mudado positivamente sua personalidade, mas, como bem se vê, o problema não é de classes...”, Simetra era dessas mulheres a quem não se podia enganar, penso até mesmo que não existam no mundo pessoas do sexo oposto ao meu que sejam ‘enganáveis’. O poder das suas palavras surtia um efeito estranho sobre minha peregrinação pelos castelos medievais que se transformavam meus desastrosos encontros com ela, “Espero que dessa vez dê tudo certo, torço por você”, falei-lhe, engolindo o som das palavras, “Irá à cerimônia...? Faço questão da sua presença.”, “Olha, não pretendo nem ir ao meu casamento...”, “Você nunca fala sério!”, exortou ela mimetizando seus olhos num gesto cru, “Bem, eu não sou muito afeito a festas, você sabe...,” “Mas é uma ocasião especial, hum..., pensando bem..: Olha, quero que você vá sim, mas se não se sentir à vontade (lembrei-me dos seus aparelhos eletrônicos) faça como quiser, atenda ao pedido do seu coração”, de qualquer maneira, Simetra não me havia confirmado se era ou não com o tal do Adriano Rogério que ela iria contrair núpcias. As esperadas férias de Denver haviam enfim chegado, seus planos não eram passá-la numa requintada estação de esqui nos Alpes suíços e tampouco apreciar as delícias culinárias do “País da Bota”. Um dos únicos luxos que ele se permitia, era desfrutar as trufas negras caçadas pelos porcos. Sua família continuara no Brasil, mãe, irmãos, tias, primos e padrinhos foram instalados em seguros condomínios e a única recomendação dada a eles, era para que evitassem a imprensa e seu assédio sem fim. As minhas conversas particulares com Denver estavam ficando cada vez mais escassas, ele se ocupava com muitas tarefas durante todos os dias, falava ao telefone como um maluco e não desgrudava dos correios eletrônicos, “Meu bom e velho amigo Denver, você não está precisando assim..., de uns momentos mais prazerosos?”, “Ah, disse ele com seu jeito sempre primoroso e peculiar de se pronunciar, eu me sinto bem, sabia? Faço o que gosto... Estou realizando coisas... Sabe, eu às vezes penso que tudo isso que está me acontecendo é um sonho, acordo no meio da noite, muitas vezes assustado, mas não sinto essa coisa de estresse não, não vejo motivos para isso e, sem você, bem você sabe que sem você não haveria nada disso...”, “Bobagem, atalhei, bobagem, você é o que é porque tem qualidades; Denver, as coisas não acontecem por acaso na nossa vida...”, “Há uma coisa que eu sei e acho que você não sabe que eu sei”, falou ele rindo sarcasticamente para mim, “E o que é então? Seu velho e bom camarada poderá saber?” “Claro, claro, claro que pode. Saneta me falou que não gosta muito de você”, “Ah, sei porque”, “Ela me disse que você não gostava de futebol... E disse também que você falou cobras e lagartos de jogadores, e até de mim sem ainda me conhecer, foi muito engraçado ela me falando, imitando seu jeito de falar, o Jean é um grande cara!”, “Sabe Denver, tudo isso que estamos fazendo, pode causar-nos danos, para mim e para você”, “Porque diz isso?”, me perguntou assustado, arregalando um olhão enorme na minha direção, “A nossa amizade se tornou muito grande, eu tenho medo que acabe acabando, você me entende?”, “De onde tirou essa idéia, maluca? Depois de tudo que passamos, você acredita que algo poderá nos separar?”, “Veja, chefe, comentários como esses de Saneta podem ir minando a resistência...”, “Que nada! Ela mesma já falou que se não fosse por você minha carreira não teria tomado o rumo que tomou, você agiu de forma absolutamente transparente comigo e eu aceitei, lembra de quando foi ao Flat e pediu para ver o carro? Você acha que aquilo foi uma decisão fácil para mim? Cara, eu sabia que precisava mudar, não fosse sua interferência na minha carreira, possivelmente hoje as coisas não teriam tomado essa dimensão, quando eu iria pensar em nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos, nunca! Sem falar dos professores! Enquanto todos metiam o pau pra valer, dizendo que não tinha que aprender língua nenhuma, você insistiu para eu aprender as novas línguas, você não sabe, mas os caras da consultoria disseram a mim que se eu não falasse as línguas que falo, não teria chance de realizar essas coisas todas... A reunião com o pessoal da montadora alemã foi um estouro! Eles ficaram embasbacados quando eu comecei a falar na língua deles, mesmo enrolando a língua! Foi você que fez tudo isso existir!”, a esse momento Saneta adentra a sala com o Jean ao seu lado: “Reunião de cúpula?”, perguntou-nos sorridente, estendendo um pacote na direção de Denver, “Onde está a Simetra, quis saber Denver, com certa ansiedade, precisava falar com ela...”, “Ela deve estar tratando das compras do seu enxoval, que chique, não? Enxoval italiano! Ela trouxe do Brasil aquela sua outra amiga... Como é mesmo que ela se chama Jean?”. “Hum... Não estou me lembrando, mas, ah! Lembrei, é Fátima! A mnemônica não falha nunca! Trabalhava na Suíça com um agente português que era devoto de Fátima!”, “E aí, não vai abrir o presente não?”, “Ah claro, claro, me desculpe”, falou Denver sem jeito, “Finnegans Wake? Mas eu não vou conseguir ler esse livro de jeito nenhum!”, “Bobagem, isso é fichinha para você, até pensei num autor russo, mas tem gente aqui que gosta de esnobar com eles, daí preferi, este, gostou?”, “Não.”, falou Denver secamente. “Acho que você errou na dose, que infeliz escolha!”, ri-me, olhando para Jean que conservava a mesma cara engraçada de sempre. “Da próxima vez eu prometo que acertarei, prometo!”, “Ô, Saneta... Você sabe se esse Adriano é um cara sério?”, perguntei-lhe, enquanto Denver paginava tristemente o livro que acabara de ganhar, “Adriano? Mas que Adriano?”, “Ora essa, mas que Adriano! O noivinho da sua querida amiga, quem mais?”, “Noivo de quem? Você enlouqueceu? Ela vai se casar com aquele seu amigo... O Rutra...”, “Que é que você está me dizendo?”, “Isso mesmo, já que eles não te falaram, faço eu mesma o papel de anunciante”. Cabia a ela de verdade era o papel de alvíssaras às avessas. A ampla sala onde nós quatro estávamos, repentinamente ganhou um sobressalto de suspense, Denver enfiou a cara no meio daquelas indecifráveis páginas com tanto afinco que parecia estar lendo a notícia da chegada do homem a Marte, Jean deu-nos as costas e fora espiar a neve caindo encontrando abrigo nos telhados e árvores, apenas Saneta continuava me encarando com seus negros olhos enviesados. A reação de todos era de que já sabiam de tudo e não quiseram me contar, não me senti traído nem tampouco enganado, apenas cria que eles tivessem um pouco mais de consideração por mim, pouco importava, afinal nunca na vida ela fora mesmo minha. Alguns instantes depois chegaram ela e a sua amiga Fátima, sorriso congelado nos cálidos lábios e a pele queimada pelo frio, “O que está acontecendo, todo mundo aqui com cara de velório... Eu hein!”, ela correu até onde estava o Denver e foi logo apresentando-o à amiga, que se derramou em elogios para ele, que falou tanto, mas tanto, que causou-nos enjoou. Cheia de sacolas de compras ela, inquieta como sempre, perguntou-nos o porquê daquele clima fúnebre, “Falamos para ele, já que você não tinha coragem de falar”, disse Saneta, “Você entende, não é?”, “Não tenho de entender nada. Denver, Jean, vamos rever aquelas coisinhas que tínhamos de tratar”, “Sim, vamos, me acudiu rapidamente o primeiro, licença, pessoal”, “Ah, falei eu dando meia volta, quanto ao convite, dispense-o, não quero participar de um absurdo desses, se envolver com um homem casado! Nunca esperava isso de você!”, “Ele não está mais...”, Não quis ouvir sua redargüição, deixei-a falando às paredes e aos seus amigos, tranquei-me com Denver e o Jean na sala do escritório, e lá traçamos nossos planos. CAPÍTULO XLVII O PROJETO NO TEMPO CERTO As locações para os comerciais da montadora eram nos lugares mais inesperados possíveis, fizemos alguns arranjos para encaixar sua agenda com as furtivas viagens, em três dias teríamos de estar na Bélgica para participar do lançamento do novo modelo do carro a ser lançado mundialmente, depois embarcar com destino à Rússia para o evento do qual seu patrocinador esportivo fazia questão da sua presença, e depois embarcar rumo à Atlanta onde havíamos agendado uma palestra, em quatro dias de folga precisávamos fazer tudo de uma única vez. Sua vida se transformara num constante vai-e-vem de malas, aeroportos e hotéis, nesses, aliás, a coisa era brava, pediam para que ele tirasse fotos e rabiscasse seu nome num ritmo quase insuportável, os endereços desses hotéis eram quase sempre modificados de última hora na tentativa inútil de despistar a imprensa. Chegávamos a fazer reservas em até dez hotéis diferentes, mas não adiantava. Uma das saídas era, sem fazer reservas, alugar quartos em hotéis de quinta categoria e não raro essa medida tinha resultado positivo. A ajuda de Jean na coordenação das agendas fora de imensa utilidade, como tinha bom trânsito no meio europeu, ficou mais fácil tentarmos diminuir os vários contratempos. Simetra acompanhou-nos na viagem secreta de inspeção que fomos fazer em Angola, ficamos instalados numa espartana cabana onde se alojava um pessoal da Cruz Vermelha, e outros dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) que nos acompanharam desde a Suíça. O projeto de Denver consistia em prestar ajuda aos mutilados cidadãos angolanos, sem a presença da imprensa, ele acompanhava as escavações para retirada de minas, encabeçou o financiamento para o estudo de novas tecnologias que pudessem detectar as minas sem por em risco vidas humanas. Paralelamente, elaboramos um engenhoso mecanismo para, em vez de trazer comida para esses países, levar-lhe equipamentos, assim sendo, Denver passou a freqüentar feiras pecuárias e de desenvolvimento da agricultura, a idéia era simples. Ele emprestava seu nome para ser explorado apenas durante o evento com cartazes dele ao lado das máquinas e publicações especializadas. O pagamento das empresas viria em forma de equipamentos, que iriam para os países por nós determinados, as empresas pagavam com tratores que facilitariam o cultivo das terras em regiões áridas e semi-áridas, e muitas foram as feiras que contaram com a sua participação. Para o transporte dos equipamentos ele acertou com uma companhia aérea que poderia usar seu nome nos folhetos internos de suas aeronaves bem como nos limites dos aeroportos onde tal empresa atuava, em troca, ela se encarregava de enviar para qualquer parte do mundo as cargas que ele conseguia da mesma forma, o único pedido feito, ainda sob força de contrato e pesadíssimas multas em caso de desobediência a elas, era jamais divulgar valores e fins dos trabalhos por elas prestadas. Toda a campanha começara a dar frutos, só com as palestras já havia mais de trinta mil crianças com o futuro escolar garantido, algumas paisagens do semi-árido brasileiro também ganharam outros tons, foi-se necessário criar uma ONG de fachada que pudesse assumir a paternidade de toda aquela grandiosa obra que estava sendo feita mundo afora. Os casos de crianças que viviam em países muito pobres estarem sendo matriculadas em boas escolas chamaram a atenção de toda a sociedade através da implacável imprensa, foi então que surgiu a idéia de criar a ONG que assumiria a autoria da façanha. Cogitou-se homenagear a ele próprio, só se cogitou. Sobre as centenas de máquinas para irrigação e perfuração de poços artesianos nos lugares mais castigados pela seca, foi-se também criada uma outra ONG, todo o arranjo necessário fora feito para que o nome e a influência do nosso craque fosse preservado a todo custo, a pressão era enorme e o trabalho também. Quando derramou sinceras e doídas lágrimas por entre as árvores durante a Copa do Mundo, o motivo fora de fato muito triste. Desde antes do Mundial, Denver já visitava alguns dos países mais miseráveis da África, fez uma grande amizade com uma garotinha que tinha perdido toda a família e sofria de inanição completa. Seus músculos simplesmente não existiam, se a pegássemos nos braços, poderíamos sentir primeiro os ossos antes que a pele, todo o seu corpo era repleto de erupções causadas por picadas de insetos, a barriga estufada, dava uma falsa impressão de saciedade, os olhos amarelos e tristes pediam socorro, a boca miúda, o nariz coagulado de moscas suplicava respirar ar. Ele chocou-se de forma tão profunda com o padecimento daquela criança em especial que queria adotá-la imediatamente e arrancá-la daquele sofrimento, mas a burocracia seria enorme. Foi aconselhado pelos homens do grupo de ajuda internacional que poderia ajudar a criança à distância, e foi o que ele fez. Providenciou uma casa nova para a menina, num bairro menos miserável da província, instalou-a com médicos e enfermeiros permanentes, deu-lhe todo carinho e atenção e ouviu dela a coisa que mais o marcara na vida: “Quando eu ficar boa, quero que você me leve com você, não quero mais viver na tristeza desse lugar, você promete que volta e me leva?”, falou a enferma menina que tinha então oito inacreditáveis anos, seus olhos encheram-se de lágrima e ternura, e prometeu à pequena que iria voltar para buscá-la: “Dou a minha palavra, que quando você ficar melhor, virei aqui buscála”. Denver não pôde confirmar a promessa. Dois meses depois ela expirou seu sofrimento. No mesmo dia em que ele iria disputar um dos jogos mais importantes da sua vida recebeu a notícia e desandou a lagrimar sem parar. Muitos dos que o auxiliavam pediam para que ele acabasse logo com a dissimulação e anunciasse que era ele quem estava por trás de toda aquela revolução, mas ele dizia: “Não darei com a direita e pedirei com a esquerda, assim como fazem os das nações, além do mais, o que estamos fazendo é apenas uma gota no oceano, não resolve nada, apenas atenua”. Sua consciência prática era igualmente fabulosa, como seu talento para jogar futebol. Denver não media esforços para ajudar as pessoas, durante mais de um ano se dedicou a fazer viagens pela África demarcando os lugares mais paupérrimos e que no futuro pudesse oferecer ajuda, metódico como um relojoeiro suíço, ele, com o imprescindível auxílio da equipe, demarcava os lugares como faz um arqueólogo tenaz, os amigos agrônomos anotavam nas planilhas onde a urgência era maior, e as visitas posteriores já vinham junto com a ajuda. Dentro do projeto ficou decidido que nunca seria distribuído um saco de soja sequer nem de feijão e nem de pão também e tampouco contribuiu com dinheiro em espécie: “Não iremos colaborar com a corrupção que é uma das maiores chagas desses países”, dizia ele acertadamente, no seu entendimento a comida acabava, a fome continuava. Os paliativos, na visão dele, causavam ainda mais angústia e sofrimento àquele povo tão sofrido, sua idéia, era fazer com que eles trabalhassem para conseguir seu próprio sustento. Havia um pequeno exército trabalhando no projeto que ele batizou de “Pequena Gaivota”. Entre engenheiros agrônomos, (todos voluntários) geólogos, médicos, enfermeiros, dentistas, mecânicos e mais uma infinidade de outros profissionais, já somavam dois mil e quinhentos, isso regozijava a ele e toda a sua equipe. CAPÍTULO XLVIII O PREÇO DO CRAQUE EO CRAQUE DO PREÇO Os jogos e os gols que Denver vinha fazendo produziam as mais esplêndidas críticas. Unanimidade ele não era. Alguns sempre apontavam algum defeito o que talvez tivessem até razão, movido pelo cansaço ele já não era tão voluntarioso como a algum tempo atrás, não marcava tanto e não voltava para ajudar na defesa, muito embora fosse isso até mesmo complicado de fazer já que ele tinha sempre a companhia de pelo menos dois ferrenhos marcadores, entretanto, seu rendimento, quando se tratava de fazer gols, era altamente acima da crítica, quebrara o recorde de gols no dificílimo e truncado campeonato italiano; marcou 32 gols, venceu os principais torneios da qual a Juventus participou e, como sempre, sagrou-se artilheiro em todos, o time venceu também o Mundial Interclubes, que havia muito o time não faturava. Pela final de um campeonato europeu, ele fez um gol que estupefou até quem já se acostumara com suas peripécias com a bola, foi numa cobrança de falta. Do lado esquerdo do gol adversário, Denver se posicionou, como sempre fazia, arrumava a bola como que procurando ‘o lado certo’ para bater, ele não tomou muita distância, se colocou como se fosse bater de perna esquerda, mas deslocou o corpo, passou o pé esquerdo sobre a bola e chutou-a com o direito, de letra! O lance causou várias novas controvérsias, muitos diziam que não seria possível incidir um gol assim, mas o fato é que a bola entrou incólume das dúvidas nas redes do goleiro espanhol, que sequer esboçou a possibilidade de defender a bola. Mas não foi apenas esse gol que causou espanto num tão curto espaço de tempo. Uma semana após essa cobrança inexplicável, ele contemplou a torcida grega, que mesmo sendo inimiga, não se envergonhou em aplaudir e ovacionar mais este episódio espetacular em sua carreira. Recebendo um passe curto e rasteiro a poucos metros antes da grande área, Denver, correndo em direção a bola e levando consigo um marcador, puxou-a, como a arrancando do gramado por elevação com o pé canhoto, e deu um chapéu maravilhoso no zagueiro que virou o pescoço cento e oitenta graus na tentativa de ver o desfecho e o destino da bola, Denver, recebendo a bola nas costas do zagueiro, bateu com o lado de fora do mesmo pé, entre dois outros zagueiros que vieram rápido prestar socorro ao companheiro. Tarde demais. A bola subiu e decaiu fulminante no ângulo esquerdo do goleiro, que imóvel, não teve sequer tempo para reclamar da marcação. Lances como estes se tornavam cada vez mais comuns em sua carreira, quando ele passava um ou dois meses fazendo apenas ‘gols normais’ a imprensa e a torcida já começava a se assanhar pedindo mais lances geniais como esses, sem querer, Denver acabara por mal, pessimamente mal, acostumar a torcida. Já se falava em valores estratosféricos sobre quanto valia seu passe. A Juventus nem sequer cogitava a possibilidade de perdê-lo para outro time, Denver era então, o maior negócio do mundo. Analistas passaram a avaliar e apontar os motivos que faziam dele um fenômeno tão extraordinário que traspassava qualquer outra forma de celebridade em todos os meios que se possa imaginar. Revistas especializadas apontavam-no como a maior personalidade do mundo da informação na era digital, era a figura mais citada em todas as pesquisas de opinião, em toda a América Latina, Europa, Ásia e África o nome dele era o mais lembrado quando se perguntava sobre um destaque internacional qualquer, dava ele na cabeça. Ele era o namoradinho da América, apenas na terra do Tio Sam ele não encabeçava as listas das pessoas mais importantes do mundo, muito disso fruto de os americanos serem uma cultura que pouco aprecia o futebol, mas porque, segundo pesquisas, o fato de ele ter recusado diversos convites para participar de eventos e de até mesmo esnobar uma proposta ainda mais tentadora do que a dos italianos, fizeram dele uma figura que não se assemelhava com o estilo americano de ser, ou seja, espalhafatoso, afeito à mídia, consumista, e outros tantos mais, lá, ele era, até então, persona non grata. Denver era uma pessoa que não se importava com a sua fama que extrapolava e desconhecia barreiras. Ao estudo, se disse que pela pronúncia do seu nome ser fácil e memorizável, era um fator importante, mas, prosseguia o estudo, o que mais contava para sua simpatia e prestígio junto à opinião pública de todo o mundo se devia a coisas menos interpretativas do que estas, o fato era que ele vislumbrava o que todos gostariam de ser, mas não conseguiam. Denver tinha todos os ingredientes para ser arrogante e de temperamento agressivo, mas se comportava com tanta amabilidade e tratava a todos com tanta brandura, que às vezes se pensava charme às suas ações, ele se comportava como o povo comum, não ostentava sua riqueza, não promovia festanças e não era visto em bebedeiras, mantinha namoros firmes sempre com mulheres que não freqüentavam as tevês, por fim, sua discrição fez dele uma espécie de exemplo a ser seguido por jovens do mundo inteiro. Qual a poção mágica que fez dele um gênio, não apenas dentro de campo? Essa era a pergunta que todos queriam saber, “Ele é tão craque fora de campo quanto dentro dele”, mencionava uma importante revista do Reino Unido. Recebeu um convite para escrever uma coluna de tema livre num grande jornal do país, mas não pôde aceitar alegando excesso de trabalho, e era verdade, seu dia de vinte quatro horas era-lhe tão insuficiente como vinte litros de água para matar a sede de um camelo dormia apenas cinco horas por dia, e viajava muito, quando não em compromissos pessoais, tinha de mostrar seus dotes futebolísticos nas mais longínquas plagas. CAPÍTULO XLIX A DESCOBERTA E A BELA A data para o casamento de Simetra se aproximava. Desde que eu soube da notícia ainda não havia falado com o doutor Rutra Mivla. As nossas relações esfriaram, não por minha iniciativa, mas falaram demais ao meu velho amigo do carro quebrado. Ele teve participação direta em todo o sucesso de Denver, se desligou dele por pouco tempo quando ficou sabendo das características benévolas em relação a quem ele sequer conhecia, não podia admitir que ele fizesse tamanhos esforços para amenizar os problemas dos outros: “Garoto, se cuida! Isso não é problema seu, se o governo quisesse ele mesmo poderia dar fim nas desgraças do mundo, você está mexendo com um vespeiro dos diabos, ouve o que eu te digo!”, era seu jeito de sempre falar, Denver encontrou nele seu solitário opositor nos seus muito complexos esforços para ajudar os necessitados. Numa dessas ocasiões, o doutor Rutra, numa viagem que fez à Europa, encontrou-se com Denver para oferecer-lhe um negócio e pedir-lhe um empréstimo, e qual não foi a sua surpresa ao saber que ele não tinha a soma por ele pedida, “Como pode? Você ganha mais de cinco milhões de dólares por mês e não tem dois para me emprestar?”, Denver não tinha absoluto controle das suas finanças, mandou que seus parentes mais próximos e jovens estudassem todos e comprou-lhes indústrias para administrarem, “garantirá, como ele mesmo gostava de falar, o futuro de tantos, que uns ele nem ia conhecer”, aplicava alguma parte dos ganhos em imóveis, mas era tímido nas aplicações. Não estava em seus planos se tornar um latifundiário, nem tampouco um megaempresário, como era o doutor Rutra, a maioria dos seus rendimentos ele aplicava no “Projeto Gaivota”, no seu anseio abnegado, brigava com as empresas que queriam tê-lo como garoto propaganda, esfolava-os ad nausean para o fim de bancar as suas ambições altruístas. Com a ajuda de algumas universidades espalhadas pelo mundo, financiava todo tipo de pesquisas relativas com a eficiência na produtividade de grãos e enviava os bons resultados para suas fontes espalhadas pelo mundo, sua rede global de ajuda humanitária, contava com intelectuais e escritores que colaboravam com idéias. De volta ao Brasil, todos, menos Denver, viemos para a celebração do matrimônio da nossa amiga Simetra, feliz da vida, ela não se continha de emoção ao se aproximar o dia mais esperado de sua vida... CAPÍTULO L A SEGUNDA PERDA No meu apartamento, acordei assustado. O telefone tocara às seis da manhã com uma voz rouca e esganiçada do outro lado da linha, era Saneta quem falava. O avião do doutor havia desaparecido na noite anterior enquanto sobrevoava as planícies e o cerrado brasileiro, com ele se foram o piloto o co-piloto e alguns empresários amigos seus. Foi o primeiro amigo próximo que eu via irse embora estudar a ‘geologia dos campos-santos’, a notícia aterrou a todos e eu me encarreguei de informar ao Denver da morte do nosso amigo, que, se não era estimado pelas suas capitalistas atitudes, tinha o nosso respeito e consideração. Não se aborreça porque eu disse que ela não era muito estimado por nós; não é nada pessoal, falo isso porque alguns capitalistas conseguem a proeza de se tornarem piores que alguns seres humanos. Por outro lado, sempre temos um pouco de consideração pela pessoa que morre; a louvamos de alguma forma, penso que isso se deve ao fato de não termos mais absolutamente nenhuma obrigação para com elas. Consolar Simetra, quão dolorido seria. Para ela foi uma notícia esmagadora, todos os sonhos que acalentara naqueles últimos meses se desfez como se desfaz o orvalho ao amanhecer, sua hipersensibilidade nunca ficara tão aflorada, precisou ser socorrida e não fora fabricado calmante neste mundo que pusesse fim ao seu martírio, todas as tentativas de ministrar-lhe remédios foram infrutíferas. Descontando o peso e o valor do sofrimento, cabe lembrar que assim como teólogos não praticam aquilo que pregam e advogados são tímidos para meter-se com a lei em causa própria, sabendo eles que ela é uma incerta ferramenta perfuro cortante, da mesma forma também fazem os médicos; raramente seguem as receitas que prescrevem. A paixão que envolveu meu amigo e minha melhor e pior amiga foi rompante, ignorou preconceitos e padrões, desobedeceu regras. Simplesmente entregaram-se um ao outro, como a âncora se entrega ao mar. Talento igual ao dele eu não tive para conquistar a minha bem amada amiga, os dotes físicos dele não eram assim tão animadores para arrebatar um coração solitário, mas ele tinha algo que talvez me faltasse grandemente; ele era um homem decidido. Eu, tendo controlado por fim a minha maior frustração que era a dificuldade em lidar com o dinheiro, descobri que faltavam ainda outras coisas para me fazer feliz e também, como o próprio Rutra dizia, ‘ser mais completo’, aprendi com Denver o que se tem de fazer para ser feliz e, uma pitada de sua felicidade tinha o meu tempero, entrementes, para minha própria felicidade eu mesmo não tinha a receita adequada; os condimentos do meu sucesso eu desconhecia. Vendo todos os meus amigos mais próximos, até o caminhoneiro a quem eu dedicava um pouco de atenção e posteriormente ajuda, via nos seus olhos a felicidade, mas nos meus, sempre a mesma amargura, e não era a solidão, a quem eu relegava o mais completo desprezo; por vezes a deixava em casa me esperando e nunca voltava para dar-lhe as satisfações devidas. Simetra quis ficar sozinha, dois meses depois da morte do noivo, ela voltara a fazer as viagens chefiando as equipes que supervisionavam o “Projeto Gaivota”, com as marcas que a perda de uma pessoa querida deixa no coração e na geografia do rosto, ela se recuperara da dor, mas não do trauma, ainda jovem, seu currículo amoroso já somava duas mortes de noivos às vésperas dos casamentos. Fui encontrá-la na casa de verão onde Denver mantinha seus treinos na Itália: “Simetra, aqui tem uma coisa que eu acho que você vai gostar, as pessoas costumam escolher as coisas a dedo para presentear alguém de que gosta, não é?”. “... É...”, respondeu-me breve, triste e monossilabicamente, com as pálpebras a meios olhos. “Pois então eu escolhi uma parte mais nobre do corpo: isso que eu trouxe para você escolhi a coração; a todo o coração...”. “Que lindo...”, falou ela depois de desembrulhar o pacote, eu não mereço esse mimo todo, onde, como encontrou isso?”. Seu sorriso, ainda que tímido, foi aberto com grande brilho, não estava mais com aquele aspecto vazio de quem sorri com uma pedra de sal na boca. “Você ainda espera por mim...?”, surpreendeu-me ela com seu olhar dardejante. “Já desisti. Cansei. Fiquei com dó de mim, falei-lhe sorrindo espontaneamente, vamos ser o que sempre deveríamos ser: a-mi-gos”, ela odiava quando eu falava separando as sílabas umas das outras, eu também não gostava muito, mas era como se minha língua fosse uma parte autônoma do meu corpo naquele momento, desobedecendo as ordens provenientes do cérebro. Fiquei sobressaltado com sua indagação, que não foi uma indagação como as que ela sempre dirigia para mim, foi um modo todo especial, porém, enigmático, não consegui traduzir aquele modo novo de olhar, acho até que desaprendi a interpretá-la. Combinamos que iríamos nos dedicar ainda mais às nobres causas do nosso pupilo. “Simetra, vamos fazer de conta o seguinte; se chegasse agora, aqui, neste exato momento, um cavalo com uma carga repleta, cheia de ouro e jóias e a entregasse para você, você aceitaria?”. “Claro, e por que não?”. “Pois bem, eu sou o cavalo e eis aqui a jóia; leia esta brochura, ela servirá para você, trata de um tema de muita importância para todos nós que teremos que um dia enfrentar, que passar por isso...”. “O que Acontece Quando Morremos? Para Onde Vamos?, falou ela dando vida sonora ao título do livreto, essa é nova para mim, não sabia que você tinha veia religiosa, vou ler sim, mas para onde vamos quando morremos?", perguntou-me ela, como se já tivesse na sua cabeça uma opinião clara e imutável sobre essa questão. “Onde você estava antes de nascer?”. “Não faço idéia, mas eu acho que nas estrelas... Sei lá!”. “Pois bem; quando morrermos, assim penso, estaremos no mesmo estágio de antes de nascermos, ou seja, num estado letárgico, como se não existíssemos, até a chamada...”. “Você acredita mesmo nessas coisas?, interrompeu-me ela, acho que o inferno existe para os maus mesmo, e o céu, bem, o céu... o céu pode ser um lugar tedioso...!” “Inferno..., Você sabia que a palavra sequer existe nos manuscritos originais da Bíblia?”. “Como não? Eu já li!”. “Pois lhe digo que é apócrifo. A palavra inferno deriva do latim in-fér-nus, que significa o que jaz por baixo; a região inferior. O equivalente em grego para esta palavra é haí-des, que vem da Septuaginta grega que geralmente verte she’óhl por haí-des, que é conhecido como a sepultura comum da humanidade, um lugar de inatividade, e sabemos que, em seu texto original, as Escrituras Sagradas foram produzidas em três idiomas; o hebraico o grego e o aramaico, que era a língua em que Cristo falava. A idéia de um lugar pavoroso onde as pessoas queimam eternamente ganhou força na Idade Média, com a disseminação da literatura ocidental, com Dante em sua Divina Comédia. Com o deus-pastor grego Pã, filho de Hermes, que tinha pernas, orelhas e chifres de bode, que assustava os homens e os rebanhos com uma assustadora canção, a palavra pânico, deriva de seu nome e também a imagem monstruosa do diabo, com chifres e tudo o mais que já sabemos, por fim, posso lhe dizer que a genuína história foi simplesmente tisnada por lendas e ucasses promovidos pela Igreja, enfim”. “Palmas! Não sabia que tínhamos aqui um bacharel em teologia, mas me diz uma coisa: tisnado eu sei que é manchado, mas o que diabo é ‘ucasse’?! Por quê você insiste em falar essas palavras de dicionário?!”. “E qual não é? Uma vez você usou “poliandria...”. “Poliandria é diferente!” “Acho que não... mas ucasse é uma palavra de origem russa. Tinha os decretos e as leis dos czares repleta de absolutismos ditatoriais...”. Enquanto eu encetava meus exórdios, Saneta e Jean, que me acompanharam até a Itália ouviram um pouco da conversa e não quiseram interromper, mas Saneta, espevitada como sempre, foi dizendo que não acreditava em nada daquilo, que quem é bom vai para o céu e os diabinhos vão mesmo para o inferno, com fogo e todos os acessórios que tinham direito, encurtei o rumo da conversa, falar dessas coisas nunca acaba bem. CAPÍTULO LI AS DELÍCIAS DA TERRA MÍTICA Numa noite de uma lua estranhamente prateada, (a lua italiana lembra um gênero de cor surreal) jantamos uma típica especialidade da cozinha italiana: um delicioso Osso bucco; a canela da vitela com que fora preparado o prato, de tão suculenta, alagava a boca e o espírito, servida com arroz e gremolata, uma mistura de casca de frutas cítricas, alho, salsa e especiarias, ao acompanhamento de um delicado Chianti Clássico. Após muitas piadas e historietas espirituosas, fomos dormir com os vapores das duas garrafas do Chianti a incomodar e embalar os nossos sonos e sonhos; essa é uma das vantagens do vinho, ele faz com que por uns curtos instantes nos ausentemos do mundo material. Tínhamos que acordar cedo no dia seguinte. Fomos encontrar com Denver que estava hospedado na lendária cidade de Gênova. Nos divertimos pela auto-estrada italiana. Saímos dos arredores de Turim com destino a Gênova, poderíamos ter ido por Alessandria, (a terra da Rosa e o Nome) que cairíamos direto em Gênova, ou mesmo por Asti passando por Alba e Mondovi até chegar a Savona, de onde uma estrada direta nos levaria até onde queríamos. Decidimos tomar o caminho mais distante para poder melhor apreciar o exuberante panorama daquele pedaço de norte; era como se afrescos perfeitos fossem se deslocando pela janela do carro... Passamos primeiro por Vercelli, depois Novara, onde encontramos diversas placas nos guiando ao rumo de Monza e Milão. Passamos pela terra da moda e encontramos a pequena Lodi; Piacenza adiantava-se por mais uns setenta, no máximo oitenta quilômetros; Parma se aproximava. Depois, Reggio. O coração acelerou de súbito quando li as instruções para chegar à cidade de Módena, a terra sagrada onde se produz o maior mito do automobilismo, as diabólicas Ferraris, o Dr. Rutra me dissera certa vez que pilotou no autódromo particular da Ferrari nesta cidade, se verdade ou se mentira, não sei dizer, acho que o Dr. Rutra não tinha nas mentiras um modo de vida, como tem os que mentem gratuitamente. O certo era que Denver havia sido convidado a ir conhecer a mítica fábrica de carros fundada pelo comendador Enzo Ferrari, por a Juve pertencer a Holding que detém as ações da fábrica que produz mitos, ele ganhou do presidente do clube um magnífico modelo vermelho personalizado com as iniciais do seu nome estampado na fuselagem e nos encostos do banco de couro bege, mas ele, do alto do seu excessivo zelo com o presente, deixava-a descansando na ampla garagem de casa. Após passar pela simpática e nostálgica entrada para a cidade dos sonhos, chegamos a um cruzamento: as placas indicavam que em linha reta chegaríamos a Ímola, (o nome que faz chorar) Ancona e muito depois Pescara, entrando à direita, as placas indicavam Firenze (Florença) e antes dela uma cidade de nome engraçado para nós; Prato. Antes de Firenze, porém, tornamos a virar à direita com destino a Gênova, passamos também por Lucca, um lindo condado. Rodamos mais quinze quilômetros e encontramos mais um cruzamento; à esquerda, Pisa e Livorno; se em Livorno houvesse uma grande montanha, por certo veríamos a Córsega, ilha esta, quase gêmea à Sardenha, elas estão poucos quilômetros mar adentro. Voltando para a terra firme, à direita, a placa desconhecia fronteira e nos levava à França; Marselha era o nome. Passamos por mais cinco pequenas cidades, entre elas Carrara, a Meca dos mármores e congêneres, tendo à nossa frente apenas um lugarejo chamado Rapallo, e atrás milhares de anos de história, chegamos por fim a Gênova. Antes, paramos numa simpaticíssima bodega que servia um excelente vinho e iguarias do Mar da Ligúria, que banha toda a costa italiana até o bico da bota; o calcanhar desta é banhado pelo Mar Adriático tendo sob sua sola o Mar Jônico. Eu, Simetra, o chistoso Jean Glimm, a irrequieta e ‘sincera’ Saneta, sentamos à beira-mar e bebericamos alguns líquidos densos. Passamos a limpo tudo o que nos estava acontecendo. Denver convidara as suas duas amigas para o auxiliar nas finanças e nos projetos, ele precisava se cercar com pessoas de sua inteira confiança, eu por minha vez, convenci Jean a vir trabalhar conosco. Avaliamos a nossa situação com inerme perplexidade, a qualquer momento, por força do acaso ou da mente humana, tudo aquilo poderia mudar, Denver oferecia polpudos salários a todos nós, a remuneração não era uma questão a ser discutida. Ele era ainda muito jovem, conquanto sua conduta e maturidade mostrassem o contrário, seus vinte e cinco anos eram nada perto da nossa idade, muito embora ele pensasse com a cabeça de quarenta, tomasse decisão com a frieza da de cinqüenta, tivesse a serenidade da de sessenta e a serenidade tardia da de setenta; tudo isso num corpo e mente de vinte e poucos! Antes de tudo ele era um ser especial, desperto e coerente ao extremo, (a única qualidade que me invejava nele) e dono de uma sensibilidade tão fina e tenra como a casca de um ovo. À mesa e sem o vinho a pensar por mim, lancei a idéia de cada um de nós avaliarmos e fazermos um perfil do nosso amigo dono de um carisma sólido. Todos toparam e quem começou a falar, como sempre, aliás, foi Simetra, uma mulher que tinha em sua índole de ‘grandes dotes intelectuais’ uma propensão natural para a liderança e uma rara inclinação para a bondade; era dessas mulheres que preferiam ser traídas a trair: “Ele é maravilhoso, não vou falar dos lugares-comuns, da sua personalidade, generosidade etc. vou falar de uma coisa que me fez largar o consultório que eu construí com muito esforço e vocês sabem disso, falou ela apontando para mim e Saneta, e vir até aqui, e a andar pelo mundo cuidando de crianças doentes... Sabiam vocês que ele não me mostrou e também não me pôs em contato com o luxo e a riqueza e sim com uma pobreza e moléstias que eu só pensei que existiam no Brasil? Ele me fez enxergar que podemos fazer muito mais, ele recebeu do seu último patrocinador milhões de dólares e enfiou quase tudo na sua Gaivota, que está voando, voando e alcançando o céu... Pelo menos o céu existe não é?, perguntou ela para mim, agora eu vou imitar você, prosseguiu ela, apontando para mim novamente, - só que dessa vez com um ademane mais particular, esticando o pescoço e me jogando os olhos -, ‘louvada seja a madre que deu à luz a esta... Esta... - “criatura!”, - atalhou Saneta, - não, não, criatura não, quero uma palavra mais afetuosa..., - “Jean Glimm!”, troçou o marido de Saneta no que recebeu uma careta que tinha a força e o poder de uma artilharia pesada, - já sei... Quinta-essência”, findou ela, que logo recebeu reparo de Saneta que disse: “Não sabia que era composta, se soubesse, acertava”, Simetra sorriu mostrando a língua para a amiga. Jean Glimm se antecipou à vez de Saneta e disse: “Pessoal! Esse cara é (...)!”, não cabe reproduzir o palavrão que ele soltou a plenos pulmões. Saneta disse apenas que Denver era uma mistura de Madre Tereza com Robin Hood, com a diferença de ser mais bonito que a primeira e não ser criminoso como o segundo. “Mas acho que ele está precisando de alguém ao lado dele, sabem? Não essas coisas horrorosas, essas sirigaitas que andam atrás dele (puro despeito dela, as garotas que ele saia eram lindíssimas, para dizer o mínimo, mesmo descontando a tendência para a epifania), mas uma garota que entenda ele... Ah, eu acho que ele está tão carente...”. “Agora é sua vez”, me falaram os três em conjunto. “Tenho pouco a falar dele, o que se pode falar de alguém que faz o que ele faz? Solicitei que vocês falassem para eu ter uma dimensão do que pensavam a seu respeito, e tudo bateu com o que eu imaginava, apenas a Saneta precisa escolher melhor os presentes que dá para ele, (todos gargalharam), no mais, é isso aí!”. Para todos, ele era assim: amorável, solícito, um encanto. Mas ele não se considerava um demiurgo. CAPÍTULO LII QUASE ELA O lugar onde estávamos sentados degustando delícias e procurando auscultar o que vinha do mar, tinha os moldes dos sonhos que não lembramos e a singeleza dos quadros de tempos antigos onde se retrata a vida campestre. Bebíamos já por um pouco de tempo, o entardecer junto com o crepúsculo se aproximavam o que deixava o céu com uma intensa cor escarlate; foi o mais belo dos arrebóis que jamais tornei a ver. Nos meus tantos anos de vida, bem e mal vividos, não há recordação na memória de eu ter apreciado um pôr do sol tão rico em fulgurantes minúcias e bem nas boas companhias que os amigos gostam de ter. Quando solicitamos o valor da nossa dívida em liras, uma moça, dona de um encanto pra lá de cósmico, nos apareceu como aparece o ladrão, de súbito, do nada. Com um pequeno bloco de anotações nas delicadas mãos. Seu corpo tinha uma presença majestosa, como o de uma nobre. Os cabelos retintos de fios finíssimos sedosos e brilhantes estavam amarrados ao modo de uma fera o estar, seu rosto, cheio e sem sardas ou algo que o maculasse, não excluía uma possível intemperança, tinha quase o formato de uma pêra com a diferença de ser uma espécie de design ainda mais preciso e cativante e sedutor, como a figura de um morango o é, ou ainda melhor de modo que a natureza se encarrega de criar tantas belezas que me perco na aparência das frutas e das mulheres. Seus olhos eram ligeiramente azulados, na forma, era superior à forma de qualquer coisa que tivesse a pretensão de ser ovalar, o nariz de um feitio tão exatamente proporcional ao talhe e curvas do rosto, que parecia não pertencer a ela, a boca de lábios tão espessos e brilhantes parecia o próprio crepúsculo solar a orlar sua face, os seios eram cheios e de aspecto consistente e firme, as maçãs da face lisas e ruborosas, ganhavam de dez se comparadas à sedutora cor do morango, altura e peso se entendendo, ela era o máximo no quesito mulher bonita, ao meu ver, a mais bela forma que meus olhos jamais sonharam pousar. Se um ateu a visse, passaria a crer em Deus no mesmo instante, e que ele próprio a fez pessoalmente. Quando abriu a boca solar para nos informar o valor da conta, seu idioma e tom de voz se entendiam perfeitamente com o conjunto geral, ela era um arraso, se os anjos do céu mantivessem ainda nos dias de hoje o doloso costume de tomarem para si corpos carnais e perder seus privilégios nos braços de uma mulher, certamente aquela italianinha com modos de camponesa siciliana iria dar à luz um Nefilin. Todos se entreolharam. Mas os mais despertos olhares e repreensões vieram para mim, como era de se esperar, pois só o meu corpo se encontrava ali, a cabeça e os pensamentos dela repousavam na lua. Após alunissar os pensamentos em nosso satélite natural, decolei-os em direção à minha mente terrestre, Simetra tratou de se comunicar com ela no idioma local de forma tão descontraída e fácil que parecia uma genovesa aparentada com Colombo. Pagamos a conta e partimos em direção ao nosso original e esperado destino, Gênova. CAPÍTULO LIII O ENTUSIASMO Encontramos Denver, que estava saindo de um treinamento e tinha o resto do dia de folga, o que havíamos combinado com o nosso amigo ensaísta, que morava no Brasil, era discutir e receber o mote para a próxima palestra que seria na sede de uma grande empresa americana, em Atlanta. Denver parecia ansioso por aqueles dias, um ano depois que veio jogar na Itália, aquela era a primeira vez que ele ficaria de fora de uma partida por motivo de contusão, aproveitamos o veio para colocar em ordem algumas coisas que aconteceram nos últimos dias, precisávamos decidir como nos livrar da imprensa, que já fazia marcação cerrada para saber dos boatos referentes ao real interesse do Real Madri na aquisição do seu passe. Os espanhóis se decidiram por levá-lo embora da Juventus e, como este, não mediriam esforços para obter o êxito na empreitada. Poderosos grupos de telecomunicações se armaram e foram, juntamente com o presidente do Real, à sede da Juventus discutir, “o que seria preciso para contratar o jogador”, mas não passava pela cabeça dos italianos se desfazerem do seu maior patrimônio móvel, apenas com notinhas irrelevantes nos diários esportivos que circulam na Itália, a torcida formou uma frente, uma espécie de força-tarefa para impedir que a cartolagem se perdesse nos cifrões e deixassem ir embora o motivo de maior alegria dos fanáticos torcedores italianos. Na Itália o futebol é tratado com muita reverência e respeito, ganham até status de religião alguns times e jogadores. Qualquer eventual deslize poderia causar danos irreparáveis, ainda mais se tratando de Denver. Ainda em Gênova, acertamos os detalhes da viagem ao Estados Unidos. Em meio à descontraída conversa, Saneta comentou com Denver que eu havia ficado em estado de êxtase por uma garçonete que encontramos na estrada, e ela, como sempre costumava usar, tratou de relatar-lhe todas as minhas caras de espanto que eu supostamente fiz ao ver a moça, disse em todos os pormenores de como meus olhos se arregalaram e de como eu fiquei ‘aéreo’ quando ela chegou até nós; passou dos limites: “Acho que ele quis impressionar a Simetra, tentativa em vão para despertar nela um ciúme que não existe”, chacoteou a tagarela. Algumas mulheres usam suas naturais tendências ao tagarelismo como meio de se fazerem notadas, não creio que esse era um argumento que ela usava para se manter no centro das atenções, ou mesmo se fazia isso apenas com o sentido de gracejo e descontração do ambiente, mas, ao menos naquele momento, não se fazia necessário descontrair nada porque estávamos todos com os espíritos aliviados por termos passado uma noite movimentada e uma bucólica manhã na viagem pela estrada. Aos poucos comecei a acreditar que tinha ela uma irrefreável propensão a me desqualificar seja em qualquer sentido que fosse; ela encenava gestos que eu não encenei, usava um tom de voz inadequado à minha naturalidade, por mais, a saber, ela fazia de mim um sádico e um glutão, e foi o que acabou eu me transformando nas suas performances ridículas no intuito de me imitar, se ela falou tudo aquilo, e naqueles modos, comigo diante de si, imaginem como não falou ao Denver quando eu não estava presente. Fosse o nome da sua mãe Herodias e o seu Salomé teria pedido a minha cabeça numa baixela, como fizeram com o Precursor João Batista. Contudo, os seus gestos a mim atribuídos sobre a moça causaram um efeito inesperado; Denver disse-nos que queria conhecê-la e saber mais informações sobre ela, a possibilidade me animou um pouco, não que eles formassem um belo casal, não é o caso, a beleza física de Denver não fazia frente à da moça, mas lembrei-me do que a própria língua ferina da amiga de Simetra havia falado sobre a solidão do menino; o encorajei a ver a moça. Ele se empolgou com a possibilidade e seus olhos radiaram de felicidade. As relações amorosas do nosso pequeno benfeitor não foram nada gratificantes, algumas meninas que ele namorou a sério, assumindo publicamente o compromisso, o entristeceram. Em troca dos holofotes que pareciam mais atraentes do que viver à sombra de um grande homem famoso, algumas trilharam o caminho comum ao de algumas mulheres que se relacionam com celebridades, ensaios para revistas masculinas, aparições ocasionais em programas de auditório contanto detalhes íntimos da vida do casal, algumas até mesmo escalando degraus mais altos e ganhando contratos para apresentar os próprios programas que antes lhe davam espaços, saborearam algumas da sorte de quem ganha um bilhete premiado na loteria com a diferença de que o bilhete não oferece o que a maioria delas anseiam nas suas entranhas que é a fama e o reconhecimento que qualquer delas podia arrematar. Dispensado dos compromissos, voltamos para Turim, com uma pequena escala na lanchonete, a bordo de dois carros. Eu e Denver fomos juntos e os demais no outro automóvel, chegamos ao singelo estabelecimento, momentos atrás na estrada, a noite reinava absoluta e os faróis dos carros cruzavam as faixas pontilhadas iluminando o asfalto. Os olhos de gato da estrada brilhavam com os potentes e azuis faróis do nosso carro, o que transportava o céu estrelado para o chão. Sentamos às mesas, pelo menos uma dúzia de gente dividia conosco as dependências do local. Quando o viram chegar, o delírio foi imediato, era como se um beatle em plena efervescência da segunda metade dos anos sessenta chegasse a um frege nos arredores de Liverpool, para tomar uma cerveja quente. Os autógrafos foram distribuídos à média de oito por pessoa, cada um dos felizardos queria premiar um amigo um filho um colega de trabalho o diabo, seja lá quem fosse com os valiosos garranchos do nosso amigo, uma meia hora depois de saciar a todos com fotografias (presumo que todos os italianos andam com máquinas fotográficas) para legitimar a autenticidade do rabisco, ele pôde enfim sentar-se junto a nós e pediu um suco de tomate. A garota demorou a aparecer. Como da outra vez, não foi ela quem nos serviu, mas quando da algaravia que se tornou os pedidos de autógrafos ao Denver, ela se adiantou desabrochando entre uma reles cortina de chita, e veio verificar se era o Papa que estava ali visitando sua humilde casinha. Denver demonstrava nervosismo e impaciência, queria ver a moça o mais rápido que pudesse, mas ela insistia em não dar o ar de sua divina e terrena beleza, esperamos mais um pouco. Simetra teve a idéia de pedir a conta, e ela enfim apareceu, nos chegou com a mesma postura da tardinha quando a vimos pela primeira vez, dessa vez, no entanto, se mostrou um pouco incomodada com a presença de Denver, ela não dirigiu seu olhar a ele, manteve-se de cabeça baixa, mirando o chão. Saneta decidiu, para variar, demonstrar seus talentos de cupido, antes ainda, Denver a espiava com olhar detido e impávido; nenhum músculo da sua face parecia vivo, tinha as feições da natureza muda das estátuas de mármore. “Você não o conhece?”, reparou a chata olhando a menina e apontando para Denver que prosseguia estático e absorto, “Sim, o conheço”. Respondeu a representação viva da Vênus de Milo, com uma tão envergonhada timidez que quase não ouvimos sua pronúncia. Simetra cutucou por baixo da mesa a sua amiga e a preveniu repreendendo-a sobre futuras gafes, Denver ao seu modo, prosseguia mudo como um peixe, mas com os olhos e a alma cortejava-a como um cisne apaixonado. Simetra se encarregava de novo de pagar a conta, a menina parada em nossa frente, qual poste, permanecia indiferente e evidenciando mostrar impaciência com a demora de Simetra em retirar da bolsa as liras que ela esperava com inovada ânsia. “Posso saber seu nome?”, perguntou Denver finalmente, “Meu... nome...?”, respondeu ela, tremendo por dentro e por fora, “Sim, meu bem, seu nome, se não for uma afronta pedir esse direito que não é meu...”, “Oh, não, não é, me perdoe”, ela falava de modo embaraçado e nervoso, o terror que seus olhos derramavam era sentido por nós todos, Jean Glimm, se apercebendo do clima insólito que se formara na mesa, pegou a esposa pelo braço e convidou-a a ver as gôndolas de doces e postas que eram exibidas no rés-do-chão da casinha. “Ainda espero...”, falou rindo, ainda mais tímido que ela o nosso amigo. “Para quê você quer saber meu nome?”, ela já não falava com tanta insegurança; entabulou a pergunta com sutil decisão. “Bem, o que eu posso dizer? Cortejar não é das minhas principais habilidades, achei você muita bonita e perguntar o nome é uma conseqüência natural...”, falou ele, sem o menor cacoete para o donjuanismo. Ela sorriu constrangida sem mostrar os dentes, baixou a cabeça e seu rosto ganhou uma cor carminada que parecia uma extensão da toalha vermelha que forrava a mesa. “Me chamo Nelly...”. “Se não sou traído pela presunção, acho que não é um nome genuinamente italiano, acertei?”. “Acertou. Não é”., Falou ela rapidamente, retirando da mesa os copos que as mãos conseguiam segurar. “Mas...”, tentou em vão Denver, ela já havia se esvaído quando ele se precipitou a interrogá-la outra vez: pareciam de espécies diferentes. Dois tímidos desconhecidos querendo se conhecer é uma obra cruel da natureza e um desserviço para emplacar a propagação da classe, Denver não escondeu o descontentamento de ela se mostrar, diferentemente de todas as outras, indiferente ante os seus avanços e notórios cortejos, mas isso, naturalmente, despertou nele um certo fascínio, a troca de papéis fez o bem que ele esperava no seu inconsciente, olhando para trás a cada passo dado adiante, Denver entrou no carro me entregando as chaves, ela, como era de esperar, não apareceu, para se mostrar e oferecer um mínimo de esperança no novo coração apaixonado. CAPÍTULO LIV A DENÚNCIA “Ah se pudéssemos hipotecar o nosso futuro, o meu futuro! Quando eu reouver minha dignidade, serei outro!”. Esses eram alguns dos meus estapafúrdios pensamentos de quando me via encerrado nas minhas mais profundas meditações, às vezes, um pouco de nostalgia me acompanhava até à cama, lembrava-me com indecisas saudades dos tempos de naturais divergências comigo próprio, cheguei até a pensar e sentir um sabor adverso da abundância que a prosperidade econômica propicia aos de ‘boa sorte’, lembrar-se do passado de ilimitadas limitações é um excepcional exercício para inibir o brilho cego do fantástico mundo do consumismo total, muito embora minhas relações com a miséria fossem talvez maiores do que as que provei no início da chama, mas há no mundo os que defendem que quem gosta mesmo dos excluídos e se compadecem com eles são intelectuais e gente ocupada em discussões filosóficas, o povo, a massa de gente que domina o mundo e dá munição para que os poderosos se tornem mais poderosos e com isso os oprimam cada vez com maior voracidade e os subjuguem dos modos mais vis e ocultos, o povo, a massa, gosta e se compraz com a luz que orla as vidas das gentes privilegiadas; vendem-se essas luzes nas bancas de revistas. Quando íamos a Paris, eu desaparecia noite adentro, não para encontrar a luz que a cidade oferecia, mas sim para cortejar as suas trevas suas mesas suas cores... Tardou-se menos e mais e cedo que pensávamos. O nosso prodigioso amigo emperrara e não encontrara êxito nas suas investidas amorosas sobre a nossa camponesa siciliana, é verdade que ele, no início das incansáveis tentativas, errara mais do que acertara, enchera de presentes a bela; enviava flores diariamente à donzela e uma especial remessa semanal de tulipas oriundas da Holanda. Ele mimava a moça com presentes simples e cativantes, não abusava na ostentação, evitava enviar-lhe jóias e outras delicadezas suntuosas, mas ele escorregou em diversos detalhes; a ânsia não se faz amiga das boas virtudes, ela atropela os objetivos sem somar as conclusões. Passamos dias sem ver a menina, num domingo, após um jogo, eu e Denver fomos passear de carro. Decidimos em conjunto fazer uma breve visita a Nelly. Quando ela o viu descer do carro, quase deu para ouvir as palpitações nervosas do seu frágil coração. Sentindo a reação trépida da moça, ele recuou, quebrou o sorriso do rosto abriu a porta do carro e pediu para ir embora. Era uma vida que ele não conhecia. O alarde sobre sua paixão naturalmente já ganhara as páginas dos jornais e a doce Nelly já era rosto conhecido na mídia televisiva. De qualquer modo, ele usava a indumentária perfeita; a simplicidade e a modéstia que são a alma da elegância. Ele alicerçava demorada e calmamente a sua boa conduta, mas como todo homem não era infalível e cometia erros, alguns até grosseiros, mas nunca uns que se referissem aos seus mais que sagrados assuntos profissionais, o seu zelo pela carreira tinha um toque de solenidade, já homem feito e rico, gozando de todas as facilidades e benesses que essas condições proporcionam a quem a tem, o menino prosseguia fiel aos seus princípios de retidão, sobre a relação com a sua celebrização isso também é um capítulo à parte; “Não ando por aí com ares de celebridade, na verdade eu até preferiria passar sem chamar a atenção das pessoas, andar sem aparato... Deve ser uma coisa deliciosa essa: andar sem precisar se preocupar com a vida, mas eu não posso fazer isso de jeito nenhum, nem pensar em apelar para disfarces, me sentiria ainda mais ridículo, se minha profissão me desse a opção de ser anônimo, ah! Que benção seria! Entrar num restaurante e ser mal atendido, pedir um jornal na banca e o jornaleiro me maltratar porque era o outro jornal que eu queria e não aquele, e num balcão de passagem? Chegar para a moça e ela jogar de qualquer jeito o bilhete sobre o balcão? Que saudade! Hein! Como deve ser? Fala-me aí você vai, me diz aí como é a sensação?” Eu sorria largamente quando ele começava a entoar suas angústias sobre sua solidão e rejeição à fama, compreendia o craque ela como um fardo e um torniquete atravessados em sua garganta, por muitas vezes era atacado por infindáveis crises de choro e quando o quadro se agravava nós nos preocupávamos a ponto de pensar que a qualquer hora ele poderia por tudo a perder, mas tudo isso em sua vida era como mais um de seus enigmas que lutávamos para decifrar. Alguém com a sua idade e experiência, com um histórico de vida muito mais ligado a traumas do que a felicidades poderia se encontrar revisando atitudes, remoendo motivos, se lançando a campanhas de guerras que não eram suas, elaborando introspecções absolutamente incompatíveis consigo próprio. O amadurecimento tão precoce, a genialidade tão à flor da pele, a sensatez invejável, o caráter de uma sonoridade surda, a compaixão, nada disso poderia estar acoplado a uma pessoa que vinha do meio que ele veio, quando em sua famosa entrevista à rede inglesa ele disse que “nenhum fator externo afetaria sua personalidade” era a mais pura, límpida e cristalina verdade, nem todo o conhecimento humano ajuntado e estudado e revisado e colocado à disposição para ser saboreado por multidões daria o resultado que deu esse nosso garoto, nada, nem literatura, nem influência e tampouco um implante de nobreza faria ele se tornar o que se tornou, a sua capacidade era-lhe inata como é inata a habilidade de voar das borboletas. Somando-se ao permanente tumulto que se transformara a sua vida, Denver vivia mais dentro do que fora dos aviões e fez dos aeroportos sua segunda casa, gravações de comerciais em toda parte do mundo e amistosos da seleção exprimiam ainda mais seu escasso e concorrido tempo. O Projeto Gaivota despertava cada dia mais a atenção da mídia, para realizar as visitas aos países que ele atendia era montada uma operação que contava com dois jatos; um com destino para um lugar completamente diferente ao seu verdadeiro destino; troca de aviões nas escalas. Mas todos os arranjos não se mostravam eficazes na tentativa de manter bisbilhoteiros longe da sua meninados-olhos. Numa viagem até o interior de um país que vinha sendo dilacerado por guerrilhas, seu avião aportou. Numa cidadela totalmente desprovida das mais básicas condições de saneamento e de vida, quase uma sucursal do lugar onde eu vivia, Denver aterrizou com seu séquito para estudar a melhor forma de prestar ajuda aquela miserável massa de gente que implorava pela morte. A confiança que depositamos em determinadas pessoas deveria passar por uma sabatina antes de totalizar o seu limite. Denver dormiu junto com todos os médicos e assistentes numa precária cabana às margens de um estuário que secava quase que visivelmente, andando oitenta quilômetros por entre ameaças de bombas e medo no seu estado mais puro, ele chegou à cidade e lá descansou a noite fria e gelada. Ao amanhecer, ele se encarregou de visitar as crianças que padeciam por falta de comida e de cuidados de saúde, casos horrendos até de canibalismo por falta de alimento lhe foram relatados, o que o entristeceu palidamente, mas que acendeu ainda mais o seu irrefreável desejo de abrandar como podia o sofrimento dos desgraçados da vida. Lá, ele permaneceu por dois longos e intoleráveis dias, brincou com as crianças que tinham mais ânimo e força, passeou pelos arredores da vila sem ser incomodado, andou pelas vielas fétidas e acompanhou o trabalho de remoção de cadáveres que simplesmente se exibiam para a face da terra e atraíam a atenção de abutres que rasgavam suas carnes quase por toda em decomposição; com a diferença de que ele não estava decomposto, fazia-se um paralelo entre os abutres os cadáveres e o próprio Denver. Acompanhar todo aquele triste e repugnante ofício não lhe trazia qualquer felicidade. Se os dirigentes do seu time soubessem que ele ao invés de estar participando de algum evento importante (o que ele informava) e estivesse metido num território extremamente perigoso, por certo seria severamente advertido ou algo ainda de mais grave poderia acontecer. Sua atividade benemerente não poderia ser aceita se ele próprio estivesse envolvido em questões que lhe trariam riscos. Mas ele também se divertiu muito, bateu bola com alguns soldados nativos que guardavam e garantiam a segurança da vila, distribuiu uniformes bolas e chuteiras e fez a alegria de centenas de crianças que viviam num abrigo precariamente equipado. No orfanato que atendia os casos mais graves de pestilências, ele instalou-se e conversou longamente com os assistentes locais, à hora do almoço comeu da mesma ração servida a todos, se interessou em saber de como era feita, e comeu como se tivesse provando um prato de cozinha internacional, encabulado ele ficava sim. As pessoas que participavam com ele dos arranjos não se sentiam à vontade, enchiamno de atenções e carinhos, de algum modo isso causava algum acidente nas relações entre eles. Com o embarque marcado para a noite daquele mesmo dia, Denver se despediu dos amigos que iria lá deixar sem previsão de quando poderia vê-los novamente, suas partidas desses lugares eram sempre muito tristes e carregadas de emoção e não porque resultava mais eficiente. Acordamos às seis e meia da manhã já em solo italiano, a campainha do telefone tilintava sem parar, a nossa empregada, importada do Brasil para cuidar de Denver, atendeu a uma chamada proveniente da casa de Diogo Andrade. Ele falava de modo assustado no outro lado da linha, com a voz arquejando e a respiração ofegante. Ele conseguiu depois de muito custo me falar o que havia acontecido, perguntou que história era essa de fotos do Denver ajudando crianças num país onde a guerra civil matava tantas pessoas como nos Campos de Concentração Nazista. Assustado, eu pergunte-lhe que história maluca era aquela, e onde ele havia visto aquilo. Os jornais do Brasil, da Europa do Estados Unidos e até os de Colombo, no Sri Lanka, estampavam as fotos de Denver chegando ao país da África, levando consigo mantimentos e abraçando crianças, comendo com elas a miserável comida, participando de uma partida de futebol, e toda uma série de outras. Acordei-o rapidamente e lhe mostrei na tela do computador de mão todas as matérias dos jornais com ele naquele país, esperei dele uma reação revoltante e indignada, mas seu semblante não parecia mudar; continuava amassado e chocho sem qualquer sinal de terror. Denver puxou para perto do seu corpo a coberta, espreguiçou-se lentamente e sussurrou meramente: “Os caras descobrem tudo, he, he, he.” “Ei, ei, mocinho! Acordei-o novamente, o problema não é apenas esse não! Se é que poderemos entender isso como pouco!”, o telefone tornou a tocar, era Simetra desesperada querendo saber como foi que veio a acontecer isso, “Vem pra cá!”, lhe pedi, horas mais tarde Denver me confessou que estava com medo da repercussão que isso poderia causar, pedimos para que o Andrade embarcasse imediatamente para nos auxiliar. O presidente do seu time ligou em nervos: “Quero falar com ele agora!”, “Não pode não”, respondi, “Chegarei aí no início da tarde, diga a ele que me espere na sede, teremos uma reunião de emergência”, pessoas importantes amam reuniões. Decidi desligar todo o contato externo possível, apenas pela rede mundial de computadores acompanhávamos os desdobramentos do furo que algum dos nossos colaboradores ajudou a arquitetar. Os canais a cabo não tinham outro assunto, a rede americana CNN se encarregou de distribuir o fartíssimo material da reportagem para todo o mundo, Denver apenas sorria de soslaio, seu ar era de preocupação, teria que se apresentar ao clube ainda naquela turbulenta manhã. CAPÍTULO LV O PITO Mais de duzentos jornalistas se amotinaram em frente da casa dele para saber de sua própria voz as explicações para sua atitude, quando o portão foi aberto sua saída foi impedida, ele manobrou bruscamente o carro e retornou à garagem, “Vou treinar, vou treinar, ninguém vai me impedir!” Entrou ele esbaforido, demonstrando rara falta de controle, ligamos para um amigo que veio socorrê-lo com a ajuda de um helicóptero, mas o paliativo não adiantara muito, as centenas de jornalistas cinegrafistas fotógrafos e curiosos o esperavam lá também. Treinou normalmente. Apenas uns poucos repórteres credenciados puderam acompanhar o treinamento, o técnico impediu qualquer aproximação até ele ameaçando mandar todos irem embora se insistissem em falar com o craque. Às treze horas, a presença do presidente no clube causara maior alvoroço entre os repórteres. Denver foi convidado a ir até a sala da diretoria, mas mandou a mensagem de que iria só depois que terminasse o coletivo, o que irritou profundamente a direção do clube. Impaciente e para delírio dos cinegrafistas, o presidente foi até a beira do campo falar com Denver, que, com sinais, pedia para que ele esperasse um pouco, ele irritou-se ainda mais e caprichou nas gesticulações. Coerente, Denver abandonou o coletivo e foi ter com o todo poderoso do clube, que pedia explicações para o episódio do dia anterior e ele apenas lhe disse que iria falar em particular com ele depois. A bronca foi pública. Enquanto se desenrolava normalmente o coletivo, o presidente reuniu a imprensa para um ato de desagravo à atitude do craque, o pito foi altissonante, o presidente falou irritado e garantiu que o próprio Denver se encarregaria de falar sobre o episódio. Em todo o seu período augusto, Denver não tinha ainda passado por uma ocasião tão tensa motivada por questões que jamais ele poderia imaginar servirem de palha para este fogo, sentado à mesa de conferência, a mais disputada de todas as entrevistas coletivas de sua vida ele falou com agressividade, atacou a imprensa, fez gestos que não condiziam com sua natural e conhecida postura: “O que vocês gostariam de saber? Por quê eu estava lá? Lhes adianto: isso é problema meu, não tenho e não quero fazer publicidade em torno de assunto que eu considero por já encerrado, fui visitar alguns amigos num lugar distante e não vejo nisso um motivo de tamanho alarido, quanto a minha relação com o clube, digo também que nenhuma cláusula, - e eu sou respeitador delas me impede de ir a qualquer lugar, falta bom senso? Não sei. Minha presença se fez necessária naquela ocasião e de novo e de novo eu estarei lá quando assim for preciso.” “Você vem patrocinando alguma campanha contra a fome e a pobreza, isso é algo que não se pode negar, surgiram comentários de que é você quem está por trás de uma legião que vem fazendo esforços para amenizar o sofrimento de povos principalmente na África. Documentos comprovam que as ONG’s que vem realizando esses trabalhos não recebem patrocínios de nenhuma empresa ou órgão de ajuda humanitária conhecida, as evidências apontam-no como o verdadeiro articulador e mentor desse grandioso esquema que junto com as palestras...”, enquanto esse repórter o golpeava impiedosamente com essas perguntas, um silêncio fúnebre tomou conta daquele suntuoso salão, Denver, olhar grave, ouve cada palavra proferida pelo repórter com legítima e contida indignação e fala: “Isso configura crime?”, “Não é o caso de crime, mas sim, o que o motiva a esconder um trabalho tão digno quanto esse”, Denver tomou o microfone para si, levantou-se da cadeira e partiu para a ofensiva: “O que vocês querem de mim? Quando eu recusei a um de vocês uma entrevista em que o tema futebol era a pauta? Nunca obstruí o trabalho de ninguém, portanto não posso tolerar, sim, é isso mesmo, não posso nem irei tolerar que interfiram na minha vida pessoal ou sobre como as decisões que não configuram qualquer modelo de crime, não darei nenhuma satisfação a vocês sobre viagens que faço ou qualquer outra coisa que não esteja relacionada com o futebol, se quiserem, vão lá e investiguem como entenderem que devem, da minha boca não terão uma só palavra que irá colaborar com esse sensacionalismo promovido com o único intuito de arrecadar fundos e trazer à luz uma coisa que pouco tem a ver com questões esportivas, se vocês que são por vocação detetives e fuçam na minha vida para encontrar notícias que interessam a população e, pela insistência, acabaram encontrando, ótimo! Peçam e incentivem a outros para que façam o mesmo, obrigado”. A saraivada de perguntas que sucederam à saída intempestiva de Denver eram agora dirigidas ao assessor de imprensa do clube que se incumbiu de satisfazer e conter a sanha dos repórteres que quebraram os protocolos e avançaram para saber mais e mais sobre as misteriosas viagens de Denver. Saindo e adentrando nas dependências da sede do clube, Denver sacou o celular e conversou com sua mãe, falou a ela que estava muito angustiado, o que rapidamente preocupou a senhora, mas ele logo tratou de tranqüilizá-la: “Mãe, estou morrendo de vontade de comer beiju, manda fazer uns pra mim?”. CAPÍTULO LVI COMO FOI As fotos de Denver oferecendo sua ajuda à legião de famintos, ajudando acnêmios a se locomoverem naquele paupérrimo país correram o mundo. Sempre que íamos para essas visitas, forjávamos uma série de artifícios na intenção de ludibriar a imprensa, Denver, um claustrofóbico confesso, não se sentia muito à vontade viajando em jatinhos que por mais confortáveis que fossem, eram pequenos, em algumas ocasiões de viagens mais longas fretávamos um aparelho com menos conforto e maior espaço para deixá-lo mais tranqüilo, naquele dia, especialmente, decidimos ir com o nosso próprio avião; mandamos outro com ele supostamente dentro para outro destino o que despistaria qualquer possibilidade de a imprensa saber o nosso verdadeiro rumo. Mas a imprensa não apenas sabia o destino dele naquele dia como já havia montado todo o aparato para flagrá-lo nos mais nobres atos de conduta que ele a tanto suor e sacrifício fez para que prosseguissem anônimos, mas como as coisas ocultas, sejam elas boas sejam elas más, tem um prazo de validade muito curto, chegara a hora de o mundo conhecer a verdadeira face de Denver, o modo com que isso foi feito é que não nos alegrou muito. Saneta estava encarregada, junto com seu marido Jean Glimm, a ir fazer todos os preparativos para alojamento, locomoção, e negociar com as autoridades competentes o pouso do avião que trazia o nosso craque, as imagens foram todas gravadas por alguém que já estava lá; ele descendo do avião, jogando bola com os soldados, se alimentando com as crianças e a elas ministrando medicamentos. O caso ganhou repercussão sem precedentes na imprensa do mundo inteiro, manifestações de carinho por parte de todo o povo italiano apoiando-o. Jornais publicavam artigos reverenciando a sua conduta invejável. Um jornal inglês de enorme prestígio publicou um suplemento apenas para discutir as razões éticas que moveram Denver a manter ocultas suas atividades genuinamente filantrópicas, um dos colunistas lamentou não haver naqueles dias um Nietzsche, um Sócrates, um Descartes para deitar a pena e desvendar o mito do garoto do Terceiro Mundo que desequilibrou o Primeiro e todo o resto; no espaço do jornal que ele escrevia todas as semanas caudalosas análises sociais e políticas se liam apenas estas mínimas oito palavras: “Eu sou demasiado incompetente para falar sobre Denver”. Ele ocupava espaços na mídia e liderava com folga as mais variadas listas de personalidades mais admiradas do mundo à frente até mesmo de instituições seculares, se antes seu nome era associado a uma excelente concentração de quesitos que fazia dele uma formidável máquina de fazer dinheiro, agora ainda mais. A empresa de material esportivo que o patrocinava viu suas ações em Wall Street decolarem como um Concorde, as vendas mundiais da marca alcançaram números espetaculares e vinham batendo recordes atrás de recordes, a proibição do uso do seu nome em outros produtos não impediram e até estimularam a pirataria desenfreada de vários produtos que o tinham no rótulo: de feijão vendido no Camboja a temperos de comida no Azerbaijão, de pilhas e telefones celulares vendidos em Taiwan a biscoitos em Tegucigalpa, de relógios na Bolívia a perfumes na França de produtos de higiene pessoal na Escócia a vassouras e chinelos em Israel, no escritório brasileiro tínhamos recebido mais de trinta mil produtos confeccionados com a marca Denver, nos sites de busca da internet mais de dois milhões de links eram encontrados se se digitasse a palavra mágica ‘Denver’. CAPÍTULO LVII A INDÚSTRIA DOS BILHÕES Nos armamos de todas as formas possíveis para inibir o uso indevido de sua marca, os esforços para evitar a superexposição do seu nome deram água. O exército dos falsificadores, amparado por leis arcaicas nos mais diversos países, era tão poderoso que seria uma luta com resultado conhecido caso tentássemos uma cruzada mais forte contra eles, consultorias apontavam que apenas em produtos não licenciados as vendas globais dos produtos, que se apropriaram de modo sub-reptício do seu nome, atingiam mais de quatro bilhões de dólares anuais, as despesas jurídicas beiravam a casa dos cem mil dólares mensais quando decidimos afrouxar o cinto contra os fora-da-lei que se beneficiavam do uso de seu nome. Por outro lado, Denver não se importava com isso, era um problema que não era dele, fez-se necessário que ele se cercasse de vários assessores para diminuir ou ao menos atenuar o assédio. Contra a sua vontade, ele estava ficando cada vez mais inacessível. Entrevistas, participações em eventos estavam ficando cada vez mais escassas, os trabalhos na sua Gaivota continuavam de vento em popa, várias formas de ajuda foram-lhe oferecidas, mas a recusa se fazia necessária, ele não queria se envolver com outras conhecidas organizações não-governamentais e rejeitou propostas para ser embaixador da ONU. Nós considerávamos que a candura e a transparência desses organismos era discutível e até mesmo demasiado político, coordenadores do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) insistiam para que ele atrelasse sua imagem nas campanhas feitas ao redor do mundo, mas preferiu recusar, “As Nações Unidas e a política mundial andam de mãos dadas, a política é a responsável pelo estado falimentar desses países miseráveis, eles fazem a parte deles, eu faço a minha”, dizia Denver, “Nunca me envolverei com política nem com políticos”, sentenciava seguro. O movimento da sua vida causava-lhe angústia. Traços de depressão foram rapidamente diagnosticados, mas ele prontamente recusou qualquer tipo de tratamento. O que ele precisava mesmo fazer era sentar num bom tamborete, meter um tarro entre as pernas e ordenhar uma boa vaca leiteira, até enjoar; o homem é o único animal que enjoa de fazer e de comer as coisas. Um bom irmão talvez lhe fizesse bem, mas nem todos têm a sorte de Van Gogh. Nunca houve um irmão como Théo. Van Gogh... Em suas cartas ao irmão ele escreveu que seus quadros um dia iriam valer mais que a tinta empregada neles, profecia? Van Gogh! Van Gogh! Não me escutas? Se um dia escutares, fica sabendo que as tuas telas te traíram, porque hoje em dia os homens do mundo fizeram com que elas valham muito mais do que a tua própria alma que as criou! Depois dessa súbita e impressionista interrupção, preciso de fôlego para continuar a narrativa, porque ela não vale nem valerá sequer esta tinta tardia. Com o furacão da denúncia, a turbulenta vida de Denver ganhara agora mais alguns acessórios. Do mesmo modo que a pressão produz diamantes e a irritação, pérolas, Denver prosseguia exibindo seu bom jogo e, fora de campo, mais plácido do que nunca. Os meios que ele dispensava para impedir que os problemas extracampo não atingissem seu desempenho eram uma outra coisa insondável. Mantinha os costumes dos treinos em separado. Continuava sendo o primeiro a chegar e o último a sair, não reclamava da falta de tempo para nada, teve a agenda mais sossegada quando acabaram todos os cursos das línguas, os gols iam acontecendo do mesmo modo que dantes e a artilharia dos campeonatos nunca lhe fugia dos pés. Ele precisava jogar sempre bem para evitar comentários maldosos sobre suas atividades que não diziam respeito a bola. Denver necessitava e gozava de alguns privilégios dentro da equipe, por várias vezes foi encontrar o time quando este já estava se preparando para entrar em campo, mas isso não irritava o técnico, pois ele invariavelmente desequilibrava as partidas. Pela Seleção ele não perdia um jogo sequer, sua determinação em defender as cores do Brasil era tão ou mais elogiada quanto suas próprias atuações. Havia apenas uma coisa que o inquietava e lhe roubava a serenidade do sono: Nelly. CAPÍTULO LVIII À VIDA Fomos invadidos por uma estranha sensação quando uma fonte de jornalismo nos informou sobre quem nos havia traído no “escândalo” da reportagem. Denver preferiu manter-se neutro e, como era seu hábito natural, não quis condenar o possível delator sem ter em mãos provas concretas, como um nevoeiro noturno, as possibilidades se escondiam atrás de uma imensa e fria cortina. Com o tratamento de bebê que uma parte da imprensa dispensava a ele, Denver achava natural que comentários afáveis ao seu respeito eclodissem de toda a parte. No planejamento de sua vida esportiva, elaboramos, em todas as suas minúcias, métodos para gerir sua carreira. Antevíamos o que poderia acarretar polêmicas em relação ao seu método de treinamento, e medicamentos a ele ministrado. O Rachié Associados, e sua criação, o Razax Y8, que prometia revolucionar o mercado esportivo do mundo conseguiu todos os êxitos ansiados, alguns recordes foram inapelavelmente batidos tendo como maior estrela não o atleta que pulverizava a marca; trazia a insígnia do estimulante e a reboque a marca do laboratório. Os números eram impressionantes. O atletismo que por muitos e tumultuados anos viveu sob a vigilância e a desconfiança por parte de torcedores e comissões antidoping desde o dia em que o canadense Ben Johnson liquidou a marca da prova considerada a mais nobre do atletismo (os 100 metros rasos) estabelecendo a marca de 9,79 segundos na Olimpíada de Seul em 1988, o mundo esportivo nunca mais foi o mesmo; bastava um atleta quebrar um recorde e logo pairava sobre ele a sombra negra da suspeita de um eventual uso de substâncias químicas, contestando a legitimidade do feito. Palavrões em forma de nomes científicos ganhavam as páginas dos jornais: esteróides anabolizantes, que são hormônios masculinos sintetizados em laboratório. Quando injetada no corpo em longos tratamentos combinados a cargas de exercícios, os atletas conseguem doses extras de explosão e força física, mas os efeitos colaterais são tão fortes quanto a força que essas drogas propiciam; doenças cardiovasculares entre outras. Mas os anabolizantes acabaram por ficar obsoletos. Drogas revolucionárias vieram para incrementar e dificultar ainda mais a sua presença nos exames antidoping uma delas é o EPO ou eritropoietina substância que aumenta o número de glóbulos vermelhos e conseqüentemente a resistência física de quem se serve dela para obter melhores resultados, o futebol não é tão visado e vive sob menos suspeitas de uso químico por seus praticantes, casos de jogadores que se beneficiaram de estimulantes proibidos para alcançarem melhores resultados são raros, mas quando acontece de um ou outro se destacar enormemente recaem sobre eles as inevitáveis suspeitas. Dentro dos planos de carreira de Denver, havia uma preocupação especial no quesito dopping. Fazíamos e entregávamos exames antidoping independente, mesmo quando ele não era sorteado para fazê-lo, sob essa égide, garantíamos a impossibilidade para eventuais denúncias envolvendo o nosso craque. Com os avanços nos métodos de medição dos teores toleráveis de substâncias sumariamente proibidas pelos comitês e federações de todo o mundo eis que veio à tona a notícia de que, maquiado por um intricado engenho químico, o Razax Y8, o estimulante ‘quase-natural’ lançado pelo laboratório Rachié Associados, continha substâncias que causavam uma leve dependência em quem usava o medicamento o que também implicaria dopping. O estimulante era ilegal. Embasado em confiáveis pesquisas de outros laboratórios respeitados que, pesquisas essas, datadas desde o lançamento mundial do medicamento, não mostraram quaisquer traços de substâncias proibidas. Os comitês e as federações vetaram e suspenderam todos os atletas que, publicamente, faziam uso dele, o próximo e mais polêmico passo foi invalidar os recordes conquistados com a ajuda milagrosa do estimulante. O laboratório Rachié Associados entrou na Justiça contra o que chamou de decisão arbitrária, a pendenga jurídica prometia arrastar-se por muito tempo, recursos eram impetrados na Justiça no intuito de impedir a conclusão e a decisão dos comitês e federações, as mais variadas interpretações da Justiça dos mais diversos países que tinham atletas envolvidos, causava um verdadeiro imbróglio, um qüiproquó de cenas espetaculares a cada diferente decisão judicial. CAPÍTULO LXIX QUEM PROCURA ACHA O meu plano era que eu tivesse para o Denver a importância invisível dos plânctons, mas... Como dito e redito à força de repetição para incutir na cabeça do dileto leitor a ferocidade da imprensa em torno da vida privada não apenas de Denver mais de todos que lhe serviam como satélites, ficará então agora claro que eles, os nossos estimados e sinceros amigos, também se encarregaram de vasculhar a minha vida. Eu pretendia aparecer o mínimo do mínimo do mínimo na imprensa, não porque havia em mim um gene igual ao do Denver que se pudesse escondia-se dos holofotes tal qual fazem os fictícios e lendários vampiros, eu até tinha uma veia, que como eu mesmo era secreta, no emprego de roubar um pouquinho a cena, de gozar um pouco do prestígio e da fama do menino-prodígio, de aparecer imponente ao seu lado envergando uns sugestivos óculos escuros à laia dos mais hilários papagaios-de-pirata, participar dando declarações da minha inegável importância em seu crescimento profissional, de falar pelos cotovelos que era e isso e aquilo outro, mas, traindo a minha oculta vontade, me distanciei como pude das investidas da imprensa, coisa que não foi suficiente para eles escarafuncharem toda a minha vida descobrindo até minha última morada na rua de terracota, a matrícula trancada na faculdade de jornalismo as aulas dadas nos precários ateneus municipais minha visível propensão ao carteado e à gula, denunciada pelo meu porte cada vez mais avantajado e todas as outras coisas que eu até nem lembrava mais. Como especulação pouca para os homens da imprensa é bobagem, eles descobriram que eu dediquei uma parte do meu antes largo e ocioso tempo em trabalhos para o laboratório farmacêutico Rachié Associados. Daí para ligar o polêmico produto do laboratório ao Denver foi uma, menor do que essa que acabei de imprimir sem necessidade. Não, não quero nem irei subestimar a inteligência do amigo ou da amiga que me acompanha até aqui, mas deveria ter escrito a palavra “vírgula” em vez de apenas seu sinal gráfico. Antes de a notícia vazar pelos meios de imprensa ficamos sabendo de antemão que uma certa emissora brasileira tinha com ela todo um material que poderia ser ‘bombástico’ caso viesse a ser publicado, em discretas ligações ao nosso escritório no Brasil, um misterioso representante da emissora nos contatou para discutir o que ‘poderia ser feito’ para que aquela matéria não ganhasse os jornais: “Se vocês tivessem, desde o início, sido simpáticos conosco, talvez não estivessem passando por esse delicado problema, certo?, nos falava o misterioso representante, entrevistas e cortesias para emissoras estrangeiras talvez não tenham sido uma boa idéia por parte de vocês... Pedíamos uma entrevista e o que ouvíamos? ‘Ele não pode falar por isso e por isso’... Certo?, como é doce o sabor da vingança, não? Será que ele nos falaria agora? Será que seria possível agendar uma simples entrevista com ele, hein? Que é que você acha?”, de início não nos sentimos intimidados com a disfarçada ameaça que aquela indecifrável figura nos fazia, apenas eu e o Jean Glimm ouvimos o misterioso capanga que não quis nos revelar de quem estava a serviço, fizemos as deduções óbvias, mas seria complicado acertar o alvo das suspeitas sobretudo depois que ele disse “sobre recusarmos pedidos de entrevistas e especiais”, ora, a praticamente todas as emissoras do Brasil Denver não falava, com exceção de uma que tinha propósitos educativos e virava e mexia ganhava dele entrevistas exclusivas. Antes de tomar uma decisão a esse respeito, dissemos ao nosso chantagista, que demonstrava uma insuspeita experiência no ofício, que iríamos deixar Denver a par dos últimos acontecimentos e que ele poderia sossegar que iríamos dar a melhor solução para o fato novo que ele acabou de nos informar, mas antes de despedir-se, fez um adendo: “Pensem antes de tomarem qualquer atitude que provoque a ira da empresa da qual eu represento, caso contrário, as coisas poderão ficar ainda mais complicadas para vocês, pois eu imagino que não queiram macular a carreira dele com um assunto tão temível, certo?”, o desgraçado sempre acabava as frases com um “certo” que me irritava profunda e rasteiramente, a sua voz pelo telefone não era embargada, antes, era limpa e audível, como se estivesse falando ao nosso lado. CAPÍTULO LX CHORO DE MECENAS As pessoas são valentes com quem podem, o resto é covardia. Viajamos para Itália onde um Denver ansioso nos esperava. Adiantamos com ele, via telefone, as boas novas e ele, misto de preocupado e misterioso, fez poucas perguntas. Tínhamos que traçar a melhor maneira de equacionar aquela delicada situação para que não causasse maiores complicações. Na sua casa de verão no aconchego do seu belíssimo escritório conversamos caladamente. “O que pode acontecer?” Perguntou-me Denver sem sinais de alteração na voz. “Ainda não sabemos. Iremos elaborar em conjunto uma estratégia para minimizar as possíveis agruras que poderão chegar. Mas não acredito que eles possam levar adiante uma denúncia que está infundada, não há alicerce para que eles o incriminem ou mesmo façam algo que venha a ser prejudicial para você, é como querer erguer um peso sobre as águas.” “Você sabe que eu não tenho medo... Mas no contrato...” Quando Denver começou a falar, Jean Glimm o interrompeu, Saneta entrou no escritório que tinha a porta apenas encostada. “O quê no contrato, posso saber?” Falou ela irritantemente. “Deu para ficar escutando conversa atrás da porta agora, dona Saneta?” Falei eu bravo, aumentando o tom da voz progressivamente até a última palavra. “Nossa, onde foi parar sua educação? E eu não admito que você fale neste tom de voz comigo, Jean você não fala nada?” “O que quer que eu fale? Quem manda você ficar andando em atitudes suspeitas...”, comentou Glimm. “Atitudes suspeitas!? O que o senhor quer dizer com atitudes suspeitas?” O clima pesou, Denver passou a se irritar, debruçado sobre a mesa apoiando o queixo nos braços que estavam cruzados num gesto débil cansado e triste. “Saneta, como você arranjou dinheiro para comprar a cobertura no Rio?” perguntei eu de forma pausada e clara. “Hã?... Ora, isso não é da sua conta!” “Tem razão, não é da minha conta, é da conta do Denver, explica para ele, se puder, claro.” “O que é que está se passando por aqui, hein? Sou alguma criminosa, apenas porque comprei um apartamento?” “Saneta, nossa conta é conjunta, não tínhamos recursos para comprar aquele apartamento”, falou Jean Glimm, dessa vez sério. “Meu amor, isso é um assunto que nós devemos tratar em casa, a sós, eu já ia lhe falar, era uma surpresa para você, mas afinal, como vocês sabem que comprei o apartamento?” “Temos gente de confiança em toda parte, Saneta, vamos lá, abre o jogo, conta pra gente como fez...” “Como fiz o quê? Jean meu bem, o que está acontecendo? Me ajuda, tô ficando desesperada!” “Sabemos que foi você quem deu cobertura para a reportagem, montou toda aquela farsa... Ai, ai, ai, você apenas não contava com um simples detalhe... Como foi ingênua...”. “Pelo amor de Deus! Do que vocês estão falando? Vocês estão achando que fui eu que passei as informações para imprensa?”, Saneta começou a chorar compulsivamente, os olhos de Denver se mantinham como que paralisados pela encenação vistosa da moça que, aos modos exatos da sua natural imprudência, deixava lacunas abertas para acharmos nela uma espiã. “Depois nós conversaremos em casa, Saneta”, falou um triste e afetado Jean Glimm. Saneta avançou pelo corredor e, como um raio, porta afora sumiu deixando um rastro de despojo na sua abaladíssima inconseqüência. Perceba, leitor confuso, perceba que quando eu perguntei a Saneta de onde provinham os recursos para a compra do imóvel ela foi buscar ajuda no “hã?”; o hã? é para ganhar tempo, é o meio rápido que o cérebro encontra para recompor as idéias ao lugar certo; faça um teste você mesmo quando tiver que fazer uma pergunta embaraçosa a alguém: mas lembre-se, pergunte de modo pausado, pois assim sua certeza será maior. O leitor que vai de confuso a atento no espaço de algumas linhas lembrará de quando eu insinuei que ela deveria se chamar Hera lá no distante capítulo XIV e não Atenas ao contrário. Hera, deusa grega, mulher de Zeus, se tornou famosa pelos ciúmes e animosidade que sentia pelas várias mortais por quem o marido se apaixonava; as semelhanças que as unem são quase irmãs, com a diferença de não ser Denver seu marido e tão pouco ser este, dado à poligamia... Denver prosseguia imóvel, fitando a parede. Ele respirava a longos intervalos entre uma expirada e outra, como fazem as pessoas que se enfiam em profunda meditação. O Silêncio de morte foi por ele mesmo quebrado: “O conto de fadas está mostrando suas garras... Tudo acontecendo muito rapidamente...” “Meu bom e velho amigo, não se adiante em querer lançar desgraças nestes novos tormentos, é natural que essas coisas aconteçam, veja; nós estamos cercados de gente por toda a parte, não é de admirar que aconteçam coisas desagradáveis, você foi alertado. Ser humano é diferente de ser humano, você já deveria saber e estar preparado para isto” “Não estou falando disso não, estou me referindo ao outro e maior problema, fui vítima de meu próprio estilo de vida. Ficar quieto, falar o menos possível, e eu pensando que essa postura iria me trazer menos problemas, tolo engano, que tipo de chantagem eles fizeram a vocês?” “Bem, eu acho que a proposta é clara; você passa a manter um relacionamento vamos dizer assim... Mais carinhoso, polido, eles ficam quietos e não publicam a matéria. Caso você mantenha a postura de não falar, de não interagir com eles, aí você já sabe o que pode acontecer”, falei eu, preocupadamente. “Mas o que você ia falar antes de a Saneta entrar? Era algo sobre ‘contrato’, o que é que tem?”, lembrou Glimm. “Os contratos que eu assinei serão automaticamente cancelados caso hajam problemas relacionados com dopping” “Tudo bem, acontece que fazemos questão que seus exames antidopagem sejam entregues após os jogos, o que eles poderão fazer?” “Não sabemos ainda. O maior problema não é a questão se o estimulante... se o Razax Y8 vai ou não ser proibido, a questão crucial é o provável desgaste que o nome, que a marca Denver vai sofrer” “Não mudarei uma vírgula na minha postura, eles que façam o que entenderem ser conveniente, estou pouco me lixando, não dou a mínima!”. “Não sei se seria uma boa idéia nos envolvermos nas questões jurídicas sobre o Razax, isso poderia se transformar num tiro em nosso próprio pé seria o equivalente a assinarmos nosso atestado de culpa, o que poderemos fazer é torcer para que o laboratório reverta a situação, vocês viram o que eles estão fazendo para evitar a proibição das vendas?” CAPÍTULO LXI REALIZANDO O SONHO DE UM AMIGO DESCONHECIDO Uma semana após esses dias turbulentos de chantagem e tristes revelações, Denver voltava à vida normal até deixou estar ledo o espírito quando colhia as perfumadas magnólias plantadas nos limites de seu vasto e bem cuidado jardim. A Juventus iria decidir o título mundial Interclubes no Japão, a vitória na Copa dos Campeões da Europa garantia o ingresso para a disputa de mais esse título para sua já vasta coleção. Denver demonstrava simpatia pelo automobilismo, fez alguns amigos na Fórmula 1, para os brasileiros do Circo, sempre enviava uma mensagem de força e incentivo, a FIA já o havia convidado para entregar os troféus aos campeões em várias ocasiões, mas ele na sua maneira comum de recusar convites para aparecer em público, adiava como podia. Era fim de temporada na Fórmula 1, o campeonato ainda não estava decidido, pelo menos três pilotos tinham reais chances de conquistar o campeonato, com um mês de antecedência a Federação Internacional de Automobilismo confirmou a presença de Denver na antepenúltima etapa do mundial de pilotos. Como era comum nos eventos que Denver participava, os preparativos para sua presença no autódromo estavam quase todos prontos, havia uma surpresa que ninguém quis adiantar. Iria acontecer no sábado, logo após o término do treino oficial. Com as adaptações detalhadamente feitas, um carro da Ferrari foi especialmente preparado para que Denver pudesse dar umas voltinhas pelo circuito, era mais uma forma que os executivos da Holding encontraram para homenagear o seu maior investimento e por tabela e, com efeito, preparar e amaciar o terreno, pois o contrato dele, estava expirando. Denver chegou ao autódromo com um batalhão de cinegrafistas o acompanhando, distribuiu simpatia, visitou os boxes de todas as equipes, entregando uma camisa autografada a cada membro de equipe, o que sensibilizou muitos tendo em face da frieza que é o meio do automobilismo, muitas poses depois, muitos autógrafos depois, ele entrou no motor-home da escuderia italiana. Meia hora depois eis que surge Denver dentro de um lindo macacão branco, com uma logomarca azul se destacando no peito, outras, porém, pareciam ter sido apagadas ou arrancadas, para evitar maiores problemas com seus patrocinadores. Com um capacete amarelo embaixo do braço, igual fazia com a bola antes de bater um pênalti, ele posou ao lado do carro: mais de cento e cinqüenta fotógrafos disputaram o melhor ângulo, em meio a tantos cliques das máquinas ele sorriu com transparência e satisfação, parecia à vontade desempenhando o papel de astro das corridas, sentado no cockipit do torpedo vermelho, mais um batalhão de fotógrafos disputavam palmo a palmo a melhor foto. Denver acelerou, saiu dos boxes e ganhou a primeira reta em grande velocidade, reduziu com imperícia a marcha e com dificuldade venceu a primeira curva, pouco usou a potência que o motor oferecia, tímido, nas duas primeiras voltas andou como se estivesse andando normalmente numa auto-estrada, deu um susto quando deixou o carro sair de traseira e balançou sobre as quatro rodas, na quarta volta, porém, descarregou no pedal do acelerador quase tudo o que a máquina podia oferecer; superou os 270 quilômetros por hora, o que causou frissom nos presentes, de volta aos boxes, agradeceu o carinho e disse que esperava toda equipe no Japão, para acompanhar a final do mundial de clubes. Realizou o sonho do amigo que não conheceu. CAPÍTULO LXII A ÚLTIMA CONQUISTA Era novembro. Para os sul-americanos a importância do jogo no Japão é quase uma mini Copa do Mundo, os europeus por outro lado, não dão tanta ênfase ao jogo, eles preferem os títulos europeus que, acreditam, dão maior prestígio e retorno. Mas aquele jogo era especial, contra um time brasileiro a Juventus tinha a chance de conquistar um título que fazia décadas não tinha o prazer de conquistar, a torcida pedia a conquista, a saída da Itália foi acompanhada pelas redes de televisão estatal e privada, numa concorrência louca para ver quem faria a melhor cobertura. Não que os italianos nunca tivessem ido até o Japão para decidir título igual, mas era o valor de Denver, a sua presença no jogo que despertava a atenção de toda imprensa em toda a parte do globo, as cotas de vendas para a televisão foram negociadas a peso de ouro, vinte e cinco mil italianos tinham o ingresso para assistir a partida. O jogo começou eletrizante. O time brasileiro, praticamente a base da Seleção que conquistara a última Copa, vinha para cima da Juventus com toda a autoridade, Denver jogava solto. Inabalado com os últimos reveses jogava como sempre e era marcado como nunca, numa descida rápida, ele se livrou de dois dos seus companheiros de Seleção com dois dribles inventados naquele mesmo instante e lançou o centroavante que fez 1 a 0. Foi este o resultado do primeiro tempo. No segundo tempo o time brasileiro não era nem sombra do que foi no primeiro, apático e sem imaginação, os brasileiros entregaram o jogo ainda antes da metade do fim. Aos vinte minutos Denver recebeu uma bola solta na entrada da área, todos os seus implacáveis marcadores não se adiantaram e, estáticos à sua frente, não esboçaram menção para obstrui-lo, no entanto, Denver deu um leve toque por entre os três marcadores e encobriu o goleiro que ficou olhando a bola passar lentamente, 2 a 0. Este foi o placar que deu o título de campeão mundial Interclubes a Juventus de Turim, para Denver aquele significava, contando com o título da Seleção, o seu quinto mundial de modo que conquistara mais três títulos consecutivos enquanto jogou no seu segundo time no Brasil. CAPÍTULO LXlII SEM RECEITAS A ajuda humanitária que Denver, juntamente com seu batalhão de colaboradores, oferecia ao mundo já era sabida por todos, muito embora ele se negasse a dar maiores declarações sobre os métodos que empregava e como vinha obtendo êxito na sua campanha. As palestras vinham sendo realizadas à razão de duas por mês. Uma nova leitura nas abordagens das matérias foi elaborada por seus colaboradores que o auxiliavam com idéias e pautas. Na plataforma dos seus conceitos Denver preferiu não dirigir apenas atenção a questões ligadas a motivação de pessoal, ele enfatizava também valores pessoais, não queria, e por vezes mencionava, que não existia uma receita de sucesso e sim uma receita de trabalho e dedicação, as conseqüências dessas duas combinações seriam o quase sempre certo sucesso. CAPÍTULO LXIV NOTÍCIAS VINDAS DA SUÉCIA Saber como certas coisas acontecem e são classificadas é algo tão ou mais complicado de entender do que descobrir quem condicionou o ás como a maior carta do baralho. As surpresas positivas da sua campanha contra o analfabetismo pelo mundo mobilizavam manifestações de solidariedade por toda parte, Denver não parava de receber convites para as mais variadas e diversas festas que o show biz produzia. Numa dessas devaneiosas intenções, ele foi contatado para vender os direitos biográficos da sua vida para ser filmada, “Nem pensar, essa gente de cinema é muito pirada”, foi o recado que ele deu para seus assessores. As homenagens não se limitavam apenas aos altos escalões da sociedade. Na pobre escola onde iniciou seus estudos, a diretoria mandou erigir uma estátua em honra do seu mais ilustre aluno. Quando soube da intenção, Denver ficou furioso, entrou em contato com os diretores pedindo a imediata abortagem do projeto. “Imaginem, onde já se viu! Não quero nem saber dessa história de estátua não, não sou faraó!”. O acordo posterior foi mais interessante, Denver se prontificou a arcar com a reforma da escola introduzindo nela equipamentos para a melhoria do ensino, “Essa é minha opinião, penso que isso poderá ser mais útil que uma estátua, o que acham?” Alfim, a inauguração da escola reformada contou com sua presença. A cidade parou para receber o seu filho mais querido. Os primeiros comentários de que a Academia Sueca havia selecionado entre vários nomes de peso na política e religião para agraciar com o seu mais importante prêmio o nome de um esportista, causou efervescência nos meios intelectuais. Mensagens de protestos foram dirigidas à Academia. No outro front, porém, havia manifestações de apoio à sua indicação, como era muito simpático aos de menos possibilidades, Denver se encaixava perfeitamente no perfil de quem normalmente ganha esses prêmios: mantinha uma estreita relação com os miseráveis do mundo, financiava projetos para a impossível erradicação da fome em vários países, montara uma tão eficiente e engenhosa máquina de distribuição e arrecadação de ajuda que os resultados eram impressionantes. Sobre a indicação, ele falou pouco, apenas aos mais íntimos: “Os homens inventam essas coisas para se distraírem, não tô nem aí para esse prêmio que, como todos, são políticos”. Saber se ele estava certo em suas reflexões é um demorado e cansativo exercício, entender o que o motivava a não se envolver com coisas que pareciam até ingênuas causava até irritação aos que não gozavam de sua intimidade, eu mesmo em conversas com ele dizia: “Deixa disso, dá uma entrevista dizendo que gostaria de receber o prêmio e que já é uma honra ser indicado e tal e coisa e coisa e tal...”, ele apenas ouvia, mas não assentia. Numa outra visão, eu pensava comigo mesmo e comentava com os mais próximos: “Na verdade, a honra é do prêmio em tê-lo como candidato”. Certamente Denver não sabia que notórios ex-terroristas já levaram para casa a honra do Prêmio amparado no arrependimento e voltando-se para causas menos explosivas, como ele teoricamente (e ao menos aos olhos do público) não tinha do que se arrepender não fazia questão de ser agraciado. Esse anúncio era tudo que os jornais queriam e nunca imaginaram para exaltar ainda mais as qualidades do maior fenômeno esportivo dos últimos tempos. Por outro lado, Denver não fez campanha nem mobilizou forças para consolidar sua posição de forte candidato ao maior reconhecimento que se podia fazer pelos seus esforços. No Brasil, políticos de várias legendas e do mais alto coturno, como a própria presidente da República, com a chancela do primeiro-cavalheiro, enviaram mensagens a ele para que se mostrasse mais ‘simpático’ em relação à possibilidade de ser indicado para o Nobel, “Seria um marco na nossa História”, dizia a mensagem presidencial, “Eleve ainda mais o nome do Brasil”, mencionavam cartas dirigidas pelas mais diversas frentes. A mobilização era compreensível, o país, sempre à margem nos mais diversos segmentos internacionais, havia conquistado copas do mundo, tinha tido um tenista encabeçando o ranking, colecionava títulos no automobilismo, era destaque em algumas áreas do conhecimento, mas nunca tinha conquistado o mais cobiçado Prêmio que qualquer país gostaria de ter, “Isso confere visibilidade a qualquer país”, falava um renomado cientista político, “Só a indicação já é um prêmio fantástico, inimaginável até pouco tempo”, anunciava outro, apenas Denver não se mostrava sensível com a possibilidade de postergar seu nome para a História, “Isso é vaidade, mas vou pensar com carinho na possibilidade”, confidenciou ele aos íntimos quando esteve no Brasil para um torneio comemorativo ao centenário da Seleção. CAPÍTULO LXV ERA BREVE O ATAQUE Passamos a confiar ainda mais em Jean Glimm, foi ele quem nos contou sobre a traição da sua mulher, esta, por sua vez vivia deprimida e chorando pelos ombros que encontrava, jurando inocência, como é comum aos culpados em geral que em muitas vezes acabam ganhando a carapuça de mártir. A separação talvez tenha feito a ela um mal tão maior quanto à descoberta da sua asquerosa personalidade, ela amava muito o marido, prova de que o amor não está atrelado à maldade e não tem nenhuma relação entre si. O casamento acabou, o que ela conseguiu conservar foi a amizade com Simetra que acreditava em suas lamuriosas palavras e trejeitos. O que mais nos preocupava, no entanto, eram as notícias sobre os resultados do Razax; a guerra de interesses entre laboratórios farmacêuticos e comitês esportivos para decidir a legalidade do produto ganhava novos e inesperados desfechos a cada nova divulgação de resultado de pesquisa, era uma coisa curiosa; havia um estranho paralelo entre a história de se o remédio era ou não dopping e a guerra sem fim da indústria tabagista; nas pesquisas patrocinadas pelo governo, apontam-se os vários males que a nicotina faz à saúde, nas pesquisas bancadas pelos próprios produtores os resultados não são tão nocivos quanto os divulgados pelo governo... Enquanto esteve no Brasil, Denver manteve sua postura. Enfrentava uma maratona de entrevistas em rádios, jornais, televisão, revistas, internet, e ainda outros meios que queriam saber qualquer palavra dele, como era de seu costume ele atendia a todos, com a condição de não falar sobre sua vida privada, mas abriu uma brecha para falar do Projeto Gaivota, e da possível indicação ao Nobel da Paz. O nosso chantagista não se manifestou enquanto estávamos no Brasil, as cotas de transmissão dos jogos do Brasil eram de interesse para várias emissoras do país e foram vendidas para o resto do mundo que pagavam qualquer valor para ver jogar o gênio da bola. Somando isso à ainda polêmica decisão sobre os efeitos estimulantes do remédio do laboratório que eu trabalhava, ele ainda não tinha as ‘armas’ necessárias para nos achincalhar. CAPÍTULO LXVI O FIM QUE CHEGA NO VERÃO No verão italiano, um setembro fervoroso, venceu o curto e frutífero contrato de Denver com a toda poderosa Juventus de Turim. A maioria dos times europeus se mobilizavam para fazer a ele a melhor proposta possível, o seu passe estava estipulado em quase quatrocentos milhões de dólares, o jogador que tinha o passe mais próximo ao seu estava cotado em noventa milhões. Alguns analistas diziam que o preço do seu passe ‘ainda era baixo’ dado as receitas e o marketing que qualquer agremiação atrairia com a presença de Denver em suas equipes. Com os números chegando cada vez mais próximos das nuvens, alguns clubes não tinham como nem sequer montar parcerias para contratá-lo, apenas onze times fizeram-lhe propostas, em muitas ocasiões o patrimônio físico desses clubes não valia essa soma extraordinária. Mas a Juventus não queria de maneira nenhuma deixar ir embora o seu maior motivo de orgulho e títulos: ofereceu a Denver um salário de três milhões de dólares mensais, mais participações nas cotas de amistosos, entre outras regalias. O que ninguém esperava era a entrada forte e decidida do mercado americano em sua contratação. CAPÍTULO LXVII EM SE TRATANDO DELE, É POSSÍVEL A federação de futebol do Estados Unidos da América ofereceu a Denver um salário de cento e vinte milhões de dólares por temporada, o que o tornaria o primeiro jogador de futebol na história a ser o esportista mais bem pago do mundo. A proposta abalou os alicerces do mundo esportivo, os onze times europeus retiraram suas candidaturas, os valores eram maiores que a própria receita de todos os campeonatos que os times iriam participar, “É uma irrealidade, mas vale a pena!”, disse um dirigente de um poderoso time espanhol. O próprio Denver não acreditava que os valores manipulados pelos homens de negócios pudessem alcançar um valor tão espetacular. Os americanos prometiam mais. Prontificavam-se a fazer do seu campeonato nacional tão ou mais disputado que os da Europa, de uma batelada só, contrataram vários dos maiores destaques dos times que mais ganharam campeonatos nacionais na Europa na Ásia na África e na América do Sul. A promessa de um torneio nacional disputado estava garantida, as emissoras que iriam pagar as cotas para transmitir e vender o campeonato para o mundo inteiro (de onde vem a maior receita dos eventos esportivos) deixaram engatilhados dois valores a serem pagos aos times e à federação: um com a presença de Denver e outro sem. Diziam que os valores sem ele participando do campeonato eram 50% menor do que se ele fosse contratado. A proposta abalou os mais sólidos alicerces da tradição italiana. Em Turim, manifestações para que Denver não deixasse o país estavam sendo organizadas apressadamente, até o Primeiro Ministro, se valendo de um pronunciamento oficial à nação, fez um apelo para que ele atendesse à invocação popular num provérbio latino, em rede nacional no horário nobre: “Similes cum similibus coniunguntur”, que quer dizer “os semelhantes se juntam com os semelhantes”, julgando talvez, que o campeonato italiano era o melhor do mundo, logo, Denver deveria nele continuar. Coisa de político. Adesivos foram colocados nos carros, faixas pregadas nas estações rodoviárias e nos aeroportos pediam para que ele ficasse, num claro gesto para tentar sensibilizar o sensível atacante. Faltava ainda um mês para findar o seu contrato e sabíamos que a barra ia pesar caso ele se fosse embora; trocar a Itália pela América não estava nos planos. A visita à sede da federação americana causou furor, com o anúncio da visita que havia sido divulgada em nota para imprensa sob o eufemismo de ‘encontro informal’, Denver desembarcou em Nova York. Embalado por muitas e efusivas manifestações de carinho, trajando um sobretudo cinza, costume de micro fibra azul-petróleo, camisa azul de gola italiana, uma discreta e suave gravata num tom quase próximo ao prateado com minúsculos desenhos geométricos em preto: era a figura de um dândi. Pela primeira vez em sua carreira Denver apareceu em público com um par de óculos escuros (ele os considerava prepotentes) que logo tirou para posar para os seus inseparáveis amigos fotógrafos, dessa vez ele não pediu para sair pelos fundos nem arquitetou um plano para ser ocultado, “Ir de rosto descoberto é melhor, vai ser menos traumatizante” me disse ele dentro do avião. Não foi feito mistério, ele fez questão que tudo fosse divulgado para os órgãos de imprensa. As negociações vararam a tarde. Entre um acerto e outro, Denver pedia para que as condições de seus contratos respeitassem todas as normas dos anteriores, os contratantes não queriam nem saber de como seria o contrato, estavam dispostos a tudo para contar com ele no seu mais importante campeonato. Do outro lado, a maior fabricante de material esportivo do Estados Unidos, aproveitando o veio, fez uma outra proposta para tirá-lo da companhia alemã. Os números do contrato quando revelados causaram grande perturbação na população e mobilizou a poderosa opinião pública americana. Mesmo para os maiores consumidores e gastadores do planeta, oferecer sete milhões de dólares ao mês para uma única pessoa, era um despautério sem medida, se acertasse todos os contratos que lhe apareciam pela frente, sua receita mensal poderia facilmente superar os vinte e cinco de dólares. CAPÍTULO LXVIII ARRANJOS PARA TÊ-LO “Foi um desafio ir para a Itália. Poderá se tornar um desafio ainda maior vir jogar no Estados Unidos”, falou Denver a uma platéia que esperava ansiosa o anúncio do acordo, “Haverá um grande campeonato pan-americano, com os times do México do EUA da América Central e do Sul”, anunciou um representante da comissão que cuidava da contratação de Denver, “A taça Libertadores da América poderá enfim ser realmente uma verdadeira competição que engloba todos os times das Américas”, prosseguiu um representante da Concacaf, entidade que filia os países da América do Norte Central e Caribe. “Devo dizer-lhes que apenas vim conhecer as propostas para a realização do torneio e conhecer a estrutura mais de perto, ainda não existe nenhum acordo. Ainda sou funcionário do Juventus”, falou o craque com transparência. CAPÍTULO LXIX A EXTORSÃO TEM CARA Foi um dia por demais importante para Denver. Viajamos de volta para a Itália e lá chegando, uma temível notícia nos esperava: o laboratório perdera a guerra que vinha travando na Justiça para definitivamente legalizar seu produto, se antes era apenas uma ameaça, àquele tempo as coisas se tornaram tão reais como o ar que respiramos. Todos os recordes estabelecidos pelos atletas que tomavam o Razax Y8 foram sumaria e inapelavelmente cancelados pelos comitês e federações do mundo abalando toda a estrutura esportiva nos quatro cantos da terra. Na tarde daquele mesmo dia, recebemos a temida ligação oriunda do Brasil. “Já devem saber das boas novas, certo?, falou a voz do outro sem tergiversar, como poderemos adiantar as nossas negociações?” “Iremos falar com vocês apenas quando você falar qual é a empresa que tem a denúncia, se aceitar assim, feito, se não, faça o que lhe for conveniente”, adverti-o. “Não creio que vocês estejam em condições de fazerem exigências... Quando poderemos conversar?” “Venha até aqui, poderá ser mais proveitoso...” “Há, há, há, acha mesmo que somos tolos? Estaremos o esperando na quarta-feira às treze horas no Copacabana. Sem falta. Venha munido de bondade, se não o caldo poderá entornar” “O Copacabana é muito perigoso, marque em outro local de menos visibilidade” “Não. Será lá mesmo. Alguns diretores meus estarão lá o aguardando. O sigilo será absoluto, não queremos prejudicar o nosso Prêmio Nobel por nada no mundo, ele é muito importante para nós”. “Marcado”. Sentenciei, desligando o telefone em seguida. Denver me olhava com um perturbador semblante, meteu uma imitação de sorriso na cara e disse que não era para eu me preocupar, que daria tudo certo. Sua debalde tentativa só fez incendiar ainda mais o meu desfalecido espírito, grudei as palmas das mãos no rosto abrindo brechas por entre os dedos e lancei um também preocupado olhar enviesado para o meu sincero e honesto amigo, era noite de uma feia e desbotada segunda-feira, nós tínhamos menos de quarenta e oito horas para resolver o maior problema das nossas vidas, comentei com Denver, voz embargada: “Se eu pudesse voltar no tempo, jamais teria aceitado ir trabalhar naquele maldito laboratório. Te ajudei. Te prejudiquei.”, “Não fale bobagem. Maldito agora. Quando você precisou dele, era bendito. O tempo pararia se todos tivessem o poder de voltar nele para consertar as coisas erradas, o mundo não teria a menor graça”, falou ele com sua peculiar presença de espírito. Percebi tardiamente que ele tinha razão: o tempo é o melhor instrumento regulador da vida. Desembarquei no Brasil. No hall do hotel fui recepcionado por um senhor alto, cabelo excessivamente untado com gel, andar ereto rosto estreito e nariz adunco, apertou minha mão e por algum receio desconhecido desobedeci meu hábito e não olhei dentro dos seus olhos. Não confiava nele. No bar, outros homens impecavelmente vestidos aguardavam-nos bebendo um grande e imponente whisky de rótulo azul, apertaram minha mão e eu dispensei o mesmo frio tratamento do primeiro e recusei a proposta para compartilhar com eles o whisky, muito embora a eloqüência do seu rótulo despertasse em mim o desejo de prová-lo. Sentamos à mesa e o primeiro que me atendeu foi o que também começou a falar comigo, tive curiosidade para saber quem era que nos falava ao telefone, não foi o que foi me receber no hall. Muito embora seja difícil identificar a voz de alguém quando se fala apenas ao telefone, seria fácil identificar quem fazia os contatos pelos vícios de linguagem que ele conservava, o seu terrível “certo” e a muleta “né”, seriam rapidamente reconhecidos, bastava para isso ele se pronunciar. “Temos um probleminha que queríamos muito resolver com você e seu pupilo, é pena ele não ter comparecido, queria muito vê-lo”, falou o que me recepcionou, os outros permaneciam quietos, como que observando e estudando a minha postura. “O que vocês querem?” “Pouco. Apenas que seu amiguinho tenha um pouco mais de consideração pelo seu país, pelos seus políticos... Que coisa feia, não? Negar entrevistas e reuniões com o presidente, acha você que essa é uma boa atitude diante das autoridades?” “O Denver é assim mesmo, não irá mudar. Ele não gosta de promoção, vocês sabem disso. Mas vamos direto ao assunto, o que vocês querem?” “Como você já sabe, temos a informação preciosa de que trabalhou no Rachié Associados, logo... Bem, bem, nem precisa falar que isso não tem nenhuma relação... Mesmo que não tenha, não nos interessa saber se o Denver se beneficiou ou não do “medicamento milagroso”, isso não nos importa, vocês estariam dispostos a no mínimo ver o nome do fenômeno, o mais genial de todos os craques associado ao escândalo do provável dopping? Não, vocês são suficientemente inteligentes, não vão querer correr o risco de um escândalo dessas proporções, não estou certo? O acordo será o seguinte: o Denver passa a aparecer mais no nosso canal, a conceder entrevistas exclusivas e ser mais flexível quando solicitarmos dele uma participação em nossos programas, entende? Não vejo isso como algo, impossível, complicado de ser feito. É só colaborar, que tudo dará certo, e todos sairão ganhando. Não queremos que o senhor compreenda isso como uma chantagem de nossa parte, não é isso. Considero isso como um acordo entre cavalheiros que trará benefícios recíprocos e satisfação, ele não gosta de ajudar os pobrezinhos do mundo? Eis agora uma chance de ajudar ainda mais!” O desgraçado falava de maneira sarcástica comigo, os outros assentiam com a cabeça cada opinião que seus lábios de serpente proferiam. “Denver não fez uso do Razax. Vocês devem saber, afinal são muito bem informados, de que ele entrega a cada partida amostras de urina para serem analisadas por um laboratório independente. Mas vejo que não vai adiantar gastar saliva com vocês, afinal vieram com os objetivos traçados. Vou conversar com Denver para ver o que ele pensa, mas adianto-lhes que preferimos correr o risco a ter de nos transformar em reféns das suas absurdas decisões, por fim, dêem-me licença” “Não sem antes ouvir isso:” Uma voz camuflada começou a falar de dentro de um gravador portátil. “Ele (Denver) usa o Razax Y8 todos os dias. Toma-o de manhã e à noite, sei que ele não divulgou que se beneficiava do remédio para não comprometer a sua reputação. O gordinho (eu) é quem entrega para ele as doses diárias. Tentei pegar alguns documentos que comprovam uma milionária oferta feita pelo tal do Rachié Associados para fazer dele o seu maior garoto propaganda, mas acontece que existe alguma coisa, algo de muito estranho que o gordinho sabe, me parece que é uma referência, um acordo entre o laboratório e os comitês e as federações, eles sabiam desde o início que a droga não tinha nada que não fosse realmente dopping, as substâncias químicas, que eu não sei o nome, estavam todas camufladas e que ninguém poderia descobrir, não sei direito... E que...”. Eles desligaram a gravação. Não me mostrei perturbado, nem tampouco inseguro, “Isso pode ter sido forjado, não quer dizer nada. Não vale como prova.” “Bom, então quer ver o bom nome do seu pupilo na lama, certo?”, falou o que estava sentado à minha direita, identifiquei enfim o malandro. “Não, não é isso. Falarei com Denver. Como poderei entrar em contato com vocês?”. “De preferência, nós queríamos que você nem deixasse o país sem antes nos assegurar que ele reservará um pouco do seu valioso tempo para nós, certo?”. “Falarei com ele ao telefone, me dêem um minuto”. “Ah! Lembre-se!, replicou um deles, somos bons como amigos e melhores ainda como inimigos!”. Saí da companhia deles me equilibrando com dificuldade sobre as pernas, as ameaças eram vultosas. Na melhor das hipóteses causariam um arranhão na imagem de Denver que estava prestes a receber um prêmio de grande importância para o país e acertar um contrato milionário com os americanos. Andei um pouco pelo calçadão da Avenida Atlântica e vislumbrei o mar como nunca tinha feito antes, refleti que lidar com gente é uma das coisas mais ingratas que outro ser humano tem necessariamente que fazer. Tentei por várias vezes ligar para Denver na Itália, mas ele não atendia, decidi por eu mesmo dar cabo daquela lamacenta situação, voltei a ter com os porcos na luxuosa pocilga. Com extrema brevidade, acertei com eles alguns detalhes, falei-lhes que Denver estava com a agenda cheia em função da possibilidade de mudar de time e ainda outras atribuições, eles não ofereceram resistência e falou que ligava para mim assim que eu chegasse na Itália. Talvez o leitor estranhe o fato de eu ter revelado a conversa no gravador e minha estabilidade dissimulada quando ouvi a voz camuflada, podes me perguntar: “Por que não ocultas-te este fato de modo que acreditas e sabes que Denver é inocente?”. Sossega leitor detetive, sossega. Já omiti fatos muitos relevantes nessa historia: muitos. Ademais, este livro tem a inclinação e o costume dos Evangelhos e dos Evangelistas, que realçavam com vigor suas próprias incoerências e seus erros graves, como o Apóstolo Paulo que, não obstante sendo ele o maior expoente do Cristianismo depois de Cristo, não se furtou a se maldizer, como nesta ocasião: “O bem que quero não pratico, mas o mal que não quero, este é o que faço”. Em vista disso, me convenço a dizer que sou até econômico comigo. CAPÍTULO LXX A COISAS DE VIDA, IMPORTÂNCIA DEVIDA O evento que marcou a entrega do Prêmio Nobel da Paz foi aguardado com muita ansiedade. Denver não faturou mais esse adorno à sua brilhante carreira, muito se deveu, acredito, ao fato de ele ter feito pouco caso e mesmo desdenhado da importância do Prêmio. Outros diziam que seria “um arranhão na imagem da Academia” agraciar um jogador de futebol com o mais importante, distinto e cobiçado de todos os prêmios. Como era natural da sua pessoa, ele não se abalou, fez limitadíssimas declarações sobre o assunto, ele estava, isso sim, muito mais preocupado com a possibilidade de ver pela primeira vez na vida seu nome envolvido com um escândalo. A Itália sofreu com o anúncio oficial do desligamento de Denver da Juventus que mesmo reunindo todos os esforços, não conseguiu solapar a proposta feita pelos americanos para levar o maior expoente do esporte mundial, sob protestos e lamentos, Denver se despediu em rede nacional dos tifosis que tanto lhe deram carinho e o amaram. A imagem dele chorando e dizendo que iria sentir muita falta dos amigos que lá conquistou deixou ainda mais sensibilizados os fanáticos torcedores italianos, “Jogar e viver aqui foi um presente muito especial e eu agradeço de coração todos os gestos de carinho”, falou ele num impecável italiano, “A força que me leva daqui, foi a mesma que me trouxe também... Acontece que no meio do caminho me apaixonei pela cidade pelo país e pelo povo, amo a todos vocês”. No aeroporto a comoção pela sua ida definitiva era demonstrada com cartazes “Felicidades para você, o amamos”, dizia esta triste e solitária placa erguida por um garoto que mereceu atenção especial do craque. CAPÍTULO LXXI A CONQUISTA DA AMÉRICA A chegada triunfal ao Estados Unidos da América foi marcada por uma incontrolável multidão que queria vê-lo a qualquer custo, mais de cem homens da polícia foram destacados para garantir a segurança dos milhares de torcedores que foram ao aeroporto recepcionar a maior estrela do mundo. Desconfortável com o assédio, Denver pediu para atender a maioria dos pedidos de autógrafos, mas não obteve êxito no propósito. Impossível controlar a multidão. O que para muitos seria a glória plena, para ele era uma experiência angustiante que o sufocava. Escoltado, desapareceu no meio de jornalistas e o exército dos seus congêneres que queriam ouvir uma palavra sua. “Queremos falar com o Denver ainda hoje, será possível, certo?”, me falou aquela voz que já me era familiar ao telefone. “Há alguma possibilidade de você vir nos encontrar aqui na América, hum... No sábado?”. “Sem problemas. Onde nos encontraremos? Em que hotel?” Falei-lhe o endereço do nosso encontro, enquanto não chegava o dia, procurávamos nos adaptar ao novo lugar. CAPÍTULO LXXII NOSTALGIA RIMA COM... Denver me falou das saudades que sentia da Itália, da música e do clima; do ar carregado de nostalgia: “Este país respira História! Para onde quer que olhemos, encontramos História”, me falava ele, como é natural das pessoas de sentimento. Denver se apegava facilmente às pessoas e às coisas rapidamente, até do musgo e da turfa que forrava o chão do parque em que sempre fazia suas caminhadas e praticava alguns exercícios ele se lembrava com velado apego, “Quero comer risotto con tartufi bianchi, acompanhado de um bom tinto” dizia em plena Times Square, “Passarei minhas próximas férias lá, você virá comigo?”, perguntava-me ele com uma ponta de tristeza no olhar. No fundo, a saudade dele estava diretamente ligada à sua paixão não correspondida. Simetra tinha agora a responsabilidade de levar à frente o Projeto Gaivota, Denver se ocupava demais com muitos e cansativos compromissos de promoção de seu contrato, e fazer as viagens que ele tanto apreciava fazer ficou quase impossível, “Cuide de tudo e quando as coisas se acalmarem estarei lá com vocês, a poeira precisa baixar, os caras estão alucinados comigo aqui! Se eu pensava que os italianos eram calorosos nem imagina como é que está sendo a onda aqui”, falou Denver ao telefone para sua coordenadora geral no projeto dos seus sonhos. As relações que todos da comissão do Gaivota poderiam manter com ele eram apenas por teleconferência e, no máximo, por telefone, mas ele fazia questão para que os contatos fossem diários. Sua adaptação à terra do Tio Sam estava correndo normal, Denver, por ser uma pessoa extremamente ligada às suas obrigações profissionais, criou para si métodos de adaptação para evitar que outros fatores como clima, distância da família, alimentação, língua e et cetera não interferissem de nenhuma maneira em seus propósitos, quase sempre ele conseguia. CAPÍTULO LXXIII OS FUNDAMENTOS DA RAZÃO Estávamos eu e Jean Glimm, no aguardo dos nossos amigos vindos do Brasil, os recepcionamos como é de praxe em encontros onde a pauta não prima pela elegância e sim está diretamente ligada a segurar-se nos nervos para não cometer veleidades. Desta vez, porém, as chantagens trouxeram a sua marca, era a empresa que suspeitávamos que fosse desde o início dos telefonemas. A proposta era aparentemente simples: fazer com que Denver aparecesse pelo menos uma vez por mês em programas remunerados para falar banalidades. Antes, porém, eu, Denver e Glimm resolvemos que postura tomar para resolver a questão. “Daremos a eles o que eles querem; guerra. Vamos preparar nossos espíritos beligerantes e atacá- los da mesma forma”. UM CONTO NO LIVRO (VALE UM CONTO?) Se o conto vale ou não, cabe ao leitor julgar e, conforme o resultado, que apague a interrogação substituindo-a por uma exclamação. Como as palavras que se seguirão neste texto são praticamente alienígenas à narrativa, esta parte não ganhará status de capítulo, coisa que também o leitor julgará melhor do que eu. Havia um homem trabalhando num prédio de edifícios ainda em fase de construção. Solstício. Era horário de almoço. O operário almoçava tranqüilamente. Estava no vigésimo quarto andar. De repente, teve a atenção fisgada por assobios seguidos de gestos igualmente sonoros pedindo-o para descer. Olhou para baixo e viu a figura de um homem que, pela distância vertical, julgou ser um policial ou algo semelhante. Desceu apressado. Vencendo as escadarias degraus abaixo, chegou enfim à rua. Era um mendigo quem o chamava: “Me dá uma esmola”. O operário escondeu o rosto nas duas ásperas mãos, causando um estalo seco. Gesto irritado, como as próprias mãos. Estava arfante: “Sobe comigo”. Vencendo os degraus acima, chegou a um andar ainda mais numeroso, fitou o mendigo e tascou: “Não tenho”. ******** ******** ******** ******** Voltemos ao Fundamento da Razão. Reclamações indesejadas costumam apodrecer na postarestante até que alguém apareça para reclamá-las, quando são de desejo e gosto coletivos, expiram no ar com a rapidez inesperada de um arroto. “Queríamos dar uma notícia para os senhores... Que na verdade poderia ser dada via telefone, ou qualquer dessas porcarias de comunicação, mas decidimos pelo prazer de vê-los chegar até aqui para ouvir o que temos a dizer-lhes: danem-se! Façam o que acharem conveniente com a droga da matéria que vocês dizem ter, não daremos a mínima! Ah! E quanto àquela fita que eu tenho certeza que é forjada, caguem sobre ela também, e quando forem divulgar a notícia do suposto envolvimento dele com o Rachié Associados, falem também que... Bem, falem o que quiserem, estamos prontos para a briga”. Os dois sujeitos se entreolharam relativamente aptos a não provocarem nenhum escândalo, como é próprio dos patifes genericamente; analisam suas vítimas e coçam o cérebro no intuito de verem brilhar uma nova idéia para abater a que os contrapôs. “Tudo ótimo!, disse um dos velhacos, precisamos mesmo levar adiante uma acusação que não tem a menor razão de ser, não é assim?” Eu e Glimm silenciamos convenientemente, no que eles perceberam uma eventual hipótese de blefe. “Vamos lá, vamos lá! Existe uma maneira menos áspera de negociarmos!” “Meus senhores, iniciei eu, a carreira de Denver está fundamentada nas mais probas questões éticas, não serão os senhores quem irão maculá-la com leviandades, com injúrias e suposições absurdas, pensamos mesmo em denunciá-los por uma série de crimes previstos em lei; mas a ciência jurídica é cheia de equívocos e não raro condena seus inocentes, assim, achamos melhor uma negociação; uma péssima negociação é melhor que uma boa briga, por outro lado, digo-lhes que estamos dispostos a enfrentá-los, por precaução, adianto-lhes que tomei a liberdade de averiguar se existe a possibilidade de resquícios da droga aparecer nos exames; adianto-lhes que não! Nosso corpo jurídico já está a postos para começar a batalha; de pedidos de indenização a retratação, quem puder mais, chorará menos, até”. Levantei-me sob o fogo cerrado dos semblantes dos homens. Deus é sábio, fez como armas de ataque e de defesa, braços e pernas, da qual podemos nos defender caso um desses membros ameace a nossa integridade; mas, caso as armas fossem os olhos, caso eles tivessem um poder letal de lançar raios, não haveria como se defender. “Aguardem notícias nossas, cavalheiros”. “Será um prazer, passem bem!”, falei eu como um caipira, apontando-lhes a saída com o queixo. CAPÍTULO LXXIV A MUDANÇA Um tempo para abraçar e um tempo para afastar! Quão sábias são as inspiradas palavras do filho de Davi, o rei Salomão. Eu e Simetra vivíamos sob essa máxima bíblica, muito embora houvesse entre nós dois muito mais tempo para afastar do que para abraçar: a verdade é que convivíamos numa espécie de lua que, se não era de tanto mel, era levemente açucarada, levemente, nada que despertasse grandes esperanças. Com o assédio sobre Denver ainda mais voraz do que quando ele e nós morávamos na Europa, eu e seu Andrade tínhamos muito mais tarefas do que as corriqueiras; indeferir pedidos para as mais esdrúxulas propostas de comercias entre outras aberrações. A idéia das propagandas institucionais funcionava como um cuco suíço, aprimoramos mais alguns detalhes e estendemos para outras empresas que iam de comércio, indústria e serviços, associamos o nome dele a uma gigante do mundo da informática num vultoso contrato, sua renda anual atingira patamares indizíveis e inimagináveis, por pressão honesta, flexibilizamos o licenciamento de produtos com o seu nome, atrapalhando um pouco a próspera indústria da pirataria. A festa da sua estréia no time americano foi digna dos maiores espetáculos que os americanos sabem fazer como ninguém: cheia de raios laser e pirotecnia futurista, um grande estúdio comprou os direitos de imagem para usar num de seus filmes, o que rendeu outros tantos milhões à federação. Com seu novo contrato, Denver perdeu um pouco de autonomia em decisões importantes, mas que não entendemos serem prejudiciais à sua espetacular carreira. Os jogos na Seleção continuavam para ele sagrados como dantes. CAPÍTULO LXXV O EPICÉDIO Denver viajou disfarçada e secretamente para a Itália. Foi lá para tentar encontrar Nelly, mas voltou desconsolado: a camponesa siciliana de atributos imprescindíveis se havia mudado de endereço tomando, juntamente com sua família, rumo ignorado. Ele ficou parado à porta deserta onde outrora passava ora de carro, ora sobrevoando, para apenas se contentar em ver a doce meninota que lhe fugira das mãos. O seu modo que já era costumeiramente recluso se tornou aquele momento ainda mais concentrado e vazio, mãos enfiadas nos bolsos e pescoço vertical, caminhou anônimo pela beira da estrada pisando folhas mortas e amarguras; a desilusão não lhe fazia bem. O dinheiro e a fama, corpo e alma dos ambiciosos, às vezes não trazem a magnanimidade mínima que pedem os que apenas sonham viver uma coisa aparentemente simples que é um grande amor, Denver, sem querer, espantou com seu poder, seu prestígio e sua fama a mulher que acalentou ser sua, descobriu amargamente que seu dinheiro não tinha apenas faces positivas, afastava as pessoas que ele julgava de boa índole, mas surpresas sempre acontecem e nem sempre é exatamente assim que acontece. De um lado, uma massa de montanhas imponentes, do outro, o universo das nuvens, tão repleto de desconhecido que lhe perecia ser vazio. Era muito espaço para pouco ele. Sozinho e triste, estacionou o carro dentro de um parque público, à sua volta, nenhum pensamento. Os que chegavam a ele eram rapidamente dissolvidos pela confusão de idéias. Andou por bosques onde marmotas e servos pululavam alegremente. Parou num chalé e lhe apeteceu provar lingüiça com cogumelos e polenta, ele, apesar da angústia, sentia o cheiro da fome. Pela primeira vez em todos esses curtos e agitados anos de carreira, ele solicitou aos que dele se aproximavam que mantivessem uma certa distância “Estou triste, quero ficar sozinho” falava ele com a cara metida no prato e a cabeça noutros pensamentos. Como era muito respeitado, alguns dos fãs mesmo que desconcertados respondia com simpatia à solicitação do craque. Denver não gostava de lugares opulentos e cheios de frescuras para se alimentar, tanto menos para se divertir, mas, confessava-me: “Há um lado positivo em ir aos lugares freqüentados pela Casa Grande (como Denver sempre se referia aos ricos) eles são orgulhosos, sinto que têm vontade de virem falar comigo, mas acabam me ignorando soberbamente, como se imaginassem que me afetariam com isso, ora, é tudo que quero! Me divirto com eles!”, mas o nosso consciencioso amigo estava mais do que triste, se encontrava profundamente metido consigo mesmo, como quem reavalia seus merecimentos na vida, esse jogo ele perdeu. Denver prosseguia com afinco nos seus objetivos de conquistar marcas e estabelecer novos recordes, já batera dezenas e dezenas de pênaltis e nunca perdera nenhum. Num jogo na Inglaterra contra o Arsenal, ainda pela Juventus, ele fez uma de suas tradicionais jogadas; uma arrancada fulminante, driblou o goleiro, simulou uma queda. O árbitro marcou a penalidade máxima, Denver levantou e com sua índole impoluta negou que tivesse sido pênalti, argumentou que havia despencado porque pensou que iria ser atingido, mas o árbitro, do alto de sua autoridade não tinha como desmarcar o que tinha marcado. Denver se preparou para a cobrança. O jogo estava 0 a 0 e valia vaga para a próxima fase da Copa da UEFA. Jogo importante. Com a partida equilibrada era a chance para seu time sair na frente e aliviar a pressão, mas ele correu para a bola como se estivesse numa brincadeira de rua e atrasou a bola para o goleiro que, abobado, segurou a bola tentando disfarçar o embaraço da inusitada situação. O jogo acabou 0 a 0. Denver era assim, absolutamente fora dos padrões normais, alguns viam nele um maluco, mas um maluco genial. CAPÍTULO LXXVI O PINÁCULO DA FADIGA Matérias dos principais veículos de comunicação do mundo denunciaram a relação de Denver com o escândalo do Rachié Associados e sua cria, o Razax Y8. Os meios que recheavam as reportagens com a suposta ligação dele com o polêmico Razax foram cautelosos em afirmar a possibilidade dele ter-se valido do medicamento para alcançar sua indiscutível condição de forade-série. Vários artigos foram publicados discutindo a veracidade da denúncia; numa manobra digna de quem quer ocultar um fato, a emissora distribuiu simultaneamente a matéria para os mais variados órgãos de imprensa para que, no caso de fracasso da nota, não ficasse sozinha num possível opróbrio público. Era delicada a situação dos nossos acusadores; a este tempo Denver já era considerado por toda imprensa a maior personalidade viva do planeta! Persisti em fazer isso em memória de mim, como dizia Jesus. O mouro Otelo não tinha outra saída que não a do suicídio ao descobrir a inocência da fiel Desdemôna, nem tu teria, saudoso leitor, nem tu. Não se tropeça numa montanha gigante, mas sim num minúsculo pedregulho e quem me lê até aqui pode farejar um lugar-comum neste dito e tem razão; é um lugar-comum de fato, um medonho lugar-comum, minha imaginação está perdendo a força que nunca teve. Denver decidiu se pronunciar uma semana depois, antes, apenas um dos assessores havia dado uma coletiva para falar de como ele estava encarando o fato novo em sua carreira. Os pronunciamentos das empresas que tinham contratos vigentes com ele foram igualmente cautelosos, em notas divulgadas à imprensa falava-se que qualquer especulação no sentido de incriminá-lo poderia ter efeito contrário. O fato foi que as empresas que o tinham sob contrato amargaram suas ações despencarem nas Bolsas do mundo inteiro. O seu anúncio de viva voz acalmou um pouco os ânimos, a credibilidade da matéria inclusive com a voz misteriosa causou maior frisson do que o fato de eu ter trabalhado no laboratório o que efetivamente não queria dizer absolutamente nada. A opinião pública, como era de se esperar, ficou ao lado dele, criam todos que aquilo não poderia passar de invenção de alguém disposto a prejudicá-lo, mas a imprensa queria a prova definitiva, testes que provassem que ele jamais se utilizou do Razax Y8 para obter superioridade física. Denver cresceu, é verdade, sua massa muscular ganhara proporções impressionantes, mas nada que levantasse suspeitas de uso de estimulantes ilegais, problemas de contusão ele quase não tinha, graças a sua esplendorosa formação ósseo-muscular, no somatório geral o menino era um bem dotado para praticar aquele tipo de jogo. No mais, o seu histórico lhe garantia inocência mesmo se fosse culpado. Amparado pelo seu caráter ou pelas suas bonômicas ações ele ungiu-se, ou ungiram-no, de uma espécie de sebe que lhe outorgava lampejos de um ser inimputável, e razões para isso era o que não faltava; nas conferências mais importantes, nos momentos de maiores tensões e de maiores alegrias, mesmo nos felizes momentos da derrota ou no auge do furor por alcançar mais um objetivo sob os olhares críticos e atentos de milhares quando não de milhões de pessoas, ora importantíssimas, ora tão cheias de humildade, ele simplesmente dizia: “Preciso ir para casa, me deu uma vontade danada de comer cará!”, e isso dito em países em que a sofisticação dos pratos têm status de religião! E lá ia a multidão, com expressões interrogativas na cara procurar saber o que diabo era cará. Ele reunia numa única pessoa elementos ambíguos para que o admirassem e por ele também chorassem com grande sofreguidão; ele era feito da rara matéria que compõe os heróis. Muito porque honrava a humanidade, sendo figura ilustre, poderia ser favorável a quem lhe prestasse atos servis, mas por motivos no mínimo ocultos, dava-se a si o presente de desdenhar essas (para ele) tolices criadas pelos frutos da honra. Nos seus curtos anos de atleta profissional, Denver não havia tido uma única indisposição com os repórteres que o perseguiam aonde quer que ele fosse, por esses e outros motivos ele gozava de excelente relação com o que ele sempre considerou ser o mais importante: o torcedor. Quem tinha a perder com um eventual fracasso de Denver era a própria mídia televisiva que, ao modo de morcegos hematófagos, se alimentava do sangue do craque sem terem para si um ônus direto. A perda do Nobel somada à bombástica notícia do seu provável envolvimento com o laboratório Rachié Associados eram tidas para muitos como sua chegada à linha descendente comum a toda matéria viva, os catastrofistas de plantão apegavam-se nesta metáfora, elevada à condição de regra, para apontar os motivos de seu baixo rendimento, diziam alguns deles que se tivesse o craque nascido inglês (lembrei do nosso maior escritor) ou mesmo em algum recôndito europeu, dificilmente lhe escaparia o milhão do Prêmio. Esses motivos influíram na qualidade do sono de Denver que outrora era sempre tranqüilo e reparador, sua cama e lençóis tornaram-se testemunhas da sua angústia e pesar e, ultimamente, ele encontrava o descanso apenas quando acordava, “Temos todo o tempo do mundo para resolver os nossos problemas, meu amigo” dizia eu para ele, que, se não dava ouvidos às minhas também aflitivas observações, também não ripostava por meios rudes nas suas reflexões. Mesmo com a tempestade e a nuvem negra que pairava sobre sua cabeça, o campeonato americano começou com todo o estardalhaço que é peculiar aos maiores promotores de eventos do mundo. O sucesso das vendas das cotas de tevê para grande parte do mundo, - cento e oitenta e seis países - garantiram de imediato o retorno pelo ultramilionário investimento que eles fizeram para realizar o torneio. Denver jogava com a mesma alegria de sempre, na abertura do campeonato ele apareceu antes numa apresentação especial e falou com o estádio que estava lotado. Depois, veio seu próprio show, de arrepiar; fez embaixadas, dominou a bola sobre os ombros jogando-a de um para o outro depois a equilibrando na testa e atrás do pescoço, como uma foca adestrada. Fez tantos e complicados malabarismos com a bola que parecia que acabara de corroborar o que havia dito em outra ocasião, de que a bola e ele eram um ente único. Parecia apresentação dos Globetrotters. Denver mantinha nos mesmos níveis brasileiro e italiano suas incríveis apresentações com exibições de encher os olhos, a cada momento que se passava ele criava mais e mais possibilidades de jogadas cada uma mais sensacional que a outra. Em certos lances, o poder hipnótico de sua lenda se tornara tão grande que ele simplesmente nem precisava tocar na bola para executar uma jogada simples, neste ritmo de apresentações pelo mundo afora, com o time americano forrando seus cofres com ofertas irrecusáveis para amistosos até mesmo com seleções, o que se mais esperava era o torneio envolvendo os quatro melhores times americanos para a disputa da Taça Libertadores da América. Ocorreu que a proximidade da próxima Copa do Mundo se avizinhava, como a Seleção brasileira encontrava-se desobrigada de participar da Eliminatória, a presença de Denver no Mundial era coisa certa, certíssima, - como diria um famoso personagem apaixonado por superlativos -. As melhores seleções de cada continente iam se classificando, as expectativas de receita para esta competição superariam largamente a da última, a euforia das entidades que estavam envolvidas com os preparativos do mundial eram maiores que os próprios números, Denver era o nome da Copa, e para isso, se fazia necessário que as denúncias de seu envolvimento com o Rachié Associados não passasse de mera e inócua especulação, mas os desdobramentos não contentaram a sempre ávida imprensa, Denver, se valendo de uma prerrogativa legal a ele assistida, recusou-se a se submeter a qualquer contraprova que negasse sua possível relação com o Rachié e seu Razax Y8, o que de certa forma causou desconfiança em quem queria vê-lo macular-se de vez das acusações. Os contratos minguaram. Os que estavam firmados, firmados prosseguiram. Por outro lado, o próprio jogador sentia-se como que oprimido e cansado da dura rotina de ser o número um, número um todo o tempo, o que ninguém consegue ser. Não era dele próprio apreciar sua condição de astro internacional, o que ele queria mesmo era ser livre, como o vento o é. Suas campanhas benemerentes (que era seu vento) iam dando o fruto que ele esperava, mais a mais, é possível que se tenha plantado em Denver um vento de satisfação e de realização em todos os níveis, mas a pressão que ele tinha de suportar era enorme e o consumia pouco a pouco. Seu comportamento alheio era facilmente explicado pelo técnico da seleção que dizia: “Ele precisa de uma válvula de escape. E eu acho que a válvula é esta: seu comportamento. Ele tem mesmo de ser assim, pois para mim, ele é diferente de todos; os gênios têm de ser diferentes, se não, não são gênios”. CAPÍTULO LXXVII A TEMPESTADE (...A DOR RODA...) O título deste capítulo poderia se chamar Sonhos de Uma Noite de Verão, mas fica A Tempestade mesmo. Com mais alguns campeonatos na bagagem, Denver e o Brasil chegaram àquela Copa do Mundo como francos favoritos para novamente faturá-la mesmo que a custa de muita guerra. Os prognósticos e as apostas no Brasil eram favas contadas, o Brasil estreara na Copa contra a forte Rússia que conseguiu montar um time tão perigoso e eficiente, que fora comparado a um esquadrão que vencera uma Olimpíada em décadas remotas. Todos os olhos do mundo estavam, para variar, voltados para Denver. Dessa vez, porém, não apenas pelas suas peripécias dentro de campo. Todos queriam saber como seria seu desempenho, se tornaria a repetir as façanhas que vinha fazendo na Itália e mesmo no Estados Unidos que se renderam pelo talento dele, logo eles, tão particulares quando o assunto é esporte, caíram de quatro pela fera brasileira que conhecia todos os atalhos para agradar a gregos e a americanos. O jogo do alívio começou com festa. Os russos não tomaram conhecimento do então atual campeão do mundo e abriram o placar, só no segundo tempo é que o Brasil iria mostrar alguma reação. Eram jogados vinte e dois minutos do segundo tempo, Denver com a sua sanha de querer resolver a parada de qualquer jeito vendo que o time se mantinha apático em campo, tratou de desequilibrar o jogo avançando para cima dos russos. O lance foi rápido. Quando corria pela linha lateral, Denver foi surpreendido por um jogador russo que, precipitando o corpo no ar como num voou rasante duma águia, acertou o meio da perna esquerda de Denver que, tendo ela apoiando o corpo e vendo a grama deslizar sobre seus ombros, gemeu de dor. Quando estancou, quis equilibrar-se nas pernas, mas a cena bizarra que as lentes do mundo focalizaram não deixou dúvidas: o joelho dele simplesmente se desligou da tíbia numa violenta ruptura, todos os músculos que ligam o fêmur à tíbia romperam-se violentamente, ainda lúcido, ele tentou olhar o estrago segurando com as duas mãos a panturrilha e em seguida desmaiou caindo inconsciente no gramado. Naquele exato momento todos os músculos da sua face estavam a serviço da dor. O sangue escoava tímido pelos vasos, mas os jatos eram doridos. O seu corpo vergado foi filmado de forma melancólica e fria e a entrada dos médicos só fez aumentar a dor de quem estava assistindo àquela barbárie. Acerbo e triste espetáculo. Para os pessimistas seria o fim, para os otimistas, o começo. Ou vice-versa? Nunca em toda a história moderna do futebol se viu algo tão tenebroso, a perna dilacerada de um jogador seguido de um delíquio foi o mais terrível espetáculo que ninguém poderia jamais imaginar, ainda mais se a imaginação nos levasse ao Denver, o Grande Denver, a figura de proa de movimentos antimiséria no meio em que vivia, garoto humilde que alcançara um tão estrondoso sucesso na vida profissional que causava as mais diversas manifestações de amor e ódio, como é típico das grandes personalidades. Onde o leitor estava quando desta cena bizarra, eu não sei, no futuro isso será perguntado nas rodas de bar, eu, me valendo do fuso horário, estava entre cobertas e debaixo delas permaneci imóvel, com os olhos tétricos na tela gelada da tevê, com uma tão confusa mescla de sentimentos e emoções que tive que acudir a própria consciência; o impacto foi tão avassalador que ouvi o eriçar dos meus poros ao se chocarem nas cobertas um a um e entre cada deles senti uma dor diferente. Suas pernas marcadas, os pés cansados de apanhar, isso era comum, mas vê-lo ser arrancado às pressas por médicos com o corpo mutilado, era um horrendo fato novo. O mais triste talvez era saber que existiam pessoas felizes com vê-lo assim. Talvez o leitor imagine que tal fato seja inverossímil, que seja tragédia demais para quem teve tanto sucesso e isso na verdade tenha fumaças de lances romanescos: leitor, ninguém, nem ficcionista, contador de história, repentista, jornalista, mentiroso profissional, pescador fantasioso, político, ninguém pode criar algo mais terrível do que a realidade. Um dos principais fatores que levaram Denver ao panteão sagrado dos homens que fazem coisas sobrenaturais mesmo sendo eles normais, era certamente sua incrível velocidade; ele era muito rápido, extremamente veloz. Quando os zagueiros ainda pensavam em atacá-lo, ele já se encontrava pelo menos um segundo a frente, essa estupenda qualidade evitou que sua fulgente carreira não fosse abreviada ainda mais precocemente. Naquele dia fatídico, no entanto, ele não conseguiu ser mais ágil que a maldade; ela o espreitou, como fizera tantas vezes antes sem sucesso, mas daquela vez, por fim, conseguiu o êxito; o êxito, esse substantivo masculino que teria que ser e estar tão distante do substantivo feminino da maldade, podemos até crer que são substantivos de relação quase perene, uma junta da outra, como é comum nos casais que por serem tão opostos entre si acabam se amalgamando e legando à posteridade seus frutos. A rejeição causa atração. Os dias que se passaram após a gravíssima contusão de Denver foram os da mais intensa e concreta aflição. As manchetes dos principais jornais do mundo traziam-no adornando suas legendas, a comoção não encontrava precedentes no mundo do esporte, mais uma vez o poder do impacto televisivo elevou o que poderia se classificar como uma simples contusão de um atleta numa coisa grandiosa que mexia com os meios mais distintos de toda a sociedade ocidental, oriental e outras que se formaram na junção dessas. Ao fim dele, a Copa foi chocha, sua agonia aplacou toda a festa do mundial, mensagens de desagravo foram enviadas a praticamente todos os consulados russos ao redor do globo, como se fossem os diplomatas os responsáveis pela penúria do nosso maior jogador, as cenas dele contraindo a face em esgares absolutamente inexprimíveis, eram passadas e repassadas até o mais entediante limite. Dez dias após a inclemente tentativa de findar a carreira de Denver, o jogador russo se pronunciou, disse que tinha interesse em encontrar o jogador na clínica onde ele ainda se encontrava internado, qualquer especulação sobre possíveis efeitos e previsões foi de imediato suplantada. O caso era indelével. Em nota oficial, Denver mais uma vez surpreendeu o mundo ao afirmar que absolvia o seu mais implacável verdugo, aquela minuta, disputada a tapa pela imprensa internacional, trouxera em meio à agonia e às avessas do tempo, um Denver sereno, calmo, fincado seu equilibrado temperamento no mais perfeito dos silogismos; argumentava as razões que o levava a ungir com o perdão o maldoso jogador; dizia que ele próprio poderia cometer o insidioso ato, quanto à conclusão, foi como sempre foi, breve e contundente: “Tudo passa, tudo passará”. O pavor do mundo diante da praticamente inexorável saída de Denver do futebol fez ferver cotações e desabar mundos onde o tinham como baluarte. Pouco se falava naquela triste possibilidade. O receio de ouvir a sentença capital apavorava quem investira nele uma montoeira de milhões e milhões de dólares. Seu seguro era milionário. Especulava-se tanto sobre os valores que envolviam uma possível precoce aposentadoria dele dos campos que causava calafrios nas maiores seguradoras do mundo, que repartiriam o risco. Algumas dezenas de milhares de dólares garantiam apenas algumas de suas apólices pessoais. Ao acalmar-se a tempestade, Denver tomou um avião com destino a uma ilhota naufragada no Pacífico, dizia que precisava descansar para reavaliar sua situação, na verdade ele queria mesmo era descansar da vida. Entendemos sua postura e, em respeito a ela, o deixamos ir em paz e só, o acompanhei até o avião e perguntei-lhe: “É preciso?”, “É Preciso”, “Então vá”, ele baixou a cabeça como que procurando um pensamento perdido nela, após um silêncio frio: “Aproveitarei o tempo ocioso e escreverei minhas memórias”, “Não escreva, desaconselhei, não escreva, você não conseguirá reproduzir no papel o que fez na vida”, Denver abriu um sorriso opaco, cheio de um ímpeto misterioso e austero; creio que austero. Me abraçou um abraço pálido e forte os olhos se encheram de lágrimas, como eu também fiquei com os meus rasos d’água ele se adiantou e disse: “Vamos deixar disso!”, entrou no avião que baixou a porta e decolou na direção das nuvens e foi-se embora para sempre. Um sentimento novato se aproximava de mim enquanto o jato se distanciava, levando consigo o meu amigo, num ponto vago do céu: uns temores sutis; tristes temores. Vão temores! Afastem-se de mim! Ainda hei de sobreviver a tua extinção; espero viver o dia em que serás obsoleto como a palmatória; arcaico como as fichas de telefonar. CAPÍTULO LXXVIII OUTROS FEITOS E O MAIOR DE TODOS Uma dúzia de gols em um único jogo. Esse foi possivelmente o maior feito de Denver enquanto jogou pelos campos do mundo encantando a todos, jogando ora com o solitário auxílio da pata esquerda, ora com a direita, ele fez o que quis com a bola e o mesmo com o mundo que a circunda, sobre qual seu gol mais bonito ele dizia: “Ainda está para ser feito”, ele não pôde fazêlo, o perseguiu como um louco, mais não conseguiu realizá-lo como queria. Nos quatro cantos da terra ele apresentou sua arte com estranha técnica e solidária convergência. Ele participou em curtos oito anos de carreira de 484 jogos marcando inacreditáveis 392 gols numa média espetacular de 0,80 gols por jogo, foram quase 90 tentos por ano, dentre esses gols aconteceram muitos que ainda hoje andam na dúvida dos torcedores (alguns que até acompanharam in loco) e no imaginário de toda uma geração que, se não fora privilegiada por ser testemunha ocular do avanço do crime da fome das doenças e das guerras, pelo menos pôde ter o prazer ímpar de acompanhar a trajetória meteórica de um simples ser humano, dotado de tantas imprecisões e vaidades de tanto orgulho e muitas coisas impróprias a um candidato a herói – ele era composto da rara matéria que compõe os heróis -, mas que, apesar das falhas, conseguiu estabelecer um novo mapa na geografia da humanidade, criando regras, derrubando outras, ignorando meios que justificassem a necessidade de alcançar os objetivos que ele tanto acariciou com o coração. Hoje, sua impecável obra filantrópica ao redor dos mais miseráveis recônditos do planeta dá os seus benignos e cultivados frutos, como a corda de um violino que retesa entre as cravelhas ao limite máximo e produz uma eufonia. Da mesma forma como o Natal e as festividades para o incerto encontro do próximo ano mobiliza as pessoas numa hipnótica corrente de confraternização, Denver conseguiu mobilizar classes, das mais diversas, sem o auxílio de frentes com bandeiras governamentais, multiplicando recursos, ampliando idéias, esticando esforços no mais impensável limite de elasticidade. Quebrando protocolos aqui e acolá, ele sinalizou com esses gestos que se era necessário não apenas retóricas insípidas, mas sim uma organização de idéias e gente. Ele produziu muito. Seu legado ficará marcado para a curta eternidade em museus e escolas; em placas com a inscrição do seu nome em todas as empresas que ele palestrou enviando ajuda aos mais necessitados. Os lugares que ele andou nunca mais serão os mesmos, os hotéis que ele se hospedou nunca mais terão a mesma alegria de o ver chegar, por fim. Este capítulo começou mal. Mas vou terminá-lo bem. Porque a maior proeza de Denver verdadeiramente foi esta: mesmo vivendo cercado de muito dinheiro, muita badalação, muita ovação, muitas dessas coisas ao que o homem é naturalmente suscetível, ele conseguiu, até o fim, ser um homem de valor. CAPÍTULO LXXIX DO BRILHO, NADA FICA QUEM DIRIA? Simetra, a minha tão íntima, anelosa amiga e sincera paixão, foi encontrar abrigo nos braços do bojudo Diogo Andrade com quem enfim casou-se e teve filho e filha, como era sua pretensão natural. Soube também, por bocas confiáveis, que ela enfrentou eclampsias no seu primeiro parto não obstante prosseguindo no próximo sem abandoná-lo demonstrando neste seu derradeiro ato a coragem que carregou no peito durante toda a vida. Ela não sabia, mas a mesma Ártemis a quem eu a comparei no capítulo XII é, para a minha surpresa e provavelmente a do leitor, também deusa do parto e aqui fica uma pergunta para a posteridade: potências pagãs e potências reais podem mesmo andar juntas na mesma prumada? Sua amiga Saneta gozou até o quanto pôde da boa vida que o dinheiro manchado com o sangue da traição lhe pôde ofertar, seu marido Jean Glimm também se divertiu à custa da nossa confiança enganando-nos e vendendo informações que eram para nós estritamente sigilosas, como o nosso maior segredo. A família de Denver por sua vez, viu se cumprir a promessa dele próprio que dizia que iria garantir o futuro às suas próximas gerações deixando a todos imensamente confortados. Quanto à docílima Nelly, foi vista pela última vez vestida de branco, adentrando os umbrais duma igreja de estilo barroco contraindo núpcias com um magnata italiano das comunicações que se fascinou com a beleza dopante da nossa camponesa siciliana que ganhou páginas e páginas nos jornais por ter esnobado o longânime amor do nosso amigo que deixou tantas boas lembranças. Opinião minha, mas acredito que apesar de todos os seus mistérios e deslizes, Denver foi ainda maior fora de campo do que dentro dele e a sua incalculável fama foi certamente o mais pesado dos fardos que carregou nas costas sendo ela tão nociva para ele, porém, deixou o ranking menos frio, diminuindo uma posição no abismo entre o primeiro e o vigésimo... CAPÍTULO LXXX O CONTÁGIO (NÃO HÁ REMÉDIO PARA O HOMEM ERRANTE) Foram aproximadamente dois mil e seiscentos sóis com a estrela e o brilhantismo de Denver banhando as nossas almas. Poderia contar esses seis anos em luas em dias em semanas em meses em estações do ano ou em carnavais, mas o sol representa-o da maneira mais fiel do que esses outros métodos de contagem. Apanhei um pouco dos meus fartos recursos e rodei o mundo em busca dos prazeres e, mesmo não sendo russo, das roletas e das cartas de Paris e de Las Vegas... Tornei-me íntimo de crupiês, de toalhas verdes... E ainda mais da atmosfera nebulosa das casas de jogos onde muitos perdem o fio da vida. Antes da derrocada, porém, dei uma boa vida à filha daquele meu sofrido amigo do caminhão que hoje, como eu, não existe mais e, acredite-me, presenteei também a minha locadora gorda que outrora queria rasgar minhas roupas comigo dentro e amiúde vigiava a minha saída matinal de casa, no que me forçava a ter de averiguar o dia... E cuide também em acreditar que nem sequer o taxista sabido escapou da minha súbita propensão à benemerência. Quanto a mim, porém, estou ansioso, com a saúde me faltando o espírito cada vez mais fragilizado e o sentimento de que o aposento eterno aproxima-se velozmente, uma enorme vontade de percorrer novamente as saudosas estradas da velha Itália que agora está tão distante... O tempo tem atravessado depressa por dentro de mim, ele pendula e desliza na minha frente, como um rio de águas turvas, e eu, péssimo marujo que sou deixo com que ele me leve ao seu sabor. Tenho navegado à sua deriva, eu, que fui doutrinado por mim para temer a obscuridade, e daí talvez seja por isso mesmo. Com a ajuda do meu irrefreável e nocivo vício, vacilei. Camuflado pela imperícia, contraí dívidas que se tornaram maiores que o grande montante de recursos que o generoso Denver me deixou a título de recompensa, hoje em dia, me lembro com alegria dos prazerosos momentos que ele me proporcionou passar ao seu lado e agora falo com uma raspa de entusiasmo das nossas aventuras pelo mundo da riqueza. Lembro também dos grandes momentos dele dentro de campo e das suas escapadelas com destino à miséria acompanhada com igual entusiasmo pela feroz imprensa que não nos deixava um minuto em paz; subíamos taludes, descíamos taludes, escondíamos nos taludes, mas não havia neste mundo taludes que nos acaçapasse dos nossos amigos que também contribuíram para fazer crescer o mito do gênio com nome de Denver. Na verdade verdadeira eu acho que estou mesmo é com saudades do meu amigo que, com a idéia fixa na cabeça de querer viver a vida à moda de Gaughin encontrou ou projetou um destino (inesperado para nós) e afligiu a todos quando seu avião nunca mais foi encontrado quando, segundo notícias vagas, tentou aterrizar no meio das águas do Pacífico, que, por um insólito equívoco, tem esse silencioso nome. O leitor agora confeccionou na face uma profunda ruga interrogativa quando escrevi: “segundo notícias vagas tentou aterrizar, etc.” Não tenha pressa em tirar conclusões precipitadas. Se eu dissesse que Denver desapareceu não estaria respeitando a verdade. Não há novidade na morte, nem na vida. Há apenas uma verdade sublime que é esta: nada neste mundo, nem o amor nem o ódio, nada neste mundo resiste ao homem. Nem a vida. Agora, imagine que se realmente Denver tivesse deixado escapar-lhe a vida desse modo o que seria feito e dito dele? Não sei se lês este livro a trinta ou quarenta anos após o que se sucedeu a ele; pode ser que tenha se passado apenas algumas semanas, dias até. Talvez mesmo ecoe em algumas conversas o caso fatídico neste exato instante, enquanto o tempo vai passando e essas palavras também... O homem das veredas, João Guimarães Rosa, dizia que as pessoas não morrem, encantam. Denver encantou será? E, se é que escolheu “encantar” assim, por que num lugar longínquo? Distante do alcance dos olhos ávidos por uma manifestação apoteótica de sua despedida? Imagine o cortejo fúnebre, requisitado para perambular por ruas e cidades, sendo arrastado por entre elas como arrastaram o cadáver de Heitor à volta de Tróia e Príamo em súplicas, implorando a posse do corpo do filho morto... Faltaria decerto um Príamo: quem iria lhe lamentar a ovação na marcha? Ninguém quereria tornar póstuma sua personalidade tímida. Tímida? Não, tímida não é a palavra adequada. ___________ Este espaço em branco fica para o leitor escrever numa palavra qual é afinal a personalidade de Denver, escreva-a e participe do fracasso ou do sucesso dessas memórias e assim pode até se sentir um pouco autor do livro e, dentre os quatro ou cinco leitores que este livro possa alcançar, a definição mais votada será impressa numa edição definitiva, que sairá daqui a uns mil anos em 30.03.3003, talvez. Estou mesmo é insatisfeito com este capítulo, acabemos com ele e com o livro agora! CAPÍTULO LXXXI VÁRIOVERSO (UM PALINDONISTA) Sim dileto leitor, enfim chegamos ao capítulo de número oitenta e um que eu também persegui com a mesma intensidade que você, certifique-se disso. A noite em que eu fui dormir e comecei a dar corpo a essas memórias não será facilmente esquecida do mesmo modo como não deixarei débito resolvendo a questão da palavra adequada para o sorriso da moça do telejornal; desdigo o que disse. Seu sorriso melhor avaliado não vale a manufatura oral ou escrita de um neologismo nem algo equivalente, tanto pior para mim que remôo as minhas aflições e me tranco no meu pequeno mundo de latão. Ao Denver sim, cabe uma palavra nova. Do meu despojado relato sobre a sua trajetória o valor é nenhum e ainda é muito. Não queria abusar do recurso da metalinguagem para não melindrar o leitor tendo em vista que todos viram pela tevê tudo o que ele foi capaz de fazer dentro e fora dos limites do gramado e amplidão afora, aliás, pelas maravilhas que ele realizou e pelas jogadas impossíveis que criou vou transcrever o que disse uma das mais brilhantes cabeças daquela atualidade: “Um Universo para comportar o talento e a bonomia de Denver é pouco, teria de ser Várioverso”. Passadas e repassadas, as derradeiras declarações de Denver criavam novos conceitos sobre sua conduta, como se quisessem fazer viver nas palavras o craque de outrora, quando perguntavamno porque ele era triste ele respondia, voz embargada: “Ser triste para mim é um luxo, um privilégio. Tenho todos os motivos do mundo para ser feliz, mas me dou melhor com a tristeza e não sei o exato motivo disso, talvez por ela ser mais abundante...”. Certo fica é que Denver não conheceu a linha da vida que anda morro abaixo: ele se antecipou a ela. Desse modo, acredito, impôs à decadência uma humilhação que apenas os grandes homens da filosofia diversa tinham o cabedal para infligir, por fim, venceu mais esta batalha. E bem e ao fim, comentou-se e discutiu-se muito mais se Denver era mesmo peixe da pesca feita no Rachié Associados (que da pescaria vieram tantos e graúdos peixes que encheu muitas vezes o grande puceiro do duvidoso e movediço mundo do esporte) do que da digressão do seu próprio fim, provando mais uma vez que existe muito mais importância e valia na obra dos homens em relação à pessoa destes e suas felicidades; apenas o Filho do Homem, que por ser dono de uma obra ímpar neste globo habitado, teve sua pessoa mais discutida que a sua obra, visto ter ela sido tão extraordinária, duvidaram da existência de quem as praticou.