O Congado Mineiro na Música Popular Urbana de Belo Horizonte. Um caminho da música popular mineira. Rubens de Oliveira Aredes 2009. Segunda Apresentação de Resultado Parcial de Pesquisa em Execução, Graduação em Música pela UFMG O Congado Mineiro na Música Popular Urbana de Belo Horizonte. Um caminho da música popular mineira. Rubens de Oliveira Aredes “... Eu acho que tem sim uma coisa afro-mineira muito abrangente que de alguma maneira tá pegando todo mundo que faz música por aqui. Se não pega diretamente... o músico com certeza reverencia... Não sei se eu usaria o termo groove afro-mineiro... não sei que nome dar... mas com certeza tem uma música com forte identidade afro-mineira, e afro-mineira na vertente congadeira.” Titane. 2 Resumo Neste trabalho me debruço sobre o movimento musical mineiro, concentrado especialmente em Belo Horizonte, que se caracteriza pela abordagem do congado mineiro, em diversos graus, nos seus procedimentos composicionais. Para melhor compreender esse fenômeno, descrevo questões históricas e sociais que o cercam, fruto de inúmeras leituras, que abrem espaço para novas pesquisas. As questões são as polêmicas a cerca da regulamentação dos direitos autorais das músicas que compõe os patrimônios culturais imateriais de comunidades negras, os registros e a movimentação que existe no sentido de proteger esse patrimônio. Abordo o processo de ressignificação e reterritorialização que ocorre quando a abordagem artística é realizada e as questões sobre antropofagia que envolvem o fenômeno. Faço um levantamento discográfico do movimento, ressaltando alguns exemplos e defino cinco procedimentos composicionais de abordagem do congado, considerando os materiais musicais sobre os quais esses se debruçam. Por fim, identifico o movimento por “movimento tilelê” como uma versão mineira do que identifico por “revolução dos tambores” que é um fenômeno que também acontece em outras regiões do país onde, em sua maioria, já possuem uma identidade regional consolidada. 1- Apresentação O presente texto é a segunda apresentação parcial dos resultados de uma pesquisa que começou a ser desenvolvida durante o segundo semestre de 2008, a partir de uma proposta feita pela professora Rosangela Tugny à sua turma da disciplina de História e Música do curso de graduação em Música da UFMG. A primeira apresentação ocorreu no final do semestre de 2008 em sala de aula para avaliação final da disciplina. Dando continuidade 3 elaboro essa segunda apresentação parcial para o grupo Urucum na Cara, grupo musical de Belo Horizonte do qual faço parte, pela ocasião da prépesquisa do grupo para as novas atividades musicais que iniciarão em breve devido à aprovação do projeto “Pesquisa Acerca da Sonoridade da Música Erudita e Popular de Belo Horizonte Para Composições – Urucum na Cara, Uma Investigação.” na lei municipal de incentivo à cultura 2008, modalidade fundo municipal de cultura. Num primeiro momento apresentei um projeto de pesquisa que propunha uma investigação acerca da incidência dos elementos musicais, textuais e cenográficos do congado mineiro na produção da música popular urbana de Belo Horizonte e eventos artístico-culturais que a cercam. Propus-me também a estudar o impacto disso nas comunidades congadeiras, a relação dos artistas com os congadeiros e problematizar sobre questões éticas que passassem por direitos autorais, propriedade sobre patrimônio cultural imaterial e a ressignificação de elementos congadeiros em outros contextos artísticos e de entretenimento. Em função da necessidade de estudar a movimentação artística que ocorre neste sentido, como demanda para gerar insumo para os outros aspectos da proposta de pesquisa, acabei por me centrar no movimento musical urbano caracterizado por abordar o congado, nos seus procedimentos de abordagem e os materiais sonoros e musicais sobre quais se debruçam esses procedimentos. 1.1 – Sobre a Metodologia Em função de não existir uma bibliografia tão especifica que discorra sobre a abordagem do congado na música popular, o principal instrumento de realização da pesquisa escolhido não foi a leitura e pesquisa bibliográfica. Esta serviu como suporte teórico para cercar o tema central a partir de temas circulares como o congado em si, a abordagem da cultura popular na arte, a indústria do entretenimento, exemplos de apropriação da cultura popular pela indústria do entretenimento, direitos autorais, domínio público, patrimônio cultural imaterial, etc. assim pude apenas desenhar um 4 cenário geral. O desenvolvimento do trabalho tem acontecido através das seguintes etapas e formas de trabalho: 1- Leitura e compilação de textos que cercam o tema para definição do cenário social em que se encontra o fenômeno musical estudado. 2- capacitação e familiarização com os elementos congadeiros a serem investigados. 3- Levantamento de material de áudio de álbuns lançados por artistas que abordaram o congado nos últimos 30 anos. Audição e análise desta discografia, destacamento de faixas e peças musicais pelo reconhecimento de elementos do congado. 1 4- Fixação dos conceitos de citação, colagem, elaboração, plágio e adaptação para parâmetros e fins de definição de procedimentos de abordagem do congado. 2 5- Entrevistas voltadas para setores diferentes envolvidos na polêmica da apropriação. Perguntas globais e específicas para cada setor. Esses setores são os artistas com obra pesquisada, comunidades congadeiras através de seus membros e público deste tipo de arte.3 6- Compilação dos resultados obtidos nas entrevistas e problematizar sobre as questões etnomusicológicas do desenvolvimento de um movimento musical caracterizado por abordar o congado. 1 Durante a realização desta primeira etapa, foi necessário estender esse período desde a década de 70 e não da década de 80, como proposto inicialmente. Esse levantamento se encontra nesta apresentação parcial, embora possa ser mais bem dimensionado com desenvolvimento do trabalho, 2 Os conceitos só puderam ser mais bem desenvolvidos a partir do levantamento discográfico. A grande questão encontrada era que por mais fixos que eu deixasse esses conceitos, percebi durante as audições, que muitos dos materiais coletados ultrapassavam esses conceitos e assim, percebeu-se a necessidade de uma flexibilização. Assim estão surgindo elaboração de variantes dentro de um mesmo conceito e conjugação dos mesmos para criação de novos. Além disso, no atual momento de desenvolvimento da pesquisa ainda há muita coisa levantada para ser ouvida e analisada. 3 Até o atual momento apenas uma entrevista foi realizada, com a cantora Titane e que muito contribuiu com esse resultado parcial de pesquisa. A transcrição desta se encontra em anexo. 5 7- Propor novas pesquisas que discorram sobre questões de ética que envolvam as polêmicas de direitos autorais e domínio público, resignificação e desenvolvimento da identidade cultural afro-mineira urbana, valorização e expropriação, divulgação e exploração, resgate e uso, e o levantamento de características musicais, sociais e psicológicas que acompanham esse movimento. 4 1.2 - A Motivação As razões para o desenvolvimento dessa pesquisa se encontram basicamente nos anseios de produzir um material onde, uma vez servindo como catálogo procedimentos dos de trabalhos abordagem artísticos, do qualificados congado, possa-se quanto aos compreender historicamente a origem e o desenvolvimento desta prática artística e dimensionar a apropriação. O desenvolvimento desta pesquisa também poderá gerar insumo para o debate sobre os limites éticos do uso de elementos do congado mineiro e da cultura popular em geral nas produções da música popular e até mesmo erudita. Há também da minha parte quanto jovem compositor e cantor de música popular, a necessidade de compreender o atual processo que está em desenvolvimento. Tanto no campo estético, na construção de novas linguagens, como as discussões que cercam essa questão na elaboração de uma conduta ética e respeitosa para com a alteridade sem que se barre uma necessidade artística de um complexo socio-psicológico da atualidade. 4 Até o atual momento, o que foi feito neste sentido é alguma compilação de alguns estudiosos, que se encontra na introdução deste trabalho e é algo que ainda está por ser mais bem desenvolvido. 6 2 – Introdução teórica 2.1 - No espaço Geográfico e no Calendário. É observado que atualmente inúmeros artistas da capital mineira têm produzido shows, teatros musicais, discos e eventos, levando elementos da manifestação congadeira para ambientes como casas de teatros, casas de shows, galpões, salas de centros culturais, cinema e até mesmo ruas. Nesta prática, acaba ocorrendo uma apropriação e ressignificação de elementos culturais em diversos graus de intensidade diferenciados. Existe a apropriação mais explícita e as mais sutis composições inspiradas no material congadeiro. Existem ainda as situações em que os próprios grupos de congado são levados a se apresentarem em festivais de cultura, música e dança, permitindo o contato desta manifestação com o público urbano muitas vezes habituado ao consumo de manifestações musicais de natureza urbana e comercial e que não detém o conhecimento e as vivências previamente necessárias para plena compreensão dos ritos que compõe o congado. Todo esse movimento musical ocupa um espaço físico e temporal na cidade de Belo Horizonte e em sua zona de influência cultural. Vejamos os principais eventos e espaços públicos que normalmente esses eventos ocupam. 7 1- O Festejo do Tambor Mineiro: Criado em 2003, o “Festejo do Tambor Mineiro” se consolidou como um importante evento que dá suporte anualmente a todo esse movimento, reafirmando-o. Criado por Maurício Tizumba e pelo Bloco Tambor Mineiro, o evento possui a característica de reunir vários artistas do movimento, grupos de percussão ligados à concepção de bloco carnavalesco ou fruto de projetos sociais e muitas guardas de congado que passam o dia se apresentando ao público. Vejamos o texto do material de divulgação da quinta edição do evento em site: “Celebrar a cultura afro-brasileira é o objetivo do “Festejo do Tambor Mineiro”, manifestação popular realizada há seis anos no bairro Prado, região Oeste de Belo Horizonte. Idealizado por Mauricio Tizumba, nesta edição, o evento traz novidades, tendo sua programação estendida para uma semana, de 11 a 17 de agosto, com roteiro de shows e oficinas. Cerca de 30 guardas de congado e 15 grupos de percussão vindos de todo Estado se reunirão numa grande celebração, cercada de crenças, usos, costumes e fazeres. “O festejo propicia uma interação da comunidade que, por sua vez, pode mostrar suas raízes a partir da música. O projeto se mostra relevante devido à justa necessidade de ressaltar a presença e a importância dos congadeiros em Minas Gerais, bem como apresentar a história de nosso povo, por meio de sua musicalidade e tambores”, afirma Mauricio Tizumba.” – grifo nosso. 8 9 10 11 2- Mil Tambores ou Tim Tambores: Acontece anualmente desde 2005, geralmente na Serraria Souza Pinto ou no Espaço Cultural FUNARTE Casa do Conde, ambos próximos à Praça da Estação. Elaborado por Santonne Lobato, membro do Grupo Tambolelê e parceiro de Sérgio Pererê, consiste no encontro de grupos de tambores vindos de várias regiões do Estado e da Cidade num grande show, onde público, membros de diversas comunidades congadeiras e artistas se confundem, uma vez que todos se encontram misturados em frente a um palco executando suas performances juntamente com os artistas de palco. Começou com o nome “Mil Tambores” e depois foi rebatizado com o nome da empresa patrocinadora “Tim Tambores”. Reune inúmeros artistas, blocos e guardas de congado e geralmente homenageia um músico de renome. Em 2005 o homenageado foi Milton Nascimento e em 2008 Naná Vasconcelos. Segundo o site do Maurício Tizumba em 28/02/09, o mesmo evento tem acontecido, em menor escala, para fora de Belo Horizonte, em cidades como Juiz de Fora, Divinópolis, entre outras do interior de Minas. 3- Bloco 100 Tambores... A Gente Não Sobe: Bloco carnavalesco criado para o carnaval de Ouro Preto em 2008. Uma iniciativa de uma agência de turismo de Ouro Preto que consiste na soma dos blocos Tambolelê, Tambor Mineiro e mais simpatizantes que fizeram oficinas de toques de caixa de congado, e turistas que compram abadas para participar do bloco. Duas edições foram realizadas até hoje, e há a perspectiva de continuidade. Para o carnaval de 2009, encontramos o site www.bloco100tambores dizendo na página inicial: “Em 2009, a marcha forte e alegre do Bloco 100 Tambores... a Gente Não Sobe! vai continuar e promete esquentar o carnaval em Ouro Preto. Compre já seu abadá para a concentração do Bloco, que será realizado no Centro de Convenções de Ouro Preto (Salão Diamantina). Tudo para proporcionar a você, folião, muita segurança, conforto e diversão. Disponível pelo telefone 31-8641-2989 ou 3551-0372 e em nossa loja online.” 12 13 2.2 - Breve Apresentação do Congado Mineiro Para melhor compreender a discussão da ressignificação e da reterritorialização do congado e de seus elementos através da música popular urbana, como nas suas implicações, é imprescindível que entendamos minimamente a tradição. Para isso é necessário abrir alguns parágrafos que, longe da intenção de explicar o que é o congado, pois isso é impossível sem a vivência etnomusicológica participante, nos darão o subsídio mínimo necessário. O congado é uma manifestação da cultura popular de origem afrobrasileira, que carrega inúmeros elementos da identidade étnica dos povos denominados banto. De caráter religioso, o congado representa uma releitura do cristianismo católico pelos povos africanos. “A especificidade deste catolicismo, O Reinado de Nossa Senhora do Rosário, deriva de um longo processo de contatos, defrontos, trocas e recriações transculturais... entre portugueses e africanos do antigo Reino do Congo, através dos quais o Cristianismo foi sendo assimilado pelos negros à luz de sua visão de mundo” (Lucas, 2005). 5 O Culto aos antepassados, muito praticado pelos antigos bantos através do fetiche, foi transferido para o congado mantendo os mesmos fetiches, transformando-os, recriando e assimilando outros6. No congado a ingoma7 aparece sendo um importante fetiche, um intercessor entre os 5 Em Minas Gerais, a reconstrução da identidade africana e valores sociais africanos se deram por intermédio das irmandades de negros voltadas ao culto de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia e as celebrações em torno de reis negros. Nas festas de Nossa Senhora do Rosário, os negros podiam inserir práticas rituais próprias, é daí que se desenvolve o ritual das guardas de congado com a eleição e coroação de reis reconstituindo assim sua hierarquia, organização social e identidade étnica africana. 6 “Um fetiche (do francês fétiche, que por sua vez vem do português feitiço e, este, do latin facticius "artificial, fictício") é um objeto material ao qual se atribuem poderes mágicos ou sobrenaturais, positivos ou negativos. Inicialmente este conceito foi usado pelos portugueses para referir-se aos objetos empregados nos cultos religiosos dos negros da África ocidental” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Fetiche em 17/10/08). 7 Ingoma, ’Ngoma. Nome de um antigo instrumento de uso ritual dos bantos aparece nos ritos afrobrasileiros tanto no Candomblé Angola (Modalidade de Candomblé que se desenvolveu junto às 14 vivos e os seus ancestrais, capaz de estabelecer contato efetivo entre os mundos dos vivos e dos ancestrais e os santos. “A música é uma presença constante nos rituais religiosos do reinado de Nossa Senhora do Rosário, ou Congado, de função orgânica, apresentando uma forte dimensão significativa e expressiva. Os rituais se cumprem em meio à música, cuja força emana dos sons dos instrumentos dinamizando a palavra cantada e os gestos do corpo, sendo o cantar, o tocar e o dançar um ato único de oração”. (Lucas, 1999). O congado mineiro possui inúmeras variações, com as guardas de marinheiros ou marujos, de caboclinhos, catopés e vilão espalhados pelo interior de Minas, até as guardas de Congo, Moçambique e Candombe. Na região metropolitana de Belo Horizonte, a maioria das comunidades se organiza em Guardas de Congo e Moçambique8 saindo às ruas, tendo o Candombe como um rito fechado de caráter muito mais africano e onde fica mais explicito o culto aos ancestrais. Estes últimos geralmente se completam, como diferentes momentos na liturgia de um culto. Segundo o mito que fundamenta o ritual, Nossa Senhora do Rosário havia aparecido no meio do mar e após os brancos tentarem resgatá-la com bandas e rezas, somente os negros conseguiram resgata-la. Primeiro foram os negros do Congo que tocaram e fizeram ela se mexer, depois os negros de Moçambique que a fizeram se aproximar mais ainda, e por último os negros do Candombe que a conseguiram retirar do mar e resgatá-la9. Importante ressaltar que apresentei aqui uma versão reduzida de um mito que encontra variantes de comunidade pra comunidade. comunidades de identidade banto) sob a forma dos atabaques de origem Jêje-Nagô, como sob a forma das caixas e tambores nas guardas de congado da região metropolitana de Belo Horizonte. 8 A guarda de Congo é composta por jovens e seus instrumentos são as caixas, possuindo padrões rítmicos específicos a exemplo da marcha - grave, congo-dobrado, e outros. O Moçambique é composto geralmente por pessoas mais velhas e possui dois padrões rítmicos mais solenes em suas estruturas rítmicas, a saber, o serra - abaixo e o serra - acima. O Moçambique também possui a gunga (instrumento composto por latas, formando uma espécie de chocalho composto que se toca preso aos pés) considerado extremamente sagrado, na função de se comunicar com o mundo dos ancestrais. Em alguns lugares, o Candombe acontece na rua, como que por falta do Congo e Moçambique. 9 Em outras versões, o Moçambique é quem retira a santa do mar executando os toques do Candombe, cujos tambores não poderiam se remover até a praia. Em outra, a guarda de congo é substituída pela guarda de marinheiros (brancos), dando origem à marujada e a guarda de Moçambique é substituída 15 2.3 - O Pressuposto da Antropofagia Para melhor compreender esse movimento de apropriação do congado, optamos por recorrer a conhecimentos de fatos antecedentes, pois essa prática musical – a apropriação - não tem origem na música mineira de hoje nem na sua relação com o congado. A apropriação cultural no Brasil é mais antiga e aconteceu em diferentes momentos históricos, com características distintas. Assim, a análise comparativa de fatos pode muito contribuir para nossa compreensão do fenômeno. Carlos Sandroni, em seu texto Mudanças de padrão rítmico no samba carioca, 1917-1937, conta que o primeiro samba registrado por um compositor, não foi necessariamente composto por ele, mas de alguma maneira apropriado da cultura popular. Vejamos: “O nascimento do samba carioca data do carnaval de 1917 e do sucesso estrondoso da canção Pelo Telefone, apresentada como "samba carnavalesco" por seu autor ostensivo, Ernesto dos Santos ("Donga"). Dizemos "ostensivo" porque a autoria deste primeiro samba de sucesso é um dos assuntos mais polêmicos da história da música brasileira. Flávio Silva (1975) mostrou que a peça é uma colagem de elementos melódicos e textuais que em grande parte já existiam na tradição oral. O que se chamava "samba" até então no Rio de Janeiro era uma prática festiva, musical e coreográfica restrita a certos grupos, principalmente de negros e mestiços, e como tal submetida a uma série de interdições. A composição de Donga, ao contrário, empolgou a cidade inteira e tornou-se "a canção do carnaval de 1917"”.10 pelos índios, dando origem aos caboclinhos. 10 Esse processo obviamente é muito distinto do atual, uma vez que ainda não se tinha uma indústria do entretenimento tão inchada com tamanha capacidade de interferência e os personagens e as suas relações se dão dentro da mesma classe social, com uma mesma prática cultural, com mesmos padrões de significados. O que se assemelha aqui é a questão da autoria, embora no caso do tilelê, muitas práticas acontecem entre personagens de classes sociais distintas sob uma interferência da indústria cultural muito maior. 16 Na música erudita, a partir de Villa lobos e de Mário de Andrade, acontece da década de 1920 em diante, uma movimentação denominada de nacionalismo musical,11 movimento composicional que se baseia na 12 investigação da música da cultura popular para uso de seus elementos. Mário de Andrade integrou o chamado Grupo dos Cinco juntamente com Oswald de Andrade , Menotti del Picchia, além das pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti que introduziram o modernismo no Brasil. Oswald de Andrade foi o responsável pelo manifesto antropofágico de 1928 que dá origem ao movimento antropofágico. 13 O movimento antropofágico faz migrar para o terreno da cultura, o sentido da absorção das virtudes para haver um refinamento (etnocêntrico). Sobre o movimento antropofágico da década de 30, no Brasil, Hélio Oiticica escreve: "O QUE IMPORTA: a criação de uma linguagem. O destino da Modernidade pede a criação desta linguagem..., toda a fenomenologia deste processo (com inclusive as outras linguagens internacionais), pede e exige (sob pena de se consumir num academicismo conservador, não o faça) essa linguagem (...). Quem sou eu para determinar qual e como será esta linguagem?" 11 Esse processo é também distinto do atual, mas possui implicações políticas e sociais maiores. É um contexto em que o Governo, em especial Getúlio Vargas, impulsiona e incentiva essa prática, na busca da construção de uma identidade cultural, que estivesse em consonância com as idéias de nação e de Brasil impulsionadas pelo estado Novo. O que encontramos aqui que se assemelha ao movimento estudado é uma busca de identidade cultural, no caso do nacionalismo mesmo que forçada pela ideologia de Estado. 12 Conforme constatamos em Acastro Egg: “O ano de 1928 foi o da publicação do Ensaio sobre a música brasileira de Mário de Andrade. Um livro seminal, que, conforme o historiador Arnaldo Contier, tornou-se a bíblia de muitos compositores brasileiros (CONTIER, 1985). Neste texto, o escritor modernista lançou um libelo contra a música “desraçada”, sem identidade brasileira, decretando a nulidade dos compositores que insistissem em compor conforme os cânones europeus... De um meio musical pautado pela ópera italiana e pelo sinfonismo francês no período da Primeira República, passamos, durante o período do governo Vargas a um predomínio da música nacionalista baseada do folclore. Foi, então, ao longo das décadas de 1930 e 1940 que o nacionalismo musical no Brasil passou da corrente progressista e inovadora que era no início do modernismo à estética hegemônica no meio musical brasileiro com a consolidação do movimento folclorista (CONTIER, 1985). O ano de 1950 marca a derrota de uma proposta de atualização a partir das vanguardas européias e assinala a hegemonia do pensamento composicional nacionalista.” Para o lançamento desse livro, Mário de Andrade efetuou um grande trabalho como pesquisador do folclore brasileiro. 13 O termo Antropofagia vem da conhecida prática dos índios tupis que consistia em devorar seus inimigos, mas não qualquer um, apenas os bravos guerreiros; a relação estabelecida era de selecionar na alteridade em função da potência vital para absorver a sua virtude à química da alma, promovendo assim o próprio refinamento (Rolnik,1998). 17 Para Suely Rolnik, o "banquete antropofágico" é feito de universos variados incorporados na íntegra ou somente em seus "mais saborosos pedaços" misturados à vontade e, para a seleção destes pedaços, existe uma fórmula ética da antropofagia. Essa ética passa por uma estratégia que dá lugar a quatro operações básicas seguidas pelo artista antropofágico14, essas operações seriam: 1- O abastardamento da cultura das elites e da cultura européia como padrão. 2- A criação de cultura, a partir de elementos da cultura afro e indígena deslocada do problema da ressignificação e reinterpretação de elementos, perdendo qualquer conotação étno-identitária. 3- O desmanchamento do mundo entre colonizados e colonizadores, no sentido da expansão e igualdade das culturas e linguagens locais para o contexto global. 4- A cultura produzida no Brasil deixa de ser submissa e estéril em relação à européia e passa a ser uma linha de fuga da cultura européia, sem a noção de oposição, mas de diferente. Em relação à antropofagia, José Jorge de Carvalho critica seus defensores afirmando algumas contradições que se originam do caráter de classe desses, vejamos: “analisemos criticamente uma frase clássica do Manifesto Antropológico de Oswald de Andrade: “Só me interessa o que não é meu”. Se pensamos na relação do artista metropolitano de elite com as 14 Pode-se observar que as quatro operações trabalham a questão da música étnica, em especial os gêneros da cultura popular, afro e ameríndia como alternativa ao padrão eurocêntrico, mas tem como necessidade negar qualquer identidade ou movimento etnocêntrico, é universalizante e autoritária. É a construção de uma identidade brasileira a partir de outras identidades étnicas, mas constituindo essa "nova identidade" de uma originalidade própria que não seja possível remeter a memória de outra identidade anterior. 18 comunidades afro-brasileiras ou indígenas, o autor da frase não questiona os privilégios de classe e de raça do sujeito que pode pronunciá-la. Enquanto um coreógrafo do eixo Rio - São Paulo pode “antropofagicamente” apropriar-se de um determinado saber performático de um tambor-decrioula do Maranhão, por exemplo, nenhum artista desse tambor-de-crioula pode exercer esse mesmo canibalismo cultural sobre um grupo de dança “erudita” que se apresenta no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e que é apoiado, digamos, por uma subvenção anual milionária concedida pelo Banco Itaú para que possa realizar seus exercícios de antropofagia estética... Só me interessa o que não é meu: eu posso pegar tudo, porque tenho poder para isso e não apenas porque gosto disso. Essa é a atitude que conduz à voracidade do eu de uma elite branca que exige que todas as tradições performáticas afro-brasileiras e indígenas, sagradas ou profanas, estejam à disposição, tanto para satisfazer seus desejos estéticos de consumidor e de performer, como também para tentar resolver a ambivalência e a esquizofrenia política de sua identidade ocidental e do seu eurocentrismo profundo.” Podemos, pois, perceber a partir da análise de Carvalho que as quatro operações antropofágicas identificadas por Rolnik se equivocam quando buscam chegar num lugar que anule as características étnicas, uma vez que o caminho para este lugar é um caminho eurocêntrico e ocidental devido ao seu caráter de classe, não tendo, portanto como chegar num lugar que não seja eurocêntrico, ocidental e marcado pela questão de classe. 15 15 Uma reflexão mais profunda da fala de Carvalho mostra que existe um problema de classe na elaboração da teoria antropofágica, problema esse que invalida a teoria em sua essência quando se propõe a construir uma cultura nacional que seja soma das diversas culturas presentes no país e que não expresse nenhuma identidade étnica específica. O que acontece é que uma classe dominante branca, que por sua vez quer se diferenciar das classes dominantes dos países imperialistas elabora um projeto de uso das culturas das classes dominadas de seus países, sem que haja uma verdadeira socialização dos saberes e fim das barreiras étnicas e sociais que separam essas classes, ou sem que a classe dominada possa utilizar à vontade dos saberes da classe dominante, da mesma forma como a classe dominante usa os saberes da dominada. 19 2.4 - Polêmicas Aqui apresentamos duas questões polêmicas que vamos tratar sem o compromisso de concluir, pois apenas pintaremos o cenário necessário para a melhor compreensão dos fenômenos do ponto de vista etnomusicológico e do traçado ético. Para o aprofundamento dessas questões seria necessária outra pesquisa, para a qual a presente pode servir como suporte. As questões são a apropriação de um patrimônio cultural imaterial de um grupo social por outro, levando em conta os problemas de propriedade, e o processo de ressignificação que os elementos culturais sofrem nessa transposição. 2.4.1 – Apropriação (ou Sobre o Direito de Propriedade) Vamos tratar primeiro da questão da apropriação. Atualmente as discussões sobre a ética no uso de elementos musicais pertencentes a culturas de comunidades locais na construção da Música Popular têm sido incendiadas e tomado determinadas dimensões a ponto de chegar ao poder público a necessidade de elaboração de leis que regulamentem o direito autoral sobre um patrimônio cultural imaterial. Até então esse patrimônio é considerado “domínio publico” e na prática pertence a uma determinada comunidade ou conjunto de comunidades que acabam por serem prejudicadas ao terem sua cultura comercializada por terceiros sem que haja o consentimento e qualquer tipo de retorno. Segundo Glaura Lucas, em texto ainda não publicado chamado “Música Popular Afro-mineira: conflitos étnicos e éticos de uma construção” 16 , não existe entre os congadeiros o sentimento de posse, ou direito de propriedade individual sobre as suas canções e elementos musicais. São inúmeros os valores sociais que envolvem conceitos de música e outros conceitos que circulam a música que se diferenciam dos conceitos da 16 Apresentado no I Encontro de Estudos da Música Popular, realizado em outubro de 2006 na Escola de Música da UFMG 20 sociedade urbana ocidental em que se insere o artista da música popular e a indústria do entretenimento. Para ilustrar, recorremos à fala da cantora Titane, artista participante desta movimentação e da festa do Congado em sua cidade Natal, Oliveira, em entrevista: “sempre existe um autor, sempre tem um bom capitão, um bom caixeiro, grandes pessoas que “recebem” as músicas ou que criam, cada um entende de uma forma, e que verbalizam as canções.” Mas sobre o direito de posse ela destaca: “Só que eles fazem isso em nome de suas entidades ou pelo coletivo da guarda e não para si, eles não assumem autoria.” Relatando sobre essa questão durante a gravação do disco Os Negros do Rosário produzido por ela em que se fez um registro ao vivo da festa do Rosário em Oliveira, em que era necessário registrar autoria das canções sob o nome de alguém, ao procurar os possíveis autores para registro, disse que: “tinha a situação do autor que estava ali: “quem começou a cantar aquilo ali em Oliveira foi fulano de tal”, e todo mundo cantava; ou então: “foi fulano que ouviu isso em outra cidade” ou então “ouviu no rádio e tirou da moda caipira”, aí você ia atrás do compositor caipira e ele tirou aquilo das próprias manifestações tradicionais e os próprios congadeiros achavam que tinham aprendido com ele. Uma terceira situação é: o autor teve com seus guias e recebeu aquela música. Quarta situação: ninguém sabe de onde veio. Quinta situação: um refrão tradicional onde um capitão improvisa o tempo todo”. O IEPHA, Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, apoiado no Decreto nº. 42.505, de 15 de abril de 2002, têm realizado um trabalho de registro do patrimônio cultural imaterial das comunidades. Esse trabalho desenvolvido pelo IEPHA abre as condições 21 para elaboração de políticas públicas que protejam o patrimônio cultural imaterial, e a partir do registro, garantir o uso do “direito autoral” das canções, letras e o que mais puder ser registrado, pelas comunidades detentoras deste patrimônio17. Entretanto, o uso dos elementos congadeiros se dá para além de um procedimento de adaptação, em que o artista grava a canção com um determinado arranjo artisticamente concebido. Há situações em que o registro formal pelo IEPHA teria dificuldades de desenvolver qualquer tipo de controle. É o caso, por exemplo, do uso de um pequeno tema melódico, que revirado várias vezes acaba ficando muitas vezes tão distante da forma original que impossibilitaria um trabalho de “controle e proteção”, ou ainda quando se usa um elemento físico como o patangome ou a gunga – instrumentos musicais típicos do congado – em arranjos musicais. Entretanto, apesar de reconhecer a importância dos registros, não só para definir questões de direitos e propriedade, mas como forma de compartilhar conhecimentos entre as diferentes comunidades congadeiras distantes, a problematização não termina por aí. As limitações dos registros para fins de garantir direitos autorais se encontram também no fato de que se está registrando uma manifestação no momento em que ela acontece, porém essa manifestação, por natureza da oralidade, se transforma o tempo todo, e a cada vez que ela acontece, acontece diferente. Outro dilema é que os registros, uma vez que eles fixam a música ritual de tradição oral, eles fixam apenas um aspecto do ritual que na sua magnitude não pode ser fixado. 18 Além disso, a música vira uma forma fixa e torna-se sujeita às mais variadas formas de consumo. Isso sem falar do tratamento que as gravações podem ter em estúdio, o que implica em partes na questão de ressignificação que já trataremos a seguir. Vejamos o 17 Segundo o site do IEPHA em 10 de outubro de 2008, esse trabalho de registro se dá por quatro formas, que seriam: Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; livro de Registro das Celebrações, para inscrição dos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; livro de Registro das Formas de Expressão, reservado às manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas e livro de Registro dos Lugares, tais como mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas. Ainda segundo o mesmo site nesta mesma data, existem os seguintes pedidos de registros: Comunidade dos Arturos, solicitado pela comunidade e pela Prefeitura de Contagem. Festa de Nossa Senhora do Rosário de Chapada do Norte, solicitada pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte, pela Prefeitura Municipal e Conselho Municipal de Patrimônio. 18 Essa questão, porém não podemos fechar neste momento e fica para um trabalho futuro de continuidade deste. 22 que diz José Jorge de carvalho, em Transformações da Sensibilidade Musical Contemporânea, sobre isso: “Tomemos a gravação da bela música dos Congos da Paraíba, por exemplo, divulgada nos discos da FUNARTE. Ela nos revela o que o espectador presente ao ritual dificilmente captaria. Para benefício do ouvinte do disco, o equilíbrio sonoro da execução ao vivo foi inteiramente desfeito. Um espectador dos congos provavelmente escutaria muito claramente os chocalhos nos pés dos bailarinos e a viola. Ouviria de um modo indistinto o coro masculino, e conseguiria talvez reconhecer a última palavra de cada semi-estrofe cantada; mas é extremamente improvável que, numa primeira audição, fosse capaz de seguir o texto da canção, que é cantado muito rapidamente, sem repetição, pelos músicos e bailarinos, com suas vozes dirigidas para si mesmos. Ou seja, na música dos congos, exemplo do que chamo de "estética da opacidade”, o texto pertence à irmandade dos dançantes, ou seja, aos próprios congos. Nos termos de um modelo estritamente interpretativista da arte, podemos dizer, parafraseando a já célebre expressão de Geertz,19 que trata-se de uma mensagem que os músicos dizem para eles mesmos. Já ao público corresponde a incumbência de tomar posse - visual, auditiva e até corporal, participativa da dança, da melodia cantada e da música instrumental. A gravação, ao amplificar desproporcionalmente as vozes solistas, desfez o efeito cuidadosamente construído pela estética e pela ideologia dos congos e os subordinou à estética sonora da transparência e da equanimidade, própria de gêneros clássicos como o trio ou o quarteto.” 19 Clifford James Geertz (San Francisco, 23 de agosto de 1926 — Filadélfia, 30 de outubro de 2006) foi um antropólogo estadunidense, professor da Universidade de Princeton em Nova Jérsei. foi um dos principais antropólogos do século XX, importante, assim como Claude Lévi-Strauss, não apenas para a própria teoria e prática antropológica, mas também fora de sua área, em disciplinas como a psicologia, a história e a teoria literária.Considerado o fundador de uma das vertentes da antropologia contemporânea - a chamada Antropologia Hermenêutica ou Interpretativa, que floresceu a partir dos anos 50... Segundo Geertz, o risco do etnocentrismo é de aprisionar o ser humano em sua interpretação pessoal. Geertz afirmou que o problema humano no estudo antropológico não é de estranhar o outro, mas de estranhar a si mesmo, e ele aconselhava os estudiosos a se conhecerem melhor antes de analisarem outras sociedades. - http://pt.wikipedia.org/wiki/Clifford_Geertz em 22-03-09. 23 Outra questão: se por um lado, o registro e documentação abrem a possibilidade de que se proteja o patrimônio, produz-se, por outro, uma mercadoria em potencial onde se expõe ainda mais a tradição de grupos étnicos aos interesses de apropriação e uso inadequado para fins de mercado, vendendo para uma classe média branca uma cultura aparentemente exótica dos negros populares. 2.4.2 – A ressignificação Tratemos agora do fenômeno da ressignificação dos elementos do congado, quando são transpostos para outro ambiente que não é o seu próprio. Vejamos como J. J. de Carvalho no mesmo texto anteriormente citado, indica a ressignificação que ocorre no tratamento acústico da gravação até a forma de consumo pelo ouvinte, a respeito de gravação da própria manifestação em si: “Uma determinada situação social provê o marco sonoro no qual um estilo de música pode atuar sobre as pessoas e tornar-se uma experiência sensorial, estética, intelectual e transcendente singular. Por outro lado, o resultado acústico dessa interação social não é percebido como tal no momento de sua reprodução por meios mecânicos para difusão massiva. Aí surgem as crises nos códigos de sensibilidade inter-culturais: o ouvinte o apreende apenas como um produto acabado e não como um processo, social e cultural, que se desenvolve, na verdade, como um inter-texto, a realidade sonora funcionando apenas como uma abstração analítica a posteriori.” Num processo de construção artístico que aborda o congado, as ressignificações também acontecem. Existem sobre um mesmo elemento musical, os significados de origem dados pelos congadeiros, significados dados pelos artistas no ato da apropriação, e significados que o público confere ao consumir a arte, seja num show de uma forma ou numa atividade física como correr ou outra qualquer a partir das gravações. A arte no seu espaço essencialmente comercial, por sua alienação do modo de 24 produção artística à indústria cultural, acaba por ser arbitrária e não abre mão de qualquer ressignificação da cultura tradicional em função do melhor resultado comercial possível. Essa ressignificação, segundo Glaura Lucas, é percebida pelos congadeiros, que num geral, reagem com um sentimento coletivo de posse. “Nas relações com um público externo, aí sim, há um sentimento geral de proteção e resguardo dessas músicas, frente a uma concepção musical externa que, para os congadeiros, normalmente conduz a usos inadequados e a interpretações equivocadas desse patrimônio imaterial... A música popular com seu poder de difusão vem disseminando uma concepção do que seja música de congado bastante esvaziada de seus significados 20 ”. Podemos afirmar, porém, que existem diferentes “lugares” no campo da arte musical popular urbana, entre esses lugares encontramos um que se apresenta no “vácuo” entre a música da tradição oral e as formas comerciais. Passemos por esses lugares: Para Júlio Medáglia, em seu texto “O Balanço da Bossa Nova”, depois da música que ele chama de folclórica, existem outros dois tipos de manifestação musical “não erudita” de origem urbana... “o primeiro têm suas raízes na própria imaginação popular e é aproveitado e divulgado pela rádio, pela TV, pelo filme e pela gravação; o outro é a espécie de música popular que é fruto da própria indústria da telecomunicação.” 20 José Jorge de Carvalho, sobre a espetacularização das culturas populares afro-brasileiras e ressignificação de seus elementos ainda diz que “estamos falando de um fenômeno de expropriação e canibalização estética, simbólica e econômica com características muito específicas. Por exemplo, já existem casos de grupos e associações culturais formados por brancos de classe média que realizam apresentações pagas de um ritual sagrado, como a dança de São Gonçalo, transformado em uma performance copiada ou apenas simulada, na medida em que a devoção específica ao santo não está presente. A questão, portanto, não é apenas da ressignificação e reterritorialização de símbolos tradicionais em contextos urbanos e metropolitanos, tema já amplamente discutido na literatura antropológica, sociológica e histórica. O que preocupa muitos de nós atualmente é a expropriação de tradições para fins de entretenimento pago ou como um exercício inusitado de poder.” Assim, Carvalho nos dá uma dimensão maior do problema apontando seu caráter de dominação de classe e exploração econômica. 25 José Miguel Wisnik, autor de “O Minuto e o Milênio ou Por Favor, Professor, Uma Década de Cada Vez” melhor explica esses dois lugares da musica popular urbana quando diz que: “continua em vigor na música comercial-popular brasileira a convivência entre dois modos de produção diferentes, tensos mas interpenetrantes dentro dela: o industrial, que se agigantou nos chamados anos 70, com o crescimento das gravadoras e das empresas que controlam os canais de rádio e TV, e o artesanal, que compreende os poetas-músicos criadores de uma obra marcadamente individualizada, em que a subjetividade se expressa lírica, satírica, épica e parodicamente”21. Reafirmamos - A arte no seu espaço essencialmente comercial, por sua alienação da produção artística à indústria cultural, acaba por ser arbitrária e não abre mão de qualquer ressignificação da cultura tradicional em função do melhor resultado comercial possível. - A arte, porém, que ocupa o espaço em que existe a possibilidade do comércio e do entretenimento, mas que exista também a possibilidade da troca de saberes, de originalidade, de expressão, de inventividade e de constante recriação de linguagem e reflexão sobre si mesma, não pode existir num mundo caracterizado pela fragmentação, sem que esta se relacione com as manifestações das culturas tradicionais seja popular ou erudita. Isto é para que, através de valores e elementos de linguagem artística sólidos e não fragmentados da cultura tradicional, possa fazer sua própria ressignificação. A música popular urbana, que não é uma produção artificial da indústria de massa, geralmente ocupa esse espaço. J. J. de Carvalho diz o seguinte em seu texto “As duas faces da tradição, o clássico e o popular na modernidade latino-americana”: “Outro fator a ser tomado em conta, comum também a outros países latinoamericanos, é o processo de urbanização acelerada por que passam nossos principais centros habitacionais nas últimas décadas, trazendo consigo 26 novas formas de sociabilidade, tais como a formação de círculos de interesse parcializado, grupos de interação intermitente de gerar formas culturais novas e altamente sincréticas, as quais constroem e manipulam um universo simbólico mais aberto e transitório, distinto do caráter totalizante e estável dos símbolos culturais tradicionais, porém nem por isso entregue inteiramente às mãos da indústria cultural...” 22 - grifo nosso. Pintamos assim um cenário em que a arte urbana usa elementos de uma cultura da alteridade, ressignificando-os para sua própria ressignificação, promovendo uma inversão e forçando uma revisão do conceito de ressignificação. A transposição de signos e sentidos é uma via de mão dupla, na medida em que a arte também se ressignifica na sua relação com as culturas populares. Esta, além de servir como fornecedora de material para as experimentações da música contemporânea, erudita ou popular comercial, uma vez que não caia nos moldes de um nacionalismo musical ufânico, ou outra forma de folclorismo artístico, serve para a renovação da sensibilidade musical do homem contemporâneo.23 Sobre isso J. J. de Carvalho ainda diz: 21 Ainda segundo o mesmo autor, “especialistas europeus e críticos da chamada ”cultura de massas” afirmam que a implantação da indústria cultural imprime nos “produtos de arte” a marca da repetição e da estandardização.” 22 Continuando... Dentro desse complexo universo, temos que distinguir expressões culturais criadas externamente e veiculadas, apenas, pelos meios massivos de comunicação (expressões de folclore, de cultura popular, de cultura erudita) das expressões nascidas no âmbito interno da indústria cultural. É um elemento definidor dessa indústria ser essencialmente amnésica: oferece a ilusão da possibilidade de participação total e instantânea entre produtor e consumidor... mas sem a possibilidade de acumulação... Contudo, ela propõe um modelo cultural que é, em muitos sentidos, mais poderoso e totalizador que os demais, na medida em que, nela, o oral se complementa com o escrito, com o visual, com o sonoro, com o eletrônico. Traz, além disso, o falaz atrativo da comunicação transparente, da eliminação da polissemia, com a pretensão de que todas as chaves para a decodificação de cada símbolo sejam, pelo menos aparentemente, entregues ao consumidor.” 23 Outro elemento importante nessa discussão é a sociedade brasileira moderna e as modificações que ela impõe no plano da cultura. José Jorge de Carvalho debate esse tema e afirma que a urbanização trás consigo novas formas de sociabilidade e geram novas formas culturais bastante sincréticas e que nem por isso estão “controladas” pela indústria cultural e sugere a existência de uma interação entre diferentes níveis da cultura (popular, erudita e urbana) que forçam uma reelaboração do conceito de folclore. A interação se dá através da incidência de elementos da cultura de massa sobre as manifestações “genuínas”, o uso de elementos “genuínos” na produção cultural dos meios de comunicação, o turismo, a migração interna, em especial para as grandes cidades, a fragmentação das manifestações no contexto urbano e a gama de ofertas de crenças e de possibilidades oferecida nas cidades. José Jorge de Carvalho critica os folcloristas e filósofos que lamentam e dizem que as culturas “autênticas” estão em crise em função do crescimento de uma cultura intermediária, a popular, urbana e de massas e afirma existir um mito sobre a degenerescência da cultura popular. Acredito que esse mito, uma vez disseminado, fortalece a construção de uma arte e música que expressem uma identidade nacional, pois funciona como justificativa para tal, e no nosso caso em especial, uma identidade afromineira. 27 “... Esse formato comunicativo... amplia cada vez mais a esfera do Kitsch24, isto é, da cópia dos símbolos tradicionais, sejam clássicos ou populares... E já que nos interessa particularmente o universo simbólico tradicional, há que revisar também o próprio sentido da reprodução... os problemas da cópia estão agora mais complexos... Enfim, além da questão da reprodução, o que parece estar por trás de toda essa promessa de felicidade da indústria cultural... é basicamente a experiência do transitório: ajuda as pessoas, numa vida cada dia mais acelerada e cambiante... a se livrarem do peso e da responsabilidade da memória... há algo de específico no folclore que não se perdeu: ele ainda funciona como um núcleo simbólico para expressar um certo tipo de sentimento, de convívio social e de visão de mundo que, ainda quando totalmente reinterpretado e revestido das modernas técnicas de difusão, continua sendo importante, porque remete à memória longa. Há uma mentalidade bem definida que se expressa em determinados objetos ou formas estéticas objetificadas - uma quadra em verso, uma vestimenta, um ritmo de tambor, um padrão de cores, etc., são signos diacríticos de uma experiência social muito particular. Por mais manipulados que sejam, apontam para a continuidade da sociedade ao expressar um ideal de relações intensas de espírito comunitário, de uma afinidade básica, anterior ao individualismo moderno. Essas relações... ainda têm lugar como modelo, um entre tanto outros modelos acessíveis ao homem do mundo moderno industrializado. Se não fosse assim, a indústria cultural poderia, perfeitamente, inventar símbolos novos todo o tempo, em vez de apropriarse dos símbolos clássicos e tradicionais e dar-lhes uma nova roupagem.” 24 O kitsch é um termo de origem alemã (verkitschen) que é usado para categorizar objetos de valor estético distorcidos e/ou exagerados, que são considerados inferiores à sua cópia existente. São freqüentemente associados à predileção do gosto mediano e pela pretensão de, fazendo uso de estereótipos e chavões que não são autênticos, tomar para si valores de uma tradição cultural privilegiada. Eventualmente objetos considerados kitsch são também apelidados de brega no Brasil. A produção Kitsch surge para suprir a demanda de uma classe média em ascensão, que não conseguia entender e aceitar a arte de vanguarda, com suas propostas inovadoras, mas desejava participar do "universo da arte. Esta parte da população não teve a sensibilidade artística educada e, portanto, não desenvolveu o gosto, mas queria parecer culta e apreciadora da arte, porque isto lhe conferia status social - http://pt.wikipedia.org/wiki/Kitsch em 22-03-09. 28 Essa discussão levantamos sem a intenção de justificar a prática da abordagem do congado ou das culturas populares na música comercial urbana pela positiva, sem compreensão das conseqüências que isso implica. Quem isso faz, geralmente faz sob a ideologia do resgate, da divulgação, da preservação ou da valorização das culturas populares em oposição às idéias de que a sociedade moderna e a indústria cultural as destroem, ou as corrompem. Seria insano atribuirmos à arte a capacidade de “resgate, divulgação e conservação” das culturas populares, e mais insano e oportunista é o artista que diz se propor a isto. Os congadeiros freqüentam escolas comuns, shoppings, trabalham ao lado de evangélicos, umbandistas, budistas e ateus; sambistas e roqueiros e operam trocas culturais com eles. A visão de que as comunidades congadeiras são elementos distintos e em risco de extinção, quase alienígenas da nossa sociedade e que precisam de proteção e preservação é um tanto estereotipada, e até mesma carregada de um preconceito. As comunidades congadeiras são fruto e parte da nossa sociedade marcada pela pluralidade étnica, social e cultural, fruto de um processo histórico, do qual, cada setor social é dono de parte de um legado único e multifacetado. Não podemos colocar uma redoma de vidro cercando as comunidades congadeiras. Neste sentido, faço minhas as palavras de Nestor Canclini quando criticava a carta do folclore latino-americano de 1970 em reunião que pretendia elaborar nova carta em 1987 por folcloristas e estudiosos. Ele criticava o sentimento apocalíptico de desaparição do folclore identificando o crescimento de atividades tidas como folclóricas em todo o continente; ele propunha a idéia de que as culturas folclóricas se relacionam com a cultura de massa promovendo transformações, sem que percam seu caráter; ele propunha a troca do critério de autenticidade da manifestação pela representatividade social da mesma para fins de legitimidade. Como já vimos um dos caminhos para a reciclagem das linguagens artísticas, pode ser a volta do olhar para as tradições alteriores. E neste caso, não estamos falando de um alterior externo, mas de um alterior interno, e se não interno, extremamente próximo. É necessário que se estabeleça um código ético para as relações dos artistas urbanos com os 29 grupos da tradição oral para que o trânsito dos elementos culturais possa ocorrer numa via de mão dupla respeitosa, em que a ressignificação não seja danosa à tradição oral fornecedora e não seja apenas um elemento exótico para fins de comércio à produção artística urbana, ou para que não seja – como diz J.J. Carvalho – “um exercício inusitado de poder” de uma classe dominante sobre a dominada. É necessário também colocar a relação de troca no lugar da de apropriação. 3- Primeiros Resultados Teóricos da Pesquisa 3.1 – Identificando uma Tendência Nacional: A Revolução dos Tambores Para Glaura Lucas, em texto já citado, “há vários níveis e formas de utilização dos elementos do Congado por músicos populares, várias são as justificativas e motivações para esse uso, mas, no geral, existe uma intenção de se desenvolver uma identidade musical afro-mineira, que seja projetada como uma marca própria regional no universo da música popular brasileira, a exemplo da Bahia ou de Pernambuco. E é compreensível que o Congado, com seu diferencial de força histórica, tradicional de resistência da cultura negra em Minas, se tornasse modelo e fonte de inspiração”. Nesta frase da Glaura Lucas, podemos identificar alguns movimentos “irmãos” e que se relacionam, num mesmo contexto histórico de valorização das culturas de tambores no Brasil. Ela cita como exemplo a música popular de Pernambuco e da Bahia, que passando por um processo de valorização das culturas de tambores, se inseriu no mercado nacional da música popular. O investimento no mercado consumidor de produtos culturais variantes das culturas de tambor, de origem popular e regional, pela indústria cultural, acontece a partir do final da década de 90, com o 30 estilhaçamento e fragmentação da música popular pós-tropicália. Esse processo tem sua complexidade maior. Segundo Luiz Tatit, em seu texto Quatro triagens e uma mistura: a canção brasileira do século XX, a música brasileira sempre foi fruto de inúmeras misturas e de um processo seletivo cujos parâmetros de seleção se relacionam com a indústria cultural, e as limitações impostas pelas técnicas de gravação e de divulgação, que num primeiro momento impossibilitavam, por exemplo, a gravação de uma bateria de escola de samba. Hoje, porém este tipo de gravação em estúdio é viável e existe um mercado consumidor. Luiz Tatit indica uma enorme fragmentação do mercado onde diversas tendências musicais aparecem e apontam para a nacionalização dos produtos que remetem às culturas ancestrais e regionais na produção da música popular brasileira.25 Talvez Tatit esteja se referindo, dentre outras coisas, ao Mangue-beat e ao Axémusic, movimentos musicais que nasceram da valorização das culturas populares relacionadas ao uso de tambores em grupo, como prática afrobrasileira, misturando a essa sonoridade elementos da modernidade e da música urbana de mercado como o hip-hop e rock pesado no caso do mangue-beat, ou as sonoridades elétricas e alegres do tropicalismo no caso do axé-music. Talvez Tatit indique uma nova triagem norteada por uma nova mistura, que envolve movimentos musicais regionais, com identidade étnica, regional e percussiva e ao mesmo tempo global e contemporânea que invadem o mercado nacional da canção. Para ilustrar esse processo, vamos usar um trecho da entrevista com a cantora Titane: “Eu comecei a cantar em 79\80 convidada pelo mambembe, que era um grupo de música brasileira... e o grupo não dava a menor bola por isso, não tinham o menor interesse. O meu primeiro show individual foi em 81 e eu tinha muito interesse na música do interior do país e ia muito nas músicas do congado, mas não havia a menor conexão com o que era feito na música popular... Quando a gente foi chegando no final da década de 80, 25 Antes, o centro Rio de Janeiro – São Paulo, sobretudo o Rio de Janeiro, é que se espalhava pelo país. A exceção foi o baião nos anos 40. Depois apareceu o Clube da Esquina e outros do nordeste na década de 31 entrando para 90, o mundo inteiro se voltou para as percussões, que surge o Olodum, mixando os tambores lá na frente, as coisas começam a ficar mais claras, finalmente a bateria deixa de reinar e as percussões ganham o interesse de todos, as percussões invadem o interesse da música e todos os outros territórios são invadidos pelas culturas mais ancestrais e nesses momento o congado passa a ser de interesse de mais gente.” Como Chamar toda essa movimentação da música popular em torno dos tambores afro-brasileiros, dos maracatus pernambucanos, dos afoxés baianos e atualmente do congado mineiro? Um termo que ouvi dizer de uma artista pernambucana que conheci num evento de tambores em Belo Horizonte, ao conversar exatamente sobre essa movimentação é Revolução dos Tambores. 3.2 - O Movimento “Tilelê”, a Versão Mineira da Revolução dos Tambores. “Acho que foi Marina Machado, posso estar enganada, pode não ter sido ela, que falou que sempre quis participar de um movimento e que ela acha que aqui existe o “Movimento Tilelê” (risos)... E tilelê é bem tizumbiano, é do congado, mas vem pelo Tizumba.” - Titane Em Belo Horizonte tem ficado cada vez mais comum a musica popular, produzida e veiculada através da indústria do entretenimento, abordar elementos do congado. A movimentação neste sentido até hoje não se deu de maneira organizada ao ponto de se autonomear, estabelecer padrões estéticos ou lançar um manifesto. Não é minha intenção aqui, definir um nome para esse movimento, uma vez que seus integrantes, não necessariamente se reconhecem orgânicos a este movimento. O termo Tilelê, é escolhido em função de vários significados que lhe podemos aderir, a saber: 32 _ A origem do termo está nos refrãos de inúmeras cantigas que formam o patrimônio cultural imaterial abordado, ou seja, o repertório das guardas de congado. _ O termo foi transferido para muitos refrãos de canções gravadas por Maurício Tizumba, quer por adaptação de cantigas do congado, quer composições originais dele mesmo. _ A maior parte do público deste tipo de música e que freqüenta os eventos relacionados a esse tipo de música, é um público de classe média, universitário, adepto a um tipo de estética denominada por eles mesmos como Tilelê, onde no vestuário se combinam elementos da cultura hippie e das culturas populares, e nas buscas artísticas se encontra o gosto pela música nacional e regional. Certamente, para a melhor compreensão do comportamento do público tilelê seria necessário desenvolver uma pesquisa etnomusicológica sobre esse comportamento, trabalho que pode vir a ser mais bem desenvolvido em outro trabalho.26 4 – Primeiros Resultados Práticos da Pesquisa. 4.1 – Identificação de Procedimentos de Abordagem do Congado. A abordagem do congado na produção da música popular urbana em Belo Horizonte acontece em diversos níveis e graus que tentei aqui fixar e classificar a partir gravações que se destacam neste cenário. A idéia de desenvolver formas de classificar os procedimentos composicionais de abordagem do congado veio pela necessidade de se definir níveis diferenciados em que ocorre essa abordagem, de uma apropriação maior de 33 uma menor, para que se possa, talvez num trabalho futuro, definir limites éticos desta prática e as conseqüências de cada uma delas frente aos portadores da cultura tradicional congadeira. Para isso identificamos os principais artistas quem compõe o movimento tilelê e levantei parcialmente sua discografia. No projeto desta pesquisa, cheguei a citar alguns conceitos que acabaram por ser mais bem elaborados. Inicialmente propus uma fixação dos conceitos de citação, elaboração, plágio e cópia para parâmetros e fins de classificação27. A grande questão era que por mais fixos que eu deixasse esses conceitos, percebi que muitos dos materiais coletados ultrapassavam esses conceitos e assim se fez necessária uma flexibilização, elaboração de variantes dentro de um mesmo conceito e conjugação dos mesmos para criação de novos, o que acabou gerando o quinto procedimento que denominamos de colagem28. Além disso, no atual momento de desenvolvimento da pesquisa ainda há muita coisa levantada para ser ouvida e analisada. 4.1.1 - O procedimento de citação A citação engloba todo procedimento em que uma melodia ou trecho melódico, ou letra e trecho de letra, ou frase ou trecho de frase instrumental, que tenha origem nas manifestações congadeiras apareçam numa música. Isso pode ocorrer de forma incidental, ou seja, como um dos eventos que aparece na música sem que seja criado um ambiente para isso, ou que faça parte da música de forma estrutural. A citação estrutural é aquela que compõe, portanto, uma parte específica da música e não é independente. A citação incidental ocorre em Moçambiqueiro de Yuri Popovi onde melodia e letra composta pelo autor é auto-suficiente e independente, 26 Para esse público, o congado se apresenta como opção cultural e não como uma cultura natural. Essa opção passa pela construção de um ideal alienado sobre o congado, com base em alguns poucos traços ressignificados. – nota por sugestão de Glaura Lucas. 27 A idéia de fixar esses procedimentos de abordagem veio da necessidade de identificar os diferentes graus de apropriação dos elementos do congado, para que se possa dar mais suporte às discussões éticas apresentadas anteriormente e que até o momento não apontaram uma saída. A elaboração, por exemplo, tem um grau de apropriação muito menor que a citação, que por sua vez é menor que o plágio, que por sua vez tem um grau de apropriação menor que a adaptação. 28 O procedimento de colagem foi sugerido pela professora Rosangela Tugny durante apresentação de resultados parciais da pesquisa em Novembro de 2008. 34 no entanto, na gravação ela é antecedida por um canto de marujada e finalizada com outro, na voz de artistas. As citações são: Foi, foi, foi marinheiro do mar Foi, êh foi, foi marinheiro do mar. E Ah esse povo que vem do mar Ah esse povo que vem do mar. A citação estrutural acontece na gravação de “Grande Anganga Muquiche” de Maurício Tizumba, gravado no disco Tambor Mineiro, pelo grupo Tambor Mineiro em 2004, quando os tambores são citados, assim como também o toque de Serra Acima é executado por esses tambores, sendo então uma citação tímbrica e instrumental e de fraseado rítmico instrumental. 4.1.2 – O Procedimento de Colagem O procedimento de colagem é aquele em que o artista faz registro sonoro da manifestação, ou mesmo do grupo detentor desta cultura em estúdio ou outra circunstância, e recortando, cola parte desta gravação em faixa própria. A colagem acontece na gravação de Enredo de fé, de Sávio Henrique, em 1986, pela cantora Titane. A faixa inicia com uma guarda de Moçambique, convidada, cantando e tocando, de repente a música de Sávio entra por cima da gravação da guarda e esta se dissolve com redução gradativa de volume, ao final da música o som da guarda retorna. 4.1.3 – O procedimento de Plágio O plágio é quando um compositor, partindo de uma cantiga do congado, produz uma nova música em que se preservam elementos da 35 música de partida o suficiente para que seja reconhecida. Pode ser uma alteração de letra, de melodia ou de toques percussivos, com adaptação formal e instrumental ou não. Um exemplo deste procedimento se encontra também em Maurício Tizumba, No disco Rosário Embolado, dele e do grupo Tambor Mineiro, na música Campanha em Campanha. Esta música caracteriza-se por plágio de letra em função da frase inicial e de melodia, ao passar pelo tema melódico com pequenas alterações. Tanto letra e melodia originárias da tradição congadeira são encontrados nos registros feitos por Glaura Lucas do Congado da comunidade de Arturos e Jatobá com alterações. “No tempo do cativeiro Quando o feitor vinha me bater No tempo do cativeiro Quando o feitor vinha me bater” 4.1.4 – O procedimento de Adaptação Substituímos o conceito de cópia por de adaptação para definir os procedimentos musicais que, se originando de cantigas do congado, tornam-se canções integrais gravadas por artistas, onde foi feito um trabalho de arranjo e definição de estrutura formal fixa. Embora persista parcialmente o sentido de cópia neste caso, optei por usar o termo adaptação pela seguinte razão: além de serem, em sua maioria, registradas como adaptação (domínio público, adaptação de...), considero impossível copiar uma música de congado para um disco devido às características e concepções musicais dos congadeiros que impossibilitam uma cópia fiel de acontecer. Essas impossibilidades acontecem por que as músicas no congado, por mais que tenham refrão e estrofes, não possuem estrutura formal estabelecida sendo modificada o tempo todo pelos próprios detentores da cultura, sem que tenham noção disso. Além disso, a música não está separada de todo um ritual que não poderia ser copiado de forma fiel para ser gravado. 36 Um exemplo de adaptação é Cálix Bento, adaptação de Tavinho Moura e regravada por inúmeros artistas. As adaptações podem ser mais fiéis, ou seja, sem muita elaboração de arranjos instrumentais, como são a maioria das adaptações de Maurício Tizumba, ou bastante rearranjadas a ponto de apresentarem também o procedimento de elaboração, citação, plágio ou colagem sobre outros elementos que não sejam a letra e melodia. Um exemplo de adaptação distante do original é “Eu vou para o Rosário”, gravado por Anthonio e adaptado por Ruben di Souza. Nesta adaptação, aparecem muitos elementos da música eletrônica dançante trazendo o ambiente das boates e festas “raves” além do procedimento de colagem. 4.1.5 – O Procedimento de Elaboração O procedimento de elaboração é aquele em que determinado elemento ou material musical do congado é alterado com finalidades musicais específicas de forma que o reconhecimento do elemento pode não ser evidente. É quando também o congado serve como inspiração para o compositor e este compõe uma música em que os elementos congadeiros apareçam com um grau de alteração mais profundo que no plágio. Em algumas músicas encontramos a elaboração tão distante da matriz, que surge inclusive a dúvida se o compositor realmente se inspirou nela, ou se é engano do nosso ouvido. Um ótimo exemplo de elaboração é a canção de Sérgio Santos, gravado no disco Áfrico de 2001, Galanga Chico Rei. Nesta música, vozes retas, mas em alturas diferentes consonantes e dissonantes abrem a música cantando palavras com sílabas bem marcadas em 6 por 8 marcando todas as colcheias e a última palavra em 3 por 4. Esse movimento (poli) ritmo, é exatamente o desenho rítmico do patangome na guarda de Moçambique. que no final da gravação aparece o próprio patangome, caracterizando também citação tímbrica, como que confirmando a origem desse material rítmico. (6/8)Gan– ga Ga– lan– ga era Gan- ga de Já– ga CaTan– ga que– bra– va com 37 An– ga Ga– lan– ga era (3/4)Gan – ga A sobreposição do ¾, em cima do 6/8, é uma constante em toda a canção apresentada, o que é característico da execução instrumental da guardas de congo e Moçambique. Enquanto os tambores executam rítimo em 6 por 8, é comum os dançarinos e tocadores de gunga e patangome desenvolveram sua performance em 3 por 4. 4.1.6 – A relação entre procedimento de abordagem e tipo de material abordado Certamente existem inúmeras variantes das cinco formas de abordagens apresentadas que passam pelas possibilidades do processo do fazer artístico e principalmente pelo tipo de material abordado naquela arte. É necessário considerar que um mesmo artista em duas gravações, usando de um mesmo procedimento, como por exemplo, a colagem, pode abordar de maneira muito intensa o congado em uma e em outra menos intensa. A principal razão disso é o material abordado e a capacidade que esse material tem de remeter o ouvinte ao universo congadeiro; por exemplo, uma melodia e uma letra recortada e colada têm maior capacidade de nos remeter de imediato à fonte de onde vieram, mais facilmente que apenas a colagem de um instrumento percussivo. Esse conceito de capacidade de remeter a algo é relativo às experiências sensoriais do ouvinte. A essa facilidade, estabeleço o termo de capacidade de remeter, ou seja, a capacidade que o tipo de material abordado tem de fazer o ouvido que experimentou o congado reconhecer ali a presença congadeira. Considerando que os materiais melódicos e de letra tem mais capacidade de remeter que a harmonia, assim como o timbre instrumental tem mais capacidade de remeter que a célula rítmica em si, levantamos além dos cinco procedimentos de abordagem do congado, os possíveis materiais abordados. Esses materiais, em ordem de maior capacidade de remeter para o menor são: 38 Letra > melodia > timbre > harmonia > rítimo. Ao mesmo tempo em que os materiais podem ser enumerados em ordem da sua capacidade de remeter, os próprios procedimentos também, e essa ordem seria: Adaptação > colagem > citação > plágio > elaboração. Assim podemos propor, para análise, o gráfico com o qual usaremos nas análises do material levantado: adaptação colagem citação plágio elaboração procedimento \ material Rítimo timbre harmonia melodia Letra A metodologia para uso do gráfico passa pela argüição sobre a existência dos diferentes procedimentos de abordagem sobre os diferentes materiais em determinada gravação. No eixo X encontramos os materiais musicais sujeitos à abordagem postos em ordem crescente segundo a capacidade de reconhecimento. No eixo Y encontram-se os procedimentos de abordagem igualmente ordenados. Os quadros resultantes da combinação dos itens do eixo X com os do eixo Y são preenchido com a cor preta à medida que a resposta da argüição sobre se há abordagem de determinado material (X) através determinado procedimento (Y) é positiva. A resposta sempre é sim ou não, no caso de sim, colore-se o quadro resultante da combinação de preto. Por exemplo, “existe procedimento de elaboração (Y) sobre algum rítimo (X) do congado na gravação ouvida?” Se 39 sim, colore-se o quadro resultante de preto, se não, deixa-se em branco. Ao final, tem-se um gráfico e a análise é de contraste visual entre quadros coloridos de preto e não coloridos deste gráfico. No quadro acima, apresentamos esse gráfico “em branco” com uma gradação de cor do vermelho para o amarelo, localizando assim o sentido e as regiões na tabela que, a priori, indicariam uma maior ou menor apropriação do congado. Quanto mais quadros coloridos encontrarmos, maior é o grau de apropriação do congado, quanto mais os quadros se localizam na parte superior-esquerda do gráfico, maior é o grau de apropriação do congado. Nesta apresentação parcial do trabalho, as análises foram feitas por mim, porém, a proposta de continuidade dessa pesquisa é a de que os parâmetros sejam revisados a partir das entrevistas com os artistas e as análises sejam realizadas coletivamente por congadeiros da grande BH, acompanhadas de constatação de sentimento de roubo ou de reverencia despertada por cada gravação musical. O objetivo da construção deste gráfico é para facilitar a visualização dos resultados das argüições sobre a apropriação do congado pelas diferentes produções dos diferentes artistas nos diferentes momentos como também possibilitar outras análises de comparação dos resultados da analise musical. Verificar se as canções que produzem sentimento de roubo nos congadeiros possuem composição gráfica próxima assim como se as que produzem sentimento de reverência também possuem. 4.2 – Levantamento Discográfico 4.2.1 – Da década de 70 até a primeira metade da década de 80. O Clube da Esquina aponta o caminho (?) No atual estágio da pesquisa não me encontro de posse de todo o material necessário para se chegar a algumas conclusões e, portanto, algumas afirmações colocadas aqui devem ser encaradas como um caminho futuro de pesquisa. Na introdução deste texto, afirmei que uma mudança na 40 metodologia do levantamento discográfico foi feita, tendo como ponto de partida temporal a década de 70 e não a década de 80 como havia sido proposto no projeto. Isso se deu pela possibilidade de que o movimento tilelê, embora contemporâneo, possa ter origem mais antiga. Afirmar que o movimento tilelê, já vinha sendo sinalizado pelo movimento musical mineiro anterior do Clube da Esquina, pode neste momento ser bastante precipitado, mas a pesquisa discográfica e a entrevista com a cantora Titane sinalizaram essa possibilidade, que deve ser investigada mais profundamente em trabalho futuro29. Fato é que no Clube da esquina havia procedimentos semelhantes com um espectro mais amplo da cultura popular mineira. Vejamos a discografia: 29 O Clube da Esquina, segundo o Dicionário Albim da Música Brasileira, foi integrado por Milton Nascimento, Lô Borges, Toninho Horta, Beto Guedes, Marcio Borges, Túlio Mourão, Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Wagner Tiso, entre outros. O movimento foi lançado em 1972, juntamente com o LP "Clube da Esquina". O LP "Clube da Esquina 2" foi lançado em 78. O nome do movimento surgiu em função da esquina das ruas Paraisópolis e Divinópolis, no bairro de Santa Teresa, em Belo Horizonte, que servia como ponto de encontro dos músicos mineiros. Segundo Thais dos Guimarães Alvim Nunes, a identidade musical do clube da esquina passa por procedimentos composicionais (não confundir com os procedimentos de abordagem do congado que fixamos) que são: utilização de música incidental; repetição de material melódico; variedade na utilização da fórmula de compasso, em músicas diferentes e em uma mesma música; quadraturas assimétricas; música instrumental; regionalismo; latinidade; religiosidade; rock; jazz; vocais; arranjos com seções bem definidas; tratamento timbrístico e a música brasileira de décadas anteriores. Ela ainda afirma que “A mistura das características apresentadas é decorrente da presença constante dos músicos e compositores envolvidos no grupo. Eles atuam, a todo o momento, não só no seu instrumento principal, mas também na percussão, vocais e outros, fazendo com que o amálgama resultante desta produção seja particular... Violão, guitarra, viola caipira, órgão, piano, baixo, bateria, voz, vocais, percussão, orquestra criam cores e combinações que, somadas a superposições instrumentais, resultam em uma grande densidade sonora misturando o tradicional com o moderno, o rural com o urbano, o local com o global”... Na discografia Tilelê estudada, percebemos, pelo menos empiricamente considerando a sensibilidade do ouvido analítico, que as músicas caracterizam-se por manter todos estes procedimentos do clube da esquina, fragmentados em maior ou menor grau de artista para artista; associados aos procedimentos de abordagem do congado já elencados, usado em menor grau pos compositores do clube da esquina. Ainda sobre os elementos do Clube da Esquina, podemos afirmar que de modo especial a repetição de material melódico, presença de arranjos vocais; arranjos com seções bem definidas; tratamento timbrístico aumentando as experimentações tanto vocais como instrumentais (como que por herança do grupo UAKIT, que intensamente se relacionou com o clube da esquina e seu principal representante Milton Nascimento) se mantêm. A discografia tilelê estudada demonstra também uma ampliação dos procedimentos de utilização de música incidental, sendo essa música muitas vezes trecho de músicas da cultura popular; presença de religiosidade em especial a devoção a Nossa Senhora do Rosário e outros santos homenageados pelo congado, religiosidade afro com olhar especial à Umbanda e Candomblé Angola que, por origem étnica nos povos banta, se relacionam com o Congado; e regionalismo. Tudo isso, se soma ao culto ao negro, em especial às nacionalidades banto. A densidade sonora que resulta da mistura do tradicional com o moderno, do rural com o urbano, do local com o global presente no clube da esquina, neste momento se soma aos tambores e à percussão, às experimentações tímbricas e uma ampliação da rítmica e dos temas melódicos de origem direta ou indireta no congado. Outro elemento interessante que se percebe intuitivamente é a presença de cadência harmônica típica do Clube da Esquina. Toda essa discussão, porém, deverá ser mais bem estudada em trabalho posterior para que melhor possamos fazer afirmações. 41 Em 1976, Milton Nascimento grava Cálix Bento, adaptação de Tavinho Moura, e Promessas do Sol, dele com o Grupo Água, onde acontece a citação de timbre instrumental, a saber, os tambores, no disco Gerais: adaptação colagem citação plágio elaboração procedimento \ material rítimo timbre harmonia melodia Letra Em 1978 Tavinho Moura lança o disco Como Vai Minha Aldeia, com adaptação em Cálix Bento, registrada em seu nome. Em 1978, Milton Nascimento, Juntamente com o Clube da Esquina, lança o disco Clube da Esquina 2, onde ele grava as músicas O Que Foi Feito de Vera, que possui tambores (citação tímbrica) com um toque que, empiricamente falando, é uma elaboração de um toque das guardas de Moçambique chamado Serra Acima incluindo a variação de três para dois tempos. 42 Adaptação colagem citação plágio elaboração procedimento \ material rítimo timbre Em harmonia melodia 1980 Milton Letra Nascimento lança Sentinela, onde apresenta uma vinheta de Peixinhos do Mar registrada como domínio público, sendo uma cantiga original da guarda de marujos do norte do Estado. adaptação colagem citação plágio elaboração procedimento \ material rítimo timbre harmonia melodia Letra Em 1980, Tavinho Moura lança o disco Tavinho Moura, onde faz adaptação de Peixinhos do Mar e elaboração em peixe vivo. 43 Em 1987, no disco Yauretê, na faixa Planeta Blue, como na faixa Dança dos Meninos, aparece citação e elaboração posterior do ritmo da Guarda de Moçambique Serra Acima. Há citação tímbrica também ao realizar esse rítimo nos tambores. adaptação colagem citação plágio elaboração procedimento \ material rítimo timbre harmonia melodia Letra Em 1997, Milton Nascimento lança o disco Nascimento, marco do movimento tilelê, onde aparece a faixa Louva a Deus, que é uma adaptação rítmica e tímbrica de um toque da guarda de congo, também conhecido como Louva a Deus, aparece também os procedimentos de elaboração nos materiais de letra, melodia e harmonia. adaptação colagem citação plágio elaboração procedimento \ material rítimo timbre harmonia melodia Letra 44 Neste mesmo disco, aparece a música Os Tambores de Minas onde ele faz uma citação instrumental, uma elaboração na letra, melodia e nome da música, e plágio da frase rítmica dos tambores, a partir do toque de Louva a Deus. Em 2003, totalmente incorporado à estética sonora tilelê, lança Pietá, onde aparece elaboração de letra e melodia e citação de instrumento e de frase instrumental em A Casa Aberta de Flávio Henrique e Chico Amaral. A canção Pietá de Chico Amaral do toque de serra acima em tambores e elaboração melódica. Aparece adaptação em Beira Mar Novo de Frei Chico e Lira Marques. Há também a faixa de Boa Noite de Chico Amaral e Milton Nascimento, onde há citação dos tambores do candombe e elaboração. 4.2.2 – A Discografia Tilelê “Me disseram que ia ter batucada no gueto Eu fui correndo pra lá Mas avise a todo mundo que hoje tem congado Hoje tem folia E na rua do Rosário dos Pretos o numero? Não sei, sei lá A rua inteira está em festa tá legal à beça E não tem hora pra acabar A guarda inteira já está posicionada Só tá esperando o capitão dar a chamada 45 A batucada é isso ai quem quiser pode chegar Da qui a pouco tá rolando o cuna tatá” Alexandre Cardoso/ Mestre Negativo (Berimbrown) Chegamos ao nosso objeto de pesquisa. Os artistas com discografia selecionada foram escolhidos devido à acessibilidade à sua obra e empírico reconhecimento como integrantes do movimento tilelê: Em 1981, Maurício Tizumba lança o disco Marasmo, com a faixa Lembrança do Cativeiro, onde ocorre a elaboração sobre letra, usando tema recorrente no congado. Em 1986, Titane lançou o disco Titane, onde Enredo de Fé de Sávio Henrique aparece com colagem sobre todos os materiais, por gravação da Guarda de Moçambique de N. Senhora do Rosário de Oliveira como parte estrutural de faixa. Há também elaboração sobre rítimo quando o violão toca em rítimo de serra - abaixo, a melodia apresenta-se com trechos onde há elaboração. Acordes vocais típicos do congado também aparecem, sendo uma elaboração da harmonia. A letra evoca elementos congadeiros como o próprio congo e ancestralidade sendo uma elaboração sobre letra. 46 adaptação colagem citação plágio elaboração procedimento \ material rítimo timbre harmonia melodia letra Em 1991, Maurício Tizumba lança o disco Caras e Caretas, onde faz citação instrumental e elaboração sobre melodia e letra em Viva Zumbi. Em 1996, Tizumba lança o disco África Gerais, onde há caso de Plágio em Balainho de Fulo, devido à existência no congado de cantigas com mesmo desenho melódico e letras com frases muito semelhantes. Brasil 500, Sá Rainha e Grande Anganga Muquiche são faixas com grande representatividade de elaboração com forte presença de citação melódica, de elementos figurativos como rainha, Anganga Muquiche, gunga, instrumental devido aos tambores e patangome além de rítimo e fraseados musicais. Há ainda adaptação em tali-laai-lai-lê e cantos de Moçambique Em 1997, Titane lança o disco Inseto Raro, onde inicia com uma faixa cheia de citações e adaptações. A faixa Tirana Rosa, apresenta uma adaptação feita por Frei Chico e Lira Marques, não sobre o congado, mas sobre a 47 cultura popular do vale do Jequitinhonha, e termina com adaptação que iniciou. Não conseguimos acessar o ano de lançamento do disco Tambolelê, é o disco de lançamento do grupo Tambolelê e de Sérgio Pererê. Neste disco encontramos citação, adaptação e principalmente elaboração. Em 2004, o grupo lançou o disco Kianda. No disco encontramos citação de elementos somados à elaboração de outros em praticamente todas as músicas, mas com especial atenção para a música É de lei e é de vera. Em 2008, o grupo juntamente com Sérgio Pererê lançou o disco lambidumba, onde ocorre a elaboração em N’Ganga Zambi. Em 2000, Titane lança o disco Sá Rainha, onde aparece a música de Maurício Tizumba Sá Rainha, que nos cabe como elaboração. Vemos na capa do disco a citação do tambor. Em 2000, Marina Machado lança o disco Aos Olhos de Guignard, onde grava Casa Aberta de Flávio Henrique, que passa pelo procedimento de elaboração e citação. Em 2000 o grupo Berimbrown lança o disco Berimbrown onde ocorre os procedimentos de citação, elaboração, plágio ou adaptação em todas as faixas, misturadas ao som Black-soul. Não dá para não observar a faixa Batuque no gueto, que funciona, na sua letra, como um hino do movimento tilelê. 48 Em 2001, Sérgio Santos lança o disco Áfrico. Neste disco, os procedimentos de abordagem do congado se fazem presente em diversos níveis. O plágio, e a citação aparece em todos as faixas através dos elementos instrumentais e sua performance. A elaboração está em todas as músicas, indo para além dos limites do congado em relação ao universo afro-brasileiro. Em 2003, Tizumba lança Mozambique, onde há adaptação em Canto de Moçambique 1, canto de Moçambique 2 e Vinheta Gunga; plágio em Devagar com o Andor, Terra de Montanha e Povo Bom; citação em Menina Mineira e Casa Aberta e elaboração nas demais faixas. Em 2003, o grupo Berimbrown lança o disco Aglomerado, onde a elaboração aparece mais que no disco lançado em 2000 comparado com outros procedimentos. Ocorre a citação de termos típicos. Em 2003, Marina Machado lança o disco 6 horas da tarde, onde ocorre a elaboração em Carro aos bois de Flávio Henrique. Em 2004, O grupo Tambor Mineiro lançou o disco Tambor mineiro, com 11 faixas, sendo destas 11, 9 faixas adaptação. Grande Anganga Muquiche 49 como plágio de Maurício Tizumba e Citação de letra, melodia, instrumento e toque de instrumento em Congo Evém. Em 2004, Anthônio lançou o disco Candombe System onde há citação de elementos do congado em Pode Ser e Candombe, dele, Renato Saldanha e Chico Amaral; Eu Vou Para o Rosário (que aparece como adaptação). Além de existir citação e elaboração no título do disco. Em 2008, O grupo Tambor Mineiro lançou o disco Rosário Embolado com 11 faixas. Destas, 2 são adaptação, a saber, Uma Reza, Um Lamento e 1888; 1 plágio, a saber, Campanha em Campanha. Nas demais faixas existem citação e elaboração em graus diferenciados. 5- Próximos Passos da Pesquisa: Os próximos passos desta pesquisa consistem em: 1- Concluir o levantamento discográfico dos artistas que compõe o movimento tilelê e finalizar a construção de um catálogo. 2- Realizar entrevistas com outros artistas que compõe o movimento, que temos as discografias estudadas com fins de refinar os conceitos de procedimentos de abordagem, material musical de abordagem e capacidade de remeter, para melhor definir o funcionamento do gráfico proposto. 3- Realizar entrevistas com membros das comunidades congadeiras com a finalidade de que as análises do material gravado sejam feitas por eles, considerando que este é um critério mais seguro para a construção dos gráficos. Buscar localizar nestas entrevistas os sentimentos de roubo ou não do patrimônio. Verificar se as gravações que geram sentimento de roubo possuem mesmo perfil de gráfico, assim como também as que geram sentimentos opostos e diferentes. 50 4- Elaborar novo projeto de pesquisa para investigar as relações histórico-musicais entre o clube da esquina e o movimento tilelê 5- Elaborar novo projeto de pesquisa para investigar as características musicais e gerais, do ponto de vista etnomusicológico, que definem o movimento tilelê e seu público. 6- Bibliografia: CARVALHO, José Jorge. Metamorfoses das tradições afro-brasileiras: de patrimônio cultural a indústria de entretenimento. Série Antropológica 354, UNB, 2004. CARVALHO, José Jorge. O lugar da Cultura Tradicional na Sociedade Moderna, UNB, 1989. CARVALHO, José Jorge. Transformações da Sensibilidade Musical Contemporânea, Série Antropologia 266, UNB, 1999. CARVALHO, José Jorge. As Duas Faces da Tradição. O Clássico e o Popular na Modernidade Latino Americana, Série Antropológica 109, UNB, 1991. 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Texto apresentado no I Encontro de Estudos da Música Popular, realizado em outubro de 2006 na Escola de Música da UFMG. LUCAS, Glaura. Chor’ingoma! Os instrumentos sagrados no congado dos Arturos e do Jatobá. Música Hoje. Belo Horizonte: Depto TGM/EMUFMG, 2000. MEDÁGLIA, Júlio. O Balanço da bossa nova. In: CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1978. NUNES, Thais dos Guimarães Alvim. A Sonoridade Específica do Clube da Esquina. Instituto de artes UNICAMP. ROLNIK, Suely. Subjetividade antropofágica, do livro Subjetividade e política no contemporâneo, org. De MACHADO, Leila. Casa do Psicólogo, São Paulo. 2002. SANDRONI, Carlos. Mudanças de padrão rítmico no samba carioca, 19171937. Revista Transcultural de Música, SIBE Sociedad de Etnomusicología SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. ... . SANDRONI, Carlos. Propriedade intelectual e música de tradição oral. www.fluxosmusicais.com/index.php?author=6 52 TATIT, Luiz. 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