Retrospectiva Histórica do Cartaz
Historical background of the poster
Fábio Simões Grossi
Professor Doutor em Comunicação e Poéticas Visuais pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, FAAC,
da Universidade Estadual Paulista, Unesp, câmpus de Bauru, Bauru, SP.
Resumo
O nascimento do cartaz ocorreu no século XIX. Antes dele já existiam vários elementos que contribuíram para
sua estruturação. Seu precursor foi o anúncio que, tanto podia estar contido em outra mídia como o jornal ou a
revista, como podia ser afixado em um painel ou na parede. Além de ser uma peça isolada, as qualidades básicas
que diferenciaram o cartaz do anúncio foram: a dimensão, que no cartaz era bem maior que no anúncio, e o uso
da imagem predominando cada vez mais sobre o texto, no reconhecimento gradual de suas qualidades intrínsecas.
O cartaz, como possibilidade de uma peça gráfica completa, agregando signos verbais e visuais, texto e imagem, só
se verifica quando os processos de impressão permitem a reprodução de imagens de uma maneira ágil, com todas
as cores e tons das pinturas mais realistas, o que este artigo pretende apresentar.
Palavras-Chave: Cartaz; Peça Gráfica; Signos Verbais; Texto; Imagem; Reprodução
Abstract
The birth of the poster occurred in the nineteenth century. Before him there were already several elements that
contributed to its structure. Its precursor was the announcement that both could be contained in other media such
as newspaper or magazine, how could be displayed in a panel or wall. Apart from being an isolated piece, the basic
qualities that differentiated the ad poster were: size, that the poster was much higher than in the ad, and the use of
the image increasingly predominating over the text, the gradual recognition of their intrinsic qualities . The poster,
as the possibility of a complete graphic piece, adding verbal and visual, text and image signs, only where printing
processes allow the reproduction of images in an agile way, with all the colors and shades of the most realistic paintings, what this article intends to present.
Keywords: Poster; Graphic Piece; Verbal Signs; Text; Image; Reproduction
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O
uso de imagens como forma de comunicação já é muito antigo, o homem primitivo deixou registrada a sua existência
através de pinturas rupestres em alguns artefatos, e demorou muito tempo para que conseguisse desenvolver a escrita, em
geral a partir de sinais com predominância icônica. Os hieróglifos - escrita encontrada nas ruínas do antigo Egito - fazem
parte de um destes sistemas de escrita, onde se pode notar um grande número de elementos icônicos. Na figura abaixo, vemos como os
ideogramas da escrita hieroglífica são usados para representar palavras e conceitos.
Figura 1 - Ideogramas usados nos hieróglifos
Figura 2 - Pirâmide da 5ª dinastia é a do
faraó Unas, em Saqqara
Abaixo a transcrição do hino de devoção a Amon retirada do site www.mstoriadohvroxom.br/hierog/hierog.htm
“Tu, oh Amon, és o senhor do silêncio. Que acodes ao chamado do pobre. Quando, em minha aflição, chamo por ti, Tu vens para salvar-me.
Dá, pois, alento a quem se prostra diante de ti. E não deixes que eu caia em escravidão.”
Segundo informações recolhidas nesse mesmo site:
“A escrita hieroglífica utilizava imagens para representar objetos concretos e, para representar ideias abstratas, empregava o princípio do
rébus, que consistia em decompor as palavras em sons e representar cada som por uma imagem. Como essas imagens eram frequentemente
mal interpretadas, já que o mesmo som era utilizado em várias palavras, foram introduzidos mais dois sinais, sendo um para indicar como
elas deveriam ser lidas e outro para lhes dar um sentido geral. Os hieróglifos eram escritos em vários sentidos, da esquerda para a direita,
da direita para a esquerda ou mesmo de cima para baixo. A colocação das palavras, do ponto de vista gramatical, era sequencial, primeiro
o verbo, seguido pelo sujeito e pelos objetos direto e indireto”.
Mesmo depois da invenção da escrita silábica, até o início das sociedades urbanas, a grande maioria da população era de
analfabetos, e a imagem constituía um modo fundamental de expressar ideias e ações. As grandes pinturas em afresco usadas pela igreja são a referência mais precisa desta condição.
Embora o analfabetismo das camadas pobres das populações se perpetuasse por muitos séculos, a produção escrita ia, passo
a passo, alcançando projeção destacada entre os governantes civis e religiosos. Do papiro, 300 anos a.C., à invenção do papel, 105 d.C., o pergaminho de pele de ovelha, considerado o mais resistente suporte dos três, foi o responsável pela grande
quantidade de informação que se pôde acumular.
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A publicação de livros, o bem mais precioso da civilização, era algo demorado e complicado. Feitos à mão, um a um, por uma equipe de
caprichosos copistas e ilustradores, que se concentraram principalmente nos mosteiros, dedicando-se a essa tarefa de forma diligente
e esmerada.
Os manuscritos iluminados e com iniciais ricas de desenhos cobridos eram muito solicitados, principalmente pela nobreza da época.
Logo que findou o feudalismo, essas solicitações se estenderam a quase todas as classes sociais, e já não só os monges, mas também os leigos
trabalhavam na reprodução dos textos, cada vez mais procurados.
Escritos totalmente a mão, por mais que fossem copiados e recopiados, eram insuficientes como produção. A maior procura elevava seu
preço cada vez mais e a multiplicidade dos pedidos faziam-nos perderem qualidade e beleza e tomavam-se mais escassos. A pressa com que
eram feitos foi tomando a escrita pouco legível, as abreviações se multiplicavam a ponto de tomar o texto, por vezes, dificilmente compreensível. O desejo de produzir depressa e aumentar os lucros eram as principais causas. (RIBEIRO, 1993, P-43).
As características que nos interessa ressaltar em relação à citação são:
1ª As publicações do período feudal eram ricamente ilustradas, com iniciais adornadas por iluminuras coloridas, bem diferentes do que
notaríamos nos trabalhos impressos em xilogravura, alguns séculos mais tarde.
2ª Há um progressivo aumento da demanda que força a procura por meios de produção mais eficientes. Durante algum tempo, a substituição do texto escrito pelo impresso foi finalizada por ilustradores e gravadores, que procuravam dar um fino acabamento à peça.
Figura 3 - O monge copista
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Figura 4 - Página de um
manuscrito medieval
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Com o advento da imprensa em 1455, a possibilidade de reprodução gráfica se restringia a uma página de texto ou à reprodução de
pequenas imagens entalhadas na madeira (xilogravura). A primeira peça gráfica, usando meios mecânicos de produção, foi a Bíblia de
42 linhas impressa por Gutenberg.
As imagens contidas em peças gráficas - anúncios, livros e folhetos - eram encomendadas a artistas gravadores apenas com o intuito de
adornar. As ilustrações eram trabalhos minuciosos, que requeriam grande habilidade e tempo, verdadeiras obras de arte inseridas nas
peças mencionadas.
As belíssimas lâminas produzidas pelo artista francês Gustave Doré (1832-1883), xilogravuras raiadas em finas linhas de textura que
possibilitavam a sensação visual das várias tonalidades da imagem, são alguns exemplos de possibilidade de reprodução gráfica conhecidos desde o século XVIII.
Na verdade, a técnica mais rudimentar da xilografia já era conhecida na China no século IX e na Europa no século XV.
Figura 5 - Xilogravura de Gustave Doré / A Divina Comédia
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Figura 6 - Exemplo de xilogravura de fio
A xilogravura é uma técnica de impressão que consiste em entalhar uma chapa de madeira com goiva, formão, faca ou
buril, formando um desenho. A chapa (matriz) é entintada com rolo de couro ou borracha, que só toca a superfície onde
a madeira não foi desbastada. A tinta é transferida para o papel por pressão mecânica aplicada no verso da folha; os
brancos do desenho correspondem aos sulcos produzidos na madeira.
Existem duas técnicas conhecidas de xilogravura. Gravura de fio (Figura 6), cujo plano de impressão é paralelo aos
veios da madeira e esta é sulcada com uma goiva - ferramenta cortante munida de cabo - produzindo grandes brancos
contrastantes; ou a gravura de topo, cujo plano é perpendicular aos veios da madeira, geralmente trabalhada com buril ferramenta usada para afundar as fibras da superfície da madeira por pressão - resultando áreas brancas com finas linhas,
de contornos bem definidos e expressão delicada. As xilogravuras produzidas por Doré são do segundo tipo (Figura 5).
O que vemos, ao nos aproximarmos de gravuras produzidas até o final do século XVIII, é uma representação feita com
linhas e planos em preto e branco, muito diferente da representação usada na pintura, onde artistas como Jan Van Eyck
(Figura 7) ainda no século XV, produziam imagens ricas em detalhes de uma impressionante verossimilhança.
Em algumas pinturas do século XIX, como os exemplos de Ingres Figura 8, a imagem é quase fotográfica, porém a técnica
dessas pinturas não era usada na confecção de cartazes. A reprodução e uso deste tipo de imagem só foram possíveis
com a invenção da fotografia colorida e o desenvolvimento do processo de reprodução em meio-tom usado no Off-Set.
As imagens de um cartaz não devem ser lidas da mesma forma que uma obra de arte, “... a arte não se reduz a um sistema
de significações...” , ao passo que um cartaz é estruturado com o objetivo básico de passar significados, e é dessa forma,
a partir de meados do século XIX, que o cartaz passou a ser concebido.
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Figura 7 - O casal Amolfini
Figura 8 - Pinturas de Jean Auguste Dominique
Ingres (1780-1867)
O cartaz como suporte de informações diversas existe há um tempo muito maior do que o proposto por esta pesquisa. Pintados à mão
ou produzidos segundo alguma técnica de impressão em relevo, como a tipografia e a gravura em metal, tinham características vagamente definidas. Dimensões, formatos, objetivos, razão das imagens, todas estas questões eram menos importantes do que seu objetivo
de divulgar informações.
A palavra cartaz deriva do grego Khártês, pelo ar24 (e do árabe qirtãs, folha de papel). A razão desta designação é o fato de anúncios
serem escritos em papéis de grandes dimensões e afixados ao ar livre para serem vistos por todos que passassem por ele. Não se usa o
termo cartaz na língua inglesa, onde a referida peça gráfica é denominada poster; em português ela é tomada por empréstimo e dicionarizada como pôster. Nos países de língua inglesa é diferenciado por categorias - pôster decorativo, pôster publicitário, etc. No Brasil
o pôster ficou sendo mais conhecido para designar as grandes reproduções fotográficas de personalidades ou de quadros decorativos.
O termo “poster” foi usado originalmente em 1838 na Inglaterra para se referir à consulta de uma folha de papel impressa composta de
texto e ilustração combinados.
O nascimento do cartaz ocorreu no século XIX. Antes dele já existiam vários elementos que contribuíram para sua estruturação. Seu
precursor foi o anúncio que, tanto podia estar contido em outra mídia como o jornal ou a revista, como podia ser afixado em um painel
ou na parede. Além de ser uma peça isolada, as qualidades básicas que diferenciaram o cartaz do anúncio foram: a dimensão, que no
cartaz era bem maior que no anúncio, e o uso da imagem predominando cada vez mais sobre o texto, no reconhecimento gradual de
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suas qualidades intrínsecas.
O cartaz, como possibilidade de uma peça gráfica completa, agregando signos verbais e visuais, texto e imagem, só se verifica quando os
processos de impressão permitem a reprodução de imagens de uma maneira ágil, com todas as cores e tons das pinturas mais realistas.
Processo litográfico
Figura 9 - Desenho à carvão oleoso sobre pedra porosa - A pedra é umedecida - Uma fina camada de
tinta é aplicada com um rolo - Uma folha de papel é pressionada contra a pedra com um rolo limpo A tinta se transfere para o papel numa imagem invertida.
Em 1796, Alois Senefelder desenvolve um processo de impressão em pedra que ficou conhecido com o nome de litogravura, processo
esse que possibilitou o uso de seu princípio no moderno sistema de impressão Off-Set. Seu objetivo era o de encontrar um meio mais
barato para imprimir seus livros. Consiste na aplicação de uma tinta de base gordurosa sobre a pedra porosa.
Inicialmente se produz um desenho, ou texto, sobre a pedra com um carvão gorduroso, em seguida a pedra é umedecida com água e
finalmente toda superfície recebe uma fina camada de tinta.
Como o óleo e a água não se misturam, os poros da pedra que não receberam o carvão estarão encharcados e, portanto, ao ser entintada
a pedra, a tinta gordurosa não se fixa nas áreas com água, aderindo apenas nos pontos onde foi feito o desenho a carvão. Sobre a pedra
entintada é pressionada uma folha de papel e a tinta se transfere para ela.
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Figura 10 - Ícone gráfico de Jules Chéret - 1895 e
Cores de impressão usadas atualmente
Como se pode observar na Figura 9, a imagem impressa sofre uma inversão horizontal em relação à imagem desenhada na pedra. Por
se tratar de uma impressão direta, o texto tinha que ser escrito invertido com carvão gorduroso sobre a pedra, o que não era nada fácil.
Porém, sua invenção se mostrou muito eficiente na produção de imagens coloridas, onde o processo se repete para cada cor que se
queira imprimir.
Antes de Jules Chéret desenvolver, na década de 1860, a técnica de se misturar cores sobrepondo-as no papel, o processo de impressão
colorida usava um número muito grande de matrizes. Alguns artistas chegaram a usar quinze matrizes para um único trabalho.
Usando a técnica de Chéret, se o artista quisesse produzir um trabalho a cores, bastava sobrepor as impressões sucessivamente sobre
um papel. Como as camadas de tinta eram muito finas, no resultado final se podia ver um número muito maior de cores misturadas. As
cores usadas por Chéret eram próximas, mas bem diferentes das usadas atualmente para reprodução em quadricromia. Ele usava um
amarelo suave, vermelho vivo, azul e eventualmente o preto.
Podemos ver acima o resultado das cores sobrepostas, seu resultado é surpreendente e muito econômico, o que levou vários artistas a
adotá-lo.
Apesar de parecer um processo de execução bastante simples, a litografia apresenta várias dificuldades:
O minério específico não é encontrado com facilidade em qualquer lugar. A pedra litográfica é porosa e de granulação muito fina. Alguns países tinham que importar este material, volumoso, pesado e, portanto, caro.
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Figura 11 - Pedras de impressão litográfica.
Matrizes muito grandes são pesadas e difíceis de manipular, algumas peças produzidas no século XIX chegavam a ter 2,50 m de altura
e algumas centenas de quilos.
O registro de quatro cores sobrepostas tinha que ser meticulosamente executado, para que o trabalho final apresentasse um resultado
razoável. Não devemos nos esquecer que o processo era totalmente manual, e todos esses inconvenientes transformavam um processo
aparentemente simples em algo moroso e restrito, por isso mesmo, em muitas ocasiões, os cartazes produzidos para a propaganda política da vanguarda russa foram produzidos com a técnica do molde vazado.
Em relação a essa técnica faremos algumas considerações mais adiante, ainda neste artigo.
A influência da fotografia na linguagem do cartaz
Em Paris, o século XIX é marcado pela eufórica “descoberta” da imagem fotográfica. O daguerreótipo e o colótipo mantiveram acirradas disputas para serem aceitos como formas de arte. Controvérsias que chegaram aos tribunais para garantir à fotografia os mesmos
direitos de autoria que eram dados à pintura. Tal relevância acaba provocando um intercâmbio de valores estéticos, o qual não podemos
nos furtar de avaliar.
Da mesma forma que no início do século os padrões fotográficos se aproximavam de características inerentes à pintura, pelas razões
claramente apontadas no texto de Annateresa Fabris — “Os longos tempos de exposição e a conseqüente necessidade de imobilidade do
modelo faziam com que a fotografia tivesse que restringir o alcance de suas possibilidades de registro, conformando-se, a princípio, a composições já consolidadas no imaginário artístico da saciedade oitocentista.” - na segunda metade do século, já se pode notar o caminho
inverso. A popularização do recurso fotográfico e o constante uso da câmara, como auxílio no desenho das proporções e da perspectiva,
propiciaram uma visão de recorte, mais espontânea e natural do que as composições idealizadas pelos pintores de períodos anteriores.
Naturalmente, o uso de câmaras portáteis, filmes com tempo de exposição mais curto e as fotografias de flagrantes instantâneos, despojadas do intuito artístico, acabaram consolidando uma perspectiva realista, tanto em relação aos temas como em relação à expressão
e gestualidade.
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No período entre 1870 e 1900, podemos notar que pintores como Degas. Renoir, Cézanne, Van Gogh, Toulouse Lautrec, Corot e outros
modificam as características da composição, incrementam as experiências com a iluminação e a forma de representar o movimento,
aproximando-se da linguagem fotográfica.
Aos estudos da óptica fotográfica acrescentam-se as pesquisas da cor, dos pigmentos, da refração, da decomposição e da síntese dos
raios luminosos, estimulando artistas em constantes experiências que refletissem a essência daquelas descobertas. Sensíveis modificações são introduzidas na pintura, considerando-se a cor dos reflexos, os efeitos atmosféricos nos vários períodos do dia e a luminosidade ambiente nas áreas de sombra.
Figura 12 – Claude Monet, Impression, Soleil Levant, 1874
Todas estas mudanças implicam na hipótese de que cada descoberta ou cada inovação conceituai inserida na pintura seria intensamente compartilhada e discutida pelos artistas. Logicamente, um comprometimento corporativo também facilitaria a aceitação
dos novos conceitos por parte da crítica e donos de galerias, pouco propensos à aceitação de transformações tão abruptas.
Para os artistas, entretanto, os cartazes publicitários não compartilhavam das mesmas regras. Era um novo meio para ser explorado sem elementos de comparação com formas anteriores. A tipografia não fazia sombra para a litografia, porque suas funções
e resultados eram muito distintos.
Embora apenas alguns artistas tivessem se envolvido com a arte litográfica, pois a maioria dos litógrafos provinha de artesãos gráficos, somente aqueles que enfrentaram as mudanças conceituais da pintura tiveram a percepção de que o novo meio não deveria
reproduzir uma linguagem estereotipada, como a que ocorrera com as primeiras fotografias.
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A descoberta da cor e da luz no Impressionismo
Simultaneamente aos avanços da fotografia e suas influências, outras descobertas da ciência agitavam o meio artístico.
As experiências com a cor e a luz, que se iniciaram com o inglês Isaac Newton em 1666, já eram bastante conhecidas. Muito antes de
chegarmos à segunda metade do século XIX, em 1815, a Europa fervilhava com acaloradas discussões científicas a respeito da luz. A
teoria corpuscular de Newton era derrubada por uma nova versão da teoria ondulatória Huygens.
Contemporâneo de Newton, Huygens não conseguiu provar sua teoria, porque esta conflitava com a ondulatória do som. A questão era
simples. Se a luz se propagava em forma de ondas, por que não dobrava esquinas como o som?
Thomas Young e A. J. Fresnel conseguiram estabelecer conceitos coerentes, que permitiram a compreensão do problema. Sua formulação é bastante complexa, não cabendo avaliá-la neste projeto senão como registro histórico.
Entre 1801 e 1803, Thomas Young (1773-1829) propôs o princípio da superposição e com ele explicou o fenômeno de interferência em filmes
finos. Devido ao peso científico de Newton e suas idéias sobre a teoria corpuscular, Young foi bastante criticado pela comunidade científica
inglesa devido a estes trabalhos. Desconhecendo os avanços realizados por Young, já que a difusão de conhecimentos era extremamente lenta naquela época, Augustin Jean Fresnel (1788- 1827) propôs, 13 anos mais tarde, uma formulação matemática dos princípios de Huygens
e da interferência. Na sua concepção, a propagação de uma onda primaria era vista como uma sucessão de ondas esféricas secundárias que
interferiam para refazer a onda primária num instante subseqüente. Esta proposição, chamada deprincípio de Huygens-Fresnel, também
recebeu muitas críticas da comunidade científica francesa, principalmente por parte de Laplace e Biot. Entretanto, do ponto de vista matemático, a teoria de Fresnel explicava uma série de fenômenos, tais como os padrões de difração produzidos por vários tipos de obstáculos e
a propagação retilínea em meios isotrópicos, que era a principal objeção que Newton fazia à teoria ondulatória na época.
Uma longa explanação sobre os princípios de física ótica, com diagramas e ilustrações sobre os conceitos de Young/Fresnel, pode ser
encontrada no endereço: http://www.andres.host.sk/www/difracao/diffraction.html (acesso em 25/03/2003)
Em 1845, Faraday apresenta sua teoria eletromagnética da luz. Apenas 30 anos haviam passado. Mas uma grande influência destas
descobertas pode ser sentida na modificação conceituai da arte logo após este período.
“Lo que sabemos o lo que creemos afecta al modo en que vemos las cosas.”
Não seria exclusivamente por essa razão que os artistas franceses do movimento Impressionista passaram a produzir obras com uma
linguagem plástica tão diferente daquela produzida pelos artistas que os antecederam. Porém, as propostas de Claude Monet pareceriam
mais convincentes à luz daquelas descobertas.
Foi Claude Monet, inspirado por um ideal de transformação conceituai da arte, que iniciou uma cruzada involuntária, mas sedutoramente irrecusável. Considerado o mais lírico dos pintores impressionistas, Claude Oscar Monet, também procurava resgatar em sua
pintura os efeitos passageiros da luz e da atmosfera. Sugeriu aos outros pintores de sua época que se concentrassem no jogo de luz e cor
dos objetos que tivessem diante de si. A meta era capturar o fenômeno temporário e isto foi procurado de uma maneira sistemática, de
acordo com as leis da ótica e das relações de cores complementares.
Durante a mocidade, Monet fora contaminado pela constante variação cromática do céu e do mar na costa leste da França, próximo à
sua cidade natal, Le Havre. Ali conheceu e fez amizade com Eugene Boudin, pintor de cenas litorâneas que o encorajou na prática da
pintura. Em 1859, Monet se mudou para Paris e conheceu Camille Pissarro. Depois de deixar o serviço militar (1860 a 62), e de um breve retomo a Le Havre, regressa a Paris para se matricular no estúdio de Charles Gleyre, onde conheceu Pierre Auguste Renoir, Frederic
Bazille e Alfred Sisley. Monet viveu 86 anos, o que lhe garantiu uma considerável produção e uma infinidade de “fórmulas temáticas”.
Dizemos fórmulas temáticas, porque não eram os temas que o conduziam na sua busca. Pierre Francastel desenvolve duas definições
primorosas do impressionismo de Monet: “...já não se trata, para ele”, se referindo a Monet, “de fixar uma realidade objetiva, através de
um certo efeito, mas de fixar esse próprio efeito através da realidade; depois, renuncia à realização efetiva sobre a tela de uma espécie de
duplicado da visão do espectador.” Talvez menos objetiva, mas com certeza mais profunda, diz Francastel:
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“A pintura impressionista, longe de parecer fundada no rigor de uma técnica, é, mais do que qualquer outra, um ‘estado de alma’. Se quisermos precisar o traço fundamental da sua originalidade, pode apontar-se o fato de ela ser uma limitação voluntária dos recursos e dos efeitos
da pintura. Ninguém tinha ainda separado de um modo tão decidido as noções visuais das do tato e do conhecimento prático das coisas. A
análise de Monet não só leva, na tela, à subordinação das formas à cor, como também, no espírito, à eliminação de qualquer sensação, ou
impressão, que não seja puramente ótica.“
Figura 13 - Claude Monet, Regatas em Argenteuil, 1873- (48 x 73 cm)
É neste aspecto, de uma procura interminável, de relações da luz e da cor, que a obra de Monet pode ser vista como uma série de fases.
Por volta de 1865, se propõe a pintura ao ar livre, de marinhas a florestas, de cenas urbanas a figuras em paisagens.
No verão de 1869, Monet trabalhou ao lado de Renoir e começou a emergir como a figura principal na criação das técnicas de impressionismo ao ar livre. Ele consolidou este papel no período de 1872 a 1875 e favorece especialmente assuntos de rios com águas “banhadas
de luz” e jardins, com a forma dos objetos dissolvidos pela luz, como se fossem remendos de cor luminosa. No período de 1876 a 1877
explorou a pintura de um único assunto, uma estação de ferro Parisiense, num jogo de cor e luz. A consolidação do estilo o levou a
pintar cenas únicas por mais de uma década.
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Figura 14 - Variações da estação ferroviária de SaintLazare pintadas em 1877 por Monet.
A influência dos Impressionistas sobre os cartazistas do final do século XE pode ser claramente percebida em muitos trabalhos, além
disso, possibilitou que novas experiências fossem conduzidas com maior liberdade. Entre elas o Pontilhismo, que consistia na colocação
lado a lado de pequenos pontos de cor pura, para que a mistura se fizesse na retina do espectador como no exemplo da figura abaixo.
Figura 15 - George Seurat, Um domingo na Ilha da Grande-Jatte, 1884/86 (207 x 308 cm)
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O princípio da mistura óptica já era conhecido, a técnica de Chéret já havia conquistado muitos adeptos, mas os conceitos estéticos
por trás do Pontilhismo são a centelha do Cubismo, do Futurismo e de todos os demais movimentos posteriores ao Impressionismo.
Imbuídos de pressupostos científicos aplicados à arte, onde cada forma tem o seu lugar meticulosamente planejado e composto segundo
um método ordenado de ações, os Pós-impressionistas realizaram muito mais do que experiências sensíveis dos efeitos luminosos. A
lei dos contrastes simultâneos, a síntese da cor através da mistura ótica, a luminosidade da cor, a irradiação e a degradação do espectro
eram determinantes no resultado da experiência pictórica.
O belo não era mais uma reprodução dos aspectos fugidios da natureza. mas sim uma experiência bem sucedida do intelecto no domínio da ciência. Da fragmentação da cor, chamada a princípio de divisionismo, estavam a um passo da fragmentação da forma e a meio
caminho do não icônico.
Sem dúvida, o cartaz litográfico se beneficiou de todo esse conhecimento sobre a cor e a luz, passando a disputar seu espaço, tanto no
ambiente urbano como na cobiça dos colecionadores.
Técnicas Alternativas em Tempos Difíceis
Nem sempre as artes gráficas puderam contar com recursos de última geração na produção de imagens, ora porque os materiais eram
escassos, ora porque o processo era moroso e não conseguiria dar conta da demanda. Essa é a situação que descreve bem como se encontravam os artistas gráficos da Rússia no início do primeiro quarto do século XX. O país em reconstrução e a necessidade de uma
comunicação ágil em pontos distantes, com a finalidade de mobilizar as camadas da população em prol de uma ação unificada.
Do relato de Maiakovski, transcrito abaixo, podemos imaginar quão precária era a situação e quão criativos os recursos visuais improvisados pelos artistas gráficos daquele período.
“A tipografia não conseguia satisfazer o pedido de cartazes. E quando o conseguia era com um atraso desesperante, que fazia perder
ao cartaz o seu poder de agitação. Por exemplo, quando da guerra com os panis (senhores) polacos, devia ser impresso o cartaz ‘a
última hora’; enquanto estava a ser tirada, a Polônia passara já a segundo plano. Apareceu Wrangel e foi preciso retirar o cartaz da
tipografia para lhe acrescentar a cabeça deste barão, e esperar ainda que Wrangel fosse esmagado antes de colar o cartaz nas paredes
de Petersburgo. Só podiam imprimir-se os cartazes de propaganda que tinham significação duradoura.
O cartaz de propaganda de um dia passou inteiramente para os «artífices» que trabalhavam à mão. Estes cartazes tinham imensas
qualidades.
Logo que uma vitória era anunciada por telegrama, quarenta minutos depois estava a ser anunciada nas ruas por meio de cartazes.
Estes cartazes permitiam recrutar também russos combatentes. Ao receber os telegramas (antes que os jornais os imprimissem) o
poeta e o jornalista davam o «terma» pela sátira, pelo verso. Durante a noite, os pintores arrastavam-se pelo chão, trabalhando sobre
folhas de alguns metros, e de manhã, muitas vezes ainda antes da distribuição dos jornais, os cartazes «Janelas Rosta» estavam já
afixados nos sítios mais concorridos: «centros de agitação», estações, mercados, etc. ”
É um relato impressionante e esclarecedor. Fundamentalmente elucida a razão de duas técnicas gráficas adotadas pelos artistas da vanguarda russas: a linogravura e o estêncil de molde vazado.
A linogravura é sucintamente explicada no glossário e não cremos que necessite maiores detalhes. Cabe salientar que seu resultado gráfico é semelhante à xilogravura de lenho, onde traços grossos e grandes áreas chapadas ou de textura grossa são os resultados possíveis.
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Figura 16 - Linoleogravura de Cláudio Dickson
O exemplo da figura 16, recolhido na internet a título de ilustração, mostra bem o tipo de resultado gráfico conseguido com a linogravura, também reconhecida como linoleogravura.
Os artistas gráficos da vanguarda russa usavam os impressos pretos da onogravura como base do cartaz e posteriormente os coloriam
a mão, para torná-los mais atraentes. Muitos cartazes foram produzidos dessa forma. O preto proporcionava um bom contraste e era
trabalhado de forma a permitir um grande destaque para as formas chapadas, fazendo com que se destacassem do fundo.
Na técnica de estêncil de molde vazado, usavam uma folha impermeável e nela recortavam os desenhos e texto a serem reproduzidos
com pintura de trinchas largas. O molde permitia reproduzir inúmeras cópias semelhantes com rapidez, sem usarem de fato um processo de impressão. Embora reconheçamos grande talento e criatividade, nenhuma das duas técnicas de produção permitia a construção
de figuras detalhadas ou com boa definição.
Considerações finais
Observando a breve retrospectiva histórica do cartaz deste capítulo, pudemos perceber que as formas de representação icônicas apresentaram características muito diferentes em momentos simultâneos. As diferenças mais acentuadas estão relacionadas às técnicas de
produção. Enquanto na pintura, durante um determinado período, há uma sensível preocupação em se representar imagens verossímeis, embora idealizadas, nas técnicas de impressão, quanto maior a necessidade de um trabalho ágil, menor é o grau de iconicidade
adotado: as figuras são mais estilizadas ou pictográficas.
Outro ponto importante que podemos salientar diz respeito à influência do conhecimento e dos desenvolvimentos tecnológicos na
forma de representar. É nítido como os artistas plásticos e gráficos assimilam rapidamente as transformações culturais e as incorporam
às configurações expressivas. Não é por mero acaso que os artistas do movimento impressionista aboliram o uso do preto puro em suas
pinturas, enquanto o adotaram nos cartazes da mesma época: as invenções, as descobertas e as condições sociais são interpretadas e
transformadas em fundamentos estéticos.
Em relação à pesquisa, buscávamos compreender que fatores poderiam ter influenciado nas formas de representação dos períodos estudados. Cremos ter alcançado um razoável número de informações consistentes que, certamente, permitirão fundamentar e consolidar
as abordagens em outras instâncias.
Recebido em 13 de Fevereiro de 2014.
28
Aprovado para publicação em 21 de abril de 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2 , p. 14-28, 2013.
The Art & Times of Nikolai Buglaj
A arte e os tempos de Nikolai Buglaj
José Rodeiro
Editor do períodico Ragazine CC, artista visual do National Endowment for the Arts; Cinta Fellow e pesquisadorFulbright. Atualmente, é professor Doutor do Departamento de Artes da New Jersey City University, Jersey City, NJ,
Estados Unidos.
Abstract
When the startling idea for this unusual article first appeared, regarding writing an art historical critique on
contemporary Polish Belarusian-American, artist, Nikolai Buglaj; it was his friend Duda Penteado the Brazilian
artist, who initially and astutely suggested that it bear the provocative title: “The Art & Times of Nikolai Buglaj.”
The paradoxical and ironic nature of this title is instantly evident to anyone living in Manhattan (over the last five
decades), that has consistently attended urban art openings in and around New York City, whether attending to
see the art and meet the artist(s), or merely trolling metropolitan-area art galleries, museums, and other art exhibition venues in order to imbibe the opening receptions’ delectable refreshments. Thus if you have been a habitual
attendee of art openings from the 1960s until today, Nikolai Buglaj was/is cheekily a “person-of-interest,” one of the
usual suspects: a constant, visible, flamboyant and mercurial fixture at thousands of metropolitan-area “run-of-the-mill” humdrum art show openings, as well as thousands of dynamic, seminal, and earthshaking art openings.
Keywords: Nikolai Buglaj; Polish Belarusian-American Artist; Immigrant Art; American Art; Historical Critique
Resumo
Quando a idéia surpreendente para este artigo incomum apareceu pela primeira vez, quanto à escrever uma crítica
de história da arte contemporânea sobre o artista polonês e bielo-russo, além de americano, Nikolai Buglaj; que
era então amigo de Duda Penteado - artista brasileiro -, que, inicialmente, inclusive, sugeriu ostentar o título do
artigo de forma provocadora: “ A Arte & o Tempo de Nikolai Buglaj”. A natureza paradoxal e irônica deste título
é imediatamente evidente para qualquer um que vive em Manhattan (por mais de cinco décadas ), que tem consistentemente promovido a abertura de eventos de arte urbana ao redor da cidade de Nova Iorque. E vai querer
assistir para ver a arte e conhecer o (s) artista(s), ou simplesmente visitar galerias da área metropolitana de arte,
museus e outros locais de exposição de arte, a fim de absorver bebidas deliciosas das recepções de abertura. Assim,
se você tem sido um participante habitual de aberturas de arte da década de 1960 até hoje, Nikolai Buglaj foi e é
descaradamente uma “pessoa de interesse”, um dos suspeitos de sempre: um sujeito constante, visível, ´flamboyant´
e mercurial em milhas nos arredores da área metropolitana num “run- of-the -mill“ de arte através de mostras
e aberturas, assim como milhares de outras aberturas num espectro de arte dinâmica, seminal e surpreendente.
Palavras-chave: Nikolai Buglaj; Artista Bielo-Russo Americano-Polonês; Arte de Imigrante; Arte Americana; Crítica de História da Arte
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2 , p. 29-34, 2013.
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W
hen the startling idea for this unusual article first appeared, regarding writing an art historical critique on contemporary Polish Belarusian-American, artist, Nikolai Buglaj; it was his friend Duda Penteado the Brazilian artist, who
initially and astutely suggested that it bear the provocative title: “The Art & Times of Nikolai Buglaj.”
The parado-
xical and ironic nature of this title is instantly evident to anyone living in Manhattan (over the last five decades), that has consistently
attended urban art openings in and around New York City, whether attending to see the art and meet the artist(s), or merely trolling
metropolitan-area art galleries, museums, and other art exhibition venues in order to imbibe the opening receptions’ delectable refreshments. Thus if you have been a habitual attendee of art openings from the 1960s until today, Nikolai Buglaj was/is cheekily a “person-of-interest,” one of the usual suspects: a constant, visible, flamboyant and mercurial fixture at thousands of metropolitan-area “run-of-the-mill” humdrum art show openings, as well as thousands of dynamic, seminal, and earthshaking art openings.
Clearly, throughout those decisive years in New York City “gallery hopping” fall/spring seasons (from 1960s until today), Buglaj was
always a conspicuous presence in New York City’s contemporary art scene (“art world”) demimonde, often attending with a coterie
of prominent and amusing art-shaping friends like Oscar Nitzchke (1900-1991), Sari Dienes (1898-1992), John Cage (1912–1992),
Salvatore Tagliarino, Malcolm Morley, John Baeder, and other respected “art world” figures. Yet, despite his fascination with metropolitan area galleries and his powerful contacts in the art world, Buglaj has consistently refused to show. The significance of this bold
contrariness and defiant stance is not so much a confrontation, nor a challenge (nor a gauntlet thrown-down) against the art world;
instead “refusing to exhibit” represents (for him) a unique and clever strategy, for carefully out-maneuvering (i.e., brilliantly doing an
end-run -- or running “the wild-cat” around) the gallery/museum exhibition-matrix (“the art scene”) by focusing, as an alternative,
instead, his full attention on universal (omnipresent) print-promulgation and online-promulgation of his incredible and inimitable
Buglaj’s Class Illusion, Pencil & ink, 30” x 20,” 2012
30
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2, p. 29-34, 2013.
graphite-pencil images, ingeniously having them appear in major world-class art historical publications (that are universally stocked on
bookstore-shelves from New Zealand to Scotland and back), as well as establishing a strong online footprint. Thus, instead of “only”
and “simply” exhibiting within galleries, he is slyly putting all his “art-public”/“art audience” eggs in a hefty “print-publication and
online-publication” basket.
In fact, Buglaj has appeared in several Pearson/Prentice-Hall publications that are read throughout the world, e.g., Henry M. Sayre’s A
World of Art, Pearson-Prentice Hall (in all seven editions from 2004 to 2013); Henry M. Sayre’s Writing About Art, Pearson-Prentice
Hall (in all editions from 1999 to 2009); Sandy Brooke’s Drawing as Expression, Technique, and Concept, Pearson-Prentice Hall (2007),
and his art is included in Pearson-Prentice Hall’s digital archives. Plus, other publications incorporate his thought provoking “cultural
illusions” including: Nicomedes Suárez-Araúz’s Amnesis Art, Lascaux Publishers, 1988, as well as appearing in Arts Magazine, in a review by Paul Stitelman, February, 1973, and Project Studio 1/ Postcard Series 1, Book 7, The Institute for Art and Urban Resources, PS-1,
1979, and having his image on the cover of Translation Review, University of Texas at Dallas, 2000; as well as appearing in numerous
current or pending hardcopy or online publications.
For example, in July 2012, an updated 7th Edition of Dr. Henry M. Sayre’s A World of Art hit the bookstores. Over the last sixteenyears, throughout the English-speaking world, Sayre’s insightful text has become one of the top baccalaureate art appreciation course
books. Sayre’s contributions to world art does not only include unearthing new and vital artists like Buglaj, but also, doing everything
possible (on a grand-scale) to place art “front-and-center” for millions of people to appreciate. Thus, in this effort, in fall of 1997, Sayre
obtained a $1.2 million grant from the Annenberg Foundation (along with support from The Corporation for Public Broadcasting) to
create (with his wife Sandra Brooke) a multimedia teaching package for art appreciation that included a highly successful ten-part PBS
television series, entitled Works in Progress.
In the “new” 7th Edition of Sayre’s A World of Art, Buglaj’s hyper-conceptual graphite “cultural illusions” (a term coined by Sayre to
define Buglaj’s art) fit well into the textbook’s chronology, spanning pre-history (BCE) to the present (CE); across every part of the earth.
Along with Buglaj, the “new” 7th Edition offers images by a multitude of notable artists that were carefully selected for inclusion in the
text. On page 112 in the section entitled: “CONTRAST: LIGHT & DARK,” Sayre presents his “audience” with a graphite and ink piece
by Buglaj entitled Race-ing Sideways, which provokes stimulating analysis (or insight) into the inherent “culturally-inspired” nature of
racism. Available at “www.nikolaibuglaj.com” is the explicit prose from this section of his text, as well as Sandra Brooke’s critical insights
into Buglaj’s Race-ing Sideways from her text: Drawing as Expression, Technique, and Concept.
Buglaj’s “Race”ing Sideways, Pencil & ink, 30” x 20,” 2001.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 29-34, 2013.
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Nevertheless, unraveling (or revealing) the malevolent nature of racism is not the only “Cultural Illusion,” which Buglaj assails throughout his work. In actual fact, his attacks on stereotypical conventions go even deeper; they are more penetrating, wily, and comprehensive
--- moreover his sights are often aimed directly at the very nature of ART (itself), the notion of being an artist, the nature of human
creativity, as well as zeroing-in at what is wrong with the entire global conglomerated multi-billion dollar art industry. Thus, there is
more to Buglaj than meets the eye; because he sees art as a continuum, in this, he agrees wholeheartedly with his hero Ad Reinhardt
(“The Black Monk”), who affirmed that, “Art is only art as art; and, everything else is everything else.” It is out of this straightforward
Reinhardtian abstract and conceptual nexus that Buglaj’s overriding reluctance to exhibit precipitates, buttressing his disinterest in
selling art commercially in galleries or even clamoring for space on museum walls. Like his hero Reinhardt, Buglaj does not approach
“art-making” as an ego-laden one-and-only creation of a specific “end-all-&-be-all” sellable commodity or objet d’art with a set (“fixed”)
monetary, “art historic”, or emotive value(s) (“worth”). He maintains that people hunger (too much) for art; they need art desperately;
and so, Buglaj adamantly refuses to participate in the gallery/museum system in order to preclude the art world’s mounting disturbed
state-of-desperation, which he believes stem(s) from visual art’s “finished-product” concept that wrongly overshadows each artist’s
working-process; thereby, putting the proverbial “cart before the horse.” By placing the process (“the working”/”the doing”) first, he
concurs with Benedetto Croce, Carl Jung, Harold Rosenberg, Joseph Beuys, who advocated against the inane aesthetic overemphasis on
finished products (“works-of-art”) as being superior to the inherent exertion of labor within the creative process: “the actual work.” To
quote Buglaj, “The finished product merely hangs on the wall; whereas in contrast, the working process (the activity/the action) is what
actually matters to the working-artist.”
In Buglaj’s refusal to exhibit, there is something akin to the great Czech writer, Franz Kafka’s ingenious short-story A Hunger Artist
(“Ein Hungerkünstler”), wherein the hero of story does not refuse to eat from lack of hunger; but, rather he refuses to eat because he
never found a food that was worth eating. Similarly, Buglaj has rarely found a gallery or museum that is worthy of his ouevre. This
might be due to the fact that in his work Buglaj consistently strives to circumvent and avoid all sentimentality, romanticism, and anything that reeks of “artiness” in art (even the idea of “ART” is suspect for him), as well as anything poetic or redolent of “poetry” per-se.
Hence, in his visual work, he tries to avoid “ART” and “artiness,” along with all artistic conceits, e.g., the art world’s overweening emphasis on “vision,” “visual illusion,” “visual perception,” and “visibility.” In a way, Buglaj’s contempt for “most” archetypal works of ART
echoes Plato’s virulent attack(s) against mimetic, imagistic, and empirical art As in Reinhardt’s final “Black Paintings” (a.k.a. “Ultimate
Buglaj’s Canaletto Bronx, Pencil & ink, 20” x 10,” 2008
32
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2 , p. 29-34, 2013.
Paintings”), Buglaj’s extraordinary graphite-images challenge paltry and deceptive visual-perception. For example, whenever viewers
view his art (whether online, or in publications, or in person), they often imprudently focus simply on what is merely visible, unwisely
over-examining each meticulous detail in his image(s); fixedly scrutinizing Buglaj’s technical mastery of drawing. Ultimately, this
above-described approach to “seeing” is unacceptable to him; because he demands more from his viewers; he wants them to put aside
obvious perceptual illusion in order to see the subtle transparent cultural illusions that permeate his art. In each piece, Buglaj’s subtle
transparent cultural illusion is layered -- consisting of veiled “social illusion,” “economic-illusion,” and what Duda Penteado (the contemporary Brazilian artist) has coined: “political illusions.”
For example, if we consider one work (Buglaj’s “Canaletto Bronx”) via this context of several hidden layers of illusion that transparently
unfold, appear, or manifest; Buglaj’s “Canaletto Bronx” is an image that directly alludes to Reinhardt, due to its faint shifting gradations
of gray-tonal architectural values, which differentiate between two separate “class” concepts, i.e., the tough assertive poverty of NYC’s
inner city is simultaneously and shockingly fused and contrasted with Venice’s fragile, ornate, delicate, and elegant decaying Grand
Canal, connoting infinite shades of grey within the context of contemporary urban-blight, revealing parallel facets of urban wealth and
urban poverty.
Buglaj’s Racial Optical Illusion, Pencil & ink, 30” x 20,” 1997.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 29-34, 2013.
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Consequently, his audience (whether online, or in publications, or in person) are often overwhelmed by his “expert” draughtmanship;
they ill-advisedly concentrate too much of their visual attention on “mere” perceptual illusions; thereby inadvertently ignoring the dominant abstract-conceptual cultural illusion implicit in his work. Thus, each of his works provide intricate perceptual illusion(s), which
don his surfaces with heavily-detailed and elegant optical obfuscations, obscuring or averting “appropriate” visibility of deeper, veiled,
and hidden cultural illusions, which signify what ought to be perceived -- but, is (generally) not. Throughout his oeuvre, perceptual
illusions inhabit Buglaj’s art, veiling or concealing the underlying “cultural illusions.” These hidden cultural illusions embody the crux
(or core-concepts), which are often masked within his art; and as a consequence, these cultural illusions are frequently overlooked by
the majority of his viewers, who merely “see” without truly “looking.” All of this relates to Jasper Johns’s brilliant statement: “We see
things only when they call attention, or are removed, or hiding.”
In Buglaj’s “Racial Optical Illusion” image, three men are in a room --- a white man, a brown man, and a black man. All are drawn in
varying-shades of graphite. All three are of equal size and are seen striding in the same pose toward the same goal. Yet, because of the
image’s acute diagonal “one-point” perspective, the white man appears always larger; additionally, the room’s staged perspective incorporates the US-Flag (“Old Glory”). In Writing About Art, Henry M. Sayre was the first significant critic to astutely notice the sociopolitical economic implication(s) in the piece, as a clear manifestation of “Cultural Illusion,” as well as noticing the dramatic “push/
pull” confrontation (in the work) between “Perceptual Illusion” and “Cultural Illusion.” How “Cultural Illusion” must either defeat or
obscure “Perceptual Illusion” to be seen.
In 2011, the great Renaissance art historian, Barry Katz commented on Buglaj’s “Racial Optical Illusion,” stating that, “[It] is a clever
‘play-on-words’ (play-on-image). The single image receding into space goes as far back as Pisanello’s Louvre drawing, ‘Study of Figures
in a Vaulted Room’ from the middle of the fifteenth century. A foundation piece of Western corpus, used in entry level studio courses
to this day, it clearly delineates the manner in which a single figure diminishes, plane by plane, into the reticulated space of Renaissance
illusion. But, Buglaj’s variation the placing of the frontal figure before the space and identifying him as singularly Black carries a critical
message: the Afro-American, though identical in size to his lighter cohorts, is denied the on-going cultural context of the American flag
and inclusion in its space, thereby isolating him from the lighter figures while diminishing him in size. The other two figures dramatically increase their importance and dominance as they whiten. Throughout, and this is critical, the figures differ solely in their color.”
What Katz has demonstrated (above) is precisely what Henry Sayre called: “Cultural Illusion” within Buglaj’s iconology, indicating
how it furtively manifests with far-reaching socio-cultural commentary and manifold hermeneutics, moreover triumphing mightily in
Buglaj’s work despite all the heavy iniquitous camouflage, subterfuge, and pretense of “Perceptual Illusion,” as well as triumphing over
a malevolent, vile, and blind gallery/museum “art industry” leviathan that somehow foolishly allowed this Polish Belarusian-American
genius to heroically escape its green ink-stained grasp.
For more about Nikolai Buglaj:
< http://nikolaibuglaj.com/Nikolai_Buglaj/Welcome.html >
Recebido em 20 de Maio de 2013.
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Aprovado para publicação em 28 de Novembro de 2013.
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2, p. 29-34, 2013.
Banksy Vs. Warhol
Arte Urbana, Arte Pop e Reprodutibilidade
Banksy vs Warhol
Urban art, pop art, and reproductibility
José Schneedorf
Artista plástico, professor da Escola Guignard da Universidade Estadual de Minas Gerais, UFMG; mestre em Artes pela
Escola de Belas Artes da UFMG; pesquisador na Área de Fundamentos e Crítica das Artes, atuando especialmente nos
temas: Arte Contemporânea; Arte Pop; espaços da - e para a - Arte; diálogos discursivos entre a reprodutibilidade dos
grafites urbanos e das Gravuras, de largo histórico de gráficas populares. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
RESUMO
Um panorama das exposições do artista plástico Banksy, com ênfase em sua precisa seleção de endereços citadinos, e ápice nas aproximações
entre a arte urbana contemporânea, por ele bem representada, e as pautas cronistas do cotidiano dos grandes centros da moderna Arte Pop,
por ele herdadas na mesma medida que por Andy Warhol igualmente bem representadas. Esse recorte intramural de sua extensa produção
compila sintomas correntes da arte originária e original das megalópoles e resume a perfectibilidade expositiva da pertença institucional
da arte política, cidadã, através da emblemática mostra Warhol vs. Banksy, que permite traçar os muito pertinentes (e devidos) paralelos (e
devires) históricos entre os dois artistas, representativos ambos dos sentidos críticos propostos pela arte, aprimorados quando entranhados
nos aparentes becos que criticam.
Palavras-chave: Arte Urbana; Arte Pop; Reprodutibilidade; Representatividade; Popularidade.
Abstract
A plastic artist Banksy exhibitions panorama, with emphasis in his accurate town addresses selection and apex in the approaches among
the contemporary street art, by him well acted, and the modern Pop Art great centers daily chronicler, for him inherited as well as for Andy
Warhol equally well acted. That intramural cutting in his extensive production compiles megalopolis originating and original art running
symptoms, and summarizes the expositive perfectibility of the political, citizen art at institutional appendage, through the emblematic exhibition Warhol vs. Banksy, which allows to draw the very pertinent ones (and owed) historical parallels (and philosophical becoming) among
the two artists, both representative from the critical art proposed, growth senses when embedded in the seeming deadlocks that it criticizes.
Keywords: Street Art; Pop Art; Reproducibility; Representativeness; Popularity.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 35-48, 2013.
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A
diligente marca grafiteira Banksy, partida dos muros de Bristol, Inglaterra, em meados da penúltima década, em direção a uma
igualitária e inumerável exemplaridade de pólos citadinos ao redor do mundo (de Londres a Paris, de Barcelona a Corfu, de
Nova Iorque a São Francisco, de Toronto a Tuxtla Gutiérrez, de Belém a Melbourne) retém anonimamente a autoria (possivelmente coletiva, provavelmente individual), e alcança uma bem-sucedida aliança de apoio popular e erudito, a consagrá-la no púlpito
da arte urbana mundial contemporânea. Alcança repercussão global e aprovação popular de novidadeira unanimidade para a arte dos
cruzamentos – a multidão ubíqua em geral, a sua safra balzaquiana em particular, sua linhagem mural nos mais diferentes fusos em
específico alentam-se por Banksy representados.
Tais repercussão e aprovação estimulam-se em (bem como estimulam) seus conteúdos expressos, que indiciam, através de aposta
nevrálgica e facilmente legível, o ativismo tanto natural da plástica muralista, de frente política por berço e razão; quanto natural da
cidadania multitudinária – levando-se hoje em conta o ajuste semântico do termo, a considerar que “a multidão contemporânea não
está composta nem por ‘cidadãos’ nem por ‘produtores’. Ocupa uma região intermediária entre o ‘individual’ e o ‘coletivo’. Para ela não
vale de modo algum a distinção entre ‘público’ e ‘privado’”(VIRNO, 2003, p.25, tradução nossa). Já suas formas expressivas interferem
na fisionomia das cidades e no ir-e-vir citadino de maneira “quer interruptiva ou assimilativa” (KWON, 2008, p. 167). Interferências
que são jogos de “utilizar a sociedade como um repertório de formas” (BOURRIAUD, 2009a, p. 11) e são investigações sobre os sentidos
(recebidos e propostos), investigações sobre uma monossemia global de tendências autocráticas ou de equidade humana. Ou de ambas.
O catálogo funcional, a capacitação da cidade, é hoje o catálogo funcional, a capacitação do grafiteiro, por procuração, “e nenhum rosto
é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade” (BENJAMIN, 1994, p. 26).
A marca alcança também inserção: igual ineditismo encontra-se na flexibilidade coextensiva que Banksy hoje melhor representa entre
os espaços expositivos intramuros e extramuros, historicamente apartados ou escalonados, tradicionalmente avessos entre si em relação
a seus processos particulares de produção e recepção de arte, incluso nestes não somente a crítica, especializada e/ou popular, mas
também a lei. Uma pendularidade para a qual os artistas de rua apresentam-se cada vez mais aptos e eticamente harmonizados, selando
a contemporânea reorientação de entranhamento do contracultural, e selando ainda mais a decantação da mútua diferença entre o
institucional e o periférico: relevam-se contrariedades que, portanto, se desmonstram terminais; e revelam-se acessibilidades artísticas
de uns para os outros, a sublinhar, por conseguinte, a pertença de ambos os lados do muro, em igual medida e tráfego facultativo, nos
construtos da vida comunitária.
Sua vasta obra não desafia ou atualiza os campos da pertença da arte urbana menos que o campo da autoria, vértice – ou vórtice – da
atribuição e da autenticidade: Banksy é uma anonímia pública cortejando a indistinção das massas urbanas, codinome de personalidade
nítida e pessoalidade turva, continente de uma autobiografia professa, incomprovada embora provável, verossímil.
A multidão é uma forma de ser; e pela expressão forma de ser entendo algo fundamental, básico, de relação com o mundo, com os outros,
com a vida.Hoje é a “multidão” e já não o “povo” quem caracteriza todos os hábitos e as mentalidades da vida social: as modalidades de
trabalho, os jogos de linguagem, as paixões e os afetos, as formas de conceber a ação coletiva. O “povo” é de natureza centrípeta, converge
em uma vontade geral, é a interface ou o reflexo do Estado. Pelo contrário, a multidão é plural, admira-se da unidade política, não firma
pactos com o soberano, não porque não lhe relegue direitos, senão porque é resistente à obediência, porque tem inclinação a certas formas
de democracia não representativa. (VIRNO, 2003., p. 130, tradução nossa).
Mais obra que persona, Banksy é uma individuação, uma manifesta uniformidade expressiva, por incentivo próprio ambiguamente
unitária; uma aparição dúbia, uma entidade jamais acareada, numa estratégia que o preserva das armadilhas da fama – também das vantagens desta, que vêm por ele, até aqui, se comprovando indesejadas –, bem como o preserva em êxito incomum da patrulha ferina de
seus conterrâneos tabloides ingleses, tabloides exemplares e patrulha exemplar de um procedimento de ronda celebrizatória, ocorrência
mundial, que no seu singular caso só têm expediente, e lucro, na especulação. Banksy considera, em rara entrevista, por via digital:
Eu não tenho qualquer interesse em vir a me revelar. Penso que há suficientes idiotas egocêntricos tentando pôr em frente a você suas
pequenas caras feias, do jeito que são. Você pergunta a um monte de garotos o que eles querem ser quando crescerem, e eles dizem, “Eu
quero ser famoso”. Você pergunta a razão e eles não sabem nem se importam. Eu penso que Andy Warhol captou parte: no futuro, tantas
pessoas estarão se tornando famosas que um dia todo mundo acabará sendo anônimo por quinze minutos. Eu apenas estou tentando fazer
as obras causarem boa impressão. Não estou nessa de tentar fazer eu mesmo causar boa impressão. Eu não estou dentro da moda. [...] Mais,
eu obviamente tenho questões com os policiais. E além disso, é uma aposta bastante segura que a realidade sobre mim seria um esmagador
desapontamento para um par de garotos de quinze anos por aí (BANKSY, 2006a, não paginado, tradução nossa).
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2 , p. 35-48, 2013.
(Esq.) BANKSY: [s/título], 2007, desenho sobre fotocópia. Fonte: www.banksy.co.uk; (dir.) WARHOL, Andy: Queen
Elizabeth II of the United Kingdom, 1985, desenho sobre papel, 31.5 X 23.6 cm. Fonte:pollockfineart.com.
Os poderios, as gerências comunitárias formatadas em governos e corporações, e seus resvalos em jugo midiático (Fig. 1), da informação manipulada até o fetiche do produto e da celebridade, igualmente têm endereço na abrangência, e despertam o ruído rueiro
contemporâneo – tradicionalmente no anúncio e na denúncia consolidado, atualmente na farpa grafiteira exercitado. Motivam o incômodo e a batalha próprios de – e apropriados a – Banksy. Seu maior combate é o espetáculo. Sinal dos tempos, a esponja espetacular,
sorvedouro e absorvedouro, agasalha seu maior combate, abriga sua briga: “cinquenta anos depois, a prática que reinscreve a arte é o
espetáculo” (FOSTER, 1996a, p. 129). Reinscreve a arte, inscreve o grafite. Avaliar a arte contemporânea em termos cabais é uma impossibilidade, porque ela é corrente, mas algumas vertentes estão bem indicadas, e bem se verificam em Banksy (obra e autor) presentes, e
em Banksy entretecidas umas às outras: o heteróclito estertorado, em que a repercussão cultural alcança o estatuto de arte pela própria
dinâmica do campo, também pela dinâmica da oportunidade e do oportuno, do ocasional e do ocasionado, que a agora mais disponível
informação incentiva.
Também a liberdade geográfica, outra dinâmica, aprimorada pela velocidade dos trânsitos físicos. E também ideológicos, pelas cada
vez mais rápidas vias dessa mesma informação e da portabilidade, a aprimorar plásticas de “desobediência, êxodo. É claro que se trata
somente de alusões ao que poderia ser o virtuosismo político, não servil, da multidão”(VIRNO, 2003, p. 73, tradução nossa), bem representado nessas mesmas plásticas quando em plataformas urbanas, a saber o grafite. Bem representadas as plásticas e as plataformas na
obra nômade de Banksy, representante do virtuosismo plástico não servil da multidão e da desobediência civil através não somente da
nitidez das mensagens das obras, mas também das mensagens contidas nos próprios itinerários, táticos, observados na sua cuidadosa
seleção de cidades / suportes, por sequência comprovando etnografias e/ou paridades entre elas.
Ainda a salvaguarda da indistinção dos coletivos e da anonímia, significação da insignificância multitudinária, paradoxo da ausência
costurada na identidade autoral, face insujeita de sujeitada face “ao vício: a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a
produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o
autor, que nos entregasse a sua ‘confidência’” (BARTHES, 1988, p. 50).
Bem como os metamorfismos plásticos, hoje menos restritos a uma coerência atemporal de veículos artísticos selecionados, mais salutares de permissividade formal, e ainda assim salutares de estímulo à resistência do gesto, à identidade autoral do traço e/ou do impulso,
e à sua identificação.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2 , p. 35-48, 2013.
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(Esq.) BANKSY: [sem título], 2003, cartaz (acrílica sobre papelão) – instalação em Zoo Barcelona (Espanha). Fonte:
BANKSY. Cut it out. London: Weapons of Mass Distraction, 2003, p. 50-51; (dir.) WARHOL, Andy, Endangered Species: Orangutan, 1983, serigrafia, 96,5 X 96,5 cm. Fonte: www.josephklevenefineartltd.com.
Enfim a política inata das artes, “pois a obra de arte não é simplesmente um instrumento para ser usado pela ou contra a ideologia: é
em si mesma um ato ideológico” (FOSTER, 1996a, p. 85), sobrelevado nos quarteirões de ativismo a um só tempo nostálgico e contemporâneo – cardápio situacionista em ambos os casos. Política das apropriações urbanas, partidas do manancial dos muros, por si
metafóricos, rumo a toda sorte de barreiras, através dos sintomas populares e das suspensões espaciais da emancipada arte urbana
atual, avantajada porque tal (ou, cada vez mais, toda) “arte é o lugar de produção de uma sociedade específica: resta ver qual é o estatuto
desse espaço no conjunto dos ‘estados de encontro fortuito’ propostos pela Cidade” (BOURRIAUD, 2009b, p. 22). Sobretudo proposta a
entrega direta ao observador, mantido como tal e/ou tornado partícipe, ao encontro deste o encontro dos setores oficiais e paralelos nos
espaços abertos (Fig. 2), encontrado o “conteúdo [...] socialmente significativo [que] se direciona para o modo de função da arte dentro
da sociedade, que determina o efeito das obras da mesma forma” (BÜRGER, 2008, p. 105), renteando também o muro a especialização
extremada, outra verve contemporânea.
Renteados os intramuros e extramuros das artes – ambos igualmente espaços públicos – em vizinhanças, visitações, retroalimentações
e circulações que testemunham alternativas e alternâncias entre esses espaços “nesse contexto citadino [...], a mudança da função e do
modo de apresentação das obras mostram uma urbanização crescente da experiência artística” (BOURRIAUD, 2009b, p. 20), no galope
do crescente inchaço urbano como um todo. O desmuro propõe superação mutualista, a versatilidade é mútua: artistas de cepa titular,
por assim dizer, há muito investigam o potencial das ruas, potencializando-o por conseguinte, pois essa pauta direciona às mesmas o
todo expositivo: o atelier, o mercado, a crítica, a história da arte. A convergência do lugar que ocupam as duas faces do muro se encontra
na potência do conceito: exposição. Os benefícios são mútuos: alargamentos e sincretismos de repertórios, e novas tessituras de efetividade e visibilidade, muito colaboradoras para a valorização e oficialização do grafite que mais e mais se observam nos centros.
No sentido inverso da mesma direção, apto à gangorra, Banksy também se vale de espaços total ou parcialmente internos, em exposições
próximas do formato propriamente convencionado, o cubo branco, e nelas suas iconoclastias permanecem – até mesmo ganham impulso, por conjeturarem esses espaços uma maior liberdade, dado serem singularizados, específicos, peritos, bem sujeitos ao arbítrio
público em sua freqüência, e na assiduidade dessa. Tal frequência e tal assiduidade, se comparadas ao convívio abrangente e algo imperativo das ruas, tendem elas próprias à especificidade, à perícia, pela própria singularidade do lugar, o que em nada o torna menos
público. Além do mais, de Banksy é inegável a capacidade de emergir no mapa das artes por próprio esforço, mérito e risco. É inegável
sua representatividade para os grafiteiros, ainda representativos de um estamento outro, paralelo, para o qual (demonstração de força,
demonstração de eficiência ombreada) há já espaços internos especialmente dedicados, erigidos pelo paralelismo, e/ou dele em prol.
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Os próprios ‘irregulares da arte’ não escapam a essas regras de homologação que continuam sempre válidas. A ‘arte bruta’ adquiriu [...] seu
local permanente de exposição. [...] Assim a ‘não-cultura’ deixava de ser tributária da ‘cultura asfixiante’. Mas tornando-se, por seu turno,
uma cultura com plenos direitos à qual é preciso pagar tributo. O devir-arte leva os ‘anartistas’ a darem sua colaboração (DEBRAY, 1993,
p. 226).
Seria tarefa árdua rastrear traços de ingenuidade ou de pureza na arte contemporânea, que encampa o iconoclasta, encampa Banksy,
que em igual arduidade de rastrear iguais traços se deixa encampar, aproveitando-se do interesse institucional que desperta na contemporaneidade. Se não convidadas, as travessias são incitadas por esse interesse institucional, tanto quanto pelo interesse público,
bem como pela natural razão de um a outro: suas mostras atraem multidões, como atraem seus extramuros: atrações turísticas efetivadas. Venderam aos milhares suas quatro edições coletâneas de obras – Existencilism (2001); Banging your head against a brick wall
(2002); Cut it out (2003) e Wall and piece (2005) –, a dar conta de sua prolixidade. Assentiu a crítica às patentes qualidade conceitual
e precisão formal, e ao clamor das esquinas tê-lo aclamado: o critério para a “imagem se rebaixa, então, socialmente. É uma regra: o
ídolo é igualitário e até mesmo coletivista, enquanto a imagem de arte aparece em sociedades com clivagens sociais acentuadas” (DEBRAY, 1993, p. 228), clivagens às quais as ilhas britânicas respondem por tradição, critério ao qual a arte responde por atualização.
Deferente, a crítica vem reputando que Banksy faz pelo estêncil o que Jean Michel Basquiat fizera pelo grafite. Aferente, o mercado
de arte conta desde a última década com vasto acervo de pequenos formatos de Banksy em galerias regulares, e longa fila de espera
em galerias virtuais, como Andipamodern, Artificialgallery e Picturesonwalls. E resolutas disputas em leilões, em casas tradicionais
como as sedes londrinas da Bonham’s ou da Sotheby’s: “Ele é o artista de progressão mais rápida que qualquer um já viu em todos os
tempos, disse Ralph Taylor, um especialista da Sotheby’s” (OSLEY, 2008, não paginado, tradução nossa). Assim, suas tão justamente
criticadas midiatização e superexposição, em sua velocidade de propagar informações, são as próprias responsáveis por altear o então (e ainda) balzaquiano Banksy, razoavelmente noviço para tamanha aprovação e atento acompanhamento mundiais, bem como
para a mais-valia, numa exceção etária para a História da Arte que se observara, exemplarmente, em Andy Warhol (1930-1987).
A captura comercial delineava-se inevitável, questão de tempo, parecendo positivo que passa-se a incluir os muros, não pelo questionável respaldo que a ela se atribui – ainda mais questionável para o grafiteiro político, e irônico para o grafiteiro de individualidade dúbia, já que “o modo de produção individual, característico da arte na sociedade burguesa, surge dentro já do mecenato”
(BÜRGER, 2008, p. 104). Mas pelas possibilidades continuativas e expansivas do usufruto: melhor apoderar-se do processo do que
ser por ele apoderado – mais outra ciência plástica contemporânea. Banksy argumenta que muitas das mostras de visada mercantil
que dele se valem não concedem à sua permissão, sequer à sua consulta, mas se prevalecem sobre a facilitação de seu anonimato, sua
identidade não comprovada, e se prevalecem sobre a reprodutibilidade de parte de suas obras – particularmente os estênceis sobre
tela e as serigrafias – para deliberadamente copiá-las, ou adquiri-las a baixo custo, e revendê-las em assombrosa lucratividade. Em
nota adesivada nas vidraças de lojas utilitárias de arte, que comercializam permanentemente essas reproduções, Banksy explicita:
“Atenção: nenhuma das mercadorias à venda aqui foi produzida ou endossada por Banksy (à exceção desse aviso)” (BANKSY, 2008,
não paginado, tradução nossa). De acordo com ele, muitas de suas obras a terceiros presenteadas, ou ofertadas em troca de pequenos
serviços, terminaram pecuniárias de vantagens a todos os envolvidos, exceto ao autor, que resume em seu costumeiro humor:
Eu não concordo com leilões vendendo arte urbana – é não democrático, glorifica a cobiça e eu nunca vejo nada do dinheiro. [...] Nenhuma gravura ou pintura em exibição em galerias particulares tem alguma coisa a ver comigo, é tudo material previamente adquirido.
Eu apenas monto exposições em galpões ou zonas de guerra ou lugares cheios de animais vivos (Idem, ibidem, não paginado, tradução
nossa).
Travessias validadas na atualidade dos dilatados repertórios plásticos (eles também a convidar e validar o interesse), nos prolongamentos criativos favorecidos sob e sobre os leques formais: Banksy é possível, Banksy é resumo do possível, sua produção reside no
desprendimento da exclusividade ao grafite e ao estêncil para joeirar qualquer outro material, suporte, espaço e meio de expressão
que comporte, conforte e conforme a mensagem – outro câmbio de excelência contemporânea. Câmbio presente em todos os seus
intramuros, a exemplo do terceiro deles, Barely Legal, em Los Angeles em 2006, que tomou posse e partido de um velho galpão
industrial abandonado, não teve divulgação prévia em respeito a seu anonimato e sua ilegalidade e, para a visitação, só se localizava
na cidade avistando o balão de corpo antropomórfico alado, portando um aerossol na mão enluvada, e cabeça zoomórfica representando um rato grafiteiro, seu emblema, com os habituais óculos de segurança e máscara de proteção respiratória. Habitual também suas regras partilharem do mesmo humor de sua plástica. Bem como de seu verbo:
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Essa exposição tem sido uma tarefa e tanto para mim; ela representa quase um mês acordando de manhã cedo. [...] Essencialmente, é sobre
o lugar horrível que o mundo é, quão injusta e cruel e sem sentido a vida é, e os modos de evitar pensar a respeito disso tudo. Um dos melhores modos revelou-se ser o de ficar sentado em um armazém fazendo cinquenta grafites sobre crueldade, dor e falta de sentido. Você fica
imune. Eu grafitei uma imagem de uma família ocidental fazendo um piquenique numa aldeia de crianças africanas famintas, chamada I
hate eating my dinner in front of the news [Eu odeio jantar na frente das notícias], e fiquei tão obcecado em pintar uma por uma de todas
as moscas nos rostos daqueles jovens que nem por um segundo parei pra pensar numa criança passando fome. Acho que a exposição é sobre
querer fazer do mundo um lugar melhor e, ao mesmo tempo, não querer fazer papel de tolo. [...] Embora seja chamada “Barely Legal”, na
realidade há muito pouca nudez na exposição: simplesmente parecia ser um bom nome para atrair interessados. Quero dizer, pornografia
é muito mais popular que arte, certo? Alguém disse uma vez que arte moderna foi o que aconteceu quando as pessoas pararam de ficar
olhando para mulheres peladas e pensaram ter tido uma ideia melhor, e eu nunca tive uma ideia melhor (BANKSY, 2006b, não paginado,
tradução nossa).
Além dos grafites e estênceis executados sobre tela, em grandes formatos, uma série de reproduções de esculturas clássicas revisitadas, como uma câmera de vídeo repondo a ausência da cabeça da Vitória de Samotrácia, uma Vênus de Milo travestida de mulhersanduíche, ou um colete salva-vidas para o Davi de Michelangelo – os acréscimos no mesmo gesso matérico das esculturas, atributivos,
equivalentes na incorporação indissociável, para que o diálogo entre a interferência e o ‘original’ não ignore a entronizada significação.
Ao contrário, dela se valha, restitutiva no desvio situacionista revigorado, respeitante às premissas cognitivas de componentes de um
reservatório iconográfico mundialmente conhecido – marcos de um elenco cujo reconhecimento mnemônico é aproveitado, está residual na atualização. A apropriação de releitura e remanejo frequenta as pautas contemporâneas das artes, quaisquer delas. Banksy
frequenta a reconciliada apropriação recondicionada, é tanto da ética dos muros, impositiva, quanto da genética dos muros, apositiva,
a liberdade para com a propriedade e a produção outra, e “de qualquer modo, sua retomada das velhas formas como [...] a estatuária é
uma configuração ‘bombástica’ de nossas velhas-novas formas artísticas e dos mitos públicos” (FOSTER, 1996a, p. 124).
A agonia das coleções é o sintoma mais claro de como se desvanecem as classificações que distinguiam o culto do popular e ambos do massivo. As culturas já não se agrupam em grupos fixos ou estáveis e portanto desaparece a possibilidade de ser culto conhecendo o repertório
das “grandes obras” [...]. Proliferam, além disso, os dispositivos de reprodução que não podemos definir como cultos ou populares. Neles se
perdem as coleções, desestruturam-se [e reestruturam-se] as imagens e os contextos, as referências semânticas e históricas que amarravam
seus sentidos (CANCLINI, 1997, p. 304-305).
Esse desvanecimento dá sequência contemporânea ao Modernismo – caráter e disposição histórica transgressora –, na sobrevida dos
acondicionamentos e recondicionamentos, das citações, dos manuseios, das montagens. Também na forqueadura mural, a contemporaneidade recrudesceu o postulado modernista de visibilidade investigativa à cultura de massa, pulou o muro das caricaturas e das marcas
saturadas de cores e cacoetes gráficos, e fez suas a nitidez, a correção, a perfeição estéticas, comumente associadas a uma ortodoxia
acadêmica e/ou reduzidas em campo e em aprovação crítica. Entretanto, continuadamente completas de reverberação leiga, recuperando aceite público para o grafite, recuperando este para si a Arte Pop e a imediaticidade cognoscível do figurativo, uma e outra sempre
em voga pública, e muito em voga para a cepa grafiteira corrente. Ato contínuo, recuperada esta última para os meios institucionais,
cabo do hiato que remete a Basquiat, Keith Haring e demais oitentistas; que restitui o “marginal absorvido, o heterogêneo convertido
em homogêneo; uma palavra para tudo isso é ‘recuperação’” (FOSTER, 1996a, p. 48).
Ampliam campo os grafiteiros suspendendo expectativas e predições a eles atribuídas, grafiteiros contemporâneos informados – uma
miríade deles debita a moderna Arte Pop, nativa da Inglaterra, formalmente aparentando linha, tratamento, volume, cor. Dentre eles,
Banksy debita dentre ela Warhol, nesses mesmos ingredientes formais, incluso técnicas, serigrafia particularmente (semelhança tácita
à linguagem do estêncil, e natural apreço grafiteiro pela seriação). Banksy evoca sistematicamente os cânones das artes, pontuando
bom conhecimento do campo. E de si: Warhol é referencialmente evocado nos perfis de Banksy, seu vulto repetidamente sublinhará
o vulto de Banksy, estando presente conquanto nem sempre se mostre – como Banksy. Formalmente nítida em seus grafites de linhas
e preenchimentos quadrinistas, homogêneos e contrastados, está a Arte Pop como um todo, particularmente a retícula, a apropriação
(copista de refazimento, atentiva de realocação) e a estandardização warholianas. Nos dois artistas a genialidade geniosa de cunho
indômito, nos dois a mecânica da celebridade, plástica e pessoalmente explícita, plasticamente manejada e pessoalmente articulada, os
dois desenvoltos entre as graças públicas e as graças privadas. Nos dois cabedais a charge de esconder na desatenção (da pressa passante
ou da adulação que ambos alvejou) e revelar na minúcia (da observação atenta ou da recuperação crítica que ambos alvejou) o
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(Esq.) WARHOL, Andy, Campbell’s soup can, 1964, serigrafia, 91 x 61 cm. Fonte: www.jssgallery.org; (dir.) BANKSY,
Discount soup can, 2005, serigrafia, 50 x 35 cm. Fonte: BANKSY. Wall and piece.
London: Weapons of mass distraction, 2005, p. 149.
político comentário de seu tempo, exorcizado a seu tempo, ridicularizante tantas vezes, comovente outras tantas. Referência
imediata e reverência direta verificadas exemplarmente na serigrafia que enlata a marca Tesco (Fig. 3), multinacional de supermercados, lojas de departamento e de conveniência, de sede inglesa: requinte substitutivo recuperando em cuidadoso e corajoso
mimetismo processual e colorista a série serigráfica desenvolvida durante a décade de 1960 por Warhol, Campbell’s Soup, que
retrata também em mimese figurativa as latas e respectivos rótulos da então popular marca de sopas prontas enlatadas Campbell’s.
Recuperando em igual mímese o relato também: o monopólio da mercadoria, compulsória, expresso nos conteúdos de ambos,
sugerindo em ícones da uniformidade citadina a cultura urbana e o consumo induzido. Sugerindo mais: a progressão das marcas, antes associadas ao produto unitário, agora generalizadas no cartelismo que se observa nos supermercados, fabricantes de
suas próprias versões de uma diversidade de itens, apreçados – e expostos – de maneira persuasiva.
Todas essas técnicas de recuperação dependem de uma operação-chave: a apropriação, que, no nível cultural, é o que a expropriação
é para o nível econômico. A apropriação é muito eficaz porque procede por abstração mediante a qual o conteúdo específico ou o
significado [...] é transferido para uma forma cultural genérica ou para o estilo de um outro (FOSTER, 1996a, p. 221).
Opulenta, abundante, caprichosa, eventual, polarizadora, a cidade é sujeito e objeto de cismas e sismos, de exortação e de
polêmicas, “a urbanização predominante nas sociedades contemporâneas se entrelaça com a serialização e o anonimato na
produção, com reestruturações da comunicação imaterial (dos meios massivos à telemática) que modificam os vínculos entre
o privado e o público” (CANCLINI, 1997, p. 289). Banksy está bastante nesses vínculos entre privado e público, está muito na
comunicação imaterial, está copioso na serialização grafiteira, está sobretudo no anonimato que a cidade permite e a atualidade
permite, as duas juntas predispõem, anonimato “de autores que são pontos de convergência. As tomadas de posição política
são também o feito de um autor e é possível aproximá-las” (FOUCAULT, 2006, p. 289) do meio-fio, impossível não fazê-lo: a
cidade é também ponto de convergência, de encontro das ideologias e de suas permutas. A cidade é sujeito e objeto de anonímia
e popularidade, Banksy é sujeito de anonímia e objeto de popularidade:
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 35-48, 2013.
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– (Esq.) WARHOL, Andy, Paramount, 1985, serigrafia, 96,5 X 96,5 cm.
Fonte: www.popartists.com; (dir.) BANKSY, Paranoid Pictures, 2003, estêncil sobre papel, 30,5 X 30,5 cm.
Fonte: www.andipamodern.com
Eu tirei o véu de estátuas falsas, incitei caças ao tesouro e tive parte em piquetes de rua, onde amontoamos carros grafitados para formar
barricadas urbanas. Na realidade, nunca vou eu mesmo, mas aparentemente nós conseguimos uma boa multidão. Uma vez, eu passei ao
lado da estreia de um armazém que ocupamos com vacas e ovelhas vivas grafitadas, e vi um monte de desocupados locais, algumas celebridades numa Mercedes, dois cafetões gritando, quatro unidades móveis de transmissão para estações de televisão, e dois coreanos vendendo
comida do porta-malas de seus carros para as pessoas que esperavam na fila para entrar. Acho que aquilo foi o que se pode chamar de
cosmopolita (BANKSY, 2006b, não paginado, tradução nossa).
A declaração suscita Barely Legal, mas sua ocasião compete à primeira exposição de Banksy, Turf War, aberta no distrito londrino
de Dalston em 2003. Apesar do caráter visivelmente menos custeado da antecedente, são ambas muito assemelhadas na constelação
metropolitana de suas assistências, no uso de depósitos abandonados e na disposição entrópica das obras, bem como nas peculiares
estratégias de preservação do anonimato: Turf War também manteve completo segredo sobre sua locação até o dia anterior à abertura.
Neste, o endereço foi enviado, por correio eletrônico, para uma delegação de destinatários selecionados, confiáveis e confiados a propagar adequadamente a informação – o procedimento funcionou à perfeição: policiais e demais investigadores à distância da estreia. Mas
diferenças há em igual medida às semelhanças. Acaso não haveria na opção pela montagem de Barely Legal na cidade dos anjos: às
obras e a seus intervalos (os espaços do galpão tomados pela especificidade do sítio) permeia o tema ‘celebridade’ (Fig. 4). O propósito
já estava indicado no característico cartaz da exibição – e vale dizer que os cartazes de suas mostras, além da fiança, imantam sempre
uma cena à parte, prestam-se exímios à apresentação, bem mais que à veiculação, compõem uma nova obra no braço gráfico (braço
assíduo de Warhol, validade da Arte Pop, valência de Warhol) –, o assunto já estava claro, professo, na imagem do cartaz: a peça revisa,
com mordaz face simiesca, a miticamente midiática nudez grávida da atriz Demi Moore, uma fotografia arrolada aos anais da manchete
hollywoodiana, da espetacularização de seus atores.
Num ato reverso (circular de submissão e remissão reversas), numa ironia e num paradoxo dificilmente desapercebidos, provavelmente
previstos, a frequência da exposição – e suas vendas – estiveram coalhadas das próprias celebridades, haja visto, por exemplo, o eco
mundial obtido pelo casal de intérpretes cinematográficos e assistencialistas Brad Pitt e Angelina Jolie ter adquirido um estêncil sobre
tela de tamanho mural, o supracitado I hate eating my dinner in front of the news – uma cepa daquela mostra por si bastante reconhecida, a demonstrar que a repercussão da compra fez acrescer distinção à muita da qual Banksy já gozava àquela altura.
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A desigualdade em democracia midiática [...] está também na capacidade de se mostrar, pessoalmente. Em todos os lugares públicos (restaurante, teatro, avião, etc.), o rosto já visto em outra parte ganha de direito a precedência sobre o rosto jamais visto em alguma parte. A
visibilidade torna-se critério em uma sociedade de classes: de um lado, os visíveis, que são os novos nobres, emissores de opiniões autorizadas; do outro, os ignóbeis, ou não-conhecidos, que não tem acesso à tela. [...] Seria desejável que essa clivagem entre indivíduos com direito
à imagem, como outrora à preposição nobiliárquica e à espada, e os homens privados desse direito, não se tornasse uma contradição forte
porque, hoje em dia, não dispomos de um dispositivo de tratamento apropriado para esse novo tipo de sublevação de massa: a revolta das
sombras contra os V.I.P. (DEBRAY, 1994, p. 332).
Por sua feita, a debutante Turf War versara questões bem mais inglesas, questões políticas e históricas natais. Talvez sua obra mais emblemática seja o grande retrato em estêncil sobre tela do primeiro-ministro britânico Winston Churchill, com penteado entre o punk e
o moicano, profuso apenas na seção longitudinal centro-superior da cabeça (no demais careca como o estadista de fato era), em verde
que bem representaria a tintura capilar. Ou o gramado. Churchill foi o grande vitorioso da Segunda Guerra Mundial, cujo final marca o
início da hipertrofia dos pólos urbanos, um deslocamento em massa dos campos para as cidades, provocando o inchaço destas, então o
inchaço das escórias urbanas (grupo de pertença sobretudo afetiva para Banksy). O impulso não se deu apenas naturalmente, pela vontade pós-guerra da segurança do grupo, do coletivo; da proteção dos muros, das muralhas. Foi também propositado, e esta é a batalha
campal, a guerra dos cercados a que o título da exibição se refere: o governo cercava lotes cultiváveis e criatórios, de forma a impedir seu
proveito e impulsionar as migrações em direção à capital e a seus pares, numa desruralização que primaria a indústria, por mão de obra.
(Acima) BANKSY, [sem título], 2006, estêncil. Fonte: www.bbc.co.uk; (abaixo) WARHOL, Andy, Cow wallpaper, 1966,
papel de parede, 115,6 X 75,6 cm (cada módulo). Fonte: www.artknowledgenews.com
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Do primeiro ao último, os intramuros de Banksy, anualmente regulares em média, sempre marcaram fases, sempre tematizaram tônicas peculiares, reflexivas, reprodutivas ou compilatórias das suas ocorrências extramuros no período que encerraram. Suportadas tangências, perenemente ancoradas no grafite e a ele retornadas – uma sacralidade. Variações elípticas, mais relativas ao desdobramento, no máximo ao revezamento, pois no panorama suas alternâncias de meios todas bem se amarram, mesmo suas alternâncias espaciais – amarra autoral resistente na
desaparição autoral. Banksy “arrisca manter os privilégios do autor sob a salvaguarda do a priori: ele faz subsistir, na luz obscura da neutralização,
o jogo das representações que formaram uma certa imagem do autor” (FOUCAULT, 2006, p. 271), imagem que eclipsa num mesmo ideário,
paulatinamente amadurecido como deve ser, todo e cada trabalho seu. Da última à primeira, suas exposições sempre participaram espécimes
de discurso especista, exemplares da política artística contemporânea de sintonia ambiental, versos bastante geracionais, prioridades bastante
atuais, novos Maios, que Warhol já indiciava na série oitentista Endangered species, retratando, em mais um de seus frequentes debates preditos, as então pouco divulgadas e discutidas espécies ameaçadas, no mesmo tratamento serigráfico com o qual retratava as celebridades. Turf
War propôs também inéditas aplicações de estêncil e grafite sobre animais vivos, imagens cuja gradativa dissolução ao longo da temporada
da exposição desvela a tinta atóxica removível: sugestivos porcos com as cores distintivas da polícia britânica, sugestivas ovelhas com as listras
emblemáticas dos uniformes dos prisioneiros dos campos de concentração nazistas e uma notória vaca seriada com cabeças de Andy Warhol
(Fig. 5). Esta uma inversão diretamente referente, uma referência inversamente direta à instalação desse de 1966, Cow Wallpaper (atualmente
na escadaria entre o primeiro e o segundo pavimento do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque): cabeças de vacas seriadas como papel de
parede. Uma investida invertida, metafórica inclusive no vermelho avessado: figura em Warhol, fundo em Banksy. Metáfora polissêmica: dentre
seus sentidos, a sequência contemporânea das alegorias Pop, a relacionar cargos e encargos da espécie humana a atributos de outras espécies,
especialmente as de correlação mais frequente na cultura popular (como ratos, macacos e o próprio gado).
Localizadas a pouca distância do Museu Britânico há muitas galerias, e numa delas eu me deparei com muitas obras originais e serigrafias de Banksy
à venda. Assim, eu entrei na galeria e cumprimentei o sujeito que trabalha lá […]. Muitas telas e serigrafias de Banksy numeradas e assinadas à
mão, e não eram exatamente baratas. No alto da parede havia um grafite sobre tela chamado Monkey Queen. Eu lhe perguntei quanto custava, já
que não tinha ao lado a etiqueta com o preço, como as demais, e ele me contou que já estava vendida, por umas cinco boas notas. Eu perguntei que
tipo de pessoa paga este tipo de montante por um Banksy, e ele me respondeu: “‘Lista A’ principalmente, bem como uma porção de gente que gosta
das coisas dele e deseja possuir uma peça dessas”. Eu lhe falei então que eu era da [revista] Esquire e que estava procurando por Banksy. Ele riu e me
disse que encontrar Banksy seria impossível, que nem mesmo eles sabem onde ele está, e que eu não tinha a menor chance de achá-lo. Bolas. Eu lhe
perguntei se me permitiria fazer um par de questões, e ele disse que sim. “Banksy é o próximo…”. Nem mesmo tive tempo de terminar a pergunta.
“Andy Warhol. Banksy é o próximo Andy Warhol” (BUZZELL, 2005, não paginado, tradução nossa).
(Esq.) BANKSY, Monkey queen, grafite e estêncil sobre tela, 50 X 34,5 cm. Fonte: www.uel.ac.uk; (dir.) WARHOL,
Reigning queens: Queen Elizabeth II of the United Kingdomm 1984, serigrafia, 100 x 80 cm. Fonte: warholprints.com
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Dentre as exposições de formato normativo, em cubo branco, efetivamente consentidas e asseveradas, decerto a mais cosmogônica até
aqui foi promovida há três pares de anos numa galeria no cosmopolita distrito londrino de Convent Garden, distrito hábil e atento às
tendências: Warhol vs. Banksy, dueto de mais de quarenta desenhos, pinturas e serigrafias dos dois (Fig. 6), cuja premissa – expor obras
de ambos conjunta e comparativamente, propô-las lado a lado em pares e parcerias conceituais – não poderia ser mais acertada: suas
similitudes são mesmo inumeráveis. A começar porque Warhol teve olho e ímpeto para resgatar do meio-fio Basquiat, aproveitando-se
de seu próprio prestígio e de sua própria influência para a inserção artística e mercadológica daquele; prevendo e antecipando a valoração das brotaduras urbanas.
Depois porque o reconhecimento plástico da Arte Pop na obra de Banksy se verifica mesmo nas peças que não o tencionam diretamente;
obra “comprometida com o realismo e/ou idealismo: algo da Arte Pop, [...] algo da arte de apropriação [...], essa genealogia Pop [...]
ilumina o trabalho contemporâneo” (FOSTER, 1996b, p. 127-128, tradução nossa). A somar a revisão contemporânea que demonstra o
quanto o político e o traumático sobrepujam a frivolidade que facilmente fora a Warhol atribuída; uma revisão que abrange não só Warhol, mas toda a Pop, particularmente em seu substrato duro e corrosivo, como o é hoje o substrato de Banksy. Então pela constatação de
que a apropriação simbólica do fácil, do fruitivo, do costumeiro e do consumível, em ambos os artistas, presta-se em aptidão à releitura
funcional, até mesmo ao aprimoramento da legibilidade conceitual, sua melhoria em comunicação e conhecimento, via de cognição.
Aqui [se] encontra não apenas um objeto referencial para Warhol, mas um tema empático em Warhol, e aqui [se] situa o caráter crítico
de Warhol – [...] numa exposição do “consumo complacente” por meio do “fato brutal” [que] empurra Warhol para além de sentimentos
humanistas em direção ao engajamento político [...] como um testemunho [de que] Warhol pertence à tradição popular americana do truth
telling [contar a verdade] (Idem, ibidem, p. 130, tradução nossa).
Warhol vs. Banksy principia o evidente parentesco pelo aparelho formal, considerado o enraizamento da obra de Banksy na Pop bem
como a inspiração, a referência ou mesmo a citação direta a Warhol presente em algumas dessas obras: “Warhol é Pop e, mais importante, [...] a noção de simulacro, crucial à [...] crítica da representação, parece às vezes depender do modelo de Warhol como Pop” (Idem,
ibidem, p. 128, tradução nossa). Mas, nada despercebido pela curadoria da exposição, a aproximação estende-se filosoficamente, e até
mesmo retorna ao conceito, à identidade da arte. Arthur Danto propôs, a partir das encruzilhadas formais de Warhol, que “o problema
filosófico é explicar por que são obras de arte. Com Warhol, ficou claro que não há uma forma especial que necessariamente uma obra
de arte deve ter” (DANTO, 2006, p. 40). Uma proposta que parece repetida – ou herdada – por Banksy, assinalando a ambos com o “que
podemos chamar de ‘embreantes’, palavras de ordem e injunções, acontecimentos espetaculares ou sugestões insidiosas que abriram o
caminho para uma nova concepção da relação entre a arte e o público, assim como as reações a essa perturbação” (CAUQUELIN, 2005,
p. 19); assinalando-os como artistas marcos de cambalhotas nas noções, nas avaliações e nas apreciações das artes, de “saltos devidos
às grandes personalidades [...] dado que as formas mudam e a história da arte é a história dessas mutações”(ARGAN, 1988, p. 146) – o
que perpassa a disposição institucional a incorporar arte urbana de qualidade. Bem serviria para Banksy a consideração de Danto sobre
Warhol: “a verdadeira descoberta filosófica penso ser, na verdade, que não existe uma arte mais verdadeira do que outra, bem como não
há uma única forma que a arte necessariamente deva assumir: toda arte é igual e indiferentemente arte” (DANTO, 2006, p. 38).
O filósofo Arthur Danto teve uma similar epifania […] em meados dos anos 60, em seu primeiro encontro com a Brillo Box de Warhol, e
[…] fez sua essa visão da transcendência. Segundo sua argumentação, Warhol aperfeiçoou a pergunta duchampiana “O que é arte?” e, desse
modo, […] também inverteu o projeto de reconectar o exercício de uma arte autônoma com a prática da vida cotidiana – o recuperou para
a mesma instituição que o projeto havia desafiado primeiramente (FOSTER, 2003, p. 124-128, tradução nossa).
A convergência está sintomaticamente representada no que se prioriza como um pleito brincante à herança e, sobretudo, como
um preito, uma homenagem de Banksy a Warhol: a revisita – presente na exposição – à série de serigrafias do segundo que
tomaram como modelo seriado a face da atriz norte-americana Marilyn Monroe, atualizada pelo primeiro através do tecnicamente idêntico uso da face da modelo britânica Kate Moss (Fig. 7), “e essa multiplicidade dá conta do paradoxo não apenas
das imagens, que são ao mesmo tempo afetivas e sem afeto, mas também dos observadores” (FOSTER, 1996b, p. 136). Mais
que homenagem, mais que uma faculdade que anuncia o conhecimento histórico das artes e o conhecimento do terreno em
que pisa – na precisão da escolha referente –, Banksy revisa o jugo celebrizatório, expiatório, sacrificial na infelicidade de uma
artificialmente onicolor Monroe (cores de um superlativo farsesco, análogo a uma alegria a ela atribuída publicamente e à sua
revelia). Maiores rédeas em Moss, que não apenas sobreviveu como se fortaleceu em persona pública no espetáculo da veiculação de imagens suas consumindo cocaína, às quais a serigrafia de Banksy procede, em momento imediatamente posterior. A
informação contemporânea faz superar o muro de subserviência à celebridade – através da manipulação da celebridade.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 35-48, 2013.
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(Esq.) WARHOL, Andy, Marilyn (on pale blue), 1967, serigrafia, 66 x 73.7 cm. Fonte: www.personal.psu.edu;
(dir.) BANKSY, Kate, 2005, serigrafia, 69,5 x 69,5 cm. Fonte: streetart.co.nz
De todos os pintores [...] a serviço (ou servos) de uma iconografia popular, Andy Warhol é provavelmente o mais propositado e o mais espetacular.
[...]Eu não tenho certeza disso, mas parece que ele trabalha primeiro as áreas de cores mais vívidas, então serigrafa o preto sobre elas, e finalmente
pinta certos detalhes. O resultado técnico é brilhante, e existem momentos de precisão pictórica, de igual perícia, embora nesse último aspecto, Warhol
é inconsistente; ele pode lidar bem com a tinta, mas ela não é o seu guia, talvez nem mesmo [...] importe a técnica escolhida, em relação à imagem
particular selecionada para a reprodução – o que o deixa exposto ao perigo de um esvanecimento sobre o qual ele nada pode fazer. Uma arte como
a de Warhol é necessariamente parasitária sobre os mitos de seu tempo, e indiretamente, portanto, sob o maquinário da fama e da publicidade que
comercializa esses mitos; e não é de todo improvável que os mitos que nos comovem sejam ininteligíveis (ou, na melhor das hipóteses, completamente
datados) para as gerações seguintes. Isso é dito não para denegrir o trabalho de Warhol, mas para caracterizar os riscos que esse trabalho corre – e,
eu admito, para registrar de antemão um protesto contra o advento de uma geração que não ficará comovida pelas representações lindas, vulgares
e pungentes da Marilyn Monroe de Warhol, como eu fico. Essas, eu acho, são as peças mais bem-sucedidas da exposição [...].Em sua maior força –
eu tomo isso como presente nas pinturas da Marilyn Monroe – Warhol possui uma competência de pintor, um certeiro instinto para a vulgaridade
(como em sua escolha de cores), e uma sensibilidade para o que é verdadeiramente humano e patético em um dos mitos exemplares de nosso tempo
( FRIED, 1998, p. 287-288, tradução nossa).
Duncan Cargill, diretor artístico da galeria, The Hospital, considerou que a organização da mostra entendeu a fama como um tema explorado
de forma recorrente pelos dois artistas. Considerou também que ambos dão tratamento semelhante ao tema celebridade, e têm para com ela
semelhante atitude:
Warhol criou alguns trabalhos icônicos sobre a cultura da sua geração, e Banksy está no processo de fazer exatamente o mesmo [...]. Ambos estão atingindo exatamente as mesmas coisas, [...] o fato de que Banksy está bastante determinado a permanecer anônimo enquanto desenvolve sua carreira
acaba sendo uma peça muito mais importante de sua fama do que se ele estivesse promovendo sua própria personalidade. [...] Warhol fez exatamente
isso, e foi o que o tornou famoso. [...] Ambos os artistas se dedicam a falar com suas audiências na linguagem mais franca que podem, […] não há
obras complexas, eles abriram essa fenda (CARGILL apud RABINOVITCH, 2007, não paginado, tradução nossa).
Contida nas obras, mas sobremaneira verificável exteriormente a elas, ou seja, em seus autores, a irmandade – ou melhor, a filiação – avulta-se
em suas lidas particulares com a celebridade, através da forja personalista para subjugá-la, muramento entre público e privado: “essa leitura do
Warhol empático, até mesmo engajado, é uma projeção, mas não mais do que a do Warhol superficial e indiferente, ainda que essa fosse sua
própria projeção” (FOSTER, 1996b, p. 130, tradução nossa). Warhol representou-se por uma persona poderosa, polarizadora e conciliadora, de
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2 , p. 35-48, 2013.
trânsito facilitado pelos diversos campos públicos, persona midiática em sua figura corporal atípica, marcada, facilmente retida na memória. De
Banksy não se sabe, bem poder-se-ia dizer o mesmo, bem poder-se-ia suspeitar o contrário. Fato é que a persona pública é ainda mais diáfana:
Banksy acobertou a si próprio, com sucesso ímpar, sob uma fisionomia ausente, um corpo sombreado, um comparecimento camuflado (Fig. 8).
Ocultou sua face atrás de uma máscara que é em si mesma um oculto, um difuso, uma disfuncionalidade – ou uma nova funcionalidade – para
o processo de enunciação artística pública, constatação ou aposta que “a época de ganhar fama por seu próprio nome terminou. O trabalho de
arte que é só sobre querer ser famoso nunca o fará famoso. Fama é um subproduto de fazer algo a mais” (BANKSY, 2005, p. 205, tradução nossa).
Cada qual nas raias – ou nas superações embreantes das raias – de suas épocas, Banksy não é estritamente público ou privado, como “Warhol
não é estritamente privado ou público” (FOSTER, 1996b, p. 136, tradução nossa).
O paradoxo – e o bloqueio próprio do embreante Warhol – é o fato de ele ser ao mesmo tempo o produtor de uma imagem de astro, a qual se dedica
a fazer circular pelas cadeias de comunicação, e o astro em si, que ele produz como obra e que é simplesmente ele mesmo. O objeto que apresenta – a
lata, a garrafa ou o astro – traz sua marca, é Warhol. Assim, a separação existente entre o nome que designa um autor singular e a assinatura que
promove esse nome como signo, valendo como nome, encontra-se aqui esmaecida. Nome, assinatura e obra se veem confundidos. Nesse caso diferentemente de [Banksy], que protegia seu nome ‘próprio’ naquilo que este tinha de único ao abrigo de uma assinatura disfarçada, preservando assim
seu caráter reservado, discreto, secreto (CAUQUELIN, 2005, p. 115-116).
Na aproximação entre o vulgo e o vulto falha o procedimento usual da celebrização, Banksy demonstra razões indiretas entre um e outro, que
apontam “para essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos aparentemente” (FOUCAULT, 2006, p. 267). Ficam para o vulto os encantos
célebres, seu espelhamento, seu espectro, e aí faltam peças para a livre exploração da mídia e dos rumores sociais, quando estes tangenciam a
má exploração – sua face vulgar. A peculiaridade (rara a observar as ofertas sedutoras, as seduções ofertadas) aponta a demonstração de que os
conceitos de fama e sucesso são por raiz distintos do de celebridade, e podem bem se desenvolver e se vivenciar à revelia deste último – essa é
a vitória pessoal de Banksy, que segue pela fenda aberta por Warhol, em contemporâneo desdobramento, e lhe presta o devido tributo plástico,
dívida paga em arte, ciente de si, ciente de ambos. Excepcionalmente para sua prática rueira – dada a citar sem as fontes e dada à independência
crítica – em aferível admiração, em respeitosa atualização temporal, na atualidade espacial da íntegra inserção grafiteira nos circuitos institucionais urbanos, tão igualmente públicos, da qual Banksy está na lanterna; a qual, não há risco em afirmar, Warhol abençoaria.
Sobremaneira, acentua-se a repercussão e a sobrevida que fez a Arte Pop, de raiz tão citadina em forma quanto cidadã em conteúdo, repercutir
a si própria em renovada pertinência histórica e simbólica, agora através da aceitação e, mais além, da valoração – exponenciais ambas – que
presenciamos hoje quanto às plásticas produzidas nos (e reproduzidas dos) muros das cidades.
(Esq.), WARHOL, Self-portrait in Drag, c.1981, fotografia, 28 X 36 cm. Fonte: www.art.com; (dir.) retrato de Banksy,
[s/título], fotografia s/d. Fonte: BANKSY. Wall and piece. London: Weapons of mass distraction, 2005, p.207.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2 , p. 35-48, 2013.
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VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud – para um análisis de las formas de vida contemporâneas. Madri: Traficantes de Sueños,
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Recebido em 20 de Fevereiro de 2014.
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Aprovado para publicação em 15 de Abril de 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2 , p. 35-48, 2013.
O jogo na Arte: a presença do Ágon entre
Nicolas Bourriaud e Claire Bishop
The game in Art: the presence of the Ágon between
Nicolas Bourriaud and Claire Bishop
Renan Hernandes Silvério
Bacharel em Artes Visuais; possui experiências como auxiliar em projeto e execução de cenografia, montagem/desmontagem de exposições. É voluntário da Fundação Bienal de São Paulo, assim como arte educador.
RESUMO
O presente artigo pretende propor um entendimento do conceito e da função de jogo, na tentativa de analisa-lo próximo aos
procedimentos da arte, possibilitando conjuntamente um dialogo com primeiro escrito da filosofia Nietzschiana “O nascimento da tragédia no espirito da musica”, a pesquisa procura estabelecer o Ágon entre Apolo e Dionísio como recorte e estrutura
fundamental de funcionamento dos jogos e utilizar a disputa presente nos jogos para lançar um entendimento sobre a arte,
optando como exemplo o livro “Estética relacional” de Nicolas Bourriaud sendo contraposto pelo artigo de Claire Bishop.
Palavras chave: Arte, Jogo, Ágon; Apolíneo; Dionisíaco; Nicolas Bourriaud; Claire Bishop.
ABSTRACT
This article aims to design a search attempt from the understanding of the concept and role play, with the possibility of analyzing them near the art procedures, enabling a joint dialogue with Nietzsche philosophy, the research seeks to establish how the
Ágon cut and fundamental structure of running games and use the dispute in this game to launch an understanding of the art.
Taking as an example the book “Relational Aesthetics” by Nicolas Bourriaud being countered by an article by Claire Bishop.
Keywords: Art; Game; Ágon; Nicolas Bourriaud; Claire Bishop.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 49-55, 2013.
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D
esde seus primeiros escritos em “A origem da tragédia no espirito da musica” Nietzsche parece que se serve da figura do jogo
quando fala do movimento existente entre Apolo e Dionísio. A pesquisa apresentada aqui é o desdobramento de um interesse
pessoal na filosofia Nietzschiana unida a minha vivencia acadêmica nas Artes Visuais, sendo assim me baseio no Jogo sob
um viés filosófico para refletir a arte na contemporaneidade. As reflexões foram sendo desenvolvidas mediante as leituras e resenhas,
posteriormente dialogadas escritas e revisadas. Quando me propus a realizar tal pesquisa, não imaginava a imensidão que poderia
abarcar e a responsabilidade que seria estar em contato com tantas visões de mundo.
Considerações sobre o jogo, arte e filosofia:
Não existe uma palavra comum em todas as línguas para determinar o jogo, contudo essa palavra abrange um terreno vasto distribuído
por diversos grupos e conceitos, relacionados na maioria dos casos com o movimento ou com o acaso. O conceito do jogo pertence a
um campo de ideias heterogêneo que advêm da expressão παιχνίδι em Grego e no Latim é abarcado com apenas uma palavra, Ludus,
de Ludere, que com o passar do tempo acabou sendo derivado para Jocus. Sendo possível encontrar no Inglês a referencia das palavras
play e game e no Alemão, da palavra Spiel .
Em “Homo Ludens: o jogo como elemento da Cultura” (Vom Ursprung der Kultur im Spiel) (1938) Johan Huizinga considera que: “O
jogo é fato mais antigo que a cultura, pois essa, mesmo em suas definições menos rigorosas pressupõe sempre a sociedade humana”
(HUIZINGA, 2000, p.5). Evidenciando o jogo, como função existente e identificável inicialmente na vida animal e posteriormente na
civilização humana. Segundo ele, os animais:
Convidam-se uns aos outros para brincar mediante certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam a regra que os proíbe morderem, ou pelo
menos com violência, a orelha do próximo. Fingem ficar zangados e, o que é mais importante, eles, em tudo isto, experimentam evidentemente imenso prazer e divertimento. (HUIZINGA, 2000, p.5)
Se nos atentarmos perceberemos que a mordida é dada com força e que a dor e o ferimento são eminentes ao jogo, mas existe um limite
estabelecido pelos jogadores, mesmo não sendo claro a quem não participa do jogo. Existe brincadeira no jogo, assim como a seriedade,
junto à presença de elementos como tensão e incerteza, desempenhando desde o inicio, uma “função significante”. (HUIZINGA, 2000,
p.5).
Os filósofos pré-socráticos tinham como preocupação a compreensão da physis e da arché (origem) e procuraram a explicação dos
fenômenos daquela época construindo o modo de pensar que constituiu sua cosmologia. Heráclito de Éfeso propunha que a matéria
básica do Universo seria o fogo e “O conflito é o pai de todas as coisas”. Afirmava que todas as coisas estão em movimento e também
que a mudança constante, ou o fluxo perpétuo, seria a característica mais elementar da Natureza. Para Heráclito “A unidade é feita de
tensões opostas” e essa tensão que sustenta ambos os opostos, constitui a verdadeira harmonia.
Vemos que o jogo pode adquirir definição mais precisa sob a interpretação feita da filosofia de Heráclito, Santiago Guérvos resgata em
seu artigo o primeiro texto de Nietzsche “O nascimento da tragédia no espirito da música” (1871) e identifica que nele, já se delineiam
modos e formas de entender o pensamento do jogo na filosofia Nietzschiana. Guérvos declara em seu artigo que foi Eugen Fink quem
mais se dedicou a tratar do jogo como a questão central na filosofia de Nietzsche e, tanto Santiago Guérvos quanto Eugen Fink, confirmam que Heráclito de Éfeso é a filosofia originária de Nietzsche. “A intuição Nietzschiana do mundo como um jogo, um jogo de dados
divinos, ou jogo de forças, jogo das contradições até o prazer da harmonia traduzem a ideia do vir-a-ser de Heráclito”. (GUÉRVOS, S.
Cadernos Nietzsche 28. 2011. P.56).
Quando Nietzsche resgata o principio de Heráclito da “luta dos contrários” encontra o Ágon e confia que foi essa estrutura que deu condições para que os Gregos pudessem criar seus Deuses e sua Arte para que pudessem superar os horrores insuportáveis da existência.
Nietzsche deposita esperança de redenção na arte e no artista. “A arte torna a vida possível na medida em que seduz os homens para
que sigam vivendo por meio da ilusão”. (GUÉRVOS, 2011 p. 52.). A palavra Ágon, em grego, sugere luta, desafio, disputa e Nietzsche,
estabelece o resgate do modo de vida Helenista, baseado no jogo e no Ágon, para fazer referencia ao impulso Ágonal, ou impulso competitivo, (wettkanpf) presente na esfera da arte.
Em ‘A justa de Homero’, afirmava-se o seguinte: Que problema nos abre quando nos perguntamos sobre a relação entre a justa (wettkanpf)
e a concepção da obra de arte? Pois toda força criativa se espalha e se manifesta lutando. (GUERVÓS, S. 2011 P. 54).
50
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2 , p. 49-55, 2013.
Nietzsche estabeleceu uma distinção fundamental entre o Apolíneo e o Dionisíaco: “Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da ordem;
Dioniso, o deus da exuberância, da desordem e da música.” (Nietzsche, F. Obras incompletas 1974, P.45). Segundo Nietzsche, o Apolíneo
e o Dionisíaco são complementares entre si, entretanto, existe certa tensão entre as figuras de Apolo e Dionísio pelo fato de que para
conceber a existência de uma das figuras, é necessário o equilíbrio entre as partes para estabelecer a complementação da outra. Apolo
e Dionísio são entendidos aqui como figuras centrais, em sua origem, capazes de exemplificar de maneira metafórica relações entre a
arte o homem e o mundo.
A concepção estética apresentada em “O Nascimento da tragédia” abre portas para considerarmos que o processo entre essas figuras
tangencie o conceito do jogo e o conceito do Ágon, constituindo pontos importantes na contemporaneidade para o estudo hermenêutico das relações com a arte. Nietzsche, segundo a interpretação de Heráclito, acredita que a criança o artista e a natureza produzem do
mesmo modo. Jogam de maneira inocente e entendem a existência a partir de um instinto de jogo. (GUÉRVOS, S. 2011). Sendo assim:
O jogo não é compreendido pela antítese entre sabedoria e loucura, ou apenas pela oposição entre verdade e falsidade, ou bem e o mal. [...]
Se, portanto, não for possível ao jogo se referir diretamente as categorias do bem ou da verdade, não poderia ele ser incluído no domínio da
estética? [...] Em suas formas, o jogo esta saturado de ritmo e de harmonia. (HUIZINGA, J. 2000 p.9)
Apolo e Dionísio são fatos que consideramos presente no jogo de entendimento da arte, e o jogo esta presente não só no entendimento
da estética, está presente no artista e também na concepção da obra de arte, assim como após a criação da obra, existe um longo jogo,
que se evidencia muitas vezes pela retórica, o Ágon, a disputa, para inserir a obra no circuito cultural, além de, assim que consolidada,
a obra esta aberta a outras disputas teóricas como as que pretendemos apresentar.
O que nos ensina esse jogo? Primeiramente que ele é jogado, ou seja, que não existe jogo em si (como não existe obra em si); não há jogo
sem jogadores e jogadores e jogo se transformam conforme o jogo é jogado. É o mesmo que dizer que o sujeito não é o jogador (o artista)
apenas, mas sim o próprio jogo, englobando a ação de jogar e os jogadores. [...] A metáfora do jogo convém à experiência da arte, já que ela
própria escapando do logos discursivo, dos conceitos aprisionados em uma sintaxe perfeita, evade-se, em que figuras tropos, sugerem mais
que demonstram, mas para além do aspecto lúdico da arte, as implicações filosóficas desse jogo é que são evocadas, como por exemplo, a
relação necessária que liga intimamente sujeito e objeto, fazendo da pratica artística uma totalidade em obra (in process). [...] A obra como
jogo só brota com a condição de participação ativa, de interpenetração, de um dialogo no qual o que advém enquanto se dialoga é a verdade
do dialogo, o fato de ele ocorrer e que , ocorrendo, consegue representar seu próprio ser de dialogo, o que se tem em vista não é a verdade
que resultaria de uma argumentação, nem a ‘verdade cientifica’, mas um ‘jogo como verdade’. Um jogo que só é verdade quando esta sendo
jogado. (CAUQUELIN, 2007 P.99).
As pesquisas de Santiago Guérvos “A dimensão estética do jogo na filosofia de F. Nietzsche” e Eugen Fink em “La filosofia de Nietzsche”
trazem as informações que consolidam o embasamento teórico referente a essa relação do jogo de Apolo e Dionísio, precisamente no
“Nascimento da Tragédia” e foi a elas que resgatei para estabelecer um evento dialógico com as teorias e as praticas da arte contemporânea.
Para Nietzsche sonhar é um modo de “jogar com o real (wirklich)” de tal maneira que existe uma diferenciação entre a arte do artista Dionisíaco, que “joga com a embriaguez e com o êxtase“ [...] Por sua vez a arte do artista Apolíneo é jogar com o sonho, sendo preciso entender
o sonho como o jogo do homem individual com o real. Jogar com o real enquanto se sonha consiste em impor uma forma e uma medida ao
acontecer. (GUÉRVOS, S. 2011, p. 52,53).
Acredito assim como Johan Huizinga que muitas das relações humanas, inclusive a cultura, são construídas perante uma serie de características e estruturas que configuram o conceito de jogo. “A cultura é desde seus primeiros passos, como que “jogada””. [...] “Segundo
as formas e o ambiente do jogo” (HUIZINGA, 2000 p.37) e neste caso, o que nos interessa no jogo é a disputa, o Ágon.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 49-55, 2013.
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Nicolas Bourriaud e Rirkrit Tiravanija x Claire Bishop,
Santiago Sierra e Edwin Sanchez.
“Para Nietzsche, um tipo de filosofo que o pensamento se encontra entre os pré-socráticos, nos quais existe unidade entre o pensamento e a
vida, esta “estimulando” o pensamento, e o pensamento “afirmando” a vida.” (Nietzsche, F. Obras incompletas 1974, P.6).
Nicolas Bourriaud teorizou uma vertente das práticas artísticas do final dos anos 90 e inícios do século XXI, lançando o livro “Estética
Relacional” (Relational Aesthetics), no qual considera que as práticas artísticas contemporâneas tomam como ponto de partida teórico
e prático, o conjunto das relações humanas e seu contexto social. Sendo assim, a arte se apresenta como uma duração a ser experimentado, um “estado de encontro” (BOURRIAUD, 2011, p.21) para produção de uma “socialidade especifica” (BOURRIAUD, 2011, p.22).
Nicolas Bourriaud propõem uma estética acessível a todos. Publica outros livros além da “Estética relacional” como “Pós-produção”
e “Radicante” sendo todos monólogos assumindo a autoria de novas teorias sobre a arte. Todos os livros são amplamente aceitos no
mercado e se tornaram praticamente obrigatórios nas escolas de arte do mundo todo ler tais obras para manter-se por dentro dos procedimentos da arte contemporânea.
Quais são os interesses da arte contemporânea e suas relações com a sociedade? Como interpretar as novas formas e abordagens dos artistas? Como entender essas produções inapreensíveis em um primeiro olhar? Bourriaud elabora a Estética Relacional e coloca em foco
as “novas” formas de produção artística sob uma vertente que exalta a convivência e a interação na investigação do sensível. Para Bourriaud, “A arte contemporânea realmente desenvolve um projeto politico quando decide investir e problematizar a esfera das relações”
(BOURRIAUD, 2011, P.23) Segundo ele é possível encontrar a presença de um materialismo aleatório e uma ausência de forma nos
trabalhos ditos relacionais, segundo ele são trabalhos de arte que se mantem abertos ao fluxo constante. Entretanto, Bourriaud enfatiza
que as relações humanas são estabelecidas dentro de espaços de controle, espaços mercantis. Desta forma, identificamos que grande
parte dos trabalhos de arte relacional evidencia o caráter da vida enquanto fenômeno e, assim pretendemos lançar uma reflexão sobre
essa ideia de estética relacional que visa uma aproximação feita entre vida e arte, a arte e vida.
Quando se fala em Estética Relacional, um dos artistas mais citados por Bourriaud é Rirkrit Tiravanija.
Rirkrit Tiravanija é um artista que vive em Nova Iorque, nascido em Buenos Aires em 1961 de pais tailandeses e criado na Tailândia, na
Etiópia e no Canadá, conhecido por seus híbridos de instalação e performance em que prepara legumes com curry ou pad thai ( prato
típico tailandês feito com macarrão) para as pessoas que visitam o museu ou a galeria onde foi convidado a trabalhar. (BISHOP, 2012, p.3).
Segundo Bourriaud:
Rirkrit Tiravanija cria obras nas quais o sentido é conferido pelas pessoas, e a obra oferece uma trama narrativa, uma estrutura a partir da
qual se forma uma realidade plástica. Produz modos de socialidade. Os espectadores são convidados para uma atividade temporária, onde
nada é duradouro, tudo é movimento. São estruturas que servem de atratores de humanidade. (BOURRIAUD, 2011 p.54).
Claire Bishop através do artigo “Antagonismo e Estética Relacional ” considera, assim como nós, identificar uma condição errática na
“estrutura relacional” de Bourriaud. Ela afirma que a Estética relacional de Bourriaud é escrita a partir de sua abordagem prática de
curador, mas, identifica como problema, o caráter divino do autor quando promete redefinir o panorama da arte contemporânea.
O problema que surge com a noção de “estrutura” de Bourriaud é que ela estabelece uma relação errática com o tema ou o conteúdo visíveis
do trabalho. [...] Por exemplo, o que Tiravanija cozinha, como, e para quem, é menos importante do que o fato que ele distribui os resultados
do que cozinha de graça. (BISHOP, 2012, p.5).
Não pretendemos negar aqui a singularidade das obras apresentadas por Bourriaud nem a curiosidade existente nos materiais e no
trabalho de Rirkrit Tiravanija, mas sabemos da dificuldade que é identificar a “estrutura” de um trabalho que se diz aberto e em movimento. A teoria de Bourriaud exalta o valor do uso e do faça você mesmo (Do it Yourself) e notavelmente se diferencia da tradição
histórica da contemplação. Por conseguinte, a ideia de que a “estrutura” de um trabalho de arte relacional produz uma relação social,
para nós, traz consigo apenas um retrato da heterogeneidade cotidiana e da mercantilização exorbitante, mas não examina com a devida
atenção, as relações que estão sendo produzidas, não questionam para quem e porque são feitas tais relações. Parece ser preciso julgar
52
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2 , p. 49-55, 2013.
com mais rigor os fenómenos produzidos pelos trabalhos de arte relacional.
Claire Bishop estabelece e evidencia uma breve relação de antagonismo entre a produção de Rirkrit Tiravanija e Santiago Sierra (1966)
estabelecendo um contraponto ao monologo de Bourriaud. Vemos que o Antagonismo de Bishop apresenta a luta e a competição de
ideologias distintas exemplificadas pela proposta de dois artistas oponentes em um determinado contexto. É preciso deixar claro que
Santiago Sierra é um artista Espanhol e seus trabalhos são de natureza interativa e relacional. O artista normalmente costuma estabelecer um contrato com pessoas fora do mundo da arte, para que realizem seus trabalhos de arte (suas performances), mas só são contratadas pessoas que aceitem receber muito pouco, normalmente pessoas do local de origem de onde o artista foi chamado a trabalhar.
Em “250 cm line tattooed on six paid people” (1999) o artista paga $30 a seis homens desempregados, em Cuba, para tattoar uma única
linha em suas costas. Já em “Contratación de 30 trabajadores conforme a su color del piel” (2002) são contratadas 30 pessoas pelo artista
que são dispostas conforme sua cor de pele em escala tonal.
O leitor mais atento notará a diferença no conteúdo das relações escolhidas e na maneira de como as propostas são apresentadas tanto
por Bourriaud quanto por Claire Bishop. Enquanto Nicolas Bourriaud prefere o sonho e monologo socrático da elaboração de uma ordem, Claire Bishop opta pela embriaguez Dionisíaca. Desta forma, a pesquisa a opta em apresentar o artista colombiano Edwin Sanchez
(1976) para reafirmar o antagonismo descrito por Bishop.
O artista Colombiano Edwin Sanchez se coloca no limite entre situações legais e ilegais sendo filmado por uma câmera escondida, em
“Ejercicio de anulacion” (2008) vai até as ruas durante alguns dias e repete ação de colocar uma caixa de papelão em cima de um pedinte
sem aviso prévio, na tentativa de anulá-lo. Já em “Insercion em circuito ideológico” (2010) uma arma é adquira pelo artista no mercado
negro e são inseridas frases que dizem respeito a anseios do mundo da arte como “quero vender todas minhas obras” , e aos anseios do
crime, “quero violentar uma menor” sendo posteriormente a arma revendida e devolvida ao mercado negro. Tanto as obras de Edwin
Sanchez, assim como as de Santiago Sierra utilizam-se dos títulos para enfatizar suas discussões.
Acredito que essa produção artística contemporânea esteja trabalhando de certa forma, com a estetização da vida, evidenciando-a
enquanto fenômeno na tentativa de aproximar a arte da vida, porém de fato é preciso observar certas distinções, Bourriaud é Frances e
não assume um posicionamento critico em relação a essas produções, assume um posicionamento de curador, no qual arrebanha um
grupo seleto de artistas e os promove enquanto seus prediletos e, acaba por transformar a arte num tipo de espetáculo em que relações
humanas são mercantilizadas numa formula estética. Os trabalhos acima apresentados são de artistas Latino Americanos e propõem
uma imbricação mais complicada entre o social e o estético, são trabalhos que se posicionam contra a utopia de Bourriaud de que a arte
relacional é um meio de localizar a prática contemporânea dentro da cultura de modo geral e contra o posicionamento de Tiravanija
que propicia a um publico convidado “Maravilhosas rodadas de refeições com galeristas” (BISHOP, 2012, P.6).
O Dionisíaco e o Socrático: Golpe e contragolpe
Existe uma distinção entre o Dionisíaco e o socrático e o socratismo é visto como antagonista a sabedoria trágica. Sócrates quis transformar o todo em algo pensável, lógico e racional, mas Nietzsche considera o gesto de Sócrates como um instinto artístico de extremidade
Apolínea, como uma vontade de ordenação e domínio racional do existente.
Apolo e Dionísio são tomados como metáforas para expressar a contraposição dos instintos artísticos gregos juntos no antagonismo da
musica. Para ilustrar os antagonismos, Nietzsche recorre à condição fisiológica da vida humana, o Sonho e a embriaguez. O sonho se faz
do criador de imagens, força consciente, cria o mundo das imagens e formula as figuras junto à magia da aparência. Os gregos conceberam
Apolo com essa força criadora do mundo imaginativo que aparece no sonho do homem. Porém a interpretação psicológica do sonho de
Apolo não cria só imagens do sonho humano, mais também caracteriza o que o homem toma por real. (FINK, 1995, p.14).
Perante o jogo, tensão significa incerteza e é dai que surge a aproximação com as praticas artísticas e com o circuito da arte, no qual a
tensão e incerteza sempre estão muito presentes. A composição de Apolo e Dionísio, sonho e embriaguez é vista como unidade trágica
que julgo capaz de abarcar as relações entre Nicolas Bourriaud e Claire Bishop. Eugen Fink acredita que em “O nascimento da tragédia”,
Nietzsche “formula o trágico, como uma categoria estética”. (FINK, 1995 p.8.) e considera que o fenômeno trágico vive na arte de maneira mais intensa e sem ressentimentos. Constitui-se assim que a poesia trágica está para à arte, e estas conduzem e abrem para essência
do mundo - no jogo da arte esta o jogo da vida, e ambos são permeados de antagonismo.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 49-55, 2013.
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Percebemos que Nietzsche somente considera o Ágon mais próximo do artista quando propõe dar origem a obra de arte, mas não será
possível pensar que além de imprimir força no artista e na concepção da obra de arte o Ágon, na contemporaneidade, perpassa esse
papel e continua a existir após a obra concebida? Após a realização da obra, o jogo continua e a disputa, com o tempo, passa a ser para a
obra permanecer inserida nos debates do contexto cultural, sendo posteriormente disputada para ser discutida por críticos, curadores,
galeristas e historiadores.
Bourriaud estabelece um jogo de ordenação Apolínea, uma ordenação que sofre golpe e contragolpe e sente o ritmo imprimido pelo
Dionisíaco.
Não se pode compreender o trágico senão no movimento significante do jogo, no qual se enraíza a autoafirmação Dionisíaca do vir a ser,
dissolvendo e renovando perpetuamente a ilusão do ser. [...] Esta ambivalência só pode ser explicada pela ausência de centro tal como se dá
no jogo. (GUÉRVOS, 2011, p.54,55).
Identificamos que o lúdico perde espaço no contemporâneo, mas o jogo não. A força de hábitos agnósticos continua e o jogo se transforma em negocio, comercio. Por conseguinte sabemos que a hermenêutica assim como a fenomenologia aceita e considera como
objeto de estudo, o processo de interação que acontece entre sujeito e objeto na busca determinar um sentido. Desta forma apresento a
tentativa de relacionar o impulso de competição com o impulso artístico de criação, estabelecendo o espaço do jogo enquanto lugar da
luta e da competição por uma representação do ser e posteriormente de um grupo. (GUÉRVOS, S. 2011). Lembrando que parto da visão
de que “Nietzsche não pensa distinção entre arte e mundo, a arte não é tema de interpretação do mundo, mais é o meio e o método”
(FINK, 1995, p.16).
Na medida em que não é necessário tornar espetáculo as relações humanas, oponho-me a transformar a arte e o pensamento em desculpas para viver uma vida de abstração. Considero exemplar a relação de antagonismo apresentada por Claire Bishop em seu artigo, e a
maneira como coloca um contragolpe a tese de Bourriaud. Sendo assim, o entendimento da essência do trágico nos coloca em contato
com o mundo e com o antagonismo apresentado por Bishop. Dionísio sempre aparecerá para estabelecer o contraponto. Os exemplos
dos trabalhos de Santiago Sierra somados a Edwin Sanches evidenciam uma linha de trabalhos de arte relacional que vivem de acordo
com o conhecimento trágico do mundo e preocupam-se em levantar questões demasiado humanas.
Concluímos que as considerações de Claire Bishop tangenciam o fenômeno do Dionisíaco, na medida em vem trazer a embriaguez
desvelando a forma magica de Nicolas Bourriaud. Acredito que a partir de uma concepção cética, o trabalho se engrandece. Tanto o
trabalho de arte, quanto a pesquisa em arte, nunca é! Esta sempre prestes a se tornar. Deve disputar seu espaço com o tempo e consolidar
sua estruturação mediante outras opções, deve se manter e permanecer sempre em disputa, mediante o exercício do arbítrio do artista
e do pesquisador que devem manter esta postura mediante a tudo, pratica e teorias. A proximidade entre os assuntos jogo e arte torna
possível que os elementos da pesquisa sejam colocados sobre um foco de estudo mais aprofundado. Todas as obras e artistas apresentados aqui merecem uma investigação mais profunda e os possíveis exemplos não se esgotam, pelo contrário, multiplicam-se.
O Jogo
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Apolíneo
Dionisíaco
Nicolas Bourriaud
Claire Bishop
Rirkrit Tiravanija
Santiago Sierra, Edwin Sanchez
Espetáculo
Sonho
Principio de ordenação
Socrático
Antagonismo
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2 , p. 49-55, 2013.
Embriaguez
Trágico
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Recebido em 20 de Fevereiro de 2014.
Aprovado para publicação em 15 de Abril de 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2 , p. 49-55, 2013.
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O Processo de Avaliação em Artes Visuais:
perspectivas e inovações direcionadas à formação docente
The evaluation process in visual arts:
perspectives and innovations directed to teacher training
Tânia Alves de Sousa Oliveira* & Adilene Gonçalves Quaresma**
*Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, do mestrado profissional do Centro Universitário UNA e
professora no curso de Artes Visuais-Licenciatura da Escola de Design da UEMG. Belo Horizonte – MG. Licenciada em
Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caratinga-MG.
**Doutora em educação pela UFMG e professora no mestrado profissional em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local e no curso de Pedagogia do Centro Universitário UNA, BH- MG e no curso de Pedagogia da Faculdade da
cidade de Santa Luzia-FACSAL. MG.
RESUMO
O artigo discute o processo de avaliação em Artes Visuais no contexto das orientações contidas na Política Educacional no
processo ensino-aprendizagem para o ensino fundamental e médio. Toma por referência pesquisa bibliográfica e empírica
realizada em três estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio situados na cidade de Belo Horizonte. A abordagem
compreende: o objetivo e estrutura do texto; discute o conceito, as características e funções da avaliação que convergem na
perspectiva da política educacional; discute-se os instrumentos de avaliação usados na escola e nas considerações finais são
apresentadas algumas questões que requerem um debate aprofundado, tendo em vista, avançar na construção de uma metodologia inovadora da avaliação no processo de ensino-aprendizagem.
Palavras-chave: Avaliação; Ensino-aprendizagem; Artes Visuais; Formação docente; Metodologia.
ABSTRACT
The article discusses the evaluation process in the context of Visual Arts in Educational Policy guidelines in the teachinglearning for primary and secondary education process. Takes for reference literature and empirical research carried out in
three establishments of elementary and high school located in the city of Belo Horizonte. The approach includes: the purpose
and structure of the text, discusses the concept, characteristics and functions of evaluation that converge in the perspective of
educational policy; discusses the assessment instruments used in school and in the final considerations are some issues that
require a depth discussion in view, advance the construction of an innovative assessment methodology in the teaching-learning
process.
Keywords: Evaluation; Teaching and learning; Visual Arts; Teacher training; Methodology.
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O
processo de avaliação do ensino-aprendizagem em Artes Visuais, de um modo geral, configura-se como parte integrante do
processo educacional, acompanha as transformações na educação e na escola que decorrem das transformações na sociedade.
Uma das questões mais controvertidas relacionadas à Arte na educação é a avaliação. Porém, sabe-se que nem tudo pode ser
medido, mas tudo pode ser avaliado. Há que se reconhecer a necessidade e validade da avaliação em Arte.
É um tema relevante dentro dos processos educacionais. A necessidade de sanar a incompletude e insuficiência de conhecimentos
sobre a avaliação em Arte, observadas na formação docente dos estudantes de Licenciatura e observadas na prática atual dos egressos,
justificou uma pesquisa qualitativa indicando como ponto de partida, a trajetória da avaliação em Artes Visuais com base em textos e
depoimentos relevantes de vários autores, com o propósito de levar à formação docente, a necessidade de transformação da experiência
que está em curso para que possam conduzir ao cerne desta questão.
A avaliação tem uma trajetória muito significativa na educação. É um assunto de amplo debate e discussão, extremamente polêmico e
contemporâneo. Houve muitas mudanças na educação e também na avaliação como parte desse processo. A avaliação é um tema ainda
em construção, principalmente aquela centrada na Arte, em particular. Ela deve estar pautada no sistema de ensino que se trabalha e,
para isso, é preciso formação que prepare os professores para enfrentarem as contradições e conflitos que surgirão.
No que se diz sobre a avaliação, enquanto uma atividade teórica e prática, não tem um paradigma amplamente aceito. Existe, isto sim,
uma grande variedade de modelos e, entre eles, a respeito de uma melhor maneira de avaliar, pouco se concorda. É necessário transfor-
mar o discurso avaliativo em mensagem que faça sentido, tanto para quem a emite quanto para aquele que a recebe. O maior interesse
de um processo de avaliação deveria recair no fato de se tornar verdadeiramente informador. A avaliação deve tornar-se o momento
e o meio de uma comunicação social clara e efetiva sobre o processo ensino-aprendizagem, principalmente indicando as dificuldades
enfrentadas e as capacidades adquiridas, tanto por parte do professor como do aluno. Deve sempre fornecer ao aluno informações sobre
seus erros e dificuldades, bem como o êxito adquirido na aprendizagem, para que ele possa compreender e sentir que lhe são úteis. O
problema central é a postura avaliativa do professor, que deve tentar encontrar e construir caminhos alternativos para proceder avaliações neste sistema escolar pouco aberto a mudanças.
Este texto tem por referência pesquisa realizada no Mestrado Profissional, iniciado em 2012 e concluído no final do ano de 2013, no
Programa de pós-graduação em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA- BH- MG, cujo objetivo foi analisar o processo de avaliação do educando em diferentes situações educativas no ensino das Artes Visuais, no âmbito do
Ensino Fundamental e Médio. Nesse sentido, ao buscar identificar a pedagogia dessa relação, detectou-se a necessidade de reconstrução
do processo de avaliação como parte de um movimento onde se imbricam compromisso e desenvolvimento de uma práxis pedagógica
comprometida com a inclusão, com a pluralidade cultural, com o respeito às diferenças, com a construção coletiva.
Quanto ao desenho metodológico desta investigação, optou-se pela abordagem qualitativa, coleta de dados através de pesquisa bibliográfica, documental e empírica, além de entrevista semiestruturada realizada com diretores, coordenadores, supervisores e professores
em três estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio situados na cidade de Belo Horizonte-MG. O quadro teórico compreende
as discussões de Antunes (2012); Barbosa (2005); Fernandes (2009); Freitas et al (2011); Gardner (2010); Liblik (2005); Luckesi (2009);
Pérez Gómez (2011); Perrenoud (1999); Romão (2009); Sant’Anna (2010) e Zabala (2010), que, entre outros autores, oferecem contribuições significativas sobre o processo de avaliação no ensino-aprendizagem.
O objetivo do texto é apresentar algumas reflexões sobre o processo de avaliação em Artes Visuais: perspectivas e inovações direcionadas
à formação docente em consonância com o desenvolvimento do educando, tendo em vista sua inserção na escola e na comunidade em
torno das políticas educacionais e estrutura-se da seguinte forma: A introdução apresenta alguns pressupostos que orientam a discussão
da temática, o objetivo e estrutura do texto; na primeira parte discute-se o contexto histórico sobre o ensino e avaliação em Arte no
Brasil e as correntes pedagógicas no processo ensino-aprendizagem; a segunda parte apresenta o conceito, as características e funções
da avaliação que convergem na perspectiva da política educacional; na terceira parte discute-se os instrumentos de avaliação usados na
escola; dados empíricos da pesquisa são apresentados, tendo em vista a caracterização das experiências construídas pelos professores e
são apresentadas as análises dos dados a partir dos depoimentos sobre avaliação fornecidos pelos gestores e desenvolvidos pelos professores das escolas envolvidas; nas considerações finais são apresentadas algumas questões que requerem um debate aprofundado, tendo
em vista, avançar na construção de uma metodologia inovadora da avaliação que tenha o foco no processo de ensino-aprendizagem.
Conclui-se que, ao repensar a função da avaliação, houve possibilidade de elaborar uma proposta com mecanismos favoráveis à construção de uma nova metodologia de avaliação especificamente aplicáveis às Artes Visuais e que atende aos interesses dos docentes em
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2 , p. 56-68, 2013.
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formação, dos egressos, dos docentes atuantes e principalmente do educando. Foi, portanto, gerado um produto técnico, que é um guia
metodológico de avaliação em Artes Visuais.
Contexto histórico sobre o Ensino e a Avaliação em Arte no Brasil e as Correntes Pedagógicas
No breve histórico sobre a avaliação em Arte no processo ensino-aprendizagem, considerou-se as origens coloniais brasileiras, a fim de
que se entendesse o processo formativo da cultura nacional. Essa cultura originou-se através de um transplante da cultura portuguesa:
pensavam-se e viviam-se os valores e sentidos europeus, que pouco tinham a ver com as condições reais da terra.
Nesse contexto, constatou-se que o processo avaliativo vivenciou diferentes momentos, que transitaram e ainda transitam entre as escolas com concepções que se alocam em extremos e ainda se fazem presentes, dificultando o delineamento de um espaço que favorecia
outras concepções e práticas.
Ao se fazer uma retrospectiva das diferentes concepções no decorrer de diversos momentos históricos, percebeu-se cinco fases e desdobramentos a respeito da avaliação que foram de encontro às práticas pedagógicas, o que implicou na utilização de um método lógico
e único para todas as áreas de conhecimento.
As fases ou tendências pedagógicas no ensino da Arte associam-se à história dos movimentos artísticos, ou seja, às teorias estéticas.
Dessa forma, a pedagogia renovada corresponde à modernidade e aos paradigmas da arte moderna, e a pós-modernidade corresponde
às propostas atuais de ensino.
O professor tem papel importante na experiência e prática pedagógica. Os métodos dessa prática situam-se para além dos tradicionais
e novos, superando por incorporação, as contribuições de uns e de outros. Não se deve excluir as orientações da escola tradicional nem
da escola renovada. Algo se conserva, se rompe e se transforma. Não há como avançar partindo do nada.
Nessa perspectiva, buscou-se conhecer as fases que contribuiram para o desenvolvimento da avaliação através da história, ou seja, Escola Tradicional, Escola Nova, Escola Tecnicista, Escola Construtivista/Cognitivista e Escola Progressista.
No princípio, na fase da Escola Tradicional constatou-se que o professor, por seu poder decisório, tornou-se o centro do processo
pedagógico ao utilizar regras rígidas e severas, para assegurar a aprendizagem de seus alunos, incluindo mesmo punições e castigos
corporais, o que somente acentuava a sua predominância no papel de transmissor do saber e o poder impositivo das regras, e, aos alunos
cabia o papel de espectadores submissos e receptivos das informações transmitidas.
Quanto à avaliação, havia uma valorização dos aspectos cognitivos e quantitativos expressos na verificação classificatória dos resultados.
Isso pode ser evidenciado na metodologia proposta por Comênius (1985) que recomendava a observação e a reprodução de modelos
artísticos perfeitos, de bases neoclássicas, e, posteriormente, a análise e a comparação das técnicas de desenho apreendidas. Ele afirmava, categoricamente, que esses exercícios deviam ser continuados, até que se criasse o hábito da Arte.
Presume-se nessa abordagem, que os pressupostos de Comênius já vislumbravam uma avaliação num processo contínuo como se faz
hoje em dia. As ideias de Comênius (1985), instauradas no início oficial do ensino de Arte no Brasil, no século XVI, com os jesuítas,
estimularam a ideia de Arte como aquisição de habilidades para o trabalho, ou seja, a ênfase no sentido utilitário do fazer artístico,
fixado pela repetição, pelo aprimoramento e destreza motora.
Essa postura, ainda hoje, se encontra arraigada nas práticas de muitos professores da escola contemporânea.
Na segunda fase de desdobramento do processo avaliativo, ou seja, na Escola Nova constatou-se que todas as práticas pedagógicas estavam voltadas ao aluno em crescimento ativo e progressivo. Esta fase veio trazer contribuições relevantes: o professor deixou de ser o
detentor do saber para reconhecer o papel ativo do educando; o professor passou a ocupar o papel de facilitador da aprendizagem do
aluno de forma a permitir-lhe o desenvolvimento de suas habilidades inatas.
A Escola Nova deixou marcas no processo avaliativo. Ela propugnou uma avaliação que não julgava em função de méritos ou padrões,
mas sim que verificava os impasses e as dificuldades para o crescimento dos alunos e ao mesmo tempo, que era um meio auxiliar nesse
crescimento, fazendo parte do processo de ensino-aprendizagem, dirigida com autoridade e não com autoritarismo, e respeitando o
processo psicológico do aluno.
Na perspectiva da Escola Tecnicista o foco foi avaliar, não apenas para medir mudanças comportamentais e de aprendizagem, mas
também para quantificar os resultados e assegurar a eficácia do método. Os professores tecnicistas valiam-se de vários instrumentos
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avaliativos, como testes, escalas de atitude, inventários, questionários, check-list, fichas de registro, entre outros, cuja finalidade buscava
controlar a eficiência do ensino-aprendizagem. Assim, comparavam o desempenho obtido pelos alunos com os objetivos previamente
estabelecidos.
A quarta fase foi a avaliação na Escola Construtivista/Cognitivista cuja concepção apoiou-se na ideia de que aprender é fruto de uma
construção pessoal, na qual os outros sujeitos são significativos para essa construção. O processo avaliativo acontecia em momentos
individuais e coletivos; havia provas escritas e trabalhos a partir de pesquisas realizadas pelo aluno. Nas Artes Visuais o aluno procurava
entender o contexto histórico das linguagens artísticas diferenciadas bem como tinha possibilidade de se ver como artífice dessa construção.
A quinta fase foi a avaliação na Escola Progressista que se subdividiu em Escola Libertadora, Escola Libertária e Escola Crítico-Social
dos conteúdos. Nessa fase o aluno foi estimulado a estudar dentro de uma perspectiva crítica e a criar novos saberes, percebendo a
avaliação como um processo que orienta e aperfeiçoa a aprendizagem. Nessa fase a avaliação em grupo e a autoavaliação se tornaram
práticas constantes, além de abrigar um caráter informal.
Os dados coletados permitiram afirmar a influência dessas abordagens nas escolas pesquisadas em termos de prática de avaliação em
Artes Visuais. O ensino preservou os traços tradicionais, escolanovistas e tecnicistas em maior ou menor grau. Na prática essas pedagogias se imbricam, não são lineares, mas manifestam-se justapostas no contexto do processo ensino-aprendizagem das Artes Visuais.
Conceito, características e funções da avaliação
Avaliar é indispensável em toda atividade humana e, portanto, em qualquer proposta de educação. Assim sendo, Freitas et al. (2011)
postulam a existência de três níveis de avaliação integrados, simultaneamente, ao articularem a avaliação realizada em sala de aula
(aprendizagem), com a avaliação interna à escola e sob seu controle (institucional) e a avaliação de responsabilidade do poder público
(sistemas).
Acredita-se que a articulação entre esses níveis de avaliação citados repercute nos processos de planejamento e participação docente, no
projeto da escola, bem como a melhoria do ensino-aprendizagem dos estudantes.
Igualmente Fernandes (2009, p. 21) considera que “a avaliação pode melhorar a qualidade das aprendizagens e, em conseqüência, a
qualidade do sistema educacional globalmente considerado”. O autor discute a avaliação como um elemento essencial de desenvolvimento dos sistemas educativos porque é, muitas vezes, a partir e por meio dela, que as escolas podem colaborar na construção do currículo.
Dentro dessa concepção:
Os professores podem organizar o ensino com maior ou menor ênfase na experimentação ou na resolução de problemas; os alunos podem
estudar com maior ou menor orientação; os pais e os encarregados de educação podem acompanhar a vida escolar de seus filhos ou educandos com maior ou menor interesse; a sociedade em geral pode estar mais ou menos informada acerca do que os jovens estão aprendendo e
como estão aprendendo; os governos podem, ou não, estabelecer mais fundamentada e adequadamente as políticas educativas formativas
(FERNANDES, 2009, p.21).
Professores, pais, alunos, a sociedade em geral situam-se como avaliadores que podem interpretar e atribuir sentidos e significados à
realidade escolar onde se inserem e através de suas experiências podem recriar a escola dentro das possibilidades das diferentes leituras
dessa realidade.
Embora a avaliação da aprendizagem em sala de aula seja o lado mais conhecido da avaliação educacional, o foco dessa pesquisa é a
avaliação do processo de ensino-aprendizagem em Artes Visuais.
A questão da avaliação do processo de ensino-aprendizagem, cujos protagonistas são o professor e os alunos, e cujo “locus” é a sala de
aula, implica alguns conceitos para orientar esta caminhada. Nesse sentido, faz-se necessário compreender os conceitos, as características e funções da avaliação.
O conceito mais comum de avaliação estipulado por Luckesi (2009, p. 9) lembra que, “a avaliação é um juízo de qualidade sobre dados
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relevantes da realidade, tendo em vista uma tomada de decisão”. “Não se dá nem se dará num vazio conceitual, mas sim, dimensionada
por um modelo teórico de mundo e”, consequentemente, “de educação”, que possa ser “traduzido em prática pedagógica”. Luckesi compartilha a afirmação de Perrenoud (1999, p.13) de que “Não se avalia por avaliar, mas para fundamentar uma decisão”.
Para Luckesi (2009), o objetivo da avaliação é diagnosticar experiências, é propiciar decisões, é diagnosticar a aprendizagem que está
ocorrendo e os elementos que estão confluindo para esta aprendizagem, é tomar decisões que auxiliem este processo de melhoria da
aprendizagem na perspectiva de produzir resultados mais satisfatórios.
De fato, a avaliação pressupõe um juízo de qualidade e uma marca de subjetividade do avaliador, que devem ser objetivados em critérios e resultados. Ela conduz a uma tomada de decisão, quando se trata de um processo de aprendizagem e essa tomada de decisão
é o componente da avaliação que coloca mais poder na mão do professor. Ao longo do tempo, vão-se percebendo as dificuldades e os
avanços de cada aluno.
Como princípio geral, as ações de avaliação não se destinam a punir ou a classificar, mas sim a promover; servem para averiguar resultados obtidos, não para recompensar ou para castigar e sim para ajudar o aluno e o próprio professor a estabelecer metas adequadas
e a descobrir métodos eficientes, destinados a alcançar estas metas. Mediante a descoberta e apreciação dos fatos, são encontrados
problemas que devem ser prevenidos ou solucionados, os pontos fracos que devem ser vencidos e as causas que devem ser superadas;
situações que devem ser colocadas em seu nível normal.
O conceito de avaliação, na perspectiva sociológica, só se consubstanciou nos estudos críticos, ao papel da escola como reprodução social. Segundo Gomes (2003), foi em época mais recente que sociólogos começaram a despertar a atenção sobre a avaliação, percebendo
que era necessário conhecê-la mais profundamente, a fim de entender a própria escola e suas possibilidades. Entre os sociólogos que buscaram esse entendimento, destaca-se Perrenoud (1999) cujas investigações abordam a avaliação do ponto de
vista da excelência à regulação das aprendizagens entre duas lógicas: A lógica formativa e a lógica da seleção.
Antes de regular a aprendizagem entre as duas lógicas, a avaliação regula o trabalho, as atividades, as relações de autoridade e a cooperação em aula e, de uma certa forma, as relações entre a família e a escola ou entre profissionais da educação. Para Perrenoud (1999,
p.9) “avaliar é – cedo ou tarde – criar hierarquias de excelência”, ou seja, níveis, posições de qualidade do saber, em função das quais
se decidirão a progressão no curso seguido, a seleção no início do Ensino Médio, a orientação para diversos tipos de estudos, a certificação antes da entrada no mercado de trabalho e, frequentemente, a contratação. “Avaliar é também privilegiar um modo de estar em
aula e no mundo, valorizar formas e normas de excelência”, estigmatizar a ignorância de alguns para melhor celebrar a excelência de
outros. Segundo Perrenoud (1999, p.15):“A avaliação formativa introduz uma ruptura porque propõe deslocar a regulação ao nível das
aprendizagens e individualizá-la”.
Sant’Anna (2010) constata que :
A avaliação formativa é realizada com o propósito de informar o professor e o aluno sobre o resultado da aprendizagem, durante o desenvolvimento das atividades escolares. Localiza deficiências na organização do ensino-aprendizagem, de modo a possibilitar reformulações no
mesmo e assegurar o alcance dos objetivos. É chamada formativa, pois indica como os alunos estão se modificando em direção dos objetivos
(SANT’ANNA, 2010, p.34).
Nesse contexto, Perrenoud (1999, p.16) assinala: “Ela está no âmago das tentativas da pedagogia diferenciada e da individualização dos
percursos de formação”.
Cada avaliação, segundo Penna Firme (2005), deve revestir-se de características próprias em sintonia com o contexto social, político,
cultural e educacional onde se realiza e de forma tal que o avaliador é essencialmente um historiador, que descreve, registra, interpreta
a história singular de cada cenário.
Para Zabala (2010, p.195) a avaliação “é considerada como um instrumento sancionador e qualificador, em que o sujeito da avaliação
é o aluno e somente o aluno, e o objeto da avaliação são as aprendizagens realizadas segundo certos objetivos mínimos para todos”.
Segundo Zabala (2010):
É possível encontrar definições de avaliação bastante diferentes e, em muitos casos, bastante ambíguas, cujos sujeitos e objetos de estudo
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2, p. 56-68, 2013.
aparecem de maneira confusa e indeterminada. Em alguns casos, o sujeito da avaliação é o aluno , em outros é o grupo, classe, professor,
professora ou a equipe docente. Quanto ao objeto da avaliação, às vezes é o processo de aprendizagem seguido pelo aluno ou os resultados
obtidos, enquanto que outras vezes se desloca para a própria intervenção do professor ( ZABALA, 2010, p.195).
Nesse sentido, vamos encontrar na análise de Hoffmann (2009), que a avaliação é imprescindível no contexto educacional onde o professor avalia constantemente a ação educativa em problematização, questionamento e reflete sobre a ação sem torná-la um instrumento
de controle. O importante é que a avaliação possa mostrar o caminho para o educando seguir, impulsionando-o a buscar informações e
dados que alimente sua curiosidade, que estimule sua análise reflexiva, que o ajude na construção do conhecimento.
Para Antunes (2012, p. 261) “a avaliação do ensino-aprendizagem não constitui, assim, matéria pronta, discussão finalizada, teoria
aceita”. Necessita um construir a cada dia, a cada aula, com cada grupo de alunos. É preciso reconhecer que se aprende a cada instante a
verdadeira dimensão e direção da avaliação. Nesse sentido, percebe-se que o professor aprende a caminhar no percurso do seu prório
caminho.
Como lembra Romão (2009), há uma infinidade de conceitos de avaliação que refletem claramente a posição do autor. Ele explica que:
Em quase todos os relatos de especialistas e pesquisadores da avaliação, constata-se a contradição entre as intenções proclamadas e o processo efetivamente aplicado.Tal contradição é gerada pelo descompasso entre uma imagem idealizada da avaliação e a realidade cotidiana
das escolas, condicionadas, estruturalmante, pelo sistema de promoção e seriação. Talvez, por isso mesmo, surjam tantas concepções de
avaliação identificadas com tudo que ocorre nas práticas correntes: prova, nota, conceito, boletim, aprovação, reprovação, recuperação etc.
(ROMÃO, 2009, p.55).
A avaliação, segundo Sacristán e Pérez Gómez (2011, p. 322), “desempenha várias funções, atende a diversos objetivos para o sujeito
avaliado, para o professor, para a instituição escolar, para a família e para o sistema social”.
Sacristán e Pérez Gómez (2011, p. 323) apresentam sete funções das práticas de avaliação adotadas pela educação e diz que “as funções
que a avaliação cumpre são a base fundamental para o sucesso da aprendizagem e melhoria da qualidade da educação”. São elas: 1)
Função de definir os significados pedagógicos e sociais; 2) Cumprir funções sociais; 3) Função de poder de controle sobre os avaliados;
4) Funções pedagógicas abrangendo vários encargos (como diagnóstico, garantia da aprendizagem,etc.); 5) Funções na organização
escolar; 6) Projeção psicológica como fonte de motivação extrínseca e intrínseca; 7) Função de apoio da investigação no que diz respeito
aos resultados e suas interpretações.
As funções gerais e específicas da avaliação fornecem as bases para o planejamento e possibilitam melhoria na aprendizagem.
Avaliação da Aprendizagem em Arte
O mundo de hoje caracteriza-se entre outros aspectos, segundo os PCNs (1998), pelo contato com imagens, cores e luzes através da
história. As múltiplas manifestações visuais, criação e exposição conduzem à necessidade de uma educação voltada para o saber ver e
perceber, distinguindo, nas formas e nos ambientes, sentimentos, sensações, ideias e qualidades.
As Artes Visuais, possuindo formas tradicionais – desenho, pintura, escultura, gravura, arquitetura, objetos, cerâmica, cestaria, entalhe
-, inserem outras modalidades resultantes dos avanços das novas tecnologias e transformações estéticas do século XX: fotografia, moda,
artes gráficas, cinema, televisão, vídeo, computação, performance, holografia, desenho industrial, arte em computador. Cada uma,
relata os PCNs (1998), tem a sua particularidade e é utilizada em várias possibilidades de combinações entre elas; os alunos podem
comunicar-se entre si e com outras pessoas e expressar-se de diferentes maneiras.
Na contemporaneidade “as linguagens visuais ampliam-se, criando novas combinações e modalidades: A multimídia, a performance, o
videoclipe, e o museu virtual são alguns exemplos em que a imagem integra-se ao texto, som e espaço” (BRASIL, 1998, p. 63).
A avaliação da aprendizagem em Arte não deve se limitar a um escore de rendimentos ou a impressão do rótulo do talento, também
não pode se restringir ao instrumental do qual se vale para, apenas, levantar informações referentes à aprendizagem. A avaliação do
processo ensino-aprendizagem em Arte não se resume a diagnóstico, apesar de também compreendê-lo – porque apenas diagnosticar
o que não dá certo e não procurar alterar essa realidade é um exercitar em vão.
É possível identificar, porém, pesquisas relevantes nesse cenário, destacando contribuições notáveis de Barbosa (2005) buscadas em
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 56-68, 2013.
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Hernández (2000), Gardner (2010), etc., para oferecer aos professores de Artes Visuais inspiração e sugestões para os seus trabalhos
pedagógicos efetivos na sala de aula.
A concepção de avaliação em Gardner (2010, p.150) justifica-se como “a obtenção de informações sobre as capacidades e potenciais
dos indivíduos com o duplo objetivo de proporcionar um feedback útil aos indivíduos e informações proveitosas para a comunidade
circundante”.
As ações avaliativas hoje exercitadas pelos professores de Arte do Brasil não são frutos do acaso, mas decorrem da própria evolução do
ensino desse campo de conhecimento no contexto escolar.
Para Hernández (2000, p.154), “avaliar significa entender, interpretar e valorizar os conhecimentos aprendidos”. Ele afirma que a avaliação relacionada com o ensino da Arte tende a movimentar-se como parte do processo educativo, como um campo sobre o qual é
necessário abrir múltiplas questões e contrastar outras propostas sobre a avaliação que seguiram outro tipo de enfoques e critérios.
Os critérios de avaliação são geralmente estabelecidos pelo sistema ou subsistema, embora o mais comum é que cada escola, através de seu
regimento, registre os critérios ou normas a serem observados pelos responsáveis das diferentes disciplinas curriculares (SANT’ANNA, 2010,
p.78).
Para a definição desses critérios, analisando o conhecimento de Arte adquirido pelos professores em sua formação, é possível constatar
que em grande medida, eles precisam estar preparados para tal e, consequentemente, para realizar a avaliação do aprendizado de seus
alunos, através da observação, dos trabalhos desenvolvidos em sala de aula, do processo de criação, do interesse, do esforço, da dedicação e da vontade de aprender de cada um desde o início do processo ensino-aprendizagem.
Gardner (2010) acredita que qualquer nova forma de avaliação precisa satisfazer três critérios:
Deve ser justa para com a inteligência (não seja monitorada através das lentes da lógica ou da matemática); Deve ser adequada em termos
desenvolvimentais (utilizar técnicas apropriadas ao nível desenvolvimental da criança); Deve estar ligada a recomendações (qualquer resultado vinculado às atividades recomendadas para a criança com o perfil intelectual) (GARDNER, 2010, p.66).
Esse autor propõe um novo conjunto de papéis para os educadores, que poderia transformar esta visão em realidade. Seria importante
que a escola tivesse os “especialistas em avaliação”, cuja tarefa seria a de tentar compreender, tão sensível e quanto possível, as capacidades e interesses dos alunos de uma escola. Que utilizassem instrumentos “justos para com a inteligência”. Além do especialista em
avaliação, Gardner (2000) sugere o “agente do currículo para o aluno”, cuja tarefa seria a de ajudar a combinar os perfis, objetivos e
interesses dos alunos a determinados currículos e determinados estilos de aprendizagem.
Nas questões avaliativas pode-se pensar que a maior parte dos instrumentos utilizados em outras áreas do conhecimento podem e devem ser empregados no ensino da arte. Quanto maior for o elenco de instrumentos avaliativos ofertados ao aluno, mais possibilidades
ele terá para expressar a sua estrutura de conhecimento e tudo o mais que estiver sendo avaliado.
Instrumentos de avaliação usados na escola
Os instrumentos de avaliação do ensino-aprendizagem são muitos e podem variar segundo a disciplina, as circunstâncias e os objetivos que se quer alcançar. No entanto, é preciso esclarecer aos professores que não se deve ficar preso a instrumentos tradicionais ou
contemporâneos, superados ou atuais. Todos eles são válidos, desde que sejam aplicados de modo dinâmico, propiciando exercício de
reflexão e espírito crítico do aluno.
Em consonância com a legislação nacional, com os fundamentos e procedimentos definidos pelos Conselhos Nacional e Estadual de
Educação, com as normas do Sistema Estadual de Ensino de Minas Gerais e com a estratégia governamental de longo prazo definida no
Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado – PMDI 2011-2030, a Secretaria de Estado de Educação, através da Resolução nº 2.197,
de 26 de outubro de 2012, no uso de sua competência resolveu dispor no Título V, art.61 a 89, as diretrizes para a avaliação da aprendizagem, que entrou em vigor a partir do ano letivo de 2013.
No que diz respeito aos instrumentos avaliativos o art.70 da resolução esclarece:
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Na avaliação da aprendizagem, a escola deverá utilizar procedimentos, recursos de acessibilidade e instrumentos diversos, tais como a
observação, o registro descritivo e reflexivo, os trabalhos individuais e coletivos, os portfólios, exercícios, entrevistas, provas, testes, questionários, adequando-os à faixa etária e às características de desenvolvimento do educando e utilizando a coleta de informações sobre a
aprendizagem dos alunos como diagnóstico para as intervenções pedagógicas necessárias (SEE, art. 70, 2012).
A enumeração dos instrumentos de avaliação é um diferencial nessa proposta em relação às diretrizes básicas de ensino previstas
anteriormente pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9394/96. Alguns desses instrumentos já vêm sendo
utilizados no campo da educação há várias décadas e outros apresentam-se como alternativas para o desempenho do aluno abrindo-se
um leque de possibilidades. Assim, se inicia um novo processo.
Consolidando-se no cotidiano escolar, os instrumentos avaliativos podem ser adotados especificamente para o ensino de Arte. Segundo
Liblik (2005) os exemplos a seguir podem ampliar esse horizonte:
Instrumentos individuais: Provas orais (estilo de pintores); Provas escritas – papel e lápis (História da Arte); Trabalhos individuais
parciais (relatórios); Trabalhos individuais somativos (portfólio); Autoavaliação (com questionamentos); Processofólio (estratégia do
Arts PROPEL) .
Instrumentos coletivos: Debates (com dois grandes grupos de argumentação); Painéis (com murais); Seminários: ( com transposição de
saberes); Estudo de casos (numa situação determinada); Trabalhos em grupo (com formas de apresentação variada); Provas elaboradas
- resolvidas em grupo (a partir de um texto dado); Psicodrama ( como avaliação metafórica); Novas Mídias (empregando as ferramentas
e programas dos computadores; Avaliação dos exercícios Plásticos (desenho, pintura, recorte, colagem, montagem, modelagem, gravura, escultura, etc.); Exposição dos resultados plásticos (com observação, comentários); Avaliação de projetos (de maneira processual
e somativa).
A definição dos Conteúdos Básicos Comuns (CBC) para os anos finais do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio constitui um
passo importante no sentido de tornar a Rede Estadual de Ensino de Minas num sistema de alto desempenho. Para tanto surgiu uma
proposta curricular de Arte do ensino fundamental – 6º a 9º ano e ensino médio redigida no período de 2003 a 2010 para embasar o
trabalho dos professores.
De acordo com os autores dessa proposta, Pimentel et al. (2010), segue, para efeito de exemplo, uma lista com alguns instrumentos de
avaliação que devem, preferencialmente, ser utilizados em conjunto: Diário de Bordo (caderno de anotações, gravador ou câmera onde
o aluno registra o que aprendeu) ; Autoavaliação (oral ou escrita, individual ou em grupo); Entrevista (feita pelo professor ao longo do
ano); Aferições conceituais e de termos técnicos (questionários e testes conceituais da Arte); Avaliação formativa (constante e processual).
Considera-se nessa proposta, segundo Pimentel et al. (2010) critérios avaliativos, como: Criar formas artísticas por meio de poéticas
pessoais; Estabelecer relações com o trabalho de arte produzido por si, por seu grupo e por outros; Identificar os elementos da expressão
artística e suas relações em trabalhos artísticos e na natureza; Conhecer e apreciar vários trabalhos e objetos de arte; Valorizar a pesquisa
e a frequentação junto às fontes de documentação, preservação, acervo e veiculação da produção artística. Refletir sobre o sentido que
a avaliação da aprendizagem em Arte possui no âmbito dos modelos pedagógicos é uma das possibilidades, entre tantas que a prática
pedagógica envolve.
Com base nos estudos de Gardner (2010), sabe-se que o objetivo do projeto Arts PROPEL, foi o de desenvolver uma série de instrumentos de avaliação que pudessem documentar a aprendizagem artística durante o período final do Ensino Fundamental e no Ensino
Médio. Dentro desse objetivo criou-se uma série de exercícios chamados “projetos de domínio” para cada forma de Arte, apresentando
elementos perceptivos, produtivos e reflexivos. Embora os projetos de domínio se prestem a várias formas de avaliação, há também os
processofólios que são operações mais desafiadoras e delicadas, e podem ser avaliados em várias dimensões.
O projeto de domínio da “composição” funciona com um elemento tradicional das Artes Visuais – o arranjo da forma – e procura
vincular esse elemento às experiências produtivas do aluno. O aluno tem a oportunidade de distanciar-se e refletir sobre as forças e
fraquezas de cada composição, e exatamente como esses efeitos são completamente atingidos. Este projeto acontece em três sessões
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(fazer artístico, discriminações perceptivas e reflexões) e visa ajudar os alunos a perceberem como os arranjos e interrelacionamentos
das formas afetam a composição e o impacto dos trabalhos artísticos. Os alunos têm oportunidade de tomar decisões sobre as composições e refletir sobre os efeitos de tais decisões em seus trabalhos e nos trabalhos criados por mestres artísticos reconhecidos.
No projeto de domínio, chamado “biografia de um trabalho”, os alunos refletem sobre as mudanças que fizeram, as razões que motivaram essas mudanças e a relação entre os esboços iniciais e finais. Os esboços e produto final do aluno, juntamente com suas reflexões,
são avaliados em várias dimensões qualitativas, tais como comprometimento, habilidades técnicas, imaginação e habilidades avaliativas
críticas. Esse trabalho acontece em três sessões, iniciando com explorações perceptivas de obras-prima.
No processofólio, o aluno inclui não apenas os trabalhos concluídos, mas também os esboços originais, desenhos provisórios, críticas
dele mesmo e dos outros, trabalhos artísticos de outros que ele admira, ou desgosta e que têm algo a ver com seu atual projeto. Os
processofólios são avaliados de forma simples como a regularidade dos apontamentos, seu aperfeiçoamento, etc. ou de forma mais
complexa e subjetiva, como a qualidade global dos produtos finais, de acordo com critérios técnicos e imaginativos.
As várias dimensões da avaliação ajudam a esclarecer o potencial único dos processofólios: a consciência de que o aluno tem de suas
potencialidades; a capacidade de refletir corretamente; a capacidade de aproveitar a autocrítica e de fazer uso da crítica dos outros; a
sensibilidade em relação aos próprios marcos desenvolvimentais; a capacidade de utilizar produtivamente as lições dos projetos de
domínio; a capacidade de descobrir e resolver novos problemas; a capacidade de relacionar projetos atuais com aqueles realizados em
momentos anteriores e com aqueles que a pessoa espera realizar no futuro; a capacidade de passar facilmente de uma posição ou papel
estético para outro, de forma adequada.
O objetivo não é o de apenas avaliar em várias dimensões potencialmente independentes, mas também o de encorajar o aluno a desenvolver-se nestas dimensões. Este sistema de avaliação tem o potencial de alterar o que é discutido e valorizado na sala de aula.
Recentemente, os exames e avaliações têm se mostrado estratégias capazes de provocar mudanças na educação. Zimmerman (2004,
citada por Barbosa, 2005) pontua que as avaliações medem a aquisição de conhecimentos e as habilidades dos alunos, mediante a
resolução de problemas autênticos e realísticos. São avaliações autênticas de estudantes de Arte no contexto de sua comunidade que envolvem tanto a verificação dos procedimentos, como dos produtos da aprendizagem. Nessas avaliações o aluno tem a oportunidade de
engajar-se em atividades integradas, complexas e desafiadoras, cuja colaboração de professores, estudantes e membros da comunidade
local se faz necessária.
Conforme Zimmerman (2004):
As avaliações autênticas habitualmente são avaliações alternativas com base no desempenho do aluno, de quem são requeridas soluções
para problemas da vida real, envolvendo decisões, similares às feitas por profissionais, como críticos de Arte, historiadores de Arte ou artistas e aplicáveis fora do ambiente da sala de aula. As tarefas envolvidas encorajam os alunos a aplicar conhecimentos prévios e habilidades
relevantes para resolver “problemas realísticos” ao completar essas tarefas. Tem–se como exemplo, a participação em debates sobre lugares
adequados para exposição de trabalhos de Arte, mantendo portfólios do trabalho em processo e do trabalho acabado, exibidos posteriormente em áreas públicas ou apresentados em publicações de críticos de arte em jornais locais (ZIMMERMAN, 2004, apud BARBOSA,
2005, p. 405-406).
Observa-se que a avaliação autêntica em sala de aula, conforme Shepard (1989), verifica a introdução básica construída pelo professor,
sendo no contexto local adaptável, significativa e estruturada para que os alunos desenvolvam tarefas que tenham valor educacional
intrínseco. Nesse contexto, a autoavaliação representa importante papel, os próprios alunos apresentam os seus trabalhos de forma
pública e oralmente, e apresentam suas conclusões para assegurar que dominam as tarefas que assumiram.
A avaliação baseada em portfólios deve concentrar a atenção de todos, alunos, professores e familiares, nas tarefas importantes do
aprendizado. O conteúdo de um portfólio pode conter textos, desenhos, fichas de avaliação, relatórios, colagens, entre outros. Amostras
de trabalhos, observações dos professores e reflexões dos alunos estão entre os materiais que podem ser compartilhados com os pais.
O portfólio é um instrumento riquíssimo que garante a beleza da construção própria, individual, personalizada. É um momento de
duplo prazer no processo educacional: como autor e produtor de sua vivência e ao mesmo tempo leitor de sua obra, de sua prática, de
sua atuação pedagógica, o aluno é o autor e leitor de si mesmo.
A utilização do Portfólio é uma modalidade de avaliação retirada do campo da Arte. É considerado não apenas um procedimento de
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avaliação, mas o eixo organizador do trabalho pedagógico, em virtude da importância que passa a ter durante todo o processo.
É uma técnica inovadora de avaliar o progresso das crianças através de um conjunto de procedimentos contínuos, é um instrumento de
estimulação do pensamento reflexivo. Essa técnica, pode-se dizer que é uma avaliação contínua mais autêntica, objetiva e compreensiva,
permitindo acompanhar todos os processos de aprendizagem.
O portfólio tem formatações diversas podendo ser uma pasta, um CD-Rom, uma bolsa, um álbum, etc, em que o aluno guarda suas
produções ao longo de um determinado período. Dentre essas produções podem estar os trabalhos teóricos, os trabalhos práticos e
outros tipos de registros pessoais, como os relatórios individuais e as autoavaliações.
Há grandes possibilidades na utilização do portfólio como forma de avaliação desde que quatro pressupostos sejam pactuados e cumpridos pelos sujeitos envolvidos: autoavaliação, pré-definição de metas, engajamento do aluno e responsabilidade do avaliador/professor.
Análise dos dados
Pretende-se, neste texto, identificar algumas questões pedagógicas apontadas pelos sujeitos da pesquisa, via entrevista semiestruturada.
O conjunto de sujeitos da pesquisa foi composto por três diretores de escola de Ensino Fundamental e Médio, sendo um de cada escola,
uma coordenadora, quatro supervisoras e cinco professores de Artes Visuais das referidas escolas, perfazendo um total de 13 entrevistados.
A abordagem desta pesquisa é qualitativa. O local da coleta de dados compreende três estabelecimentos a saber: Escola Estadual de ensino médio, Escola Municipal de ensino fundamental e Escola Particular de ensino médio e fundamental, situadas em Belo Horizonte,
MG. As escolas foram escolhidas por terem modelos e estruturas diferentes, o que permitiu ao pesquisador conhecer as realidades
diversificadas que elas oferecem no processo de avaliação do ensino de Artes.
A coleta de dados nas escolas foi feita a partir de Pesquisa Documental sobre as orientações oficiais e procedimentos de avaliação em
Artes Visuais, principalmente no Projeto Político-Pedagógico e na Estrutura Curricular de cada escola e Pesquisa Empírica através de
entrevista semiestruturada com diretores, coordenadores, supervisores e professores.
O eixo norteador dessa pesquisa se resume na questão: Como se processa a avaliação em Artes Visuais no Ensino Fundamental e Médio? Esta questão, além de motivar a proposta de investigação, levantou várias outras questões nucleares, unidades de análise, dentro
de cada categoria. Considerou-se principalmente a prática, com o propósito de contribuir para a formação docente no que se refere à
melhoria da avaliação na disciplina Arte; contribuir com a produção educacional no que diz respeito a Arte no EF e EM; promover
inovações educacionais no campo da avaliação em Artes Visuais; melhorar os processos e a efetividade educacionais nesse campo; favorecer a produção de novos conhecimentos; ajudar na melhoria de qualidade das aulas; interagir com tecnologias contemporâneas no
ensino da Arte; compartilhar atitudes e valores; valorizar a formação docente.
Os dados analisados resultaram em sete categorias, quais sejam: Conceito de avaliação e diretrizes; A prática de avaliação na escola;
Dificuldades no processo de avaliação; Importância e relevância da avaliação em Arte; Procedimentos e instrumentos de avaliação;
Desempenho do aluno na avaliação da aprendizagem; Cenário das ações pedagógicas.
Este processo como um todo, evidencia que a avaliação do ensino-aprendizagem constitui-se em um elemento-chave de todo o processo
de ensinar e aprender, em permanente construção.
Os dados analisados revelam momentos de experiência vividos no processo . As falas dos entrevistados evidenciam que a avaliação
envolve a participação ativa e participativa dos alunos e o engajamento efetivo dos profissionais da educação na realidade das escolas.
Na compreensão dos gestores e professores, quanto à primeira categoria, associam o conceito de avaliação às suas práticas como verificar a aprendizagem, definir a produção do aluno, detectar a evolução do conhecimento, cobrar o aprendizado, analisar a intenção da
criança, diagnosticar o aprendizado para ajudar o aluno em seu crescimento.
Quanto às diretrizes são discutidas em equipe, decididas em reuniões. Trabalham com projetos diversificados. Seguem as Resoluções.
As escolas não possuem um documento que seja especificamente voltado para a avaliação em Arte, conduzem a avaliação com orientações dos PCN. Percebe-se aqui uma prática de avaliação relacionada com a aprendizagem do aluno.
Eis um depoimento sobre as diretrizes:
Nós baseamos nos Parâmetros Curriculares e desenvolvemos alguns trabalhos independentes dentro da Instituição . Nós não temos um
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material específico para a disciplina de Arte... esse material ainda está por ser construído... então... a gente trabalha com projetos diversificados seguindo... tendo como norte o nosso Projeto Político Pedagógico e os Parâmetros Curriculares (Supervisora do Ensino Fundamental).
As falas dos professores e diretores revelaram as dificuldades no processo de avaliação quanto ao tempo e as aulas que são restritos, outra
dificuldade revelada foi sobre a falta de entendimento dos pais sobre avaliação e sua importância, desconhecem o projeto da escola,
fazem-se ausentes no acompanhamento da vida escolar do filho. Porém no ensino fundamental, especificamente no 5º ano, não foram
detectadas tais dificuldades.
Os gestores têm consciência da importância e relevância da avaliação em Arte e são unânimes em afirmar que: a Arte como área de
conhecimento equipara-se em importância à todas as outras disciplinas.
Os procedimentos e instrumentos de avaliação em Arte, são evidentes nas entrevistas a respeito da organização do trabalho pedagógico
das escolas e da prática escolar cotidiana. Todas as escolas dividem a avaliação em três etapas. O ensino médio conduz uma avaliação
que se aproxima do ENEM com avaliação global por área do conhecimento. Exercitam o simulado. Seguem uma avaliação contínua
e processual, avaliam o tempo todo. Os professores utilizam como instrumentos avaliativos o portfólio, pesquisas, trabalhos interdisciplinares, trabalhos individuais e coletivos, registros e relatórios, trabalhos dentro e fora da sala, provas, autoavaliação, concursos,
releituras, etc.
Eis alguns depoimentos:
Aqui, nós dividimos a avaliação em três etapas...a primeira etapa é que compõe os meses iniciais do primeiro semestre... a segunda etapa
que é concluída no final de agosto... e a terceira etapa nos meses seguintes até dezembro... cada etapa tem um valor... esse valor por disciplina
é dividido por avaliações... avaliações intermediárias...avaliações do final de cada etapa.... atividades avaliativas ao longo da etapa para
consolidar esse processo de ensino-aprendizagem ( Diretor de Ensio Fundamental e Médio).
A avaliação é contínua e processual... no dia-a dia toda atividade é avaliada ao longo do bimestre... no final de cada bimestre temos a prova
por área de conhecimento... e a área a qual pertence artes é Linguagens, Códigos e suas Tecnologias...a prova abrange 4 componentes curriculares: Língua Portuguesa...Arte...Educação Física e Língua Estrangeira... a prova consta de 28 questões abrangendo as 4 disciplinas... 14
de Língua Portuguesa e as outras 14 divididas em três disciplinas (Supervisora de Ensino Médio).
E ainda:
Eles fazem o registro dos trabalhos em um caderno... que eles me entregam periodicamente por etapa...eles fazem trabalhos de pesquisa
em casa que geralmente é... é sobre a vida e a obra de algum artista... de algum estilo de época...eles fazem produção em grupo e eu avalio
de vez em quando com alguma prova...do conteúdo daquilo que tá sendo trabalhado no momento ( Professora de Ensino Fundamental ).
...eu sempre procuro contextualizar... então eu começo trabalhar metodologia da Arte desde da Grécia Antiga até a Arte Contemporânea...
então vou mostrando pra eles que em qualquer situação da vida a Arte está inserida... então eles mesmos quando eles conseguem fazer
uma ligação entre... por exemplo...a gente andou trabalhando agora nos últimos tempos com os segundos anos... Renascimento... então a
gente trabalha ...estuda... pesquisa os segmentos de todo o estudo do Leonardo da Vinci... por exemplo... eles conseguem fazer uma ligação
mostrando a contribuição importante daquilo tudo que ele fez naquela época pro contemporâneo...(Professor do Ensino Médio).
Analisando o desempenho dos alunos na avaliação da aprendizagem percebe-se, pela fala dos professores, que eles estão entendendo
o contexto da Arte quando fazem a ligação do passado com o presente. Pelo diálogo, interação, sabem identificar as influências dos
grandes artistas do passado na contemporaneidade. Amam a Arte. Estão motivados e de um modo geral envolvidos com a Arte.
O cenário das ações pedagógicas em relação às Artes Visuais se faz presente em cada aula, em cada atividade, na sala ambiente, nos
laboratórios. O Ensino Fundamental apresenta mais atividades práticas e os alunos maiores, os alunos do Ensino Médio, se envolvem
mais com as teorias. Porém a ênfase acontece no fechamento do ciclo com exposições e feiras.
Durante a entrevista alguns professores mostraram dificuldade em definir os tipos de avaliação mais comuns na prática pedagógica bem
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como conceituar a avaliação de um modo geral.
Os entrevistados, de um modo geral, conhecem poucos instrumentos e estratégias de avaliação. Pela insuficiência detectada sobre esse
assunto tiveram dificuldades para dar sugestões para avaliação em Artes Visuais.
Sabem identificar o desempenho, o progresso de seus alunos. Mostraram dificuldade em identificar o “locus” da avaliação no processo
ensino-aprendizagem. A maioria não tem claro o papel da disciplina. Algumas aulas de Arte são bem elaboradas e interessantes. Outras
não. A avaliação é classificatória persistindo o modelo da escola tradicional, processo que não permite ao aluno possibilidades e leitura
de mundo ampliadas. A nota limita os horizontes da formação do estudante e da própria avaliação.
Cruzando os dados coletados nas entrevistas, análise dos documentos, estudos teóricos, cotidiano escolar, delineou-se um quadro que
atestou o empenho das escolas na reconstrução do seu projeto pedagógico e na construção de práticas de intervenção. Assistia-se assim
as experiências vividas, permitindo a configuração de um aprender a ensinar perante os novos desafios do contexto escolar em relação
ao processo de avaliação em Arte.
Tal análise mostra a necessidade de atualização dos entrevistados no sentido de buscar embasamento teórico para completar o conhecimento sobre as concepções da avaliação, buscar entender o sentido e o local onde se insere esta avaliação específica da Arte, conhecer
novos instrumentos e estratégias para a prática da avaliação e discutir a possibilidade, de todos juntos, elaborar as diretrizes específicas
de avaliação para o processo de ensino-aprendizagem das Artes Visuais.
Conclui-se, portanto, que a construção do conhecimento sobre avaliação em Arte, precisa, necessariamente, considerar as múltiplas
dimensões e fatores que envolvem o cotidiano escolar, para cada professor, para cada aluno em particular com base no seu contexto e
realidade concreta, possibilitando a elaboração de uma proposta com mecanismos favoráveis à construção de uma nova metodologia
de avaliação especificamente aplicáveis às Artes Visuais.
Considerações Finais
Constatou-se, nesse estudo, que a teoria a respeito das práticas de avaliação, especificamente, em Artes Visuais são escassas no cenário
nacional devido ao fato de que sua entrada para o currículo só aconteceu oficialmente na LDB como área de conhecimento no mesmo
patamar das outras disciplinas, em 1996, porém, ainda necessita de alguns ajustes na forma de sua implementação. Apesar dessa constatação, foi possível identificar, nesse cenário, contribuições relevantes de pesquisadores citados ao longo desse trabalho.
Apurou-se que não há nenhum embasamento legal e nenhuma diretriz específica de avaliação no processo de ensino-aprendizagem
para as Artes Visuais. As diretrizes existentes são voltadas para as áreas de conhecimento de um modo geral.
Verificou-se que, em Arte, os critérios de avaliação dependem dos conteúdos e objetivos de cada projeto ou sequência didática.
No processo avaliativo, pode-se observar que cada conteúdo exige um instrumento de avaliação adequado: não é possível avaliar se o
aluno compreendeu a história do desenvolvimento da máquina fotográfica por um ensaio fotográfico. Nesse caso, o instrumento pode
ser um texto escrito sobre o assunto. Nem sempre se pode avaliar um conteúdo teórico com base em um trabalho prático. Há necessidade de instrumentos específicos para avaliar o fazer e ver Arte. Essas ações só farão sentido se relacionadas aos conteúdos que estão
sendo ensinados ou trabalhados.
Ao pensar na formação de professores, tanto a inicial quanto a continuada, é preciso considerar a realidade de trabalho, bem como, ampliar o domínio de conhecimentos e o potencial reflexivo, oportunizando o aperfeiçoamento profissional, a ação consciente, a escolha
de formas de ensinar e avaliar, mais adequadas e compromissadas com a realidade.
Com base nos relatos da presente pesquisa, é necessário rever e alterar as práticas de avaliação adotadas tradicionalmente.
O resultado dessa pesquisa em linhas gerais veio contemplar os objetivos delineados, bem como a hipótese. O processo de avaliação
em Artes Visuais foi analisado em diferentes situações educativas, no âmbito do Ensino Fundamental e Médio, à luz dos pressupostos
teóricos bem como na pesquisa de campo através da coleta de dados empíricos proporcionada pelas entrevistas semiestruturadas. Esses
dados serviram para subsidiar a construção da proposta de intervenção, produto técnico, que é um guia metodológico de avaliação em
Artes Visuais para o ensino Fundamental e Médio para o curso de formação docente em Artes Visuais – Licenciatura, estendido à toda
comunidade docente em Artes Visuais.
A avaliação hoje, é uma maneira de informar os estudantes e professores sobre o desenvolvimento da aprendizagem para que possam
ajustar seus processos. Assim, percebe-se que a avaliação não serve apenas para medir o que foi, mas para orientar o que será construído.
Espera-se que o conteúdo e ações previstas possam contribuir com as práticas de avaliação do processo ensino-aprendizagem em
Arte, consequentemente com os processos de mudanças conectados com a realidade histórico-social dos sujeitos e com os processos
democrático-participativos.
Referências
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 56-68, 2013.
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Recebido em 20 de Fevereiro de 2014.
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Aprovado para publicação em 15 de Abril de 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2, p. 56-68, 2013.
Polindo as almas com a lixa do verso
Uma experiência com agressores de mulheres
Polishing souls with the sandpaper of the verse - An experience with women offenders
Ângela Palhano*, Idonézia Collodel Benetti**
& Edla Gisard***
*Coordenadora do Departamento de Artes Visuais do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do
Itajaí, Unidavi, Rio do Sul, SC.
**Psicóloga, mestre em Letras, mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Florianópolis, SC.
***Professora do Centro Universitário Municipal de São José, São José, SC, e das Faculdades Estácio de Sá,
Florianóplis,SC.
RESUMO
O presente trabalho é um relato de experiência com um grupo de agressores de mulheres penalizados pela Lei Maria da Penha, encaminhados pelo poder judiciário de uma cidade do Alto Vale do Estado de Santa Catarina, e teve como objetivo aproximar uma demanda
social esquecida pelo poder público com intervenções mediadas pela Arte. Pautados nos pressupostos que norteiam a Psicologia Social, com
abordagem qualitativa, os 10 encontros interventivos, distribuídos sistematicamente em uma reunião semanal de aproximadamente 90
minutos, foram elaborados sob três eixos norteadores: Violência, Esperança e Mudança. A maioria dos encontros foi gravada em áudio e,
posteriormente, transcrita. Os resultados revelaram mais aproximação com a família, alívio de tensões e medos, diminuição do consumo de
bebidas alcoólicas, pedido de perdão para a mulher agredida, volta ao relacionamento com a ex-mulher.
Palavras-chave: Agressores; Mulheres; Arte; Intervenção; Psicologia.
ABSTRACT
This paper aims at reporting the experience with a group of aggressors against women penalized by Maria da Penha Law, forwarded by the
Court of a city localized at Alto Vale do Itajai region – in Santa Catarina State. It was focused on a social demand forgotten by the public
power, with interventions mediated by Art. Based on the approach that guides the Social Psychology, with qualitative methodology, the project carried out 10 interventional meetings, systematically distributed in a weekly meeting of about 90 minutes. They were prepared under
three guiding principles: Violence, Hope and Changing and the techniques employed to collect data utilized the recording audio resource
with the tape transcript. The results revealed more approach to the family members, easing of tensions and fears, reducing the consumption
of alcoholic drinks, begging pardon to the abused woman, and backing to ex-wife relationship.
Keywords: Offenders; Women; Art; Interventions; Psychology.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 69-79, 2013.
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“Nós polimos as almas com a lixa do verso”, Maiakovski.
E
sse relato de experiência nasceu de um projeto de extensão universitária realizado em uma cidade na região do Alto Vale do
Itajaí – SC – vinculado a um estágio profissionalizante em Saúde, no curso de Psicologia. O projeto de intervenção foi criado em
função da ausência de atendimento a agressores e foi batizado como “Lixa do verso”, com palavras emprestadas do poeta russo
que escreveu a célebre frase esboçada na epígrafe que inaugura esse trabalho.
A escolha pela Arte – visual e poética – esteve ancorada nos conhecimentos oferecidos pelo curso de Letras e Mestrado em Linguística;
mais que isso: houve um transporte e um entrelaçamento com os conhecimentos adquiridos no curso de Psicologia. Partindo das teorias do primeiro curso, que assinala que a Arte aproxima as pessoas das características que constituem a condição humana, tais como
medos, inseguranças, tristezas, alegrias, saudades, angústias, esperanças, e que pode ser provocadora de mudanças, imediatamente o
elo com o segundo curso foi estabelecido.
Mas, “Os psicólogos não sabem tudo. Os poetas trazem outras luzes a respeito do homem” (BACHELARD, 1988). A interação com
a poesia é emocional e a leitura de belos poemas traz, frequentemente, uma intensa experiência catártica. Para além das emoções, os
momentos de envolvimento com a arte podem provocar uma expansão das funções psicológicas superiores, tais como a percepção, a
atenção e a memória, etc.(ROSE, 1985).
Nessa direção, a relevância desse relato de experiência se expressa pela escassez de trabalhos publicados na prestação desse tipo de
serviço com essa clientela, e com intervenções junto aos agressores de mulheres, usando poemas. Durante a busca nos “Descritores em
Ciências da Saúde”, foram usados os termos “agressores/mulheres, poemas/agressores, arte/mudança, catarse/mudança, poema/intervenção” bem como seus equivalentes em língua inglesa “women/batterers, poetry/agressors, art/changing, catharsis/changing, poetry/
intervention”. Os mesmos descritores foram utilizados para o mapeamento realizado a partir de artigos de periódicos brasileiros e internacionais indexados nas bases de dados Scielo, Capes, PsycINFO, SciVerse, Web of Science e LISA (Library and Information Science),
sem que houvesse indicativo de trabalhos que envolvessem essas palavras.
Ainda foram usados os termos “violência/doméstica (domestic/violence), abuso/ esposa (espouse/abuse) e violência/mulher (violence/
woman)” para ampliar as possibilidades de investigação. Esse termo permeia uma série considerável de artigos científicos, porém sem
que resultados compatíveis com a proposta desse trabalho fossem localizados.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E AGRESSORES
O termo “violência doméstica” tem se tornado conhecido e divulgado, principalmente pelos canais midiáticos. Embora este termo
descreva relacionamentos violentos de vários tipos, vemos que ele evoca, ainda, o resultado de relacionamentos turbulentos entre
casais. Segundo uma pesquisa realizada pelo DataSenado (2010), os maridos/ companheiros são apontados como agressores em 87%
dos casos de violência doméstica, sendo que 59% está envolvido em violência física como o principal meio utilizado contra a mulher.
Os sujeitos envolvidos nos casos de violência doméstica se caracterizam em três tipos, porém aqui estão destacados os dois mais relevantes para esse projeto: a pessoa abusiva, geralmente um homem adulto que pode ser o marido ou o pai, e a pessoa agredida, geralmente uma mulher – a esposa ou um filho/a (RAVAZZOLA, 1987). Esse tipo de violência tem se tornado um problema social relevante,
bem como uma questão de saúde pública pelo número de pessoas que sofrem agressões. A Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande
do Sul (2011) aponta que essa questão tem atingido com grande impacto os cofres públicos.
Violência física, abuso emocional, abuso sexual, abuso de poder, manipulação, coerção, ausência de dignidade e respeito da figura
masculina para com suas parceiras têm custado muito caro às famílias e também à planilha orçamentária do governo, pela extensão
que esses comportamentos causam à saúde e segurança, principalmente das crianças. Os filhos vivem a experiência da violência como
testemunhas, envolvidos e vítimas e são afetados psicopatologicamente, principalmente na condição de vítimas, sofrendo impedimentos funcionais (FERNÀNDEZ et al., 2011).
A Lei Maria da Penha prevê que a violência doméstica “é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” à mulher (CAVALCANTI, 2007). A existência da lei protege a vítima através
de alguns serviços públicos que prestam assistência às mulheres agredidas.
Entretanto, apenas o cuidado com a “vítima” não se faz suficiente para que se estabeleçam mudanças na relação violenta “[...] Todos percebem que a vítima precisa de ajuda, mas poucos veem esta necessidade no agressor. As duas partes precisam de auxílio para promover
uma verdadeira transformação da relação violenta” (SAFFIOTI, 2004).
Evidencia-se que existe uma necessidade de minimizar os efeitos que a violência causa no próprio agressor. Há que se construírem
espaços sociais de atenção aos homens com ações endereçadas e delineadas para a eliminação da violência doméstica incluindo, nos
planejamentos públicos, programas e centros de atenção e atendimentos também para os agressores.
Pensando nessas demandas, o presente trabalho se propõe relatar a experiência vivida com agressores de mulheres encaminhados pelo
poder judiciário à clínica de Psicologia de uma universidade em Santa Catarina. Um projeto de intervenção, cujo objetivo foi estabelecer
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um elo entre a sentença judicial e o enfrentamento da psicoterapia, promovendo a motivação do agressor para o tratamento psicoterápico, extensivo às respectivas famílias, efetivou-se.
Partindo da premissa de que a pessoa é “... um agregado de relações sociais encarnadas num indivíduo” (VIGOTSKI, 2000), e que os
sujeitos são produtos e produtores do meio social onde vivem, torna-se relevante pensar sobre as questões da violência, como uma argamassa que auxilia a edificação da desigualdade entre “vítimas” e agressores, construída pela opressão e interpretação de uma sociedade
patriarcal. Vale investir na ideia de que essa construção, pode ser passível de desconstrução, e (re)significações.
Encontra-se na literatura que “[...] é facultado ao ser humano, enquanto característica de sua própria humanização, superar o existente e
projetar-se em relação a devires...” (ZANELLA e SAIS, 2008). Com base na possibilidade de superação frente aos conflitos e às agressões,
é possível pensar num sujeito capaz de desconstruir sua percepção da realidade, (re)significar seus relacionamentos, dando a eles novos
sentidos, e de configurar e reconstruir um novo sujeito, já que é um ser que consegue de sentir, pensar, planejar, agir, criar, etc., sendo
assim capaz de construir/desconstruir e (re)significar sua vida.
A ARTE NO CONTEXTO DE TRABALHO COM GRUPOS
A necessidade de criar, comunicar, construir coerências e simbolizar é uma necessidade básica do ser humano, e a linguagem poética
tem sido utilizada para evocar e fazer refletir sobre a existência e as mudanças pessoais. A Arte tem o poder de facilitar a coerência entre
fisiologia, emoção, cognição e comportamento (SUTOO e AKIYAMA, 2004).
O trabalho em grupo subsidiado pela arte não é novidade no âmbito da saúde. Vale Jacob Lev Moreno utilizou a arte dramática como
recurso terapêutico, e que Nise da Silveira revolucionou o tratamento para doentes mentais no Brasil, com oficinas de arte. Em muitos
hospitais psiquiátricos foram usados esse tipo de recurso na tentativa de aliviar o sofrimento psíquico dos pacientes (JUNG, 1966). Os
facilitadores/mediadores do processo, que envolvia a arte com pacientes hospitalizados, utilizavam trabalhos alternativos em paralelo
como auxílio à medicina, porque acreditavam que a habilidade de criar é um ato de coragem em face ao vazio e à doença (MAY, 1975).
Além disso, confiavam que a poesia tem a habilidade de transportar muitas emoções de uma só vez, conservando-as intactas – o que,
muitas vezes, é exatamente isto que é necessário no ambiente da terapia. Alguns estudos têm mostrado que as imagens, efeitos sonoros,
e preocupação com a consciência humana permitem aos pacientes explorar e reinterpretar suas próprias emoções (MCARDLE, 2001).
Ao escrever seus próprios poemas, os pacientes também são capazes de expressar livremente seus pensamentos, sem as limitações da
forma e da lógica (BOWMAN e HALFACRE, 1994).
Os dados empíricos e a experiência com oficinas de arte têm revelado o poder da expressão artística e da atividade criadora para o
alívio do sofrimento psíquico, oferecendo exemplos clínicos concretos e mostrando como a Arte pode ser integrada à Psicologia e à
Psiquiatria em processos terapêuticos, ao potencializar a organização de pensamentos, observação, percepção, imaginação, sensações,
sentimentos, criatividade, etc., auxiliando na exploração de novos sentidos e significados (SERLIN, 2007). A Arte vem subsidiar o
equilíbrio dos aspectos físico, mental, emocional, e social da experiência humana (KAO, 2011).
Quando os envolvidos se engajam em experiências criadoras, há redução do estresse e das queixas com relação a doenças, emergindo
os benefícios físicos e psicológicos, promotores de mais longevidade (ALLESSANDRINi, 2004). O fato de estar envolvido em processos criativos pode afetar a autoexpressão e os níveis de autoeficácia, fortalecendo o sistema imunológico dos que se engajam na prática
artística (PENNEBAKER, 1997).
Nessa direção, a poesia permite que os indivíduos explorem sentimentos íntimos e reformulem suas realidades. À medida que eles
vivenciam e expressam sentimentos, mente e corpo são afetados pela promoção de relaxamento, espontaneidade e catarse, inerentes aos
contextos imersos em expressões artísticas, os quais podem afetar os domínios somáticos, cognitivos, afetivos e sociais dos envolvidos
(LEEDY,1985).
Nesse trabalho, o foco da criação artística está na autoexpressão e no crescimento individual e coletivo do grupo, com intervenções
projetadas para usar intencionalmente a literatura com a finalidade de evocar os sentimentos dos envolvidos. A atenção esteve voltada
par os agressores e não aos poemas, que foram usados como pretexto para causar impacto na história de vida dos participantes. Não foi
intenção solicitar que eles identificassem a “verdade” do poema, mas que, através da linguagem, ritmo, metáforas, sons, imagens, etc.,
encontrassem um significado pessoal.
PERCURSO METODOLÓGICO
Atores e contexto
Os agressores de mulheres – 18 homens – foram encaminhados pelo Fórum da Comarca de uma cidade de aproximadamente 60.000
habitantes, localizada em Santa Catarina, para a clínica-escola da universidade local, para participarem do projeto “Lixa do Verso”. As
instalações arranjadas para a realização das intervenções ofereceram cadeiras, mesas, quadro, data show, tapetes, almofadas, etc.
Foram delineados 10 encontros, distribuídos sistematicamente em uma reunião semanal de aproximadamente 90 minutos, sempre no
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período noturno. A idade dos participantes variou entre 23 e 70 anos, com níveis diferentes de escolaridade, desde os primeiros anos do
ensino fundamental até curso superior completo. Uns estavam em processo de separação, outros já estavam separados da companheira
agredida e estavam recasados; poucos estavam sem companheira. Os envolvidos neste projeto foram: uma estagiária da 10ª. fase do curso de Psicologia, a professora supervisora do estágio, uma professora de artes visuais, e 18 homens penalizados pela Lei Maria da Penha.
Intervenções do programa lixa do verso
O programa foi uma tentativa de reunir os agressores encaminhados pela justiça, dentro da perspectiva do comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação. Esse projeto, avaliado pelo comitê de ética da universidade local, previu
que todos os participantes fossem expostos a estratégias de acolhimento, descontração, aprendizado e resultados positivos, visando ao
enfrentamento dos problemas que promoveram o encaminhamento destes agressores ao programa.
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado pelos participantes no primeiro encontro, após sua leitura e devidos esclarecimentos referentes às penalidades quanto ao não comparecimento às oficinas de intervenção, que consistiam em prestação
de serviços à comunidade e entrega de cestas básicas. É importante destacar que a primeira reunião apresentou bastante tensão por
parte dos envolvidos, que foi se dissipando no decorrer dos trabalhos iniciais. O projeto, dentro dos meandros acadêmicos e do que
se propõe a Psicologia enquanto ciência, foi de encontro ao consagrado jargão “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, na
tentativa de mostrar que, nestes casos, as intervenções podem ser o caminho para se chegar à resolução de problemas. As intervenções
contemplaram o uso de poemas e contos como instrumentos mediadores da subjetividade dos informantes, e foram divididas didaticamente em três temas/módulos, a saber: Violência, Esperança e Mudança.
O primeiro eixo, Violência, entrou, discretamente, no assunto da “violência”. Constituiu-se na oportunidade de se abordar e aprofundar
o assunto sem reabrir diretamente a “ferida” da agressão de cada um participante. Terapeuticamente, é uma estratégia falar da violência,
sem falar da “minha” violência; é uma maneira de deixar o participante à vontade com o tema, favorecendo a comunicação de suas
ideias sem repressão, juízo de valor ou vergonha.
O segundo eixo, Esperança, abordou a esperança no futuro, incentivado por uma forma diferente de pensar e agir, e na possibilidade
de resultados positivos relacionados com eventos e circunstâncias da vida pessoal. A ideia central, de que sem esperança a vida perde o
sentido, foi trabalhada, ampliando a perspectiva dos sujeitos sobre o que vivem e como vivem.
O eixo Mudança foi delineado de forma que os participantes refletissem sobre sua história e sua participação no programa e relatassem
aos demais componentes do grupo sua história de mudança. Foi a etapa de consolidação da esperança e das novas perspectivas; a fase de
traçar os planos para o futuro. Para cada eixo/temática, as intervenções foram elaboradas com a finalidade de aprendizagem, conforme
descrito a seguir:
*Abertura: dinâmica de aquecimento relacionada ao tema da intervenção, utilizada em cada encontro. O poema de Carlos
Drummond “Receita de ano novo” lido em todas as reuniões, acompanhado por uma música clássica ao fundo. Todos os poemas usados
foram retirados de sites da Internet e lá podem ser encontrados, bastando que se digitem seus respectivos títulos.
*Atividade: momento da aprendizagem – os participantes tiveram contato com a elaboração de poemas, concretizando seus
pensamentos e sentimentos. Foi um momento de desafio, onde os medos de autorrealização puderam ser confrontados; foi a oportunidade para refletir e modificar autoconceitos e aprender a aprender.
*Reflexão: reflexão sobre o que foi feito no encontro. Espaço pensado para que os homens verbalizassem e socializassem o
que foi percebido e experienciado em cada reunião.
*Fechamento: conto relacionado à temática proposta, com o objetivo de levar os componentes do grupo à reflexão, fora do
contexto do grupo da intervenção, foi pensado para cada intervenção.
O projeto foi idealizado com a pretensão de unir a arte poética às artes visuais. Foram disponibilizados três encontros para que os participantes tivessem contato com algumas técnicas da área das artes visuais. No penúltimo encontro, cada um escolheu um dos poemas
elaborados nos encontros anteriores, e individualmente, o transportaram para uma das técnicas aprendidas com a professora de artes e
produziram trabalhos para a exposição do programa “Lixa do Verso”.
A organização das intervenções contemplou mais de uma modalidade de arte. Os encontros 1 e 2 falaram sobre a Violência; os encontros 3 e 4 foram albergaram os conteúdos do eixo 2 (Esperança); nas reuniões 5 e 6 o tema gravitou em torno da Mudança. Os trabalhos
de artes visuais aconteceram nos encontros 7, 8 e 9 e o último encontro foi reservado para a exposição dos trabalhos e para receber a
visita das famílias/familiares ao local desse evento.
Alguns encontros foram gravados e transcritos na íntegra. Foram registrados em áudio todos os momentos de reflexão dos participantes
72
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2 , p. 69-79, 2013.
do grupo. Por questões de espaço, mas para que o leitor tenha ideia de como os trabalhos foram desenvolvidos, serão descritos aqui
somente quatro dos dez encontros – o 1º., 3º., 6º., e 9º. – de modo a privilegiar e melhor ilustrar os três eixos delineados ao longo do
projeto, bem como uma intervenção relativa às artes visuais.
Descrição das intervenções
Módulo 1: violência – primeiro encontro
Abertura: dinâmica para as apresentações de todos os participantes, cada um dizia seu nome, o que fazia e qual era sua expectativa
para aquele encontro. Foi esclarecido o porquê do título “Lixa do Verso”, foi pontuado o objetivo do projeto e como os trabalhos seriam
realizados. “Receita de ano novo” de Carlos Drummond, lido pela estagiária, serviu de “aquecimento”.
Atividades: o poema de João Carlos Castilho “Violência Não” foi lido a primeira vez, apenas para um trabalho de audição e a segunda
vez, o poema foi exposto em um pôster, quando houve a conjugação da audição e da leitura. Cada participante escolheu as duas palavras julgadas como as mais impactantes. Elas foram escritas no quadro e discutidas por todo o grupo.
Em pares, eles elaboraram duas frases com as palavras escolhidas: Motivo, Violência, Xingamento, Vergonha, que foram escritas no
quadro, possibilitando a visualização e a leitura do trabalho realizado por todo o grupo. Eles foram desafiados a organizar as frases de
modo a harmonizá-las com características semelhantes a um poema; algumas frases, em nome da harmonia poética, foram descartadas.
Eis a produção desse primeiro encontro:
Chega de violência
Chega de violência... Dá vontade de fugir.
A mentira fere mais que certas agressões físicas...
Verbalmente, estamos cometendo um tipo de violência.
Acabamos fazendo uma violência porque, “lá dentro”, o amigo se chateia.
E morremos um pouco quando temos que viver a violência.
Temos muitos motivos para viver feliz.
Foi realizada a leitura do poema já organizado. Os membros do grupo contemplaram o trabalho que, a princípio, parecia incerto, mas
que trouxe o resultado concreto do empenho, da cooperação e da participação de cada um.
Reflexão: a estagiária colocou sua cadeira bem próxima dos participantes e, olhando nos olhos de cada um, perguntou se o que eles
vivenciaram ali tinha correspondido às expectativas deles. Os comentários foram surpreendentes: “Pensei que ia receber um castigo...
mas, onde está o castigo? “Se este é o castigo, então é um castigo bom”. “Me senti como se estivesse em uma família”. “Cheguei com medo.
Aprendi muito aqui. Gostei muito”.
Fechamento: foi lido o conto “Boneca de crochê”, que aborda o relacionamento conjugal. A mensagem central determina que saber
controlar atitudes impensadas e impulsivas é importante nos relacionamentos. A exemplo dos poemas, os contos também se encontram
em sites da Internet.
Módulo 2: esperança – terceiro encontro
Abertura: foi utilizada a dinâmica do “Barbante Entrecruzado”, com o objetivo fazer com que os sujeitos construíssem uma “teia”, sob
o significado da palavra Esperança. As palavras foram anotadas no quadro, com o seguinte resultado: saúde, esperança, amor, sonhos,
otimismo, vida, renovação, manhã.
Atividades: o título “A morte bate à porta”, de Sérgio Caparelli, foi colocado no quadro e os participantes foram desafiados a fazer inferências e previsões sobre possíveis palavras que poderiam fazer parte do corpo daquela obra, a partir do seu título. Eles, por meio de
reflexões, análises e hipóteses, ofereceram as palavras/expressões: escuridão, tristeza, desilusão, não acreditamos, agressões, liberdade.
Em grande grupo, eles foram desafiados a colocá-las em ordem decrescente, de acordo com o significado delas, o que culminou com o
seguinte resultado: agressões, desilusão, escuridão, tristeza, não acreditamos, liberdade. Após esse exercício preparatório para a técnica
de encadeamento, a metade do poema-foco foi oferecida em tiras, verso a verso, e eles foram desafiados a colocar as frases do poema
em ordem. O restante do poema foi lido pela estagiária, e foi enfatizado que a segunda parte do dele apresentava um encadeamento –
eventos colocados em ordem crescente e/ou decrescente – inverso à primeira parte.
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O poema foi distribuído para que todos os participantes tivessem presente a ideia do “todo” da obra. Eles foram convidados a refutar ou
confirmar suas inferências, previsões e hipóteses iniciais sobre o possível conteúdo do poema. Alguns admitiram que não esperavam o
encaminhamento dado e ficaram surpresos com o conteúdo do mesmo. O grupo se dividiu em trios e eles “arquitetaram” seus próprios
trabalhos. Foi um momento colaborativo: eles discutiram, refletiram e analisaram sobre a melhor maneira de dispor suas ideias em
forma de poema. O resultado do esforço emocional e cognitivo de um dos trios é apresentado a seguir:
Final feliz
Uma pessoa,
Um problema,
Desespero...
Uma garrafa.
Um copo.
O primeiro gole.
Uma pessoa, que sofre.
Mas procura ajuda,
para evitar o primeiro gole.
E já não enche mais o copo,
e também não procura mais a garrafa...
Tenta ser forte, para vencer a fraqueza,
e os momentos de desespero.
Tenta administrar seus problemas e...
Tenta ser uma pessoa diferente...
Mais feliz!
Então, foi solicitado que cada trio lesse seu poema em voz audível, para que todos tivessem conhecimento dos trabalhos que foram
escritos a seis mãos. O final de cada leitura era marcado por aplausos e alguns integrantes caracterizavam os trabalhos verbalmente:
“este ficou melhor que o nosso”; “este foi o melhor de todos”...
Reflexão: Esse momento priorizou a fala dos participantes, que analisaram, refletiram e expressaram como eles se sentiram durante o
encontro, sobre como estavam ansiosos na chegada, e como se surpreenderam com o decorrer dos trabalhos realizados, pontuando que
essa era uma forma nova de serem “punidos”. Podia ser percebido que eles tinham medo de sofrer cobrança ou algum tipo de acusação,
e/ou penalidade, consoante à penalidade da lei. Eles ainda pontuaram que programas deste tipo auxiliam a pessoa a olhar para novos
horizontes e vislumbrar possibilidades de viver e desenvolver trabalhos que, para a grande maioria, era tido como algo muito distante
da realidade: “Nunca pensei que fosse participar de um encontro como esse”.
Fechamento: O texto “A morte devagar” foi lido pela estagiária. Eles compartilharam sobre como a “morte devagar” pode ser evitada.
Concluída a leitura, a estagiária agradeceu a presença de todos, que foram despedidos com votos de boa noite e foram encorajados e
convidados para estarem presentes no próximo encontro, para serem partícipes de novos desafios e novas conquistas, ao embarcarem
na aventura que é a construção de novos poemas.
Módulo 3: mudança – sexto encontro
Abertura: incentivou-se uma dinâmica de autorreflexão, onde os participantes deveriam pensar e comparar como eles se sentiam antes
de iniciar no grupo e como estavam se sentido naquele momento. Esse processo deveria ser resumido em duas palavras – uma ANTES
da participação e outra palavra para o momento atual, conforme ilustra tabela 1.
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Processo de evolução e mudança (intervenções)
Antes
Depois
Retraído
Estrovertido
Aborrecido
Alegre
Preocupado
Realizado
expectativa
Satisfação
Evolução = mudança
Foram discutidas as palavras trazidas pelos participantes e cada indivíduo clarificou a razão de ter preferido àquelas palavras. A palavra
“Evolução” resumiu todo o significado do contexto trazido por eles, que foram conduzidos a chegar à palavra “Mudança” – o tema central para os poemas que deveriam ser desenvolvidos neste encontro.
Atividades: A segunda etapa dos trabalhos consistiu em lembrá-los das temáticas utilizadas até então, bem como as técnicas empregadas
para a elaboração dos poemas elaborados até o momento, as quais estão resumidas na tabela 2.
Processo de evolução e mudança (intervenções)
Antes
Depois
Retraído
Estrovertido
Aborrecido
Alegre
Preocupado
Realizado
expectativa
Satisfação
Evolução = mudança
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Cada um recebeu uma folha relembrando alguns poemas e técnicas que foram utilizadas nos encontros. Individualmente, eles elaboraram seu poema, descrevendo sua história de mudança, a partir do desenvolvimento decorrente da convivência e das experiências
vividas no grupo. O poema a seguir é o resultado de como um dos sujeitos do grupo viu sua mudança.
ONTEM
e
HOJE
Ontem Escuridão, hoje Satisfação
Ontem Tristeza, hoje Responsabilidade
Ontem Desespero, hoje Renovação
Ontem Vergonha, hoje Liberdade
Ontem Sofrimento, hoje Felicidade
As produções individuais foram lidas para o grupo. Durante a leitura, um dos membros ficou bastante emocionado, pois esse teria sido
o dia em que, pela primeira vez, ele conseguiu colocar no papel como ele realmente estava se sentindo.
Reflexão: Os momentos finais deram lugar a uma reflexão mais ampliada, incluindo o conjunto de encontros já realizados até então. Eles
debateram sobre pontos positivos e negativos do programa; houve comentários e sugestões para alterações no projeto.
Fechamento: A estagiária leu o conto “A Pedra no Caminho”. Esse conto relata a ansiedade que um desbravador enfrentou ao se deparar
com uma situação de “tudo ou nada”.
Artes visuais - nono encontro
Abertura: Este encontro marcou a conclusão das apresentações das técnicas preparadas pela professora de artes. Nessa noite ela abordou
a técnica de colagem, como uma arte de juntar pedaços – de jornal, papéis de todo tipo, tecidos, madeiras, objetos etc. Ela apresentou
várias obras em Power Point e mostrou os materiais disponíveis para a criação das novas obras.
Atividades: Ela solicitou que fossem retiradas figuras de revistas, sem uso da tesoura. À medida que os participantes tentavam extrair as
figuras, rasgando em vez de cortar, as “reclamações/desabafos” foram aparecendo: “é muito difícil sem usar a tesoura”; “vai ficar muito
feio”, “não consigo cortar”; tá tudo torto”; não sei como isso vai sair”, etc. A professora induziu reflexões usando perguntas como estas:
“qual é a concepção de feio/bonito para vocês?”; como vocês encaram o diferente?”; “por que é mais fácil cortar do que rasgar?”; “vocês
gostam de ter o controle nas mãos?”; “o que o controle da tesoura pode nos ensinar?”, etc. Durante os trabalhos de colagem, os participantes pareciam descontraídos e alegres, conversando enquanto criavam suas obras.
Reflexão: os momentos de reflexão foram uma extensão dos momentos em que todos tentavam rasgar as figuras. Os comentários giraram em torno do quanto a arte pode mostrar a realidade da vida, de um modo tão simples, que as pessoas nem percebem. Todos se
mostraram encantados com estas descobertas em torno da arte.
Fechamento: o conto “Um termômetro e duas temperaturas” ilustrou como a história de vida de cada um pode servir como um termômetro interior, ao medir cada situação que enfrentamos na vida; situações que têm como referencial nossa própria história.
CONCLUSÃO
Desde início ficou evidente que os participantes do projeto não esperavam os tipos de atividades que foram apresentadas ali. Inicialmente, eles chegavam tensos, receosos e, muitas vezes, encolerizados, transferindo toda a raiva para a estagiária, mediadora das
intervenções. Mas, aos poucos, esses momentos de tensão foram sendo substituídos por tranquilidade e bem-estar, na proporção que
os encontros ofereciam oportunidades para que fosse verbalizado o que cada um pensava a respeito das vivências no grupo. “Me sinto
muito bem... renovado, alegre e sinto prazer em ser membro desse grupo... quando chega domingo, já fico pensando na quarta-feira...
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isso me deixa animado pra enfrentar a semana”.
Os sujeitos ainda pontuaram que programas deste tipo auxiliam a pessoa a vislumbrar novas possibilidades de viver. “Hoje foi melhor
que da outra vez”; “cada vez aprendemos mais”; “se fosse para resumir em uma só palavra, essa palavra seria evolução”. Os sujeitos ainda
relataram que não estavam no grupo com o objetivo de “curar feridas”, mas sim buscando esperança para dias melhores e estavam conseguindo isso através das palavras.
Era perceptível a satisfação de estarem participando do programa. Eles verbalizaram que fazer parte do grupo foi um grande aprendizado; além de aprenderem a elaborar poemas, estavam fazendo uma reflexão sobre a própria vida. “Meu filho trabalha comigo e sabe
quando é o dia do grupo... ele vê que eu fico mais feliz, quando chega perto das cinco horas... deixo o trabalho, vou pra casa me arrumar
pra vim correndo pra cá...”.
O desfecho dos trabalhos foi apresentado em uma exposição, onde foi mostrado um painel com uma série de fotografias, tiradas dos
participantes do grupo durante os encontros. No encerramento das atividades do “Lixa do Verso”, participaram todos os envolvidos no
projeto: a supervisora do estágio, a juíza que os encaminhou, alguns familiares dos deles. Estavam presentes, também, alunos do curso
de Psicologia da universidade local.
Nessa oportunidade, os “agressores” emocionaram a audiência com seus depoimentos. Um deles veio às lágrimas ao ter um de seus
poemas lidos pela supervisora do estágio. No discurso esteve presente o quanto foi importante terem participado do programa “Lixa do
Verso” e como eles mudaram suas atitudes em relação aos enfrentamentos do cotidiano, às pessoas com as quais convivem e em relação
a eles mesmos. Isso ficou transparente nas criações poéticas, como no poema que segue.
A mudança
Chegar foi difícil...
Existia desilusão.
Havia em minha vida uma completa escuridão.
Mas, devagar veio a imaginação de um mundo melhor...
Sem tristeza, sem dor, nem vergonha,o mundo tornou-se um jardim florido
cheio de amor, compreensão, e otimismo.... Enfim... um céu colorido...
Hoje vejo com esperança que, sendo positiva a mudança, esta nunca será tardia.
Esse foi um projeto pioneiro na região, uma vez que, com relação à Lei Maria da Penha, trabalhos têm sido realizados geralmente com
as mulheres “vitimizadas”. A importância desse trabalho priorizou o resgate da autoestima de quem foi penalizado, estigmatizado e
segregado, em face de um comportamento inadequado do ponto de vista social, ético e moral.
Durante os momentos de reflexão, os comentários eram positivos: havia unanimidade quanto ao estarem felizes por terem aprendido
algo novo e diferente – a arte enquanto técnica para expor os sentimentos e pensamentos foi aprovada pelos membros do grupo. Os
ganhos relatados revelaram: a) mais aproximação com os filhos/família – muitos usaram as técnicas aprendidas nas sessões para ensinar/brincar com os filhos em casa, b) alívio das tensões e medos, c) diminuição do consumo de bebidas alcoólicas, d) pedidos de perdão
para a mulher que tinha sido agredida, e) volta ao relacionamento com a ex-mulher, etc. Alguns também afirmaram ter começado a
fazer psicoterapia.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi uma oportunidade ímpar o fato de conhecer a prática do trabalho com Grupo, sobre o qual havia somente o conhecimento teórico;
ficou evidente a importância e o encanto da atuação com Grupo. Foi um aprendizado grandioso observar como um grupo coletivamente se (re)constrói e se (co)constrói, de uma maneira mais rápida.
Lidar com a revolta do recebimento da penalidade e o consequente encaminhamento para o grupo foi muito tenso, uma vez que os
sujeitos participantes tinham medo de sofrer cobranças ou algum tipo de acusação por parte dos operacionalizadores do programa.
Porém, foi encantador usar a mediação da arte para aflorar emoções, que se constituíram em resultados surpreendentes, colhidos dos
depoimentos ao final de cada sessão.
É digna de nota a parceria realizada com uma profissional de artes visuais. Os trabalhos e os resultados agregados são incomensuráveis,
do ponto de vista da psicologia, como se percebe no diálogo a seguir, transcrito de uma gravação do sétimo encontro. Os participantes
tinham que escolher pedaços de papel crepom de várias cores e, de alguma forma, expressar o que estava sentindo. Segue descrito o
diálogo entre a professora, a estagiária e o participante mais tímido do grupo.
Professora: E você? Por que você escolheu esta cor?
Participante: Hoje tá ótimo.... tô me sentindo bem.
Professora: A cor azul é uma cor fria... dá sensação de calma, tranquilidade...
Estagiária: Percebi que a cor que você escolheu é bem light... diferente das outras vezes, que os trabalhos tinham cores mais carregadas. (Esse
participante colocava traços fortes, carregados, e usava cores escuras, preferencialmente a preta).
Participante: Tinha pensado em fazer uma venda [para os olhos]... mas não tô me sentindo mal.... então pensei: por que fazer uma venda,
se eu tô bem?
Professora: A espada é um instrumento de luta... na vida precisamos lutar... lutar todos os dias, para alcançar os objetivos...
Estagiária: Ao mesmo tempo, a espada simboliza poder... força...
Professora: E conquistas... vitórias...
Nesse trabalho houve apenas uma pretensão de arquitetar uma forma de estar presente junto aos agressores de mulheres. Lidar com a
Arte – que é frequentemente rica em metáforas e imagens evocativas – foi uma tentativa simples, mas inovadora para a região. A maioria
deles nunca tinha escrito e nem gostava de poemas. Muitos nunca tinham manuseado giz de cera, lápis-carvão, e outros materiais para
desenho. Porém, a inabilidade foi sendo quebrada através do esforço e persistência dos participantes e das técnicas usadas para abordar
os trabalhos nas intervenções; as produções foram amadurecendo e acontecendo naturalmente.
Para além de ser uma inovação, e apesar de se constituir em uma iniciativa tímida, esse tipo de experiência pode contribuir para futuros
trabalhos na área, já que uma mudança de comportamento passa necessariamente pela construção de novas interações sociais, onde o
motor do desenvolvimento humano são os processos proximais – as interações face a face, que quando prolongadas por determinado
tempo, e ao se tornarem mais complexas, causam impacto no desenvolvimento humano, modificando padrões de relação (Bronfenbrenner, 2002). Daí a importância do grupo, enquanto promotor desse tipo de interação.
Houve mudança fora do contexto das intervenções, o que se constitui em desenvolvimento humano, já que um padrão modificado
apareceu em outro contexto no qual o sujeito em desenvolvimento também teve interações face a face. De acordo com relatos, eles prolongavam o encontro após saírem das intervenções, formando um grupo de amigos. Concluindo, criar/brincar com a Arte, vivenciar
eventos catárticos e refletir sobre a produção advinda dessa experiência pode ser uma maneira de tomar consciência de si e do Outro;
um caminho para lidar com o estresse e as experiências desagradáveis, além de melhorar habilidades cognitivas e promover a apreciação
dos prazeres de “fazer arte”.
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Recebido em 16 de Fevereiro de 2014.
Aprovado para publicação em 13 de Abril de 2014.
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De Jakobson à Charaudeau:
a leitura em perspectiva polifônica
From Jakobson to Charaudeau: reading in polyphonic perspective
Léa Sílvia Braga de Castro e Sá* & Matheus Seiji Bazaglia Kuroda**
* Licenciada em Letras - Português-Francês - pela Univesidade do Sagrado Coração, USC, Bauru, SP; mestre em Filologia e Língua Portuguesa e Doutora em Comunicação e Poéticas Visuais, ambos títulos concedidos pela Universidade
Estadual Palista, Unesp, câmpus de Bauru, Bauru, SP. Professora aposentada da Unesp, câmpus de Marília e professora
da USC, Bauru, SP.
** Graduado em Letras: Português-Inglês pela USC, Bauru, SP. Cursa especialização em Língua Portuguesa e Literatura também,pela USC, Bauru, SP.
Resumo
Este trabalho tem o objetivo de analisar a produção e a recepção de textos sob a égide da Análise do discurso, partindo do princípio que
estes são atos comunicativos. Para tal, visa-se analisar os limites do esquema tradicional de comunicação de Jakobson, bem como a interenunciação da prática discursiva-textual que se efetiva na interação de dois grandes universos (EU-TU). Uma vez que explicada a relação
entre produtor e receptor de textos, será possível analisar a importância da competência linguístico-comunicativa para (re)construir textos
e significados, no qual o escrever está para o ler e este está para aquele, em um processo quiasmático.
Palavras-chave: Leitura; Produção de Textos; Sujeitos da Linguagem; Discurso.
Abstract
This paper has the objective to analyze the production and reception of texts by Discourse analysis, with the assumption that these are communicative acts. For this, it aims to analyze the limits of conventional communication Jakobson, and the inter-utterance-textual discursive
practice that effective interaction of two large universes (ME - YOU). After explained the relationship between producer and receiver texts,
you can analyze the importance of linguistic and communicative competence to (re)construct texts and meanings, in which the writing is to
read and this is for that, in a process of addiction.
Keywords: Reading; Production of Texts; Subject of Language; Speech.
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A
Análise do Discurso representou um divisor de águas nos estudos das ciências sociais. O esquema elementar de comunicação
propõe uma visão simplista da linguagem, que não efetiva uma compreensão holística do ato comunicativo. Com as teorias do
discursivo, possibilitou uma reforma desse diagrama.
Estabelecendo um paralelo entre essas duas escolas, percebem-se duas maneiras de encarar a linguagem: a primeira vista pelo ângulo
do estruturalismo; a segunda sob a égide discursiva; divide-se, pois, esse estudo em duas grandes eras: antes e depois da Análise do
Discurso.
A comunicação humana, assim como ler e escrever, é um ato complexo que exige aptidão e o desdobramento dos sujeitos envolvidos.
Estes, ao entrarem em contato, estabelecem um jogo de palavras e imagens, o que é chamado de jogo discursivo. Logo, o leitor não inter-
age apenas com o texto, mas também com o produtor.
Produzir e receber textos são práticas discursivas de exercício da linguagem, visando um duelo (ou complemento) de ideias entre leitor e produtor. De acordo com Sá (et al, 2013, p. 11), “leitura é caminho – previamente esboçado pelo autor [...]. Leitura é encontro. É
aproximação. É choque. É duelo. É uma busca incessante pelo outro (e por si mesmo) que se disfarça e se descobre no ir-e-vir do texto”.
Tendo isso em vista, discutiremos, ao longo deste artigo, como ocorre o processo comunicativo e quais as relações entre produção e
recepção de textos. Além disso, ao analisar o processo inter-enunciativo do ato linguageiro, serão levantados aspectos importantes que
tangem à competência linguístico-comunicativa e situacional, como determinantes para a atribuição de significados.
O modelo comunicativo de Romam Jakobson
Influenciado pelos estudos de Claude Shannon e Warren Weaver (1949) sobre uma teoria que buscava melhorar as transmissões entre
aparelhos de telecomunicação, o linguista russo Roman Jakobson criou o modelo comunicativo mais usado nos dias atuais. Para o
mesmo, os estudos feitos pelos matemáticos para resolver os problemas dos ruídos poderia se aplicar à comunicação humana. Logo, em
1960, foi divulgada uma primeira proposta de modelo comunicativo.
De acordo com este modelo, o qual é chamado de Esquema Tradicional da Comunicação, existem seis fatores que compõem a comunicação: emissor, mensagem, receptor, canal de comunicação, código e referente.
Chalhub (1993, p.5) diz que um emissor envia a mensagem a um receptor, usando um código para efetuá-la; esta, por sua vez, refere-se
a um contexto. A passagem da emissão para a recepção faz-se através do suporte físico que é o canal.
Influenciado pela escola estruturalista, percebe-se que Jakobson esquematizou o processo de comunicação como algo linear e mecânico,
como máquinas. Assim, a mensagem é vista como um “pacote” – produzido por um emissor e, caso não tenha ruídos, vai ao encontro
de um destinatário. Nesse aspecto, a significação da mensagem é fechada, isto é, autoritária na medida em que não há possibilidades
de sentidos.
Uma mensagem não deve ser absorvida como algo de significação autoritária, pois existe uma série de fatores discursivos que influenciam na mesma: a posição social, a ideologia e o contexto, entre outros fatores, determinam como a mensagem será entendida – é o que
Michel Foucault determina como Formações Discursivas.
Os mecanismos de qualquer formação social têm regras de projeção que estabelecem a relação entre situações concretas e as representações
(posições) dessas situações no interior do discurso: são as formas imaginárias. O lugar assim compreendido, enquanto espaço de representações sociais, é constitutivo das significações. Tecnicamente, é o que chamamos de forças do discurso. (ORLANDI, 2011, p. 18)
Porém, a problemática do esquema tradicional de Comunicação não se limita na relação entre emissor e receptor na desfragmentação
da mensagem; pressupõe, também, um código inequívoco. Em outras palavras, nesse caso, as línguas naturais eram consideradas como
conjunto de signos em que não existe correspondência inequívoca entre significado e significante. Mas, quando expressamos uma
mensagem, ela pode ser abordada e interpretada de formas distintas, de acordo com o contexto e a posição tomada. O ser humano tem
a liberdade da polissemia. Logo, de acordo com o esquema de Jakobson, as metáforas, hipérboles e eufemismos, entre outras figuras de
linguagem, não seriam devidamente interpretadas, justamente por considerar a existência de um código inequívoco.
O modelo comunicativo prega, erroneamente, a existência de um sujeito passivo e estático que desfragmenta o “pacote” de informações.
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Porém, ao analisar profundamente ao ato comunicativo, o leitor extrapola o nível da superficialidade: ele é o responsável por atribuir
significação ao enunciado, de entender os implícitos e fazer inferências. Por esse motivo, o destinatário acabou sendo visto como um
coautor, uma vez que este atua na (re)construção de sentidos e na atualização da mensagem.
Análise do Discurso: uma nova maneira de encarar a linguagem
Em um contexto de hegemonia do estruturalismo, surge um movimento intelectual que, ao refletir sobre a escritura, a linguística, o
marxismo e a psicanálise, desenha um novo campo do saber, a Análise do Discurso. Parafraseando Orlandi (2001), a análise do discurso
gira em torno de uma mesma questão: “Como este texto significa?”. Ela interroga a Linguística pela historicidade que ela deixa de lado;
questiona o Materialismo por meio do simbólico; e se demarca com Psicanálise pelo modo como trabalha com a ideologia e o inconsciente. A junção desses componentes resultou em um novo objeto de estudo: o discurso.
Maingueneau (1997) denomina a Análise do Discurso de linha francesa como “encontro de uma conjuntura intelectual e de uma prática
escolar”, que se opõe ao rigor hierárquico no estudo da comunicação desenvolvido pelo estruturalismo. Prega-se a ideia de que todo
texto tem um sentido camuflado que, para ser desvendado, é necessário ir além da análise do código.
Logo, o discurso é produzido no efeito de sentido entre locutores.
Para a Análise do Discurso, não se trata apenas de transmissão de informação, nem há essa linearidade na disposição dos elementos da comunicação, como se a mensagem resultasse de um processo assim serializado: alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se em um código,
e o receptor capta a mensagem, decodificando-a (ORLANDI, 2001, p. 20).
Uma posição teórica baseada no esquema de Jakobson consiste em conceber a linguagem como algo produzido por um emissor ideal,
destinado a um receptor ideal, em uma circunstância de produção neutra; acredita-se em um processo de comunicação simétrico. Esse
posicionamento prega a ideia de que o ato de linguagem esgota a sua significação em si mesmo. Assim, “Corra da chuva” não quer dizer
nada além de “Corra da chuva”.
Os analistas de discurso encaram a linguagem com uma ótica diferente; ela é concebida como algo produzido por um emissor determinado, em um dado momento histórico. Assim, o processo de comunicação não é o resultado de uma única intencionalidade, mas
de múltiplas finalidades. Na recepção de um enunciado, por exemplo, é preciso levar em consideração as intenções do emissor, mas
também é necessário que o receptor saiba estabelecer uma relação entre a linguagem e seu mundo particular. Logo, a linguagem não
tem significação esgotada, pois uma mensagem pode apontar para fora de seu significado.
Um dado ato de linguagem pressupõe que nos interroguemos a seu respeito sobre as diferentes leituras que ele é suscetível sugerir.
Parafraseando Charaudeau (2008), isso nos leva a considerar a linguagem como um objeto duplo, constituído de um Explícito (o que é
manifestado) e de um Implícito (lugar de sentidos múltiplos que dependem das circunstâncias de comunicação).
Nesse caso, os seres da fala devem desenvolver uma competência múltipla, que não se baseia em ser apenas uma maneira de representar
o mundo por um explícito linguageiro; mas em recriar o mundo por meio de uma totalidade que inclui o contexto histórico-social e as
relações interpessoais entre o emissor e o destinatário.
Logo, pode-se resumir que a linguagem é uma interação entre o homem, a sua cultura e sua realidade histórica.
Um ato inter-enunciativo
Na proposta defendida por Jakobson, existia uma simetria da comunicação. Atualmente, as novas teorias apontam para uma assimetria.
Isto é, acredita-se que o destinatário levanta uma série de hipóteses sobre a intenção do emissor, estabelecendo um jogo de imagens.
Analisando essa assimetria, Charaudeau (2008) diz que a prática discursiva se desenvolve em dois grandes universos: Universo de discurso do EU e o Universo do discurso do TU.
Acredita-se que a instância do TU não é apenas um mero “setor” de recepção de mensagem, mas também é responsável por construir
interpretações. Acrescenta, ainda, dentro deste universo, a existência de dois TU’s: um TU destinatário (TUd) responsável pela recepção; e um TU interpretante (TUi) incumbido de fazer abstrações e interpretações.
Da mesma forma que o TU, o EU se desdobra em dois EU’s: o EU comunicante (EUc) e o EU enunciador (EUe). O EUc é o ser social
que se transforma em um EUe para adotar uma postura no ato linguageiro, isto é, o EUe é uma imagem do enunciador criada pelo
sujeito produtor da fala e subentendido na sua intencionalidade enquanto produtor; é o ethos que o sujeito comunicante se transforma
para produzir seu discurso.
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Logo, como propõe Sá (2013, p. 44), ao refletir sobre Charaudeau, estes são os quatro sujeitos participantes de um ato linguareiro:
•EUe: é uma imagem de enunciador construída pelo sujeito produtor da fala (EUC);
•TUd: sujeito interlocutor do ato de linguagem, não é simplesmente um receptor de mensagem, mas um sujeito que constrói uma interpretação sob o ponto de vista que tem sobre as circunstâncias de discurso sobre o EU;
•TUi: não é o mesmo que o TUd ao qual se dirige o EU. Consequentemente, o TUi, ao fazer a interpretação, reflete o EU com uma imagem
EUc diferente daquela que o EU acreditava ter;
•EUc: sujeito produtor da fala.
É nesse jogo que a prática comunicativa e discursiva se desenrola; o ato de comunicação não deve ser visto como resultante da simples
interação entre emissor e destinatário, mas como um encontro dialético entre dois universos: produção (EU) e interpretação (TU). O
ato de linguagem, então, passa a ser visto como um ato inter-enunciativo desenvolvido por quatro sujeitos, que atuam em dois grandes
universos.
O TUd é o destinatário ideal fabricado pelo EU, adequado ao seu ato de comunicação. Logo, sempre haverá um TUd presente no ato de
linguagem que sofre total domínio do EU. O TUi é um sujeito que atua fora do ato de linguagem propriamente dita, porém, ele tem um
papel crucial nesse processo: o ato linguageiro engloba processos de produção e interpretação; o TUi é o responsável pela interpretação
sem influências do EU.
É o que se observa na figura abaixo:
O ato de linguagem e seus sujeitos (reprodução)
Situação da Comunicação
Finalidade contratual + Projeto de fala
Dizer
Locutor EUc
(Sujeito comunicante - ser social)
TUd
Destinatário
(Ser de fala)
EUe
enunciador
(Ser de fala)
Receptor TUi
(Sujeito interpretante - ser social)
Espaço interno
Espaço externo
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Analisando as funcionalidades dos sujeitos da linguagem, é nítida a existência de dois circuitos: circuito da fala configurada (espaço
interno) e circuito externo à fala configurada (espaço externo). Nesse esquema, o espaço interno se caracteriza por ser o local onde os
seres da fala se encontram, isto é, o ponto em que o EUe e o TUd se localizam no ato discursivo; o espaço externo é onde os sujeitos
agentes EUc e TUi atuam, influenciados pelas forças sociais e pela organização ideológica (individual ou coletiva) do mundo.
O circuito da fala configurada e construído por seres oriundos de um saber intimamente ligado às representações linguageiras das práticas sociais; e o circuito externo à fala configurada está relacionado a um saber da organização do “real” que sobredetermina os sujeitos.
Essas características ficam nítidas nas atividades de produção e leitura de textos. Segundo Charaudeau (2008, p.63),
Analisar um texto não é nem pretender dar conta apenas do ponto de vista do sujeito comunicante, nem ser obrigado a só poder dar conta
do ponto de vista do sujeito interpretante. Deve-se, sim, dar conta dos possíveis interpretativos que surgem (ou se cristalizam) no ponto de
encontro dos dois processos de produção e interpretação. O sujeito analisante estará em uma posição de coletor de pontos de vista interpretativos e, por meio da comparação, deve extrair constantes e variáveis do processo analisado.
Com o esquema de Charaudeau, em substituição à teoria de Jakobson, percebeu-se que a disposição desses quatro sujeitos constitui um
elemento indispensável nos estudos textuais e semânticos. Esse novo modo de encarar a linguagem em atividade deu legitimidade a
ideia de que todo enunciado é plural e rico em significações. Nessa perspectiva, Maingueneau acrescenta que “a pessoa que interpreta o
enunciado reconstrói seu sentido a partir de indicações presentes no enunciado produzido, mas nada garante que o que ela reconstrói
coincida com as representações do enunciador”. (MAINGUENEAU, 2011, p.20)
As atribuições dos sujeitos da Linguagem na atividade textual
O texto é uma obra inacabada. Ele sempre está em processo de renovação e atualização, isto é, o leitor, ao se deparar com a leitura,
constrói e reconstrói significados e ideias. Assim sendo, vale discutir as várias formas de encarar a leitura baseado no esquema comunicacional de Charaudeau.
Na prática discursiva, segundo o mesmo, o emissor se desdobra em 2 sujeitos da linguagem: EUc e EUe; sendo que o primeiro é um ser
social, enquanto o segundo é considerado como um ser da fala.
O EUc, por estar em contato intrínseco com a vida cotidiana, é o sujeito alvo das diferenças sociais. Ele recebe as várias vozes sociais e
entra em contato com as mais variadas questões ideológicas e psicológicas.
Logo, um produtor de textos que se limita em ser um EUc apresenta uma voz passiva. Isto é, ele apenas reproduz os discursos sociais,
aceitando sua possível situação de subserviência. Falta, para este sujeito da linguagem, subjetividade, opinião e criticidade.
[...] quando falamos em subjetividade, não podemos perder de vista que ela é formada a partir da materialidade constituída pela manifestação dos vários discursos, instituindo um eu plural, o qual, por sua vez, manifestará, num movimento espiralado, sua reelaboração
dos discursos, utilizando-se, para isso, da matéria-prima com a qual os discursos – o que ele “recebeu” e ao que elaborou – se formam: as
palavras, os signos da sociedade em que esses discursos circulam (BACCEGA, 2007, p. 23)
Para Sírio Possenti (1993), o indivíduo que se situa como EUc não é dono de seu discurso e de sua vontade: sua consciência é produzida de fora e ele pode não saber o que se faz ou o que se diz; repete, pois, outros discursos. Quem fala, neste caso, é um sujeito social
anônimo que só diz e faz aquilo que é exigido devido à posição em que se encontra – o que é chamado de assujeitamento.
Por outro lado, quando um produtor de textos deixa de ser um EUc para se tornar um EUe, ele passa a ter uma voz ativa. Isto não é
descartar a função do primeiro; é preencher o vazio que ele deixa. Este sujeito absorve todas as vozes que recebe como comunicante e
refrata um novo discurso baseado no seu ponto de vista e nos seus conhecimentos empíricos; podendo, pois, criticar, refutar, apoiar ou
indagar os discursos já existentes que vagam no teatro da vida social.
Um bom produtor de textos, se falando em conteúdo, é aquele que atinge o nível da enunciação, se transformando em um ser consciente
e que tem domínio das práticas sociais e ideológicas nas quais as sociedades estão condicionadas.
Na recepção dos discursos, por sua vez, Charaudeau “transforma” o destinatário em outros dois sujeitos da linguagem: TUd e TUi.
Da mesma forma que o EUc, o TUd é um ser social e real que tem a simples função de receber o discurso de um determinado EUe
e absorver de forma autoritária. Na leitura, quando alguém se depara com uma obra escrita e não consegue fazer uma associação de
ideias, este ser está estagnado no nível mais básico do processo comunicacional, ou seja, é um TUd. Este sujeito não consegue refletir e
estabelecer links entre a mensagem, a leitura e a vida corriqueira, estagnando-se no nível da denotação. Aqui, o texto é visto por uma
ótima simplista, superficial, na qual o cotexto se encontra como uma única fonte de informação ou mensagem. Nesse caso, a simples
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desfragmentação é o suficiente, embora seja minimalista.
O TUi é um sujeito de competência linguístico-comunicativa. É um ser virtual, indispensável na prática discursiva. Ao receber um discurso, ele reflete, faz associações de ideias, atinge o nível da conotação e faz uma apreciação da mensagem. De certa forma, este sujeito
consegue vincular a leitura com um contexto, desenvolvendo a capacidade situacional.
É nesta transição entre o TUd e o TUi que muitos jovens do ensino fundamental e médio se encontram com dificuldades. Um bom
leitor extrapola o nível denotativo e alcança o nível conotativo (discursivo), estabelecendo relações intertextuais e interdiscursivas. Em
outras palavras, ele deixa de ser um ledor (TUd) para se tornar um leitor (TUi), pois este sujeito é o apogeu e o ponto-chave da produção
textual.
De certa forma, o leitor e o produtor de textos precisam ter, além do mais, competência em “dominar” a enunciação e da recepção de
vozes. Isso os permite se transformarem, respectivamente, em EU-enunciador e TU-destinatário.
Como já foi explícito, os textos são obras inacabadas, nas quais o Eu enunciador fornece matéria-prima (material linguístico e pistas
extra textuais) e o leitor constrói e reconstrói significados. Assim sendo, este, TU interpretante, se transforma, de acordo com as teorias
da Estética da Recepção, em um coautor.
Assim, o texto é um lugar de interação entre sujeitos sociais, empenhados em uma atividade sociocomunicativa. É claro que
esta atividade compreende um “projeto de dizer”, exige do interpretador uma participação ativa na construção do sentido, por meio da
mobilização do contexto, a partir das pistas e sinalizações que o texto lhe oferece. Produtor enunciador e interpretador são, portanto,
“estrategistas”, na medida em que, ao jogarem o “jogo da linguagem”, mobilizam uma série de estratégias – de ordem sociocognitiva,
interacional e textual – com vistas à produção do sentido (KOCH, 2002, p.19).
Leitura e Produção de textos: reflexões sobre a inter-enunciação
Da mesma forma em que um produtor de textos que se baseia em ser apenas um EUc possui uma voz passiva e sem subjetividade crítica,
o leitor que ocupa um papel de ledor (TUd) não consegue captar todas as sugestões que o texto traz. Talvez essa seja a grande realidade
das escolas brasileiras. Muitos alunos não conseguem desenvolver competências linguístico-situacionais para poder desvendar os mistérios da atividade textual.
É necessário que haja bons leitores para que existam, de modo consequente, bons produtores de textos. Para isso, a formação escolar
destes é imprescindível para a realização de tais atividades. A comunicação e linguagem, sendo atos inter-enunciativos desenrolados por
quatro sujeitos, fazem com que haja a necessidade de que o leitor seja o mais eficiente possível, para que, acompanhado com um saber
consolidado, ele consiga vencer o jogo de implícito e explícito.
Talvez o grande déficit esteja na falta de “cultura” (no seu sentido mais pobre, como falta de conhecimento), pois, em uma
contemporaneidade em que as informações são servidas como pacotes e de forma instantânea, as pessoas não são mobilizadas e não se
sentem motivadas a enfrentar algo complexo – o jogo discursivo. Para eles, encaixar as peças é complicado uma vez que as informações
já são servidas enxugadas.
É necessário, então, reavaliar a verdadeira função da educação. O segredo é não educar para as novas tecnologias, mas sim formar para enfrentar e conhecer o mundo. Só a subjetividade e o conhecimento oferecerão recursos cabíveis à prática discursiva, fazendo
com que leitores e produtores de textos se transformem, de forma respectiva, em TUi e EUe.
Quem tem o olhar TUd consegue captar apenas aquilo que é visível (que é óbvio); é a simples desfragmentador de textos,
pobre de competência linguística. Por outro lado, um TUi consegue ir mais além – ele é capaz de perceber aquilo que fica por detrás dos
bastidores, aquilo que alguém “diz pelo não dito”.
Saber ler e escrever é saber (re)construir significados. Não existe uma simples emissão de mensagem, bem como não há passividade nesses atos; é necessária força ativa por parte desses sujeitos para mobilizar seus conhecimentos e captar as condições ideológicas e contextuais que estão a sua volta.
Considerações finais
Uma vez analisada a comunicação humana sob a égide de duas escolas distintas (Estruturalismo versus Análise do Discurso, representada respectivamente por Jakobson e Charaudeau), percebeu-se que o ato comunicativo é uma atividade complexa. Não se baseia
apenas na simples emissão de uma mensagem de um emissor a um destinatário; o conceito vai além. Com os estudos de Charaudeau, foi
elaborada uma nova proposta para resolver todas as problemáticas apontadas no esquema Roman Jakobson e seu esquema tradicional
da comunicação. Agora, o ato linguageiro é visto com um ato inter-enuciativo, isto é, desenvolvido por vários sujeitos (não apenas pelo
emissor e receptor), que se entrelaçam e criam vínculos, sustentando o jogo discursivo – Implícito/Explícito.
Assim, de acordo com Sá (et al, 2013):
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 80-86, 2013.
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Comunicar é proceder a uma encenação que envolve o encontro dialético entre dois processos: o processo de produção, criado por um EUcomunicante e dirigido a um TU-destinatário, e o processo de interpretação, criado por um TU-interpretante que constrói uma imagem do
locutor, o EU-enunciador.
Da mesma forma, nos estudos textuais, no que se diz a respeito de leitura e produção de discursos, essa mesma dinâmica é ativada; na
situação de comunicação construída pelos textos, devem existir os mesmos quatros sujeitos da linguagem propostos por Charaudeau.
Assim, um bom produtor de textos é aquele que, ciente do seu papel social (EUc), dirige suas palavras de forma subjetiva (EUe) a um
emissor ideal e premeditado (TUd), o qual deve digerir o texto e elevá-lo ao nível da interpretação (TUi). É necessário, então, para que
esse circuito funcione, que os seres humanos desenvolvam competências linguístico-comunicativas, para terem percepção e entenderem aquilo que o texto “quer dizer” e daquilo que ele “não quer dizer”, bem como o que ele “sugere dizer”.
O ideal é, então, extrapolar a existência dos sujeitos EUc e TUd, mas sem negar a sua importância no ato comunicativo. Assim, será
justamente essa competência situacional que possibilitará que o produtor se transforme em um EUe, da mesma maneira que oferecerá
recursos para que o leitor se desdobre em um TUi.
Nada melhor do que a prática e o exercício repetitivo e agradável da leitura para adquirir essa habilidade. Quem lê frequentemente tem
a sensibilidade para olhar para o mundo de forma mais crítica e consciente, aumentando suas perspectivas e expandindo seus horizontes. Um leitor que atinge o nível do TUi é capaz de captar todas as circunstâncias que envolvem o enunciado, capaz de (re)construir
interpretações. Assim, quando esse mesmo sujeito inverte os papéis e se coloca na posição de produtor de textos, ele tem, em suas mãos,
todos os recursos discursivos prontos para serem usados; terá o conhecimento de mundo necessário para construir um texto de forma
eficiente, pois terá desenvolvido em si a competência linguístico-comunicativa, além de ter uma grande bagagem de conhecimento.
Logo, na dinâmica que esse jogo do linguajar proporciona, é possível afirmar que um bom leitor é, por consequência e ao mesmo tempo,
um bom produtor de textos.
Referências:
BACCEGA, M. A. Palavra e discurso: história e literatura. São Paulo: Cortez, 2007.
CHALHUB, S. Funções da linguagem. 6. ed. São Paulo: Ática, 1993.
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.
KOCH, I. V. Desvendando os Segredos do Texto. São Paulo: Cortez, 2002.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. 3. ed. Campinas: UNICAMP; São Paulo: Pontes, 1997.
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Fontes, 2001.
POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
SÁ, L. S. B. C; ARANTES, H. A. G; CASTRO, A. B. B. Dos alicerces da leitura à construção do texto. Bauru: Edusc, 2013.
SHANNON, Claude; WEAVER, Warren. The Mathematical Theory of Communication. Illinois: Illini Books, 1949.
Recebido em 20 de Fevereiro de 2014.
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Aprovado para publicação em 13 de Abril de 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2, p. 80-86, 2013.
Poder e verdade museográficos:
A experiência expográfica em espaços culturais indígenas
Museographic power and truth: The exposure experience in indigenous cultural spaces
Dinah P. Guimaraens
Chefe do Departamento de Arquitetura/TAR da Universidade Federal Fluminense, UFF, Niterói, RJ. Pesquisadora de
Estética Transcultural e Arquitetura Contemporânea do Programa de Pos-Graduação em Arquitetura e Urbanismo,
PPGAU, da UFF, Niterói, RJ.
Resumo
O campo da museologia pode ser enriquecido por um contexto auto-reflexivo idealizado por cientistas sociais, onde o museu aparece como
arena onde são dramatizados conflitos e contradições. A questão principal desse texto é determinar em que consiste um espaço “indígena”
(nativo ou Native, em inglês) no Brasil e nos E.U. Para arquitetos brasileiros e sua cultura multi-étnica, projetar um “museu de índio” não
envolve discutir direitos humanos e cidadania indígena. Em novos tempos como o que vivemos hoje, é preciso estabelecer novas visões sobre
o índio nas nossas instituições museológicas. As práticas de avaliação em museus indígenas brasileiros, bem como seu sistema de educação e
mediação cultural devem levar em conta o aspecto simbólico do processo imaginativo referente à curadoria e à divulgação de suas exposições
científicas.
Palavras-chave: Arquiteutra de museus; Curadoria; Expografia; Cidadania Indígena
Abstract
The field of museology can be enriched by a self-reflective context devised by social scientists, where the museum appears as an arena in
which conflicts and contradictions are dramatized. The main issue of this paper is determining what constitutes an “indigenous” space (Native, in English) in Brazil and the U.S. For Brazilian architects and their multi-ethnic culture, design a “museum of Indian” involves not
discussing human rights and indigenous citizenship. In new times as we live in today, we need to establish new insights about the Indian in
our museum institutions. Assessment practices in Brazilian indigenous museums as well as its system of education and cultural mediation
should take into account the symbolic aspect of imaginative process regarding the curatorial work and the dissemination of its scientific
exhibitions.
Keywords Architecture of Museums; Cutorial Work; Expography; Indigenous Citizenship
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Museus: Laboratório, Templo ou Fórum
O
museu moderno representa o produto do humanismo do Renascimento, do iluminismo do século dezoito e da democracia
do século dezenove. O museu começa a se tornar público no final do século dezessete. O principal conceito dos primeiros
museus públicos consistia em educar a espécie humana e desenvolver seu progresso na direção da perfeição. Em 1793, a
França abriu o Palácio do Louvre como o Museu da República.
Os museus, desde a Renascença, têm sido comparados a monumentos cerimoniais como palácios ou templos, o que os transformou
em elementos sagrados na imaginação popular (Vergo, 1991). Se suas fachadas imitam realmente templos gregos ou palácios renascentistas, tal relação não é de ordem religiosa, mas de ordem secular, significando uma relação de poder simbólico estabelecida entre
a maioria dos museus com a elite de seus países, ao lado de uma valorização do passado como expressão da memória coletiva e do
patrimônio cultural da humanidade, expressa pelas instituições museológicas.
Se o Louvre pode ser considerado como o protótipo do museu público, esta nova instituição provou ser um bom produtor de significados simbólicos, com a transformação de um palácio em um espaço acessível a todos tendo feito do museu uma demonstração do
compromisso do Estado com a igualdade social. A igualdade de acesso ao museu de forma alguma deu a todos, no entanto, a educação necessária para entender as obras expostas em seu interior. Cabia aos incultos se extasiar com a magnitude dos tesouros ali exibidos, tendo o museu distorcido ou exagerado novos significados, impressos aos objetos em exposição. O novo objetivo do Louvre era
o de revelar uma abordagem evolucionista do progresso da arte e dos degraus de perfeição aos quais a humanidade deveria aspirar.
Os diretores do Louvre preocuparam-se em organizar as galerias por escolas nacionais, fazendo com que os tesouros, troféus e ícones
do passado se tornassem objetos da história da humanidade, os quais assumiram a forma de uma nova riqueza histórico-cultural. As
obras e objetos, organizados cronologicamente e sob categorias nacionais, ao longo dos corredores do museu, tornaram-se testemunhas da presença do “gênio” criador. A França era descrita, nesse processo, como a mais avançada nação-Estado, como o termo final
de uma narrativa que compreendia os maiores momentos da história da arte (Duncan, 1995).
Nessa acepção, o museu como templo pode ser visto como um aparato panóptico, no sentido descrito por Bentham e comentado
por Foucault, como aquele aparato ideológico construído para coletar e amplificar perspectivas de saber e poder presentes nos séculos XVII e XVIII. A função primária do museu na história moderna foi, então, a de instalar um viés cartesiano, no qual o aspecto
subjetivo pudesse ser reconhecido, com as obras e objetos tendo sido organizadas em espaços determinados, que fazem com que as
histórias da ciência e da cultura sejam vistas como genealogias, construídas com posições fixas e itinerários exatos.
O aspecto de templo decorre do fato do museu ser um teatro da geomancia (Preziosi, 1989), uma topografia ideal onde a colocação
dos objetos em situações adequadas assegura a preservação de valores essenciais, de uma prática mágica que evoca os espíritos dos
ancestrais a ali permanecerem e se alinharem ordenadamente no espaço museográfico. O museu como templo representa, portanto, uma concepção monumentalista da cultura, com uma ênfase etnocêntrica nas conquistas da sociedade ocidental. A instituição
museológica, sob esta ótica sacralizante, é vista como um espaço de representação da “civilização”, de uma cultura transcendente e
transhistórica.
Enquanto fórum, por contraste ao templo, o museu retrata uma concepção de cultura cuja ênfase está dirigida ao caráter fragmentário e instável dos diversos sistemas culturais. Nesse sentido, o campo da museologia pode ser enriquecido por um contexto auto-reflexivo idealizado por cientistas sociais, tal como vem ocorrendo na Smithsonian Institution de Washington, DC – principalmente no caso do National Museum of the American Indian – NMAI, inaugurado em seu Mall no dia 21 de setembro de 2004 - onde os
debates se realizam em torno do multiculturalismo. O museu é ali percebido como um elemento fragmentário, onde se realizam as
representações culturais e políticas das relações que se estabelecem entre os diferentes grupos e categorias sociais.
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Exposição Tapirapé, NMAI, Washington, 2004
O museu aparece como uma arena onde são dramatizados conflitos e contradições, expressos tanto por sua programação expositiva, quanto pela interação entre o público e a sua equipe. A contribuição da Antropologia ao campo da Museologia é no sentido de
elaborar uma autoconsciência em relação aos vocabulários culturais utilizados nos museus, bem como no sentido de contribuir para
a decodificação de diferenças e hierarquias sociais – de classe, de idade, de gênero e de identidade étnica – que facilitam as práticas
museológicas realizadas em contextos institucionais específicos e complexos
(Gonçalves,1995).
Os museus de ciência e história natural podem ser vistos como paradigmas das crenças e valores mais reverenciados pela sociedade,
especialmente porque são dirigidos a grandes audiências e são menos acusados de elitismo cultural do que as galerias de arte. Esses museus científicos têm a capacidade pedagógica de promover “fatos” e “valores” de forma simultânea. Desde que a observação
representa um lugar privilegiado na prática científica, ocorre uma compatibilidade especial entre a aquisição de saber natural e os
museus de ciência.
Os visitantes de museus de ciência, de forma a obter um melhor conhecimento em suas visitas, tanto podem chegar a reificar os
objetos que eles examinam, tratando-os como comodidades descontextualizadas, quanto podem chegar a se identificar com eles,
permitindo que tais objetos gerem memórias, associações e fantasias. É a combinação desses dois processos que tipifica qualquer
visita museológica. Os objetos representam então um sistema de comunicação, simbolizando meios através dos quais indivíduos,
grupos e categorias sociais emitem informações sobre seu status e sua posição social.
Os objetos não apenas demarcam ou expressam posições e identidades, mas na verdade constituem ou ajudam a produzir o modo
pelo qual os indivíduos e os grupos sociais experimentam subjetivamente sistemas de identidade e status. Dessa forma, o sentido de
conhecimento mais claro que os museus de ciência exprimem é o senso de passado. É como se ao conhecer e analisar relíquias do
passado, pudéssemos com ele nos identificar e mesmo revivê-lo em toda a sua intensidade. A crítica recai aqui no aspecto de fabricação cultural de um passado reinventado.
Ao pretender que conhecemos o passado ao olhar para suas reconstruções, podemos recair no erro de desvalorizar o saber culto e perPoéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 87-98, 2013.
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mitir ao público cultivar uma crença pouco realista na sua própria capacidade de conhecimento. Cabe à equipe do museu minorar tais
riscos, enfatizando a história por detrás das coleções, já que aquilo que a audiência vê é altamente seletivo, porque foram selecionados
aqueles aspectos que são mais fáceis de serem visualizados. O que está presente, como o que foi omitido, não é acidental, mesmo que
os processos seletivos sejam altamente inconscientes. É precisamente desta maneira que muitos mitos históricos foram construídos,
através de uma ênfase exagerada na contrução ideológica de certos aspectos do passado.
O realismo das exposições dos museus de história natural das décadas de 40 e 50 do século passado, como o Museu Nacional da Quinta
da Boa Vista do Rio de Janeiro e o Museu de História Natural de New York, expressa diversas formas de poder - ideológico, epistemológico, estético e político – representados pela taxidermia, fundos pintados e arranjos naturalisticamente estruturados nas vitrines de
exposição. Essas mostras criam um sentido de autoridade científica devido à visão não-mediada do mundo dos primatas, indicando
uma potente mistura de beleza e verdade. A importância de uma prática reflexiva sobre os conteúdos museológicos reside no fato de
que, ao refletir sobre a ilusão de que o conhecimento deriva diretamente dos objetos expostos em um museu de ciência e sua história,
estamos na realidade refletindo sobre a história de nossa própria sociedade.
A construção social e cultural dos museus científicos como “objetos de conhecimento” da cultura ocidental decorre da crença no fato
de se poder conhecer a realidade através do olhar, elemento esse que toca todos os aspectos da vida social e cultural contemporânea.
Para que a missão educativa do museu possa se efetivar, é necessário que se faça uma mediação cultural entre a instituição museológica
científica e o seu público, com o objetivo de inserir o museu no mundo cotidiano através da difusão cultural e da democratização de
técnicas midiáticas de informação. Dos Gabinetes de curiosidades do século dezesseis, passando pelas ideologias iluministas e pela política de abertura de museus da Revolução Francesa, os museus de ciência têm se desenvolvido, a partir dos anos 70 do século passado,
como uma clara contestação da noção de reificação da cultura da ciência.
Um aspecto controverso do museu científico é aquele que requer que o museu assuma uma função de complemento da escola, ao
mesmo tempo em que se exige que ele desempenhe uma função de espetáculo e de lazer. O papel educativo dos museus deve ser analisado através de sua freqüência, a qual revela que a escola exerce uma ação sobre a escolha dos museus visitados: quanto mais estes se
encontram próximos dos conteúdos programáticos das escolas, mais recebem frequentadores. O museu é um lugar didático e midiático, no sentido de que os objetos são enunciados que se destinam aos seus destinatários; e seus locutores são aqueles que articulam os
enunciados das frases: museólogos, jornalistas, conservadores e mediadores de todos os tipos que intervém conjuntamente ou de forma
complementar no museu.
O Museu Nacional do Índio Americano – NMAI em Washington e o Museu do Índio - FUNAI no Rio de Janeiro
A questão principal desse texto é determinar em que consiste um espaço “indígena” (nativo ou Native, em inglês) no Brasil e nos E.U.
Para arquitetos brasileiros e sua cultura multi-étnica, projetar um “museu de índio” não envolve, necessariamente, discutir direitos humanos e cidadania indígena. Afinal, quem sabe (e mesmo quem parece se importar de verdade, entre as camadas altas e intelectualizadas da população brasileira) que os indígenas foram drasticamente reduzidos de uma população de seis milhões de indivíduos no início
da colonização portuguesa, segundo Darci Ribeiro (1977) para 500.000 pessoas em 1970, e que essa população somente aumentou após
a demarcação das terras indígenas pela Constituição de 1988?
E quem se interessa em pesquisar “de dentro” a situação jurídico-política dos nossos “nativos” enquanto primeiros ocupantes da terra
brasilis, os quais vivem em “reservas” protegidas pela (quase sempre autoritária e inoperante) FUNAI - Fundação Nacional do Índio,
vinculada ao Ministério da Justiça e não possuem direitos civis como os outros brasileiros, tais como portar carteiras de identidade,
passaportes, títulos de eleitor e carteiras de trabalho? A colonização portuguesa, a partir do século XVIII, considerou os índios brasileiros como indivíduos pertencentes ao nível mais baixo da civilização, em termos morais e intelectuais. José Bonifácio foi o ideólogo
da legislação do Império, preocupando-se com a formação de um substrato para a nação brasileira que incluía os brancos, os índios
miscigenados e livres, os mulatos e, mais a longo prazo, os negros.
Em 1823, Bonifácio propôs a “sujeição” dos índios pelo Estado no sentido de formar uma civilização, um corpo civil e uma sociedade,
já que os indígenas pareciam carecer de governos regulares, nos moldes daqueles existentes na época imperial (Carneiro da Cunha,
1987: 170). As políticas indígenas do século XIX focalizavam a assimilação e a repressão, simbolizando o processo de cristianização da
colonização ocidental. A inclusão de membros brancos no interior de “aldeamentos” amazônicos teve o propósito de integração,
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 2 , p. 87-98, 2013.
Reprodução: www.galenbeck.de
O Poeh Cultural Center & Museum
dominação e ocupação coloniais, através de cinco regras básicas e complementares: 1) Pela disseminação da língua geral do português;
2) Pelo estabelecimento de escolas “brancas”, com professores igualmente “brancos”; 3) Pelo uso de roupas com estilo ocidental; 4) Pelo
estímulo da vida familiar monogâmica; 5) Pela integração econômica e política da população indígena.
Já falar de “nativos” nos E.U. significa discutir o sentido primordial de ser donos da terra e de haver adquirido legalmente, ao longo de
anos de etnocídio e de resistência cultural às várias “invasões bárbaras” européias, a soberania das terras conquistadas por direitos adquiridos e assegurados pela constituição federal norte-americana. Um estudo-de-caso de museu local indígena é o Poeh Cultural Center
and Museum dos índios Pojoaque de New Mexico, cuja missão é “apoiar o futuro do povo Pueblo através do ensino das artes; através
do colecionamento de grandes obras de arte e através da promoção da compreensão e respeito pela história e cultura dos índios Pueblo”.
Os Pueblo Indians consideram-se “guardiões da tradição, guardiões da terra e criadores de grande arte”. Embora os Pueblo recebam
generosamente visitantes ao longo de todo o ano, é preciso que se atente para o fato de que os espaços por eles ocupados (os quais os
espanhóis denominaram também de “pueblos”) constituem não “museus vivos” ou “parques temáticos”, mas sim nações soberanas. A
construção do museu “nativo” Poeh foi iniciada em 1989 por iniciativa de George Rivera, um escultor internacionalmente conhecido
que após viver e estudar no sul da França retornou a New Mexico para se tornar Vice-Governador e hoje Governador do Pueblo de
Pojoaque, o qual está situado próximo a Santa Fe, capital do estado.
O museu Poeh abriu sua mostra inicial de exposições em 1991, junto ao Centro de Visitantes do Pueblo de Pojoaque, enquanto sua
inauguração final foi agendada para agosto de 2005. Em 2001, George Rivera e sua equipe estiveram no Rio de Janeiro a convite do
projeto “Museu de Arte e Origens” sob minha coordenação, onde mostraram na PUC-Rio o projeto do Poeh Museum para indígenas
brasileiros. Sua museografia destaca-se pelo respeito à sabedoria dos mais velhos em suas mostras de arte e em seus programas educativos. A exposição permanente Naeh-Poeh-Me significa “No Caminho Contínuo” na língua Tewa que é falada pelos índios Pojoaque,
apresentando a história desse povo a partir de sua própria visão-de-mundo, oferecendo tanto aos visitantes nativos quanto aos não-nativos uma oportunidade única de conhecer as histórias Tewa, através da arte e da narrativa de suas tribos.
O National Museum of the American Indian – NMAI de Washington, DC representa uma proposta inovadora em termos de projeto
arquitetônico, design museológico e ideologia político-cultural relacionada aos povos “nativos”. Ao percorrer espaços museográficos
formados por painéis, vitrines, fotografias, desenhos, objetos, documentos e através do seu website (www.nmai.si.edu), a visita a esse
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museu pretende ensinar à audiência, com profundidade filosófica e técnicas visuais digitais avançadas, sobre a sabedoria indígena nas
Américas do Norte, do Sul e Central a partir de um lema inspirador: “Estou aprendendo a ser um copo vazio para que, quando for
preenchido por água fresca, eu seja capaz de recebê-la” (Anne Wilson Schaef).
Quando o público entra em contato, pela primeira vez, com aquela construção que parece ter sido cortada artesanalmente em rocha
amarelada e montada como um “dwelling” natural (moradia pré-histórica indígena, cavada nas rochas), parece que se está de frente
para uma montanha rochosa. O projeto do museu foi realizado por um time de arquitetos indígenas incluindo Ramona Sakiestewa,
Douglas Cardinal e Johnpaul Jones. A sólida estrutura curvilínea traça massas de luz e sombra ao redor do edifício, dependendo das
quatro direções estabelecidas pelo movimento solar ao redor do prédio. O sol ilumina os jardins ao redor do museu, revelando o significado telúrico de mais de 33.000 espécies vegetais nativas ali plantadas. A Mãe Terra é homenageada nesses jardins, idealizados por
uma etno-botânica indígena, Donna House.
O projeto do museu segue, portanto, a filosofia indígena, a qual se baseia na circularidade do universo que é expressa no “coração”
Jardins com mais de 33.000 espécies nativas no MNAI, 2004
dessa construção, o Potomac, local de encontro central coberto por uma rotunda que reflete os raios do sol nas paredes sob a forma de
arco-íris. A palavra Potomac vem da língua Piscataway falada pelos índios da região de Washington, significando “onde os bens eram
armazenados”. O teatro foi igualmente projetado em círculo para abrigar apresentações de dança e música, narrativas, peças, filmes e
vídeos, seminários e conferências nativas, contando com um sistema de projeção multimídia e de tradução simultânea com proteção
acústica. O espaço da audiência foi concebido sob a forma de um círculo pleno, seguindo a manifestação espacial de muitas danças
indígenas (Blue Spruce, 2004).
Um dos espaços museográficos mais impressionantes nesse edifício é um fórum multimídia circular, pintado em azul e composto por
telas digitais suspensas no espaço. As telas contam a história dos índios colonizados e cristianizados pelos europeus como a chegada
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de uma tempestade terrível ou de um furacão que chega para destruir suas vidas. A projeção começa com um céu cheio de raios e trovões misturados com cruzes, bíblias e armas de fogo que se juntam a imagens da destruição natural causada pelo furacão. O etnocídio
indígena é, portanto, simbolizado pela violência da natureza, como se a destruição indígena pudesse ser comparada a um desastre
ecológico. Nos tempos pré-colombianos, havia uma crença generalizada de que a espécie humana dependia do mundo natural para
sua sobrevivência, tendo o ser humano de respeitar a natureza e procurar viver em estreita relação com ela. As atividades rituais de
acender o fogo, agradecer os espíritos dos pássaros, ouvir as narrativas tradicionais dos anciões e comer a caça que havia sido abatida
eram protegidas por guardiões animais dos povos tribais, os quais ofereciam conselhos sobre como vencer as dificuldades da vida aos
seus parentes humanos.
O significado circular do universo nas culturas indígenas pode ser representado pela forma curvilínea do projeto arquitetônico do
museu, indicando ainda o respeito pelas crianças (que simbolizam o início da vida) e pelos anciãos (que indicam o final do ciclo vital)
nas sociedades nativas. As crianças são sagradas porque seu poder é realmente grande e baseia-se em conceitos como a verdade, a
honestidade e a confiança nos outros. Na medida em que se envelhece, as culturas nativas crêem que se passa a se poder enxergar mais
claramente a unidade dos seres viventes. As mulheres mais velhas são consideradas curandeiras, líderes e professoras que ajudam as
mulheres mais jovens a percorrer adequadamente os estágios cronológicos de suas vidas, incluindo o casamento, a criação dos filhos e
a maturidade.
A expografia do museu conta com exposições permanentes que expressam o ethos e a visão de mundo das culturas indígenas ao redor
do mundo. A primeira mostra foi intitulada “Nosso Universo: Um Saber Tradicional que Dá Forma ao Mundo” e fala das quatro cores
que simbolizam as quatro direções, como ocorre na tradição espiritual Lakota. Nessa tradição, o norte é vermelho e tem como estação
o verão; o estágio da vida é a juventude e a nação animal é o búfalo ou Pye Oyate. O oeste está associado com a cor preta; a estação é a
primavera; os seres espirituais são a generosidade e os trovões e a estação vital é a infância. O leste é associado à cor amarela; a estação é
o outono; os animais são o cervo de cauda preta e o veado e o estágio da vida é a maturidade. O sul está associado ao branco, ao inverno,
aos anciões e à sabedoria; à coruja e a todas as nações animais; enquanto Nagiyata, o espírito do mundo, conecta-se com o sul.
A museografia conta uma história que nunca foi contada do ponto de vista do colonizado (e cristianizado) índio exterminado, na medida em que se presume que ao “colonizar” ou “cristianizar” um povo sua sociedade e sua religião nativas seriam “inferiores”. Estereótipos
que foram usados para fazer os indígenas parecerem inferiores ou “menos humanos” nos séculos dezoito e dezenove (tal como a acusação de “homo ferus”, atribuída por José Bonifácio aos Botocudo no Brasil imperial) continuam presentes hoje em dia ao se falar dos
índios como se eles pertencessem ao passado, ou como se o modo de vida nativa não fizesse nenhum sentido na atualidade.
A exposição “Nossas Vidas: Vida Contemporânea e Identidades” revela como os povos indígenas nas Américas estão tentando proteger
Imagens de índios contemporâneos na sessão “Hoje: O Século XXI”
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a terra e sua cultura da violência de invasores, como expressa um ditado Winnebago: “Sagrada Mãe Terra, as árvores e toda a natureza
são testemunhas de nossos pensamentos e atos”. Para compor essa exposição, duas culturas indígenas brasileiras foram selecionadas. A
primeira aborda a cultura amazônica e se intitula “Ka’apor: Se vocês me ouvirem, eu vou fortalecê-los”, enfocando o protesto de indígenas do Amazonas sobre os danos causados pela invasão de suas terras por companhias mineiras e prospectores de ouro. A segunda
intitula-se “Tapirapé: A luta para manter suas terras” e enfoca a cultura xinguana, sua luta contra as doenças e as invasões de terra que
devastaram o Xingu nos anos 1990; bem como a luta atual dos Tapirapé para reinventar sua cultura ao recuperar a força tradicional
religiosa dos pajés.
O que revela, sem sombra de dúvida, uma postura “politicamente correta” por parte da expografia do museu da Smithsonian Institution
é principalmente o fato de sua arquitetura, sua museografia e a curadoria de suas mostras ter sido feita por indígenas, os quais compõem
igualmente o corpo técnico de guardas, guias, educadores e funcionários do NMAI. Isso não ocorre no caso do Museu do Índio brasileiro, o qual só conta com poucos docentes nativos em um corpo técnico com cerca de 100 funcionários “brancos”. A missão do museu
brasileiro pode ser assim definida: “O Museu do Índio é uma instituição governamental que se baseia em uma parceria com os 270
povos indígenas existentes no Brasil, os quais falam 180 línguas diferentes e compõem uma população de aproximadamente 370.000
pessoas. O museu pretende preservar, pesquisar e transmitir a rica herança desses povos. A coleção do museu inclui 14.000 peças etnográficas; 16.000 publicações especializadas em etnologia e áreas correlatas; 80.000 imagens de diversas mídias; 500.000 documentos e
200 filmes, vídeos e transcrições de textos indígenas”.
A exposição permanente do Museu do Índio “Tempo e Espaço na Amazônia: Os Wajãpi” teve curadoria da antropóloga francesa Domi-
Fachada do Museu do Índio, FUNAI
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nique Gallois. Tal curadoria foi feita em “parceria” com os Wajãpi, de acordo com o que expressa a própria missão do museu de estabelecer uma colaboração entre sua equipe técnica, antropólogos e indígenas. Os Wajãpi compõem uma população de cerca de 500 índios
que habitam o estado do Amapá, entre a fronteira do Brasil e da Guiana Francesa, falando uma língua tupi-guarani. Ocupam eles 40
aldeias que participaram da realização dessa mostra durante seis meses, produzindo mais de 400 objetos, elementos para a construção
de uma casa, sons, imagens e conhecimentos que integram seu patrimônio cultural.
Na primeira sala da mostra, “A Dança dos Peixes”, era exibido um resumo da criação do universo, sob a forma de uma história em
quadrinhos pintada pelos próprios índios, onde aparece a Cobra Grande (Moju), a Festa Pakuasu (Festa dos Peixes que rememora o
Festival Wyrakawa, a qual reuniu humanos e animais no começo dos tempos), a buzina de caule de imbaúba (Jimi’a Puku), os peixes da
onde foram tiradas as pinturas corporais, os pássaros da onde foram tirados enfeites, as máscaras e armações para a dança dos peixes,
as flautas de imbaúba e bambu, o coxo (duas a três canoas por festa) para armazenar caxiri (tipo de bebida fermentada) e as cuias para
servir tal bebida.
Folder da exposição permanente do Museu do Índio
Na segunda sala aparecia disposto “O Ciclo das Festas Wajãpi”, revelando como se encontram esses índios hoje em dia. Existem cinqüenta e oito tipos de rituais ligados à natureza entre eles, enquanto a festa principal é a do Milho Sagrado. Eram construídas flautas
para essa festa e elas são individualmente tocadas, homenageando o criador e os guerreiros e expressando uma proteção contra os maus
espíritos. A terceira sala mostrava um vídeotape intitulado “A Dança de Empurrar o Céu”, o qual pode ser assim resumido: “No passado,
os índios esqueceram de se alegrar e o céu desabou sobre a aldeia. Com o auxílio dos pássaros eles fizeram uma dança empurrando o
céu, para que o dia e a noite existissem de novo. As penas de pássaros são de animais que voam alto (águias, gaviões, araras, tucanos
etc) e os rituais são noturnos”.
A quarta sala enfocava “A Cosmografia”, falando sobre o tempo e o espaço na visão dos Wajãpi, em uma animação realizada por professores indígenas sobre o Passado (triste, úmido, sombrio), o Presente (colorido, bonito) e o Futuro (mais colorido, melhor). Na quinta
sala o tema é “Ver o Mundo como um Xamã”, na qual o pajé mostrava como passava a vida aprendendo com seu instrutor e antecessor
pajé e, por isso, a sua visão sobre a natureza é diferente da nossa. Para ele, por exemplo, um morcego era um velho cansado e triste; um
macaco era um guerreiro encostado em uma árvore; uma onça pintada era um jovem guerreiro bravio; uma cobra venenosa era um
jovem andarilho; uma árvore frondosa era uma aldeia no alto de uma árvore (lugar mágico) e um veado era um guerreiro fraco.
Na sexta sala “Resguardo da Moça”, aparecia um espaço vivencial onde a jovem ficava reclusa após a primeira menstruação, aos 11 ou 12
anos. Essa interdição fez com que a jovem ficasse reclusa por trinta dias em uma casa de cunho ritual, sob a guarda dos futuros sogros,
já que a proximidade dela, estando menstruada, de seus pais poderia prejudicá-los. Durante essa reclusão ela deveria seguir várias regras
de conduta, feitas para marcar sua passagem para a vida adulta. Ali ela vai jejuar e se alimentar com comidas especiais, enquanto aprendia a fiar o algodão. No final de sua iniciação, ela vai ser testada em sua coragem pela colocação de trançados com formigas venenosas
nas costas e nos pés, de forma a treiná-la para as dores do parto que virão após seu casamento.
Na sétima sala “Arte Gráfica” eram exibidos padrões gráficos e suas composições na pintura corporal Wajãpi. Apareciam elementos
como o Kusiwa ou sistema de representação gráfica; a Cobra Grande (jibóia); a anaconda ou a sucuri; o dorso de cobra; a cobra tucano;
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espinhas de peixe surubim ou pacu; a rã ano, juve ou murua; o jaboti; a onça; a lagarta; a borboleta; o beiju; a lima de ferro; desenhos
para borduna e ânus da peneira. No centro da sala encontravam-se dispostos objetos pessoais cotidianos de homens e mulheres, como
o material para pintura corporal (jenipapo escuro e vermelho); espelhos e adornos como colares etc Na oitava sala “Conhecimentos”
era mostrado o calendário indígena, no qual são desenhadas em azul as Festas de Inverno indicando as chuvas e a seca na menor parte
do mesmo, indicando as queimadas para plantar mandioca e milho.Na parede frontal ao calendário foram dispostos 232 nomes simbolizando os tipos de pássaros que viviam nas florestas. Apareciam pranchas nas paredes expressando as estações; as roças; o lugar onde
se viver, caçar e pescar na floresta; os pátios; os percursos na mata etc Na última sala “Produção”, fotos e artefatos mostravam a divisão
do trabalho entre homens e mulheres.
Embora essa mostra permanente revelasse uma linguagem técnica com uma correção irretorquível, do ponto de vista científico de sua
concepção antropológica tornava-se, no entanto, necessário indagar com Clifford (1988, 189) se os objetos “tribais” ali expostos não deixavam de representar “curiosidades, espécimes etnográficas e exóticas” ao serem retiradas de seu contexto ritual e exibidas em museus
de etnografia, como é o caso do Museu do Índio. Esse “sistema de objetos” (Baudrillard, 1973), formado por coleções etnográficas coletadas por antropólogos, durante o processo de pesquisa de campo, expressava a capacidade capitalista de criar um universo de valores
que se mantinha através do colecionismo extensivo e da circulação e troca de artefatos “nativos”, tomados como base de estruturação
da identidade ocidental. Os objetos etnográficos coletados criavam, então, um ambiente estruturado que substituía sua própria temporalidade por um “tempo real” do processo produtivo e histórico. É preciso ver na coleção etnográfica tanto uma forma de subjetividade
ocidental quanto a manifestação de práticas institucionais de poder.
Se existe de fato uma intenção de “parceria” e “colaboração” entre a equipe técnica do museu brasileiro e os indígenas, tal afirmativa,
Folder do Museu do Índio, FUNAI
reiteradamente expressa em sua expografia, revela uma condescendência paternalista que simboliza o processo capitalista pelo qual
os grupos sociais que exercem a antropologia se apropriam de coisas exóticas, fatos e sentidos “nativos” como afirmação e reprodução
de poderosas formas de discriminação contra as culturas tribais estudadas por etnógrafos. A diferença fundamental entre o Museu do
Índio do Rio de Janeiro e o Museu Nacional do Índio Americano de Washington consiste, pois, na definição dos “indígenas” aos quais
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se destinam suas respectivas missões.
No primeiro caso, aparece aquele “índio” idealizado e mantido eternamente cristalizado no passado, com sua “pureza cultural” assegurada pela interpretação etnográfica de cunho ficcional, a qual “fala pelo indígena” e “traduz a realidade nativa” para a ótica ocidental,
em uma clara correlação entre poder e história (Clifford & Marcus, 1986, 7). No segundo exemplo, surge uma visão pós-moderna que
abole a “verdade” sobre o índio e passa a vê-lo vivo no espaço e existindo no tempo real, não mais como um elemento a ser interpretado
pela ficção etnográfica, mas como um indivíduo que cria seu destino cotidianamente ao projetar a arquitetura do seu próprio museu;
ao desenhar os elementos museográficos ali dispostos e ao conceber a curadoria das mostras que falam diretamente e em sua língua
específica, com uma visão nativa “de dentro”, sobre sua própria cultura.
Museus Indígenas Participativos: Novas Arquiteturas, Novos Desenhos e Novas Museografias
Em novos tempos como o que vivemos hoje, é preciso estabelecer novas visões sobre o índio nas nossas instituições museológicas. As
práticas de avaliação em museus indígenas brasileiros, bem como seu sistema de educação e mediação cultural devem levar em conta
o aspecto simbólico do processo imaginativo referente à curadoria e à divulgação das suas exposições científicas. Se todos os museus
são exercícios de classificação, o conhecimento que os museus facilitam tem a qualidade de fantasia porque tal forma de conhecimento
só se torna possível através de um processo imaginativo. Para os autores contemporâneos, existem três níveis de classificação operando
em um museu:
I) Natureza de seus conteúdos: Geologia, História Natural, Belas Artes, História, Fotografia, Tecnologia etc; Tipos de Pessoas em torno das
quais são organizados: Grandes Escritores, Colecionadores etc; e pela Localidade onde estão situados.
II) Áreas de classificação no interior dos museus: Escolas, Períodos, Países, Funções dos Artefatos, Doadores etc, as quais parecem “naturais”
porque foram convencionalmente estabelecidas, mas que na realidade não têm nenhuma ordem lógica e sim carregam um nível de internalização inconsciente dos critérios da cultura ocidental.
III) Objetos individuais: Etiquetas Museológicas classificadas pela Autoria, Autenticidade, Antiguidade, Valor, Originalidade e Significação, indicando um contexto limitado, seletivo e manipulativo que leva o visitante a percebê-lo sob um determinado viés.
Nossa sugestão como arquiteta e antropóloga é que, de forma a poder aumentar a qualidade do projeto arquitetônico, da expografia e
da visitação dos museus indígenas brasileiros, deve-se, então:
1)Estabelecer um programa de pesquisa sobre a aceitação da missão (hoje ultrapassada, como já vimos) de “museus do índio” no país, focalizando a investigação em temas pertinentes de exposições e a adequação de suas peças expositivas, tais como vitrines, bases, painéis etc.
2)Mudar a estrutura de organização da equipe de “museus do índio” para lutar contra o preconceito, a inércia e a indiferença dentro das
próprias instituições em relação ao papel social a ser desempenhado por indígenas nos museus, redefinindo seus objetivos tendo como foco
a inclusão como coordenadores de técnicos nativos em todas as suas atividades arquitetônicas, museológicas e museográficas;
3)Mesclar conceitos tradicionais derivados dos séculos XIX e XX com técnicas contemporâneas multimídia, bem como criar equipes multidisciplinares envolvendo museólogos, jornalistas, antropólogos, historiadores e arquitetos, de preferência com ascendência indígena.
4)Reconhecer as diferenças de classe e níveis educacionais do público visitante, direcionando as leituras museográficas em diferentes níveis;
5)Redesenhar os espaços públicos para audiências mais amplas, evitando irritar os visitantes com um design de etiquetas e signos em locais
públicos com uma leitura por demais técnica ou sofisticada.
Referências
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BAUDRILLARD, Jean (1973). O Sistema dos Objetos. S. Paulo, Perspectiva.
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VERGO, Peter (editor) (1991). The New Museology. London, Reaktion Books.
Recebido em 23 de Março de 2014.
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Aprovado para publicação em 15 de Abril de 2014.
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O Processo Plagiotrópico em Rilkeana, de Ana Hatherly
The plagiotropy process in Rilkeana, byAna Hatherly
Matthews Carvalho Rocha Cirne
Graduado em Artes pela Universidade Federal do Amazonas, UFAM, Manaus, AM, membro do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa, GEPELIP. além de autor de capítulo de livro da Série Poéticas Visuais,
“Arte & Linguagem”, vol. 1.
Resumo
A poesia de Ana Hatherly possui muitas facetas, que destacam suas produções da corrente de poesia experimental em Portugal, na segunda
metade do século XX. Em uma de suas obras poéticas, intitulada Rilkeana, esta poeta dialoga com Os Sonetos a Orfeu e Elegias de Duíno,
de Rainer Maria Rilke, e a partir desse elo literário, procura-se evidências dos mecanismos de construção de poemas, que possibilita a compreensão do termo plagiotropia e a efetivação do diálogo existente entre os dois escritores.
Palavras-Chave: Poesia; Plagiotropia; Experimentação; Variação; Tradução.
Abstract
Ana Hatherly’s poetry has many faces that show her productions at the portuguese experimental poetry current at the second half of 20th
century. One of these works, called Rilkeana, the poet dialogs with the Os Sonetos a Orfeu and Elegias de Duíno, by Rainer Maria Rilke, and
since this literary bond, evidences of the construction mechanisms are researched, which provides the comprehension of the term plagiotropy
and the proves the dialog that exists between the writers.
Keywords: Poetry; Plagiotropy; Experimentation; Variation; Translation.
O
caráter experimental da poesia portuguesa, a partir da segunda metade do século XX com o movimento de Poesia Experimental (PO-EX), incita a poeta Ana Hatherly a desvendar os enigmas presentes na arte da palavra, criando mecanismos de escrita
que permeiam as mais diversas manifestações artísticas. Sendo uma das precursoras da corrente de poesia experimental em
Portugal, Hatherly executou experimentos com o Graffiti, técnicas do Barroco, confronto entre os grafismos oriental e ocidental, com a
cinematografia e com a pintura, cujos traços tornam sua escrita ilegível.
Dentre essas formas de experimentos, no ensaio A nova presença do passado no presente – uma releitura crítica da tradição, Ana
Hatherly apresenta a definição de plagiotropia, cujo significado consiste na “releitura crítica da tradição”, isto é, o movimento plagiotrópico se relaciona “com uma ideia de operação tradutora, que não só se aproxima da noção de intertextualidade de Kristeva, mas
também da noção de dialogismo de Bakhtine”. (HATHERLY, 1995, p.177)
Em 1999, ocorre a publicação do livro Rilkeana, onde a poeta portuguesa dialoga com os Sonetos a Orfeu e Elegias de Duino, de Rainer
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Maria Rilke. De antemão, já é possível sugerir que a obra poética de Hatherly faça parte de um processo plagiotrópico, mas que se afasta
da noção de plágio.
Com a publicação de A experiência do prodígio – bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII,
observa-se que Ana Hatherly utilizou alguns recursos da poesia visual na escritural, evidenciando o aspecto pictórico dos seus poemas,
junto às técnicas da poesia concreta. Posteriormente, no livro Po-Ex – textos e teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa, a poeta destaca o Programa de Estruturas Poéticas, onde ressalta os mecanismos de construção dos seus poemas de forma mais
completa e ao mesmo tempo sintetizada. Esse programa vem a seguir transcrito:
PROGRAMA DE ESTRUTURAS POÉTICAS
TIPO A - deslocação semântica de uma palavra privilegiada num contexto
TIPO B - evolução semântica acelerada de uma palavra privilegiada num contexto
TIPO C - vocábulos gregos ou latinos e neologismos concebidos a partir de raízes clássicas, cujo significado é obscuro ou foi obscurecido,
adquirem comunicabilidade fonética e formal / Variante A - palavras cujo emprego se desprezou ou caiu em desuso, ou cujo significado
inicial se desvirtuou com o uso, são aplicadas com rigor etimológico
TIPO D - uma linguagem simples e uma sintaxe lógica são perturbadas por um processo subjacente de sistemática deslocação do significado
/ Variante A - a deslocação do significado é alternadamente real e simulada
TIPO E - descolocação por metáfora e metonímia
TIPO F - contrastes resultantes do rigor etimológico da linguagem, da desmontagem da metáfora, da descolocação do significado, do emprego da recorrência
TIPO G - metalinguagem
TIPO H - comutação do sintagma
No programa acima citado, elaborado pela poeta, constata-se a possibilidade de utilizá-lo para justificar a variação poética como uma
das formas de escrever poemas no período em que estava em vigor o movimento de poesia experimental. Nesse programa, a autora
destacar a palavra variação, que constitui uma das possibilidades de escrita do poema, outra forma de fazer poesia, dentro das bases do
movimento.
Como está descrito no programa poético elaborado por Hatherly, a comutação sintagmática de uma palavra é desenvolvida no contexto,
conforme o tipo H. Esse processo poético é encontrada principalmente no poema intitulado subvariação IV-A, que se transcreve a
seguir:
IV-A
Ó árvores da vida
de que pendemos
dependemos
descendemos
Aladas serpentes
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vosso jogo angélico
nos ultrapassa
Nossa batalha
nossa derrota
nossa agonia
talvez nos divirta
Por ordem vossa
c
a
i
n
d
o
nos tornamos vossos
(HATHERLY, 1999, p.46)
A comutação, definida como a troca de uma coisa por outra, é percebida tanto no exemplo acima citado e nas demais variações e
subvariações, onde a poeta substitui palavras presentes nas variações por subvariações, alterando suas disposições no poema e criando
novos sentidos para os versos, criando novas possibilidades de leitura do poema e tornando-o compreensível para o leitor por meio da
linguagem atualizada ao tempo deste leitor, apesar de ocorrer a desconstrução sintática dos poemas de acordo com o recurso concretista. Leia-se a variação IV para se entender o processo:
IV
Ó árvores da vida
de que pendemos
entre ser e não sermos
Do ciclo das vossas estações
desse corpo a corpo
dependemos
entre áspide e flor
por vosso favor
De vossas entranhas finezas
de vossas estranhas façanhas
descendemos
aladas serpentes
de vosso jogo angélico
que nos ultrapassa
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Presentes e passadas penas
prenunciam
o abismo
os âmagos de vossas paixões
Assistir à nossa batalha
como quem espera fera
assistir à nossa derrota
porque queremos o que permanece
e a nossa passagem
entre o universo e brinquedo
o estreito da nossa agonia
talvez vos divirta
E da nossa infância
para sempre separados
por ordem vossa nos tornamos
nossos próprios pais
nossos próprios filhos
da nossa própria vida
aos poucos deslizando
e por fim
caindo
(HATHERLY, 1999, p.45)
Vale salientar que o deslocamento das palavras é visível tanto nas variações como nas subvariações sendo, portanto, construídos da mesma forma. O jogo, nos poemas de Hatherly do livro Rilkeana, está na desconstrução e reconstrução de sentidos dos poemas. A própria
autora se coloca no lugar de um poeta-leitor ativo ao criar nas subvariações novas possibilidades de interpretação, inserindo vocábulos
diferentes nos poemas construídos com as bases do Concretismo que diferem parcialmente dos vocábulos presentes nas variações, na
tentativa de sintetizar as ideias contidas nas variações e nas elegias de Rilke.
A inserção de novas palavras e a nova significação do poema está no programa desenvolvido por Hatherly, no tipo D, onde discorre a
respeito de sua poesia escritural e de outros poetas inseridos no movimento de poesia experimental: “uma linguagem simples e uma
sintaxe lógica são perturbadas por um processo subjacente de sistemática descolocação do significado / a deslocação do significado é
alternadamente real e dissimulada” (HATHERLY, 1981, p.76).
Esta perturbação de que fala a autora, possivelmente refere-se ao jogo de disposição de palavras na página em branco, presente nos seus
poemas escriturais. Da mesma forma em que se pode ver o deslocamento dos versos nos poemas acima, também é possível perceber a
“queda” existente tanto na subvariação IV-A, como na subvariação VII-B, onde a autora representa visualmente a queda a que se refere
o poema a partir da disposição da palavra “estendesse” (1999, p.59), evidenciando a denominação de poema-objeto, proposto por Chalhub: “o código verbal e suas qualidades, sejam sonoras, sejam visuais, ao se desenharem (com-figurar) diagramadoramente (desenho
que mostraria, no conjunto, os elementos da relação), adquirem características do objeto que definem”. (CHALHUB, 2005, p.39). A
descolocação do significado, no caso das variações está relacionada ao sentido do poema, e a perturbação além de referir-se à mudança
de sentido nas linguagens de Ana Hatherly e Rilke, refere-se à possibilidade que a autora tem de explorar os espaços em branco da
página, causando o primeiro impacto no leitor tradicional pelo aspecto visual do texto, pela alteração dos versos, porque o que o leitor
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espera numa primeira leitura de um poema é perceber sua estrutura tradicional e a essência do lirismo, mas isso se faz ausente parcialmente nas variações inseridas na obra. É possível que a forma decadente da representação visual das palavras “caindo” e “estendesse”
representem a densidade dos poemas de Rilke e das variações bem como uma representação visual da própria significação literal dos
verbos “cair” e “estender”, forma visual onde a palavra descende e não é verificada nos outros poemas do livro.
O legado teórico da autora é rico no que diz respeito às estruturas teóricas dos poemas concretos e da teoria da poesia experimental
em Portugal de um modo geral. A princípio, a leitura de seus poemas provoca a sensação inovadora em seus textos, mas ao mesmo
tempo estes se apresentam de forma minimalista, seja por sua forma, seja pelas técnicas utilizadas até então desconhecidas pelos leitores, trazendo um conceituado e consistente registro teórico, feito inclusive pela própria poeta junto com outros escritores. Além das
técnicas de poemas com eco e do conceito de variação musical que se aplica às variações poéticas, é desvelada a utilização de outros
padrões determinados pelas bases teóricas da poesia experimental e seguidos com rigor técnico por Ana Hatherly. É importante ressaltar que as teorias da poesia experimental foram registradas, mas não com o intuito de serem seguidas a rigor, isto é, como foram
escritas, tendo em vista que as artes já possuem na segunda metade do século XX um caráter experimental, e o diálogo realizado pela
escritora faz parte dessas experimentações.
Num salto mais profundo no universo poético de Ana Hatherly, neste estágio da pesquisa foram analisadas algumas variações, suas
respectivas subvariações e alguns trechos das Elegias de Duino, de Rainer Maria Rilke.
A partir de agora faz-se a análise comparativa da Primeira elegia de Rilke, com as Variações elegíacas, de Hatherly, constantes nas
páginas 29 a 73 de Rilkeana, seguida da complementação com as plagiotropias da segunda parte de Rilkeana intituladas Orfeu em
queda livre e Glosas livres.
Nem Ana Hatherly nem Rilke definem o termo elegia nas entrevistas, ensaios ou no livro Rilkeana. Por isso, foi pesquisado esse conceito no livro Teoria literária, de Hênio Tavares, para quem a elegia ou treno, “comporta as composições de tristeza e de luto” (TAVARES, 2002, p.282). Na obra do poeta alemão, a tristeza reflete o caráter do sujeito do poema ao buscar a figura do Anjo, num sentido
transcendental que, segundo foi dito anteriormente, difere da concepção do divino tida por Ana Hatherly.
Nas Variações elegíacas de Hatherly um dos aspectos identificados com mais facilidade e de que se discorreu anteriormente foi o da
musicalidade, cujo recurso é admitido pela escritora nos ensaios e entrevistas, inseridos na obra Interfaces do olhar. Na carta enviada
a Elfriede Engelmeyer, Hatherly revela que a ideia de variação surgiu dos seus estudos musicais em sua estada na Alemanha e do seu
desejo de seguir carreira como cantora. A autora diz:
As Paixões de J. S. Bach e em geral a música dessa época, que eu estudei na Alemanha, são pilares essenciais na formação da minha sensibilidade. Mozart, Schubert, Hayden, e é claro, Beethoven (cuja biografia eu li na minha juventude, banhada em lágrimas) têm um lugar
importante. Mahler, só veio muito mais tarde. Schonberg, Berg, Webern, completaram o leque da minha sensibilidade musical. Mas esse
leque é muito mais vasto. Eu estudei muito seriamente a música, sobretudo nos aspectos da composição e desse estudo me ficou um gosto
pelo rigor e uma entranhada disciplina que, por exemplo nas Rilkeanas, se pode ver claramente. Mas em outras obras também. E até no
meu comportamento em geral. (HATHERLY, 2004, p.126-127)
Ao mesmo tempo em que a autora observa o quanto a música está presente na sua poética e de um modo especial em Rilkeana, vale
lembrar que a poeta emprega também recursos da poesia simbolista, que possui como principal característica a musicalidade, seja pela
estrutura, seja pela a utilização de vocábulos que remetem à música.
Na Variação I, ao mesmo tempo em que é posta em destaque a impossibilidade de determinada materialização angelical, a voz do
Anjo é inventada, embora o sujeito do poema escreva que o anjo não existe, é o silêncio: “Oiço vozes / mas são vozes inventadas /
porque é inútil perscrutar o silêncio...” (HATHERLY, 1999, p.29) A ausência do anjo é análoga ao desencanto com o desejo de relação
amorosa, pois, no decorrer das variações, é evidenciada a temática amorosa, mas de uma forma em que o êxtase ou prazer é posto de
lado, embora o amor seja uma manifestação do sagrado. O amor, então, nas variações em forma de elegias, origina a desilusão com
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as relações afetivas.
Na Variação II, o Anjo se faz presente e ausente ao mesmo tempo e percebe-se que os experimentos da poeta portuguesa com as técnicas poéticas do Barroco são utilizadas, relacionadas aos “divertimentos proveitosos” das sociedades daquele período barroco, pela
construção de labirintos poéticos, sempre com um aprendizado moral, como afirma a autora no ensaio intitulado O divertimento
proveitoso – enigmas barrocos portugueses. Em virtude disto, verificou-se, nessa segunda variação, especialmente na quarta estrofe,
uma espécie de ensinamento moral e relacionado à afetividade, no sentido de que ela não pode se realizar: “A prática das coisas / indifere tudo / e com o tempo / o nosso coração / deixa de ansiar / não querer mais procurar / o estreito círculo do outro...” (1999, p.36)
Ao tentar inovar o pensamento do eu-lírico rilkeano, Hatherly atualiza, sem alterar a ideia do poema, a temática dos afetos, pois no
poema de ambos os autores permanece o erotismo poético ligado ao sagrado. Nesta Variação II, a escritora destaca a esperança por
uma relação amorosa, como uma súplica para encontrar o ser desejado: “Não me abandona mais / o terrível anjo / que no seu abismo
/ guarda o segredo / do ideal do outro... E agarrados a uma indizível esperança / mudamente imploramos / mais tempo / mais tempo
/ mais vida” (1999, p.36-37).
Na Variação III, novamente há o ensino proveitoso relacionado à afetividade por meio da apresentação, ao leitor, dos sintomas da
paixão, a qual é expressa, nas subvariações ou Variações III-A e Variação III-B, também como uma manifestação divina na tentativa
de personificação da figura angelical. A religiosidade como busca de religação do homem com o elemento original e sagrado se faz
presente no momento em que a autora destaca: “Não / nenhum rosto materno sobre o nosso debruçado / nos consolaria / se houvesse
esse rosto / essa ternura impossível de entender” (1999, p.40). Isso sugere que as coisas possuem origem sagrada e não há empecilho
para a externalização instintiva da relação afetiva, posto que esta é inerente à condição humana. O amor, nessa variação poética, pode
provocar no homem o reconhecimento de que ele não sabe dele mesmo nem de seu caráter divino: “Quem ama / fica cheio de não-saber / não pára de procurar” (1999, p.40).
Na Variação IV, observam-se questionamentos acerca da vida personificada pelas árvores que geram os homens e assistem a seus sofrimentos: “Assistis à nossa batalha / como quem espera fera / assistis à nossa derrota / porque queremos o que permanece / e a nossa passagem / entre universo e brinquedo / o estreito da nossa agonia / talvez vos divirta”. (1999, p.44-45). Na Variação IV-A e Variação IV-B
confirma-se que a vida é a metáfora de “aladas serpentes” que joga com o homem, o faz cair e o derrota por causa das paixões dele.
A Variação V questiona os quereres incessantes do homem diante da vida, além de ser uma reflexão de vida, um aprendizado moral:
“E tu / vontade insatisfeita / onde encontrarás / os frutos da árvore do querer / as alegrias do estar e do ser / que nos rompem o peito
/ de tanto as ansiar?”. (1999, p.48) A poeta escreve que o homem é um recém-chegado que desconhece os mistérios da vida e deseja
um objeto: “E na busca heroica / do instante transfigurado / o activo martírio de prosseguir / faz de nós / desamparados / peregrinos
recém-chegados” (1999, p.49). A Variação V-A e Variação V-B reiteram a ideia de que o desejo do homem o deixa desamparado, pois
o impele a buscar o objeto de seu desejo e a se martirizar por isso.
A Variação VI evidencia o paradoxo da vida e da morte. Vale ressaltar que isso, além de certo pessimismo, são recorrentes nas elegias
de Rilke. Em um eixo está a árvore simbolizando a vida, noutro o amargor de seus frutos. É apresentada a possibilidade de o homem
ser tudo e nada ao mesmo tempo: “Ó doçura / porque amargas tanto / a nossa tentação de florir / ao mesmo tempo sendo tudo / e
nada?” (1999, p.53). O homem, em contato com a morte, fica mais próximo do objeto de desejo, o Anjo.
Na Variação VII, juntamente com a Variação VII-A e a Variação VII-B, a poeta portuguesa utiliza o contraste barroco para dizer que a
voz do anjo foi ouvida: “A tua voz / oh voz imensa / o teu grito inaudível / outrora / era o nosso templo do porvir / a nossa resolução / a
cegueira esplêndida do jogo das promessas”. (1999, p.56). Ela contrasta ainda o tempo de “outrora” com o “agora”, momento da surdez
à voz angelical e da malsucedida procura pelo anjo.
A Variação VIII, assim como suas duas variações, VIII-A e VIII-B fala sobre o anseio do homem de ser e estar no mundo, mas predomina nele os sentidos, as necessidades corporais. “O animal / vigilante e quente / quer contato / quer tocar / morder / roer / depois
deitar / dormir / estar plenamente / entregue”. Ao mesmo tempo, ele quer ver o que existe do outro lado do espelho, o Infinito Além,
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mas sabe de sua impossibilidade: “Eternamente inquietos / enchemos as salas do espetáculo da vida / assistimos / e participamos na
performance / sem nunca podermos / realmente / ver”. (1999, p.60-61)
Na Variação IX, e na Variação IX-A e Variação IX-B há o questionamento da validade de viver sem amor, pois isso deixa o homem
morto por dentro, um morto vivo. Há questionamentos se a terra, a vida e a alma se cumprem, favorecem a criação, se quando se ama
é amado reciprocamente e se, quanto mais o homem se realiza mais ele caminha para a morte, o invisível.
Por fim, a Variação X, juntamente com as variações X-A, X-B, X-C e X-D, apresenta a gradação da procura pela imagem do Anjo, da
sua voz, seguida do desencanto com a surdez, que impede o homem de ouvir a voz angelical, até o ponto em que o sujeito do poema
alcança a amargura por causa de tal impossibilidade.
Realiza-se, a partir de agora, a discussão a respeito da tradução de Sonetos a Orfeu, de Rilke, feitas por Hatherly na segunda parte de
Rilkeana intitulada Glosas livres, por meio das leituras sistematizadas na fundamentação teórica, demonstrando o modo como acontece a variação, a subvariação e o eco poético.
Conforme se observa pelo título das obras, a poesia de Rilke, utiliza formas poéticas diferentes, de um lado, a elegia; de outro, o soneto. Hênio Tavares, teórico da literatura, apresenta-nos uma definição do soneto: “É uma composição de 14 versos, distribuídos em 2
quadras e dois tercetos, sendo o último verso a chamada “chave de ouro”, que deve conter em si a essência geral do poema”. (TAVARES,
2002, p. 305) Pelo aspecto visual das variações de Hatherly, é possível averiguar que a autora foge a esse conceito, utilizando-se de outra
estrutura, dispondo aleatoriamente os versos, processo que se enquadra no tipo de poesia-variação, em que destaca a visualidade das
palavras na página com o rigor técnico recomendado pelo programa da corrente de poesia experimental. Nas Glosas Livres, a poeta
trabalha a variação para contestar, complementar, completar, esclarecer e atualizar a linguagem dos sonetos rilkeanos. A primeira
variação de Hatherly que se destaca é a da mudança poética da forma do soneto para a forma de glosa. Para Hênio Tavares, a glosa
“consiste em tomar um motivo (o mote) e desenvolvê-lo ideativamente, repetindo-lhe os versos ou o verso, através da composição ou
no final dela.” (2002, p. 285).
No poema Os apressados, variação do soneto XXII, de Rilke, traduzido por Quintela, a autora transmite a sensação de complementação através de respostas dadas e contestações feitas aos sonetos rilkeanos, e não apenas respostas mas também contestações. Tanto
o soneto rilkeano quanto a variação feita por Hatherly são semelhantes no que diz respeito à temática e a alguns vocábulos, a efemeridade da vida, a reflexão sobre as coisas mundanas, o imediatismo do homem. Enquanto na segunda estrofe do soneto de Rilke
traduzido por Paulo Quintela consta: “Tudo o que se apressa / passará em breve; / pois só o que fica / nos iniciará”. (RILKE, 1998,
p.191) A temática da efemeridade presente no trecho é complementada na segunda e terceira estrofes da variação hatherliana desse
modo: “Corremos empurrados / como água que se despenha / duma alta cascata / Caindo / a água paira um instante no ar / abrindo o
prisma / de um breve arco-íris / e depois prossegue / esquecida do voo”. (HATHERLY, 1999, p.87) Hatherly traz o elemento água para
ilustrar a efemeridade citada por Rilke em seu soneto e traz, juntamente com a correnteza, o esquecimento do voo. Já na quarta estrofe
do mesmo soneto de Rilke, lê-se: “Não lanceis o ânimo, / moços, no que é rápido, / no tentar do voo”. (1998, p.192) Esse desânimo
do poeta é contestado nas variações de Hatherly: “Para quê o voo / a queda / a flor?”. (1999, p.87) Já na última estrofe de seu soneto,
Rilke diz: “Tudo é repousado: / o escuro, o claro, / a flor e o livro.” (1998, p.192), e Hatherly, em sua glosa, refuta: “Onde o repouso?
/ Há uma bênção divina no esquecimento” (1999, p.87). Ou seja, enquanto Rilke enfatiza o voo, Ana Hatherly apresenta-o de outra
maneira, afirmando que o voo é esquecido, porque tudo é efêmero. A temática da efemeridade ilustrada no voo e na recorrência a
elementos da natureza pela poeta portuguesa, é feita de forma ousada, devido a sua contestação da voz de Rilke em Sonetos a Orfeu.
Vale ressaltar que a variação já se constitui de uma subversão poética, por ter caráter de fuga dos padrões tradicionais de métrica, rima
e versificação de um modo geral.
O soneto XXIII, de Rilke, traduzido por Quintela, é plagiotropado na glosa Sob os silêncios do céu, de Ana Hatherly. Pela tradução
de Quintela se observa a complexidade do jogo lexical de Rilke. A poeta portuguesa apresenta o jogo de maneira menos complexa,
pois realiza a sintetização da ideia rilkeana: Na primeira estrofe de sua glosa, Hatherly diz: “Sob os silêncios do céu / caminho solitária
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/ apoiada só na minha ironia” (1999, p.88); enquanto na primeira estrofe de seu soneto, Rilke diz: “Só então / quando o voo / já não
por mor de si / subir nos céus silentes / a si mesmo bastante...” (1998, p.192). Nos dois poemas, existe uma crítica acerca da figura do
anjo, pois Ana Hatherly reitera o qualificativo de orgulhoso ao anjo dado pelo poeta alemão: “só quando um alvo puro / de aparelhos
crescentes / vença o imberbe orgulho...”. (RILKE, 1998, p.192). Ainda, no soneto rilkeano, há mais características personificadoras
do personagem divino: “para em claros perfis, / utensílio acabado / brincar dilecto dos ventos, / certo baloiçante e esbelto...” (1998,
p.192). Nesse sentido, trata-se de uma crítica à ideia da existência do anjo. O orgulho retratado pelos poetas na figura angelical indica
a constatação da inexistência de contato direto do homem com o sobrenatural. Essa contestação aparece mais fortemente e de modo
realista e direto nos poemas em forma de variação de Ana Hatherly, a qual apresenta o anjo como invenção, nada mais do que “vozes
inventadas”. O que resta então, dos vestígios da divindade, são os “voos solitários” citados nas variações hatherlianas: “Sob os silêncios
do céu / neste novo Inferno / a cada um só resta / mas resta ainda / o seu próprio voo solitário” (1999, p.88). Lê-se, no soneto XXIII,
rilkeano: “pode o que aos longes se achega, / precipite o lucro, / ser o que, / em solitário voo, conquista.” (1998, p.192). Há, além da
postura crítica ao anjo, uma paradoxal sugestão de semelhança entre os dois poetas, Hatherly e Rilke, com o anjo, pois esta segunda
se compara, por sua ironia, descrita na primeira estrofe, ao orgulho do anjo, para aproximar do ser angelical a figura do poeta; este é
irônico por ser orgulhoso, é um outro anjo não personificado. Pode-se dizer que a poeta portuguesa se coloca nesse extremo, enquanto
se observa que, no outro extremo do orgulho do anjo, está o poeta Rilke, caracterizado pelo pessimismo em sua poesia.
A glosa livre Os jardins imaginários, variação hatherlyana do soneto XVII, de Rilke, remete ao universo que, ao mesmo tempo, é criado pela poeta portuguesa e pelo alemão, já que há um diálogo entre as duas obras sobre o tema da impossibilidade de realização amorosa. Esse tema é atualizado na glosa de Hatherly, é tratado próximo da realidade cotidiana, nada propiciadora para a materialização
do Anjo, e, por isso, o tema é colocado em contraste com as criações de um universo inventado. Esse modo de apresentar o tema do
anjo, ao mesmo tempo, contrasta com a ideia do anjo na obra de Rilke, que o tenta materializar de forma transcendental, ao celebrar
a vida e a morte através do pessimismo em seus poemas. No soneto XVII, com o qual Hatherly dialoga, o poeta Rilke menciona a
fonte oculta, que talvez sejam os jardins imaginários hatherlyanos por meio dos quais a poeta cria a ideia de que o desejo de realiza no
espaço da imaginação: “Lá no fundo o velho, enredado, / raiz de todos os seres / eregidos, fonte oculta / que eles nunca viram.”. (1998,
p.189) Ainda é possível sugerir que, para Hatherly, por meio dos versos “não somos dignos / de fruir de tais gozos” (1999, p. 89), não
é possível ao homem encontrar o Anjo.
Na última glosa de Rilkeana, que tem como título o mesmo nome dado à segunda parte do livro, Orfeu em queda livre, Hatherly
dialoga com Vom moenchischen leben I – Das stunden buch e Am rande der nacht, in: Das buch der bilder, segundo consta abaixo
do título do poema, no livro Rilkeana e que Paulo Quintela assim traduz: Livro primeiro - O livro da vida monástica, inserido em
O livro de horas, e poema Cair da noite, em O livro das imagens, de Rainer Maria Rilke. Nessa variação poética, não há semelhança
nos vocábulos, na estrutura textual sua configuração é apresentada por versos livres e características concretistas no plano visual. Nos
últimos versos, Ana traça um laço de irmandade com Orfeu, mudando o foco do personagem principal da obra, que é o anjo, para
aquela figura mitológica, de quem Junito de Souza Brandão fala, no livro Mitologia Grega:
Orfeu sempre esteve vinculado ao mundo da música e da poesia: poeta, músico e cantor célebre, foi verdadeiro criador da “teologia” pagã.
Tangia a lira e a cítara, sendo que passava por ser o inventor desta última ou, ao menos, quem lhe aumentou o número de cordas, de
sete para nove, numa homenagem às Nove Musas. Sua maestria na cítara e a suavidade de sua voz eram tais, que os animais selvagens
o seguiam, as árvores inclinavam suas copadas para ouvi-lo e os homens mais coléricos sentiam-se penetrados de ternura e bondade.
(BRANDÃO, 1991, p. 141)
No poema de Hatherly, é possível estabelecer a ligação entre Orfeu, Rilke e a própria poeta, quando se lê: “sou tua irmã-irmão / corda
tensa / Orfeu em queda livre” (1999, p.91). A afinidade entre as três figuras pode ser observada, de um lado, pela musicalidade de
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Orfeu também presente na poesia concreta e experimental, como também na poesia simbolista, em especial, na poesia de Rilke. Nesse
ponto, a poeta portuguesa confronta duas releituras poéticas e órficas, a dela e a de Rilke, e, para isso, utiliza o programa plagiotrópico
por ela própria formulado.
No diálogo de Hatherly com Rilke, o caráter de complementaridade se mostra quando a poeta confronta seu poema com O livro da
vida monástica, de Rilke. Ela escreve: “O que interrogo / é a tua relação / entre esse dunkel tun / que te moveu outrora / a culminância
dessa lei / dessa rede / que nos impede a fuga e afoga”. (1999, p.91) A respeito dessa relação com a escuridão, a poeta sugere que Rilke,
para falar do anjo, mantém-se reservado em meio ao escuro. Isso está de acordo com o seguinte poema rilkeano: “Amo as horas nocturnas do meu ser / em que se me aprofundam os sentidos” (1998, p.76); e mais adiante: “Escuridão de que provenho, / amo-te mais
do que à chama / que limita o mundo...”. (1998, p.77) Observa-se, no verso hatherliano, a predileção da poeta pelo dunkel tun, o “fazer
escuro”, alusão ao contraste barroco claro-escuro tão destacado nos trabalhos da autora. Na segunda estrofe da acima mencionada glosa de Hatherly, a poeta ilustra com elementos da natureza, o estado poético rilkeano, na busca de ele se conectar ao divino. A conexão
se faz com o poema Cair da noite, onde Rilke retrata a escuridão: “Cai a noite a mudar devagar os vestidos / que uma franja de árvores
velhas lhe segura; ...e deixam-te, sem pertenceres de todo a qualquer delas, / não tão escuro como a casa silenciosa, / não tão seguro a
evocar o eterno, / como a que cada noite se faz estrela e sobe; ...” (RILKE, 1998, p.68)
Estruturalmente, de acordo com a autora de Rilkeana, as variações elegíacas possuem a estrutura de uma coroa poética barroca. A
variação na segunda parte do livro já não tem caráter sintético, mas caráter completivo das ideias, do sentido do poema. São duas
linguagens que se completam. Observa-se que as subvariações, diferentemente das variações, já possuem uma ordem decrescente e
também sintética, mas que, diferentemente dos poemas da segunda parte do livro, que complementam o sentido dos poemas de Rilke,
a subvariação apresenta a ideia do poema principal, nesse caso, dos poemas principais, as elegias de Rilke e as variações hatherlianas.
Ainda no que se refere à estrutura de Rilkeana, de modo geral, Elfriede Engelmeyer diz, em Diálogo(s), na abertura do livro de Hatherly, que “cada variação é, ao mesmo tempo, redução e expansão” (ENGELMEYER, 1999, p.23). João Barrento, também na apresentação
do livro, sob o título Mas resta ainda..., esclarece:
Cada uma das dez Elegias de Rilke, ou o seu tema dominante, é glosada num poema-variação, que por sua vez se desdobra em subvariação-síntese, em número variável, mas simétrico, de modo a formar a “coroa”: quatro para os primeiro e décimo poemas-variação, e duas
para os oito restantes. Cada série de variações abre com uma glosa, acutilante e desencantada, que dá o tema (...) para depois o retomar,
fragmentando essa primeira variação em mais quatro ou mais duas (...) as variações fazem-se por um processo de desmembramento,
selecção e amplificação de fragmentos de discurso que, no primeiro poema-variação, ainda se apresentavam como parte de um todo em
que as arestas mais cortantes se atenuavam. (BARRENTO, 1999, p.14-15)
Apesar do caráter aproximativo do modo de fazer poemas dos dois poetas, como foi verificado anteriormente, esse aspecto não se aplica a um processo de tradução. As afinidades, por parte de Ana Hatherly, são verificadas em termos de linguagem e no objeto comum
de buscam uma relação com o divino.
Nota-se, então, que nas variações e subvariações hatherlianas existe uma deturpação do sofrimento, que é provocado pela imaterialidade do Anjo, da mesma forma como ocorre em Rilke, mas nesse caso, Ana Hatherly traz as ideias centrais das elegias para uma
linguagem atual, derivando a temática divina para a impossibilidade da relação amorosa, a desmistificação das figuras divinas, e para
questionamentos de teor humanístico, como os desejos do homem atual. E como não existe criação sem erotismo, Ana subverte eroticamente, pela abordagem do tema amoroso e o desejo, embora impossível de concretizar, de materialização do Anjo, incitando o leitor
a confundir esta figura divina à imagem dele, leitor, personificada e materializada.
Retomando a questão da tradução, comentada brevemente na introdução deste artigo, Paulo Rónai, no livro A tradução vivida, aprePoéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 2, p. 99-109, 2013.
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senta a etimologia da palavra: “em latim, traducere é levar alguém pela mão para o outro lado, para outro lugar. O sujeito deste verbo
é o tradutor, o objeto direto, o autor do original a quem o tradutor introduz num ambiente novo.” (RÓNAI, 1990, p. 20)
Ana Hatherly, em seu processo plagiotrópico de construir variações de obras poéticas, leva o leitor à outra margem, o conduz a um
novo lugar de sentido, complementa linguagens – visual e escritural, mistura expressões artísticas e técnicas diversas, realiza jogos,
evidencia o aspecto lúdico com a palavra e a imagem e apresenta os “quase enigmas” do grito poético. Paulo Rónai acrescenta que
o tradutor mais fiel, já disse, seria aquele que, graças a uma capacidade excepcional, estivesse em condições de esquecer as palavras da
mensagem original e, logo depois, de lembrar-se de seu conteúdo, para reformulá-la na sua própria língua, de maneira mais completa.
Claro, a sua mente recortaria a mensagem em parcelas curtas para poder fixá-las, parcelas desiguais, que seriam ora uma palavra só, ora
uma frase, ora um parágrafo. E para a mensagem ser compreendida, ele trataria de conformá-la o mais possível aos usos, hábitos e regras
de sua própria língua. (RÓNAI, 1990, p.126)
A declaração de Rónai é verificada no processo muito peculiar de tradução de Hatherly no livro Rilkeana, onde é possível sugerir que
as variações, subvariações, os ecos, e as glosas, podem entendidos como tradução, mas que se afasta da tradução literal. Na verdade os
poemas desta obra não são definitivamente traduções e, como diz a própria Ana Hatherly, também se afastam do conceito de paródia,
de plágio. Reforçando as palavras da própria poeta, como ela mesma o faz em seus textos teóricos e entrevistas, a plagiotropia é uma
releitura crítica do passado. As palavras de Rónai se aproximam da ideia dos poemas com eco e do próprio conceito de variação, havendo, para este tradutor, um recorte, uma forma de síntese no ato de traduzir.
Em seus Estudos de tradução, Susan Bassnet apresenta sete tipos de tradução, catalogadas na obra de André Lefevere: tradução fonêmica, tradução literal, tradução métrica, de poesia para prosa, tradução rimada, tradução em verso branco e interpretação. A respeito
desta última forma de tradução, esta teórica diz: “Sob este tópico Lefevere traz à discussão aquilo que designa por versões – em que
o conteúdo do texto original é mantido, mas a forma é alterada – e imitações em que o tradutor produz um poema da sua palavra
que, na melhor das hipóteses, tem em comum com o original o título e o ponto de partida”. (BASSET, 2003, p.138) Pode-se considerar
que os poemas da obra Rilkeana sejam entendidos como interpretação das elegias e dos sonteos de Rilke. No entanto, existem duas
ramificações da interpretação, a versão e a imitação, conforme consta na citação acima, que dificultam uma classificação para os poemas hatherlianos no âmbito da tradução. Nota-se que é impossível determinar que seus poemas sejam imitações, mas podem ser, por
outro lado, versões dos textos rilkeanos, pois, como já se sabe, Ana Hatherly apenas se baseia no poeta alemão, podendo concordar ou
discordar das ideias dos poemas dele no processo de tradução que ela realiza; é também um processo de releitura. Categoricamente,
não se pode determinar a que ramificação da tradução os poemas de Hatherly pertencem, e dentro da perspectiva experimentalista,
não se faz necessário categorizar seus poemas num campo vasto de experimentos, em releituras do passado. O que resta, na verdade, é
fazer um retorno às teorias da poesia experimental, e às próprias palavras da poeta, que utiliza o termo plagiotropia para os processos
criativos de seus diálogos poéticos, em especial com a poesia de Rilke.
Referências:
BASSNETT, Suzan. Estudos de tradução: fundamentos de uma disciplina. 1ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkian, 2003.
BARRENTO, João. Mas resta ainda... In: HATHERLY, Ana. Rilkeana. 1ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.
BRANDÃO, Junito de Souza. Orfeu, Eurídice e o Orfismo. Mitologia Grega. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1991.
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CHALHUB, Samira. A Metalinguagem. São Paulo: Editora Ática. 2005.
ENGELMEYER, Elfriede. Diálogo(s). In: HATHERLY, Ana. Rilkeana. 1ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.
HATHERLY, Ana. Carta a Elfriede Engelmeyer sobre a gênese de Rilkeana. Interfaces do olhar. 1ª ed. Lisboa: Roma Editora, 2004.
HATHERLY, Ana. Interfaces do olhar. 1ª ed. Lisboa: Roma Editora, 2004.
HATHERLY, Ana. A experiência do prodígio – bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII. 1ª ed.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983.
HATHERLY, Ana. A nova presença do passado no presente – uma releitura crítica da tradição. A casa das musas. 1ª ed. Lisboa: Editorial
Estampa, 1995, p. 175-185.
HATHERLY, Ana. Programa de estruturas poéticas. HATHERLY, Ana. MELO E CASTRO, E. M. Po-Ex: textos teóricos e documentos
da poesia experimental portuguesa. 1ª ed. Lisboa: Moraes Editores, 1981, p.76.
HATHERLY, Ana. Rilkeana. 1ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.
HATHERLY, Ana. MELO E CASTRO, E. M. Po-Ex: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. 1ª ed. Lisboa:
Moraes Editores, 1981, p.76.
QUINTELA, Paulo. As elegias de Duino e sonetos a Orfeu. Obras completas de Paulo Quintela. 1ª ed. Lisboa: Fundação Calouste
Goubenkian, 1998.
RÓNAI, Paulo. A tradução vivida. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria literária. 12ª ed. Belo Horizonte: Editora Italiana, 2002.
Recebido em 20 de Fevereiro de 2014.
Aprovado para publicação em 28 de Abril de 2014.
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Poética do Fragmento:
Construções de sentido, modos de ver e metáforas
do visível na videoarte
Poetics of the Fragment: constructions of the meaning, ways of seeing and metaphors from the
visible in video art
Regilene Sarzi Ribeiro
Professora da Universidade Paulista, Unip. Bauru, SP. Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica, Puc-SP, de São Paulo, SP. Linha de Pesquisa: Análise das Mídias e História, Teoria e Crítica das Artes e Artes
do Vídeo, Bauru, SP, Brasil.
Resumo
O vídeo se constitui plasticamente dos mesmos elementos cinematográficos, cortes e enquadramentos, entre outros. Entretanto, o nível de
alteração e transformação da imagem e do som eletrônicos é infinitamente maior e isso gera uma multiplicidade de imagens e sons, que
caracterizam a linguagem videografica. A poética das artes do vídeo apresenta-nos o mundo como nós o sentimos: fragmentado. A partir
deste pressuposto buscou-se delinear como as videoartes operam a construção de sentido por meio das metáforas do visível. Para tanto,
empreendeu-se uma análise comparativa dos traços semânticos do fragmento que tornam visíveis as experiências sensíveis do mundo em
duas videoartes brasileiras, tendo como metodologia a abordagem semiótica.
Palavras-chave: Linguagem Audiovisual; Videoarte; Poética do Fragmento; Marca Registrada; Narciso.
Abstract
The video is plastically cinematic elements thereof, cuts and frameworks, among others. However, the level of change and transformation of
image and electronic sound is infinitely greater and this generates a multiplicity of images and sounds, featuring video language. The poetic
arts video shows us the world as we feel: fragmented. From this assumption, we attempted to delineate how videoartes operate the construction of meaning through the metaphors of the visible. To do so, undertook a comparative analysis of semantic features that make visible the
fragment sensitive experiences of the world in two Brazilian videoartes, having as the semiotic methodology approach.
Keywords: Audiovisual language; Video art; Poetic of the fragment; Trade Mark; Narcisus.
A
videoarte representa o mundo como o homem vê e sente, por múltiplas faces e fragmentos, embora o homem deseje se apossar
do mundo como um todo. A experiência espaço-temporal humana da realidade é fragmentária. A linguagem videográfica
essencialmente temporal registra as memórias sonoro-visuais do homem e é mediadora de novas experiências estéticas. O que
se vê e se sente do mundo é experienciado de forma fragmentar. Como mediadora dessa experiência da realidade, a poética das artes
do vídeo, ou como se optou nomear – poética do fragmento, apresenta-nos o mundo por fragmentos. Este é um dos pressupostos que
se buscou delinear neste ensaio.
Cabe ressaltar, que o material que ora se apresenta é resultado de parte dos estudos realizados para uma tese de Doutorado, defendida
em 2012 junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que ana-
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lisou os regimes de sentido, visibilidade e interação do corpo fragmentado em quatro videoartes brasileiras, tendo como meta verificar
a atuação da plástica audiovisual na significação do sujeito.
Impressões e construções de sentido na videoarte.
O vídeo se constitui plasticamente dos mesmos elementos cinematográficos, cortes e enquadramentos, entre outros, entretanto, o nível
de alteração e transformação da imagem eletrônica é infinitamente maior e isso gera uma multiplicidade de possibilidades de imagens e
sons. No campo multiimagético do vídeo, a mixagem de imagens, a montagem dos planos, a construção do espaço fora da tela e os usos
dos closes, são integrados caracterizando a lógica do sistema videográfico.
O modelo abstrato (e matemático) desta lógica visual do vídeo poderia ser encontrado na lógica de visualização dos fractais: mergulhamos
aí até o infinito, como numa zoom - in (ou out) interminável (aliás, o zoom digital e por compressão realiza efetivamente isto). Estamos em
um universo que absorve e regurgita tudo, estamos em um mundo sem limite, e, portanto sem espaço off, já que ele contem em si mesmo
(em sua matéria de imagem, em seu próprio corpo interior) a totalidade do universo. (DUBOIS, 2004, p.94).
Neste contexto, o vídeo será responsável por instaurar novas modalidades de funcionamento e uso dos sistemas de produção e veiculação de imagens, e por isso se pode afirmar que se está diante de uma nova linguagem de uma nova estética, a estética videográfica. Ao
mesmo tempo, uma estética multiforme, multíplice, mixada, totalizante e globalizada composta de fragmentos, partes, detalhes, recortes, incrustações, espessuras, sobreposições, justaposições, transparências, imagens mosaicadas, caleidoscópicas, imagem eletrônica.
Cabe notar a relação entre a técnica de colagem concebida na arte moderna e inserida no cinema e no vídeo por volta dos anos de 1970,
sobretudo como recurso plástico e estratégias discursivas de filmes políticos, como A chinesa (1967) e Le gai savoir (1968) do cineasta
Jean-Luc Godard. De outra sorte, Godard é apontado, ainda, como o cineasta pioneiro na transposição dos recursos videográficos para
o cinema, como o recurso plástico da colagem.
[...] a prática da colagem como processo de análise, de decomposição e de recomposição torna-se maciça e sistemática. Ela conduzirá ao
trabalho de decomposição-recomposição eletrônica pelas trucagens de vídeo Ici et ailleurs (Golda Meier, Moshe Dayan, Adolf Hitler, Henry
Kissinger, imagens pornôs e grafites eletrônicos em uma grande mixagem de imagens), Número deux ( as telas de vídeo na imagem do filme,
o trabalho das janelas e das incrustações, como a do rosto da pequena Vanessa que se incrusta na imagem do estrupo-sadomia de seus pais
e Comment ça va (as sobreimpressões prolongadas das duas fotos, a da revolução dos Cravos, em Portugal, e da revolta operária em uma
fábrica francesa no início dos anos 1970). (DUBOIS, 2004, p.256).
Entusiasta da imagem eletrônica, Jean-Luc Godard é reconhecidamente um dos primeiros a produzir filmes levando o vídeo para o
cinema, movimento inverso ao da maioria das produções cinematográficas da sua época, que lhe rendeu filmes com alto grau de experimentalismo e inovações estéticas. De igual forma, são afeiçoados pelo cinema experimental por meio de um diálogo intenso com as novas propostas estéticas do vídeo, os cineastas Nicholas Ray (1911-1979), Jacques Tati (1907-1982), Wim Wenders (1945), Michelangelo
Antonioni (1912-2007) e Francis Ford Coppola (1939). Na esteira da transição entre o cinema e o vídeo, está o nascimento da videoarte
que, nos anos de 1970, contou com a participação singular de Nan June Paik (1932-2006) e Wolf Volstell (1932-1998).
No vídeo Global Groove (1973), do artista coreano, naturalizado norte-americano, Nan June Paik relaciona aspectos culturais do Oriente com o Ocidente por meio de incrustações, sobreimpressões e montagem de planos num conjunto de imagens que resultam da composição de diferentes recortes finalizados como algo único disposto numa mesma cena. Isso jamais fora feito e, no cinema, inevitavelmente teria que ter sido mostrado por uma sequência clássica da montagem alternada.
Na esteira da construção de simulacros na lógica de composições audiovisuais que exploram a simultaneidade de imagens, encadeamentos e mixagens, brotam infinitas possibilidades compositivas, em que cortes e fragmentos são as chaves da construção do espaço
topológico videográfico.
A título de exemplo, na história das representações do corpo as imagens sempre foram reguladas pela morfologia, pela anatomia e pelas
dissecações no campo da medicina que ditavam a exata medida da figurativização de um corpo para dar visibilidade às práticas do mesmo. Até o final do século XIX, os corpos eram modelados através de desenhos, gravuras, pinturas e esculturas que resultavam da observação e interpretação de corpos despidos e vistos em sua verdade anatômica. Somente depois desta observação modelar é que os corpos
eram cobertos com vestimentas a fim de contextualizar uma época ou cultura, configurando comportamentos e regras de civilidade.
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Portanto, o que se conhecia do corpo era resultado do que estas linguagens gráficas ou pictóricas permitiam revelar. Com a fotografia,
a partir de 1840, um conjunto de mudanças técnicas interfere de modo determinante na visualidade dos corpos e na construção de
sentido. Isto porque o modelo pode ser apreendido imediatamente em um curto espaço de tempo, tornando as poses mais naturais e
mais elaboradas.
Do ponto de vista da figuratividade do fragmento, o fato da fotografia permitir o isolamento de detalhes e partes do corpo, através de
enquadramentos e recortes em detrimento à observação do corpo inteiro, causou a decomposição do movimento e a apreensão do que
antes era sutil e fugidio. Aqui, já se nota a relação entre a visibilidade do corpo fragmentado e a arte temporal. Da mesma forma, serão
responsáveis pela representação do corpo fragmentado a cronofotografia e o cinema.
Uma nova lógica da figurativização fragmenta a figura que vai quase de imediato ser recomposta em um contínuo de formas e movimento.
E isso põe também em questão a identidade das coisas e, mais profundamente, do próprio sujeito: o caráter substancial dos corpos se refletia
na estabilidade da figurativização. De agora em diante, não há mais substância, mas fragmentos e sequências. (MICHAUD, 2008, p.542).
As figurativizações do corpo na contemporaneidade serão modeladas com a colaboração de processos e procedimentos técnicos da linguagem fotográfica e cinematográfica para construção da expressão plástica dos textos visuais e audiovisuais: como a pose, a encenação,
o plano aproximado, a montagem, a maquiagem e os artifícios visuais, sonoros ou pelo contrário, a filmagem do corpo em seu estado
natural e espontâneo.
Esse processo de decomposição e recomposição do corpo pode ser visto na obra de diferentes artistas desde Edgar Degas (1834-1917)
e Puvis de Chavannes (1824-1898) até a pesquisa científica e documentária de Eadweard Muybridge e Albert Londe. Por volta dos anos
de 1910, as primeiras experiências de decomposição mecânica dos movimentos do corpo surgem no cinema e são largamente explorados por Lloyd, Keaton e Chaplin, e por filmes como Ballet mécanique (1924) de Fernand Leger, Dudley Murphy e Man Ray e Entracte
(1924) de René Clair, Francis Picabia e Marcel Duchamp.
Os recursos citados podem ser encontrados nas obras de Man Ray, Luis Buñuel, Florence Henri, Ingmar Bergman, Andy Warhol, John
Cassavetes, John Coplans, Robert Mapplethorpe, Nam Goldin, entre outros.
A obra cinematográfica de Serguei Eisenstein (1898-1948) merece destaque como uma das formas vitais de interação entre arte, ciência
e tecnologia vividas pela vanguarda soviética entre os anos de 1915 e 1932, referência da arte temporal cinematográfica. O célebre filme
O Encouraçado Potemkin (1925) é um exemplo de sua dedicação e habilidade para unir ciência à visão de arte por meio de enquadramentos dramáticos e detalhes expressivos. Neste contexto, cabe destacar a relação entre as técnicas de montagem de Eisenstein e a
representação fragmentada da realidade proposta pelo Cubismo.
As imagens dinâmicas de Eisenstein, obtidas por ângulos variados da máquina fotográfica e sofisticada edição de montagem, devem muito
às formas fragmentadas do cubismo, nas quais várias perspectivas da realidade (vistas simultaneamente como se de cima e da lateral em
camadas repetitivas) permitiam a compreensão múltipla da realidade. (RUSH, 2006, p.13).
A arte do século XX será marcada por uma de suas características mais fortes: o surgimento da Arte Conceitual. Na esteira do conceitual, o questionamento da pintura como lugar privilegiado de representação (RUSH, 2006), sobretudo, no que diz respeito à materialidade
da obra. Nesse período de experimentação, a criação artística significou a exploração de novos materiais e fragmentos de objetos retirados da observação do cotidiano para serem introduzidos no espaço sagrado da tela e do papel, até o uso de novos meios tecnológicos
para expressar significado e novas ideias de tempo e espaço. Fotografia, cinema e vídeo serão os meios encontrados pela arte do século
XX para efetivar sua posição contrária ao espaço pictórico como espaço de sagrado da representação e da expressão artística.
Na esteira destas transformações materiais, está o conceito de sujeito na contemporaneidade inserido em toda e qualquer obra que
pudesse refletir a preocupação central do artista: o seu ponto de vista e a sua declaração pessoal sobre a arte, mesmo que para isso ele
precisasse buscar novos meios capazes de expressar sua visão de mundo e sua concepção de sujeito. As teorias que colocam o sujeito
como centro das reflexões culturais repercutem em diferentes áreas como a sociologia, a psicologia e a filosofia, e também na arte por
meio de posições, como as defendidas por Marcel Duchamp (1887- 1968), que conferem ao artista a figura nuclear das artes plásticas.
Uma vez liberto do espaço pictórico, o artista sabe que pode se expressar por meio de qualquer ideia e meios possíveis. Depositar no
artista o centro das atenções fez escancararem as relações entre arte e política, e a política do eu fez nascer uma enorme quantidade de
obras autorreferenciais e questionadoras do papel do artista e do lugar do sujeito na contemporaneidade.
Nos finais dos anos de 1960 e começo de 1970, muitos artistas fizeram vídeos tendo como objetivo a interação entre o corpo do artista
e a câmera de vídeo/meio, tornando esse diálogo uma forma de expressão visual com grande carga ideológica. Na videoarte Mão apa-
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nhando chumbo (1968) de Richard Serra, as mãos do artista tinham uma atuação especial quase pictórica, ao mesmo tempo em que
tratava de assuntos políticos.
Bocados de chumbo caem com pequenos intervalos e são visíveis como um movimento desfocado em cinzento. A mão tem apenas tempo
para fechar e voltar a abrir-se. Se Serra consegue apanhar o chumbo que cai, deixa-o logo cair para ter a mão livre para apanhar o próximo
bocado. A tensão constante vai cansando a mão o que lhe causa cãibras e o tempo de reação torna-se mais lento até que para completamente. O efeito é opressivo. (FRICKE, 2010, p.606).
Vale ressaltar que corpo e máquina são explorados no limite da experimentação plástica de sua materialidade em produções audiovisuais que buscam questionar modelos sociais e culturais impostos aos corpos, tendo como estratégia discursiva um forte teor político
e crítico. Daí as relações entre corpo, mídia e política serem a tônica de muitas produções da videoarte. Como o aspecto político dos
comportamentos impostos socialmente aos corpos femininos questionados por artistas como Hannah Wilke (1940-1993) e Marina
Abramovic (1946).
Na obra Gestures (1974), uma videoperformance, Hannah Wilke se posiciona de frente à câmera que enquadra seu rosto em close-up
e realiza gestos sexualmente sugestivos com os dedos e a língua. Aos poucos, esses gestos se tornam grotescos e violentos distorcendo
as imagens do clássico rosto feminino, idealizado, modelo de beleza e padrões estéticos alterados pela ação da artista sobre seu próprio
corpo.
De igual modo, a videoarte The Onion (1995) de Marina Abramovic, que figurativiza o tema feminino da atividade doméstica, provedora do alimento com conotações sexuais. No começo, parece fácil, mas a agonia de comer a cebola vai ficando insustentável, tanto para a
artista quanto para quem assiste ao vídeo. O close-up do rosto da artista, segurando a cebola com uma das mãos, ressalta seu olhar para
cima e para longe do quadro do vídeo. Como numa súplica, Marina Abramovic come a cebola e reclama de sua condição. Durante a
ação de morder a cebola ela profere frases que relatam a dificuldade da espera, das crises de dor de cabeça diárias, da solidão do quarto
do hotel, das chamadas de telefone de longa distância, dos maus filmes, de ser vitima do amor de homens errados.
O desconforto de morder a cebola é contagioso, os olhos se enchem de lágrimas e a pele ao redor da boca começa a ficar avermelhada
e queimada pela acidez da cebola. A tensão é reforçada entre o som e a imagem das cenas em looping. Somados à ação de consumir o
legume, os sons emitidos pela artista figurativizam o ato sexual por meio de choramingo, gemidos e suspiros. Assim como na videoperformance de Hannah Wilke, fica claro o recurso discursivo usado pelos enunciadores para metáfora da sexualidade disposto no ato
irresistível de comer a cebola de Marina Abramovic, que como as relações sexuais e interpessoais são ácidas e intensas, mas contra as
quais não se pode lutar ou reagir.
Na arte contemporânea, sobretudo, a partir dos anos 1980 em diante, surge o multiculturalismo e arte engajada que coloca
em discussão as formas de vida e os enquadramentos sociais, consolidando a ruptura modernista, abrindo a oportunidade
para que experiências culturais inéditas ganhem visibilidade e se tornem legitimas. Como resultado deste comportamento
singular, surge um conjunto de modalidades artísticas que desafiam as clássicas delimitações entre as linguagens. A perda
desses limites direciona as análises estéticas e a crítica de arte para os processos de criação e produção técnica das novas linguagens, como a performance e vídeo, sobretudo porque estes processos de produção são baseados em relações profícuas e
polêmicas que colocam em cheque comportamentos sociais, políticos, econômicos e culturais do viver coletivamente em sociedade, ao mesmo tempo em que centraliza suas ações no indivíduo, ou melhor, no corpo do indivíduo mediado pelo vídeo.
Além dessas questões técnicas de produção, aspectos conceituais como a relação de proximidade entre enunciador (artista) e enunciatário (público), foram sendo paulatinamente descobertas nas imagens videográficas, como a sensação de intimidade causada pelos
enquadramentos fechados e pelo tamanho diminuto da tela de exibição do vídeo. Tal intimidade é mostrada pela presença do corpo que
tem a câmera voltada para o registro de si mesmo em situações privadas e reservadas.
Colocar o próprio corpo como matéria artística da obra lhe confere um status de locus da obra, despertando interesse por sua personalidade, biografia e ato criador. Esta questão da identidade do enunciador e suas relações com a autorreferencialidade que transformam
a obra videográfica em autorretratos permeados pela “estética do narcisismo” a ponto de se comportar como “espelho do artista” é
discutida por teóricos como Rosalind Krauss (1978) e Kátia Canton (2004), respectivamente.
Para Kátia Canton (2004), crítica de arte brasileira, o autorretrato desenvolve-se com a arte pelas diferentes épocas. O “autorretrato”
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na contemporaneidade está carregado de significados para além da ordem temática, revelando uma presença cotidiana encontrada em
toda parte tanto na autorreferencialidade do sujeito como no constante diálogo com o mundo, com as tecnologias e com o outro.
Autorretrato é uma forma de registro em que o modelo é o próprio artista. O retrato é quem se retrata. Na verdade, o autorretrato sempre acompanhou o ser humano no desejo de deixar uma marca de sua própria imagem, mesmo depois da passagem de sua vida. Essa
autorrepresentação foi tomando formas diferentes no decorrer do tempo [...] (CANTON, 2004, p.5).
A crítica de arte norte-americana Rosalind Krauss fará uma análise mais acentuada do comportamento psicológico e cultural da autorreferencialidade nas obras de vídeo cujos protagonistas são os próprios artistas. Krauss (1978) levanta algumas questões pertinentes
à presença do artista e sua relação com os dispositivos eletrônicos, e discute por que o vídeo pode ser considerado um “médio” potencialmente mais mediador entre o sujeito e o mundo do que as demais linguagens artísticas. No texto Vídeo: the aesthetics of narcissism,
publicado pela primeira vez em 1978, Krauss ressalta o espelhamento causado pela câmera de vídeo e pelo nível de mediação gerado
pelo corpo que se posiciona entre os dispositivos tecnológicos: câmera – corpo do artista – monitor.
Agora, essas são as duas características do uso diário do “médio” que são sugestivos para uma discussão de vídeo: a recepção simultânea e
a projeção de uma imagem, e a psique humana usada como um canal. Porque a maioria dos trabalhos produzidos ao longo de um período
muito curto de existência da videoarte usou o corpo humano como seu instrumento central. No caso de trabalhos em fita isso tem sido na
maioria das vezes o corpo do artista-praticante. No caso de instalações de vídeo, tem sido geralmente o corpo do espectador que responde. E
não importa qual corpo foi selecionado para a ocasião, há outra condição que está sempre presente. Ao contrário das outras artes visuais, o
vídeo é capaz de gravar e transmitir ao mesmo tempo, produzindo um feedback instantâneo. O corpo é, portanto, como se fosse centralizado
entre duas máquinas que são a abertura e o fechamento de um parêntese. A primeira dessas aberturas é a câmera, a segunda é o monitor,
que re-projeta a imagem do intérprete com o imediatismo de um espelho. (Tradução nossa). (KRAUSS, 1978, p.45).
Essas exposições da intimidade do corpo, de si mesmo e do outro, podem ser interpretadas como investigações sobre o lugar do corpo
na arte que resultam em produções artísticas que migram paulatinamente da pintura para o vídeo na contemporaneidade. Esta nova
realidade pode ser encontrada nas obras videográficas de Vito Acconci, Dan Graham, Bruce Nauman, Joan Jonas, John Baldessari, Nan
June Paik e Ana Mendieta (1948-1986), entre outros.
No vídeo Left Side, Right Sid (1972) a artista Joan Jonas, de frente a um espelho, movimenta a cabeça ora para a esquerda, ora para a
direita e, durante esta movimentação, repete as frases: “este é o meu lado direito, este é o meu lado esquerdo”, sucessivamente até o final
do vídeo. Jonas não se limita à filmagem de seu rosto diante do espelho. Mas usa efeitos ópticos e truques da câmera para confundir o
observador. Ao final do filme não se sabe de fato qual é o lado direito e o lado esquerdo da mulher em cena, pois não é mais possível
distinguir o reflexo do rosto filmado invertido. O jogo de cena posto pelo movimento do rosto da artista versus os enquadramentos da
câmera cria um mosaico de formas e rostos fragmentados e expostos na intimidade da face feminina.
A poética do fragmento. Metáforas do ver e sentir o mundo.
Na semiótica discursiva, entende-se por procedimento uma sequência de operações ordenadas que tenha por meta esgotar a descrição de um objeto semiótico. Nesta situação, procedimentos são instrumentos de análise que visam descrever
um objeto em sua exaustão até o nível de pertinência escolhido. Mas, como os próprios teóricos afirmam esta definição é
muito generalista, por isso o termo procedimento é aplicado a operações localizadas ou limitadas que observam um segmento ou microuniverso da análise. Daí os termos procedimentos analíticos e procedimentos sintéticos; procedimentos
de descrição, de descoberta ou de avaliação, e procedimentos de manipulação, de contágio e de enunciação serem usados
para se referir à metodologia de abordagem do objeto artístico e comunicacional dentro da análise das mídias.
Contudo, neste ensaio a definição do termo procedimento é de outra ordem: condizente com operações estilísticas que caracterizam
estilos de uso da linguagem. Esta definição, por sua vez, foi encontrada na acepção de procedimento estilístico que confere modos e
maneiras de operar a linguagem e se apresenta como resultado de usos e arranjos dos recursos metalinguísticos.
Termo da estilística que designa a ‘maneira de operar’ do enunciador no momento da produção do discurso, o procedimento estilístico é reconhecível – ao mesmo intuitivamente – num determinado nível de superfície do texto. Essa noção retoma, por sua conta, as antigas figuras
de retórica, ao mesmo tempo em que as liga à instância da enunciação. (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.386).
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Para o nível de pertinência que se pretendeu alcançar nas análises empreendidas, o procedimento estilístico se mostrou capaz de revelar as relações entre os procedimentos operados pelo enunciador, os procedimentos operadores da linguagem audiovisual passíveis
de serem descritos nas enunciações videográficas e os procedimentos linguisticos determinados pela figura de retórica: a metonímia.
Cabe ressaltar, que a definição do termo procedimento metonímico que aqui se realça diz respeito ao uso da figura de retórica – metonímia – nas videoartes analisadas. Por isso, optou-se pela descrição de mecanismos e sequências de operações que aplicam a metonímia/
sinédoque como efeito de sentido. Para tanto, observou-se dois procedimentos retóricos gerais: a metáfora e a metonímia, mas a análise
buscou tecer relações quanto ao uso da sinédoque, para revelar os procedimentos retóricos – metonímicos – explorados pelos enunciadores (artistas) visando à descrição de procedimentos estilísticos nos textos audiovisuais.
A metáfora consiste na substituição de uma palavra por outra quando entre as palavras existe uma relação de similaridade e a metonímia, a substituição se dá quando a relação entre as palavras é de contiguidade. Acredita-se que o enunciador (artista), ao optar pelo
enquadramento de partes do corpo para dar-lhe o sentido de inteiro, usa o procedimento retórico da metonímia, já que por contiguidade a parte e o todo possuem relação e a parte pode ser usada para dar sentido de conjunto. Fiorin afirma que “[...] ao usar esses
procedimentos de maneira calculada, as regras combinatórias entre as figuras são rompidas, criando uma impertinência semântica que
produz sentidos” (FIORIN, 2009. p.118).
A retórica, como se sabe, é parte integrante de todo e qualquer objeto comunicacional composto de discursos seja científico, político,
publicitário e ou artístico. Na retórica clássica e moderna as figuras de linguagem são definidas como procedimentos retóricos explorados para dar efeito de sentido, expressivo e ou poético ao discurso. Tropos é o nome dado ao grupo de recursos retóricos semânticos usados como procedimentos retóricos. Os tropos podem ser descritos pelas figuras da metáfora, metonímia, sinédoque (tipo
de metáfora), ênfase, alegoria, ironia e o oximoro, que se caracterizam ora por impertinências lógicas ora contextuais decorrentes da
análise do texto. Um tropo (do grego, tropos, e do verbo trépo – “girar”) é uma figura de linguagem que muda/altera um significado.
Um tropo é denominado perífrase quando ocorre por meio de associações de ideias comparativas mantendo o termo “como”.
Um tropo será denominado metáfora quando o termo “como” for suprimido e o tropo se caracterizar pela “transferência de uma palavra
para um âmbito semântico que não é objeto que ela se designa, e que se fundamenta numa relação de semelhança subentendida entre o
sentido próprio e ou figurada” (FERREIRA, 2010, s/p.).
A retórica tradicional não propõe uma conceituação exata para a metonímia, e, talvez, por isso, as referências à “metonímia” normalmente encontradas são um reflexo desta atitude geral. Em sentido lato, é a figura de linguagem por meio da qual se coloca uma palavra em
lugar de outra cujo significado dá a entender. Ou a figura de estilo que consiste na substituição de um nome por outro em virtude de uma
relação semântica extrínseca existente entre ambos. Ou, ainda, uma translação de sentido pela proximidade de ideias. Consiste, assim,
na ampliação do âmbito de significação de uma palavra ou expressão, partindo de uma relação objetiva entre a significação própria e a
figurada. Nesta definição ampla, a metonímia seria um nome comum a todos os tropos, e abrangeria, principalmente, a sinédoque, que a
retórica clássica considera ao lado da própria metonímia stricto sensu, estabelecendo apenas distinções sutis. (CEIA, 2010, s/p.)
Desta breve contextualização da retórica, nos interessa o estudo do procedimento da sinédoque que se constitui um dos efeitos de
sentido gerados pela plástica das videoartes analisadas. Consideramos que a metonímia pode ser usada como recurso dramático
como na tragédia grega em que as figuras metonímicas são exploradas em seu caráter estético.
Há casos em que a metonímia também funciona por apresentação de imagens: designar a “realeza” pelo “cetro”, pela “coroa”, pelo “trono”,
introduz, por exemplo, essas imagens. O mesmo pode ocorrer com a metonímia da parte do corpo que designa a função que ela exerce: os
“olhos”, pela vista; a “boca”, pela palavra, etc. Aqui encontramos um dos procedimentos privilegiados da linguagem da tragédia clássica:
a imagem metonímica, em seu caráter estético, se opõe à imagem associada da metáfora, pelo fato de que não está acompanhada por um
processo de abstração e por um menor grau de “imprevisibilidade”, como afirma Michel Rifaterre. A frequência das imagens metonímicas
na tragédia clássica se explicaria por uma harmonia com a estética do gênero e pelas necessidades da linguagem dramática, que admite
dificilmente as figuras demasiado “brilhantes” ou demasiado inesperadas: em Fedra, de Racine, a palavra “sangue” designa em sentido
próprio o líquido vital que corre nas veias da protagonista, assim como também é o líquido vertido na terra pelo crime, e, por metonímia,
o laço orgânico que une os membros de uma mesma família. Desta maneira, é a palavra “sangue” que resume e reúne os temas essenciais
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da tragédia em questão. (CEIA, 2010, s/p.)
Se a metáfora se baseia numa relação de similaridade de sentidos, a metonímia se assenta numa relação de contiguidade de sentidos. Segundo Jakobson (1999) “[...] manipulando esses dois tipos de conexão (similaridade e contiguidade) em seus dois aspectos (posicional
e semântico) – por seleção, combinação e hierarquização – um indivíduo revela seu estilo pessoal, seus gostos e preferências verbais”
(JAKOBSON, 1999, p.56).
Entre os chamados tropos, a metáfora é a figura de linguagem que modifica o sentido de uma palavra pela substituição operada sobre
um contexto dado de um lexema por similaridade, enquanto que a metonímia é uma figura que fará esta substituição por contiguidade:
um lexema será substituído por outra unidade que a ela está ligada pela relação de continente e conteúdo, de causa e efeito, de parte e
todo. Por isso existem inúmeras variantes de metonímias conforme a variação da relação entre as unidades.
Interpretada no quadro da semântica discursiva, a metonímia é o resultado de um procedimento de substituição pelo qual substitui um
dado sema por outro sema hipotáxico (ou hiperotáxico), pertencentes ambos ao mesmo semema. Desse ponto de vista, pode-se considerar
a metonímia como uma metáfora “desviante”: C. Lévi-Strauss não pôde deixar de assinalar que, no pensamento mítico, “toda metáfora
acaba em metonímia” e que toda metonímia é de natureza metafórica. Sua observação pode ser interpretada facilmente se se considera o
fato de que, nesses dias figuras de retórica, se produz, com efeito, um fenômeno de substituição sobre um fundo de equivalência semântica.
(GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.311-312).
Do grego metonymía (mudança de nome), esta figura de linguagem é designada pelo fenômeno linguístico que substitui/troca uma
unidade frasal por outra unidade que a ela está ligada. Esta troca é caracterizada pela ligação que possuem entre si denominada relação
de contiguidade (proximidade, ligação, continuidade) que inclui o caso mais particular da sinédoque.
Metonímia. [Do gr. metonymía, pelo lat. metonymia.] Substantivo feminino. 1. E. Ling. Tropo que consiste em designar um objeto por palavra designativa doutro objeto que tem com o primeiro uma relação de causa e efeito (trabalho, por obra), de continente e conteúdo (copo, por
bebida), lugar e produto (porto, por vinho do Porto), matéria e objeto (bronze, por estatueta de bronze), abstrato e concreto (bandeira, por
pátria), autor e obra (um Camões, por um livro de Camões), a parte pelo todo (asa, por avião), etc. [Sin.: transnominação. Cf. sinédoque.]
(FERREIRA, 2010. Dicionário Aurélio. Edição Eletrônica).
Na sinédoque (do grego synedoché = compreensão) a substituição ocorre por unidades (semas) que possuem ligações entre si: da parte
pelo todo ou do todo pela parte. Como no caso das videoartes estudadas em que o corpo inteiro é figurativizado por equivalentes semânticas figurativizadas pelo corpo fragmentado (uma parte por um todo) ou vice-versa.
Sinédoque. [Do gr. synekdoché, ‘comparação de várias coisas simultaneamente’, pelo lat. synecdoche.] Substantivo feminino. 1. E. Ling.
Tropo que se funda na relação de compreensão e consiste no uso do todo pela parte, do plural pelo singular, do gênero pela espécie, etc.,
(FERREIRA, 2010. Dicionário Aurélio. Edição Eletrônica).
Dessa maneira, entende-se que uma parte das mãos e dos pés como na videoarte Marca Registrada (1975) de Letícia Parente; ou dos
dedos das mãos, olhos, ombros ou parte do tórax em Narciso (2001) de Danillo Barata são suficientes para figurativizar o corpo na
parte pelo todo e constituir um regime de visibilidade nas videoartes. Este regime constitui o pressuposto da poética do fragmento que
se propõe investigar.
Pode-se afirmar que a construção de sentido nos discursos metonímicos se funda nas relações de causalidade, procedência e sucessão
entre as unidades que se interligam. Como se nota nas videoartes estudadas, onde a metonímia se expressa por meio das relações de
causalidade do corpo quando este é enquadrado bem de perto pela câmera que o apresenta em partes, ou mais ao longe, quando a câmera se afasta para apresentar o corpo no conjunto destas partes. Esta relação entre o todo e as partes se dá por causalidade: a causa que
gera a metonímia é o uso do procedimento metonímico de recorte, detalhamento que tem como consequência a substituição do todo
pela parte (fragmento) quando explora o recurso de recorte da linguagem audiovisual, que tem por procedimento operatório a figura
de linguagem da metonímia. Os procedimentos metonímicos são procedentes do ponto de vista do enunciador, cujo discurso poético
sobre o corpo está em construção por meio dos procedimentos estilísticos e retóricos.
A sucessão (sequência) de sinédoques, ora da parte pelo todo, ora do todo pela parte se constrói coletivamente na medida em que enunciador e enunciatário compartilham do corpo fragmentado operando-o como um efeito de sentido nas videoartes. Nesta relação de
contiguidade estão implícitas outras relações entre as unidades que figurativizam o corpo fragmentado e o corpo inteiro, como inclusão,
implicação, interdependência e coexistência entre as partes (fragmentos) que compõem o corpo inteiro e vice-versa.
Das videoartes analisadas se depreendem as relações de vizinhança e coexistência, repetição e reiteração de traços entre o corpo inteiro
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e suas partes estabelecidas entre as figurativizações do corpo fragmentado cuja ordem de ligação e continuidade interessa estudar como
isotopias semânticas.
Do ponto de vista da semiótica discursiva, esses procedimentos de substituição semântica nos interessam, sobretudo, enquanto conectores
de isotopias. Se a metáfora funciona normalmente no quadro da frase e pode ser apreendida e descrita nesse contexto, ela não se torna um
fato discursivo a não ser quando é prolongada ou “esticada”, em outras palavras, quando ela constitui uma isotopia figurativa transfrasal.
Nessas condições, os procedimentos de substituição paradigmática que acabamos de passar em revista se apresentam como interligadores
de isotopias e, depois, em intervalos regulares, como mantenedores ou conectores de isotopias que as ligam umas as outras; as isotopias
figurativas remetem quer a outras isotopias figurativas, que a isotopias temáticas mais abstratas. (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.307).
Da relação de coexistência e contiguidade se organizam os procedimentos estilísticos que conferem à linguagem audiovisual muito mais
do que uma simples acepção linguística lhe atribui, como os comentários sobre como os procedimentos retóricos que caracterizam
estilisticamente a pintura cubista e o cinema moderno.
[...] pode-se notar a orientação manifestamente metonímica do Cubismo, que transforma o objeto numa série de sinédoques [...] a arte do
cinema, com sua capacidade altamente desenvolvida de variar o ângulo, a perspectiva e o foco das tomadas, rompeu com a tradição do teatro
e empregou numa gama sem precedentes de grandes planos sinedóquicos e de montagens metonímicos em geral. (JAKOBSON, 1999, p.58).
Os efeitos de sentido gerados por estes procedimentos metonímicos são compartilhados pelos sujeitos (artista e público) actantes como
efeitos estésicos, uma das condições necessárias para a elaboração de um discurso sensível do corpo. Na sequência da análise, buscou-se
depreender a natureza das conexões entre as unidades semânticas destacadas nas videoartes e como se comportam as isotopias. As definições de Barros (2007), Fiorin (2009) e Greimas e Courtés (2009) contribuíram para o entendimento do conceito de isotopia operado
na investigação dos traços isotópicos, que nos levassem a uma leitura coerente das videoartes.
A primeira definição de isotopia encontrada foi a do semioticista lituano Algirdas Julien Greimas (1917-1992) e por Joseph Courtés, em
Dicionário de Semiótica (2009) que permitiu um olhar mais apurado sobre as isotopias. O primeiro aspecto destacado é a investigação
no texto dos classemas (GREIMAS & COURTÉS, 2009, p.60), caracterizados como semas contextuais que uma vez repetidos no discurso lhe garantem a isotopia. As isotopias estão presentes no enunciado por meio de traços semânticos e segundo Greimas & Courtés
(2009) para se estabelecer uma isotopia é preciso pelo menos duas figuras sêmicas. Outro aspecto a tratar na isotopia são os traços que
se comportam como conectores de isotopias. Esses conectores isotópicos são termos que possuem dois ou mais significados e por isso
são também denominados termos polissêmicos.
A. J. Greimas tomou ao domínio da físico-química o termo isotopia e o transferiu para a análise semântica, conferindo-lhe uma significação específica, levando em consideração seu novo campo de aplicação. De caráter operatório, o conceito de isotopia designou, inicialmente,
a iteratividade, no decorrer de uma cadeia sintagmática, de classemas que garantem ao discurso-enunciado a homogeneidade. Segundo
essa acepção, é evidente que o sintagma que reúne duas figuras sêmicas pode ser considerado como o como o contexto mínimo que permite
estabelecer uma isopotia. (GREIMAS & COURTÉS, 2009, p.276).
Nesta acepção, é salutar complementar a definição do termo isotopia como propriedade dos classemas que conferem duração, duratividade, repetição de grandezas idênticas ou comparáveis dentro de um mesmo nível de análise, como a característica da duratividade
descontínua presente nos discursos. Na definição da linguista brasileira Diana Barros (2007) a isotopia é redigida como a “[...] reiteração
de quaisquer unidades semânticas (repetição de temas ou recorrência de figuras) no discurso, o que assegura sua linha sintagmática e
sua coerência semântica”, complementada pela distinção entre figurativa e temática.
Isotopia figurativa caracteriza-se pela redundância de traços figurativos, pela associação de figuras aparentadas e correlacionadas a um
tema, o que atribui ao discurso uma imagem organizada da realidade. Isotopia temática é a repetição de unidades abstratas em um mesmo
percurso temático. (BARROS, 2007, p.87).
O semioticista brasileiro José Luiz Fiorin (2009), por sua vez, ressalta que a isotopia é responsável pela coerência semântica de um texto
e sua análise permite a distinção de um texto bem estruturado do ponto de vista semântico de um amontoado de frases sem qualquer
relação.
O que dá coerência semântica a um texto e o que faz dele uma unidade é a reiteração, a redundância, a repetição, a recorrência de traços
semânticos ao longo do discurso. Esse fenômeno recebe o nome de isotopia. [...] Em análise do discurso, isotopia é a recorrência de um dado
traço semântico ao longo de um texto. Para o leitor, a isotopia oferece um plano de leitura, determina um modo de ler o texto. (FIORIN,
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2009, p.112-113).
A definição de Fiorin (2009) permitiu relacionar o leitor das videoartes às isotopias do fragmento com vistas a apresentar-lhe uma forma
de leitura a ser realizada por meio deste plano isotópico: o fragmentário. Os autores supracitados caracterizam as diferentes isotopias
como gramaticais e semânticas e actoriais; isotopias parciais e globais, figurativas e temáticas. Para esta análise optou-se pela descrição das
isotopias semânticas globais, figurativas e temáticas depreendidas em cada uma das videoartes em estudo. A análise das isotopias globais,
figurativas e temáticas resultou na descrição de traços semânticos como as isotopias figurativas de marcar e exibir o corpo e a isotopia global
da metonímia presente no traço fragmento. A análise das isotopias demonstrou que as duas videoartes possuem pontos em comum como
o fato de dar visibilidade ao corpo fragmentado para construção de um todo de sentido. Mas, também, que elas se distinguem quanto ao
tratamento topológico audiovisual e à discursivização do sujeito. Para guiar o exercício comparativo proposto, partiu-se do quadro de
correspondências [figura 01] abaixo, onde se tem uma síntese das equivalências tendo em vista pontos de convergência e divergência entre
os vídeos analisados.
O vídeo Marca Registrada [figura 02] de Letícia Parente foi produzido em 1975 e tem a duração de 10 minutos e 30 segundos. Filmado
com uma câmera Portapak, em preto e branco, o vídeo é uma referência da primeira geração do audiovisual brasileiro. Em Marca Registrada (1975), o uso dos recursos técnicos do dispositivo videográfico definidos por planos, cenas, cortes, enquadramentos, zooms e
planos de detalhes resultam na visibilidade do corpo retalhado e fragmentado.
Isotopias - traços semânticos – Videoarte
Marca Registrada (1975), Letícia Parente.
Isotopias - traços semânticos –
Videoarte Narciso (2000), Danillo Barata.
Isotopias semânticas do Corpo Marcado.
Coletivo/político. Marcas/sem marcas
Isotopia (figurativa) da Marca
Presente no traço semântico – figurativização do ato de marcar-se que tematizam o
corpo marcado, bordado, costurado.
Isotopias semânticas do Corpo Ensimesmado
Exibir/velar. Público/privado.
Identidade/alteridade
Isotopia (figurativa) da Exibição
Presente no traço semântico – exterioridade. Figurativização de poses e posturas de frente para a
câmera que tematizam o corpo exibido.
Isotopia (figurativa) do Pertencimento
Presente no traço semântico – figurativização do ato de marcar-se que tematiza o registro de uma marca na sola dos pés.
Isotopia (figurativa) da Dissimulação
Presente no traço semântico – interioridade. Figurativização de poses e posturas de costas para a
câmera que tematizam o corpo dissimulado
Isotopia (temática) do Patriotismo
Presente no traço semântico – individualidade.
Identidade, nacionalidade, origem exposta pelo
ato de registrar uma marca na sola do pé.
Isotopia (temática) da Identidade
Presente no traço semântico – liberdade
Ações, verbalizações e sonoridade que
figurativizam o corpo liberto.
Isotopia (temática) do Político
Presente no traço semântico – coletividade.
Alteridade. Identidade velada, escondida debaixo
da sola do pé.
Isotopia (temática) da Alteridade
Presente no traço semântico – aprisionamento
Ações, verbalizações e sonoridade que
figurativizam o corpo aprisionado.
Isotopia Global da Metonímia
Presente no traço semântico – fragmento
Classema que garante ao discurso-enunciado a
homogeneidade, por meio de unidades isotópicas
que reitera o todo pelo marcar metafórico
da parte do corpo.
Isotopia Global da Metonímia
Presente no traço semântico – fragmento
Classema que garante ao discurso-enunciado a
homogeneidade, por meio de unidades isotópicas
que reitera o todo pelo velar metafórico da
parte do corpo
Conectores isotópicos – fragmento
Termos polissêmicos: as partes do corpo figurativizam o todo fragmentado (corpo público) ao
mesmo tempo em que tematizam o todo marcado (corpo privado).
Conectores isotópicos – fragmento
Termos polissêmicos: as partes do corpo figurativizam o todo fragmentado (corpo público) ao
mesmo tempo em que tematizam o todo exibido
(corpo privado).
Figura 01 – Quadro de Isotopias. Convergências e divergências dos traços
semânticos das duas videoartes analisadas.
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O corpo é enquadrado por um plano detalhe que mostra uma parte do corpo: o pé, determinado na enunciação, como um lugar
de registro da ação de bordar uma marca: uma marca registrada. Esta parte do corpo é apresentada em detalhe, pois é aí que toda a
narrativa será encenada. E será aí o espaço tópico da obra, dispensando a apresentação do restante do corpo, que se sabe existir, mas
que, se mostrado, interferiria no efeito de estranhamento e na ênfase dada à ação performática da artista.
Figura 02 – Still do vídeo Marca Registrada (1975) de Letícia Parente. 10’.
Portapack. (1/2 polegada, open reel Sony) P&B.
Na medida em que a ação registrada pelo vídeo não apresenta nenhum elemento fora dela mesma, mãos e pés são suficientes para
dizer o que se pretende: levar o enunciatário a um fazer fazer, depois a um fazer sentir que resulta num fazer ser, por meio das sensações angustiantes que ele experimenta. A ação é fechada e resultante do enquadramento em primeiro plano, cuja cena é uma escolha
do enunciador para gerar o sentido de aproximação para com o actante, necessário ao estranhamento do ato de bordar e marcar
o próprio corpo. A imagem se esgota em si mesma e se completa no gesto daquele que está realizando a ação fechada, intimista,
flagrada pelo close e por enquadramentos detalhados de partes do corpo, causados pelas lentes que se aproximam em zoom - in.
O vídeo Narciso [figura 03], de Danillo Barata, produzido no ano de 2000, em Salvador na Bahia, têm a duração de cinco minutos.
O vídeo colorido recebeu a edição de Marcelo Rodrigues e foi protagonizado pelo próprio Danillo Barata. Trata do homem contemporâneo e discute o comportamento narcisista em sociedade, por meio da figurativização de um sujeito que expõe seu corpo, seus
ossos, vísceras, voz, expressão, qualidades físicas e movimentos ágeis para dizer sua verdade e reafirmar sua identidade.
No vídeo Narciso (2000), Danillo Barata tematiza o mito de Narciso publicado no livro Metamorfoses de Ovídio, um dos textos mitológicos mais famosos publicados por volta do ano 08, considerado a obra magna do poeta. Observa-se, logo no começo, que os créditos
são colocados sobre os closes do rosto do artista, para que texto e imagem componham juntos os primeiros recortes do corpo do artista.
Estes closes, ora enquadrados à esquerda da tela, ora à direita, passam muito rapidamente da esquerda para a direita. Esses mesmos
closes do rosto, de meio corpo, ombros e pescoço, se movem rapidamente da esquerda para direita e vice-versa como retalhos do artista,
recortados pelo enquadramento da câmera, ora pela esquerda, ora pela direita.
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Figura 03 – Still do vídeo Narciso (1975) de Danillo Barata. 05’. Colorido
A imagem é colorizada por filtros transparentes e muito suaves que tingem a imagem e mudam de cor suavemente como se fossem véus
coloridos, que velam o corpo mostrando-o, mas não claramente. Estes véus, ou melhor, filtros coloridos se alteram numa sequência
constante que variam do rosa, lilás claro, azul, verde, amarelo e laranja ao cinza, preto e branco. O recurso técnico de edição de imagens
pós-filmagem permite explorar as sobreposições de imagens. Em Narciso essa edição é usada com maestria para gerar efeitos de figura
e fundo, transparências e justaposições de figuras, como a imagem de um crânio projetada sobre o rosto do artista enquadrado em diferentes posições por closes da câmera, e imagens pictóricas de texturas e cores variadas sobrepostas ao corpo. Estes recursos acentuam
o ensimesmar e o velar exibicionista e narcisista na videoarte em questão.
O procedimento técnico de enquadramento tem papel determinante na figuratividade do corpo no vídeo Narciso, como se observam
nos closes fechados que cortam e retalham o rosto e o corpo masculino que aparece no vídeo. Do rosto aos ombros e do tórax ao
rosto, as cenas se compõem num vai e vem da câmera, que realiza um trajeto de descrição do corpo em pedaços exposto por close-up,
enquadramentos fechados, que expõem o corpo por suas partes: olhos, nariz, boca, orelha, a face e o rosto, todo retalhado pelos closes
fechados.
Na comparação das videoartes observou-se que ambas têm a presença do corpo humano do artista-enunciador como sujeito actante do enunciado com a sua força motriz na realização do ritual que compõe parte da obra videografica, mas, se diferem quanto
ao resultado final do registro da ação do corpo.
Em suma, se no vídeo Marca Registrada (1975) o enunciado videográfico é um registro da ação artística do corpo com nenhuma
ou pouquíssima interferência de recursos pós-filmagens como edição e montagens, no vídeo Narciso (2000) ocorre o contrário:
somado à ação do corpo do artista têm-se o uso de recursos pós-filmagem como filtros de colorização e sobreposição, incrustação, colagens de imagens, entre outros. O uso ou não dos recursos plásticos e procedimentos técnicos que vão dos enquadramentos e organização dos planos da câmera à manipulação dos recursos do dispositivo da câmera videografica são explorados
de forma singular para a produção de efeitos de sentido que a imagem eletrônica e a linguagem audiovisual permitem realizar.
Na sequência, observou-se que se o vídeo Marca Registrada explorou a figurativização de apenas duas partes do corpo, o pé e a mão de
um corpo feminino, para dar visibilidade ao corpo discursivizado por valores como repressão política, patriotismo e pertencimento social
coletivo, em Narciso as partes do corpo figurativizadas variam, mas a ênfase é para a parte superior do corpo e o que se enquadra são os
membros superiores como o tórax, músculos dos braços, ombros, pescoço e rosto (olho, boca, nariz) masculinos que dão visibilidade ao
exibicionismo e narcisismo do corpo ensimesmado.
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Da complexidade destas relações depreenderam-se os conectores isotópicos presentes nos traços semânticos da parte – fragmento – operados na construção de sentido e confirmados por reiterações metafóricas do todo [figura 04].
Em Marca Registrada o enunciatário é levado a vivenciar seu corpo de dentro para fora, corpo extrovertido, e reitera o todo pelo marcar
(exterioridade/público) metafórico das partes do corpo. Ao passo que, em Narciso a reiteração do todo se dará pelo velar (interioridade/
privado) metafórico das partes do corpo, alteradas pelos filtros coloridos, que como véus alteram a identidade do corpo, tornando-o um
corpo ensimesmado. Tanto o contágio pelo corpo partido na mediação de entrar, quanto pelo corpo ensimesmado, que se mostra velado,
acontece porque o enunciatário compartilha da experiência da interioridade (dentro). Em Marca Registrada o todo é reiterado pelo marcar
Letícia Parente
Marca Registrada (1975)
Danillo Barata
Narciso (2000)
Social
Público
Identidade
Fora
Total
Videoperformance
Individual
Privado
Alteridade
Dentro
Parcial
Videoarte
Corpo Extrovertido
Reitera o todo pelo marcar
metafórico da parte do corpo
Corpo Ensimesmado
Reitera o todo pelo velar
metafórico da parte do corpo
Figura 04 – Quadro comparativo dos elementos semânticos tornados visíveis pelas metáforas
da poética do fragmento nas duas videoartes analisadas.
metafórico da parte do corpo e em Narciso, o todo é reiterado pelo velar metafórico da parte do corpo.
No vídeo Marca Registrada, o traço semântico da exterioridade (fora) leva a tematização do público e confere identidade ao sujeito (enunciador/enunciatário), na vida e na sociedade, da individualidade à coletividade, respectivamente. Ao passo que em Narciso é a interioridade
(dentro) que reitera o traço semântico do privado, levando o sujeito (enunciador/enunciatário) à sinestesia com o corpo do outro. Há de se
destacar que o coletivo em Marca Registrada será vivido e reiterado pela tematização do político e do patriotismo. Da mesma maneira, este
social é vivido pelo simulacro do corpo mediado pelo vídeo, que em Narciso será individual proporcionado pelo experimentar individual
e privado que favorece o contágio com a alteridade do corpo ensimesmado.
O vídeo Marca Registrada foi filmado em preto e branco, conforme os recursos das câmeras de vídeo da época, na década de 1970. Esse
fato confere à plástica sensível contraste e diferentes nuances de cinza, somados à luz natural do ambiente e das posições do pé e da mão
que marcam o corpo em cena e tornam o gesto de bordar expressivo e dramático. Da mesma maneira, ângulos e zooms enquadram o
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corpo bem de perto e ressaltam a horizontalidade das cenas em harmonia com a forma retangular do corpo – pé – disposta na horizontal
de frente para a câmera.
No vídeo Narciso, produzido com a tecnologia da imagem digital dos anos 2000, a cor é explorada de diferentes maneiras, seja pelo uso
de filtros cromáticos, iluminações artificiais ou recursos pictóricos. A variação cromática se dá pelo uso de filtros coloridos (laranja, azuis,
verdes, amarelos e outros) e ainda os em preto e branco, tonalizam e aquarelam a imagem como um todo e não apenas a pele do corpo em
cena, dando um aspecto de pictórico ainda discreto.
Nas duas videoartes analisadas observou-se o comportamento de elementos da plástica sensível como cor, forma e figura e fundo que
juntos, e conforme suas disposições na topologia videográfica, geram diferentes efeitos de sentido. Em Marca Registrada o fundo é pouco
explorado e a relação figura e fundo fica em segundo plano. Mas, em Narciso a composição das cenas, os cortes e enquadramentos dialogam com as relações de figura e fundo através de sobreposições, jogos de cor e formas, texturas e efeitos cinéticos entre imagens e sons.
No que diz respeito aos formantes sonoros, elemento constituinte da linguagem audiovisual, permitiu realçar a singularidade de cada
videoarte analisada. Pois, se tem desde o registro do som ambiente e do som natural de funcionamento da câmera como em Marca Registrada, até os complexos jogos de sobreposições de sons, vozes, ruídos e textos poéticos no vídeo Narciso. As composições sonoras em copresença com os formantes cromáticos (cor, luz) e eidéticos (formas) constituem o audiovisual e conferem-lhe o status de objeto sincrético,
cuja sinestesia e contágio serão operados pela plástica sincrética marcada pela presença de termos polissêmicos, como o fragmento que se
destaca nesta tese.
Ao longo da pesquisa buscou-se descrever alguns dos procedimentos e usos da linguagem audiovisual que mostram como o vídeo atua
como uma poética do fragmento por procedimentos metonímicos em que a parte é o todo de sentido. Isso pode ser afirmado na medida
em que se percebem equivalências semânticas entre os regimes de sentido e interação das videoartes como no corpo marcado que se processam pelo coletivo vivido socialmente na esfera do público, como no vídeo Marca Registrada. Igualmente, só que na posição invertida do
quadro de correspondências encontramos as equivalências semânticas regidas pelo sentido e a interação no corpo mediado que se verifica
pelo não individual, vivido socialmente no âmbito do privado como em Narciso.
Pelo resultado das análises empreendidas, considerou-se que as videoartes em estudo atingem suas proposições comunicacionais como
metáforas do visível e simulacros operadores da construção de sentido. Estes vídeos reiteram a função da linguagem e da comunicação
audiovisual no cotidiano da vida humana, atuando na integralização do sujeito e na modelização de padrões estéticos, regidos por comportamentos sociais e coletivos que embora visem um todo de sentido, são vivenciados em partes, como a percepção visual humana, múltipla
e fragmentada.
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