CAPACITAÇÃO: CATALISADOR DE ARRANJOS FEDERATIVOS PARA POLÍTICAS PÚBLICAS ROSANE SEGANTIN KEPPKE 2 Painel 09/028 Escolas de governo, estratégias de capacitação e gestão do conhecimento CAPACITAÇÃO: CATALISADOR DE ARRANJOS FEDERATIVOS PARA POLÍTICAS PÚBLICAS Rosane Segantin Keppke RESUMO Programas, incentivos legais e recursos tem sido vinculados às políticas de âmbito nacional, porém poucas tem efetiva capilaridade na implementação. Os municípios tem dificuldades de captação e operação das transferências voluntárias do governo federal, desperdiçando oportunidades. Mesmo caso do enquadramento à Política Nacional de Resíduos Sólidos, a despeito dos meios disponíveis, tais como os consórcios e os Programas de Aceleração do Crescimento. O paradoxo se explica em fatores políticos e administrativos que há entre os entes federados e dentro deles. Mas determinadas políticas públicas conseguem superar os obstáculos, caso do Sistema Único de Saúde, cujos fatores de êxito somam força de agenda, logística orçamentária e participativa, respaldada pela Constituição. Mas é a Política de Educação Permanente em Saúde que sustenta a cultura política e a coesão federativa do SUS. Estratégia análoga foi adotada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e, no passado, pelo Plano Nacional de Saneamento Básico. Este ensaio analisa o potencial e os limites da capacitação como catalisador dos arranjos federativos para a implementação de políticas públicas. 3 1 INTRODUÇÃO As últimas gestões tem sido prolíferas na edição de políticas nacionais, muitas delas financiadas por programas e transferências voluntárias do governo federal, com vistas a induzir os entes federativos a implementá-las. É instigante, portanto, que a de políticas com responsabilidade compartilhada, com determinação legal de prazos de cumprimento e com oferta relativamente abundante de incentivos financeiros não garantam a implementação “per se”. Um exemplo recente desta constatação é a Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei Federal 12.305 de 02 de agosto de 2010, que tem todos estes elementos à disposição, todavia prorrogou em mais quatro anos o prazo de destinação adequada. Segundo a Associação Brasileira de Empresas Públicas e Resíduos Especiais – ABRELPE, os “lixões” descumprem disposições que já eram previstas pela Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981, pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei de Crimes Ambientais de 1998, porém, os incentivos positivos e negativos ao longo de três décadas não foram suficientes para a questão lograr pleno êxito. É interessante observar como as justificativas vêm sofrendo mudanças. No passado eram meramente as restrições orçamentárias, hoje é comum justificarse pela falta de quadros capacitados a operar os sistemas logísticos e financeiros das políticas com responsabilidade compartilhada, dada sua grande complexidade. Ciente disso, o governo federal vem disponibilizando oferta crescente de treinamentos, manuais, tutoriais, suporte técnico e outros recursos pedagógicos principalmente on-line. Mas seriam eles suficientes? Aparentemente não, e uma forte evidência é a subutilização das transferências voluntárias e dos Programas de Aceleração do Crescimento, a despeito das muitas vantagens que oferecem. Os exemplos não se limitam à infraestrutura e ao Setor Público, mas afetam as políticas sociais e o Terceiro Setor. Também o mercado vem se juntar a este filão criando uma indústria de cursos e consultorias voltadas aos intervenientes dos projetos, processos, programas e políticas públicas. Fato é que a capacitação é um fator determinante para a implementação das políticas públicas, tanto mais daquelas que implicam o compartilhamento de responsabilidades entre os entes federativos. O presente ensaio apoiar-se-á em três 4 casos que a colocaram no núcleo da questão, quais sejam, o “Plano Nacional de Saneamento” – PLANASA; os “Pólos de Educação Permanente em Saúde” – num primeiro momento da Política Nacional de Educação Permanente do Sistema Único de Saúde; e o “Programa Gestão Social com Qualidade para agentes públicos e sociais” do Ministério do Desenvolvimento Social. 2 OBJETIVOS Em comum os três casos tiveram êxito na articulação dos entes federativos para a implementação de políticas públicas compartilhadas, e reputam o mérito em grande parte à capacitação, a despeito das enormes diferenças temporais e situacionais que houve entre eles. Isso será analisado segundo as informações obtidas, com vistas aos limites e potencialidades de replicação para outras políticas que envolvem arranjos federativos. Ousamos defender que, mais do que formação ou treinamentos eficazes, a capacitação teve um papel catalisador de intersetorialidade nos três programas abordados. Ceccim (2005a) é ainda mais entusiasta ao se referir à Educação Permanente em Saúde como o fator de transformação do programa em política nacional de Saúde. Por ser o caso mais estruturado e longevo, será apresentado por último e, ao final, a síntese comparativa entre eles. 3 METODOLOGIA Os três casos serão apresentados segundo as informações encontradas. Ao final do item 3, serão discutidos em conjunto. É importante frisar que as informações são incompletas no tempo, nos conteúdos e sob os filtros de seus autores que, a propósito, não as estruturaram como estudos de caso no senso estrito, mas como partes de artigos descritivos. Dos três, apenas a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde continua vigente, mas com outra arquitetura. Quanto aos demais casos, não descobrimos registros técnicos posteriores, tampouco acompanhamento, mas restam evidências e testemunhos verbais de que contribuíram para pavimentar a cultura organizacional nos respectivos setores . 5 3.1 A capacitação no Plano Nacional de Saneamento O Plano Nacional de Saneamento – PLANASA foi implantado com vínculo no Banco Nacional da Habitação – BNH, formalmente em 1971, e foi extinto juntamente com o Sistema Financeiro de Saneamento que lhe dava suporte. O plano foi formulado a partir das seguintes premissas: i) Universalização do saneamento: diminuir drasticamente o déficit de saneamento no Brasil – a meta programática inicial era alcançar 80% da população urbana, “com subsídio interno e parcial aos mais pobres pelos mais ricos” (MONTEIRO, 1993, p. 5). ii) Eficiência e eficácia: o modelo se fundamentou na lógica de programa que agregava vários projetos para obter ganhos de escala. Os estados, através de empresas públicas, eram as unidades de execução. iii) Auto-sustentação financeira: os investimentos iniciais eram feitos pelo BNH juntamente com o Fundo para o Financiamento de Água e Esgotos – FAE, criado em cada estado; os investimentos seriam amortizados com as tarifas e, a fim de garantir a expansão da rede, embutia-se taxa de juro inferior à praticada pelo mercado financeiro da época. iv) Formação de recursos humanos, técnicos e materiais: por adotar um modelo inovador e de escala sem precedentes, até então, no Brasil, fez-se necessário investir também no capital humano e tecnológico do setor. O PLANASA motivou a criação de numerosas empresas de consultoria, projeto, firmas empreiteiras de obras, fiscalização e gerenciamento em quase todos os estados brasileiros. Os bens e equipamentos necessários passaram a ser fabricados no Brasil, impulsionando também a pesquisa e o desenvolvimento. Dentro do escopo deste trabalho, cabe ressaltar a formação dos recursos humanos: 6 A qualificação de recursos humanos foi preocupação constante do BNH como órgão central do Sistema Financ eiro do Saneament o. Entre 1973 e 1986 foram oferecidas 117 mil oportunidades de treinament o, com ênfase na formação de gerentes e de pessoal de nível médio. Para administrar o programa foi eleita a ABES – Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – que congrega os profissionais no campo do saneamento básico. Objetivou -se com isso não só uma gestão competente, como sua melhor aceitação por parte do público-alvo. Como primeiro passo foi instalado em c ada empresa um órgão de treinamento e o seu dirigente foi o primeiro treinando. Os resultados ao que parece são considerados satisfatórios, com notória melhoria da qualidade dos profissionais treinados (MONTE IRO, 1993, p. 7) Mais detalhes são informados por Pires (1979): Em convênio com a Associação Brasileira de Engenharia Sanit ária e Ambiental – ABES e com as Companhias de Saneamento, contando com a participaç ão de entidades e programas especializados no país e no exterior, o BNH vem promovendo amplo trabalho voltado ao treinamento e formação técnico-profissional. (...) Esses números bem demonstram a força de trabalho atual do setor de saneamento básico, após o advento do PLA NASA (...) estando o programa montado para at ender a 15 mil treinamentos por ano. Por outro lado, já foram produzidos cerca de 130 mil exemplares de 27 livros didáticos e de 5 manuais de aprendizagem, além de 67 filmes técnicos com mais de 2000 cópias, e a edição de 13 normas técnicas. (...) Na área da pesquisa, também tem intensa tem sido as atividades, no sentido do desenvolvimento tecnológico. Assim é que estão sendo realizadas pesquisas, mediante convênios entre o BNH e entidades especializadas (...) (Op. cit., p. 33). Segundo Monteiro (1993) e Pires (1979), antes do PLANASA, os projetos e esforços isolados de cada comunidade, a importação de modelos dos países desenvolvidos, não haviam equacionado o problema de saneamento no Brasil em proporção à sua escala, de modo que foram muito relevantes os resultados do programa: O censo de 1970 informava que apenas 26,7 milhões de brasileiros, ou 50,4% da população urbana eram abastecidos com água potável e 10,1 milhões ou 20% pela rede de esgotos. Quinze anos depois – em 1985, a Pesquisa Nacional de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE assomaçava qie 82,8 milhões de brasileiros ou 87% da população urbana eram abastecidos com água potável. O PLA NASA, nesse período, havia conseguido acrescentar à população abastecida, 56 milhões de pessoas – contingente maior que a população da França. O BNH não agiu de forma monopolista, mas complementando o trabalho de outras instituições nos três níveis de governo e na iniciativa privada, visando a uma atuação descentralizada, desde que associados seus esforços e rec ursos para facilitar o alcance de seu objetivo. (...) Mais importante, porém, foi que a contribuiç ão do PLA NASA para que cada brasileiro, em 1980, tivesse uma esperança de vida 7 anos maior da que tinha em 1970. (MONTEIRO, 1993, p.5 e 7) 7 Gráfico 1 – PLANASA: população meta vs. desempenho do plano no período de 1968 – 78 Fonte: Pires (1979, p. 36) Dentro da delimitação deste trabalho, é inevitável transitar das questões técnicas para as questões administrativas e políticas, lembrando que este plano ocorreu dentro do regime autoritário. Mas o “PLANASA constituiu-se na única iniciativa descentralizada de um organismo federal no Brasil, no período analisado”, segundo Monteiro (1993, p.11). Deduz-se, portanto, que a despeito da centralização característica do regime autoritário, a busca pela eficiência do programa demandou descentralização e articulação entre agentes promotores, financiadores e executores. Neste sentido a capacitação acumulou a função de promover o alinhamento e a transversalidade dos métodos e processos. Monteiro (1993) atribui a fatores exógenos ao modelo, os insucessos e o próprio fim do PLANASA, anos depois: 8 As razões do atraso no alcance da meta não parecem intrínsecas ao modelo. Ao contrário, parecem decorrer de fatores externos – alguns conjunturais e outros atribuíveis à gestão menos competente (op. cit., p.11). 3.2 O Programa Gestão Social com Qualidade para agentes públicos e sociais Em 2004, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS celebrou parceria com a Escola Nacional de Administração Pública – ENAP para o Programa Gestão Social com Qualidade – “Formação de multiplicadores e de gerentes sociais que atuam na proteção social não contributiva e constituição da Rede Descentralizada de Capacitação”. Tratava-se de “uma estratégia formativa dirigida a gerentes e coordenadores de serviços socioassistenciais pertencentes aos quadros da administração pública estadual e municipal, que deveria ser implementada por meio de uma rede descentralizada de capacitação” (CARVALHO, 2009, p. 7). O objetivo central era fortalecer a cultura gerencial, constituindo uma rede de agências dedicadas à capacitação dos profissionais da área de desenvolvimento social no território nacional. A essência era capilarizar as bases conceituais, os fundamentos legais, os instrumentos e procedimentos da Política Nacional de Assistência Social – PNAS, com vistas a dar sustentação ao Sistema único de Assistência Social – SUAS. Dentre os objetivos específicos constavam o aprimoramento da capacidade nacional para formular, implementar e avaliar políticas e programas sociais; o fortalecimento da cultura de gerência social e da capacidade de atuação intersetorial dos profissionais das secretarias estaduais e municipais de assistência social. Para alcançar os objetivos, a estratégia era viabilizar e institucionalizar uma rede de agências capacitadoras atuando em parceria ou em processos autônomos. Assim, com o envolvimento do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e de dez instituições de ensino superior, foram criadas as ACE – Agências Capacitadoras Estaduais como “hubs” da Rede Nacional Descentralizada de Capacitação. A ENAP, conforme mencionado, foi a Agência Coordenadora da Rede – ACR, responsável pela coordenação, acompanhamento e apoio necessários à execução das capacitações 9 descentralizadas, e pela capacitação dos representantes das ACE – o Curso de Multiplicadores, o qual foi desenhado de forma colaborativa entre os principais intervenientes do projeto. Dada a escala de abrangência, recorreu-se à modalidade semipresencial de Educação à Distância – EaD. Segundo Carvalho (2009, p. 8), “o momento presencial do Curso de Formação de Multiplicadores foi o passo fundamental para a constituição da Rede Nacional de Capacitação Descentralizada”, onde foi possível o intercâmbio de especialistas e gestores para re finar a implementação e, principalmente, impulsionar a motivação. Após, ficou, como legado, um espaço virtual para a rede disponibilizar materiais didáticos, documentos, trocar informações e experiências. Após o término do Projeto, a avaliação apresentada pelo Comitê Acadêmico ressaltou – entre outros vários aspectos abordados – as impressões de que as possibilidades de implementação de uma Rede Nacional de Capacitação tinham sido estabelecidas. (Op. cit., p. 10) Dentre as lições aprendidas para a constituição da rede, destacam-se: i) A preponderância da comunicação, que deve combinar encontros presenciais e outros meios on-line. ii) O encontro presencial como primeiro momento favorece a criação de consensos e apelo motivacional. iii) A cultura do trabalho em rede é facilitada pela internet e por ela pode ser mensurada, “mas precisa de apoio e incentivo para proliferar e sedimentar-se” (idem). iv) A equipe de coordenação e supervisão precisa ter proficiência em sistemas informáticos. v) São imprescindíveis profissionais com perfil para moderar grupos presenciais ou on-line. vi) Em função da dependência das TICs, “a infraestrutura tecnológica deve ser amigável” (ibidem). E o relatório final do projeto concluiu: Processos formativos que envolvem diferentes instâncias administrativas sinalizam o caminho para a concretização do pacto federativo e para a institucionalização de sistemas únicos (SUAS, SUS...) eficientes, eficazes e efetivos. (CA RVALHO, 2009, p. 11). 10 Não há mais vestígios de atividade desta “rede”, hoje um sítio da Internet 1 “em cache ”. Ainda assim, estima-se que o “Programa Gestão Social com Qualidade para agentes públicos e sociais” tenha contribuído efetivamente para formar a cultura federativa do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, tão presente no código do coletivo dos Assistentes Sociais públicos. 3.3 Os Polos de Educação Permanente em Saúde Este caso se delimita à fase de inicialização dos Polos de Educação Permanente em Saúde, instituídos pela Portaria do Ministério da Saúde GM/MS no. 198 de 13 de fevereiro de 2004, em consonância à Constituição Federal, artigo 200, inciso III. Foi uma iniciativa legitimada pela 12ª Conferência Nacional de Saúde – Conferência Sergio Arouca, da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. O material de divulgação da conferência tinha a chamada “aqui é permitido sonhar”, refletindo o histórico pregresso de lutas, bem como as expectativas a partir dali quanto à consolidação do Sistema Único de Saúde – SUS pela via pedagógica. A EPS foi formulada para ser, não um programa de capacitação, mas “uma política pública nacional de descentralização e disseminação de capacidade pedagógica no Sistema Único de Saúde” (CECCIM, 2005a, p. 976). Os Pólos de Educação Permanente tinham bases locorregionais diferentes da divisão políticoadministrativa, sempre maiores que um município e menores que um estado, por vezes englobando municípios de diferentes estados, um arranjo federativo inovador, assim como sua composição interministerial (Saúde e Educação), intersetorial e interinstitucional, aglutinando associações docentes, Conselhos movimentos de Saúde, instituições de ensino, sociais, organizações estudantis e representações de trabalhadores, com vistas a “constituir o SUS verdadeiramente como uma rede-escola” (id.). 1 Vide <http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:bHAwE f9w8fwJ: www.mds.gov.br/ biblioteca/secretaria-de-avaliacao-e-gestao-de-informacao-sagi/revistas/Programa%2520Gestao %2520Social%2520com%2520Qualidade%2520capacitacao%2520para%2520agentes%2520public os%2520e%2520sociais/programa -gestao-social-com-qualidade-capacitacao-para-agentespublicos-e-sociais+&cd=1&hl=pt -BR&ct=clnk&gl=br> 11 A escolha da Educação Permanente em Saúde como ato político de defesa do trabalho no SUS decorreu do desafio para que o setor da saúde correspondesse às necessidades da população, conquistasse a adesão dos trabalhadores, constituísse processos vivos de gestão participativa e transformadora e seduzisse docentes, estudantes e pesquisadores à mais vigorosa implant ação do SUS (CECCIM, 2005a, p. 979). O Conselho Nacional de Saúde pactuou com a Comissão Intergestores Tripartite que cada Pólo de Educação Permanente em Saúde poderia propor seu plano diretor. As diretrizes seriam aprovadas pelos respectivos Conselhos Estaduais de Saúde. A composição locorregional e interinstitucional passaria pela Comissão Intergestores Bipartite (estado e municípios). Ao gestor federal caberia a apreciação quanto à coerência ao referencial pedagógico e quanto à habilitação legal das instituições elegíveis ao recebimento de recursos públicos. Não haveria currículo dirigido ao treinamento de habilidades, permitindo o protagonismo dos sistemas locais de saúde, e reforçando sua construção política e não programática. O novo modelo político-pedagógico rompeu com a compra de serviços educacionais das instituições de ensino para implementar pacotes de cursos, treinamentos pontuais e fragmentados, contratação de consultores externos e outras práticas que sobrepunham o conhecimento técnico-científico à construção coletiva de uma política de educação para o SUS. O referencial pedagógico “coloca o cotidiano do trabalho ou da formação – em saúde – como central aos processos educativos ao mesmo tempo em que o coloca sob problematização, isto é, em auto -análise e autogestão”, reconhecendo, tal qual a Organização Panamericana da Saúde, “que somente a ‘aprendizagem significativa’ seria capaz da adesão dos trabalhadores aos processos de mudança no cotidiano” (id., p. 982). A propósito, pesava (e ainda pesa) sobre as universidades e as instituições de ensino a reclamação sobre o despreparo dos profissionais para os valores do SUS, cabendo à Política Nacional de Educação Permanente em Saúde instigá-las a gerar atores comprometidos “e não apenas mais ilustrados” (Ib., p. 979). Segundo Ceccim (op. cit.), a sonhada integralidade e intersetorialidade do SUS demandava a articulação entre formação, gestão, atenção e participação – o “quadrilátero da formação”, que deveria permear todos os intervenientes da Política 12 Nacional de Educação Permanente em Saúde, ou, em outras palavras usadas pelo autor, promover “encontros rizomáticos” entre ensino, trabalho, gestão e controle social em saúde. Coloc ar a Educaç ão Permanente em Saúde na Ordem do dia para o S US pôs em nova evidência o trabalho da saúde, um trabalho que requer: trabalhadores que aprendam a aprender; práticas cuidadoras; intensa permeabilidade ao controle social; compromissos de gestão com a integralidade; desenvolvimento de si, dos coletivos, institucional e político da saúde, além da implicação com as práticas concretas de cuidado às pessoas e às coletividades, no ensino e na produção de conhecimento (op., cit., p. 979). Após 16 meses de vigência da referida portaria, haviam sido contabilizados 105 Pólos de Educação Permanente em Saúde, 1.122 insti tuições da sociedade civil, 19.757 profissionais alcançados por ações educativas, sem considerar os 56.460 Agentes Comunitários de Saúde que estavam em processo de formação. Mas Mehry (2005) faz um questionamento contundente a Ceccim (2005), quanto à capacidade transformadora do referencial pedagógico: Não me parece que para gerar “auto-análise e autogestão dos coletivos” o “trabalho com eixo na integralidade” tenha força em si, ou mesmo, que “as consultorias, os apoios, as assessorias quando implementadas ” tenham capacidade de gerar isso com os analisadores (do quadrilátero) da Educação P ermanente em Saúde, se não conseguirem atingir a alma do operar ético-político do trabalhador e dos coletivos na construção do cuidado, que é o modo como estes dispõem do seu trabalho vivo em ato, enquanto forç a produtiva do agir em saúde (...) que se veja como amarrada a intervenção que coloca no centro do processo pedagógico a implicação ético-política do trabalhador (...) (MEHRY, 2005, p. 173, 174) Ceccim (2005b) debate o questionamento de Mehry (2005), concluindo: Ambos arguidores dizem por si mesmos coisas que endosso, portanto, não vou contra-arguir, assinaria em parceria (...) Para a Educ ação Permanente em Saúde não haverá o norte do sempre-já-lá, mas a ativa circulação do aprender a aprender (...) (CE CCIM, 2005b, p. 177) A Portaria GM/MS no. 198 de 13 de fevereiro de 2004 foi substituída pela Portaria GM/MS no. 1996 de 20 de agosto de 2007, sob o lema, Pacto pela Saúde/ Pacto pela Gestão. Segundo Roskche (2007), a nova portaria reafirmava os objetivos da anterior, mas alteraria substancialmente as diretrizes e estratégia de implantação, atribuindo maior ênfase à gestão e ao papel dos gestores do SUS. 13 Ao gestor federal, em particular, além do monitoramento central da política – agora sob indicadores parametrizados, coube-lhe maior responsabilização quanto à coordenação pedagógica, gerencial e financeira da política. A nova portaria fortaleceria os fundos financeiros e o papel dos estados, bem como o papel das instituições de ensino. As Escolas Técnicas do SUS – ETSUS passariam a ser o carro-chefe da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Conclui-se, portanto, que foram deixados de lado os pólos e as experimentações de arranjos federativos diferentes da relação entre União, Estados e Municípios. Também o modelo político-pedagógico recuou o foco para os gestores e as competências técnicas necessárias aos profissionais, ainda que com forte ênfase às habilidades e atitudes avocadas pelos valores sociais do SUS. 3.4 Discussão dos casos Há enorme diferença situacional entre os três casos apresentados, é fato, e acrescente-se, lamentavelmente, que não temos informações plurais a respeito do ciclo de vida desses projetos, programas, planos e políticas com base num mesmo patamar de abordagem qualiquantitativa. Tampouco houve mensurações posteriores e sucessivas de seus impactos e aprendizados, com exceção, talvez, da reformulação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Todavia é possível identificar nos três casos, um tripé estratégico e metodológico – descentralização, articulação e formação de cultura em políticas setoriais, no qual a capacitação tem uma função transversal: i) Descentralização Dos três casos, a descentralização mais curiosa foi aquela ocorrida no PLANASA, dado o regime autoritário e sua tendência centralizadora – por pressuposto, de controle integral do ciclo de vida dos planos e programas. A descentralização se deu num movimento “top-down”, a pretexto de maximizar a eficiência operacional do plano, confiando aos estados a sua implantação. O controle central ficaria por conta do financiamento condicionado a metas e contrapartidas. Os autores mencionados – Monteiro (1993) e Pires (1979), que fazem franca 14 defesa técnica do modelo, acabaram por reconhecer que a má gestão estadual e a má gestão federal – sobretudo na esfera macroeconômica, com o colapso da modelagem financeira, foram decisivas para o fim do plano antes de seu horizonte de planejamento (MONTEIRO, 1993, p. 4). O SUS e o SUAS também tiveram formulação em nível federal e implantação descentralizada, compartilhada em arranjos federativos. Porém, de modo muito diferente do primeiro caso, o pressuposto era a descentralização, haja vista a construção “bottom-up” das políticas públicas após a abertura democrática. O SUS foi a primeira construção colaborativa de política pública, por excelência, e este traço característico foi reproduzido na Educação Permanente em Saúde, por meio dos arranjos “intersetoriais e interinstitucionais”, citando Ceccim (2005a). Estratégia semelhante foi adotada pelo MDS/ SUAS para o Programa de Gestão com qualidade para agentes públicos e sociais (CARVALHO, 2009). ii) Articulação Uma política pública de formulação federal e implantação descentralizada é inócua sem articulação. Esta estratégia foi muito valorizada nos três casos, trabalhando os eixos técnico e político com vieses distintos. Grosso modo, no caso do PLANASA prevaleceu a articulação técnica entre o Sistema Financeiro de Saneamento, os estados e as empresas estaduais de saneamento, uma vez que o autoritarismo tinha a política reprimida sob seu controle. Numa abordagem comparativa, o Programa de Gestão com qualidade para agentes públicos e sociais foi o caso de melhor equilíbrio entre a articulação técnica – sob coordenação da ENAP, e a política – a rede descentralizada de capacitação, sendo que os nós e arcos da rede interagiam em ambos os eixos de modo colaborativo. 15 Sob perspectiva comparada, os Pólos de Educação Permanente em Saúde foram os que priorizaram enfaticamente a articulação política, o que fazia sentido para a estratégia de consolidação do SUS, à época. Mas, a concluir pela Portaria GM/MS no. 1996 de 20 de agosto de 2007, que os substituiu pelo modelo das Escolas Técnicas de Saúde, a autonomia técnico-pedagógica dos arranjos intersetoriais e interinstitucionais não atendeu plenamente o objetivo técnico- pedagógico da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. iii) Formação de cultura em políticas setoriais Os três casos perseguiam deliberadamente a formação de uma cultura para a sua política setorial, embutida nas estratégias de capacitação. Segundo Monteiro (1993) e Pires (1979), o PLANASA foi responsável pelo desenvolvimento de tecnologias e pela formação de técnicos nacionais para o setor do saneamento, imbuídos dos valores e ideais expressos naquele modelo, tais como universalização do serviço, auto-sustentação financeira e subsidiariedade. Para o SUAS, a incorporação dos princípios de gestão com qualidade da parte dos agentes públicos era crucial para potencializar os recursos e as políticas de assistência social, tanto quanto os princípios dos direitos humanos e da inclusão o são para os coletivos do desenvolvimento social (CARVALHO, 2009). Por fim, entre os três casos, o referencial pedagógico dos Polos de Educação Permanente em Saúde é o ápice do desejo de transformar a cultura de uma política setorial, por meio da educação dos atores interinstitucionais do setor. Mais do que isso, expressam o objetivo de promover o engajamento político à causa da Saúde, tanto quanto os saberes técnico-científicos desta área de conhecimento (CECCIMa,b, 2005), ou seja, “o quadrilátero da formação” (op. cit.) e a “pedagogia da implicação” (MEHRY, 2005). 16 4 CONCLUSÕES Este artigo foi motivado pela inquietação perante as muitas políticas nacionais lançadas num passado recente que não tem logrado o êxito federativo esperado, havendo razoável disponibilização de recursos. Temos particular interesse naquelas que se situam na interface entre o Ministério das Cidades e o Ministério do Meio Ambiente, e que carecem, ainda, de cultura própria para a sua política setorial, como é o caso da Política Nacional de Resíduos Sólidos. O presente trabalho enfocou o potencial que a capacitação tem para catalisar as políticas públicas dentro dos arranjos federativos, trabalhando a articulação dos eixos técnico e político. Mais do que isso, do potencial que tem para formar um legado cultural para o setor, que foram os três casos analisados, a despeito de suas assimetrias situacionais. Sem pretensões conclusivas, este ensaio aponta que o êxito das políticas nacionais compartilhadas com os arranjos federativos se situa na combinação satisfatória de descentralização – de recursos e responsabilidades; articulação – técnica e política; e formação de uma cultura em políticas setoriais. A todos estes elementos a capacitação se presta como catalisador agindo na transversalidade. 17 5 REFERÊNCIAS ABRELPE. Entrevista concedida a Investimentos e Notícias, 30/10/2014 http://www.investimentosenoticias.com.br/noticias/negocios/abrelpe-defende-o-vetoa-proposta-da-mp-651-para-prorrogar-lixoes Acesso em 24 abr 2015 CARVALHO, Paulo Sérgio de. A experiência da Escola Nacional de Administração Pública na articulação de redes de capacitação. 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Apresentação técnica disponível em http://www.escoladesaude.pr.gov.br/arquivos/File/mostra/EPS/Maria_Alice_Roskche. pdf Acesso em 28/04/2015. 18 ___________________________________________________________________ AUTORI A Rosane Segantin Keppke – Escola Municipal de Administração Pública de São Paulo – EMASP Prefeitura do Município de São Paulo/ Secretaria Municipal de Gestão. Endereço eletrônico: rkeppk e@prefeit ura.sp.gov. br