UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA MONUMENTO E COTIDIANO: Uma perspectiva etnográfica sobre o Palácio Gustavo Capanema Rachel Paterman Brasil Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia / Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Orientador: Prof. Dr. José Reginaldo Santos Gonçalves RIO DE JANEIRO AGOSTO DE 2012 1 MONUMENTO E COTIDIANO: Uma perspectiva etnográfica sobre o Palácio Gustavo Capanema Rachel Paterman Brasil BANCA EXAMINADORA _______________________________________________ Prof. José Reginaldo Santos Gonçalves (Presidente) _______________________________________________ Prof. Octavio Bonet (UFRJ – PPGSA) _______________________________________________ Prof. Márcia Chuva (Unirio) _______________________________________________ Prof. André Botelho (UFRJ – PPGSA) _______________________________________________ Prof. Márcia Contins (UERJ) 2 Paterman, Rachel Monumento e Cotidiano: uma perspectiva etnográfica sobre o Palácio Gustavo Capanema / Rachel Paterman Brasil. Rio de Janeiro: PPGSA/IFCS/UFRJ, 2012. vii.180f. il.; 21 X 29,7 cm. Orientador: José Reginaldo Santos Gonçalves. Dissertação, PPGSA/IFCS/UFRJ, 2012. 3 RESUMO MONUMENTO E COTIDIANO: Uma perspectiva etnográfica sobre o Palácio Gustavo Capanema Rachel Paterman Brasil Orientador: Prof. José Reginaldo Santos Gonçalves Esta dissertação apresenta uma perspectiva sobre monumentos arquitetônicos que permite que sejam concebidos como um interessante objeto de investigação antropológica. Sua proposta consiste em “retorná-los” às relações sociais e simbólicas cotidianas de que fariam parte e que os constroem a cada dia, não importando as qualidades aparentemente “concluídas” ou “inertes” que podem assumir junto a seus admiradores. Esta pode ser compreendida como uma possibilidade diferente de abordar monumentos se considerarmos questões amplamente compartilhadas em torno da presença da “mão humana” em imagens concebidas como “puras” e “autênticas”. Tomando como campo de observação um edifício público localizado no centro do Rio de Janeiro que é apreciado como um monumento da arquitetura moderna – o Palácio Gustavo Capanema –, esta etnografia procura descrever as complexas interações que dia após dia constituem e são constituídas por essa forma construída. Conforme deverá ser elucidado, longe de ser nada mais que um ponto de partida contraditório e mesmo inadequado para abordar monumentos, sua dimensão cotidiana – as atividades rotineiras de manutenção e administração – podem revelar sentidos profundos subjazendo ao uso desta categoria. Palavras-chave: Patrimônio; Arquitetura; Monumentos. 4 ABSTRACT MONUMENT AND QUOTIDIAN: an anthropological perspective on Palácio Gustavo Capanema Rachel Paterman Brasil Orientador: Prof. José Reginaldo Santos Gonçalves This dissertation presents a perspective on architectural monuments that make it possible to conceive them as an interesting object of anthropological investigation. Its proposal consists in "returning" them to the daily social and symbolic relations in which they have and always will take part of and that construct them everyday, no matter the apparent "conclusive" and even "inert" aspects they may hold amid its admirers. This can be understood as a different possibility of approaching monuments once one considers broadly shared issues concerning the presence of the "human hand" on images conceived as "pure" and "authentic" ones. Selecting as a field for observation a public building located at Rio de Janeiro's downtown that is appreciated as a monument of modern architecture – the Palácio Gustavo Capanema –, this ethnography tries to describe the complex interaction that day by day constitutes and are constituted by this constructed form. As it shall be made clear, far from being no more than an contradictory and even inadequate threshold to approach monuments, its quotidian dimension – the maintenance and administrative chores of its everyday "life" – may unveil the deeper meanings enclosed by the use of this category. Keywords: Heritage; Architecture; Monuments. 5 Aos habitantes do Palácio Capanema 6 Agradecimentos Esta dissertação deve ser reconhecida como produto de um trabalho coletivo, do qual participaram, de diferentes maneiras, muitas pessoas. Agradeço, naturalmente, a todas aquelas vozes que, em menor ou maior grau, contribuíram para o presente texto. Antes de mais nada, a José Reginaldo Santos Gonçalves, meu orientador, por todo o apoio intelectual e sobretudo pelas palavras de estímulo, sem as quais dificilmente teria persistido no tema escolhido e feito de um simples projeto uma dissertação. Agradeço aos professores com que interagi ao longo do curso de Mestrado, cujas sugestões se fazem de um modo ou de outro presentes no texto. Destaco as contribuições significativas de Octavio Bonet e Regina Abreu, que participaram da qualificação de meu projeto. Agradeço ainda aos colegas do Programa e do IFCS que me acompanharam durante esses últimos anos, destacando-se os integrantes do LAARES (Laboratório de Antropologia da Arquitetura e Espaços), de cuja criação me sinto honrada de ter sido parte. Devo agradecer a todos aqueles que, ainda que com o mais breve dos depoimentos, contribuíram para tornar a pesquisa possível. No que concerne ao Palácio Capanema, agradeço, acima de tudo, a Jupiara Normandes Vieira, a quem dedico esta dissertação. Pelo apoio e carinho incondicional, agradeço a meus pais, Celia e Newton, e às minhas irmãs, Ilana (a quem devo a sugestão do tema) e Simone (com quem partilhei momentos críticos da escrita). Acima de tudo, agradeço e aprecio a dedicação e a paciência de Antônio, que me acompanhou durante todo este tempo, lendo e criticando cada rascunho. Devo também agradecimentos a seus pais, Fernando e Mariana, por todo o apoio. 7 Sumário Lista de Siglas 10 Introdução 11 Capítulo 1: Querem acabar com o Palácio Capanema 18 1.1 O “outro lado” do patrimônio 25 1.2 Um legado para a cidade 26 1.3 Um caso de iconoclash 29 1.4 O Palácio, vazio? 31 1.5 Reações contra a mão humana 33 1.6 Monumento versus cotidiano 34 1.7 O Palácio Capanema como construção permanente 37 1.8 Cotidiano de um monumento 40 Capítulo 2: Das narrativas monumentais aos bastidores do Palácio 43 2.1 Um lugar e uma informante: a sala da administração 48 2.2 A “estagiária” de Jupiara 49 2.3 O “Condomínio PGC” 54 2.4 As relações na Administração 57 2.5 O “código nativo” 59 2.6 Memórias da administração 61 2.7 A rotina de serviços do Condomínio 64 2.8 A diária construção da inércia 70 Capítulo 3: Instâncias da administração 71 3.1 “Papéis” mediadores 74 3.2 O “avesso” do Palácio 82 3.3 Relações de sociabilidade 86 3.4 A Administração e o Iphan: Jupiara e Luciano 93 3.5 Dinâmica do tombamento 97 3.6 Jardins de Burle Marx 100 3.7 Monumento feito de histórias 104 8 Capítulo 4: Campo em transformação 106 4.1 A raiz do problema: um terreno indócil 110 4.2 “Visita guiada” 113 4.3 Vida dos materiais, patologias do projeto 115 4.4 Memórias de intervenções 118 4.5 Narrando transformações 121 4.6 De funções a estruturas 123 4.7 Entre preservar e criar 128 Capítulo 5: Memória viva 136 5.1 Trajetórias de vida 138 5.2 Clashes 147 5.3 Grandes expectativas 152 5.4 Uma imagem estática e inerte do Capanema 161 5.5 A ordem como mito 162 5.6 Prometeu... liberto? 167 5.7 Origem em disputa 169 5.8 Cascatas 171 Referências Bibliográficas 173 Arquivos consultados 176 Sites consultados 176 Material de mídia 177 Anexo 178 Ilustrações 178 1.Registros Fotográficos 178 2.Plantas Baixas 180 Crédito das Ilustrações 180 9 Lista de Siglas ASPHAN Associação de Servidores do Iphan CPDOC/FGV Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas Detran Departamento Nacional de Trânsito FAU/UFRJ Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro FBN Fundação Biblioteca Nacional Funarte Fundação Nacional das Artes Ibram Instituto Brasileiro de Museus Inepac Instituto Estadual do Patrimônio Cultural INSS Instituto Nacional de Seguridade Social Iphan Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional MEC Ministério da Educação MES Ministério da Educação e Saúde MinC Ministério da Cultura PGC Palácio Gustavo Capanema Remec Representação Regional do MEC SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Unesco Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura 10 Introdução Existem momentos na história dos homens em que estes confiam na potência de seus gestos atravessarem as gerações: o brilho da ação iluminar a senda do futuro e o eco das palavras repercutir eternamente. Quase sempre estão enganados. As grandes obras que criaram no presente são impiedosamente esquecidas, e não raro desaparecem sem deixar rastro. [...] Se a arquitetura é a mais impositiva das artes, talvez o seja, justamente, pelo risco cotidiano de passar despercebida. O edifício-sede do antigo Ministério da Educação e Saúde é um destes acontecimentos. Mauricio Lissovsky e Paulo Sergio Moraes de Sá Colunas da Educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde Uma vasta literatura foi e vem sendo produzida em torno do atualmente designado Palácio Gustavo Capanema – antiga sede do Ministério da Educação e Saúde, criado como Palácio da Cultura e usualmente conhecido como “prédio do MEC”. Em referências da história e teoria da arquitetura, o edifício desempenha o papel de um importante “marco”, introduzindo no Brasil um modo de construir – espécie de prenúncio de Brasília – e o consagrando internacionalmente. O envolvimento de nomes como os de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira e Le Corbusier, em pessoa – cujos princípios da “nova arquitetura” seriam sintetizados em proporções inéditas no projeto – constitui um importante elemento de tais descrições (CAVALCANTI 2006, CZAJKOWSKI 2000, LEONÍDIO 2010, SEGAWA 2010). Como uma espécie de mito suscitando interesse e curiosidade incessantes, o contexto da elaboração e construção do edifício constituiria foco de numerosas abordagens, que de longe se restringiriam ao campo da arquitetura (CHUVA 2009 ; GORELIK 2005; LISSOVKSY;SÁ 1996). O MES concentraria, em sua forma, elementos reveladores do período a que remete. Nas palavras do arquiteto e historiador Adrián Gorelik, 11 Há uma série de elementos que o tornam um selo nacional: a colaboração entre arquitetos e artistas; a apropriação levemente distorcida [...] de motivos da figuração modernista internacional; a relação dos arquitetos com o Estado como promotor de programas novos e de sua nova figuração (2005: pp. 161-162). Tais autores abordariam a construção do Edifício como parte de um contexto mais amplo de consolidação de uma tradição e identidade nacionais em face da construção de um país novo – eram tempos de Estado Novo, além do relativamente recente ano de 1930. Iluminados por tal perspectiva, seus aspectos mais “modernos” e “inovadores” se revelariam indissociáveis de uma busca por um Brasil autêntico esquecido, passível de ser “resgatado” e “preservado”. É importante destacar, nesse sentido, sua construção como sede do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), uma das agências centrais do MES de produção de tal Brasil autêntico (CHUVA, 2009). E, ainda, a enigmática inscrição “precoce” do Edifício no livro de tombo, poucos anos após sua inauguração. Como veremos, a figura de Lucio Costa (LEONÍDIO, 2007) seria especialmente elucidativa desta conciliação aparentemente contraditória entre as categorias “tradição” e “modernidade”. Combinando o que haveria de mais novo no campo da arquitetura e das artes a técnicas construtivas qualificadas como autenticamente nacionais, o projeto do Ministério atenderia a uma designação pouco usual de monumento, voltado a mediar, através da alusão a um futuro elaborado como marco fundador – e pela articulação de noções de progresso e modernidade – um passado nacional autêntico. Nas palavras de Mauricio Lissovsky e Paulo Sergio Moraes de Sá: Se o Brasil faz-se novo, a qualidade principal de seus edifícios também deve ser o novo. Mas qual novo? Não o inesperado, cuja aparição é produto do acaso ou de circunstâncias excepcionalmente favoráveis, mas o novo que resulta de um esforço organizado. Esse novo é mais do que uma simples caracterização do estado presente; é um presente que, valendo-se 12 do passado, funda determinada e resolutamente o futuro. (1996:p.xx) Tal como um “mito”, a construção do Capanema não parece ter sido esgotada pelas diversas abordagens que o teriam focalizado. Ainda com base nos autores, vale apontar que “nascido monumental, a construção deste edifício envolve-se, desde logo, em uma narrativa mítica, repleta portanto de lances misteriosos e segredos sutis” (Idem, p. xxiv). Investigado por perspectivas e questões sempre renovadas, o material de arquivo produzido a seu respeito seria sempre capaz de “revelar” detalhes desconhecidos. Para além, no entanto, deste “monumento” inscrito em registros documentais, há ainda, completando em breve seus setenta anos, o edifício em termos “concretos”, situado à Rua da Imprensa, em terreno circundado pelas ruas Santa Luiza, Araújo Porto Alegre e Graça Aranha. Nesse sentido, parece interessante saber como seu lugar seria classificado, décadas após sua inauguração. Uma pista pode ser encontrada na breve – e, no entanto, consistente – remissão ao projeto no estudo de Simon Schwartzman (1984) sobre os tempos de Capanema: “basta a distância do tempo para darmo-nos conta de que o atual Palácio da Cultura [...] é pouco mais do que uma relíquia arquitetônica perdida no caos urbano do Rio de Janeiro” (1984: p.95). Relíquia arquitetônica ou, ainda – com base em JAGUARIBE (1998) – , uma ruína modernista, criado sob o signo de um futuro que se deteriora. Tais noções contribuiriam para compreender o lugar desconexo de ambiciosas criações modernas em relação ao espaço em que hoje se inserem, que talvez em nada se aproximam do futuro que almejavam fundar e encontrar. Como diria Ítalo Campofiorito, “a 13 construção do Ministério fica naquele passado que ainda não passou” (LISSOVKSY; SÁ,1996: p.vii). Ao longo dos últimos anos, notícias de jornais denunciando o “estado de deterioração” do Capanema não deixariam grandes dúvidas a respeito de sua possível classificação como “ruína”. Outra possibilidade de compreender construções arquitetônicas tais como o Palácio – e urbanísticas, como Brasília – estaria em sua aproximação como museus da modernidade. Adrián Gorelik (2005) faz uso do termo de modo a lançar uma luz nova à temática da construção da capital, respondendo assim a abordagens eminentemente críticas, concentradas em denúncias relativas à inadequação do projeto em relação às necessidades e condições de legibilidade por parte do público receptor (HOLSTON, 1993). Tais obras modernas deveriam, a seu ver, ser lidas como protagonistas ao mesmo tempo que encarnações de uma grande epopéia: elas materializariam, por apropriações distanciadas e conscientes, valores de modernidade como objetos museográficos (GORELIK, 2005: pp.155-160). Constituindo origem seja de Brasília ou da sede do MES, tais projetos encerrariam o destino “final” de uma obra arquitetônica: sua conversão em monumento, perpetuando imagens de futuro que se esvaneciam. Classificando-o seja como relíquia arquitetônica, ruína ou museu da modernidade, tais possíveis leituras do atualmente designado Palácio Gustavo Capanema, embora atinjam o lugar “físico” que ocupa na cidade, parecem se concentrar, à semelhança de muitas descrições produzidas no âmbito da arquitetura, em uma imagem fixa e estável do conjunto. Por esse prisma, o Edifício seria pouco além de uma forma construída “parada no tempo”: imune às transformações da vida, da qual continua, inevitavelmente, a 14 fazer parte. Tal perspectiva permite no máximo emergirem questões em torno da preservação de seu caráter “monumental” – questões essas que serão apresentadas no “Capítulo 1”, no qual, submetidas a tratamento teórico (LATOUR 2008; INGOLD 2000), darão origem a uma proposta e um método de pesquisa. No entanto, se há algo que não parece até o presente momento ter sido explorado em relação a este monumento – e, em certos aspectos, a tantos outros – , é seu “cotidiano”: sua experiência do ponto de vista das interações sociais e simbólicas de que faz parte, e da inserção de sua suposta forma em um inexorável processo de transformação permanente. Ao abordar o Palácio por uma perspectiva etnográfica, pretendo retomar, à luz de contribuições da Antropologia, discussões existentes em torno de “monumentos” e, mais especificamente, de “monumentos modernos”. Como veremos, trata-se de, com base em trabalho de campo, atenuar o foco sobre o projeto – tão prestigiado no modo de construir “moderno” – devolvendo-o a um processo de construção permanente, executada por variadas e complexas camadas de agência (Idem, 2000). Ao apresentar, no referido capítulo, os caminhos que conduziram a conformação do Palácio Capanema como um objeto empírico de descrição etnográfica, discuto a relação entre “monumento” e “cotidiano” como uma tensão que parece constituir concepções amplamente compartilhadas da categoria “monumento” – o que teria se tornado evidente na formação de um debate público em torno do Edifício no ano de 2010. Por sua vez, o “Capítulo 2” traz o processo de inserção em campo, caracterizado pelo acompanhamento de atividades cotidianas administrativas a partir do contato com uma “informante” que se tornou “colaboradora” da pesquisa. O relato 15 dos “bastidores” do edifício tem início com uma descrição da rotina aparentemente estável de atividades e interações no espaço ocupado por atividades de “administração”. Rotina feita de pequenas e, no entanto, importantes “transformações”, processos dinâmicos de criação que serão apresentados ao longo do capítulo seguinte em termos da idéia de “monumentalização permanente”. Um aspecto importante desta descrição diz respeito às relações estabelecidas no âmbito da administração, que se caracterizariam por um entrelaçamento de modalidades “formais” e “informais” de interação, referentes, de um lado, às posições e funções tal como dadas em um nível concebido como “oficial” e, de outro, à revisão e eventual inversão desta hierarquia por arranjos produzidos a partir de relações de sociabilidade, conduzidas por um código específico. Como veremos, haveria uma espécie de paralelo entre esta configuração “social” e uma “espacial”. Se não se pode dizer até que ponto uma determinaria a outra, o paralelo ao menos se revela como uma boa metáfora para iluminar ambas. O “campo”, no entanto, é tudo menos uma experiência “estável”, e a súbita inserção em um cenário de transformações drásticas traz efeitos para etnografia. A partir daí, o esforço de descrição deve atender à ruptura com um quadro que, embora apontasse aspectos dinâmicos do monumento (em contraste com suas imagens “fixas” e “inertes” presentes na literatura), até então seria experimentado como constante e rotineiro. Detalhes que trazem à tona o lugar do edifício em contextos mais abrangentes de elaboração viriam à tona neste momento da pesquisa, organizado no “Capítulo 4”. No quinto e último capítulo, são desenvolvidas considerações a respeito dessa experiência. Apesar de, ao menos teoricamente, não pretender concluir as questões 16 apresentadas, neste capítulo procuro aprofundar os sentidos que parecem conduzir elaborações nativas do edifício como matéria de intervenção, organizando atitudes de qualificação e desautorização de tais ações. Estas se revelam como parte de uma grande e inescapável narrativa mítica, metaforizada no próprio Edifício. 17 Capítulo 1: Querem acabar com o Palácio Capanema "Querem acabar com o Palácio Gustavo Capanema" "Palácio Capanema ameaçado" "É portanto urgente que quem for contrário a mais essa barbaridade que se projeta fazer na já assolada e maltratada cidade do Rio de Janeiro se manifeste. (...) Há catástrofes de diversas naturezas e esta, histórica e cultural, pode ser combatida." "Isso poderia ser considerado um crime de lesa pátria, um assassinato da memória nacional. Seria bom que deixassem em paz o velho Capanema..." 1 Consideradas fora do contexto de onde foram extraídas, as frases citadas parecem referir-se a uma situação decisiva de uma construção arquitetônica: sua iminente destruição. Tal idéia pode ser depreendida da presença de termos como barbaridade e catástrofe, assim como do evidente tom de indignação contido em tais sentenças. Por sua vez, o termo assassinato sugere haver na origem da ameaça a atuação de alguém, contra quem tais vozes se levantam. Ao que parece, no entanto, algo ainda pode ser feito em relação ao estimado Palácio. Um olhar um pouco mais distanciado, que permita relacionar as citadas expressões ao contexto discursivo de que participam, é capaz de identificar a presença de certos elementos narrativos atuando como verdadeiras armas discursivas para conter a ameaça em questão. Trata-se da categoria patrimônio: “O prédio é um projeto histórico de 1937, representativo da moderna arquitetura brasileira (...). É (...) um bem histórico que transcende seu próprio caráter nacional.” "O Palácio Gustavo Capanema, por onde passam a história da educação e da cultura brasileira, está sob a ameaça de perder seu caráter de símbolo cultural do país." 1 Tais citações, assim como as que as sucedem, constituem trechos de depoimentos cuja origem será melhor esclarecida ao longo do presente capítulo. Elas provêm, em sua maioria, de textos publicados no ano de 2010 em sites temporários na Internet, em sua maioria, atualmente indisponíveis. 18 "Sua história está visceralmente ligada à educação e à cultura. E deve continuar." Os trechos citados, apesar de breves, tornam claro o papel desempenhado pela ênfase sobre o valor de caráter histórico e nacional do edifício em questão na tentativa de preservá-lo de uma destruição iminente. Mas de que destruição estamos falando? A que exatamente se referem tais apelos emocionados? De que pretendem proteger o Palácio? A expansão do foco sobre os trechos apresentados revela que eles se referem a uma espécie de polêmica, remissiva ao início do ano de 2010. Na ocasião, Sérgio Cabral, governador do Estado do Rio de Janeiro, ao lado do ministro do Esporte Orlando Silva, teria anunciado publicamente planos de alocar no interior do Palácio Capanema as atividades dos órgãos administrativos voltados à realização dos Jogos Olímpicos na cidade, previstos para o ano de 2016: o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos (CO-2016) e a Autoridade Pública Olímpica (APO). Pouco tempo decorre e entra em circulação na Internet uma petição pública contestando as novas destinações ao Palácio e convocando a coleta de assinaturas no propósito de impedi-las. Para além do texto que acompanha tal abaixo-assinado, redigido pelo então deputado estadual Alessandro Molon (PT), emergem reações e comentários a seu respeito em jornais, sites e blogs na Internet, em sua maioria voltados para contribuir em sua divulgação. É em tais textos que se situam as citadas frases2. O elevado número de adesões e a variedade de grupos envolvidos – artistas, 2 “O Palácio Capanema é da cultura e da educação: [...] A ocupação do Palácio Gustavo Capanema pelo Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de 2016 é um desrespeito com a história da cultura e da educação brasileira. Por isso, nós, cidadãos e cidadãs do Rio de Janeiro, abaixo-assinados, reivindicamos que a realização deste importante evento no Rio não seja usada para despejar a cultura e a educação do Palácio Gustavo Capanema.” Extraído do endereço eletrônico: www.petitiononline.com/capanema/petition.html 19 intelectuais, educadores, arquitetos, empresários – pareciam indicar que este se tratava de um movimento coletivo relevante. Diante deste cenário, tornou-se interessante saber: o que, e do ponto de vista de quem, estaria em jogo nas novas destinações anunciadas ao Palácio Capanema? O que patrimônio significa neste contexto – que sentidos constituem esta categoria, e em oposição a quais outros? Seguindo o objetivo de abordar a “polêmica” como fonte discursiva para um estudo antropológico, pesquisei em jornais e textos em circulação na Internet os argumentos levantados em defesa do Palácio, acrescentando a esta investigação incipiente depoimentos obtidos a partir de conversas realizadas com algumas pessoas envolvidas diretamente no debate público3. Como veremos, estes seriam os primeiros passos de uma pesquisa que veio a ganhar dimensões mais abrangentes. Embora os signatários e redatores dos muitos textos publicados consentissem na oposição aos planos do governo, os argumentos apresentados difeririam em certos aspectos. Alguns focalizariam as “limitações” do bem tombado diante de prováveis reformas; outros as articulariam à questão da “destinação” do edifício – não se devendo, por este motivo, pensar tais signatários como um grupo homogêneo. Vejamos os seguintes trechos: “[...] O palácio tem uma série de limitações, pois sendo um prédio tombado não se pode alterar o interior, que é muito voltado a pequenos compartimentos, os lambris têm que ser mantidos, os móveis têm que ser originais ou réplicas perfeitas [...].” “Ele foi feito para máquina de escrever, pra um trabalho manual. Compõese de auditórios, [...] não possui salas; suas divisórias não chegam ao teto. Não há paredes [...]. Não pode haver sala lá – vão querer fazer salas. O prédio é inteiramente tombado; até mesmo os móveis são tombados. Certamente vão fazer modificações – coisa que nunca foi feita, sempre 3 Destaco, dentre elas, o professor Pedro Luiz, da Escola Superior de Desenho Industrial, responsável pela redação de um texto direcionado à divulgação do abaixo-assinado; e Paulo Cesar Ribeiro, membro do ASPHAN (Associação dos Servidores do IPHAN) ativo em mobilizações relativas ao Palácio. 20 souberam respeitar o projeto."4 No que se refere à destinação do edifício, haveria no suposto conflito entre os “novos” usos e aqueles “originais” o perigo de descaracterização. "O Palácio Gustavo Capanema, por onde passam a história da educação e da cultura brasileira, está sob a ameaça de perder seu caráter de símbolo cultural do país e se transformar em sede do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de 2016.” "(...) sempre esteve ligado à Educação e à Cultura, apesar de algumas ameaças de descaracterizá-lo como agora. (...) Todo o tesouro artístico que ele abriga (...) , [como] bibliotecas, auditórios, salões e jardins ainda correm o risco de não mais servirem ao propósito cultural a que foram destinados." “A preservação do patrimônio artístico e cultural brasileiro é diretamente prejudicada quando se aventa a hipótese de sediar nessa construção histórica trabalhos administrativos de repartições públicas que pouco ou nada têm a ver com a destinação original do projeto. Pode-se, desde já, antever que reformas e alterações funcionais serão realizadas para ‘adequar’ o prédio a outras funções." "É um absurdo esse projeto. Só pensam em futebol, em esporte! Só se fala em futebol, em carnaval, não se fala em cultura (...). Isso aqui é um símbolo. Como podem, eles, chegar e quebrar um símbolo? (...) Entendo que até podem fazer alterações; tenho certeza de que os arquitetos que fizerem a modernização saberão respeitar o edifício (...). Mas o problema (...) é as autoridades públicas não respeitarem a idéia de que o prédio deve ser destinado à função para a qual foi feito (...)."5 Mais do que isso, estariam em jogo questões políticas mais abrangentes, relativas à aprovação de um projeto de lei prevendo a transferência de propriedades detidas pela União às mãos do Estado e do Município: O projeto de lei nº 2929/2008, de autoria do Senador Paulo Duque, por incrível que pareça representante do PMDB do Rio de Janeiro, pretende autorizar a União a doar o Palácio Capanema, antiga sede do Ministério da Educação e Saúde. (...) Essa doação seria feita para o estado do Rio de Janeiro e visaria dar nova utilização ao prédio que serviria, segundo consta, de sede funcional para o Comitê Olímpico Brasileiro na organização dos Jogos Olímpicos de 2016 ou, pior ainda, para abrigar repartições do 4 Trechos extraídos, respectivamente: de depoimento do historiador Milton Teixeira (Agência Brasil, 2010); de texto de autoria do Prof. Pedro Luiz (ESDI), e de seu depoimento concedido pessoalmente em maio do mesmo ano. 5 Os textos citados foram extraídos: de matérias (já indisponíveis) de blogs; do já citado texto do prof. Pedro Luiz; e, finalmente, do depoimento de Paulo Cesar em conversa realizada no Palácio (julho de 2010). 21 Detran-Rio. Diante da possível instalação de setores administrativos do Detran-RJ em seu interior, a luta "em defesa do Capanema" passa a incorporar questões em torno de intenções de especulação sobre propriedades públicas. O Detran não vai funcionar ali, não vai. O MEC foi feito para quando o trabalho burocrático era diferente; não vai funcionar - já não funciona, não é mesmo? (...) O Mec é o bem moderno mais importante do Rio de Janeiro. E o problema está em tratar um bem representativo como esse, como uma mera repartição pública (...). (Pedro Luiz, maio de 2010) A idéia de que intenções de modernização e de legado esconderiam cifras extraordinárias de lucro privado exploradas de cofres públicos atribuiria ao Palácio Capanema novos sentidos a serem por ele mediados. "O problema, a meu ver, é a maneira como estão lidando com este prédio, que é um bem público. As Olimpíadas são apenas um pretexto, um modo de acobertar essas intenções de especular em cima de propriedades públicas (...)."(Idem) “Isso poderia ser considerado um crime de lesa pátria, uma assassinato da Memória Nacional (...). (...)Agora não é simplesmente ‘deixar morrer’ de inanição, sem recursos, sem cuidados, (...) sem proteção, agora é premeditado, é morte anunciada para privatizar, entregar para a burocracia do mundo dos automóveis (símbolo do capitalismo predatório do século XX e início do XXI). (...) Seria bom que deixassem em paz o velho Capanema, com recursos para sua modernização e adaptação para que nas próximas décadas a sua geração e as próximas possam continuar a preservar nosso patrimônio cultural.”(Paulo Cesar, julho de 2010) Na afirmação de que o edifício não comportaria atividades relacionadas à realização do grande evento esportivo na cidade por não estarem previstas em sua destinação original parece estar presente uma determinada concepção de “cultura”, constituída em oposição, antes de mais nada, a idéias de futebol e carnaval. Tomada ao pé da letra, tal associação não encontraria raízes no contexto da construção do edifício, sabendo-se que, por exemplo, o ministro cujo nome este homenageia criaria políticas de incentivo ao esporte como "fundamento da civilidade"6. Como categorias, 6 Registros a este respeito encontram-se disponíveis no arquivo “Gustavo Capanema (GC)”, no 22 tais termos articulariam um posicionamento crítico diante da atenção concedida nos atuais planejamentos urbanos a empreendimentos privados estrangeiros e/ou “predatoriamente capitalistas”. Signos banalizados do país no exterior, futebol e carnaval indicariam este aspecto específico de revolta. Espécie de “estrutura material”, o Palácio Capanema parece articular sentidos específicos neste contexto de iminente realização dos grandes eventos esportivos na cidade. Contidas em seu projeto, as idéias de educação e cultura assumem na relação com este contexto feições específicas. Enquanto ocasião favorável a elaborações discursivas, a situação de “conflito” torna especialmente evidentes as categorias e classificações que organizam uma coletividade. Podemos tomá-la como um momento visível de construção do Palácio Capanema como um “monumento” – compreendendo-o, de início, como construção arquitetônica dotada da qualidade de mediar valores e idéias constitutivos de determinadas subjetividades coletivas7. É interessante perceber como as classificações parecem longe de prescindir dos aspectos materiais e literalmente “concretos” que as organizam, valendo-se, no caso, da referência a uma construção arquitetônica. Mais que um objeto receptor de concepções de cultura, memória e identidade nacional, o Palácio Capanema parece constituí-las. É nesse sentido que se pode atribuir ao mesmo uma capacidade de “agenciar” classificações e relações, e não exatamente refleti-las ou suportá-las materialmente. CPDOC/FGV. Trata-se, é claro, de uma definição bastante abrangente, elaborada com base na leitura de autores como Aloïs Riegl (1987 [1903]) e Brandão (1999). Ela cumpre aqui o papel de um ponto de partida necessário no sentido de entender referências freqüentes ao edifício como um monumento. 7 23 Mas de onde viria essa capacidade? De seu projeto – como espécie de “monumento intencionado”? De sua inscrição como patrimônio – através do antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – , prevenindo qualquer dúvida a respeito de sua relevância à construção da nação8? A idéia de que a classificação de um bem como patrimônio depende apenas de agências interessadas em sua inscrição encontra limites em uma visão mais abrangente da questão. Isso tem a ver com a idéia de ressonância. Gonçalves (2007) faz uso do termo ao destacar como fator fundamental a processos de patrimonialização seu reconhecimento por parte do contexto social a que se refere. Sendo assim, a designação “oficial” de objetos ou práticas culturais como especialmente representativos de identidades coletivas dependeria em grande medida do modo como em tais grupos seriam classificados e experimentados. Trata-se de uma nuance importante à intenção de abordar a categoria “patrimônio” no contexto do debate. Considerar que o Palácio Capanema apresentaria “ressonância” implica ter em mente que a conformação de seu aparente valor monumental passaria por processos de elaboração simbólica em operação à revelia do que prescrevem seus discursos oficiais, o que torna importante identificar e analisar os sentidos “imprevistos” que podem organizá-lo. Nesse sentido, deslocar o foco das narrativas de seu projeto ou tombamento para as elaborações de que se torna alvo em um contexto de relações sociais cotidianas pode compreender um interessante caminho de pesquisa. Partindo dessa perspectiva, vimos que muitos sentidos podem estar implicados no “valor monumental” do Palácio Capanema. Mas estaria com isso esgotada a 8 Vale lembrar que o edifício-sede do MES fora tombado em 1948, poucos anos após sua inauguração. 24 tentativa de compreender o que significa “monumento” neste contexto? 1.1 O “outro lado” do patrimônio A polêmica em torno dos Jogos Olímpicos apresenta certos aspectos que complicam explicações apressadas. Um olhar acurado sobre os argumentos que fundamentam, do ponto de vista das autoridades envolvidas, a escolha do Palácio como “QG” das Olimpíadas de 2016, revela que se trata de um caso mais complexo de uso da categoria patrimônio. Ao contrário do que se possa imaginar, este não se restringe aos grupos contestadores da decisão, que se valem de atributos históricos e artísticos para iluminar contradições presentes no projeto para o Edifício. Tais qualidades, pelo contrário, endossam a escolha. Tal como divulgada na imprensa, a fala de alguns personagens envolvidos no projeto contém elementos que o justificam por uma atitude de “reverência” ao Palácio e, mais precisamente, ao seu caráter de patrimônio nacional. Nas palavras de Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Organizador da Rio 2016: "Achei fantástico. Um edifício que representa a cultura e a arte. Vamos ver quando a gente já se muda" (O DIA, 29/01/2010). Se de um lado seria concebido como “poluente” (Douglas, 2002) ao Palácio Capanema, por “contaminar” de diversas formas o caráter sagrado de um monumento, o mesmo projeto estaria fundamentado em uma leitura diferente, em certa medida inversa: pode-se tomá-lo dentro de expectativas de enobrecimento de atividades talvez pouco populares, materialmente depositadas na proximidade às camadas simbólicas inscritas na obra arquitetônica. Não parece absurdo pensar que estaria em jogo uma 25 tentativa de “purificar” usos “profanos“: afinal – assim se poderia especular – , nada mais eficaz a finalidades de desviar a atenção de ações e planejamentos potencialmente pouco populares que dirigir a ênfase do discurso político que os sustenta a valores como os da educação e cultura. Um elemento importante desta retórica é um termo que se mostra cada vez mais freqüente em discursos relacionados a transformações espaciais urbanas em face da realização dos chamados grandes eventos: a categoria legado: "O ministro dos Esportes, Orlando Silva (...) disse que a reforma do local será um dos legados das Olimpíadas para o Rio de Janeiro" (O GLOBO, 29/01/2010 – grifo meu). 1.2 Um legado para a cidade Ancorada no discurso de profissionais do planejamento urbano que a depreendem de outras experiências (destacando-se dentre elas o caso de Barcelona em 1992), a idéia de “legado” resume a proposta de direcionar a melhorias urbanas a vultosa soma de investimentos gerados pela escolha da cidade sede dos eventos esportivos internacionais. Por este caminho, ao atender à população “beneficiada” por tais medidas (que pode também se ver surpreendida por elas), a realização de notáveis transformações urbanas serviria como materialização do bom uso da verba recebida. Com certa freqüência, essas propostas de melhoramento urbano se concentrariam em espaços discursivamente construídos como vazios e abandonados, cujo potencial de aproveitamento, igualmente elaborado, as tornaria merecedoras de reabilitação. No caso do Rio de Janeiro, as chamadas políticas de “revitalização” – categoria cada vez mais recorrente neste contexto – apresentariam um foco preciso: os 26 arredores do centro da cidade. Diante da saturação de espaços da Zona Sul pressionando o deslocamento da crescente população para a Barra da Tijuca e Zona Oeste, o centro da cidade apresentaria, aos olhos de tais planejadores, um potencial imobiliário considerável. Tais considerações são trabalhadas na tese de doutorado de Roberta Sampaio Guimarães (2011), intitulada A utopia da Pequena África: os espaços do patrimônio na Zona Portaria carioca. Aqui, a autora propõe desestabilizar e aprofundar esta retórica do vazio partindo da experiência etnográfica na Zona Portuária, alvo recente de estratégias de revitalização. Um efeito importante de sua abordagem consiste em ressaltar a contradição presente em tais intenções de planejamento, que desconsiderariam a intensa vitalidade dos vários grupos sociais em circulação naquela área, por eles classificada e constituída em termos de diferentes perspectivas e cosmologias. Conduzindo planejamentos urbanos mais abrangentes, a retórica do “legado” também se faria presente na escolha do Palácio Capanema, considerando que, nas palavras do prefeito Eduardo Paes, ela faria “parte de uma estratégia de valorização do Centro do Rio"(O GLOBO, 02/02/2010). Augusto Ivan, ex-secretário municipal de urbanismo, compreenderia similarmente a escolha em termos de sua contribuição para a descentralização dos Jogos, sabendo-se que favoreceria a dispersão da intensa circulação de pessoas para o Centro (O GLOBO, 30/01/2010). E, para além de expectativas de revitalização urbana, no uso da categoria legado no caso do Capanema estaria subentendida sua “recuperação” O DIA, 29/01/2010): "Essa escolha é mais uma prova de que a preocupação com o legado já começou, porque o Palácio Gustavo Capanema é lindíssimo, um prédio projetado com equipe que incluiu Le Corbusier e que estava ali, ocioso, 27 com pouco uso.(...)" (depoimento de Sérgio Cabral) De maneira semelhante aos espaços vazios da zona portuária, o edifício Gustavo Capanema apresentaria, por tal ponto de vista, um potencial de uso “pouco” aproveitado: a proposta vale-se da postulação de que nele haveria espaços excedentes, ociosos. Ao preencher andares vazios do edifício, as atividades olímpicas permitiriam reverter seu estado de "abandono", “recuperando a vida” de um ícone da arquitetura. No ver dos enunciadores do projeto, não haveria oportunidade melhor para resgatar o edifício de um estado de deterioração de longa data, noticiado na mídia com freqüência perturbadora9. No final das contas, as Olimpíadas forneceriam a verba, até então nunca obtida, para a plena restauração do Palácio. Esta é uma possibilidade enunciada pelo então superintendente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) no Rio de Janeiro. Em entrevista ele afirma: Toda ideia [contida nos planos para o edifício] que pode gerar recursos é boa. Neste momento estamos encomendando projetos na ordem de R$ 1 milhão em restauração, exatamente para poder cumprir o dossiê a ser apresentado à Unesco [...]. (CORREIO DO BRASIL, 07/02/2010) A escolha do Palácio se dá no contexto de sua candidatura a “Patrimônio da Humanidade”. Para tanto, se fariam necessários recursos financeiros até então não obtidos, imprescindíveis à restauração e resolução de problemas característicos de um atual estado de “abandono”, destacando-se dentre eles as freqüentes panes em elevadores e o calor aparentemente não controlado por seu sistema natural de 9 Um dos principais porta-vozes de tais denúncias seria o colunista Ancelmo Góis (O Globo), alertando com freqüência quase semanal (ao menos durante os anos de 2010 e 2011) a respeito do estado do edifício, assolado por uma série de problemas e mesmo apresentando riscos a seus usuários. 28 ventilação cruzada. Em outras palavras, planos de restauração e modernização não diriam respeito somente à realização dos Jogos Olímpicos: seriam parte de uma estratégia ambiciosa de “patrimonialização”. A posição assumida pelo superintendente diante da divulgação das destinações olímpicas do Palácio nunca é plenamente definida, indicando se estaria ou não de acordo. Compreende, de um lado, a possibilidade de tais atividades colidirem com aquelas em curso no edifício e, de outro, de que elas poderiam contribuir para a proteção deste patrimônio, patrocinando sua recuperação. O cenário do debate se complexifica se considerarmos o provável – embora incerto – envolvimento deste personagem, que é autoridade responsável pelo edifício enquanto patrimônio histórico e artístico, em tais elaborações, nas quais os planos “olímpicos” seriam concebidos como prováveis aliados, e não inimigos do monumento. Dentro do mesmo Iphan de onde teria emergido a iniciativa de conformar a oposição ao projeto como debate público10, circulariam argumentos a seu favor11. O que se pode depreender da atenção a este cenário de debate é que não se trata de um caso simples de iconoclasmo, de potencial “descaracterização” de um ícone. A mesma ação em direção a este monumento poderia de um lado representar sua destruição e, de outro, sua salvação. 1.3 Um caso de iconoclash 10 Conforme vim a constatar, o abaixo-assinado teria partido de seu quadro de funcionários. É interessante considerarmos a postura do então superintendente como entusiasta da realização dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, tendo participado ativamente de sua candidatura, ao mesmo tempo que àquela da cidade como “Paisagem Cultural” pela Unesco. 11 29 Formulada por Bruno Latour (2008), a definição de iconoclash abrangeria toda sorte de ações sobre imagens caracterizadas por uma ambigüidade e imprecisão extremas, a ponto de não se saber ao certo se as respeitam e reverenciam, ou se as destroem. Em suma, se seriam elas iconófilas ou iconoclastas. O autor propõe analisar tais situações tendo em vista sua recorrência nos campos da ciência, da arte e da religião, os quais, a seu ver, seriam impregnados de imagens: mediações constitutivas das verdades em questão, orientando seja a crença religiosa, a validade de uma descoberta científica ou o valor estético de uma obra. Trata-se de uma referência interessante à intenção de compreender o caso específico do Palácio, se considerarmos “monumentos” como uma importante fonte de “verdade” em nossas sociedades. Tais idéias permitem romper com uma percepção imediata que classificaria como “iconoclastas” os usos “olímpicos” do monumento e, como “iconófila”, a petição pública contrária a esta iniciativa. Em seu lugar, mostrase pertinente considerar a presença de aspectos iconoclastas em gestos supostamente iconófilos, e vice-versa. Sejam eles contestadores ou defensores dos planos anunciados pelo governo, os argumentos levantados no contexto do debate público partem de apreciações sinceras do monumento. Em outras palavras, trata-se de uma possibilidade de compreender e aprofundar como um mesmo monumento pode ser valorizado em termos de classificações eminentemente antagônicas. O esforço de relativização de tais perspectivas assume assim uma qualidade metodológica, possibilitando a consideração de sentidos diversos constituindo o fenômeno. No entanto, em certos aspectos sua rentabilidade apresentaria limitações: por mais que se procure considerar 30 e compreender os diferentes pontos vista, os argumentos em circulação do debate público evidenciariam a presença de duas lacunas, correspondendo à postulação, de um lado, do Capanema como “vazio” e, de outro, como “abandonado”. 1.4 O Palácio, vazio? Um importante elemento da crítica à apropriação do Capanema como legado da realização dos grandes eventos na cidade se encontra na afirmação de que, ao contrário do que postulam seus formuladores, o edifício não apresentaria espaços ociosos12. Narrativas desenvolvidas em torno do Capanema como um patrimônio apresentam sob este foco um sentido específico: em jogo estariam muitos empregos. Elemento central do texto do abaixo-assinado de Molon, o termo "despejo" assume aqui um sentido específico: a idéia de que, em face de sua indisponibilidade, espaços vazios poderiam ser produzidos no edifício, implicando possíveis demissões ou remanejamentos. Haveria, nesse sentido, “vida” no edifício, não importando se o mesmo se encontre ou não “agonizante”. E, para além das relações sociais estabelecidas em seu interior, estariam em curso por sua mediação classificações simbólicas organizando concepções de cultura e educação. Tal como uma “imagem” – mantendo-se a referência a Latour – , o Palácio seria mais que uma “representação” de tais valores. Nesse sentido, por “despejo da cultura e da educação” também se pode 12 "A possível utilização do Palácio Gustavo Capanema como sede do Comitê Organizador dos Jogos e da Autoridade Pública Olímpica pode esbarrar na falta de espaço [...]."(Correio do Brasil, idem – grifo meu) 31 compreender a ruptura do edifício com sua “função” simbólica de monumento. Descaracterizado na forma e “esvaziado” no conteúdo, já não cumpriria o papel de mediador dos valores nele um dia inscritos. Nada poderia assegurá-lo como “patrimônio”. Esta seria sua “morte” – conforme sugerido em um dos depoimentos. Desprovido de sua qualidade mediadora, o edifício já não seria o mesmo, espécie de corpo sem alma. Apenas de um ponto de vista distanciado seria possível estender sobre o caso em questão a ótica das classificações como um processo dinâmico em que os sentidos das categorias seriam reavaliados em um plano abstrato e sincrônico, no qual seriam processadas em sua relação com um contexto mais amplo de interações de caráter histórico (SAHLINS, 2008). Esta perspectiva tende, como num passe de mágica, a separar o edifício como “estrutura inerte” das camadas simbólicas a ele atribuídas, foco que permitiria estudar, por exemplo, os diferentes sentidos que podem organizar sua classificação com o passar dos anos e dos contextos sociais. No entanto, pode ser que, de um ponto de vista “nativo”, as classificações não sejam nem tão abstratas, nem tão dinâmicas. O edifício do MEC parece ser “a cultura”, “a nação” – e, vale salientar, não ou uma cultura ou nação em constante transformação de significados, mas dotadas de determinados valores semânticos tidos como estáveis. Estabilidade esperada pela classificação de monumento13. Nesse sentido, o esforço de compreender o discurso nativo deve ir além da simples denúncia de suas incongruências, da tentativa de ponderar sobre a multiplicidade de sentidos que podem exibir suas caras concepções. O que parece ser 13 É importante, para os presentes fins, recuperar qualidades físicas como a de durabilidade como constitutiva da classificação dessa construção como monumental (LISSOVSKY ; SÁ, 1996: xxii). 32 relevante observar neste caso é justamente a importância conferida à estabilidade das classificações. E, mais precisamente, ao Edifício como um monumento capaz de assegurar concretamente sentidos tidos como dados e inabaláveis, e de eliminar quaisquer ambigüidades capazes de desestabilizá-los. Isso se torna claro se considerarmos um aspecto importante da evidente ressonância deste edifício como patrimônio: o papel que desempenha no pensamento sobre a identidade nacional, sobre o modo como subjetivamente se experimenta o pertencimento à nação. Assim, por este ponto de vista, falar em MEC talvez signifique falar um pouco do que “somos”. Levando mais a fundo tal interpretação, podemos sugerir que, sendo talvez algo mais do que um símbolo que meramente nos representa, sua destruição pode implicar a “nossa”. 1.5 Reações contra a mão humana O que estaria em questão no ato de “intervir” no edifício seriam “verdades” de fundo, dimensões de sentido construídas, para além de mediadas, pelo monumento como imagem. Com base em Latour, o caráter ambivalente desse gesto – se destrutivo ou não – chamaria atenção à presença da mão humana nesta imagem, que por si só sugeriria suas verdades como igualmente construídas. Daí, conforme explica, as reações emocionadas, de horror e desdém diante da evidência da mão. O “socialmente construído” surge nesse cenário como uma categoria de acusação, conduzindo uma parcela importante da crítica na ciência, religião e arte como fontes de verdade. Nas suas palavras, "Quanto mais se puder ver que a mão humana trabalhou em uma imagem, mais fraca será a pretensão da imagem de 33 oferecer verdade (...)"(LATOUR, 2008). Tornar evidente o caráter socialmente construído de um monumento é algo que poderia soar como uma “ameaça” 14, na medida em que isso implicaria ressaltar o caráter “precário”, porque “construído”, das verdades depositada no Palácio como monumento. Esta idéia nos leva ao que parece ser o princípio da concepção de monumento em questão: a idéia de “autenticidade”. Dela dependeria a qualidade mediadora capaz de fazer de um “edifício” um “monumento“. Quanto mais “autêntico” e imune ao “toque”, ou seja, à aproximação de mãos que intervêm e criam, mais eficaz seu poder de mediar e agenciar determinados valores, percebidos como resistentes e inabaláveis na mesma medida em que as propriedades físicas do imóvel. 1.6 Monumento versus cotidiano A complexidade de sentidos que podem estar implicados no uso do termo “monumento” exige um cuidado maior em sua compreensão, aparentemente não esgotada pela mencionada definição. Torna-se necessário entendê-lo não como um objeto “dado”, mas como uma construção narrativa. Um caminho para investigar “monumento” nesse sentido pode ser encontrado na tentativa de abordá-lo em sua oposição a uma idéia que – conforme sugere a 14 No que se refere a imagens de um ponto de vista mais abrangente, o autor estende a tal ponto de vista um olhar crítico, provavelmente valendo-se da referência a contextos etnográficos em que a presença explícita da mão humana em artefatos religiosos não necessariamente representaria impeditivos à crença nas entidades por eles mediadas (Latour, 2009). Valeria, nesse sentido, remeter a rejeição atribuída ao "socialmente construído" como uma criação ocidental e moderna, e de modo algum um princípio universal. 34 literatura estudada a esse respeito – lhe seria oposta: a noção de “cotidiano”. Conforme sugere Carlos Antônio Leite Brandão, classificar “monumentos” supõe contrastá-los com seu oposto – o cotidiano: Monumento e cotidiano remetem, à primeira instância, às dimensões da eternidade e do dia-a-dia; do que é raro e do que se repete; do que remete à memória, à lembrança, e se destina também ao futuro (como na etimologia de “monumento”) e do que serve ao presente e ao corriqueiro comum (como na etimologia de “cotidiano”). (2006: p.4) Com base em Gonçalves (2007), podemos pensar a oposição entre monumento e cotidiano para além de uma distinção ontológica entre objetos ou construções “dadas”, compreendendo-a em termos relacionais. Em outras palavras, trata-se de pensar “monumento” e “cotidiano” como categorias de pensamento, o que implica examiná-las em termos da relação que estabelecem uma com a outra nos contextos discursivos específicos em que são operadas. Partindo de tal perspectiva, vemos como em Brandão – que sintetiza leituras amplamente compartilhadas a esse respeito na teoria e história da arquitetura – , as categorias “monumento” e “cotidiano” se constituem uma em oposição à outra na classificação e concepção de espaços arquitetônicos. Como constitutiva da noção de “monumento”, sua relação de oposição à de “cotidiano” parece se manifestar, no presente caso das narrativas examinadas, na aversão à “mão”, às relações prosaicas que caracterizam o dia-a-dia das cidades ao redor destes núcleos sagrados e inatingíveis. Em outras palavras, podemos traçar um paralelo entre o “cotidiano” do qual “monumentos” se distinguem e a “mão humana”. No entanto, em certos contextos discursivos tal relação não necessariamente seria conflituosa. Nem sempre a “mão” que intervém em monumentos seria classificada como sua antagonista. Ações de intervenção em monumentos conformam 35 objeto de reflexão teórica de longa data: em livro publicado em 1903, Aloïs Riegl discorre a esse respeito, valendo-se da referência a uma série de situações empíricas envolvendo ações como as de conservação e restauração distinguindo aquelas que seriam mais adequadas às diferentes modalidades de monumento, por ele definidas. Tais reflexões – que, antes de mais nada, podem ser remetidas aos casos extremos de Viollet-le-Duc e Ruskin (CHOAY, 2001) – cederiam espaço ao longo do último século a novas elaborações, desenvolvidas em torno do enfoque sobre a “mão humana” em monumentos, seus aspectos, por assim dizer, “cotidianos”. O lugar de destaque conferido à “mão humana” e a suas ações de intervenção em monumentos nas reflexões teóricas sobre conservação vale ser destacado como um contraponto capaz de iluminar perspectivas que parecem tomar ações cotidianas como contraditórias à idéia de “monumento”. Se em certa medida familiar a determinados contextos discursivos, esta possibilidade, de aproximar “monumento” a “cotidiano”, parece longe de apresentar laços com certas elaborações correntes em torno de um edifício classificado como monumento (tais como as aqui identificadas). Embora antagônicos, os posicionamentos do debate examinados se valem do pressuposto de que, à exceção do contexto de concepção e construção do Capanema, nenhuma ação humana o teria até então abordado como alvo. De um lado, a contestação às novas destinações parece pressupor uma rejeição à proximidade exagerada de “mãos profanas” a um monumento “sagrado”, obra do desígnio de grandes mestres. É como se, por tal perspectiva, o “monumento” jamais tivesse conformado objeto de intervenções cotidianas – ainda que se referissem a sua conservação. Ele seria, assim, uma imagem fiel de seu projeto, tal como construído no início da década de 1940. De outro, a intenção de “restaurar” o edifício parece partir 36 de uma desconfiança similar em relação às mãos que nele estariam intervindo. Afinal, o que explicaria a necessidade de “restaurar” um edifício, senão a idéia de que nele não atuaria qualquer cuidado de manutenção? Resumindo, será que o monumento em questão estaria resguardado da presença da “mão”? Retomemos aquele “segundo” pressuposto problemático compartilhado pelas narrativas examinadas: estaria o Palácio abandonado? 1.7 O Palácio Capanema como construção permanente A idéia de haver em curso ações cotidianas intervindo no edifício parece passar despercebida neste debate – a não ser, como vimos, no que se refere a sua suposta ausência. Pode ser que sua simples possibilidade gere desconforto. É como se o que estivesse em jogo seria o anseio por uma mão inequívoca, cuja ação não deixe dúvidas sobre suas intenções. Afinal, o que estaria em risco neste gesto seria uma qualidade do monumento classificada como essencial à manutenção de suas verdades de fundo: o caráter “original” de sua forma, ou sua “autenticidade”. Sob esta ótica, as narrativas de patrimônio levantadas no contexto do debate não divergem muito do tratamento conferido ao Palácio na literatura a seu respeito, esteja ela vinculada à história ou teoria da arquitetura, ou mesmo a leituras históricas mais amplas, que o considerem como um “marco” de determinados episódios. Não se fala sobre este edifício senão de um ponto de vista retrospectivo, em termos do qual sua existência significativa residiria nas camadas semânticas inscritas em seu projeto e tombamento. O Capanema é construído assim como alvo de valorizações monumentais que se valem de sua apropriação distanciada, seja através de registros 37 literários ou fotográficos, ou mesmo de uma experiência sensível imediata porém igualmente distante, que não se dispõe a vê-lo por dentro das relações sociais das quais faz parte. Diante de situações de iconoclash, Latour propõe a “antropologia de um movimento da mão”, que traz consigo a possibilidade de se investigar o gesto para além de criticá-lo nos termos rasos de uma “retórica do desmascaramento”. Aproximando-a ao caso estudado, esta proposta torna interessante procurar a “mão humana” no “monumento Palácio Capanema”. Mas como levar adiante esta proposta, sem que tal investigação incorra no criticado tom de “denúncia” que costuma caracterizá-la? Um caminho pode ser encontrada no olhar antropológico de Tim Ingold (2000) sobre a arquitetura. Em artigo intitulado Building, Dwelling, Living: how people and animais make themselves home in the world, o autor propõe pensá-la por um viés fenomenológico, “devolvendo” a capacidade humana de projetar ao mundo da qual jamais teria se diferenciado – pressuposto que, característico do pensamento moderno, fundaria a distinção entre os modos como animais e humanos construiriam suas habitações. Um ponto interessante da construção desta argumentação reside na referência à análise de Heidegger do termo “construir”, cuja etimologia remeteria a “cultivar”, “preservar” e, ainda, a “habitar”. Partindo daí, Ingold sugere a adoção da “perspectiva do habitar” (dwelling perspective) em substituição à corrente “perspectiva do construir”, que supõe a “purificação” do termo. O que ela supõe, nas suas palavras, é que: 38 […] the forms people build […] arise within the current of their involved activity, in the specific relational contexts of their practical engagement with their surroundings. […]. In short, people do not import their ideas, plans or mental representations into the world, since that very world […] is the homeland of their thoughts. Only because they already dwell therein can they think the thoughts they do. (2000, p.186) A adoção desta perspectiva permitiria iluminar o projeto arquitetônico como fruto da experiência humana em seu “estar-no-mundo”, e não criação de um sujeito distanciado em relação ao ambiente em que se insere. Isso implicaria localizá-lo dentro de um processo de transformação permanente, que desconhece o princípio ou fim de uma forma. Outra leitura de Heidegger que pode ser aproximada à de Ingold é a de Victor Buchli (2006) que, em artigo intitulado Architecture and Modernism, sugere uma mudança na escala de análise nos estudos de cultura material – “a move away from the elusive artefact, the dwelling per se, to the process of dwelling itself” (BUCHLI, 2006: p.260). Trata-se de um viés que tornaria problemática a noção de projeto: precisamente por constituir parte inseparável do processo de transformação da vida, construções jamais teriam uma “origem”, ou mesmo atingiriam uma “conclusão”. As duas idéias pressuporiam a construção de uma distância em relação ao mundo que as cerca. Por esse motivo, faria mais sentido pensá-las como “construções permanentes”. Permitindo deslocar o foco da “forma” para o “processo”, tal perspectiva representaria a possibilidade metodológica de conformar como objeto de descrição e análise os diversos níveis de agência dessa construção permanente que, correspondentes ao “estar-no-mundo” de seus muitos habitantes, de longe se restringiriam à ação humana. A perspectiva de Ingold a esse respeito propõe, de fato, tornar interessante o envolvimento de “agentes não humanos” na produção 39 permanente de espaços. Inspirado nos escritos do naturalista Jakob Von Uexküll, Ingold propõe estender o uso do termo “umwelt” – que, conforme suas palavras, seria o “mundo tal como constituído de dentro da atividade vital específica de um animal” (p.176 – minha tradução) – a uma compreensão mais ampla do espaço. Se a construir subjaz habitar, as atividades vitais de cada um dos habitantes de um espaço devem ser consideradas como fonte de sua construção permanente. A hipótese de Ingold qualifica, nesse sentido, a proposta baseada em Latour de “fazer a antropologia de um gesto” – ou de, no presente caso, identificar e aprofundar ações cotidianas em monumentos. Isso porque, ao remover do horizonte de análise o foco sobre a “origem” de uma construção, as idéias de Ingold neutralizariam o pressuposto central da referida “crítica rasa”, antes de mais anda organizada em direção à forma, e não ao “construir” como um processo no qual sempre se fará presente alguma “mão”, alguma fonte de agência. 1.8 Cotidiano de um monumento Tomando por base a proposta de Latour e sua qualificação teórica via Ingold, a atenção ao debate público em torno das Olimpíadas e do Palácio Gustavo Capanema fora desenvolvida como um projeto de pesquisa, voltado a investigar a relação entre “monumento” e “cotidiano” por uma abordagem etnográfica. Decidi investigar o cotidiano desse monumento, explorar a sugerida tensão entre essas categorias, através do acompanhamento, por trabalho de campo, das relações constitutivas de sua “construção permanente”. A proposta de descrever etnograficamente o Palácio Capanema surge, assim, como decorrência de questões elaboradas nesse esforço de 40 análise: como é um monumento do ponto de vista de seu cotidiano? Conforme discutido anteriormente, pensar “monumento” e “cotidiano” como categorias – e, como sugere Gonçalves (2007), categorias nativas – implica ter em mente que podem ser elaboradas por sentidos variados e complexos, dependendo do modo como sua relação é concebida no determinado contexto em que é operada. Ao procurá-la “em campo”, no contexto de interações diárias no interior do Palácio, o que proponho fazer é deixar momentaneamente de lado o modo como seria articulada em leituras amplamente compartilhadas a seu respeito – na literatura e nas narrativas veiculadas pela mídia – , em termos das quais parece, como vimos, estar organizada como uma relação de oposição. Ao explorar, por meio de uma abordagem etnográfica, o encontro entre “monumento” e “cotidiano” e, nesse sentido, problematizar a distinção que parece constituir imagens correntes do Palácio, proponho “expandir” a categoria “monumento” – examinar que significados surgem ao explorar, na prática, os limites dessa distinção. Como um ponto de partida para o trabalho de descrição proposto, essa relação de distinção merece ser melhor definida. Para tanto, retomo a referência a Gonçalves (2007), que trabalha a relação entre “monumentalidade e cotidiano” como base para compreender concepções de “patrimônio” vigentes no panorama de elaborações discursivas do Iphan ao longo do século XX – e, mais precisamente, nas posturas de dois de seus principais ideólogos: Rodrigo Melo Franco de Andrade e Aloísio Magalhães. O autor a concebe em termos de duas modalidades discursivas, inspiradas na 41 distinção entre épica e romance trabalhada por Mikhail Bakhtin (1981)15. Constituindo um paralelo da relação entre épica e romance, os discursos “monumental” e “cotidiano” se distinguiriam dentre outros fatores pela oposição entre (respectivamente) passado e presente, e tradição e experiência. Não parece de todo impróprio aproximar a ênfase dada ao passado pelas narrativas “oficiais” em torno do Capanema à modalidade de discurso “monumental”. De outro lado, o “cotidiano” pode ser tomado como uma modalidade discursiva de concepção do Edifício construída a partir da ênfase sobre o presente e a experiência. Nesse sentido, tomo de empréstimo a distinção entre “monumentalidade” e “cotidiano” para distinguir, com fins metodológicos, as narrativas sobre o Palácio do ponto de vista de referências históricas e arquitetônicas e aquelas que o conceberiam com base em sua experiência cotidiana. A distinção serve ao propósito de elucidar o que há de novo na proposta abordagem etnográfica do Palácio: seu dia-a-dia não parece, até o momento, ter sido conformado como fonte para a compreensão deste monumento. 15 Nas palavras de Gonçalves: “Há uma espécie de ‘afinidade eletiva’ entre o gênero ‘patrimônio cultural’ e o gênero ‘romance’. (…) Os ‘patrimônios culturais’ são constituídos concomitantemente à formação dos Estados nacionais, que fazem uso dessas narrativas para construir memórias, tradições e identidade. (...) Assim como no romance, o que está em foco nas narrativas de patrimônio é a experiência de formação de uma determinada subjetividade coletiva, a ‘nação’ enquanto coletividade individualizada e, a exemplo dos indivíduos, dotada de memória, caráter, identidade, etc. De certo modo, as narrativas de patrimônio são romances nacionais” (2007, p.148). 42 Capítulo 2: Das narrativas monumentais aos bastidores do Palácio As questões relativas ao cotidiano do Palácio Gustavo Capanema16, derivadas daqueles primeiros passos da conformação deste objeto de análise, impuseram, por sua vez, a formulação de estratégias metodológicas e perguntas mais específicas a serem aplicadas na pesquisa. Como exatamente conduzir um trabalho de campo tendo como horizonte este objetivo, a saber, o de focalizar aqueles aspectos “não monumentais” de um monumento, que não costumam ser devidamente explorados, ou mesmo citados? Embora possa parecer simples a tarefa de investigar o cotidiano de um edifício público, algumas dificuldades se apresentaram a este trabalho de inserção. O primeiro desafio à conformação do espaço do Palácio como “campo” teria a ver com suas próprias dimensões: dotado de dezesseis andares, o edifício compõe-se de muitos escritórios, relativos às representações regionais dos ministérios ali alocados (MEC e MinC17) – à exceção, familiar a pesquisadores da área do Patrimônio, do caso do Iphan, que ali possui escritório central18. Além dos escritórios localizados no volume vertical do Edifício, haveria também outros espaços de interação cuja rotina poderia ser observada: o auditório Gilberto Freyre, no qual seriam freqüentemente realizadas reuniões sindicais e discursos políticos; a Sala Funarte, espaço para a realização de concertos musicais; o 16 A variação na designação do edifício não parece ser acompanhada de mudanças no sentido a que se referem. MES, MEC ou Capanema são designações que serão utilizadas aqui como “sinônimos”, na medida em que se alternam na fala “nativa” sem grandes diferenças de sentido. Vale, por outro lado, destacar a predominância de sua referência como “Ministério da Educação e Saúde” na literatura arquitetônica. 17 Respectivamente, Ministério da Educação e Ministério da Cultura. 18 Como mais tarde será discutido, este escritório não teria sofrido grandes efeitos da transferência da capital para Brasília. 43 Salão de Exposições, em que são expostas novidades das artes plásticas contemporâneas (promovidas pela Funarte através de concursos semestrais)19; além de, é claro, todo o espaço pavimentado externo que, possibilitado dentre outros fatores pela base de pilotis, constitui uma espécie de área de passagem contígua à rua sobre a qual circula diariamente um indefinido número de pessoas. Vale ainda mencionar a dinâmica configuração social de tais espaços conforme sua organização temporal. Trata-se, por exemplo, de acompanhar a circulação vertical e horizontal de pessoas produzida por programas de visitas guiadas – organizados por agências de turismo, escolas de ensino fundamental e secundário e faculdades de arquitetura. Também nos diferentes momentos do dia, o Palácio se submeteria a públicos diversos: à noite, se converte em área de circulação e repouso de moradores de rua. Em outras palavras, trata-se de um verdadeiro universo de possibilidades de abordar a via cotidiana da experiência do Capanema, constituída de diferentes maneiras conforme a perspectiva de cada um de seus freqüentadores20 – ou habitantes, na definição proposta por Ingold. Diante desse amplo cenário, a necessidade de efetuar um “recorte” mostrou-se, mais do que cômoda, necessária à proposta de realizar trabalho de campo nesse monumento21. Por outro lado, da proposta de acompanhar a “construção permanente” de um monumento pode ser depreendido um caminho viável, passível de ser aproximado à 19 No início de 2011, o salão de exposições estaria preenchido pelas atividades, abertas a visitação pública, de restauração dos murais de Candido Portinari – intituladas pelo nome Ateliê Aberto. 20 No referido momento, a ocupação dos pavimentos seguiria, em linhas gerais, o seguinte quadro: 3°: Divisão de Música e Arquivo Sonoro (FBN); 4°: Biblioteca Euclides da Cunha (FBN); 5°: FUNARTE / Fundação Palmares; 6°: FUNARTE; 7°: IBRAM / IPHAN; 8°: IPHAN (Acervo Noronha Santos); 9°: IPHAN (Coordenação Geral Pesquisa); 10°: IPHAN / ASPHAN; 11°: Fundação Biblioteca Nacional (FBN) / ASBN; 12°: Escritório de Direitos Autorais (FBN); 13°: FUNARTE; 14°, 15° e 16°: REMEC. 21 Tendo em vista os limites, sobretudo temporais, impostos ao desenvolvimento de uma dissertação de Mestrado. 44 chamada abordagem dos estudos de “cultura material”, desenvolvidos com base no foco sobre os aspectos “materiais” constitutivos da vida em sociedade: seus objetos, espaços, construções arquitetônicas (BENNET, 2010; BUCHLI, 2002, 2006 ; MAUSS 1969, 2003 ; MILLER, 1994,1998,2005 ; TILLEY, 2006). Dimensão inseparável da vida social, a materialidade constitui uma possibilidade de abordá-la – procurar por um levaria necessariamente a encontrar o outro22. Esta perspectiva leva a fundo a proposta de perceber classificações culturais e objetos como constitutivos uns dos outros. Um efeito de sua adoção estaria em focalizar os aspectos mais materiais de uma construção arquitetônica como monumento. Isso permitiria levar a fundo, como parte de uma metodologia de pesquisa etnográfica, a percepção do Palácio não como uma construção neutra sobre a qual se depositariam camadas simbólicas, mas como materialmente inseparável das mesmas. Trata-se de uma formulação a princípio familiar, em se tratando de um projeto arquitetônico dotado de todo um programa imagético oficial controlando sentidos a serem por ele transmitidos (LISSOVSKY;SÁ, 1996). No entanto, ela pode apresentar uma contribuição equivalente se considerarmos a qualidade dinâmica dos processos de elaboração simbólica constituindo-o como monumento, os quais poderiam gerar qualidades semânticas imprevistas – que, tal como no caso do debate em torno das Olimpíadas, variam conforme o contexto em que são operadas. O que esta proposição implica de pertinente ao presente objetivo, em suma, é 22 Vale lembrar que, muito antes que o foco sobre os aspectos materiais da cultura fossem recentemente resgatados como produtivos à condução de etnografias, sua contribuição descritiva se faria presente na obra de Marcel Mauss (MAUSS: 2003 [1950]). Considerada por muitos obra prima do autor, o Ensaio sobre a Dádiva condensa uma descrição etnográfica primorosa que se vale do tratamento dado a objetos como agenciadores da vida em sociedade. 45 que os sentidos que constituem o Edifício não se encontram apenas nas elaborações mais “abstratas” a seu respeito, quaisquer que sejam. Eles não estão presentes somente no que é pensado ou dito na literatura, nos jornais, discursos políticos, ou em imagens produzidas via registros fotográficos. Estão também na relação material do Capanema com seus habitantes. Partindo desse ângulo, os procedimentos relativos a sua manutenção se revelam de grande interesse etnográfico (BUCHLI, 2006). Torna-se importante acompanhar as interações materiais com os muitos elementos "monumentais" do edifício. Como se limpam as lâminas dos brises? Que produto é utilizado na fachada envidraçada? Como são mantidos os azulejos de Portinari? E o jardim de Burle Marx? Trata-se de modos de relação com um monumento que a todo momento o constituem, fisicamente – tal como podemos supor, com base em Ingold – e, ao mesmo tempo, simbolicamente. E que, no entanto, raramente seriam considerados, possivelmente por serem identificados com a mão profana, freqüentemente encoberta por um silêncio consentido. De um ponto de vista distanciado, pode parecer simples a tarefa de acompanhar o cotidiano das pessoas envolvidas em atividades como as mencionadas, sabendo-se que se trata de um edifício público. Afinal, como se pode supor, sua entrada é aberta a todos. E, ainda que não o fosse, sua singularidade arquitetônica criaria por si só condições para sua penetrabilidade, uma vez que caracterizada pela presença de grandes pátios externos e elementos que ativariam – ou ao menos simulariam – uma confusão entre estes e os ambientes internos. Ao dar início ao trabalho de campo, percebi que a imersão efetiva não seria 46 tarefa fácil. Embora seja restrita pela presença de seguranças e pela exigência – freqüentemente ignorada, como viria a perceber – do uso de um crachá de identificação, a circulação no edifício é, de fato, aberta. No entanto, imaginei que o fato de freqüentar o edifício como objeto, e não como "lugar" de pesquisa23, poderia em algum momento trazer problemas24. Precisaria entrar em contato com funcionários relacionados à “manutenção” do edifício e, mais do que isso, estabelecer uma rotina de interação com eles. Trata-se, afinal, de uma proposta de trabalho de campo, que implica alguma permanência e uma certa aproximação do dia-a-dia de tais trabalhadores – percepção de pesquisa bastante diferente daquelas que se valem de um contato fugaz com seus pesquisados, por meio seja da aplicação de questionários ou da realização de entrevistas. Tinha como intenção acompanhar as elaborações destas pessoas em seu local de trabalho e, ciente de problemas que poderiam decorrer de minha abordagem a seus empregos – tendo em vista as interrupções ou distrações eventuais por mim ocasionadas – , decidi recorrer ao pessoal da administração para conversar a respeito de meus planos de pesquisa e verificar a possibilidade de realizá-la naquele espaço. Esperava, com isso, obter algo parecido com uma autorização junto aos vigilantes para circular no prédio sem ter de anunciar minha ida à biblioteca ou ao arquivo, ou mesmo me inscrever em programas de visita guiada. 23 Uma parcela importante de seus visitantes dirige-se aos setores de biblioteca e arquivo, destacandose o Arquivo Central do IPHAN. 24 Um deles viria à tona em uma ocasião em que decidi tirar algumas fotos e fui impedida por um agente de segurança. Ele seguiria ordens expressas de impedir registros fotográficos em áreas não contempladas pelo programa de visitas guiadas – nas suas palavras, em lugar de trabalho. Com isso, ponderei se, caso me identificasse como pesquisadora, obteria a permissão de circular pelo edifício como um todo sem ter de prestar a qualquer momento esclarecimentos. 47 2.1 Um lugar e uma informante: a sala da administração A administração funciona em uma sala na sobreloja do edifício, à qual se chega subindo um lance de escadas logo que se adentra uma porta discreta, localizada na parede de azulejos na face norte do edifício, que mira para a rua Araújo Porto Alegre. Logo que se entra, vê-se um balcão de atendimento, à frente de algumas mesas individuais, com funcionários responsáveis por atender ao público. É até ali que me direciono e apresento minhas intenções pesquisa à funcionária que vem ao meu encontro, que por sua vez me solicita o envio de um e-mail contendo uma descrição mais precisa na forma de uma carta à administração. Satisfeita com a aparente abertura, providencio rapidamente o e-mail de modo a agilizar meu processo de inserção. Alguns dias se passam e recebo um telefonema, solicitando que preste esclarecimentos junto ao diretor da administração. Dirijo-me ao edifício, subo até a administração e converso com aquela mesma funcionária que, agora, me encaminha a uma pequena sala localizada à direita de quem entra pela porta principal, espécie de compartimento delimitado por paredes envidraçadas. Ali sou introduzida ao diretor da administração: explico minha pesquisa, ele demonstra interesse e mesmo alguma familiaridade com a área da Antropologia. Faz algumas perguntas, apresento em termos breves minhas intenções. Suas notícias, no entanto, são desanimadoras. Eu não poderia circular livremente pelo edifício. O diretor, que se chama Paulo, explicou-me a respeito da organização do edifício em termos de um condomínio, cuja administração atenderia a um regime de alternância de gestão entre condôminos. Nas suas palavras, sendo ou não patrimônio histórico e artístico, aquele 48 edifício seria um "condomínio como qualquer outro", com suas atribulações e problemas cotidianos, e com suas regras de funcionamento. Informou-me que, naquele momento, a Funarte (Fundação Nacional de Artes, repartição do Ministério da Cultura) estaria no controle da administração. E que aquele período preciso se caracterizaria pela tramitação de processos voltada à transferência de gestão para o Iphan, que em breve assumiria o controle sobre o condomínio. Segundo ele, isso poderia significar alterações na rotina de trabalho dos funcionários ali contratados, já que os contratos regendo sua situação se encontrariam naquele momento instáveis. Seria necessário privar o pessoal de tais informações enquanto não estivessem confirmadas. A administradora, a quem fora dirigida minha carta, teria alertado Paulo a respeito do provável surgimento de mal-entendidos que minha interação com os funcionários poderia favorecer. Demonstrando, no entanto, intenção de ajudar, o diretor sugere um caminho alternativo de inserção: acompanhar, no espaço restrito da administração, a rotina das pessoas que ali trabalham. Aceitei de imediato a proposta, sem imaginar que este talvez teria sido o melhor caminho para desenvolver a pesquisa de campo. 2.2 A “estagiária” de Jupiara Naquela mesma tarde, fui introduzida a Jupiara25, assistente técnicoadministrativa, classificada por Paulo como uma figura central da administração, 25 Optei por não lançar mão de pseudônimos, já que, além de impossível, seria simplesmente inútil escapar de tais nomes. Isso implicaria fazer o mesmo no que diz respeito ao Palácio – que, por conta de uma série de peculiaridades, não poderia simplesmente ser referido como “um” dentre outros “edifícios tombados” ou “monumentos modernos”. Ao longo do texto, irei me referir aos interlocutores abordados por seus primeiros nomes. Optei, por outro lado, por preservar a identidade de alguns deles, que não estariam cientes de sua participação em minha pesquisa. 49 capaz de responder a quaisquer perguntas. Apresentou-a de maneira jocosa, chamando a atenção para a longa experiência da funcionária no edifício: "A Jupiara é uma pessoa ótima pra ajudar você na sua pesquisa. Ela sabe tudo sobre o prédio. Tá aqui há mais tempo que ele! É ou não é, Jupiara?". Jupiara, que tem aproximadamente quarenta anos de idade, concordaria aderindo à brincadeira e se dispondo a me auxiliar no que pretendia conhecer sobre a administração do Capanema. Os dois consentiriam que eu freqüentasse o espaço da administração com liberdade – contudo não mais do que três vezes por semana –, bastando apenas que avisasse um pouco antes de chegar. Contudo, em minhas primeiras tentativas de inserção, percebi que, na ausência de Paulo, as coisas não seriam tão fáceis. Fui dispensada por Jupiara mais de três vezes, até que, não sei se por comiseração ou por impaciência, ela viesse a desenvolver uma mínima simpatia por mim a ponto de me permitir adentrar a sala da administração. Telefonava com antecedência para anunciar minha chegada, e recebia respostas como as seguintes: "Hoje não tem nada pra você ver aqui não, tá tudo parado" ; "não, hoje estou com muito trabalho, não posso te dar assistência"; "ih, melhor você voltar aqui só daqui a umas duas semanas...". Após muitas tentativas de manter o combinado, resolvi finalmente ignorá-lo e aparecer “de surpresa” na administração. Com isso, consegui flagrar Jupiara em momentos de menor atividade, identificando oportunidades para “puxar assunto“. Ela aos poucos se acostumou com minha presença, conforme fui demonstrando interesse em suas atividades rotineiras. Jupiara insinuou esta abertura no dia em que me ofereceu uma cadeira ao seu lado. Do ponto de vista de quem adentra a administração, sua mesa localiza-se no segundo compartimento à direita, diferenciado do de Paulo por uma ampla divisória 50 de vidro, revestida por uma camada adesiva com listras brancas, disfarçando sutilmente os dois ambientes. Há ali, atrás do lugar de Jupiara, duas outras mesas individuais, em que trabalham dois outros funcionários – um fiscal financeiro e um mensageiro (auxiliar operacional), e também uma mesa maior, redonda, na maior parte do tempo desocupada. Na parede principal, revestida por madeira – que seria, como viria a saber, um discreto armário –, uma gravura de Le Corbusier. Os demais funcionários da administração estariam distribuídos em mesas localizadas atrás do balcão da entrada e também ao longo de um corredor estreito, abrangendo todo o fundo da área da sobreloja ocupada por aquela sala. A cadeira ao lado da de Jupiara passaria a ser meu lugar definitivo: poderia sentar-me e acompanhar o que quer que estivesse fazendo. Mais do que isso, ao adquirir um lugar permanente na administração, ganhava também uma identidade e um papel social estáveis: seria apresentada a todos daquele dia em diante como sua “estagiária” e, enquanto tal, minha atuação naquele espaço se concentraria em acompanhar as atividades desempenhadas por ela. Haveria qualquer coisa de promissor na classificação como “estagiária”, que permitiria – assim supus – que eu ali me inserisse como alguém disposto a passivamente apreender conhecimentos transmitidos por uma pessoa experiente – e indicada justamente por este motivo. Tanto minha inserção como a pesquisa em si mesma seriam facilitadas no momento em que aderisse ao papel que me teria sido especificado. A figura do “estagiário” não seria, no entanto, comum naquele contexto, o que em parte explicaria o fato de – assim se foi tornando claro – ninguém saber ao certo o que fazer a respeito de minha presença naquele espaço. De minha parte e, diante da 51 impossibilidade de conduzir a pesquisa da maneira prevista, também não sabia ao certo que perguntas colocar, como direcionar a interação tanto com minha “informante” quanto com os demais funcionários que ali circulavam. Havia antevisto questões a levar àquele espaço como campo de um estudo de cultura material. Como lidar então com aquele cenário de atividades administrativas, com a complicada linguagem da burocracia, regendo e tornando legíveis, de uma maneira que não compreendia, aqueles enigmáticos papéis em circulação, ou mesmo entender algo básico a uma etnografia: quem fazia o quê naquele espaço. Em suma, como tornar aquela experiência inteligível, sabendo-se que seria o meio de acesso viável ao cotidiano do monumento em questão? Valendo-me da circulação livre que a posição de estagiária me garantiria, abri mão de intenções de controlar a pesquisa conforme novas hipóteses e questões, decidindo, em seu lugar, simplesmente confiar na produtividade daquele espaço que me fora aberto e, havendo essa possibilidade, deixar-me guiar pelos caminhos oferecidos pelo próprio campo. Isso implicaria não levar muitas perguntas prontas e manter-me atenta ao que quer que estivesse acontecendo. Como é no dia-a-dia a interação com um edifício “tombado”? – mantendo como horizonte apenas esta questão central, procurei organizar a experiência de inserção na sala da administração. Com isso, a maior parte do material obtido, que a seguir será apresentado, derivou da tentativa de desvendar um quadro mais ou menos regular da rotina daquela interação diária com o edifício, partindo sobretudo da atenção sobre as conversas estabelecidas com Jupiara, assim como entre ela e outros atores daquele espaço – dado que a possibilidade de abordar uma pessoa “experiente” seria de pouca ajuda se o pesquisador não sabe exatamente em que isso pode ser útil. 52 Em suma, foi lançando mão de “peças soltas” oriundas no próprio devir do campo que deduzi um quadro abrangente dos “bastidores” do Palácio Capanema. Por este motivo, considero importante sublinhar a possibilidade de a descrição conter elementos que possam se revelar “equivocados” por quem tiver familiaridade com este aspecto da rotina de um edifício público – sobretudo no que diz respeito ao manuseio de termos do código da burocracia. De toda a forma, espero que não se tome o caráter precário da “objetividade” na pesquisa antropológica simplesmente como falha, na medida em que o pesquisador deve partir das condições que lhe são oferecidas ao ir em campo. Antes de mais nada, vale dedicar algumas considerações a respeito do papel de Jupiara na pesquisa. Não haveria, pelo caminho aberto pelo campo, outra alternativa senão a de nela projetar a figura do “informante privilegiado”, tão freqüente em trabalhos etnográficos quanto problemática. Edward Sapir (1949) chama a atenção para o caráter indissociável do conhecimento produzido em campo em relação às pessoas com que o antropólogo escolhe interagir. Trata-se de problematizar uma dicotomia entre “cultura” e “personalidade” que recusaria o lugar do “indivíduo” na pesquisa antropológica – afinal, a imagem formada pelo pesquisador do contexto social descrito sempre terá como base a perspectiva de seus “nativos”. Muitas questões podem emergir de casos em que o antropólogo conta com um referencial único. Embora ter um informante possa significar algo próximo a uma bênção ao pesquisador que procura estabelecer relações em campo, o que podemos depreender de Sapir é que ele deve estar atento às conseqüências que esta 53 oportunidade pode trazer às impressões que produzirá de sua experiência. Nas suas palavras, “as he changes his informant, his culture necessarily changes” (1949: p. 595). Ter um “informante” poderia significar a incapacidade de apreender diferentes pontos de vista, o que poderia incorrer em uma perda da qualidade da descrição proposta. Este foi um risco que, de toda forma, mostrou-se necessário correr. Afinal, é preciso levar em conta o caráter decisivo da presença de alguns “informantes privilegiados” em contribuições da disciplina: parece difícil imaginar, por exemplo, um Sociedade de Esquina (WHYTE, 2005) sem o papel protagonista de Doc. Ao longo do período de “inserção”, tornou-se clara a centralidade desempenhada por Jupiara nas interações cotidianas em torno das atividades da administração, sabendo-se que, como veremos, atuaria como uma espécie de mediadora na relação entre os usuários do edifício e o controle de suas propriedades “monumentais” via Iphan. Na fala de alguns funcionários, seria classificada – sobretudo por seu longo tempo de experiência na administração – como a única pessoa plenamente capacitada a controlar as atividades do condomínio e discorrer sobre o mesmo, sendo este o motivo por que teria sido encaminhada, antes de qualquer outra pessoa, até ela26. Em algumas ocasiões testemunhei pessoas referindo-se a ela como “memória viva” do condomínio, designação que a celebraria como uma das poucas testemunhas da criação do “Condomínio PGC”, ao final da década de 1990, momento concebido como decisivo na história da administração do Edifício. Aliás, este é um aspecto importante da organização administrativa do Capanema: afinal, o que exatamente 26 À semelhança da maneira como Foote Whyte viria a se referir a Doc, considero mais adequado classificá-la como uma colaboradora da pesquisa. 54 significa? 2.3 O “Condomínio PGC” Conforme ela conta, a formação desta unidade gestora constituiria uma solução bem sucedida a antigos problemas. De acordo com suas palavras, os anos que antecederam esta configuração administrativa se caracterizariam por um estado visível de desordem. "Não havia um contrato único de vigilância, por exemplo. Imagina só, cada andar contratando uma firma diferente. Tinha funcionário de tudo quanto é empresa circulando pelo prédio. Isso representava um grande problema ao pessoal daqui. Prejudicava a segurança de todos nós". Pouco antes de ter sido criado o condomínio, ou seja, a entidade jurídica representando os ocupantes do edifício, havia-se formado a chamada "Associação dos Amigos do Palácio Gustavo Capanema", sociedade do Iphan criada com a finalidade de angariar recursos para a realização de reformas de restauração, em meados dos anos 1990. Tais reformas viriam a ser realizadas entre 1998 e 1999, anos relembrados como fundamentalmente caóticos. Em seu depoimento, Jupiara conta que havia um sem-número de empreiteiras atuando no edifício, não havendo, por outro lado, meios de controlar a circulação de todas essas pessoas. Eram freqüentes as denúncias de desaparecimento de objetos pessoais, e a falta de um serviço de segurança único teria, a seu ver, dificultado soluções estratégias de controle sobre o pessoal da obra. A formalização do condomínio remeteria, assim, a este contexto de reformas. Com isso, cada condômino – repartições do MinC e do MEC (Remec) – se encarregaria de pagar à administração um valor mensal voltado à remuneração de 55 contratos firmados para todo o conjunto de usuários do edifício, visando garantir serviços de interesse comum. Conforme explicou, a taxa mensal corresponderia à metragem ocupada por cada instituição em seu espaço de atuação – variável central na contratação das empresas terceirizadas, tendo em vista que o cálculo do orçamento para tais serviços dependeria da área de atuação (por exemplo) dos vigilantes, do espaço total a ser contemplado por atividades de faxina, dentre outros fatores. Assim, nem sempre os serviços voltados à manutenção do Edifício teriam conformado um corpo coeso como “condomínio”. Anteriormente controlada exclusivamente pelo Iphan – sendo este o contexto em que a “informante“ chega ao edifício – , a administração viria a passar por diferentes “mãos” ao longo das transições entre os condôminos. Outra ruptura teria caracterizado o advento do condomínio: ele parece ter instituído aos que trabalham na administração um determinado regime de classificação temporal, em termos do qual as diferentes gestões assumem a qualidade de unidades de tempo. Nas interações diárias, assuntos de natureza diversa que por vezes requeiram uma referência temporal, relativos por exemplo a um funcionário (e seu tempo de permanência no condomínio) ou a alguma reforma, seriam freqüentemente abordados com base numa percepção da passagem do tempo que não se vale exatamente de medidas objetivas como “meses” ou “anos”27, mas das "administrações" ou gestões por que ele teria passado, ou nas quais se teriam realizado obras. “Isso aconteceu na 27 Embora sejam também utilizadas, tais medidas objetivas não passam por um controle rigoroso. “Outro dia” pode se referir a eventos ocasionados há mais de dez anos; os vinte anos contados por Jupiara no condomínio não significam muita coisa do ponto de vista de quem classifica sua permanência como “anterior ao próprio prédio”. 56 vigência MinC”, ou “quando ainda era Iphan” são expressões que evidenciam este modo peculiar de classificação do tempo naquele espaço. 2.4 As relações na Administração Embora os vinte anos de experiência de Jupiara na administração possam parecer, por uma percepção “objetiva” do tempo, pouca coisa diante dos quase setenta do edifício, eles deteriam um peso significativo no lugar desempenhado por esta pessoa no edifício, atuando no modo como naquele contexto as relações parecem organizadas. Esta questão, relativa aos aspectos sociais da administração do edifício, se revela necessária por conta da importância conferida às posições dos diferentes funcionários neste “campo” enquanto ambiente marcadamente burocratizado. As categorias que organizam tal experiência cotidiana do edifício são regidas por este código, a saber, o da administração pública. Nesse sentido, uma descrição da administração de um edifício deve passar necessariamente por sua estrutura de cargos e funções – e, tendo em vista sua abordagem via etnografia, pelo modo como esta é concebida pelos interlocutores abordados. Seria interessante partir, antes de mais nada, do lugar da referida “informante” em tal quadro de relações “burocratizadas”. Como “terceirizada”, ela se colocaria em tal escala em um patamar “inferior” a funções por ela classificadas como de “maior autoridade” que, predominantemente ocupadas por “servidores públicos” – provenientes de setores dos ministérios que possuem escritórios no edifício – sujeitariam suas atividades a determinadas ordens. Seu contrato de apoio 57 administrativo, por outro lado, se diferenciaria dos demais contratos terceirizados pelo Condomínio PGC, por estar vinculado diretamente à Funarte. Com base nesse esquema, ela se encontraria – conforme pude deduzir de suas explicações – , no que se refere a uma gradação entre os “terceirizados pelo Condomínio” e a “administradora” (ponto mais “elevado” desta hierarquia), em um nível mais ou menos intermediário, imediatamente “inferior” a “fiscais de contrato”. Em termos bastante simplificados, Jupiara deve seguir orientações da direção da administração, articuladas por sua vez às de ordenamento de despesas e, finalmente, à “administradora”28. Tais ordens diriam respeito aos contratos continuados mantidos pelo condomínio com empresas terceirizadas, voltados a garantir os serviços – assim classificados – de “manutenção predial”, “coleta de lixo”, “manutenção de elevadores”, “limpeza e conservação“, “manutenção de jardins”, “ascensoria”, “apoio administrativo”, “manutenção de relógios”, “vigilância”, “telefonia fixa” e “eletricidade”. O papel da “informante” consistiria em, conforme explica, “estar atenta aos prazos dos contratos continuados do condomínio”, de modo a dar início aos procedimentos necessários a sua renovação antes da data de seu encerramento. Habituada há muitos anos ao cumprimento desta tarefa, ela considera imprescindível antecipar em dois ou três meses tais trabalhos, no lugar de se dedicar aos mesmos na época final dos prazos. Isso se explicaria por toda a sorte de imprevistos que poderiam acontecer durante uma licitação: uma empresa insatisfeita poderia “entrar com 28 Considero importante salientar que esta descrição se fundamenta no que pude apreender das interações em campo e, por este motivo, remete menos a um quadro institucional “dado” do que ao modo como nas interações cotidianas de que participei tais posições e relações “formais” seriam concebidas. 58 recurso” para impedir outra de ser contratada; problemas poderiam surgir ao longo do “pregão”, dentre outras coisas. Os prazos dos diferentes contratos mantidos pelo condomínio ficariam expostos em um mural à entrada da administração, no qual Jupiara teria fixado uma tabela contendo a duração de cada um deles. Conforme explica, à exceção da “eletricidade” e, até pouco tempo atrás, “telefonia”, casos de inexibilidade nos quais não haveria mais do que uma empresa fornecendo um serviço, os contratos mantidos pelo condomínio supõem de um modo geral a necessidade de licitação via concorrência pública. O procedimento seria necessário no caso de contratos de serviços fornecidos por mais de uma empresa, permitindo a concorrência entre elas e, deste modo, um tratamento considerado igualitário. 2.5 O “código nativo” Longe de configurar tarefa simples, acompanhar os procedimentos administrativos organizando tais atividades implicaria ter de lidar com a enigmática terminologia da administração pública. Durante todo o tempo em que freqüentei a administração – aproximadamente cinco meses –, não cheguei a desenvolver, para a frustração de Jupiara, que depositava em mim expectativas de, tal como uma “estagiária", apreender o que transmitia, a necessária familiaridade com aquela linguagem. De toda a forma, apresento em linhas gerais o que pude captar de tal rotina. Demonstrando controlar as exigências jurídicas envolvidas na abertura de tais licitações, Jupiara explicaria que, dentre outras medidas, as empresas interessadas em 59 se candidatar devem apresentar registro no SICAF29, certificando que sua documentação se encontre em dia. Examinando o prazo dos contratos continuados, percebi que não teria a oportunidade de vivenciar mais do que um destes processos de licitação por inteiro, tendo em mente o tempo provável de minha permanência na sala de administração. Tive, no entanto, a oportunidade de acompanhar, desde a abertura até a conclusão, todo o processo de licitação do contrato de manutenção dos elevadores. Faria parte deste acompanhamento testemunhar a realização da visita técnica por parte de representantes de firmas de engenharia interessadas na licitação. Na ocasião, conheci as chamadas casas de máquinas onde se encontram os motores e geradores dos velhos elevadores do edifício, remissivos aos anos 1940. Acionados, conforme me explicaram os engenheiros e mecânicos ali presentes, por um sistema de corrente contínua por eles percebido quase como uma raridade, tais motores funcionariam – talvez não mais do que literalmente – a pleno vapor: aquele espaço se caracterizaria por um calor intenso, emanado pelos geradores e faíscas que a todo momento seriam emitidas, acompanhadas de estalos, pelos chamados quadros de comando e de relés. Hoje em dia – conforme disseram – os elevadores seriam predominantemente acionados por quadros de comando eletrônicos, cedendo cada vez mais lugar a quadros ainda mais sofisticados, digitais. O sistema de corrente contínua, que depende da utilização de geradores provendo corrente alternada, explicaria em parte o barulho insuportável e a temperatura excessivamente alta da “casa de máquinas”. Alguns aspectos administrativos envolvidos neste processo incluiriam a 29 Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores. Acesso: www.comprasnet.gov.br . 60 referida verificação da adequação das empresas concorrentes; o pregão, momento posterior à visita técnica, em que é realizada uma disputa online em que as empresas exibem o valor de seus respectivos orçamentos30; e, finalmente, a contratação da vencedora da licitação e publicação do resultado no Diário Oficial. Contratos de rubrica superior a um determinado valor demandariam, conforme explica Jupiara, uma medida adicional: a publicação do resultado em jornais de circulação nacional. 2.6 Memórias da administração Para além do caso da contratação do serviço de manutenção dos elevadores, o que soube a esse respeito de tais procedimentos derivou da narração de experiências passadas, vez ou outra levantadas no diálogo entre Jupiara e seus "colegas" mais próximos contratados pelo condomínio, como o fiscal financeiro Cristiano e o auxiliar operacional, Tiago. Certa vez contaram, por exemplo, a respeito do contrato de “manutenção de relógios”. Há, distribuídos por todos os pavimentos do edifício, nas paredes próximas aos elevadores sociais e às áreas de serviço, trinta grandes relógios analógicos da marca "Inducta", que remeteriam aos anos 40. São classificados, na terminologia “nativa” – contratual e corrente na fala cotidiana – como os relógios escravos, obedientes ao comando de um único relógio mestre, aparelho à base de bateria interna localizado na sala da administração. Qualquer ajuste no funcionamento de tais relógios seriam restritos a profissionais habilitados, mecânicos da empresa contratada pelo condomínio. O contrato, tal como previsto pelo edital lançado pelo condomínio, 30 Embora haja outras modalidades, em geral tais concorrências públicas seriam classificadas por “menor preço”. 61 preveria, além da disponibilização deste serviço, o fornecimento de peças, atualmente raras, tendo em vista a longevidade dos aparelhos. Os interlocutores narraram certa vez um caso de licitação em que, durante a vistoria técnica, uma peça do relógio mestre teria sido roubada. O desaparecimento fora noticiado pelo mecânico do contrato que ainda se encontrava em vigor, que compreendeu o ocorrido como parte de planos de encarecer o orçamento do serviço a ser prestado pela licitante. Seria necessário impedir a firma de participar da concorrência, mas nada poderiam fazer a respeito. A solução emergiu de uma atenção cuidadosa à documentação da empresa, que apresentaria um pequeno deslize que, se passado despercebido no momento de sua inscrição, agora seria grande o suficiente para atestar sua irregularidade. À semelhança deste, outros casos envolvendo processos de licitação passados seriam “rememorados” em contextos marcados pela proximidade do encerramento de um prazo contratual, momento especialmente produtivo para a elaboração discursiva destes atores, no qual levantam expectativas e ponderações em torno de que empresa obterá a contratação. Como viria a constatar, à exceção de momentos de conversas de caráter pessoal, a interação neste espaço se caracterizaria predominantemente por trocas fugazes de informações objetivas, sendo raras ocasiões como esta, em que discutiriam, com algum distanciamento, a respeito do próprio trabalho. Neste momento favorável, assim, a trocas discursivas a respeito das atividades em curso na administração, os funcionários – sobretudo aqueles que possuem algum tempo de “casa” – compartilhariam suas opiniões acerca das empresas licitantes que, conforme afirmam, seriam praticamente as mesmas a retirarem o edital e participar da concorrência com o passar dos anos. Impossibilitados de controlar tal processo, 62 rigidamente regulado31, – a não ser por pequenas manobras produzidas dentro da legalidade, como no narrado caso dos relógios, ao qual eles atribuiriam qualquer coisa de “providencial” – , o que fazem é tentar adivinhar que firma ganhará a licitação, ou ao menos torcer por uma de suas referências confiáveis. Muito além de uma obrigação, em certas ocasiões a obediência às regras revelou-se como uma questão de honra a Jupiara. Não raro o peso de denúncias divulgadas pela imprensa em torno do Palácio recairia, segundo ela, sobre os funcionários da administração. Nesse contexto, embora apresentada como estagiária, senti aos poucos, conforme meu lugar de “pesquisadora” ia aos poucos, e com muita dificuldade, sendo incorporado, ser projetada em minha pesquisa expectativas de “trazer a público” a verdade a respeito do edifício: de que, ao contrário do que muitos pensam e dizem, haveria ali pessoas plenamente competentes procurando fazer o que precisa ser feito. Devo ao zelo detido por Jupiara ao “princípio de transparência” regendo a administração pública seu interesse em minha pesquisa e sua disponibilidade em me integrar naquele espaço. Levou algum tempo para que eu enfim percebesse que minha inserção em campo teria sido viabilizada, assim, pelo seu encaixe contingencial como parte da lógica que organiza as classificações daquela informante, que parece ter me acolhido como elemento conveniente precisamente por ser “de fora”. Não havendo a possibilidade de acompanhar mais de uma vez tais procedimentos administrativos por inteiro, a atenção a conversas e elaborações narrativas desencadeadas pela abertura da referida licitação serviu como uma maneira 31 Dentre outras medidas de segurança, a identidade das empresas participantes é mantida em sigilo até que saia o resultado do pregão. 63 de delinear um quadro mais ou menos preciso de como funcionam. Por sua vez, no que diz respeito a uma aproximação às atividades regidas pelos contratos em questão, lancei mão de uma abordagem semelhante. Havendo, como se sabe, limites ao acompanhamento direto e assíduo da rotina das pessoas envolvidas em tais serviços terceirizados, foi com base na atenção tanto aos contratos a que tive acesso, quanto às explicações de Jupiara e a seus diálogos com outros funcionários da administração, que delineei um quadro de como seria, pela lente de tais pessoas, este lado da rotina do edifício mais próximo à sua “materialidade”. 2.7 A rotina de serviços do Condomínio A presença visível da bandeira nacional é requisito indispensável do edifício público, sede de atividades ministeriais e, portanto, representativo da nação brasileira. É em direção ao mastro, localizado na ala sul do conjunto, que todos os dias um dos seguranças se dirige, seja para hastear a bandeira, às oito horas da manhã, ou para removê-la, às seis da tarde. Conforme certa vez contou Jupiara, esse processo deve ser executado dentro da norma: “Você acredita que outro dia o camarada (...) da segurança pegou de qualquer jeito a bandeira e jogou assim” – fez o gesto de jogá-la por cima dos ombros. “Não é que passou um oficial do exército por aqui naquele dia, (...) aqui passa muita gente do exército, é caminho deles (...), e chamou a atenção dele? Veio reclamar com a gente! Não pode isso não, isso é um lugar de representação nacional, coisa muito séria! Não pode dormir no ponto!” Jupiara demonstrou a maneira correta de manusear a bandeira, simulando envolvê-la cuidadosamente sobre os antebraços, estendidos. Também explicou detalhes a esse respeito, tal como o cumprimento da “meia-haste”, em caso de luto 64 nacional, e da ordem segundo a qual a bandeira deve ficar hasteada no caso da presença de autoridade nacional no interior do prédio – tal como um ministro, conforme vez por outra aconteceria. O hasteio e a retirada da bandeira seriam, assim, os ritos demarcando o início e o término oficiais das atividades do edifício. A realização dos demais procedimentos previstos pelos contratos continuados se distribuiria ao longo deste período, à exceção de alguns que também seriam regularmente caracterizados por uma demarcação temporal. Há, por exemplo, um procedimento que costuma ser executado em torno desta hora da manhã: valendo-se de galões de cloro e bastante água provida por mangueiras, serventes do contrato de “limpeza” tratam de áreas do piso externo, sobretudo aquelas sobre as quais se erguem os famosos pilotis, que todos os dias amanheceriam tomadas por urina – registro da “freqüência noturna” do Capanema, como certa vez me contaram. É a tais mãos, invisíveis a discursos “monumentalizantes” do edifício – e com certa margem de manobra também a mim como pesquisadora – que seria submetida, por meio de produtos “anti-embaçantes”, a parcela interna dos vidros da fachada envidraçada, tão retratada na literatura e nas fotografias do grande feito arquitetônico. Por sua vez, um equipamento robotizado permitiria estender o procedimento ao lado externo de tais vidros, restringindo-se, no entanto, a andares baixos. A limpeza completa do pan-de-verre seria menos freqüente, não tendo ocorrido mais de uma vez segundo o relato da colaboradora. Para tanto, teria sido contratado um serviço adicional, envolvendo por exemplo um corpo de funcionários especializados em rapel e complexos equipamentos. 65 Uma longa lista especificando os materiais e produtos a serem utilizados nos procedimentos diários de limpeza é estipulada pelos termos do contrato, que abrangeria como área total a soma da área externa pavimentada, áreas internas, área envidraçada externa e esquadrias externas. Haveria procedimentos específicos para cada tipo de piso: por exemplo, no caso das áreas internas, em pisos de mármore, cerâmica, marmorite, granito, ou então encarpetados ou emborrachados. Ceras de diferentes cores – amarela, vermelha, preta – seriam empregadas em cada um deles. A “limpeza e conservação” teria em certos casos freqüência diária e, em outros, quinzenal, trimestral e semestral32. Por sua vez, A limpeza das janelas feita internamente acrescentaria, conforme explicou Jupiara, periculosidade ao salário dos serventes. Destaco a seguir um trecho de meu diário de campo em que ela discorre sobre a limpeza dos brises: E – pergunto – os brises? Ao que ela responde: “é, eles seriam espanados, algo assim. Mas ninguém nunca limpa não. Sabe o que é? Eles mal giram. Estão oxidados! Tem gente que às vezes quer mexer, pra regular a luz, a sombra.. é um esforço desgraçado, de tão pesado.. e é perigoso! Vai que ele solta e cai lá embaixo... deve ter uma tonelada!” A limpeza também incluiria caixas d’água e cisternas – estas com capacidade para sessenta mil litros, estando uma delas (seriam duas) naquele momento desativada. E, além disso, a remoção diária de lixo, em que os faxineiros regidos pelo 32 Extraio de meu diário alguns destes procedimentos: “varrer, passar pano úmido, encerar pisos de mármore, cerâmica, marmorite, granito; varrer, passar pano úmido e lustrar pisos emborrachados; varrer escadas; limpar corrimões; aspirar carpetes; remover com pano macio e seco o pó dos móveis envernizados, lustrá-los com produto especificado; remover sujeira dos cinzeiros; recolher copos descartáveis; efetuar a limpeza dos elevadores, com produto apropriado; efetuar remoção de lixo; limpar luminárias; limpar de maçanetas e trincos; higienização e desinfetização dos banheiros; higienização e desinfetização das copas.” Quanto aos produtos e materiais utilizados, aparecem listados, dentre outros: rodos (de dois tamanhos diferentes), aspiradores de pó, aspiradores de água motorizados, enceradeiras; (quantidade especificada de) panos de chão, flanelas, vassouras de piaçava comuns, vassouras de piaçava “estilo gari”, vassouras de pêlo, pás; desinfetantes, detergentes, ácido muriático, álcool, cloro, sabão de coco; sacos de lixo de 2 litros, embalagens de spray “normal” e “de bico”; material para os banheiros (sabonete em barra, sabonete líquido, papel higiênico, refil para papel). 66 mesmo contrato removeriam, de andar em andar e com o auxílio de grandes sacolas plásticas, o material feito predominantemente de papéis nas áreas “sociais”, e de resíduos orgânicos nas áreas de “serviço”; lixo que é logo encaminhado a contêineres localizados próximos à rua, aguardando, por sua vez, serem esvaziados pela companhia de limpeza urbana encarregada de direcioná-los a local apropriado. Os serviços de manutenção predial, dos elevadores e dos relógios correspondem, por sua vez, a aspectos “menos rotineiros”: não é sempre que se faz necessário convocar os técnicos de tais contratos. Eles dizem respeito a possíveis falhas no funcionamento esperado dos circuitos elétricos e sistemas hidráulicos do prédio, dos seis elevadores (um privativo, três sociais, e mais dois de serviço) e dos relógios (mestres e escravos). No caso específico dos elevadores, o contrato contempla tanto a manutenção “preventiva” quanto a “corretiva”, estabelecendo a presença de um mecânico residente, a ser convocado no caso de alguma emergência. Também teriam lugar no edifício funcionários “de plantão” da “manutenção predial”. O acionamento de todos esses profissionais seria de responsabilidade da administração, à qual recorreriam funcionários de todo o prédio que se depararem com tais problemas. Acompanhei esta rotina “estável”, embora feita de imprevistos, pelas lentes da administração e, mais precisamente, das atividades de Jupiara. Conforme descrevo em meu diário, uma parcela significante de sua atuação estaria relacionada ao seu lugar de mediadora em tais situações imprevistas. Longe de se deter unicamente aos contratos, ela também atenderia aos chamados por telefone e providenciaria a resolução dos problemas vivenciados nos dezesseis andares dos ministérios. 67 Relatos sobre tais questões emergenciais viriam à tona nas conversas desenroladas no ambiente da administração. Certa vez, por exemplo, Jupiara conduziu-me a um compartimento, localizado no caminho que leva até a copa, de modo a falar sobre a “reforma dos azulejos”. Naquele espaço, seriam armazenadas diversas peças de reposição, destinadas ao trabalho de manutenção predial: materiais para instalações elétricas, tubos de pvc, lâmpadas, enfim, uma grande variedade de peças dispostas para eventuais reparos. Ao fundo, uma imensa estante formada por inúmeras gavetinhas vazadas contendo, segundo os diferentes padrões produzidos, azulejos de reposição. Mas a referida reforma não diria respeito aos azulejos, e sim à parede localizada atrás da estante, que teria sido atingida por um vazamento. Dirigindo-se às gavetas, narrou como cada uma delas teria sido removida para a realização da reforma, e posicionada de volta. Vista de frente (Imagem 1.1), sem que se considere a pilha de exemplares por trás de cada peça, a estante pode ser tida como uma espécie de “variante cotidiana” dos famosos murais azulejados de Candido Portinari, distribuídos pelo térreo do edifício. As peças de reposição remeteriam à elaboração do edifício, prevendo desde já os futuros danos que viriam atingir os azulejos. Variações na temperatura do ambiente, causando movimentos de retração e expansão, seriam uma de suas principais causas, explicando a escolha do local de armazenamento, especificado pelo Iphan – e, conforme ela conta, no projeto: próximo ao aparelho central de ar condicionado, de modo a conservá-las na temperatura considerada ideal. Cuidados cotidianos com a “manutenção” do Palácio atingiriam outros 68 aspectos de seu revestimento. No interior do edifício, uma parte importante de seu mobiliário seria composta por madeira, mais especificamente, sucupira. Ela revestiria as amplas divisórias presentes em quase todos os pavimentos – substituindo paredes, por conta do princípio da planta livre – , assim como as portas dos elevadores e paredes que as envolvem. Isso sem falar em móveis como mesas, cadeiras, balcões, estantes... Cupins seriam alvo de iniciativas regulares de dedetização do prédio, constituindo uma ameaça sempre presente. A sala da administração é preenchida por móveis de madeira remissivos aos anos de 1940, alguns deles há muito constitutivos daquele espaço – tais como um escaninho e alguns armários – , e outros que ali estariam por terem sido “rejeitados” de escritórios do MEC e do MinC. Trata-se de mesas e outros objetos “históricos” – como cinzeiros – que teriam sido trazidos àquele ambiente uma vez retirados da reserva técnica, local onde freqüentemente seriam depositados elementos da mobília em desuso e que, por serem patrimoniados (registrados oficialmente como de propriedade daqueles ministérios), não poderiam ser descartados. Jupiara certa vez indicou tais móveis – sua própria mesa de trabalho seria um deles – comparando-os com outros ali presentes, relativamente novos e feitos de compensado: aqueles seriam feitos de madeira maciça e, conforme procurou demonstrar, dificilmente transportáveis por conta de seu peso. Para além dos cupins, outros insetos seriam alvo freqüente de dedetização. Seriam freqüentes as reclamações de usuários do edifício no que diz respeito à circulação de baratas, fato ao qual alguns deles (ao menos da administração) já estariam acostumados. No contexto de minha inserção, o incômodo diria respeito a formigas doceiras. 69 O esforço de limpar e remover do ambiente do edifício a ação ameaçadora de espécies de natureza diversa não se concentraria, no entanto, apenas nas atividades regidas por aquele contrato de limpeza e asseio: iniciativa semelhante se faz presente nas práticas de jardinagem. No que diz respeito ao contrato de “manutenção de jardins”, estariam previstas as técnicas e materiais no tratamento dos vários espaços ajardinados do edifício, que compõem seu projeto paisagístico, de autoria de Burle Marx. Distribuídos não apenas pelo térreo, mas também ao longo das coberturas dos volumes do edifício, compondo os “terraços-jardim” do andar do gabinete (localizado no volume do “salão de exposições”) e do décimo sexto andar, eles especificariam a freqüência das regas e procedimentos como os de remoção de folhas e caules secos, além daquelas espécies de origem adversa consideradas “perniciosas” (vulgarmente conhecidas como “mato”), prescrevendo ao mesmo tempo diretrizes acerca de eventuais necessidades de plantio e substituição de mudas. 2.8 A diária construção da inércia Cada um dos procedimentos envolvidos na manutenção diária do edifício supõem, como se vê, um esforço constante e interminável de controle sobre os elementos que a cada dia colocariam em questão a “inércia” da obra arquitetônica, indicando sua indiferenciação a um processo de transformação permanente do qual, enquanto construção humana e moderna, ele estaria supostamente imune. Em suas janelas, brises, colunas, assoalhos, divisórias, escadas, móveis, jardins, elevadores, azulejos, esculturas, o Capanema é diariamente varrido, espanado, 70 esfregado, encerado, lustrado, regado, plantado, desinfetado, dedetizado, enfim, “purificado” – e este parece ser o termo que melhor sintetiza todos esses procedimentos, voltados a construí-lo diariamente em sua “forma pura”, devolvê-lo a um “estado de origem” no qual se manteria intacto ao contato com cada um daqueles fatores que, intencionalmente ou não, nele intervém em seu processo de estar-nomundo. Dia após dia, hora após hora, se faz necessário remover cada indício da vida destes “agentes” múltiplos, na impossibilidade de controlá-los. A poeira que se sedimenta sobre suas superfícies, partículas residuais que não seriam outra coisa que os rastros da vida intensa ao redor e no interior do Palácio; resíduos orgânicos nos banheiros e copas que raramente chegam a se tornar visíveis, habitat de microorganismos diversos; o “mato” feito de espécies vegetais imprevistas e malquistas, oriundo de sementes transportadas pelo vento, pássaros e insetos atravessando cotidianamente os jardins; as muitas substâncias e combinações químicas provocando o desgaste de materiais “duráveis”. Pessoas, automóveis, baratas, cupins, plantas; o sol, a chuva, alterações na temperatura. Cada um destes procedimentos possuem como horizonte uma imagem estática e em certa medida transcendental do Palácio, um estado de origem ao qual se faz imperativo recorrer, dia após dia. Nesta imagem, não há indícios de atividade ou transformação: não há vida. Há, sim, plantas, pessoas e materiais – conquanto que estáveis e encerrados, sem que deixem rastros. Em artigo intitulado Materials against Materiality, Tim Ingold (2011) propõe que objetos materiais, assim como construções arquitetônicas, sejam descritos como materiais inseparáveis de processos de transformação. A perspectiva do autor contesta 71 o uso da noção de materialidade em curso nos (já referidos) estudos de cultura material, que a seu ver apenas dirigiria a atenção sobre objetos enquanto formas “encerradas” em relação aos materiais que as compõem. Ter em mente a vida dos materiais constitutivos de objetos, que segue após sua suposta conclusão como um “produto” distanciado do meio a que pertence, torna-se um caminho inevitável a descrições etnográficas. A esse respeito, vale ainda citar a desconfiança do autor em relação à idéia de agência de objetos – afinal, sugerir que a determinados objetos seriam atribuídas qualidades vitais exige, antes de mais nada, que se conceba todos eles como “inertes”. Destaco, a seguir, um trecho do autor: In reality, of course, the materials are still there and continue to mingle and react as they had always done, forever threatening the things they comprise with dissolution or even "dematerialisation". [...] Experienced as degradation, corrosion or wear and tear, however, these changes – that objects undergo after they are "finished" – are typically attributed to the phase of use rather than manufacture. As the underbelly of things, materials may lie low but are never entirely subdued. Despite the best efforts of curators and conservationists, no object lasts forever. Materials always and inevitably win out over materiality in the long term. (2011:pp.26-27) Em suma, “manter” o Palácio não parece ser outra coisa que “construir” diariamente sua inércia, por um esforço árduo e incessante – e sempre condenado à frustração – de remover os vestígios da transformação que a cada dia se impõe, e que persegue como resultado a aparente estabilidade do monumento. 72 Capítulo 3: Instâncias da administração O “controle” sobre o edifício não se restringe, no entanto, à gestão destes contratos do condomínio, os quais, conforme sugere Paulo, diriam respeito a um “edifício como qualquer outro”. Até agora, vimos que, ao menos através da “lente” da administração, as atividades de “terceirizados” das várias empresas de manutenção contratadas pelo condomínio seguiriam as diretrizes previstas em cada um dos referidos contratos. Caberia a funcionários da administração como Jupiara e os vários “fiscais” do condomínio controlar o exercício de tais atividades, seja nos termos dos procedimentos administrativos regendo os referidos contratos, ou por meio do contato direto com esses funcionários – como quando, por exemplo, se faz necessário acionálos por conta de uma emergência. O trabalho na administração se caracteriza, assim, pela atenção a “papéis” regendo os serviços contratados pelo condomínio, dispondo de forma rigorosa as técnicas e materiais a serem empregados em sua execução diária. Longe, no entanto, de constituírem elementos “dados” aos quais basta obedecer, eles possuem uma origem específica, procedendo da ação de certas pessoas. É nesse ponto que nos aproximamos de uma face decisiva da administração do Capanema: o Iphan. Com isso, adentramos um quadro mais abrangente da gestão do edifício, no qual se fazem evidentes suas propriedades específicas de patrimônio, presentes mesmo naqueles aspectos da rotina de sua administração que poderiam ser tomados como “comuns a qualquer edifício”. Na Superintendência Regional do Iphan (6ª. SR), localizada não no Palácio, mas na Avenida Rio Branco, seriam elaboradas as 73 diretrizes relativas ao tratamento concedido ao edifício previsto naqueles contratos, que incide, por exemplo, no tipo de material a ser empregado em atividades de limpeza, ou nas espécies vegetais de reposição dos jardins. Acima das vontades e intenções dos funcionários e servidores constitutivos da administração como “condomínio Funarte” estariam as deliberações do Iphan. Esta consideração amplia aquele quadro hierárquico das funções do condomínio, permitindo identificar no lugar do “administrador” responsável pelo controle sobre a manutenção do edifício sua sujeição ao modo como o Instituto do Patrimônio prevê que esta seja gerida. Formalizadas como dados contratuais nos termos da linguagem da administração pública, tais regras atingiriam o ambiente da administração, impondo serem lidas e decifradas pelo corpo de funcionários do condomínio, e devidamente estabelecidas aos serviços terceirizados, encarregados por sua vez de materializá-las. Lidando com este aspecto “encerrado” e “estável” das formulações em curso na 6a. SR, a administração do edifício não teria, ao menos neste quadro “formal”, uma qualidade ativa em sua elaboração, restringindo-se a viabilizar a comunicação entre esses pólos. 3.1 “Papéis” mediadores Os “papéis” atuariam neste quadro como “mediadores” por excelência da “manutenção” do edifício, transmitindo os termos em que sua inércia deve ser construída. Operando a conversão em assinaturas, carimbos e chancelas das muitas pessoas por trás das instâncias administrativas envolvidas, eles produziriam a 74 comunicação e, ao mesmo tempo, a separação entre os “pólos” “Iphan” e “serviços terceirizados do condomínio”. Uma perspectiva interessante pode ser produzida pelo foco sobre tais “papéis” como sujeitos, e não objetos, das interações e classificações em questão. Diante de sua intensa circulação como algo característico do ambiente da sala da administração, um observador de fora bem poderia ponderar se não seriam, de fato, os papéis que circulam as pessoas, que as colocam em contato, agenciam suas relações33. Tal ponto de vista permite revelá-los como elementos constitutivos de uma determinada configuração hierarquizante da administração: embora o que se encontre em relação sejam pessoas, os papéis produziriam a percepção de algumas delas como “instâncias”, umas mais, outras menos, “transcendentes” em relação a um plano “cotidiano”, em que se pode contatá-las sem intermediários. A quantidade de mediações produziria este efeito de proximidade e distância: quanto maior, mais importante se mostra o domínio do código “burocrático” que as articula, e que não é acessado por todos os envolvidos em tais relações. Por sua vez, no discurso nativo a “distância” e a “proximidade” assumiriam respectivamente as qualidades respectivas de “mais alto” ou “superior” e “mais baixo” ou “inferior”. Isso tem certa correlação com a disposição espacial das referidas atividades. As funções consideradas mais “elevadas” no modo como na administração sua configuração seria concebida não estariam localizadas naquela sala da sobreloja, mas sim ao longo dos pavimentos ocupados pela Funarte. Ao se referir à “ordenadora de despesas” ou à “administradora”, com freqüência os funcionários desta sala apontariam “para cima”. 33 A hipótese possui origem nas reflexões de Roy Wagner (2011). 75 Por sua vez, a distância espacial, geográfica, do escritório regional do Iphan seria comunicada por gesto semelhante, acrescentando-se ao mesmo uma leve angulação. E, por outro lado, embora no dia-a-dia circulem por todas as áreas do edifício, os funcionários de serviços como os de limpeza, por exemplo, seriam referidos por este código gestual localizando-se “abaixo”, no plano térreo, ou num “mesmo plano”, apontando-se para os lados. É interessante pensar que os papéis talvez não responderiam a tal distância espacial e objetiva, criando, antes, uma distância experimentada subjetivamente, comunicada, por sua vez, pela referência espacial. Em outras palavras, mais do que meros intermediários facilitando a relação entre instâncias consideradas inacessíveis e mesmo distantes umas em relação às outras, eles – como veremos – as criariam, desde sempre hierarquizando-as e separando-as. Como efeito, tem-se que as intervenções – presentes em esforços de manutenção – do Iphan no edifício passariam por muitas intermediações, supondo, por sua vez, o domínio de uma linguagem técnica e administrativa que seria restrito a apenas uma parcela dos envolvidos neste quadro hierárquico. Isso impede, por exemplo, o contato “direto” entre funções tidas como especialmente “elevadas”, dotadas de autoridade, nessa hierarquia e serviços executados por serventes e mecânicos como os de faxina, jardinagem ou manutenção predial. Nesse nível, a relação com o edifício como matéria de intervenção depende de outra modalidade de mediação: aquela feita por instrumentos, materiais e técnicas. Assim, ao mesmo tempo em que produziriam a comunicação do Iphan com as referidas instâncias próximas ao contato com o edifício como alvo de intervenções, os 76 papéis também criariam certa distância nesta relação. Isso explicaria uma série de problemas vivenciados pelo pessoal da administração. No ponto de vista de algumas dessas pessoas, instâncias como o Iphan ou a própria direção do Condomínio Funarte não conseguiriam “dar conta” de questões que, vivenciadas na “proximidade” do diaa-dia, seriam por eles compreendidas como de resolução simples. Na impossibilidade de solucioná-las por conta própria, o que significaria romper com toda esta linha de mediações, tais pessoas se veriam tomadas por uma sensação de frustração e impotência. Com freqüência, se elege como principal culpado de tais problemas de comunicação a “papelada”, a própria burocracia que a princípio a constrói e possibilita. A possibilidade de atuação de funcionários como Jupiara estaria, no que se refere ao cumprimento de atividades deles exigidas, restrita a estabelecer o fluxo daqueles papéis que, se de um lado incapazes de se locomover por conta própria, de outro, deteriam todo o controle de uma situação. Acompanhei em campo uma situação que torna evidente esse lugar de “impotência” ao qual tais funcionários com freqüência precisam ceder – não sem relutância. Trata-se de um problema compartilhado com a companhia Vale, alocada no edifício Barão de Mauá, que divide o terreno com o Palácio Capanema34. Ele diria respeito à grave deterioração de uma parcela do muro que estabelece o limite do terreno com a Rua Santa Luzia, no qual se localiza o acesso ao estacionamento, partilhado por usuários de ambos edifícios. Insinuando a iminência de um 34 A presença de um edifício no terreno do Palácio pode causar estranhamento, sabendo-se que toda aquela área faria parte do conjunto tombado em 1948. Dados de arquivo (Iphan) revelam que a cessão desta parcela do terreno e a conseqüente construção do Barão de Mauá (projeto de Niemeyer de 1960) remeteria a extensos diálogos em torno da revisão do tombamento, estudada, contestada e, finalmente, permitida (com algumas condições) por Lúcio Costa em sua atuação como profissional do Patrimônio. 77 desabamento e, por esse motivo, ameaçando a segurança dos pedestres, o problema do “muro” estaria há mais de dois anos aguardando ser solucionado. Jupiara mostrou-me o processo em torno desta questão: uma pasta volumosa contendo uma série de documentos organizados e classificados. Pareceres técnicos do Iphan, cartas emitidas pela Vale, cópias de documentos produzidos e assinados pela administração, e mais de um alerta da Defesa Civil, pressionando a agilização da resolução do problema. “A gente faz tudo o que tem que fazer, e repassa pro Iphan, lá pro escritório da 6a.SR. E aí, veja só, eles exigiram um projeto para a restauração do muro. E ele foi feito; a Funarte enviou uma planta baixa do muro. E a coisa não anda, porque, depois que tudo já tinha sido encaminhado (…), olha isso, não é que lá mesmo eles reprovaram o projeto? Não dá pra entender isso. Parece até que é o Iphan que está enrolando, travando o andamento da coisa!” A lentidão com que o caso estaria sendo gerido viria a constituir tema de conversas cotidianas entre funcionários da administração, suscitando reações de descontentamento diante dos impasses burocráticos da manutenção do edifício. Presenciei uma troca especialmente acalorada em torno desta questão, a seguir descrita. Dela participaram Jupiara, Almir e Paulo – estes últimos, servidores que atuariam na administração como fiscais de contrato35. Insiro a seguir este episódio do diário de campo na íntegra, por considerá-lo especialmente elucidativo desta questão, que atravessa o cotidiano da administração: Chega então Almir, senhor ao qual já havia sido apresentada no dia da vistoria dos elevadores. Diz estar há muito tempo no prédio ("mais de vinte anos"). (...) Ele puxa uma cadeira e começa sozinho a esbravejar. Todos se viram na sua direção assim que dá início ao seu discurso, feito de reclamações, em alto e bom som: "tá caindo aos pedaços essa porcaria. Isso aqui é de valor internacional, entende? Vem gente de todo canto (...) do mundo olhar isso aqui. É de um valor.. inestimável! Único. As 35 A escolha por não utilizar pseudônimos acaba trazendo como conseqüência problemas que não costumam ocorrer na literatura ficcional: apenas na sala da administração, conheci três “Paulos”. 78 faculdades de arquitetura todas falam desse prédio. E olha como está? Olha o estado dele! Uma vergonha." Paulo se aproxima e fala discretamente pra mim: "não repara não, é o jeito dele falar, ele fala assim mesmo. Ele não tá chateado contigo não, viu?". Jupiara “dá corda": "E o problema é que jogam tudo pra cima da gente. Sai nota no jornal.. É o Iphan que encomenda essas denúncias, sabia disso, ô Almir? Sabia? É (...) ele mesmo, que ‘trava’ o andamento dos processos, demora a assinar.. São eles que falam por aí que o prédio está descuidado, acredita? (Vira-se para mim) E aí cai tudo pra cima da gente, Rachel. Fica todo mundo pensando que aqui no condomínio só tem gente incompetente, que a gente não trabalha direito.. E você viu (...) como a gente trabalha (...)!" (suspira). Almir complementa, comparando a situação atual a "décadas" anteriores de melhores cuidados com o edifício. "Qual é o nome daquilo lá (faz o gesto), aquelas lâminas.. Isso, brises.. Eu lembro que nos anos setenta chegaram a fazer uma pesquisa, pesquisa séria, pra saber o tipo de tinta que podia ir ali. Sabe, na época teve uma reforma imensa, investiram muito, muito dinheiro nesse prédio. Eu costumo lembrar as pessoas que entrou verba pra tudo quanto é coisa – menos pros elevadores! Podiam ter mudado tudo, e não fizeram nada! Aí fica desse jeito que tá. (...) Na época, teve aquele incêndio ali no Barão de Mauá36. Lembra, vocês lembram, como refizeram tudinho? Ficou perfeito, nada leva a crer que teve um incêndio ali.. E, aqui.. não fazem nada... Mas o que eu estava falando mesmo? Ah, sim; que, hoje em dia, você não consegue nem mexer naquelas lâminas." Os interlocutores concordam, e Jupiara complementa: "É mesmo, já tentei e não consegui. Tá tudo oxidado, mas isso é por causa do tempo, mesmo. O negócio seria trocar tudo. E aí é com o Iphan...". Jupiara menciona a questão do muro da Vale: "Eu mostrei pra Rachel o tamanho do processo, Almir. Ela é testemunha. (…) O Iphan não concordou com o projeto da Funarte. Por uma bobagenzinha, um detalhe minúsculo! Desde 2009, e o negócio não sai, e o muro pode cair a qualquer momento." Almir complementa: "E isso porque a Vale quer ajudar, quer reconstruir, não é mesmo? Isso aqui... eu vou te contar... É tudo porque o raio desse prédio é tombado! Se não fosse, estaria impecável. Que nem aqueles casarios da Lapa, tudo caindo aos pedaços, já viu? Tem mais é que botar tudo abaixo e construir prédios. (...) A população precisa de lugar pra morar. Os trabalhadores, eles têm que morar aqui pelo centro.. Isso aqui no fim de semana, já viu só? Fica deserto... Podia ter gente morando por aqui... Mas não, por quê? Por conta desses prédios tombados que só ocupam espaço..". Jupiara concorda, (...) e complementa: "E quando querem passar pro Estado, né, Almir, quando querem dar um jeito na coisa pra melhorar pra gringo ver... E é aí que o Iphan entra pra impedir!" (...) Almir interrompe: "Deviam transformar isso é num museu, aí sim ia conservar." "Mas e a gente, Almir (coloca Jupiara), como fica?" Almir responde: "Ora, vai tudo pra outro prédio qualquer. Viu aquele que tá sendo reformado, na esquina da México com a Almirante Barroso? Aquilo ali é público, pra lá ia o INSS, soube que não vai mais... Vai que botam a gente lá?". Ele se vira 36 Lembrando que remete ao ano de 1981 o referido incêndio. Não se trata, é claro, de contestar a consistência da fala do interlocutor, tendo em mente o presente foco nas narrativas como constitutivas da experiência cotidiana do monumento. A referência aqui assume o papel de, ao contrário, confirmar o evento localizando-o no contexto temporal tal como trazido na literatura histórica (Czajkowski, 2000). 79 pra mim e novamente menciona os problemas do edifício, traz outros.. Sugere então descermos para que eu possa vê-los de perto. Atravessamos o pátio, Andamos até uma faixa de contenção fixada no limite do volume do mezanino com o estacionamento, impedindo a passagem de pedestres naquela porção do pátio. Transpomos as fitas zebradas; eles apontam a marca no chão do descolamento de uma pedra do revestimento do edifício. Discutem sobre o perigo da situação (“alguém podia ter sido atingido!”). Jupiara reclama que haver apenas um técnico do Iphan responsável “por um edifício desse tamanho...". Chegamos finalmente ao estacionamento (...) e de imediato vejo o mencionado buraco no piso, atingindo quase um metro de diâmetro. "Já falei com eles, Jupiara – disse Almir – que daqui a pouco dá pra trazer vara e pescar nesse buraco!" (...) Vamos adentrando o estacionamento, aos poucos o chão se torna mais regular e nos vemos próximos à entrada da Vale. (...) Almir me chama até a entrada para me mostrar o muro, "olha como está inflado.. (...) A Vale quer consertar, isso afeta o estacionamento dela – e é legal da parte deles, mas fazem como retorno, porque o Mec cedeu esse terreno a eles.. O problema, sabe qual é, né.." (referindo-se ao Iphan). Relacionados diretamente à gestão do escritório regional do Iphan, o descolamento de pedras do revestimento do edifício, o buraco do estacionamento ou mesmo a questão do muro compartilhada com a companhia Vale têm, de fato, muito pouco a ver com as atividades de pessoas como Almir, e até mesmo Jupiara. Sua capacidade de agir no que diz respeito a tais questões restringe-se a colocar papéis em circulação, seja no ato de receber, enviar, organizar, assinar ou fazer com que outros agentes os assinem. Dificilmente se poderia atribuir a sua competência qualquer ruído que surja neste diálogo, na medida em que ela consiste apenas em viabilizar a comunicação entre as posições das variadas instâncias administrativas envolvidas. Sendo assim, o estimado rigor dessas pessoas com relação a regras e prazos, motivo por que alguns colegas sustentariam uma postura hostil diante de Jupiara – como certa vez lamentou – surtiria efeitos limitados diante do quadro mais amplo de interdependência envolvendo um sem número de pessoas em torno de tais papéis. Com mais de dois anos de duração, o problema do muro estaria no momento 80 de minha inserção sendo finalmente resolvido: com a decisão da Vale de custear a reforma em sua totalidade, o Iphan teria lançado imediatamente o almejado termo de referência, restando apenas este ser assinado pela diretoria da administração e entregue à Vale, de modo a que se pudesse encaminhar os próximos procedimentos. A freqüente “impotência” sentida por funcionários diante de problemas envolvendo instâncias formalmente inatingíveis por sua esfera de atuação, cuja comunicação dependeria de uma série de mediações, tem a ver com o lugar que seus cargos ocupam em um quadro formal da administração do condomínio. No plano do que é exigido e esperado nas funções que desempenham, pouco ou nada poderiam, de fato, fazer a respeito de questões que suponham o envolvimento com dimensões dessa administração que seriam inacessíveis por seus discursos e lamentações. Por outro lado, se suas atribuições individuais não seriam de grande ajuda, delas certamente não teria partido o interesse nos referidos problemas. O que cabe a Jupiara enquanto assistente técnico-administrativa seria zelar pelo prazos dos contratos. Também teria uma parte na circulação de documentos – tal como no caso da Vale – e no encaminhamento de situações emergenciais; mas suas preocupações não se estenderiam formalmente para além disso. A Almir, caberia fiscalizar, do mesmo modo que outros fiscais de contrato, o cumprimento de um destes: o de ascensoria, regendo a contratação dos ascensoristas do edifício. Num plano estritamente “formal”, tais pessoas não se veriam interessadas na resolução de questões envolvendo intervenções no edifício e, provavelmente, nem sequer estariam entrando em contato direto umas com as outras. Almir passaria sua jornada de trabalho em torno dos espaços de circulação de elevadores; Jupiara não 81 precisaria se ausentar muito da sala da administração. O que se deduz é que tal modo de interação “estritamente burocrático” não se apresenta tão predominante na rotina de trabalho na sala da administração. O trabalho de observação naquele contexto revela que as posições, funções e interações entre essas pessoas não são tão rigorosamente demarcadas, estáveis ou simples. Fatores que não se fariam evidentes nas elaborações conscientes a respeito de uma “hierarquia formal” da administração – talvez pelo fato de não serem articulados pelo código da burocracia – emergiriam ao longo da experiência em campo revelando-se como detentores de um papel significativo no modo como as funções e posições seriam (re)elaboradas na “prática” das interações na sala da administração. E – vale destacar – isso teria a ver com o cenário peculiar das interações sociais naquele espaço. 3.2 O “avesso” do Palácio Como vimos, o modo como no discurso nativo determinadas posições seriam concebidas como “superiores” ou “distantes” em relação a outras apresentaria certa correspondência com a distribuição espacial das instâncias da administração – que, vale ressaltar, não corresponderia a uma definição objetiva, sendo qualitativamente concebida nesta relação. Nesse cenário, o eixo “cima-baixo” se revela importante ao modo como se operam as classificações espaciais e sociais. O paralelo entre a “configuração social” do edifício e sua “disposição espacial”, longe de configurar não mais que um arranjo contingencial, remeteria também ao projeto arquitetônico. No entanto, nele a ênfase parece recair não 82 exatamente no eixo “vertical” (“cima-baixo”), mas no “horizontal” (“leste-oeste”37), plano no qual seria produzida a distinção entre áreas sociais e áreas de serviço. Como se pode ver na Imagem 2.1, que traz a planta-baixa de um “pavimento tipo” do Edifício, os extremos “leste” e “oeste” demarcariam as porções em que se localizam os elevadores, banheiros e copas. Na porção “leste”, os elevadores e banheiros seriam de uso “social”, restrito a servidores e freqüentadores dos ministérios, ao passo que a porção “oeste” estaria destinada à circulação dos “serviços” (dos contratos terceirizados). Nesta área haveria os elevadores e banheiros “de serviço”, além da copa. Servidores públicos, atuantes nos escritórios dos ministérios da educação e da cultura, localizam-se em geral nas áreas “sociais” (área de trabalho), que compreendem a porção central dos andares até sua extremidade “leste” (hall público). Seu meio de acesso ao edifício seria predominantemente a portaria e, caso sua “posição” os permita, poderiam se valer do elevador “privativo” para atingir o lugar de destino através do acesso localizado na Rua da Imprensa, restrito a “autoridades”. Por sua vez, o corpo de funcionários “terceirizados” do condomínio apenas acessaria o edifício pela área de “serviço” (extremidade “oeste”), espécie de fundos do Palácio. Com base na divisão estabelecida pelo projeto, a sala da administração – tal como se apresenta no momento da pesquisa38 – deteria uma posição curiosa: ela se situa na extremidade “oeste”, ou seja, na área correspondente à de “serviço” e, em um 37 O estudo de plantas-baixas do Edifício revela que, tomando por base os pontos cardeais de sua orientação cartográfica, as referidas coordenadas deveriam ser designadas em termos do eixo nordestesudoeste. No entanto, optei por simplificá-las em virtude de sua relação com outra oposição, que estará nas classificações nativas, entre norte e sul – coordenadas que, na disposição espacial “formal”, corresponderiam a noroeste e sudeste. 38 A localização da maior parte das funções da administração do edifício nem sempre seria na sobreloja. Variando conforme a gestão em vigor, tais atividades já teriam se localizado em outros espaços. A atenção sobre a configuração espacial se vale da hipótese de que ela cumpriria um importante papel no cotidiano das interações descritas – senão, ao menos uma boa metáfora. 83 eixo vertical, na porção “baixa” do volume, bem próxima ao térreo. Cruzando os dois eixos, vemos que sua localização corresponderia ao “oposto” do arranjo espacial das áreas “sociais” e concebidas como “superiores”. Levando-se o paralelo “ao pé da letra”, o que significaria tomar as relações no interior do edifício como “produto” de um projeto eficaz, se poderia compreender as funções desempenhadas nessa sala e as posições ali estabelecidas como, de um lado, “menores” enquanto espécie de “bastidores” do que seria o foco central do edifício – o trabalho nos Ministérios; de outro, estaríamos falando de um ambiente “inferior” em relação a níveis mais “elevados” e “intangíveis” de elaboração. No entanto, para além de especulações como essas, a atenção à disposição espacial ajuda a iluminar uma qualidade específica das interações na administração, em jogo naquela sala: a idéia de “inversão”. A sala parece compor uma espécie de “avesso”39 cotidiano do edifício, compondo um reflexo, invertido, tanto dos aspectos mais “monumentais” e enaltecidos em descrições “oficiais” do edifício, quanto das interações segundo um plano “formal” das atribuições de seus funcionários. Antes de mais nada, aquele espaço não partilha, por exemplo, de certos elementos “monumentais” contemplados por quem freqüenta as áreas “sociais” do edifício, tais como as esquadrias da fachada envidraçada e os brises-soleils. Eles seriam experimentados sobretudo enquanto aspectos de intervenções cotidianas, impondo a circulação por todo o conjunto – tal como fora descrito anteriormente. 39 Como veremos, remeto o presente uso da idéia de “inversão” ao contraste explorado por Mikhail Bakhtin entre a cultura popular da praça pública e a oficialidade eclesiástica do fim da Idade Média, atuante na igreja, corte, instituições públicas. Para o presente caso, ela também pode ser aproximada à descrição realizada por Pierre Bourdieu da casa Kabyle (1972), na qual a configuração espacial revelaria aspectos de um sistema classificatório, precisamente por constituir seu “reflexo” invertido. 84 Além disso, se o acesso aos eixos “leste” e “superior” é feito por intermédio de uma suntuosa portaria, aqui basta ultrapassar uma discreta porta e subir um estreito lance de escadas. No que se refere à maneira como as interações ali se organizariam, o paralelo ajuda a elucidá-las. Embora pareça não mais que uma boa “metáfora” para pensar e apresentar esta idéia, a “inversão” espacial desempenha um papel importante no caráter peculiar das interações nesse espaço, caracterizadas não pela linguagem rigorosa da administração pública, mas pelos elementos “informais” de interações “descontraídas”. Basta aproximar-se daquela porta, ainda no térreo, para perceber que se trata de um ambiente social distinto daquele do saguão de entrada que, localizado na ala “leste”, seria resguardado por vigilantes e quase sempre predominado por um silêncio respeitoso. Área limítrofe entre o pátio enquanto espaço de livre circulação e o edifício como de “restrita”, a portaria sintetizaria elementos de um espaço em “perigo”, tal como classificado por Mary Douglas (2002): quem ali adentra parece ser potencialmente nocivo, devendo ser vigiado, controlado. Por sua vez, a entrada da administração se mostraria com freqüência restringida, não exatamente por seguranças, mas por conta da formação de agrupamentos de pessoas conversando umas com as outras. Apesar de haver também ali uma discreta “portaria” – com a presença de um vigilante – , neste espaço o acesso ao edifício se mostraria menos controlado. Não teria, nesse sentido, sido casual a oferta daquele espaço como “campo” para a pesquisa. À entrada da sala, lê-se “Condomínio PGC: entre sem bater”. Para além do ambiente que cerca o acesso da sala da administração, o caráter informal e 85 descontraído das relações sociais também se mostrariam presentes em seu interior. Como vim a perceber, este não seria um quadro regular em outras porções do edifício, escritórios alocados nas áreas “sociais” nos quais as interações se mostrariam mais “controladas”, sobressaindo do silêncio que nelas se faz predominante apenas ruídos sutis das teclas de computadores. E – este é um ponto importante – esta informalidade das relações na sala da administração não necessariamente se opõe às atividades que são ali realizadas. 3.3 Relações de sociabilidade Trata-se de um trabalho que envolve uma interação constante entre pessoas do edifício como um todo, por se tratar do cumprimento de questões que as articulam como “condomínio”. Talvez mais do que qualquer outro, aquele constitui um espaço privilegiado de interação entre os diversos funcionários do edifício, permitindo que desde serventes a servidores entrem em contato direto. Na terminologia do condomínio esta sala é classificada dentro das chamadas áreas comuns, que compreendem, além dela, corredores, áreas de serviço, pátios externos e estacionamento. Esta designação pode estar relacionada à sua construção como um espaço de “livre circulação”, no qual não haveria constrangimentos institucionais restringindo o contato entre pessoas de diferentes procedências. Uma das características marcantes deste ambiente diz respeito, de fato, à intensa circulação de pessoas. Não se trata exclusivamente de funcionários do condomínio, mas também de servidores de outras repartições do edifício, antigos funcionários, aposentados, parentes e amigos – pessoas que vez por outra “aparecem” 86 para encontrar velhos conhecidos, “bater um papo”, trocar novidades. Vale lembrar também que não são todas as funções da administração que são alocadas naquele espaço: há cargos distribuídos, como vimos, pelos pavimentos ocupados pela Funarte. Seus funcionários não deixam, por este motivo, de freqüentar a sala da administração – o que se deve a motivos nem sempre diretamente relacionados à execução de suas atividades profissionais. Chegam até ali para, além de obter informações, prestar esclarecimentos ou simplesmente “circular” papéis, verificar correspondências pessoais40, participar de interações “informais” e “descontraídas”, tomar na copa o café feito por Jupiara. Feitas de muitas histórias e anedotas pessoais, tais interações não necessariamente se contrapõem à seriedade das atividades que ali precisam ser feitas. No percurso dos papéis a serem timbrados ou assinados, ou ainda no caminho à procura de algum fiscal de contrato ou funcionário de plantão por conta de alguma emergência, muitas coisas acontecem, novidades surgem, e todo esse material discursivo é trazido de volta àquela sala e compartilhado. Por outro lado, a rotina de trabalho da administração seria atravessada por muitos momentos de ócio, contrastando aos de maior movimento. Testemunhei vários dias em que – para a felicidade ou angústia de Jupiara – simplesmente “não havia trabalho”41. Em momentos ociosos ou ativos, qualquer evento poderia desencadear 40 Há um escaninho na entrada onde são depositadas as cartas e encomendas via correios, uso que constitui um direito dos funcionários. 41 Conforme relato em meu diário: “Hoje o dia tá arrastado.. Esse telefone não toca. Será que tá com defeito? A gente até desconfia..ninguém reclamando de nada? Será que hoje não teve problema nenhum no prédio?” – Jupiara comenta, aparentemente frustrada, enquanto lê notícias no computador. Por sua vez, um de seus “colegas de sala” jogava “copas” no computador (...) e o outro ouvia música.” 87 diálogos “informais” entre os freqüentadores da sala, facilitando a aproximação entre os que ali possuem um lugar estável e os que se encontram de passagem. Uma notícia de jornal, um atropelamento nas proximidades, um cheiro incomum adentrando a sala da administração, ou mesmo um problema que custa a ser resolvido – tal como o caso do “muro da Vale”. Ocorre em tais trocas informais movimentos dinâmicos de diferenciação interna de grupos, favorecendo a aproximação entre certas pessoas e sua distância em relação a outras. Embora remeta a um quadro um pouco “banal” de sociabilidade, ali as mulheres com freqüência se aproximariam pela troca de elogios a acessórios, perfume ou maquiagem; e, por sua vez, sua participação apresentaria limitações em conversas sobre futebol protagonizadas por homens. Outra distinção importante se formaria entre pessoas mais “novas” (de idade ou tempo no prédio) – sobretudo as do apoio administrativo – , e aquelas “mais velhas” ou “mais experientes” naqueles eventuais agrupamentos. São tais critérios, mais que as diferenciações institucionais, que parecem contar no modo como as pessoas ali se relacionam. Tais grupos não seriam “fixos”, formando-se e dissolvendo-se dependendo do contexto – como na emergência de assuntos capazes de chamar a atenção de todos: um vídeo engraçado ou uma notícia sensacionalista na Internet acessados em momentos de ócio; ou, mais freqüentemente, fofocas. Entre todos – e levou algum tempo para que me permitissem participar – , se faria em curso toda a sorte de fofocas, e em volume mais baixo caso se tratasse de algum “superior”. Marcadas por risos tais relações pessoais e afetivas estabelecidas na rotina do trabalho administrativo somente seriam constrangidas na presença de 88 pessoas menos íntimas ou daquelas eventualmente escolhidas como objeto de fofocas – momento em que os interessados em manter a conversa se deslocariam para outras áreas comuns, como a copa. Trata-se de aspectos talvez pouco esperados em leituras que privilegiem o rigor do código da burocracia pública – concentradas nas reflexões “clássicas” de Weber, por exemplo. Eivadas de irreverência, as conversas desenroladas naquele ambiente poderiam ser aproximadas a interações de “praça pública” rabelaiseana, (BAKHTIN, 1987) incorporando a letra formal dos contratos por um código “informal” que a converte em matéria de sociabilidade42(SIMMEL, 1971). Ali se faria em operação uma “dissolução” das hierarquias institucionais que classificam as relações em um plano formal, no qual cada uma daquelas pessoas nada seria além de seus cargos e funções e, a interação entre elas, não mais que encontros contingenciais derivados do exercício de suas atividades rotineiras. Tal “dissolução”, no entanto, não significaria a formação de um contexto totalmente desprovido de hierarquias. O compartilhamento de “fofocas” e o tom de sarcasmo com que, com alguma freqüência, tais pessoas se refeririam a “superiores” – sejam eles funcionários ou então entidades administrativas “personificadas”, como vimos na fala de Almir e Jupiara a respeito do Iphan – podem ser tidos como elementos constitutivos de uma estruturação suis generis, desautorizando, invertendo e mobilizando posições de poder e/ou prestígio que, ao menos do ponto de vista de concepções “nativas” de uma estrutura “formal” da administração, se apresentariam 42 O modo como o autor lança mão do termo parece adequar-se ao presente caso, dizendo respeito aos aspectos mais “despretensiosos” da vida em sociedade. Ao fazer uso do termo, Simmel considera a possibilidade de as relações sociais não dependerem necessariamente de uma finalidade última para serem estabelecidas, chamando atenção à idéia de que poderiam por vezes ser concebidas como uma espécie de “prazer em si mesmo”. 89 estáveis e implacáveis. Um importante instrumento desta inversão – ou simplesmente revisão – residiria no domínio de conhecimentos a respeito do edifício e das pessoas que ali trabalham. O tempo de permanência nas atividades da administração e a quantidade de conhecidos naquele espaço e também no edifício se revelariam como variáveis fundamentais à definição de “quem sabe mais o quê” enquanto uma modalidade de hierarquização sendo operada naquele espaço. No final das contas, o controle sobre tais referências nas interações cotidianas produziria efeitos importantes na configuração social da administração e na rotina daquelas atividades. Em outras palavras, duas categorias mostram especial relevância na constituição deste universo: a experiência e a influência. Trata-se de categorias que “transbordam” as normas impessoais das classificações “formais”, que ditam por exemplo a respeito da modalidade de contrato (servidor ou terceirizado). Nesse cenário, Jupiara, apesar de “terceirizada”, teria sua posição sujeita a deslocamentos permanentes. Com freqüência seria consultada por pessoas de posições “superiores” – fiscais de contrato, em sua maioria – e exerceria tarefas que não competiriam ao seu lugar. Por conta de sua reconhecida experiência, Jupiara se colocaria à frente das ações de todo o pessoal “terceirizado” do “apoio administrativo”. Confessou certa vez a respeito de situações constrangedoras em sua relação com tais funcionários, explicadas em termos de sua posição de “liderança”. Conforme registro em meu diário: “...E aí ela vem, me olha de cima, sabe? Já ouvi, algumas vezes, elas cochichando, falando baixo, eu estando perto – só podia ser sobre mim, 90 deviam estar falando mal. Tem gente aqui que reclama, me chama até de ‘mandona’... fico chateada, mas tem que ser assim, não tem outro jeito! Eles não sabem fazer nada direito, não dão conta sozinhos. E vou te falar, muitos ali.. nem sequer se interessam. Se eu não fico atenta, se não cobro.. acaba sobrando é pra mim..” A assistente técnico-administrativa tomaria para si uma parcela importante das atividades dos fiscais de contrato. Jupiara suplementaria com freqüência tarefas destinadas a estas pessoas, elaborando e controlando uma série de documentos e, além disso, sempre que necessário “tomando conta” de funcionários terceirizados regidos por tais contratos. "Outro dia eu mesma precisei descer e reclamar ali embaixo, que não pode ter essas motos estacionadas aqui não. (...) Quem tem que fazer isso é o fiscal de vigilância, ele que tem que falar com o vigilante.. Mas esses detalhes, (...) de um modo geral o pessoal aqui nem sabe que tem que prestar atenção. E se eu chamo atenção deles.. já viu. Outra coisa: não pode ter panfletagem lá embaixo, a gente precisa ficar atento. Aqui é um edifício público. A mesma coisa: não pode ter mendigo dormindo aqui.. Eu já tive uma vez que descer e conversar com uma senhora, coitada, ela tava ali embaixo, pedindo esmola.. Expliquei pra ela, minha senhora, esse edifício é público, você não pode ficar aqui não. Ninguém queria falar com ela, então fui eu mesma – é nossa obrigação. E essas caçambas cheias de lixo, lixo que nem daqui é. Vez ou outra preciso chamar atenção.. Você acredita que outro dia veio o vigilante e respondeu ao Jorge (o fiscal), que essa parte da calçada não é dele, que é a prefeitura que tem que tomar conta? E o Jorge, que devia saber que isso é mentira, não sabe.. e aí não tem como fazer o trabalho certo... Outra coisa, e isso me incomoda muito: tantas vezes, no fim do expediente, ou então no horário de almoço, fica gente, gente aqui do prédio, os próprios vigilantes, deitados ali (ela aponta a mureta baixa na entrada do prédio). (...) Ninguém faz nada. Eu que tenho que chamar atenção? Olha, isso são coisas que... sabe... não sou eu que deveria fazer... Mas, se não fosse por mim... esse edifício estaria uma bagunça!” Partindo de uma percepção no mínimo curiosa de público, a fala de Jupiara descrita nesta passagem evidencia sua participação em assuntos não diretamente ligados à sua atividade, em nome do cumprimento das regras que reconhecidamente domina, e de uma vontade quase autônoma de “colocar ordem”. A “informante” lamentou algumas vezes a respeito da “acomodação” de certos funcionários que, a seu ver, não se dariam ao trabalho de estudar regras e contratos por conta da possibilidade de, a qualquer momento, consultá-la como a “única” pessoa que plenamente os 91 domina. Algo que particularmente a incomodava estaria na noção de que muitas dessas pessoas seriam servidoras públicas, recebendo salários superiores ao seu e dotadas de maior estabilidade sem que seu desempenho, a seu ver, justificasse tais vantagens. De um modo geral, dizia não compreender a relevância de um diploma universitário (sustentado por alguns funcionários do apoio) no que diz respeito à habilidade com as tarefas administrativas que, no seu caso, teriam sido desenvolvidas com o passar dos anos e com a experiência – muito embora, vale ressaltar, admirasse a formação universitária e ressentisse o fato de não ter tido a mesma oportunidade. Adquiridos na experiência, os conhecimentos administrativos detidos por Jupiara lhe permitiriam “sobressair” em meio ao corpo dos funcionários terceirizados da administração, inspirando respeito por parte de pessoas que por ela seriam vistas como “superiores”43. Por sua vez, o longo tempo no edifício lhe renderia muitos contatos, e amizades. Atravessar o pátio a seu lado significa necessariamente parar para conversar com muitas pessoas. Não apenas nas áreas comuns do edifício, mas em todos os andares, há quem a conheça. É nesse sentido que falo também da idéia de “influência”: de um lado, o conhecimento dos contratos favoreceria sua “liderança” em atividades exógenas a suas atribuições. De outro, conhecer muitas pessoas contribuiria para torná-la o elemento mediador por excelência entre a sala da administração e: os funcionários terceirizados, as necessidades de usuários de diversas porções do edifício, as atividades administrativas em curso na Funarte e, um ponto especialmente 43 Isso tendo em vista que, como ela mesma sugere, “quem em geral implica, tem inveja, são os que estão abaixo. Por isso que digo, essas pessoas que falam mal de mim, falam porque têm é inveja. O que vem de baixo não me atinge não, não é assim que dizem?”. 92 interessante – as elaborações do Iphan relativas a intervenções no edifício. 3.4 A Administração e o Iphan: Jupiara e Luciano Uma descrição dos níveis da administração do edifício estritamente orientada por sua organização institucional tenderia a compreender decisões a respeito de intervenções no edifício como uma via de mão única, partindo das elaborações do Iphan e se encaminhando à sua concretização através da administração sem quaisquer constrangimentos ou transformações nesse caminho. Diferentemente do que se possa supor a respeito de um imóvel tombado – o que pode ser deduzido da atenção ao debate em torno das Olimpíadas (Capítulo 1) –, haveria em curso um necessário e permanente diálogo entre as necessidades pontuais dos muitos usuários do edifício e o controle de suas propriedades como “monumento”, atribuído, como se sabe, ao Iphan. Com freqüência, se mostraria necessário ceder a certas mudanças, alterar detalhes previstos no projeto – conquanto que sob o consentimento dessas “inequívocas mãos”. Cada um desses ajustes passaria, como se é de supor, por um longo e complexo processo, altamente burocratizado, envolvendo o trabalho de técnicos empenhados na elaboração de soluções eficazes, que não impliquem na descaracterização do imóvel. A não ser no que se refira ao “caso do muro”, não acompanhei de perto o modo como tais instâncias interagem em um quadro “formal” de circulação de papéis. No entanto, algo que talvez somente o campo, a vivência cotidiana deste trabalho, poderia iluminar é que tal diálogo teria início no espaço da sala da administração, no qual Jupiara, por nenhum outro motivo além de seu 93 reconhecimento nativo, pautado na informalidade das interações pessoais, como uma profissional experiente e influente, atuaria como uma figura mediadora. Luciano, arquiteto da 6ªSR que atua como técnico responsável pelo Palácio Capanema, seria contatado pela assistente técnico-administrativa sempre que, no desenrolar da utilização dos espaços do edifício, se mostrasse necessário efetuar alguma intervenção que, não prevista pelos contratos de serviços mantidos pelo condomínio, envolvesse procedimentos suscetíveis ao veto do Iphan. Conforme Jupiara explica, tais reformas ou obras dependeriam da autorização do Iphan, assinada pelo superintendente. De sua parte, Luciano fiscalizaria tais necessidades de intervenção, fazendo a mediação com as instâncias decisórias do Instituto. Nas palavras da “colaboradora”, “Por exemplo, tem uma madeira lá embaixo no subsolo, a gente queria jogar fora – tá cheia de cupim. Mas antes tem que falar com o fiscal e ele impediu, falou que não pode… Essas portas de armário, como essa aqui (...). A madeira (...) tá cheia de cupim, tá até úmida. (...) Antes de encaminhar o ofício lá pra superintendência, tem que fazer uma consulta com o Luciano, que é o fiscal; a gente precisa da resposta dele pra então enviar o ofício.” Embora envolvessem mediações “burocratizadas” entre as entidades jurídicas envolvidas (a Administração e o Iphan), tais procedimentos teriam início em um diálogo direto, em geral estabelecido entre esses dois personagens – Jupiara e Luciano. Como ela mesma diria a esse respeito, “é um prédio tombado. Você não pode fazer uma obra sem a autorização do Iphan. A gente não pode botar um prego na parede sem ter autorização, sem antes falar com ele!”. O que é interessante destacar a respeito deste diálogo tem a ver com o modo como ele é produzido. Trata-se de uma interação também construída pelo código 94 informal das conversas na administração. Somente em seu desenrolar, irá assumir as propriedades formais de documentos mediando o “Condomínio Funarte” e o Iphan. Dentre o compartilhamento de novidades e relatos pessoais, tem lugar nessas conversas a troca de histórias a respeito da construção do edifício. Aqui o “cotidiano” administrativo não parece se opor ou se distanciar dos aspectos daquele edifício como um monumento. Nesse plano de interações, referências históricas e informações a respeito do projeto do MES são sujeitas a elaborações específicas: por uma lógica similar àquela de uma ciência do concreto (LÉVI-STRAUSS, 1970), elas partiriam de classificações fundamentadas em dados da experiência sensível. Em tais discussões a “autoria” do edifício constitui, por exemplo, um tema freqüente. Discute-se a respeito de Niemeyer como autor por excelência do projeto, ao passo que também se afirmaria como decisiva a participação de Le Corbusier, enaltecida por Jupiara em sua referência ao quadro pendurado em uma parede da parcela da sala da administração em que sua mesa se situa44. Por sua vez, apropriações “selvagens” de elementos “monumentais” se fazem evidentes por exemplo no modo como no cotidiano o volume do auditório é referido: “machado45. “Violão” serviria para identificar uma larga e sinuosa coluna que produz o acesso ao terraço-jardim e à reserva técnica do mezanino. Luciano efetuaria nesse cenário uma mediação específica, transmitindo a 44 A autoria do projeto do edifício-sede do MES é uma questão que sugere permanecer controversa mesmo na literatura mais “controlada” a esse respeito. Como veremos, Otávio Leonídio (2007) discute a concepção específica de projeto que teria permitido que se celebrasse como “autêntico” o rearranjo produzido pela equipe brasileira dos volumes elaborados por Le Corbusier. 45 Não sei, por outro lado, até que ponto a designação de “machado” remeteria a registros documentais que apontam uma associação, popular na época da inauguração do edifício, entre sua planta baixa e a forma do “martelo e da foice”, explicada pelo cenário internacional de profusão de programas imagéticos ideológicos remissivos por exemplo ao comunismo. “Houve até quem (...) dissesse que o edifício era um monumento moscovita, erguido em homenagem ao regime soviético, parecendo, visto de cima, o símbolo proletário da bandeira russa, uma foice e um martelo.” (A Noite, 18 abr. 1944, apud Lissovsky; Sá, 1996: p.186). 95 Jupiara o que saberia em termos de “relatos oficiais” em torno daquele edifício. Tais momentos de remissões aos participantes da equipe de Lucio Costa, ao ineditismo do “arranha-céu” em pan-de-verre e mesmo à participação controversa de Le Corbusier na elaboração do projeto seriam conduzidos por Luciano nem sempre por conta de questões imediatas, mas por um aparente prazer “gratuito” de divulgar conhecimentos que considera valiosos. O domínio do assunto e a notável eloqüência com que seria apresentado inspirariam em Jupiara uma atitude de grande respeito em relação a este senhor. O projeto do edifício suscitaria curiosidade de longa data a esta funcionária, que afirmaria pesquisar o assunto por conta própria. À exceção do conteúdo de suas conversas com Almir, foram raras as ocasiões em que testemunhei referências similares ao Capanema nas trocas cotidianas da administração. Não são todas as pessoas ali que participam do compartilhamento deste tipo de conteúdo, restringindose em geral àquelas consideradas “mais velhas” ou de “maior tempo” no edifício. Não seria exagero dizer que, do ponto de vista de boa parte dos funcionários alocados naquela sala, aquele seria um “edifício como qualquer outro” – um espaço objetivamente classificado dentro do qual se desenrolam interações sociais que poderiam se fazer presentes em outros tantos. As referidas narrativas, por outro lado, não participariam daquelas interações no mesmo nível de outros assuntos, como um modo “aleatório” de despertar aproximações e elaborações conjuntas e, ao mesmo tempo, demarcar grupos, sem que delas decorram maiores conseqüências. Elas produzem efeitos no edifício. Nesse cenário de interações, a capacidade de discorrer sobre o edifício, não importando quão seguras se mostrem as fontes dos “fatos” narrados, se revelaria 96 como um fator fundamental à criação de aspectos de uma hierarquia interna. A narração de histórias estaria por trás da criação de pessoas experientes e influentes. Quanto mais tempo no edifício e quanto mais amplo o leque de conhecidos naquele espaço, mais numerosas e convincentes as histórias. O conhecimento assim obtido, que extrapola os conteúdos exigidos pela função de “assistente técnico-administrativa” e, mais especificamente, a “memória” do edifício elaborada a partir do mesmo, renderia a Jupiara, além do reconhecimento como alguém capaz de “responder a qualquer pergunta sobre o edifício”, certa autoridade e poder de agência no ambiente da administração. À frente de qualquer outro funcionário da administração do Condomínio Funarte, ela participaria, junto a Luciano, de eventuais intervenções no edifício. Arranjos decorrentes desse diálogo podem ser identificadas por um olhar prolongado sobre alguns elementos visíveis do Palácio. 3.5 Dinâmica do tombamento Algo que chama a atenção assim que se adentra a portaria e se caminha em direção aos elevadores sociais é uma parede de tijolos de vidro localizada ao fundo, através da qual a luminosidade da Rua da Imprensa penetra o saguão. Elemento do edifício dotado de relevância no discurso monumental da bibliografia arquitetônica, esta parede seria interpretada como solução criativa a determinadas limitações a projetos de edificações públicas da época. Nas palavras de Lauro Cavalcanti (2006): Fez parte desse “estilo” fornecer soluções engenhosas sem desobedecer, contudo, ao programa esperado, na época, para um prédio público: no saguão de entrada, por exemplo, dispuseram uma enorme parede em tijolos 97 de vidro que, além de iluminar o espaço, propicia sugestivo efeito plástico e reduz o obrigatório busto de Getúlio a um perfil surreal contra o painel de luz. Conseguiram, dessa forma, evitar o pesado oficialismo do qual o espaço poderia ter sido presa, sem deixar de atender à prescrição obrigatória para ministérios do Estado Novo. (Cavalcanti, 2006: 57-58) Anos se passaram desde a execução do projeto mítico e, de lá para cá, alguns núcleos de agência teriam se aproximado do edifício, entrando, talvez despretensiosamente, em uma competição com as mãos que o teriam elaborado e erguido. Quem percorrer atualmente a Rua da Imprensa procurando de fora aquela parede translúcida que produz a fronteira desta extremidade do edifício com a rua, encontrará um elemento imprevisto: grandes placas de metal, instaladas à frente de algumas partes. O motivo seria a deterioração de alguns desses tijolos, remetendo, conforme as elaborações “nativas”, à ação de vândalos – argumento fundamentado na percepção de que os danos atingiriam apenas porções próximas ao alcance do corpo humano. Também se aventa a possibilidade de tais estragos se explicarem por fenômenos “naturais” de deterioração. Afinal, segundo Jupiara, quebrar tais tijolos, consideravelmente resistentes, não seria tarefa fácil. A solução dos tapumes seria provisória, tendo em mente que a substituição de cada uma das peças seria bastante complicada. Em primeiro, por se tratarem de itens indisponíveis no mercado. Luciano explica ser impossível encontrar tijolos similares em território nacional, tanto no que se refere às dimensões quanto à coloração. Peças mais ou menos próximas às desejadas poderiam ser encontradas na Europa, implicando lidar com valores em euro que dificilmente seriam custeados pelo Iphan ou MinC, já que o trabalho de reposição exigiria a completa troca dos tijolos. Conforme me fora explicado, com a remoção de um único tijolo, os outros que o 98 cercam teriam grande chance de trincar e rachar, o que implicaria novas trocas e, por sua vez, mais peças comprometidas. De fato, não seria grande o número de tijolos quebrados. Ainda que o fosse, haveria outra questão em jogo. Assim projetada, caberia à parede – conforme conta Luciano – iluminar não apenas o saguão de entrada, causando o descrito efeito estético, mas também a casa de força do edifício, localizada ao fundo do espaço dos elevadores. Por este motivo, as aberturas causadas à parede de tijolos poderiam ocasionar um grave acidente, caso alguém se aventurasse a adentrar o edifício pelas passagens assim abertas. Até que fosse conformado como um problema por meio de sua comunicação via “papelada” sendo, no final das contas, resolvido por uma solução paliativa improvisada, o caso teria sido alertado ao Iphan de dentro das relações cotidianas do Edifício. Interessante pensar que “vândalos” seria provavelmente a categoria de acusação lançada por arquitetos que celebram os aspectos “originais” do edifício, caso se vissem diante dos referidos tapumes. A conservação do monumento, que aqui supõe uma limitação “fundamental” entre “dentro e fora” – cujas aberturas insinuariam perigo – , parece supor necessariamente criar sobre a sua forma. É partindo de intenções fundamentadas em apreciações monumentais daquele edifício, que se procura, ainda que por meios contestáveis, mantê-lo. Nas palavras de Almir, “O problema todo desse edifício é que ele é tombado. Se não fosse, daria pra fazer muita coisa, consertar muita coisa.. Por mim, já era hora de botar abaixo esses tijolos de vidro todos. [...] deviam é colocar no lugar deles uma parede de vidro fumê. Assim ia ficar bonito, bonito que nem o Barão 99 de Mauá.” A esse respeito parece válido retomar a discussão de Latour a respeito de iconoclashes. Talvez precisamente por implicar ações que destroem por construir, a prática da restauração na arquitetura seria, segundo o autor, um foco especial de tais situações. Restauradores, conforme sugere, teriam uma posição precisa como potenciais iconoclastas – aqueles que "matam com ternura": Há outro tipo de destruidor de ícones [...]: o daqueles que poderiam ser chamados de "vândalos inocentes". [...] Eles estavam adorando imagens e protegendo-as da destruição, e mesmo assim são acusados de tê-las profanado e destruído! [...] O campo da arquitetura, em especial, está repleto desses "inocentes" que, quando constroem, têm que destruir, e seus prédios são acusados de não serem nada mais que vandalismo [...]. A vida é dura: ao restaurar as obras de arte, embelezar cidades, reconstruir sítios arqueológicos, eles os destruíram – dizem seus oponentes – a ponto de parecerem os piores iconoclastas, ou ao menos os mais perversos."(Latour : 2008) É interessante considerar que em certos contextos de elaboração discursiva a relação entre o “construído” e o “autêntico” (ou “original” 46) não parece representar antagonismo. A introdução de elementos “inautênticos” em um projeto “tombado” deve, nesse sentido, ser compreendida por uma perspectiva que não se restrinja a uma “retórica do desmascaramento”: a preservação do “original” surge como horizonte de tais iniciativas. Outro exemplo de “modificação” emerge do olhar sobre os canteiros ajardinados do pátio externo do Edifício, há não muito tempo envolvidos por uma baixa e discreta cerca de contenção. 46 Valendo destacar que as duas noções são aqui tratadas como sinônimos por conta do sentido específico que a palavra “original” assume nas narrativas em campo, designando aspectos remissivos à “origem” do edifício (como mais adiante se tornará mais claro). Trata-se de uma consideração importante tendo em mente outras possíveis apropriações do termo, que também pode, por exemplo, referir-se a “inédito”. 100 3.6 Jardins de Burle Marx Um dos aspectos que consagram o edifício como um marco do modernismo na arquitetura e nas artes diz respeito à introdução de jardins em seu espaço, o que inclui, para além da disseminação de cobertura vegetal nos ambientes térreos externos, a disposição dos chamados “terraços-jardins”, voltados a devolver, nas coberturas de um edifício, o “espaço verde originário” que sua construção teria suplantado. Os conhecidos jardins do Palácio Capanema seriam projeto paisagístico de Roberto Burle Marx. A participação no projeto, que constitui um dos primeiros momentos de amplo reconhecimento de seu trabalho, é um dos aspectos em destaque nas narrativas “monumentais” do edifício. Algumas características que vieram a se tornar “marca” do paisagista podem ser localizadas em tais jardins, tais como o desenho curvilíneo dos canteiros e o uso de espécies nativas. Ao serem introduzidos, tais jardins adicionariam ao projeto arquitetônico algo além de uma simples ornamentação: eles conduziriam o olhar e a trajetória de pedestres pelo edifício de modo a serem adotadas perspectivas ideais à contemplação da monumentalidade do conjunto – sua imponência e beleza. Afinal, “a clareza do projeto principiava por sua capacidade de exibir-se integralmente ao olhar do passante” (Lissovsky; Sá:1996, p. xxiii). Conforme sugere Guilherme Mazza Dourado (2009): O posicionamento e os formatos dessas estruturas introduziam acessos e ângulos privilegiados de visualização do conjunto a partir de diagonais [...]. [...] essa estratégia foi potencializada pela solução paisagística de 101 Burle Marx, cujos maciços vegetais enfatizam mais diretamente ângulos de visão e acessos em diagonal ao edifício. (DOURADO : 232 – 235) Por sua vez, nem todos “receptores” de tais nobres intenções se revelariam tão dóceis ao projeto. Conforme Jupiara e Luciano narram, muitos deles prefeririam atravessar os canteiros, cortando caminho entre as plantas. Diante da recorrente destruição das folhagens dos jardins tomados como atalhos, tornou-se imperativo desencorajar tal comportamento. Daí a inclusão dos arranjos de contenção dos canteiros. “Não podia continuar daquela maneira. Imagina, as pessoas passavam pelos jardins, assim, descaradamente. Sabe, no Iphan eles elaboraram um projeto, projeto mesmo, para a cerca. Fizeram a planta-baixa dessas estacas (...).” As estacas direcionariam longos e finos tubos que, conforme descreve, seriam de plástico pvc: “E esse tubo de pvc é pintado de verde, como a estaca. Deve ser do preto, não do azul; senão fica com a coloração diferente, isso o Luciano também explicou.” Uma vez mais, a intervenção surge como uma maneira de preservar o edifício. De um lado, pode ser que se corrompa o traçado do projeto original de Burle Marx. De outro, não haveria outra solução para preservar algo que se mostraria mais importante à administração e ao Iphan: seu conteúdo. Diante de fenômenos imprevistos pelo projeto, conservar deixa de significar manter o Palácio conforme “sempre teria sido”, e passa a implicar tomar decisões. Agir, criar, em nome e em respeito aos criadores. Em outras palavras, trata-se de soluções improvisadas e em certa medida precárias, mas que não deixam de partir de intenções de preservação, e de elaborações discursivas que, embora possam ser tidas como unicamente “técnicas” ou “administrativas”, estariam fundamentadas na apreciação e na concepção do prédio como um monumento, dotado de valores históricos, arquitetônicos, artísticos. 102 Como resultado, a autoria do Iphan em tais intervenções em certa medida as legitimaria como “parte” do conjunto. As modificações introduzidas não seriam nesse contexto denunciadas como “descaracterização” do projeto. O que implicaria, por sua vez, o exato contrário: elas passariam a participar do mesmo. Uma vez estabilizadas, as intervenções “criativas” sobre o conjunto passariam a constituir, elas mesmas, projeto, impondo serem igualmente preservadas. Esta dinâmica pode ser aproximada àquela constitutiva da relação entre invenção e convenção, tal como trabalhada por Roy Wagner (2010). O autor compreende a classificação como um processo criativo e dinâmico, no qual se lança mão de categorias enquanto “invenções convencionalizadas”, submetidas a novos processos de criação cada vez que são operadas. Trazendo esta leitura ao caso considerado – tendo em vista que Wagner não restringe à noção de cultura a idéia de invenção – , o “Palácio Capanema” e, mais precisamente, seu “projeto”, sua “origem”, seriam “inventados” a cada intervenção, objetificando, ao fim desse processo, uma imagem estática, convencionalizada, passível de conduzir uma nova seqüência de criações. Mais do que meras sobreposições de “imagens inautênticas”, estaríamos falando de processos criativos que não excluem o lugar do “original” – que é, igualmente, “inventado”. Ao ser narrado e ao ser mantido, o Palácio estaria sendo criado. Assim, de dentro do cotidiano, o “monumental” não constitui um material de elaborações discursivas sem maiores conseqüências: ele é materialmente produzido. De Tim Ingold, fora aproximada à proposta de uma etnografia no Palácio a hipótese de ver estruturas arquitetônicas como “construções permanentes”. Ao trazê-la a campo, tornou-se possível classificar tais processos de intervenção em monumentos 103 em termos de uma noção que lhes parece mais adequada: a de “monumentalização permanente”. Ela permite conciliar o caráter “criativo” de tais processos com a valorização monumental que, detida sobre o “autêntico”, a princípio lhe seria contraditória. 3.7 Monumento feito de histórias Um caso torna este processo especialmente evidente. Trata-se do crescimento inesperado de uma árvore localizada na ala norte do pátio externo, mais ou menos no limite entre as ruas Graça Aranha e Araújo Porto Alegre (Imagem 1.2). Próxima de atingir a altura do próprio edifício, a árvore teria encoberto o mastro “original” da bandeira, tornando necessária a construção de um novo; obstruído o contorno curvilíneo do canteiro em que se localiza; e, acima de tudo, provocado a deterioração das pedras do pavimento, por conta da difusão de suas raízes na procura de água. Tal deterioração se faria evidente sobretudo nos dias de chuva, em que esta porção da área externa parece concentrar uma única e larga poça. Apesar de todos os danos causados, a árvore seria parte integrante do conjunto, necessitando também de preservação. Nas palavras de Luciano, “nem todo edifício é um organismo.. há, contudo, aqueles edifícios compostos por organismos vivos: jardins. É o caso deste edifício aqui. (...) Com isso, o monitoramento do bem tombado deve abranger, também, o controle dessas espécies, para elas não se excederem em seu desenvolvimento.” Conforme explica, o pátio norte do edifício receberia um nível elevado de insolação em relação ao pátio sul. Predominantemente sombreado, os jardins do pátio sul apresentariam uma vegetação de porte “modesto”, ao passo que, na porção norte, 104 as espécies se desenvolveriam mais. A insolação direta sobre tais jardins teria favorecido o crescimento exagerado da árvore – por ele apresentada como uma bombacácea – correspondendo, no solo, ao crescimento também de suas raízes. Como modo de contornar o problema, cortar alguns de seus galhos ou raízes não seriam de grande ajuda: rapidamente voltariam a crescer. Em nenhuma hipótese, se aventa removê-la. Trata-se, afinal, de um elemento valorizado como monumento, “assinado” por Burle Marx. Por outro lado, a participação em uma conversa entre Jupiara e Éfrem – um colega de “longa data” no Capanema, que a teria acompanhado desde seus primeiros anos – trouxe uma “versão” bastante diferente do mito da árvore. Conforme relato em meu diário: Estávamos no pátio do Edifício (...) quando Jupiara começou a dizer, contemplando a árvore: “Você sabe, o Burle Marx viajava pelo Brasil todinho em busca de espécies novas. Ele fazia isso sim, eu já pesquisei a esse respeito. (...) Aí um dia ele trouxe essa semente, dessa árvore, para fazer esse jardim aqui” – Éfrem interrompe, dizendo: “Que isso, Jupiara, de onde você tirou essa idéia? (...) Essa árvore aqui, ela não tem essa história não. Ela veio de um representante, acho que do Japão, se não me engano; ele trouxe uma semente como presente ao ministro, e aí ela foi plantada nesse ponto. Mas não é original do Burle Marx, não tem nada a ver. Deve ter no máximo uns vinte anos que está aí..” Qual seria a versão “real” a respeito da origem da árvore – esta não parece ser a discussão mais interessante para ser desenrolada aqui47. Por outro lado, o fato de seu tratamento como projeto é algo que leva a pensar, e que só seria iluminado por esta referência. Sendo ou não de Burle Marx, ela agora já seria parte de seu projeto 47 A especificação vegetal do plano paisagístico para a sede do MES constitui material de arquivo, apresentado, por exemplo, no referido livro de Guilherme Mazza Dourado (2009). À exceção desta bibliografia, não encontrei qualquer registro a respeito das espécies utilizadas por Burle Marx no projeto. De toda a forma, tais registros remetem a planos anteriores ao “executado”, não prevendo, por exemplo, o prolongamento do volume do salão de exposições, efetuado no contexto da construção do conjunto (LISSOVSKY; SÁ, 1996). 105 paisagístico. Por sua vez, a variante narrada por Éfrem faria sentido se considerarmos como uma qualidade marcante do projeto paisagístico para o MES a predominância de espécies “rasteiras” na formação dos maciços vegetais que compõem seus jardins. À exceção de algumas palmeiras, erguidas em canteiros próprios, os jardins daquela porção do pátio não apresentariam espécimes de proporção semelhante – e, afinal, qual seria o propósito de introduzi-las, se isso poderia incorrer em danos à visibilidade do edifício (aspecto central a tal projeto e também ao tombamento)? A localização daquela árvore, em um canteiro incapaz de sustentá-la – e que teria também provocado danos na cerca de contenção de pvc que o envolve – certamente pode suscitar dúvidas a respeito de sua integração no projeto. Mais interessante parece ser refletir sobre a incorporação, pelo projeto, deste elemento incontrolável e imprevisto – qualquer que seja sua “origem”, aquela bombacácea seria, agora, autêntica. No final das contas, trata-se de mais um elemento disponível à experiência do edifício como contemplação estética. Mesmo diante de sua possível “inautenticidade”, os mencionados interlocutores discorreram a respeito da beleza e imponência da desconhecida árvore, revelando-se atentos às suas transformações ao longo do ano e das estações; e destacando, por exemplo, o fato de “vez por outra” (não saberiam dizer o período preciso) suas folhas assumirem uma bela coloração amarelada, adornando, em sua queda, todo o piso do entorno. Mais do que de registros rigorosamente resguardados, o monumento se mostraria, assim, feito de histórias. Ao que parece, o projeto, como mito, incorpora transformações, enquanto eventos (SAHLINS, 2008). Nesse processo, efeitos atingiriam os dois lados 106 envolvidos: a árvore, recebendo seu lugar na origem mítica do edifício; o projeto (essa origem), sendo “revisado” em virtude da manutenção de um elemento exógeno. Não exatamente um “componente autêntico”, de origem localizável no tempo e no espaço, a bombacácea seria incorporada como um elemento discursivo da narrativa mítica, tornando legítimo e inteligível seu lugar naquele espaço. Esta, no entanto, não seria uma incorporação simples, e a árvore permaneceria um problema sem aparente solução: é preciso preservá-la, enquanto monumento e, ao mesmo tempo, os demais aspectos monumentais do Edifício, ameaçados. Espécie peculiar de iconoclash, nessa situação colidem o edifício e a árvore enquanto monumento. Aparentemente, ao crescer, a bombacácea não acrescentaria monumentalidade ao conjunto: ela lhe causaria danos. Por sua vez, removê-la compreenderia um dano talvez equivalente, incidindo nas narrativas e experiências de pessoas do edifício que a apreciam. Mostra-se urgente a elas tornar possível a convivência entre as duas entidades. Detalhes a respeito dessa questão, especialmente enigmática, viriam a ser iluminados através da abertura de uma nova perspectiva ao trabalho de observação. Trata-se da conformação de um contexto de aparentemente repentinas e, ao mesmo tempo, significativas transformações, envolvendo a iminente realização de reformas de restauração de proporções inéditas. 107 Capítulo 4: Campo em transformação Nesse contexto, a questão da árvore seria elaborada enquanto um dentre muitos aspectos contemplados por um ambicioso “Plano de Ação” para o Palácio Capanema, diretamente relacionado – como vim a descobrir – à sua candidatura como “patrimônio da humanidade” pela Unesco. Tal oportunidade representaria um eficaz controle sobre o monumento, a possibilidade de reverter seu aparente abandono e devolver-lhe, o máximo possível, sua “forma original”. A novidade veio à tona com a publicação de editais relativos à abertura de licitação pública tanto para a modernização dos elevadores como para a elaboração de um plano de reformas de restauração e modernização do conjunto. Os novos planos para o Palácio comportariam, assim, aspectos de modernização: a referida troca dos elevadores, há muito almejada por seus usuários; a instalação de um amplo e eficaz sistema anti-incêndio; a realização de reformas de adaptação visando demandas de acessibilidade; e, um ponto polêmico, a instalação de um sistema de ar condicionado central. Em outras palavras, as mesmas reformas que em um plano “abstrato” e mesmo “vago” assombrariam admiradores do Capanema em sua suposta conversão a sede das Olimpíadas em breve seriam materializadas e legitimadas pelo Iphan – o mesmo lugar de onde teriam surgido as referidas contestações. Conforme explicaria Luciano, uma série de questões teriam até aquele momento impedido tais reformas, destacando-se, dentre elas, a ausência de recursos financeiros públicos para tanto. Como sugerido anteriormente, a “burocracia” também seria com freqüência “personificada” (além de objetificada) como a “responsável” pelo estado do edifício: Almir sugeriria haver muitos anos – ou mesmo décadas – que 108 os elevadores estariam por ser trocados, apresentando falhas freqüentes, que perturbariam o cotidiano de seus usuários. Durante o acompanhamento da visita técnica para o contrato de manutenção dos elevadores, percebi que os representantes das firmas concorrentes se mostravam bastante surpresos diante daqueles motores de setenta anos de idade, examinando-os menos por um interesse puramente técnico, do que com uma curiosidade quase lúdica de quem se vê diante de peças de um museu. Conforme Jupiara certa vez me explicou, haveria em curso fatores mais sutis impedindo a modernização dos elevadores: o “tombamento” exigiria a manutenção das portas de sucupira (Imagem 1.3), ao passo que, em sua maioria, as empresas licitantes não arriscariam abrir mão da introdução de portas de aço “corta-fogo”, para ceder a uma imposição que, diante da segurança inspirada pelas novas tecnologias, seria “meramente” estética. Ao folhear o edital para a modernização dos elevadores, Jupiara mostrou-se contente de testemunhar um “momento histórico” – como o designou – , chegando a antecipar sua celebração como um “legado” da Administração Funarte, muito embora tais editais se referissem à 6ªSR48. Luciano complementaria a fala de Jupiara mencionando que os novos elevadores teriam, de fato, portas de aço – cobertas, no entanto, por finas lâminas de madeira de modo a atender ao cuidado com a “forma original” do edifício. Além disso, comentaria a respeito do lançamento concomitante de outro edital, de proporções mais abrangentes, relativo à abertura de concorrência pública para a elaboração de um plano de restauração e modernização do edifício. Pergunta a Jupiara a respeito do agendamento das visitas técnicas programadas para aquela 48 Conforme explica, iniciativas como esta jamais teriam origem no Condomínio, cuja receita contemplaria apenas a remuneração dos “contratos continuados”. 109 semana, voltadas a apresentar às empresas de arquitetura interessadas em concorrer – e que teriam retirado o edital na Internet – os pontos a serem contemplados pela elaboração do “plano de ação”. Pedi sua autorização para acompanhar tais visitas e, desse modo, consegui saber um pouco melhor a respeito das iminentes transformações no Capanema. 4.1 A raiz do problema: um terreno indócil Luciano conduziria a realização da visita com base não apenas em seu trabalho de acompanhamento e fiscalização do edifício, como também em um aprofundado estudo de seus detalhes arquitetônicos, recentemente desenvolvido pelo Professor Roberto Segre (LAURD/FAU/UFRJ49). Conforme explica, o dossiê conteria informações que serviriam de base ao monitoramento do Palácio por parte da Unesco na ocasião de sua inscrição como “patrimônio mundial”. Ele ajudaria a identificar focos potenciais de intervenções de restauração, contribuindo no sentido da elaboração de um “diagnóstico” atual do edifício enquanto um dos aspectos centrais da elaboração do referido “plano de ação”. Dentre outros pontos, o mencionado estudo apresentaria aspectos pouco visíveis do edifício que estariam diretamente relacionados ao caso da bombacácea, e que puderam ser iluminados somente através da atenção aos “antecedentes” do terreno ocupado: a configuração geológica do espaço em que o MES fora erguido remeteria ao antigo Morro do Castelo. Remissivo às primeiras décadas do século XX, 49 Laboratório de Análise Urbana e Representação Digital, do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 110 o desmonte deste morro teria dado origem à “Esplanada do Castelo”, ponto em que seriam construídas as sedes de três ministérios: o do Trabalho, o da Educação e Saúde, e o da Fazenda (Cavalcanti, 2006). Esta seria uma dentre outras iniciativas ligadas a um contexto mais amplo de efervescência em torno de planos de “melhorias” urbanas. É interessante pensar como o episódio histórico conformaria uma boa metáfora para pensarmos a idéia de “projeto”, sintetizando o princípio da “planificação” de uma forma a ser executada, antecipada por sua projeção em uma plana e limpa folha de papel. Diferentemente da mesma, a região que seria classificada como o centro do Rio de Janeiro de até as primeiras décadas do século XX em nada se assemelharia a um suporte neutro e plano, pronto para ser feito objeto de planejamento. Dotado de um relevo acidentado e “arredio” a grandes iniciativas urbanísticas, o espaço urbano precisaria ser antes construído como tabula rasa, favorecendo a livre mobilidade da mão que planeja a capital de um país em construção. Através de uma planificação literal, aquele espaço seria enfim submetido à tentativa de total controle; estabilizado como um objeto inerte. Ou, ao menos, assim se teria acreditado até o presente momento, em que olhares de profissionais da arquitetura novamente se inclinariam sobre aquele terreno localizado entre as ruas Santa Luzia, Graça Aranha, Araújo Porto Alegre e Imprensa. Longe de configurar a almejada tabula rasa, ele apresentaria resistências ao projeto, interagindo com a construção e dotando-a de novas formas nessa relação: correspondendo às camadas mais profundas do antigo Morro, aquele solo seria marcadamente denso, difícil de ser 111 penetrado. Conforme descrevo em diário: Ele (Luciano) então localizou em meio ao dossiê um modelo tridimensional do edifício (…), que seria sobreposto por outro, referente ao antigo Morro do Castelo. A superposição das duas plantas tornava claro que, se ainda existisse, o morro cobriria o Palácio até o 11° andar. Explica que o solo sobre o qual o prédio fora erigido seria composto predominantemente pela rocha gnaisse – “rocha metamórfica, com pouca penetrabilidade”, nas suas palavras. Conforme Luciano explica, residiria aí o motivo do crescimento radicular da bombacácea e, portando, dos danos por ele causados ao pavimento: impedidas de se aprofundarem na busca por água e nutrientes, as raízes os teriam encontrado no canteiro diametralmente oposto, expandindo-se e espalhando-se até a fonte d’água que ali se localiza. Não seria, é claro, possível “trocar” o solo por um mais apropriado a um desenvolvimento da árvore que não comprometa o monumento. Luciano certa vez contou a respeito de uma de suas primeiras idéias na tentativa de solucionar a charada, que consistiu em recorrer à ajuda de um “fitopatologista”. “Mas logo cheguei à seguinte conclusão: em que um fitopatologista seria útil, se a árvore não está... exatamente... doente? O problema é, justamente, esse: ela está perfeitamente saudável. Até demais. Foi então que me veio à mente algo mais adequado: consultar um profissional que entenda da vida – e não da doença – das plantas. Um fitofisiologista.” Ao apresentar aos arquitetos concorrentes o “caso da árvore”, Luciano acrescentaria, de modo a estimular a imaginação dos mesmos, a referência a recentes estudos realizados em escala laboratorial do controle do crescimento de espécies vegetais em lavouras via dosagem hormonal. Conforme explica, uma vez reguladas, as doses de citocinina e auxina – fito-hormônios responsáveis, respectivamente, pelos crescimentos lateral e axial das plantas – poderiam responder a intenções de controle 112 sobre a expansão de uma árvore. “Mas vocês já tentaram isso? Tem comprovação de que funciona...? (uma arquiteta perguntou.) “Como falei, trata-se de um estudo aplicado somente em escala laboratorial. Se funciona mesmo ou não, se valeria a pena testar ou não.. Isso fica com vocês!” – Luciano responde atribuindo à referência ao caso o tom de uma charada. Sem uma solução definitiva, o caso da árvore constituiria um ponto a ser desenvolvido pela empresa licitante em seu plano para as reformas. Luciano chegou a sugerir uma solução paliativa: elevar o grade do pavimento externo de modo a encobrir o piso danificado e dissimular o crescimento incontrolável das raízes da bombacácea. Tomando de empréstimo a câmera fotográfica de um dos arquitetos presentes, ele se prontificaria a, nas suas palavras, “fazer um registro da arquitetura e da destruição”: no espelho dágua produzido pela chuva sobre o pavimento depredado, vê-se a imagem maculada do edifício (Imagem 1.4). Não parece haver modo mais preciso – e belo – de descrever esse peculiar iconoclash. 4.2 “Visita guiada” Na ocasião da visita técnica, uma série de outras patologias50 a serem contempladas na elaboração de um “plano de ação” seriam apresentadas. Apresento, a seguir, algumas delas. 50 Esta seria a categoria nativa operante na classificação de potenciais focos de intervenção. O corpo humano também se revela como “bom para pensar” a arquitetura na idéia de “diagnóstico”, que no caso seria uma das etapas de desenvolvimento do plano de reformas. Longe de remeter unicamente a contextos etnográficos “distantes” (BLIER, 1987), a metáfora possui relevância no pensamento arquitetônico das chamadas sociedades ocidentais e modernas. 113 A chamada casa de bombas do edifício, constituída pelas bombas que conduzem a água das cisternas às caixas d’água (no terraço), localiza-se no interior de uma grossa coluna do térreo (situada na fronteira entre o volume vertical do edifício e o do mezanino). Conforme Luciano explica – chamando atenção ao forte cheiro impregnando aquele espaço – , alguns problemas decorreriam de uma circulação de ar insuficiente, provocando naquele espaço a concentração de cloro emanado das tubulações. Ele sugeriu haver um movimento de rotação na junção de uma das paredes com o teto que, provocada por essa contaminação por cloro, repercutiria na abertura de uma discreta, porém visível, fenda no piso do andar de cima – que, encoberto por linóleo, corresponderia ao salão de exposições. O revestimento das conhecidas colunas do edifício também apresentaria danos visíveis, cuja principal causa seria urina – acrescentando-se a este fator os produtos químicos aplicados diariamente em sua limpeza. Por sua vez, um quadro mais amplo de desestabilização de placas de revestimento, ameaçando porções mais elevadas do edifício, teria explicação na incompetência de uma administração anterior, ocasião em que se teria providenciado a limpeza externa dos brises, valendo-se da instalação de um cabeamento no terraço do edifício que teria corroído a pingadeira – acabamento localizado abaixo dos peitoris que, dotado da função de afastar da fachada do edifício o escorrimento de água da chuva, impediria a absorção da umidade por seu revestimento. Não sendo impermeáveis, os maineis em torno dos brises estariam úmidos (Imagem 1.5), representando riscos – motivo porque teriam erguido, já há algum tempo, no décimo quinto andar, uma tela de contenção azul. Luciano afirma haver pouco mais de dez anos a última reforma de restauração – que, a seu ver, teria sido quase em vão diante deste quadro atual. Certos problemas 114 também acometeriam os “jardins suspensos” – do volume do mezanino e do terraço (16º andar) – e, mais precisamente, seu sistema de drenagem. Eles repercutiriam em infiltrações, visíveis, por exemplo, em certas porções do teto do décimo quinto andar (Imagens 1.6 e 1.7). Por sua vez, o sistema de condensação do ar condicionado51, localizado por trás da parede em que se situa o painel de têmpera de Portinari (Jogos Infantis), ameaçaria constantemente a integridade da obra. Vale ainda conferir destaque à ação da maresia sobre as esquadrias do pan-deverre, tendo em vista a proximidade do edifício aos ares impregnados de sódio provenientes da baía. Tal como neste caso, o tempo seria também uma variável relevante nos processos químicos de transformação, ocasionando, por exemplo, a deterioração das luminárias “padrão” do edifício, de vidro prensado – o que faria com que em seu lugar restassem apenas as lâmpadas fluorescentes que por elas seriam encobertas. As poucas luminárias que teriam resistido estariam agora alocadas próximas às janelas da fachada envidraçada, de modo a manter o que resta do efeito externo que ocasionam quando acesas. 4.3 Vida dos materiais, patologias do projeto Descrever aspectos de transformação do Capanema evidencia as complexas camadas de agência incidindo na obra arquitetônica como “construção permanente”, 51 Conforme me fora explicado, o auditório Gilberto Freire e o segundo o andar (gabinete) seriam desde sempre contemplados por um sistema de ar condicionado, compensando o sistema de ventilação que nesses casos seria considerado pouco eficaz. 115 que não dizem respeito apenas à ação humana. Além de autores nitidamente “animados” – tal como as raízes da referida árvore – , estamos falando também da vida de seres supostamente “inertes”: materiais que, por mais resistentes, não escapam dos processos de transformação que lhe seriam constitutivos. Nas palavras de Ingold, far from being the inanimate stuff typically envisioned by modern thought, materials [...] are the active constituents of a world-in-formation. Wherever life is going on, they are relentlessly on the move – flowing, scraping, mixing and mutating (2011:p.28). Embora remetam a processos “naturais” de materiais em transformação, a responsabilidade por tais patologias seria direcionada a “mãos suspeitas” às quais o Capanema estaria sendo submetido ao longo dos últimos anos. Tal como no caso da pingadeira, outros focos estariam diretamente relacionados a tais ações humanas, incidindo também em insatisfações de ordem estética – como, por exemplo, a introdução de um carpete cinza por cima do piso de linóleo do segundo andar, “atrapalhando” – nas palavras de Luciano – “o jogo de refletância do piso com o sofá”, minuciosamente calculado na elaboração daquele espaço. Por um lado, estamos falando de expectativas depositadas sobre mãos humanas em sua capacidade de distinguir-se de “outras” instâncias de transformação e sobrepujá-las. Luciano explicaria o desordenado estado do edifício pela noção de que nas administrações anteriores não se teria acompanhado devidamente tais processos, motivo pelo qual apenas a partir de agora, com a iniciativa de um monitoramento eficaz acionada pela possível inscrição na Unesco, se poderia ter certeza de que o Palácio enfim manteria sua forma. Ao que parece, a mão humana deve sempre requerer uma posição superior e autoritária em relação a outras “mãos” – patas, raízes, elementos químicos. De outra 116 forma, ela se veria subordinada pela ação das mesmas. Partindo da mencionada reflexão de Ingold em torno da idéia de projetos arquitetônicos, pode ser que, por se conceber como um “ser externo” a tal encontro entre múltiplos processos de “estarno-mundo” – correspondentes às atividades vitais de cada agente – , o homem “moderno” o classifique como um cenário hierarquizado, constituído por conflitos em torno da predominância de uma única fonte de ação – e, nesse sentido, por colisões, e não exatamente pelo alinhamento daqueles “mundos habitados” tal como parece sugerir o uso que o autor faz das idéias de Von Uexküll. Torna-se necessário lutar para impor como predominante sua ação, o que implica desautorizar outras, rebaixálas na concebida hierarquia de agentes, através de sua classificação como “desordem”. Por outro lado, esta acusação, que legitima o domínio da mão humana sobre “agências outras”, remeteria não apenas à ausência de autoridade sobre elas, mas também ao excesso da mesma. Mais precisamente, à tentativa de exercer domínio sobre um nível que se revela como o mais elevado nesta hierarquia: as mãos dos gênios criadores. A apresentação de aspectos “modificados” do edifício seria atravessada por referências de acusação à ousadia de “interventores” que se reivindicam como “autores”, ao “mexer” no trabalho de nomes como os de Le Corbusier, Lucio Costa, Reidy, Niemeyer. Cada um desses nomes, menos indivíduos do que entidades impondo que sua criação seja mantida. Acusações nesse sentido, por outro lado, não acompanhariam uma seqüência quase interminável de intervenções, estendendo-se até a inauguração ou tombamento do edifício. Gerada de dentro de um quadro de elaborações do Iphan, ela dificilmente 117 atingiria seus próprios feitos, identificados em uma relação de indissociação em relação aos dos referidos grandes mestres. 4.4 Memórias de intervenções Referências a intervenções no edifício viriam a emergir em campo remetendo com freqüência a momentos recentes de seu histórico – mais precisamente, às mãos de administradores não provenientes do Iphan. Em grande medida, aos tempos que se sucederam à criação do Condomínio PGC. Casos como os mencionados – como o da instalação de cercas de contenção nos jardins ou de placas metálicas à frente de tijolos de vidro depredados – remeteriam a poucos anos atrás, o que pode levar a crer que seriam fundamentalmente recentes quaisquer intervenções no edifício. No entanto, o trabalho de pesquisa viria a elucidar que tais processos de “criação” na “preservação” remeteriam a tempos mais remotos. Ao longo de sua “vida”, o edifício teria se submetido a muitas modificações52, sem que exatamente fossem concebidas como comprometedoras ao projeto histórico. No contexto da referida concorrência pública à elaboração de um plano de reformas alguns fatos a esse respeito seriam narrados, por conta seja do caráter decisivo da atenção a certas informações no trabalho a ser realizado pelo licitante, ou ainda de um 52 Embora possam estar registradas, as discutidas modificações não teriam em sua maioria sido depreendidas de pesquisas bibliográficas ou de arquivo, mas da atenção sobre as narrativas cotidianas em que tiveram lugar. Considero importante ressaltar que toda a documentação a respeito do edifício com que entrei em contato – referente ao Arquivo Central do Iphan ou ao Arquivo Gustavo Capanema (CPDOC/FGV) – remeteria, em grande medida, a dados anteriores ao tombamento e contemporâneos à construção do conjunto e, apenas uns poucos, a providências tomadas até meados dos anos de 1960. Tendo em mente que a pouca referência a materiais de arquivo possa ser tida como resultado de uma pesquisa insuficiente, julgo importante, antes de mais nada, reiterar o foco sobre o cotidiano de interações do edifício como a abordagem central da presente pesquisa e sua principal contribuição, precisamente por evidenciar como as ações sobre o edifício seriam narradas em tal contexto discursivo e como tais narrativas agenciariam a relação com o monumento. 118 prazer “em si mesmo” de trocar anedotas da arquitetura pouco conhecidas em contextos de circulação mais amplos. De maneira não muito diferente das referidas interações em curso no âmbito da administração, se mostraria em curso uma espécie de “obsessão” em narrar a epopéia do edifício, celebrar os fatos e autores envolvidos: “Alguém aí sabe por que esta parede aqui é azul? É assim, em todos os andares. O Lucio Costa sugeriu esse tom de azul, vamos ver se vocês conseguem adivinhar..” Silêncio; alguns nem prestam atenção. “Olhem ali na janela, à direta, a Igreja de Santa Luzia. Reparem só na cor das torres (...). Essa parede interna foi pintada no tom idêntico, para fazer o contraste e integração com a Santa Luzia..”53 À semelhança de aspectos enigmáticos e secretos de narrativas míticas, tais referências despertariam visível curiosidade entre os interlocutores. Como diriam Lissovsky e Sá, “nascido monumental, a construção deste edifício envolve-se, desde logo, em uma narrativa mítica, repleta portanto de lances misteriosos e segredos sutis” (1996: xxvi). Espécie de variante cotidiana do programa de “visitas guiadas”, as narrativas em circulação nesse contexto colocariam em operação elementos discursivos de compartilhamento restrito, manipulados por um seleto grupo: arquitetos. Conforme explicitado anteriormente, o trabalho de descrição etnográfica focalizaria tais elaborações cotidianas do monumento como um material de análise capaz de revelar por si só questões de interesse, sem que tenham de corresponder a ditos “fatos históricos”. Algo que se discute é que, embora a predominância de determinadas leituras em detrimento de outras possa produzir uma “memória” como uma dimensão subjetivamente experimentada como “dada”, esta não seria outra coisa 53 Tal como colocara, em sua participação na visita técnica, um arquiteto do escritório central do Iphan. 119 que uma construção narrativa – coletivamente compartilhada, conforme sugere Halbwachs (2006). Com isso, as histórias em torno do edifício trocadas em interações diárias podem ser compreendidas como elementos de um contexto de produção “cotidiana” de memória, que de longe se faria restrita às versões ditas “oficiais” presentes na literatura histórica e arquitetônica a esse respeito. Não se deve, é claro, ignorar o rigor e mesmo a objetividade perseguidos (mesmo que como um ideal distante) pela historiografia no controle de suas fontes discursivas: o esforço de relativização das diferentes modalidades de produção de memória aqui sugerido se deve ao papel positivo cumprido pelas construções narrativas – que se valem até mesmo de apropriações de tal literatura54 – nas interações e percepções em torno do edifício como monumento capazes de porventura lhe gerar efeitos visíveis. Nesse sentido, o contexto da iminência de reformas tornaria visível tal modalidade de elaboração discursiva que constitui uma produção “cotidiana” de “memória”. Histórias a respeito do edifício seriam trocadas por parte dos arquitetos reunidos – Luciano e os representantes das firmas em concorrência – ao longo do percurso pelos muitos espaços constitutivos do Palácio. Ali, apropriações das “grandes narrativas históricas”, relatadas na bibliografia sobre o Edifício, seriam articuladas a histórias elaboradas com base em apropriações sensíveis, imediatas55, cotidianas do monumento, constituindo, nesse sentido, 54 O já mencionado livro Colunas da Educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde (1935-1945), de Lissovsky e Sá (1996), seria mencionado com freqüência em tais narrativas. 55 Sem dúvida, não há como apreender um monumento senão pelos sentidos – mais especificamente, o da visão, atuante também – vale ressaltar – em apropriações distanciadas, efetuadas unicamente pela mediação literária ou fotográfica. No entanto, no caso das atividades técnicas envolvidas na manutenção diária deste monumento, sentidos como o tato, o olfato e a audição adquiririam um lugar e uma relevância específicos, trazendo elementos novos à elaboração de uma “memória” daquele espaço. 120 elaborações selvagens (LÉVI-STRAUSS: 1970) em torno do mesmo. Desencadeados no percurso pelos espaços do edifício, tais processos de elaboração poderiam ser aproximados àqueles da memória como arte clássica (YATES: 2007). Um breve olhar sobre algumas dessas histórias, entrelaçando-as, quando possível, a detalhes fornecidos em suas versões “oficiais”, torna evidente que ao longo de todo o histórico do edifício teriam sido realizadas intervenções que não remeteriam apenas a contextos recentes de ações “exógenas” ao Iphan, conformando gestos a priori passíveis de serem identificados como “iconoclastas” no âmbito do referido instituto. Algumas delas são apresentadas a seguir. 4.5 Narrando transformações Certos casos de intervenção não têm a ver propriamente com modificações estruturais, físicas no edifício, e sim com alterações nos “usos” – ou funções – previstos por seu projeto em alguns de seus espaços. A esse respeito, algumas observações responderiam àquelas questões colocadas na ocasião do debate público em torno do Palácio: teriam seus “usos” sempre obedecido às imposições de um projeto? A porção térrea do “volume do auditório”, por exemplo, concentraria algumas memórias desta modalidade de intervenção “legítima” no projeto do MES. Conforme Luciano narra na visita técnica, a “Sala Funarte”, espaço de apresentações musicais dotado de um moderno mobiliário, seria originalmente a garagem do edifício – valendo acrescentar a este relato a observação feita por Jupiara a respeito da baixa mureta curvilínea localizada no pátio norte que, estendendo-se até o acesso privativo, 121 direcionaria em outros tempos o caminho dos veículos à garagem. Por sua vez, a atenção a materiais de arquivo revelaria que há muito tempo a circulação de automóveis teria sido restrita naquela porção do conjunto. Na década de 1950, esta providência seria tomada diante de problemas causados no pavimento externo – no parterre de granito da esplanada – por conta de eventuais derramamentos de óleo, de difícil remoção56. A total interdição da garagem, por sua vez, não seria mencionada neste material escrito. Luciano apenas menciona, sem precisar datas ou referências temporais objetivas, sua conversão em “pagadoria” – local ao qual os funcionários se dirigiriam para receber seus respectivos pagamentos. Já faria tempo este uso teria sido abandonado; apenas recentemente o espaço abrigaria a Sala Funarte. Toda a estrutura interna do local que hoje pode ser observada, contendo palco e cadeiras, remeteria a reformas recentes. Por sua vez, no décimo sexto andar, local onde no momento da pesquisa estariam localizados alguns escritórios do Remec (Representação Regional do MEC), estaria previsto, no projeto, um restaurante: dois, conforme Luciano, “um para as autoridades, outro para os funcionários”. Por conta disso, aquele espaço também conteria compartimentos para cozinha e despensa. Até o deslocamento da capital para Brasília, esta seria a destinação daquele espaço. No entanto, desde então o restaurante estaria desativado, dando origem a outras apropriações do local, incluindo a instalação de divisórias formando pequenas salas. Suscitado durante a visita técnica, o histórico relativo à cobertura do edifício cumpriria o papel de conformá-la como alvo de especulações relativas a novos usos a 56 Conforme documento datado de 13/11/1950, disponível no Arquivo Central do Iphan. 122 serem implantados a partir das reformas. De fato, naquele momento estariam sendo encerradas as atividades do Remec, agora finalmente remanejadas para Brasília. A reativação do restaurante seria uma possibilidade sugerida por Luciano de ocupação do “vazio” em breve aberto naquele espaço – cujo aproveitamento ou descarte ficaria, novamente, a cargo da empresa contratada. Diante da vista panorâmica do centro da cidade e da Baía de Guanabara favorecida pela perspectiva aberta por aquele espaço, os arquitetos mostraram-se de um modo geral entusiasmados com a ideia. 4.6 De funções a estruturas Outro “causo” despertado pela experiência do Palácio via “visita técnica” diria respeito a algo que poucos arquitetos embebidos dos aspectos “consagrados” do monumento saberiam: a existência de paredes estruturais no edifício. Luciano remeteria o fato ao contexto da última reforma de restauração, que teria sido realizada no final dos anos de 1990. Em meio às obras, o arquiteto licitado teria ordenado a demolição das paredes do terceiro pavimento, que, a seu ver, corromperiam um dos aspectos de destaque do edifício como marco arquitetônico: o princípio da “planta livre”. Como com freqüência se relata a respeito do ineditismo do projeto, concentrando os “cinco pontos da nova arquitetura” de Le Corbusier, a substituição de paredes por pilotis permitiria serem utilizadas apenas divisórias móveis, passíveis de serem deslocadas conforme a necessidade de uso. Interessante pensar que, em contraste com a idéia de “cristalização” de construções – que pode até ser associada ao tombamento –, a ausência de paredes estruturais atribuiria ao edifício qualidades 123 plásticas, prevendo nesse sentido a adaptação do espaço às utilizações do cotidiano. Essa consideração provavelmente teria tornado, aos olhos do referido arquiteto, supérflua, além de “poluente” ao projeto, a presença daquelas paredes. A instalação de paredes estruturais representaria um dentre outros aspectos do projeto revistos no contexto da construção. Conforme sugere Luciano, ela constituiria a elogiada solução dada pelo engenheiro Emílio Baumgart a problemas decorrentes de intervenções imprevistas – e que, apesar de mencionada, não teria sido explicitamente apresentada no texto de Maurício Lissovsky e Paulo Sérgio Moraes de Sá (1996) (ou de qualquer outra referência consultada a respeito da construção do edifício): O projeto original sofreu, no decorrer da construção, várias alterações. A primeira delas, no final de agosto de 1937, implicou em modificações na execução da estrutura da obra, já que, a pedido de Capanema, elevou-se o pé-direito do primeiro andar de 4,25m para 4,90. A segunda dessas modificações atingiu o número de andares; já em novembro do mesmo ano constatava-se que os 12 inicialmente previstos não satisfaziam às necessidades do ministério, que (...) deveria contar com pelo menos 15 (...). No contexto destas modificações é que se percebe o papel desempenhado pelo engenheiro Emílio Baumgart, que não só resolvia ‘elegantemente’ os problemas de cálculo que o projeto exigia como antecipava-se muitas vezes aos problemas que ainda poderiam surgir. (2006: p. 145) Conforme Luciano conta, a demolição das paredes – tentativa que sintetiza uma evidente situação de iconoclash – teria sido impedida por pouco. Por sua vez, o episódio chamaria, consigo, outros casos de modificações operadas no projeto, destacando-se, dentre eles, um remissivo ao tempo em que, além de concluído, o prédio já estaria sendo freqüentado: Naquele tempo havia em curso um trânsito no gabinete do ministro que era.. no mínimo.. esquisito..[...]. Em algum momento o ministro reparou nisso, e ordenou que “dessem um jeito” naquela situação. É que o jardineiro precisava atravessar todo o espaço do acesso ao gabinete para chegar ao jardim do terraço... Era uma movimentação esquisita aquela.. imagine, terra, adubo sendo derramado pelo caminho percorrido.. pelo 124 ministro! Foi assim que [...] veio à tona esta brilhante ideia: a criação de um acesso ao terraço-jardim no próprio volume do salão de exposições, evitando, assim, de uma vez por todas, aquela movimentação.. constrangedora... Haveria em curso na literatura e também nas narrativas em campo outros interessantes episódios relatando modificações e mesmo improvisos dos quais mostrou-se inevitável lançar mão durante a construção do prédio. A produção das esculturas e pinturas compondo os aspectos daquela arquitetura como obra de arte concentraria, por si só, alguns deles, tornando evidente a intervenção do ministro Gustavo Capanema sobre o trabalho de artistas como Jacques Lipchitz, Celso Antônio e Cândido Portinari. Destaca-se, no que se refere ao último, o episódio da substituição do padrão original de alguns azulejos – desenho de peixe que, aos olhos do público, apresentaria feições semelhantes às do ministro, constituindo “resultado estético não satisfatório” (1996: p. 222). Afinal, “a eficácia metafórica, a compreensão clara do conteúdo de uma forma arquitetônica, só pode efetivar-se a partir de uma vigilância constante das interpretações que suscita” (Idem, p. xxiv). Se nem sempre registradas, as modificações “vividas” pelo edifício em toda sua trajetória revelam-se talvez tão antigas quanto o mesmo. A “soberania” do projeto sobre a forma do monumento parece ter desde sempre sido “contestada”: os casos acima referem-se a alterações na ocasião da construção e também nos primeiros anos de uso, contribuindo para que tais práticas de “criação” na “preservação” sejam compreendidas como aspectos de uma dinâmica “estrutural” – mais do que contingentes e recentes –, ordenando o identificado processo de monumentalização permanente. 125 Vale ressaltar que, no que se refere à presença desconhecida – e passível de gerar certa polêmica entre certos “iconófilos” do Capanema – de paredes estruturais, a instalação de divisórias móveis em sua suposta substituição pode ser tida como um componente plástico do edifício, instituindo a possibilidade de seus espaços serem apropriados de diferentes maneiras conforme as intenções de uso. De certa forma, mudanças e imprevistos nas “imposições” do projeto estariam previstas no próprio projeto. Uma das primeiras experiências de usos “não previstos” remeteria às décadas iniciais do conjunto, quando teria sido alocado, no espaço entre os pilotis do edifício, o Museu de Arte Moderna – criação anterior, vale lembrar, ao projeto de autoria de Reidy, hoje amplamente celebrado57. Algo que vale ainda ser considerado é que o referido movimento de “permanente transformação” do projeto – que, sendo previsto pelo próprio projeto, não consistiria exatamente em uma “contestação” – assume uma amplitude ainda maior se considerarmos que ele mesmo, ainda na forma de desenho, se tornaria alvo de inúmeras revisões. É interessante a esse respeito destacar uma observação feita por Otávio Leonídio (2007) a respeito da concepção específica de projeto operada na elaboração da sede do MES. Tal concepção se vale da idéia de arranjo, permitindo por exemplo que o ato de deslocar volumes já projetados constitua, por si só, “criação”. Segundo ele, seria esta a perspectiva em jogo na definição da equipe liderada por Lucio Costa como a autora por excelência do projeto – e não Le Corbusier, responsável pelo traçado inicial do conjunto: 57 Esta observação não possui como fonte um referencial bibliográfico preciso, mas sim o depoimento do autor Otávio Leonídio, em conversa realizada em novembro de 2011. 126 [...] ao falar de projeto, estamos deliberadamente nos referindo sobretudo ao arranjo compositivo dos elementos volumétricos que perfazem a composição arquitetônica, além do tratamento dado às suas respectivas superfícies (vidro, alvenaria, brise-soleil etc.) e à disposição das plantas baixas. [...] Vale notar, a propósito, que no famoso – e jamais resolvido – caso da disputa da autoria do projeto do MES, uma das armas empregadas por Lucio Costa contra Le Corbusier radicava justamente nesta questão semântica: segundo Costa, Le Corbusier não era autor do projeto do edifício; era tão-somente autor do “risco original” a partir do qual a equipe brasileira havia, ela sim, feito o “projeto” do MES. (2007, p. 168) De fato, conforme sugerem Lissovsky e Sá, os arquitetos brasileiros [...] não consideravam satisfatória a alternativa feita às pressas pelo mestre para a Esplanada do Castelo. Somente no final de 1936 a equipe de arquitetos encontrou uma solução, alterando a relação entre os três elementos do edifício (bloco principal, auditório, pavilhão de exposições) que constavam da última sugestão deixada por Le Corbusier. (1996 : p.xix) O trecho de Leonídio traz consigo condições para perguntarmos a respeito da autoria do projeto como uma questão importante à presente discussão. Conforme é possível depreender das cartas e documentos organizados em Lissovsky e Sá (1996), seria em vão que Le Corbusier viria a requerer sua parte na autoria do edifício do MES. A “autoria” faria as vezes de uma categoria nativa, atuante não apenas na história e teoria da arquitetura, como também repercutindo em apreensões destas de um ponto de vista cotidiano. Em campo, ela mostrou-se à frente de boa parte das conversas realizadas entre os arquitetos concorrentes, conformando uma série de especulações naquele peculiar programa de “visita guiada”. “Mas esse edifício é do Niemeyer, não é?”; “Quem fez o plano pra esse jardim? É do Burle Marx?” – seriam questões recorrentes. A ênfase sobre a questão relativa à autoria indica como a idéia de “criação” mostra relevância nesse contexto. Dependendo do lugar de onde parte, uma ação de 127 “intervenção”, potencialmente destrutiva de formas “autênticas”, pode ser legitimada como uma “criação”. Não é como iconoclastas que a literatura costuma tratar Lucio Costa ou Niemeyer – mas como “criadores”, cuja ação apenas aperfeiçoa aquela de Le Corbusier. Ao que parece, no que se refere a monumentos, nem sempre “intervir” em sua “autenticidade” significaria “destruí-los”. A “autoria” deteria uma propriedade mágica de validar possíveis atos de iconoclasmo como criações legítimas, autênticas. A importância seria conferida não à ação em si, mas à entidade detentora das mãos que a executam. Esta peculiar modalidade de relacionar “preservar” e “criar” pode ser iluminada através do foco sobre a relação, histórica, de indissociação entre o Palácio Capanema e o Iphan, capaz de produzir tais categorias quase como sinônimos. 4.7 Entre preservar e criar Não haveria, de fato, como esperar um tratamento muito diferente do Iphan com relação ao edifício. Afinal, desde seu tombamento, através da inscrição no livro de tombo das belas artes, ele se encontraria sob os cuidados deste órgão, responsável precisamente por sua conservação como patrimônio nacional58. Tal como no caso de uma série de outros imóveis tombados, o “poder” sobre a “preservação” estaria restrito a determinadas mãos, estejam elas vinculadas ao Iphan, Inepac, a poderes estaduais ou municipais, à Unesco, etc. 58 Vale salientar que o motivo do tombamento, assinado em 09/03/1948 por Alcides da Rocha Miranda e inscrito em 18/03/1948 por Carlos Drummond de Andrade (ao longo da gestão de Rodrigo de Melo Franco de Andrade) seria a preservação da perspectiva monumental. 128 No entanto, há detalhes que chamam a atenção à peculiaridade deste caso em relação a outros. Precisamente por constituir, em sua origem, sede das elaborações discursivas do Iphan (então Sphan), remetendo assim às primeiras iniciativas de preservação patrimonial no país, este edifício assistiria e, em certa medida, produziria a nomeação de patrimônios nacionais. Nesse sentido, pensar a atuação do Iphan no que diz respeito a intervenções de conservação, restauração ou modernização no Palácio Capanema, exige levar em consideração que este edifício constitui fruto do contexto histórico preciso da criação de um instituto – ou, na época, serviço – voltado à preservação de objetos e espaços como patrimônio nacional. Por esse motivo, entender a relação do Iphan com este edifício em particular exige que retomemos sua construção como sede do MES e, mais especificamente, do Sphan enquanto elemento central à criação desse ministério enquanto peça chave da construção, remissiva ao Estado Novo, de um novo Brasil. Uma referência indispensável para esta discussão é a tese de Márcia Chuva (2009), intitulada Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural (anos 1930-1940). Aqui, a historiadora investiga minuciosamente o contexto de criação do MES, focalizando o tratamento dado nesse contexto à categoria patrimônio como bem simbólico constitutivo do pertencimento à nação. Nesse cenário, o tombamento serviria à intenção específica de estabelecer um “elo” com um Brasil “autêntico” perdido, feito de determinados conjuntos arquitetônicos – mais especificamente, os classificados como coloniais. A autora investiga o modo como tais monumentos seriam assim selecionados e classificados, e tornados alvo de ações de preservação. 129 Antes de mais nada, um interessante ponto trazido por Chuva diz respeito à qualidade das interações sociais organizando a seleção e “inscrição” de monumentos: estas se dariam com freqüência em termos de relações pessoais, mantidas – por exemplo – entre o ministro Gustavo Capanema e intelectuais alinhados ao modernismo nas artes e na arquitetura. Conforme sugerem Lissovsky e Sá, o contexto de construção do edifício-sede do MES se revelaria especialmente elucidativo do modo como tais interações se processariam nos anos 30 e 40, o que se faria visível, por exemplo, na “barganha” efetuada pelo Estado diante do “apelo de Le Corbusier à autoridade” sobre o projeto (1996 : xxvi). Propondo uma genealogia das relações sociais constitutivas da administração pública no país, o trabalho de Chuva parece oferecer um interessante paralelo histórico ao quadro de interações identificado no trabalho de campo. Como vimos, este seria caracterizado pela presença de elementos “informais”, remissivos ao estabelecimento de contatos e trocas de caráter “pessoal” no cotidiano das atividades da administração do Edifício. Nas suas palavras, (...)Tratava-se, mais do que de um engajamento visceral nas teses do regime autoritário, de uma rede de relações pessoais cuidadosamente tecida, a ponto de consolidar-se como uma característica da cultura política brasileira. (…) Seria justamente essa mesma “forma de administrar” que se repetiria e se transformaria pela sua repetição desde a época colonial [...], persistindo na ditadura Vargas e posteriormente, marcando indelevelmente a administração pública brasileira. (2009, p.117) A autora chama atenção ao lugar de centralidade ocupado pelo arquiteto na fundação do país “novo”. Chuva demonstra como sua presença se faria predominante nos quadros do patrimônio, atuando na seleção e salvaguarda de potenciais 130 monumentos representativos da nação – assim como na construção de monumentos, tais como o MES. Nesse contexto, o arquiteto desempenharia uma função mediadora, articulando duas intenções que, a princípio, poderiam soar contraditórias: a preservação do passado e a construção do futuro da nação. O aparente paradoxo torna-se inteligível se considerarmos que se trata da preservação de um determinado passado brasileiro discursivamente produzido como fonte de autenticidade para a construção de um país novo – sustentando, por sua vez, raízes não em utopias “vazias” de significados, mas na referência a um “Brasil autêntico” perdido, que se criava ao mesmo tempo em que se procurava preservar. É nesse sentido que a autora julga importante refletir sobre a relação entre “tradição” e “modernidade” no âmbito das políticas culturais no Brasil nos anos de 1930 e 1940, relação esta que assumiria peculiaridades próprias no caso brasileiro. Somente aqui – conforme sugere – o pensamento sobre patrimônio não entraria em colisão com a consolidação de uma arquitetura moderna. Obedientes ao mesmo eixo da busca e estabelecimento de um Brasil autêntico, a “preservação” e a “construção” no âmbito das relações constitutivas do Sphan andariam juntas. A história da preservação do patrimônio histórico e artístico no Brasil ficou marcada pela relação entre “conservação do passado” e “modernização do presente”, especialmente em função dos agentes envolvidos com a questão. Registre-se que esse aspecto não tem precedente em outros países (…). (2009, p. 209) Nesse sentido, vale retomar a tese de Otávio Leonídio (2007), desenvolvida em torno do papel de Lucio Costa em tal cenário: trata-se de um personagem que pode ser tido como foco por excelência da referida problemática, concentrando em 131 sua biografia as atividades de arquiteto projetista, profissional do Patrimônio e teórico da arquitetura (sendo este último aspecto especificamente focalizado pelo autor). A atenção sobre a carreira de Lucio Costa ajuda a iluminar a peculiar relação entre “tradição” e “modernidade” constitutiva das elaborações do Sphan e também da formação – na qual atuaria como protagonista – de uma “arquitetura moderna” no Brasil. Aqui – conforme também sugere Chuva – a prática da preservação cumpriria um papel decisivo: o de consagrar a produção arquitetônica moderna; de, assim podemos sugerir, monumentalizar o novo. Nas palavras da autora, É preciso lembrar [...] que, nesse momento, esses mesmos arquitetos modernistas que participavam da seleção da arquitetura colonial brasileira como merecedora do título de “patrimônio nacional” investiam na nomeação de sua própria arquitetura. A arquitetura que produziam, identificada com aquela, encontrava os meios e recursos políticos para sua auto-consagração, no interior do processo de consagração do patrimônio histórico e artístico nacional. (2009, p. 97) Ao estudar a produção teórica de Lucio Costa, Leonídio identifica a técnica como aspecto central do prestigiado modo de construir colonial que, uma vez classificado e objetificado, deveria ser resgatado e incorporado à formulação e consolidação de uma arquitetura moderna propriamente nacional. Conforme sugerem Lissovsky e Sá, “a nova arquitetura não rompia com a tradição, antes a recuperava no que ela tinha de melhor: a pureza das formas, o lirismo, o equilíbrio [...]” (1996:p.xxi). Uma consideração que pode ser depreendida da análise desse material é que “preservar” e “construir” podem, na referida experiência de consolidação de uma arquitetura moderna, conviver – o que serviria de contraponto à hipótese de Ingold 132 segundo a qual a construção “moderna” se valeria de um uso “purificado” do termo “construir” (ver Capítulo 1). Nesse ponto, é interessante ao esforço de compreendermos a relação atual do Capanema com o Iphan focalizarmos a atenção sobre todo esse abrangente panorama histórico relativo ao lugar do edifício do ponto de vista da criação do Sphan, articulando-o a um aspecto mais pontual das relações sociais constitutivas de tais instâncias: a posição de centralidade ocupada pelo profissional de arquitetura na preservação (via construção) de um país “autêntico”. Aparentemente, este profissional seria discursivamente construído como capaz de conciliar preservação e criação sem que uma coisa signifique destruir a outra. É interessante pensar que toda a “modernidade” do projeto do edifício do MES teria como principal destinatário o Sphan ou, o que seria o mesmo, o passado, a memória nacional. Estava por se consolidar a origem da nação. Nas (já citadas) palavras de Lissovsky e Sá: Se o Brasil faz-se novo, a qualidade principal de seus edifícios também deve ser o novo. [...] Esse novo é mais do que uma simples caracterização do estado presente; é um presente que, valendo-se do passado, funda determinada e resolutamente o futuro. (1996:p.xx) Vale ainda destacar as palavras de Brandão a esse respeito: Mais do que rememorar um passado, sobretudo no caso de países colonizados e de tradição difusa como o nosso, o monumento dá-nos uma imagem de futuro e de destino. O monumento abre o presente e liga uma tradição recebida a uma tradição que procura fundar. (2006:p.4) Espaço de circulação de seus grandes idealizadores, o Palácio se tornaria uma espécie de prolongamento, aspecto indissociável do (atualmente designado) Iphan, conformando-se como objeto de identificação por parte de seus funcionários. Não haveria outra explicação para o fato de seu escritório central não ter sido 133 completamente transferido para Brasília no contexto do deslocamento da capital – o que teria, como vimos, sido o caso dos demais escritórios, desde então alocados no Palácio Capanema sob a forma de representações regionais59. Não seria exagero considerar que o edifício cumpriria um papel ativo e único nas elaborações em curso no Iphan. Trata-se, ao que parece, de um edifício imbuído de agência: aquela de fabricar o futuro da nação não apenas pela realização de uma utopia – uma das grandes proezas arquitetônicas da época – , mas também e, sobretudo, pela construção de seu passado. Assim, embora possa ser atribuída a uma leitura histórica, essa discussão não se mostraria, na prática, encerrada nos limites da atuação de nomes como os de Gustavo Capanema ou de Lucio Costa. Recupero-a por conta dos contornos que ela irá assumir no cotidiano do Palácio ao longo do período da experiência de observação. Ao falar de transformações em curso no campo não me refiro apenas à iminência de intervenções drásticas de caráter técnico no edifício – que, por sua vez, gera reflexões como as acima sugeridas. Durante o acompanhamento das interações cotidianas no Palácio, presenciei também alterações, aparentemente de iguais proporções, de qualidade administrativa – referentes à anunciada transição da gestão do condomínio para o Iphan. Que aquele momento se caracterizaria pela tramitação de papéis em virtude da passagem do Condomínio Funarte para o Iphan, isso já se sabia. Conforme apresentei na descrição dos momentos iniciais da pesquisa, esta seria a razão do abandono de minhas intenções de inserção diante daquela única possibilidade viabilizada: observar 59 Lembrando que esta possibilidade teria sido levantada no contexto da pesquisa, sendo depreendida do depoimento de uma funcionária do Iphan. 134 a rotina da sala da administração. Jupiara também viria a se mostrar a par da iminente transição – e igualmente cautelosa em relação a este fato, provavelmente por motivos semelhantes aos que me foram apresentados na entrada em campo. No entanto, algo que nem mesmo ela esperava seriam as proporções que este movimento em certa medida rotineiro – ela já havia “passado” por muitas mudanças de gestão – iriam apresentar. Estando no centro de transformações mais drásticas, envolvendo a candidatura à Unesco, tais mudanças implicariam, também, a consolidação no Condomínio de um quadro próprio de funcionários do Iphan. Com isso, a remoção de Jupiara do lugar que ocuparia há mais tempo do que qualquer outra pessoa. 135 Capítulo 5: Memória viva Chego à sala da administração em um dia aparentemente como qualquer outro, e Jupiara vem falar comigo, em volume baixo, um assunto que disse ser particular. Aguardamos sua sala ficar vazia, e ela então me conta o que aconteceu. Diz ter sido na tarde da última sexta-feira (estávamos em uma quarta-feira) abordada por sua superior – que, na Funarte, se responsabiliza por seu contrato – , que a teria participado das modificações previstas na implantação do condomínio Iphan. Dentre elas, a remoção dos atuais onze funcionários do condomínio – incluindo Jupiara – e sua substituição por vinte e três provenientes do escritório regional do Iphan. A notícia teria abalado profundamente a “informante”, que descreveu o fimde-semana posterior à notícia como um dos piores de sua vida profissional: em breve estaria desempregada. Ainda abalada, retorna ao Capanema na segunda-feira, e logo a ordenadora de despesas a aborda oferecendo-lhe uma oportunidade: a de manter seu contrato com a Funarte, recebendo o mesmo salário só que, para tanto, deslocando-se do condomínio para setores administrativos da Fundação (localizados no sexto andar do edifício). Jupiara comemora junto a mim a notícia, mas se mostra insatisfeita. Apesar de ter a oportunidade de manter seu salário e seu emprego – diferentemente do caso de todo o restante dos funcionários, que perderiam definitivamente seu lugar no prédio –, ela se afastaria das atividades do condomínio. Haveria a possibilidade de continuar desempenhando aquelas mesmas funções – no entanto, devendo se submeter a contratos similares ao pessoal do “apoio administrativo”, supondo um salário consideravelmente inferior ao seu atual. Conforme relata: 136 “vieram falar comigo que não posso sair daqui, que eu sou a memória viva do condomínio. Memória viva. Muito bonito da parte deles, mas o que me importa é o meu bolso! Continuar aqui, mas recebendo menos? Não pode ser assim”. No entanto, o problema não seria facilmente resolvido. Apesar de insistir na centralidade do aspecto financeiro ao pensar sobre sua situação e ponderar sobre qual caminho seguir, Jupiara não conseguiu evitar a aproximação de uma crise pessoal. Nas suas palavras: "Esse prédio é a minha vida, sou eu esse condomínio. Não sei o que vai ser de mim". A “informante” revelaria daí em diante possuir uma relação de identificação bastante profunda com o Palácio. Para além da atenção cuidadosa a prazos de contratos, a valorização daquele “monumento” ocuparia tamanha presença em sua vida que pouco espaço restaria para outros possíveis focos de atenção. De modo a reiterar esta consideração, chegou a apontar a presença da sigla “PGC” em seu e-mail de uso pessoal. Diante da inesperada seqüência de eventos, ela passaria a inserir em suas elaborações diárias e nos momentos em que poderia discutir a esse respeito fatos de sua trajetória profissional no edifício. Em certa medida, ela coincide com sua própria vida. A princípio “estritamente individual”, sua experiência de vida pode ser analisada como reveladora de aspectos das relações constitutivas do Capanema como construção permanente. Nesse sentido, por mais “pessoais” que possam parecer, suas palavras podem conformar uma entrada para vislumbrarmos, ao longo de sua biografia, uma porção da trajetória de vida do próprio prédio. Esta perspectiva pode ser aproximada àquela proposta por Janet Hoskins (2006) no que se refere à abordagem etnográfica de objetos. A autora enaltece a produtividade revelada pela referência a objetos materiais na condução de conversas 137 ou entrevistas realizadas no âmbito de pesquisas de biografias pessoais. A atenção sobre objetos contribuiria a uma descrição detalhada da história de vida do interlocutor, capaz, por sua vez, de evidenciar elementos de um contexto social e cultural mais amplo. Em outras palavras, pode-se depreender de tal abordagem que o encontro entre essas duas “vidas” – de uma pessoa e de um edifício – pode esclarecer aspectos de ambas, iluminando um panorama mais amplo que as envolve. Nesse sentido, a experiência de Jupiara no edifício pode trazer elementos para pensarmos de um ponto de vista amplo as relações que o constituem como monumento. 5.1 Trajetórias de vida Antes de chegar, aos vinte e poucos anos de idade, ao Palácio Capanema, Jupiara teria passado por uma trajetória profissional um pouco atribulada, embora curta. Egressa de um colégio interno e, tendo durante uma parcela importante de sua vida dividido com a família um recinto apertado no Outeiro da Glória, Jupiara começou sua jornada profissional no escritório da presidência do Metrô Rio, em Copacabana, após tentativas malogradas de trabalho no comércio e na figuração de uma emissora de tevê. Lamenta ter chegado bem próximo tornar-se servidora – algo que não teria acontecido, segundo ela, sobretudo por conta da entrada de Collor na presidência do país. “E pensar que eu trabalhei na campanha dele!” – lamentou, lembrando que o comitê localizava-se na Glória, perto de onde morava. Sua saída do Outeiro constitui um episódio dramático e decisivo em sua trajetória de vida, remetendo à destituição de seu avô do cargo de zelador, que teria 138 ocupado ao longo de muitos anos. Além de perder o emprego, ele e toda a família perderiam ao mesmo tempo seu lar, localizado no subsolo. Jupiara conta emocionada a respeito das pessoas que na ocasião procuraram ajudá-los, incluindo personagens do próprio Hotel Glória, que teriam contribuído na ocasião da mudança. Narrada na iminência provável do afastamento do condomínio, a referência ao passado familiar poderia indicar certa identificação de Jupiara com seu avô – que, afinal, também experimentaria de forma cotidiana um monumento da cidade do Rio de Janeiro. Na presidência do Metrô, Jupiara teria ganhado a proximidade com a área da administração que viria a lhe render, de forma inusitada, a vaga no Palácio Capanema. Isso porque fora como guardete – e não como assistente técnico-administrativa – que ela teria começado a trabalhar no edifício. Fizera um curso de vigilante junto a uma empresa que mais tarde abriria um posto no Capanema. Explica que, para concorrer à vaga na porção do edifício abrangida pela firma de vigilância, seria necessário que o candidato apresentasse algumas noções de administração. Tratava-se do setor de administração do edifício, então sob gestão do Iphan – e que se localizaria, naquela época, não na sobreloja, mas sim em um dos pavimentos ocupados por escritórios do Instituto. Foi este, conforme conta, o caminho percorrido até chegar onde se encontra hoje, atuando diretamente na administração do edifício. Alguns detalhes viriam à tona ao explicar-me a respeito dessa contratação. Lembrou-se, por exemplo, que sua experiência profissional anterior lhe teria rendido a vaga pelo fato de a servidora responsável pelas atividades administrativas raramente comparecer ao local de trabalho. “Naquela época, era assim mesmo. Ninguém tinha controle de nada, de ninguém.. E essa daí.. faltava direto.. Todo mundo sabia. O administrador achou mais fácil contratar um terceirizado, ganhando pouco, muito menos 139 que um servidor (ela era servidora), e que pudesse fazer o trabalho que ela deveria fazer – foi por isso que exigiram experiência com administração, e que eu fui contratada.. E foi assim que fui aprendendo tudo sobre a administração desse prédio. E hoje as pessoas valorizam. Porque faz diferença. Olha, eu sei mais que muito servidor. Mas, sabe, eu bem poderia, mas nunca fui capaz de jogar na cara de ninguém que eu fazia trabalho que era dos outros. Isso podia render processo.. trabalhista! Não posso fazer isso. Sou muito grata. Foi o que me levou até aqui, onde estou. Adoro meu trabalho, sempre gostei da área da administração. Este condomínio é a minha vida.” Com o passar do tempo, a eficácia de sua atuação teria ganhado crescente reconhecimento por seus superiores, o que no final das contas lhe renderia a relativa estabilidade de sua posição na administração. Mais especificamente, seria a “experiência” o elemento agenciador de sua posição peculiar no edifício, garantindo poder de “influir” nas decisões relativas a contratação por parte de superiores. As transições de gestão por que a administração já teria passado em nenhum momento teriam ameaçado o lugar de Jupiara, ainda que, como terceirizada, a renovação de seu contrato sempre dependesse do interesse demonstrado em seu trabalho por parte da instituição que viesse a assumir a gestão. Conforme conta, “saber mesmo, a gente nunca sabe o que pode acontecer. Mas até hoje as coisas foram se encaminhando assim: um administrador ficou satisfeito com o meu serviço, passou meu nome ao seguinte, e daí por diante”. Nesse sentido, paralelamente aos aspectos formais regendo a contratação de Jupiara, um quadro “informal” de relações teria desde o início conduzido sua trajetória profissional no edifício. Em tal plano, ela teria conseguido se mover da condição de guardete para a de assistente administrativa: dotada de experiência já reconhecida, viria a desempenhar esta função sob um contrato terceirizado específico para a mesma. Por sua vez, o contato com pessoas de relativa autoridade envolvidas na administração do edifício viria a trazer outras oportunidades: a de ser, por exemplo, 140 contratada (recentemente) como terceirizada pela Funarte, recebendo um pouco mais que o corpo terceirizado pelo condomínio. E, como vimos anteriormente, outra modalidade informal de “hierarquização” produziria seu lugar de “destaque” em meio a outros funcionários da administração, permitindo sua intervenção em questões que formalmente não fariam parte de suas atribuições. No momento da transição para o Iphan, o que parece acontecer é justamente a supressão de toda essa rede “informal” de longa data, constitutiva do lugar ocupado por Jupiara, em nome de um tratamento estritamente “formal” das relações de trabalho no condomínio. Provenientes de um escritório distante – tanto espacialmente quanto, assim podemos dizer, “burocraticamente” – em relação ao Palácio, o novo corpo de administradores do condomínio não estaria preocupado em contratar uma funcionária indicada como mais experiente, importando unicamente preencher aqueles cargos com funcionários próprios. Diante da possibilidade de não mais trabalhar na administração do condomínio, Jupiara confessou temer perder algo muito específico: sua memória do condomínio – a mesma expressão que a identificaria na fala de algumas pessoas na administração. Tal memória se referiria em sua fala a todos os complicados procedimentos que se orgulhava de dominar e que, do ponto de vista não apenas dela, como de outras pessoas, ninguém mais controlaria por completo. No entanto, na rotina da interação com a “informante” após o anúncio de sua provável remoção da sala da administração, o temor ante a perda da referida memória revelou deter dimensões mais amplas. Para além dos registros de atividades estritamente “burocráticas”, parecia estar em risco um conhecimento primoroso da “história” do edifício – de seus fatos históricos monumentais, revistos e transformados 141 por uma perspectiva cotidiana. Conforme o momento de seu afastamento se aproximava60, mais intensas se mostrariam as referências levantadas pela interlocutora a respeito de uma “memória” do prédio61. “Esse carpete – fui eu que mandei fazer assim.” Nele estava escrito (apontou) Palácio Gustavo Capanema. “E lá no Iphan – vou te dizer – você sabe que eles reclamaram? Disseram que não pode ter (...) nenhuma referência ao nome do prédio. Mas pensei (...), isso não faz sentido. Tem gente que chega aqui e não sabe..(...) que edifício é esse. Não tem nada, nenhuma placa, nenhum aviso. E eles falam que tem que ser assim mesmo, estava no projeto – e a pessoa chega aqui e ainda por cima tem que adivinhar...? (...) Quando cheguei pela primeira vez, não sabia que o ‘Ministério da Educação’ era aqui. Vim tirar a carteira de trabalho aqui ao lado, no Ministério do Trabalho, mas sem saber que era aqui pertinho o meu local de trabalho. No dia seguinte, vim a pé, lá da Glória; passando pelo Municipal perguntei pra uma pessoa na rua onde ficava o MEC. E, aí sim, me disseram: ‘é aquele prédio de colunas grossas, você vai ver’. O tapete facilita esse tipo de situação. Mas o Iphan.. sabe como é.” Na iminência de grandes mudanças em sua carreira, Jupiara voltaria a falar sobre os arranjos improvisados visando à manutenção e mesmo ao funcionamento do prédio – como, por exemplo, a referida cerca de contenção do jardim – , agora enaltecendo sua participação em tais feitos. Haveria dedos seus por exemplo na restauração, em 2009, de um quadro informativo do Palácio, localizado no acesso via Av. Graça Aranha. E também na recente restauração da escultura “Monumento da Juventude”. “(...)foi restaurada no final do ano passado. Vinte anos aqui e nunca tinha visto a estátua ser restaurada. [...] o processo foi rápido, foi licitada uma firma de restauração, que era de confiança da Regional (...), e logo fizeram o trabalho. (...) Mas essa estátua deve ter sido um escândalo na época. Os dois ali, sem roupa! Fico imaginando (...). Devia ser revolucionária pra época." 60 Inicialmente, estaria previsto para o mês de agosto, tendo sido anunciado em maio. Antes disso, embora se fizessem presentes, referências ao “histórico” do edifício não seriam tão freqüentes entre os funcionários da sala da administração, a não ser, conforme anteriormente sugerido, no que se refere à fala dos que ali seriam “mais antigos”, atribuindo a si mesmos o diferencial de ter vivido certos momentos e conhecido outros que os demais interlocutores, “mais novos” ou “menos experientes” não experimentariam. 61 142 Embora quase sempre tal participação dissesse respeito à mediação suposta no contato com o técnico do Iphan, ela também teria a ver com seu lugar de “testemunha” em muitos desses feitos. A criação, por exemplo, de um novo mastro, na ala sul do conjunto, como mais uma repercussão do crescimento da mencionada árvore; a restauração de algumas peças do mobiliário do edifício; a implantação de um quadro descritivo dos andares – localizado atrás do balcão, no saguão de entrada – , dotado de placas removíveis, presas por velcro; ou, ainda, a remoção, para a reserva técnica, das persianas azuis que, já bastante depredadas, em outros tempos cobririam todo o lado interno do pano de vidro e que, por uma série de razões, não seriam substituídas por novas. Observar a rotina da administração aos poucos passou a significar acompanhar Jupiara em sua discreta despedida dos tempos em que a curiosidade sobre o edifício faria parte de seu dia-a-dia, compondo sua relação com aquele espaço paralelamente a suas atribuições profissionais. Discreta, porque não poderia participar seus colegas das implicações, para seus empregos, das mudanças que estariam por vir. Como, no ver de alguns “superiores”, muitos aspectos da mudança ainda estariam incertos, compreendeu que não valeria a pena antecipar aos outros funcionários a notícia. Nessa época, revelou que boa parte do que conhecia sobre a “história” dita oficial do edifício decorreria de seu tempo de guardete, em que acompanhava as visitas guiadas realizadas no edifício. Em tais ocasiões, ouviria atentamente as histórias de professores escolares, guias turísticos, professores universitários e arquitetos. Também conta que durante algum tempo seu “posto” estaria localizado no segundo andar, e ali freqüentaria a exposição permanente – que narra a construção do 143 edifício – estudando os relatos, croquis e plantas expostos. Em outras palavras, estamos falando de uma produção cotidiana de memória, que não estaria restrita aos discursos oficiais ou à fala de arquitetos enquanto agentes “legítimos” da construção, discursiva e/ou concreta de monumentos, mas também a agentes situados nos “bastidores” dessas grandes narrativas, à sombra de nomes celebrados – sejam os da equipe de Lucio Costa ou daquelas autoridades capazes de permitir ou vetar suas iniciativas de manutenção. “Veja que vou te mostrar o peixe com cara de gente” – como colocou certa vez Jupiara, conforme me conduzia a uma pequena sala localizada fora da sala da administração, próxima aos elevadores da sobreloja. Valendo-se do fato de que naquele dia eu portava uma câmera fotográfica, ela insistiu para que ali eu registrasse algo que seria desconhecido por muitas pessoas: um quadro contendo um último exemplar montado do projeto “original” da azulejaria de Portinari para o Edifício – aquele desenho de “peixe” que teria sido rejeitado por “insinuar” feições parecidas às do Ministro (Imagem 1.8). O quadro estaria isolado naquela sala, juntamente com outros objetos, por estar infestado por cupins. Sempre trancada, raramente seria visitada por alguém. Sabendo que ninguém na administração conhecia o azulejo e sua história, Jupiara fez que eu mostrasse a fotografia a cada um de seus colegas, acrescentando, com risadas: “Pra vocês verem que não era cascata! Eu falei que existia um peixe com cara de gente, vocês não acreditaram! Agora tem aqui a prova!”62. E tal memória “cotidiana” produzida pela cara informante se revelaria como 62 Gostaria de acrescentar que, em meados de 2012, seria publicada no jornal a “descoberta” de azulejos “inéditos” no Palácio Capanema, no inventário realizado por arquitetos para a elaboração do projeto de reformas (O GLOBO, 15/07/2012). Sem comentários a respeito. 144 uma elaboração consciente, participando de modo explícito em seu discurso. Certa vez, ela narrou o processo de instalação dos totens: dois terminais de computador do programa de visitas guiadas envolvidos por uma espécie de caixa de madeira – levando o referido nome – ; um localizado no “salão Portinari” e o outro no saguão de entrada. O modelo teria, como ela conta, sido desenhado de Brasília, e aqui teriam conseguido construí-lo de acordo com as especificações do Iphan – para que sua presença não descaracterizasse o espaço. Os totens disponibilizariam, através de muitas imagens e textos breves, informações sobre todo o histórico da construção do edifício, incluindo uma descrição da participação de cada um dos nomes de prestígio internacional envolvidos no projeto. Ao falar a esse respeito, Jupiara fez a seguinte observação: “O computador até que funciona direitinho, mas não sei não. Acho que está desatualizado. Você não acha? (...) Tanta coisa aconteceu desde então. Isso tudo é história. O ateliê Portinari, por exemplo63. É um evento histórico! Por que não colocaram lá, no totem?” Reflexão semelhante viria à tona em outra ocasião, quando quis mostrar-me no saguão de entrada algumas placas em homenagem a “freqüentadores célebres” do edifício, há muito tempo mortos. “A gente fica com a impressão que o prédio parou no tempo. Será que vai ter plaquinha pra mais gente? Bem que podia ter. Pros administradores do prédio – tanta gente vem fazendo tanta coisa pelo Capanema..Devia ter uma placa pra cada um deles. O seu Edvaldo64, por exemplo, uma pessoa que fez tanto... E eu? [risos] ...Até parece... que um dia vai ter uma plaquinha pra mim...” 63 Lembrando que no início do ano teria sido montado, no espaço do mezanino, o ateliê de restauração dos murais “Guerra e Paz”, de Candido Portinari. 64 Administrador do Iphan, ele teria sido um dos primeiros empregadores de Jupiara na administração do Edifício. 145 Antes de mais nada, a atenção sobre tal operação e elaboração “cotidiana” da categoria memória revela que tais narrativas não se mostram restritas ao contexto discursivo de apropriações ditas “oficiais”, históricas ou arquitetônicas, em torno do edifício. O cotidiano do Capanema se revela perpassado por episódios de sua “vida” que conformam muitas histórias, sendo compartilhadas não apenas entre arquitetos que, em sua formação, teriam aprendido a celebrar o “marco”, mas também entre aquelas pessoas que, debruçadas sobre os aspectos mais técnicos e administrativos do edifício, poderiam prescindir de tais elaborações no exercício de suas atividades cotidianas. Há, no entanto, algo de peculiar na idéia de que, enquanto noções a princípio opostas na articulação da categoria “memória”, “cotidiano” e “monumentalidade” possam se aproximar nesta valorização “cotidiana” do monumento operada por Jupiara. Vimos como o edifício-sede do MES parece ter sido projetado como uma espécie de suporte de uma compreensão específica de memória, dado que construído como “marco” com base no qual se estaria por projetar o futuro de um país construído novo. Não parece absurdo pensar que, para além de um mero “suporte físico”, esse edifício agenciaria a articulação da categoria memória, que se faria presente: na narração de sua origem mítica distribuída entre livros, visitas guiadas e terminais computadorizados; nos numerosos “setores de arquivo” que o compõem; assim como no cuidado sobre os documentos constitutivos de uma “memória” do condomínio e, portanto, da administração; e, finalmente, em um contexto de interações pessoais integrando sentidos ainda mais amplos – a memória dos muitos administradores, daquelas sutis (ou não) intervenções no conjunto que, talvez apenas nesse plano, seriam admiradas em sua intenção de garantir a manutenção do Palácio. 146 Nesse sentido, uma “monumentalização cotidiana” do Palácio, ou seja, sua construção (discursiva e material) diária como monumento, comportaria uma concepção da categoria “memória” expandida em relação àquela que parece comandar as narrativas “oficiais” em torno da construção do MES. Aqui, os muitos administradores seriam celebrados precisamente como agentes legítimos, autores de transformações no edifício. Uma “história” do Capanema precisaria contar também suas vidas, e suas ações – seus “legados”. Não haveria colisão ou mesmo ambigüidade em tal gesto. Por tal perspectiva, “manter” ou “administrar” diluiria possíveis fronteiras entre “conservar” e “criar”. 5.2 Clashes Nesse período do trabalho de campo, participei ao mesmo tempo das interações no interior da sala da administração e daquelas em curso na superintendência do Iphan, por conta das reformas de restauração e modernização. Conforme vim a perceber, embora aparentemente desconexos, os dois processos de transformação estariam articulados por expectativas em torno da candidatura à Unesco. Diante da provável inscrição do Palácio como “patrimônio mundial”, as ações em seu entorno seriam organizadas pelas instâncias mais “elevadas” de agência – as elaborações do Iphan nas posições de maior autoridade de sua hierarquia interna – seguindo o objetivo claro de controlá-lo não de acordo com esta variante “expandida” da categoria memória, mas sim com uma bastante restrita e precisa: o que se torna necessário é justamente suprimir marcas deferidas no conjunto desde sua construção. 147 Algumas exceções, no entanto, estariam previstas na iniciativa, sendo benvindas – os aspectos de modernização do prédio, legitimados pelas mãos do Iphan como consonantes ao funcionamento e, com isso, à preservação do edifício. Pouco provável, nesse sentido, que venha a ser construída uma placa em homenagem a Jupiara – ou sequer aos administradores do passado por ela considerados ilustres. Neste momento em que o Iphan retoma um poder há algum tempo partilhado entre agentes “outros”, as críticas direcionadas à administração Funarte se intensificariam visivelmente. Ou, ao menos, se revelariam mais claras. Algumas colisões relativamente antigas viriam à tona neste contexto marcado pelo “retorno heróico” do Iphan à soberania sobre os cuidados diários do edifício. Enquanto presença mediadora, Luciano participaria desse cenário como um articulador das críticas direcionadas pelas posições de maior autoridade à gestão Funarte. Elas se revelariam, por exemplo, na referência durante a realização da visita técnica à Sala Funarte – localizada, como vimos, no espaço que já teria sido pagadoria e garagem. “Mas o que a gente precisa fazer nessa sala?” – um dos arquitetos ousou perguntar, rompendo o silêncio do restante do grupo, visivelmente aturdido. Ninguém conseguia entender porque Luciano nos levou até ali. “A sala parece nova, tem que restaurar ou modernizar o que aqui?” – perguntou-se. “Bom, isso é vocês, novamente, que vão ter que pensar. [...] Esta concorrência é por projeto. O projeto que se mostrar mais conveniente ao edital […], será o vencedor da licitação.” Ao que uma delas respondeu: “Sim, mas... qual é o problema dessa sala?” Luciano responde que a sala não teria problema algum. Sua questão seria unicamente de “ordem administrativa”: estaria “desativada há anos”. Um pouco confusos, os arquitetos continuaram sem entender o que seus respectivos projetos teriam a ver com os tais problemas administrativos. “Quem sabe se, por exemplo, projetando um sistema de acústica – que essa sala não tem […] – , ou se, por exemplo [...], elaborando meios de […] torná-la acessível – um portador de necessidades especiais, a pessoa com cadeira de rodas, ela não consegue entrar aqui; a acessibilidade é uma das metas do projeto, isso está no edital […].” 148 De volta à sala da administração, ingenuamente comentei a fala de Luciano. “Não acredito que o Luciano falou uma coisa dessas!” – disse Jupiara, chamando ao seu redor alguns curiosos. Quem disse que a Sala Funarte não funciona? Ele deve ter se confundido. Vamos ver.. Ah, é o seguinte. Tem uma época do ano que realmente não costuma acontecer essas apresentações, que é quando a Funarte está lançando edital, os candidatos estão se inscrevendo.. Mas isso não quer dizer que não esteja funcionando. Não tem nenhum problema administrativo, não. Cada coisa que me aparece...” Por sua vez, Jupiara me pergunta como Luciano teria apresentado a “questão do ar condicionado do gabinete” (então quebrado); se seu conserto estaria previsto nas reformas. E, conforme relato em meu diário, Mais uma polêmica: confundo as coisas e falo apenas dos danos ocasionados à têmpera do Portinari pelo condensador, tornando úmida a parede em que estaria fixada. Cristiano interrompe: “O quê? Esse ar condicionado está quebrado tem pelo menos três anos! Cheguei há três anos e nesse tempo todo ele não funciona!" Jupiara consente, diz que tem dez anos que não funciona, “então como é que ele pode estragar o painel?”... Me pergunto se não falei algo errado.. Tento corrigir, falo o que tenho certeza que Luciano falou a respeito do ar do [auditório] Gilberto Freyre (...), [cujo] conserto deveria estar no projeto de restauro, e dessa vez é Jupiara que interrompe: “Que nada. Esse conserto é com a gente, tem que sair é aqui do condomínio”. Esses mal-entendidos – que no caso seriam desencadeados por minha presença naquele espaço – comporiam uma seqüência ainda mais ampla de “colisões” (clashes) entre a Funarte e o Iphan enquanto instâncias em atrito no controle sobre o Edifício – conflito que, nesse contexto, se faria evidente nas relações pessoais outrora caracterizadas (ao menos aparentemente) por uma aparente harmonia. Contradições entre as narrativas de Jupiara e Luciano, constituiriam, como veremos, apenas uma pequena parcela de colisões mais amplas, muito em breve repercutindo a ponto de serem divulgadas em jornais de circulação nacional. Recuperando em “grande estilo” – com a realização de reformas de 149 proporções inéditas – a ação exclusiva sobre o edifício, o escritório regional do Iphan, do ponto de vista de seus principais articuladores, passaria a desqualificar medidas tomadas ao longo da administração Funarte (e de outras administrações) como manifestações de incompetência. Tais acusações atingiriam sobretudo arranjos e procedimentos que, “inocentemente” compreendidos no contexto de tais administrações como necessários e de relevância inequívoca, teriam sido realizados sem a participação do Iphan. Se a bombacácea cresceu além do que deveria, se foi disposto na entrada do edifício um carpete expondo seu nome, se havia banners da Funarte “mal localizados” no pátio externo, ou ainda se havia infiltrações dos canteiros ajardinados na cobertura do edifício sobre o décimo quinto andar65 – tudo isso passaria a ser atribuído à gestão Funarte, constituindo daí em diante problemas a serem resolvidos pelo gesto providencial de determinados “heróis”: os arquitetos licitantes, aos quais se atribuiria a capacidade de efetuar a mediação com as ações históricas do Iphan e com os desígnios dos prestigiados autores do projeto do MES. Na fala de Luciano a respeito da Sala Funarte, vemos a dimensão das expectativas depositadas sobre o trabalho das firmas concorrentes, cujas elaborações eminentemente técnicas deveriam abranger problemas de caráter administrativo – os quais, caso de fato ocorressem (o que teria sido contestado na sala da administração), diriam respeito ao condomínio, e não a atribuições da Regional sobre o edifício. Nesse sentido, o suposto estado de “desordem” da Sala Funarte e, portanto, do 65 Estas seriam, nas palavras de Luciano, patologias que não seriam crônicas, remetendo às mãos duvidosas de antigos administradores. Conforme explica, a manutenção de terraços-jardins impõe uma série de cuidados, sobre os quais, a seu ver, tais administrações não teriam dado atenção devida. 150 monumento, estaria por ser solucionado não apenas pelo Iphan, mas sobretudo por um projeto de arquitetura. Embora tivesse de apresentá-las como parte do encaminhamento do processo de licitação, Luciano seria algo além de um simples “porta-voz” de tais críticas. O interlocutor apresentaria nesse contexto uma posição ambígua, talvez inevitável na tentativa de manter relações diplomáticas com os lados em atrito. Um indicador desta postura estaria em um cuidado de não conduzir suas críticas de forma pessoal, direcionando-as a instâncias “abstratas”, como a Funarte ou “antigos administradores”. Passado algum tempo do aviso da provável destituição de Jupiara de seu lugar no Condomínio, o técnico teria lhe oferecido uma oportunidade. Já que seu nome estaria entre os quatro indicados na Regional para assumir o controle da administração, entendeu deter certo poder de manobra na escolha daqueles que viessem a compor o novo quadro de funcionários. Ofereceu, assim, uma vaga a Jupiara, o que representaria a possibilidade de ela manter a função que há muito desempenha sem que precisasse abrir mão de uma parte de seu salário, agora que seu contrato seria regido pelo Iphan. Novamente em sigilo, Jupiara compartilhou, aliviada, a novidade. Luciano teria lhe perguntado a respeito dos procedimentos administrativos a serem aplicados, ao que respondeu que bastaria que ele entrasse “com um aditivo explicando a necessidade de um funcionário a mais”. Tornava-se clara, dessa maneira, a natureza “pessoal” das relações da administração do edifício organizando mesmo suas configurações formais. Longe de configurar arranjos paralelos, relações “formais” e 151 “informais”, “sérias” e “irreverentes” se entrelaçariam constituindo as interações no âmbito da administração. 5.3 Grandes expectativas Confiante na expectativa de permanecer no condomínio, sob o comando do Iphan, Jupiara passaria a nutrir novas especulações. “Você vai ver só quando o Iphan tiver aqui. Eu já trabalhei com eles. Logo que comecei [aponta para cima], a administração era Iphan. E eles são linha dura! Acho que vai ser parecido com como é lá na Funarte [referindo-se aos escritórios dos pavimentos superiores]. Lá, por exemplo, se você quiser tirar uma cópia xerocada, (...) precisa de autorização! Não é que nem aqui. Aqui é esse entra e sai; é livre, todo mundo pode usar a copiadora a qualquer hora. No Iphan, acho que vai ser diferente. Por exemplo, uma coisa que pode acontecer: acho que vão estender o balcão, pra controlar essa circulação de pessoas. Lá as coisas são mais organizadas.” A transição para o Iphan em breve seria um assunto em pauta na sala da administração, organizando expectativas e boatos. “Você vai ver, vão mudar o layout todo daqui! Vão remover essas mesas, trazer umas mais novas... Vai renovar tudo. Vai ficar bem diferente, e melhor!” – foram comentários trocados entre alguns colegas na sala da administração. Na ocasião, se refeririam à renovação dos móveis daquele espaço que, em sua maioria, estariam ali dispostos porque rejeitados de outras porções do edifício. Seu entusiasmo diante da novidade indicava que, aparentemente, ali apenas Jupiara se orgulharia em mostrar a qualidade da madeira utilizada e discutir se aquelas mesas seriam ou não de Niemeyer. 152 As “grandes reformas” também conformariam assunto de interesse naquela sala. Compartilhei com eles a notícia, publicada em jornal, da provável restauração do restaurante que funcionava no décimo sexto andar. As reações foram variadas: “Que maravilha! Será que a gente não vai mais precisar trazer marmita, nem dividir quentinha? Quero ver é se isso vai sair, mesmo!” – uma delas colocou. Outra funcionária do apoio apenas riu, ironicamente: “Vista pra Guanabara? Essa é boa!”. Paulo e Ronaldo, fiscais de contrato, já saberiam da notícia e se mostraram um pouco mais céticos, dizendo: “essas notícias de jornal..”. Conversando, uma parte deles concordaram sobre o seguinte ponto: “poxa, por que somos os últimos a saber dessas coisas? Sai no jornal, qualquer um fica sabendo. Pra gente, eles não contam nada”. Jupiara complementaria: “mas veja só: como é que vão instalar um restaurante se aqui no prédio não pode haver gás? Nem encanado, nem de botijão. Quero ver é como eles vão lidar com isso..” Embora – do ponto de vista dos que trabalham na administração – com freqüência conformem boatos, as notícias divulgadas em jornais de um modo geral partiriam de dentro do edifício e, com freqüência, do pessoal do Iphan66. Como vim a saber, notícias de jornal não seriam com freqüência benvidas naquele espaço. Em geral concentradas em denúncias dos aspectos de “deterioração” do Palácio, seriam recebidas como críticas direcionadas pessoalmente aos envolvidos na administração. Para além de qualquer entusiasmo ou estranhamento, a suposta reativação do restaurante remeteria a outras questões. Abrigando até recentemente salas do Remec, o décimo sexto pavimento seria um dentre outros espaços recentemente abertos no edifício por ocasião do esvaziamento de tais funções. A remoção dos escritórios do MEC no Rio seria sentida na sala da administração com algum pesar. Colegas próximos estariam por perder sua vaga no edifício, sujeitando-se, provavelmente, a 66 Entrei em contato com Luciano para saber a esse respeito, e o que dele obtive foram informações um pouco vagas – incluindo, por exemplo, que a notícia poderia ter partido até mesmo de algum arquiteto concorrente que teria, quem sabe, se entusiasmado com a possibilidade no momento de elaborar seu projeto. 153 remanejamentos em outras unidades de representação no país, localizadas em outros estados. Servidores do MEC dotados de algum tempo de serviço, como Almir, concentrariam algumas preocupações por parte do pessoal da administração, conforme conversa que acompanhei entre dois funcionários e um senhor “de fora”, já aposentado. Eles refletiram sobre a posição dessas pessoas, de uma hora para outra praticamente induzidas à aposentadoria. Destaco um comentário de Jupiara trazido nessa conversa: “Sabe, Rachel, (...) tem muita gente que tá aqui sem ser por necessidade financeira; muitos já podiam estar aposentados, mas vêm pra cá.. não sei.. porque são sozinhos, não têm família.. E aqui não é só trabalho, muita gente tem amigos no prédio; é um lugar pra se distrair. Eu mesma não gosto da idéia de me aposentar não – ainda vai levar tempo, mas me preocupo. Ficar parada? Deve ser mesmo terrível..” O encerramento das atividades do MEC no edifício não teriam uma divulgação tão ampla na mídia quanto o anúncio das reformas, embora, em certa medida, um fato parecesse estar relacionado ao outro. Haveria boatos de outras repartições estarem também por ser encerradas, o que faria parte de planos mais abrangentes de, definitivamente, concluir a transferência de tais atividades ministeriais para Brasília – processo iniciado, vale reiterar, com a construção da nova capital. De dentro das diversas associações de servidores presentes no Edifício e repercutindo na fala de alguns personagens da política – como a vereadora Sonia Rabello – , emergiriam vozes contrárias ao desmonte dos órgãos culturais federais localizados no Rio. A pouca valorização da “cultura” surgiria em campo no sentido da pouca atenção conferida pelo governo a ministérios como os da Educação e da Cultura diante de outros crescentes focos de interesse. “A Cultura tem os piores salários” – certa vez sugeriu um interlocutor. O episódio em torno das “Olimpíadas no 154 Palácio” se revelaria em tais narrativas como apenas uma dentre outras manifestações de um crescente e inevitável descaso em relação à Cultura e a seus servidores, que viriam a emergir diante de situações como essa. Ironicamente, mesmo com o suposto “abandono” dos planos olímpicos para o Capanema, espaços vazios estariam nele sendo produzidos; os famigerados planos de reformas de restauração e modernização estariam a pleno vapor. Mais um indício de que não parece fazer tanto sentido compreender como distintas as mãos que preservam, e as que modificam usos e destinações do monumento. Um olhar sobre o “outro lado” desse cenário, referente à experiência do Capanema do ponto de vista do cotidiano de elaborações de dentro do escritório regional do Iphan, sugere como tais eventos poderiam ser apropriados de maneiras distintas. As mesmas transformações que teriam repercutido na rotina de trabalho da sala da administração – e, mais precisamente, na vida de Jupiara – significariam também intervenções no trabalho de campo, promovendo, apesar de tudo – precisei encerrar a observação na administração – , um deslocamento de perspectiva favorável à pesquisa. Daí surgiria uma abertura para que me aproximasse das elaborações em curso na Regional67. Valendo-me da proximidade conquistada junto a Luciano, presenciei uma reunião realizada no escritório da presidência do Iphan (oitavo andar) entre o então superintendente e representantes, no total de quatorze pessoas, de repartições do 67 Vale considerar que a relativa mobilidade conquistada em campo traria conseqüências para minha posição nas interações com as pessoas que conheci na administração: viria a ser conformada como uma espécie de informante privilegiada daqueles funcionários, que passariam a depositar em mim expectativas de notícias e respostas sobre as narrativas em circulação na Regional, a respeito das quais nem sempre seriam informados. 155 edifício. Ali, seriam discutidas as providências a serem tomadas no contexto da realização das reformas e o plano de ocupação dos espaços “abertos” com a saída do Remec. A iminente dissolução integral das atividades do MEC se apresentaria como um assunto de nítida centralidade no discurso da maior parte dos representantes reunidos – não exatamente enquanto parte de preocupações relativas ao futuro daqueles funcionários, mas sim de acordo com interesses explícitos nos novos espaços produzidos no edifício. Alguns deles lançariam mão de discursos preparados, com base, por vezes, em cartas redigidas, justificando seu interesse na tentativa de garantir a sua fatia na repartição de tais áreas. Aparentemente, já algum tempo o Edifício apresentaria problemas na distribuição de espaços. À criação do Ibram, por exemplo – recentemente autonomizado em relação do Iphan – , não teria correspondido um trabalho eficaz de adaptação à nova leva de servidores instalados no Palácio. Eles teriam de dividir um espaço “apertado” junto ao Iphan, motivo pelo qual reivindicariam agora o 14° andar – ao passo que o Escritório Regional demandaria o 15°. Por sua vez, problemas organizacionais atingiriam cotidianamente as atividades do escritório de Direitos Autorais, distribuído entre uma parcela do décimo primeiro andar e outra do décimo segundo – motivo por que se reivindicaria um andar inteiro. De sua parte, a Funarte – demanda colocada pela representante, servidora da administração imediatamente superior à Jupiara – também teria interesse em tal distribuição, requerendo os andares 15° e 16°, já que, a seu ver, o 13° não teria o mesmo tamanho. Para além de demandas internas, tais espaços seriam preenchidos 156 pelo conteúdo de uma sala ocupada pela Funarte na Rua São José – que estaria em processo de esvaziamento por conta da reivindicação por parte do INSS, proprietário do edifício. Embora numerosas e permeadas de justificativas plausíveis, tais demandas cederiam, à força, lugar ao assunto da reforma. Conforme relato em diário, valendo-se da retórica do “bom senso”, o superintendente teria desviado o foco sobre a distribuição dos espaços considerando que aquele não seria o momento de tal discussão: "O que vocês acham que seria de bom senso fazer num momento de obras? Certamente, o melhor (...) a fazer é não trazer gente pra cá! Pra que ocupar essas salas agora? Só vai atrapalhar. Não vêem que faz mais sentido deixá-las vazias enquanto a obra não estiver concluída? Não me digam que nessa confusão toda vocês ainda querem que venha mais gente pra cá! Onde estão com a cabeça?" Sabendo que ainda haveria algumas pessoas trabalhando no 16° andar, ele afirmou preferir que elas continuassem ali, de modo a evitar que outros ocupassem o espaço. Reforçou que, diante das grandes reformas que estariam por vir, seria mais importante manter tudo como estava do que haver pressa em ocupar as áreas “ociosas”. O superintendente também alertaria que a ocupação de lugares como o disputado décimo sexto andar dependeria em grande medida da “vocação” a ser escolhida para eles nos planos de restauração e de provável inscrição na Unesco. A preocupação com a manutenção das “características originais” apresentaria uma relevância especial nesse contexto: “se antes havia restaurante, vai ter que haver restaurante novamente (...)”. Os comentários sobre o “esvaziamento” adequado à realização das obras incluiriam uma atitude crítica em relação a uma iniciativa recentemente levantada – e 157 também extinta – pelo Remec de incentivar visitas guiadas no edifício através de sua ampla divulgação. O superintendente reprovaria veementemente a idéia, afirmando que aquela não seria a melhor hora para encorajar uma circulação intensa de pessoas no edifício, o que poderia supor alguns riscos. “Imagina se trazem prá cá crianças, pequenas, daquelas de escolas públicas: se elas ficarem presas em elevador, olha a confusão que vai dar. A responsabilidade cai pra gente!” – conforme disse. A troca dos elevadores seria um dos pontos centrais na preocupação com as iminentes obras, supondo uma mobilização espacial de grandes dimensões envolvendo um minucioso planejamento, formado por etapas – “Vai ter que ter espaço pra passar um carvalhão aqui!”, como fora colocado. Aos poucos, o edifício deveria ser plenamente esvaziado, incluindo nessa movimentação preciosos materiais de arquivo e obras de arte, a serem temporariamente depositados em “áreas de apoio”, como – assim seria sugerido – galpões da área portuária. Uma das representantes presentes, que seria pesquisadora, mostrou-se preocupada em relação a pesquisas em arquivo que não poderiam ser interrompidas, e cujo destino dependeria agora do modo como as reformas seriam gerenciadas. De fato, uma série de perigos estariam implicados na realização de reformas, destacando-se entre eles possíveis furtos – ameaça que remonta àqueles tempos anteriores ao condomínio descritos por Jupiara. Em meio à exposição das preocupações individuais de cada escritório representado na reunião com a Superintendência, alguns conflitos viriam à tona. Se as falas de Jupiara e Luciano concentrariam alguns mal-entendidos entre a administração e a fiscalização do Iphan sobre o edifício, na Regional abordada do ponto de vista dessa reunião, a Funarte se conformaria visivelmente como alvo de rígidas repreensões. 158 A questão da modernização dos elevadores sintetizaria e intensificaria a colisão entre o Iphan e o Condomínio Funarte antecipadas no repertório de críticas mútuas evidente nas elaborações na sala da administração no contexto de iminentes mudanças administrativas. Em meados do mês de julho, viria à tona algo que poderia ser tido como precursor do auge de tais conflitos: nos jornais68, a notícia de que a firma Ideal Elevadores, ganhadora da licitação do contrato de manutenção de elevadores, teria entrado com uma liminar no Ministério Público para impedir a contratação de outra, a Atlas Schindler, cuja licitação, de modernização dos elevadores, teria sido movida pela 6a.SR. A impossibilidade jurídica da coexistência dos dois contratos repercutiria na ruptura do segundo em favor do primeiro – e as conseqüências do ocorrido seriam agora sentidas na administração do edifício. Detalhes não apreendidos na reportagem jornalística emergiriam na reunião logo em seguida à saída da representante da Funarte. O superintendente exaltou-se ao discutir a necessidade de cassação da liminar: "Mas é claro que isso tem que ser feito. Como a Funarte teve a audácia de abrir essa licitação, quando todo mundo já sabia do plano de modernizar os elevadores? Lógico que ia dar no que deu.. Olha o problemão que temos que resolver agora, tudo culpa da Funarte, esses incompetentes não têm a menor noção das coisas; ora, como você vai, do dia pra noite, transformar um contrato de 8 mil reais em um de 4,5 milhões? Claro que ia dar problema. Tarde demais: a empresa entrou, foi contratada, e sabe o que mais? – agora (...) o pessoal da Funarte ficou ofendido; estão preocupados, porque vão ter que romper o contrato. Não tem outra alternativa. Todos sabem, a lei proíbe duas empresas em uma casa de máquinas. Óbvio, uma vai sabotar a outra, um vai colocar a culpa no outro, não tem outra... Aí eles falam, ‘ah, mas vai ter multa em cima’: não importa, a gente paga a multa. Olha há quantos anos que estamos pra fazer essa reforma. Quando sai o dinheiro, quando finalmente podemos trocar essas máquinas de 68 A Justiça do Rio suspendeu a troca de seis elevadores do Palácio Gustavo Capanema, no Centro do Rio. A decisão atendeu ao pedido da empresa contratada para fazer a manutenção do equipamento. O serviço, no valor de R$ 4,656 milhões, já tinha sido autorizado pelo Iphan. (...) A assessoria do Iphan informou que vai recorrer da decisão para preservar o monumento, tombado em 1948, e para garantir a segurança dos usuários. (O GLOBO, 14/07/2011) 159 setenta anos, vem a Funarte, e simplesmente impede tudo, pra manter lá o contratinho deles? Ah, por favor!" Quando teve início o processo de licitação do contrato de manutenção de elevadores, já estava “em campo”, realizando trabalho de observação na sala da administração – etapa que, aliás, descrevo no Capítulo 2. Na época, a possibilidade da modernização não seria, ao menos do ponto de vista de pessoas como Jupiara ou seus colegas próximos, mais que um “sonho distante”, não tendo sido repassadas à assistente técnico-administrativa ordens específicas a serem cumpridas nesse sentido. No entanto, lembro que na época ela teria demonstrado preocupações a esse respeito. Explicou que, se por acaso os elevadores viessem a ser trocados, existiria a possibilidade, por ela estudada, de substituir o serviço de manutenção pelo previsto no termo de garantia. Por não ter obtido a familiaridade necessária com tal linguagem administrativa, não sei precisar até que ponto, se tomada, a iniciativa de Jupiara poderia ou não evitar a colisão de contratos por parte da Funarte e do Iphan. Até mesmo porque, neste caso como em qualquer outro, sua margem de manobra seria relativa, enquanto funcionária articulada e, em certa medida, dependente de outros núcleos de decisão aos quais suas atribuições estariam sujeitas. De toda forma, a modernização dos elevadores estaria suspensa, assim como o serviço de manutenção. Panes ininterruptas se seguiriam desde então e até o início do ano de 2012, quando o contrato com a empresa licitada para a modernização finalmente seria consolidado. Nesse ínterim, alguns acidentes teriam curso no cotidiano dos usuários do edifício, gerando constrangimentos: chegou-se ao ponto de exigir dos que se dispusessem a tomar elevadores no lugar de subir escadas que 160 assumissem formalmente (por meio de um documento) responsabilidade pelos próprios riscos. De toda a forma, o imbróglio jurídico-administrativo envolvido na troca dos elevadores pode ser compreendido como uma dentre outras peças constitutivas de um amplo cenário relacionando a imposição de um pessoal próprio por parte do Iphan em sua consolidação como unidade gestora do Condomínio PGC e a dissolução do quadro de funcionários da Funarte. 5.4 Uma imagem estática e inerte do Capanema Por conta do esforço de perseguir as narrativas em curso na rotina de funcionários da administração do edifício, supondo por vezes relativizar o caráter fidedigno de informações provenientes de agências “oficiais” de comunicação – como jornais –, não sei dizer até que ponto seriam “falsas” as referências ao esvaziamento do edifício. Caso o fenômeno se confirme, parece provável que esteja relacionado à indicação à Unesco. Afinal, a recuperação de certos espaços – como o restaurante, por exemplo –, e a postergação de sua distribuição parecem indicar a supressão de áreas “úteis”, ocupadas por escritórios. Trata-se de uma hipótese que vale ser investigada, e que não pôde ser desenvolvida nos limites da presente dissertação. Aparentemente, a manutenção das “destinações originais” juntamente com a “forma original” do monumento deixaria de ser uma questão relevante, sendo a prioridade, neste momento – e a não ser no que se refira aos planos de “modernização” – , cumprir à risca uma promessa de manter a “autenticidade” do “marco” da arquitetura, objetivo que parece não ter sido 161 perseguido sequer por seus gênios criadores. Pode-se traçar um paralelo entre tal leitura do Palácio Capanema e o contraste, trabalhado por Roy Wagner, entre as idéias de museu de cera e de vida. Trata-se ao que parece de uma intenção de cristalizar, em termos de uma imagem estável e implacável, um processo de permanente transformação que é aquele da própria vida. Em certa medida, fazer uma etnografia de um monumento pode significar descrever sua vida, que jamais cessaria apesar de quaisquer esforços no sentido de contê-la. A vida daqueles muitos funcionários que por ali transitam, e em certos casos habitam, depositando efeitos de sua passagem na transformação permanente dos materiais constitutivos do monumento. E que, aos “trancos e barrancos”, fazem com que, talvez milagrosamente, aquela construção permaneça de pé. Resta imaginar como, por outro lado, seria possível e viável executar tal plano – o de uma cristalização eficaz, ou da supressão da vida. Seria possível combiná-lo com outra candidatura à Unesco: a do Rio de Janeiro como “Paisagem Cultural”. Não fosse o pressuposto, contido em planos de modernização visando a refrigeração do local e sistemas mais seguros de controle de incêndio e elevadores, que supõem a circulação diária no edifício, poder-se-ia dizer que se faria em curso uma determinada apropriação monumental do Palácio que o concebe como mais um elemento de uma paisagem – a ser contemplado à distância. Preferencialmente, por um observador distanciado e, através, quem sabe, de um cartão postal. 5.5 A ordem como mito 162 O tempo de Jupiara no Condomínio estaria, de fato, encerrado – e, com isso, também meu período de observação na sala da administração. Chego no “campo” após uma semana sem freqüentá-lo e, ao adentrar aquela sala, vejo que minha “informante” não se encontra mais ali. Em seu lugar e, sentada à sua mesa, uma funcionária do apoio administrativo – mais precisamente, uma daquelas com que ela não conviveria muito bem. Ela me informa que Jupiara “já” estaria no sexto andar, na Funarte. Vou então ao seu encontro, para que ela me explique o que aconteceu. De fato, até onde sabia, a transição para a “administração Iphan” ainda não estaria concluída. Fazia algum tempo, Jupiara estaria trabalhando na tramitação de processos envolvida nessa passagem. A seu ver, “(...) fizeram isso pra pressionar, agilizar a saída da Funarte. O Iphan não vê a hora de assumir... Pressiona, porque é aquela coisa que a gente sabe – eles dependem de mim (...)”. O ambiente de trabalho naquele escritório do sexto pavimento seria bastante diferente em relação ao da administração. Ali predominava um silêncio quase perturbador: conversávamos em volume bem baixo, contrastando com a riqueza de sons característica daquele compartimento na sobreloja. Referindo-se ao condomínio, acrescentou que teria sido impedida de freqüentar a sobreloja por funcionários que até então definiria como amigos seus. Comovida, contou que lhe teria sido exigida a devolução da chave. E aguardava, sem perder esperanças, o momento de seu “retorno triunfal” à administração. Passado algum tempo, a transição da gestão do condomínio e o planejamento das reformas no Capanema viriam a coincidir, no que se refere à área da Cultura de um ponto de vista mais abrangente, ao contexto de paralisação de funcionários. 163 Durante determinado período, a circulação no edifício se faria restrita como parte da mobilização. Por alguns dias, peleguei no pátio em meio aos funcionários envolvidos. A situação de greve conformaria um cenário peculiar de interação com e no Edifício, tendo em vista que o pátio externo se tornaria um ponto de encontro entre as muitas pessoas envolvidas na causa pela “Cultura”. Naquele período, tal espaço se converteria em uma espécie de “sala da administração” expandida, reunindo por modalidades “descontraídas” de relação pessoas de procedência diversa. Nesse contexto, algumas mudanças na relação de Jupiara com o edifício se fariam visíveis. Ao conversar com ela e alguns de seus amigos, sentamo-nos na mureta baixa e curvilínea – local freqüentemente escolhido por funcionários para descansar, atitude que anteriormente ela repreenderia. No mesmo dia, aceitou sem resistir um panfleto distribuído no pavimento abaixo dos pilotis, interagindo amigavelmente com a mesma pessoa que, em outros tempos, seria alvo de repreensões de sua autoria. Também respeitosamente recusou pedidos de esmola de uma moradora de rua que por ali passou. Os motivos por que se exaltava na época em que trabalhava na administração não mais surtiriam os mesmos efeitos. De um modo geral, sua devoção às “regras” da administração não mediariam da mesma maneira sua relação com o edifício. Passado algum tempo – e já encerrada a paralisação de funcionários – a situação da “informante” não mudaria muito. Se nas primeiras semanas no sexto andar Jupiara ainda manteria expectativas em ser chamada para atuar junto ao Iphan assim que a passagem se concluísse, alterações imprevistas fizeram com que não viesse jamais a ser chamada a servir ao novo quadro de administradores. Luciano em 164 nenhum momento teria desistido de chamá-la a integrar a administração do Iphan – apesar de eventuais mal-entendidos, seu trabalho não deixaria de ser prestigiado do ponto de vista do técnico do patrimônio. O que aconteceu – conforme conta – é que, ao contrário do que muitos esperavam, ele também não integraria o novo corpo de administradores, não possuindo, nesse sentido, meios de cumprir o prometido. Com isso, restaria a ela manter seu emprego atuando em um escritório da Funarte. Conforme confessou, passado algum tempo: “Aqui sim é um lugar bom pra trabalhar. Estou muito feliz aqui. O pessoal aqui é muito organizado, posso confiar neles: eu posso seguir ordens sem ter que me preocupar. É outra coisa você saber que pode seguir ordens. Sabe, o condomínio.. era aquela bagunça que você viu. Ainda bem que saí daquele lugar. Não estava me fazendo bem – era uma enxaqueca atrás da outra!” Ao enfatizar o caráter desordenado das atividades no condomínio – estejam elas relacionadas à administração por parte da Funarte ou do Iphan – , a fala de Jupiara operaria uma espécie de inversão de uma situação hierarquizante da qual não mais seria parte, e que agora poderia ser submetida a uma reflexão distanciada. Seria este o seu momento de desqualificar e mesmo desautorizar uma “alteridade incômoda”: de um lado, a destituição de seu posto na administração poderia significar a neutralização de sua mobilidade conquistada “informalmente”, colocando-a em uma situação por ela concebida como “inferior”. No entanto, ao afirmar-se não apenas indiferente em relação a essa perda, como também em situação “superior” ao quadro da administração do condomínio como um todo (que seria “uma bagunça”), nossa “informante” operaria discursivamente uma revisão daquele quadro hierárquico tal 165 como por ela concebida durante muito tempo, classificando tais instâncias de ação como em posição “inferior” em relação à sua69. Embora seja fácil entender sua remoção como efeito das estratégias do Iphan de resgatar seu poder “histórico” subjugando a Funarte, uma visão aproximada do cotidiano do edifício torna este quadro um pouco mais complexo. Jupiara também teria seus laços com o Iphan, por ter antes de mais nada servido à sua administração. Por sua vez, aquele Iphan dotado de legitimidade historicamente dada em suas ações de transformação no edifício – capazes de reunir dentro de um mesmo valor semântico o criar, o construir e o preservar – , apresentaria também uma configuração complexa, sendo formado por muitas pessoas, dotadas de perspectivas diversas e também de maneiras de agir diferentes. A permanência em campo permitiu visualizar de algumas perspectivas movimentos de desqualificação de determinadas fontes de agência em relação a outras, abrangendo nessa enorme teia de relações a participação de seres e substâncias não humanas. Nessa dinâmica, garantir o lugar da “ação legítima” sobre o edifício parece pressupor desautorizar outras ações classificando-as como constitutivas de um cenário caótico, bagunçado, sobre o qual se faz imperativo impor uma ordem. Abordado de uma perspectiva mais abrangente, capaz de relacionar o contexto atual, descrito pelo trabalho de observação, a referências históricas (“oficiais” e “cotidianas”), o contexto de “transformações de proporções inéditas” não constituiria exatamente um evento enquanto ruptura de uma determinada rotina. Antes, tais 69 Tomando de empréstimo a possibilidade do paralelo com a disposição espacial de tais funções, essa seria uma conseqüência previsível, agora que, no final das contas, Jupiara estaria localizada “acima” da sobreloja (e na porção “social” e não mais de “serviço” do edifício). 166 transformações parecem deter uma posição estrutural no desenrolar de um grande e sedutor mito fundador, que abarca mesmo as intenções mais “individuais” e temporalmente distantes em relação à origem do monumento: trata-se, em poucas palavras, da história que narra a ação heróica que se sobrepõe ao caos e institui a ordem. A lenda do Prometeu. 5.6 Prometeu... liberto? Ao final de uma das sessões de visita técnica, Luciano reuniu o grupo de arquitetos concorrentes em torno de uma das obras do conjunto escultórico do edifício, a fim de contar-lhes sua história. Tratava-se da escultura “Prometeu Liberto”70, situada na fachada curva do auditório, defronte à Avenida Graça Aranha. Conforme narra – referindo-se explicitamente ao livro de Lissovsky e Sá (1996) – , nela estaria representada, nas suas palavras, “o domínio da inteligência humana sobre as forças da natureza” e, mais do que isso, uma espécie de ruptura no ciclo mítico, encenando o momento em que Prometeu domina o abutre, sobrepujando assim a condenação que lhe teria sido infligida por ter ousado roubar o fogo dos deuses e o dado aos homens. Pode ser que a mensagem depositada na escultura não seja plenamente compartilhada no contexto de intervenções “cotidianas” no Palácio. No entanto, nele a 70 “Nenhum símbolo de maior representação para ser colocado no Ministério da Educação que a escultura de Prometeu. Ele é o início da vida, o criador de todas as coisas. É o pioneiro da civilização, o inventor das primeiras artes. (...) O Prometeu liberto (...) é a interpretação que deu à lenda, de acordo com os tempos modernos, Lipchitz (...).” (CAPANEMA, Gustavo, setembro 1945, apud LISSOVSKY;SÁ, 1996, p.293). Valendo acrescentar que, ainda com base nos autores, todo esse controlado conteúdo imagético teria de se ver com certos “imprevistos” constitutivos da própria escultura como um mito: a inviabilidade de construí-la nas dimensões previstas (aquela seria apenas a maquete) e as designações com que seria desqualificada no “cotidiano” – “monstro de bronze”,“a dança da galinha e do cozinheiro”, “urubu! sai de cima de minha bomba atômica”, etc (Idem: p.288). 167 vitória de Prometeu sobre o abutre – esta variante de um de nossos mitos de origem – se mostra viva e atuante. O “campo” não parece contar outra história que aquela de “titãs” que se reivindicam autores de uma nova e indiscutível origem. O paralelo da “variante mítica” com o cenário etnografado – propiciado por uma curiosa narrativa de campo – se revela especialmente adequado se considerarmos um contexto de discussões mais abrangente, que extrapola os limites físicos do Palácio. Circularia na Internet ao longo das elaborações em torno das reformas no Capanema um artigo em defesa do Palácio Capanema71 que, contendo uma severa crítica aos atuais planos do Iphan para com o edifício, seria redigido por ninguém menos que Maria Elisa Costa – arquiteta, filha de Lúcio Costa e, talvez acima de qualquer outra coisa, ex-presidente do Iphan. No referido artigo, que constitui uma espécie de manifesto, ela contestaria, dentre outras medidas, a instalação de um sistema de ar condicionado no edifício. A iniciativa colidiria com um dos mais consagrados aspectos do projeto arquitetônico inovador: o sistema natural de ventilação cruzada, favorecido pelo encontro entre as diferentes temperaturas das duas faces do prédio, fenômeno propiciado pelo arranjo das esquadrias do pan-de-verre e pela mobilidade dos brise-soleils (SEGAWA, 2010). De fato, de dentro do edifício, o respeito à sua autenticidade precisaria ceder a demandas atuais de seus usuários. No ver de alguns deles, o que se encontraria em questão não seria exatamente o funcionamento do sistema de ventilação cruzada. Afinal, conforme se teria afirmado na visita técnica, os brises estariam funcionando bem; a dificuldade em acioná-los se deveria a certos desgastes advindos de “má administração”. 71 O artigo intitula-se Em defesa do Palácio Capanema e foi publicado em julho de 2011 na revista eletrônica do Portal de Arquitetura Vitruvius (www.vitruvius.com.br). 168 Por sua vez, outros interlocutores chamariam atenção à eficácia da ventilação cruzada, que atingiria o ponto de tornar-se um problema: nos andares mais elevados, papéis voariam com freqüência. Para além da “sobre-eficácia” do projeto, outro motivo para a instalação de ar condicionado residiria em uma intervenção não prevista no projeto e a princípio impedida pelo tombamento: a construção do edifício da Vale (o mencionado Barão de Mauá), que produziria um reflexo intenso no pande-verre que, além de incomodar os olhos, causaria retenção de calor nos andares de ventilação menos pujante. Valendo lembrar que, no caso de alguns espaços próximos ao térreo – mais precisamente, até o segundo andar – , a presença do aparelho de ar condicionado estaria estipulada no projeto. Não interessa, é claro, entrar no mérito dessa discussão. Mas o que vale ser destacado a respeito da questão do ar condicionado é que as críticas de Maria Elisa Costa viriam a ser consideradas e discutidas no escritório regional do Iphan, onde pairaria uma certa preocupação em torno de como “negociar” com a autora – agora que, finalmente, o Iphan concordaria com a necessidade de ar condicionado colocada pelos usuários do edifício e seriam obtidas as verbas federais para sua instalação. 5.7 Origem em disputa Não a crítica em si, mas o lugar de onde parte, parece ser o foco da questão: pode ser que, somado ao lugar ocupado no passado junto ao Instituto, o parentesco sanguíneo com aquele que, nas versões mais amplamente compartilhadas de seu “mito de origem”, teria um papel de protagonista – aproximando-se ao de um herói – , fizesse sobressair, em meio a muitas vozes, as palavras da arquiteta. 169 Em suma, o que se destaca neste cenário não parece ser exatamente a busca pela origem – o Capanema original, autêntico – como uma dimensão dada e passível de ser resgatada, no caso, restaurada e defendida. A origem surge precisamente como uma categoria em disputa, possibilitando conciliar sem ruídos ações de preservar e construir e, mais precisamente, constituir determinados agentes como autores. O esforço de estabilizar uma imagem do Palácio como original supõe necessariamente eliminar ambigüidades, acobertar disputas, subjazendo, a tal processo de purificação, a supressão de apreciações “outras” do monumento. Em outras palavras, ao aproximar determinadas ações às mãos de gênios criadores, constituindo-as à sua imagem e semelhança, o uso da categoria origem produziria necessariamente as demais alteridades dotadas de agência como criadoras do “caos”. Assim, a ruptura com o ciclo mítico representada pelo Prometeu Liberto permanece uma promessa a ser cumprida, uma busca incessante. Ao contrário daquelas grandes expectativas presentes na fundação de um tempo novo, na crença em ideais de progresso e modernidade, não seria tão fácil escapar do destino previsto em um mito fundador, substituí-lo por uma imagem de futuro mais adequada e controlável. Como reza a lenda, conseqüências sérias aguardam aqueles que ousam tomar para si a autoria restrita a deuses – autoria que, vale retomar, nem eles (nomes como os de Le Corbusier, Lucio Costa ou Niemeyer) poderiam garantir a si mesmos. Na constante e inevitável colisão com eventos, no entanto, algumas seqüências do mito seriam revistas: preso não exatamente a uma rocha, o “Prometeu” que se constrói autor do Capanema parece aprisionar-se a uma imagem estática, feita de bronze, na qual orgulhosamente exibe o controle que acredita deter sobre o destino que o 170 aguarda. 5.8 Cascatas Pensar o Palácio Capanema a partir de uma experiência etnográfica significa entrar em contato com um extenso e complexo fluxo de imagens, conformando as muitas perspectivas constitutivas de sua valorização como monumento. Valendo-se da terminologia empregada por Latour (2008), tal perspectiva qualifica, através da etnografia, a idéia de cascatas de imagens, o que, em termos metodológicos, pode significar a possibilidade de o pesquisador “render-se” a tal fluxo, submetendo seu olhar aos efeitos de abrir mão da busca por um retrato estático e autêntico – o que parece ser exaustivamente perseguido – em virtude do foco sobre aspectos de “transformação” de um monumento. Tal atitude pode ser aproximada a um tipo de iconoclasmo concebido pelo autor que valoriza a destruição de imagens estáticas como forma de permitir aflorarem outras, tendo em mente o caráter imprescindível e inevitável das mediações. Trata-se, como ele mesmo sugere, de uma modalidade alternativa de iconofilia e que, no caso, pode significar uma apreciação de monumentos que não se opõe à constatação de sua transformação permanente – a qual, por sua vez, pode ser remetida a uma ininterrupta sobreposição de imagens, irrompendo seja na elaboração de grandes reformas, seja nos cuidados diários de manutenção. O Capanema seria também produzido, e não apenas relembrado e narrado, menos ainda somente contestado e destruído, em tais intervenções – dinâmica que se faz especialmente evidente no caso daquela bombacácea, dotada de uma história e de 171 um lugar. E, se o cotidiano do Palácio se mostra povoado por múltiplas imagens, estas, como vimos, poderiam se revelar em colisão umas com as outras72. No lugar de encerrar a presente dissertação com comentários conclusivos a respeito da experiência descrita e, sendo inevitável incorrer em uma cristalização desta experiência, deixo que o Palácio Gustavo Capanema aqui descrito – vislumbre de um fluxo ininterrupto – integre mais uma imagem a ser, tal como parece prever seu destino inevitável, subjugada pelas próximas. 72 Vale chamar atenção ao caráter ambíguo do termo escolhido por Latour, que na fala coloquial pode referir-se a mentiras. Ao falar em cascatas, pretendo intencionalmente produzir este efeito: o de fazer coincidir a multiplicidade de narrativas construindo discursivamente “Capanemas”, com o ato, do qual cada uma delas se vale, de se estabelecer como autêntica através da desautorização de outras construções como inautênticas, falaciosas. 172 Referências Bibliográficas ALOÏS, R. El culto moderno a los monumentos. Madrid, 1987 [1903]. BAKHTIN, M. “Epic and Novel: toward a methodology for the study of the novel”. 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Plantas Baixas Imagem 2.1: Planta-baixa de um “pavimento tipo”: áreas “social” e “serviço” Crédito das Ilustrações Imagem 1.4 “Uma imagem da arquitetura e da destruição”. Luciano/Iphan. 2011. Imagem 2.1 Ministério da Educação e Saúde. Planta Baixa Pavimento Tipo e Cobertura. Imagem em AutoCAD disponível em: http://dspace.uniritter.edu.br/ 180