UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE Isabella Aparecida Almeida de Oliveira DISCURSO DE ESTUDANTES E HABITUS PEDAGÓGICO EM CURSOS DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS NATURAIS RIO DE JANEIRO 2010 Isabella Aparecida Almeida de Oliveira DISCURSO DE ESTUDANTES E HABITUS PEDAGÓGICO EM CURSOS DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS NATURAIS Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação em Ciências e Saúde. Orientadora: Dra. Flavia Rezende Valle dos Santos, Doutora em Educação/PUC-Rio. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde. RIO DE JANEIRO 2010 Oliveira, Isabella Aparecida Almeida de Discurso de estudantes e habitus pedagógicos em cursos de graduação em Ciências Naturais / Isabella Aparecida Almeida de Oliveira.– Rio de Janeiro: NUTES, 2010. vii, 162 f. : il. ; 31 cm. Orientador: Flávia Rezende Valle dos Santos Dissertação (mestrado) -- UFRJ, NUTES, Programa de Pósgraduação em Educação em Ciências e Saúde, 2010. Referências bibliográficas: f. 104-110 1. Disciplinas das Ciências Naturais - educação. 2. Discursos. 3. Estudantes. 4. Educação Superior. 5. Educação em Ciências e Saúde - Tese. I. Santos, Flávia Rezende Valle dos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, NUTES, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde. III. Título. Isabella Aparecida Almeida de Oliveira DISCURSO DE ESTUDANTES E HABITUS PEDAGÓGICO EM CURSOS DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS NATURAIS Aprovada em 14 de janeiro de 2010 _____________________________________________________ Profa. Flavia Rezende Valle dos Santos Doutora em Educação, NUTES-UFRJ _____________________________________________________ Profa. Silvania Sousa do Nascimento Doutora em Didática das Ciências Experimentais - Paris 6, FAE-UFMG ______________________________________________________ Prof. Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca Doutor em Sociologia, NUTES-UFRJ _____________________________________________________ Profa. Alcina Maria Testa Braz da Silva (suplente) Doutora em Educação, Universo Dedico a todos aqueles que contribuíram para que este estudo pudesse ser feito. Dedico a todos os leitores, com sincero desejo de que as páginas aqui escritas sejam significativas na construção de novos saberes e novas perspectivas. Dedico todo o meu esforço à minha mãe, orientadora primeira de minha vida. Dizer “obrigada” por tudo o que recebi durante este percurso é muito pouco... Dedico a todos aqueles que me apoiaram nesta caminhada, principalmente durante os últimos árduos meses. Sem as palavras de minhas amigas, o carinho e o apoio que recebi, certamente seria impossível chegar até o final. Dedico ao meu falecido pai, que dizia sentir-se orgulhoso a cada empreitada minha nos estudos. “Só enquanto eu respirar Vou me lembrar de você” O anjo mais velho Fernando Anitelli, O Teatro Mágico RESUMO OLIVEIRA, Isabella Aparecida Almeida de. Discurso de estudantes e habitus pedagógico em cursos de graduação em ciências naturais. Rio de Janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. Este estudo situa-se na problemática do ensino das ciências naturais de nível superior e enfoca a formação de visões de ciência e de educação dos estudantes ao longo da graduação em cursos de ciências naturais. Para compreender a formação dessas visões, utilizou-se como quadro teórico a perspectiva sociocultural, articulando a filosofia da linguagem de Bakhtin à sociologia da prática de Bourdieu, aproximando os conceitos de gênero de discurso e habitus. Foram entrevistados seis estudantes de uma mesma universidade pública federal, matriculados nos dois últimos períodos de seus respectivos cursos de Física, Química e Biologia, nas modalidades Licenciatura e Bacharelado. A análise do discurso dos entrevistados pareceu apontar processos de conformação e de resistência ao habitus pedagógico vivenciado pelos estudantes. Percebeu-se um gênero discursivo estável, próprio do estudante desta universidade, que expressa a satisfação com sua formação, principalmente pelo grande conhecimento dos docentes. As diferentes concepções de educação podem apontar a existência de mais de um habitus pedagógico em um curso e diferentes níveis de inserção dos estudantes no habitus pedagógico reproduzido em seus respectivos cursos. Palavras-chave: CONCEPÇÃO EPISTEMOLÓGICA, CONCEPÇÃO DE ENSINO, HABITUS, GÊNERO DE DISCURSO, CIÊNCIAS NATURAIS. ABSTRACT This study is situated in the problem of teaching the natural sciences graduate and focuses the science’s view and education’s conception in natural sciences university courses. To understand how students organize their world views, it is assumed that social agents act from an acquired system of preferences and action schemes that guide the perception of the situation and appropriate response. That arrangement, or kind of practical sense, Bourdieu (2005) calls habitus. From the identified genres of discourse (BAKHTIN, 2004), was tried to detect processes of conformation and resistance habitus teaching experienced by students. The discourse analysis was based on a semi-structured interview. Six natural sciences’ students of a public university were interviewed. They were registered in the last two periods of their course, Physics, Chemistry and Biology. The analysis of students’ gender discourse shows that’s possible to infer more than one habitus teaching in each course and different levels of inclusion of the students in the pedagogic habitus of their respective courses. Keywords: EPISTEMOLOGICAL CONCEPTION, TEACHING HABITUS, GENDER DISCOURSE, NATURAL SCIENCES. CONCEPTION, SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 8 2 QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO 2.1 ELEMENTOS DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM 14 15 2.2 ELEMENTOS DA SOCIOLOGIA DA PRÁTICA 18 2.3 REPRODUÇÃO E CAMPO EDUCACIONAL 24 2.4 O HABITUS PEDAGÓGICO DO PROFESSOR DAS CIÊNCIAS NATURAIS 2.5 APROXIMAÇÃO ENTRE BAKHTIN E BOURDIEU 3 PERCURSOS DA PESQUISA E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS 31 41 49 3.1 OBJETIVO 49 3.2 SUJEITOS DA PESQUISA 49 3.3 COLETA DE DADOS 50 3.4 ASPECTOS ÉTICOS 50 3.5 PERCURSOS E PERCALÇOS DA PESQUISA 51 3.6 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE 53 3.7 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS 55 3.7.1 Entrevistas com estudantes da Licenciatura e do Bacharelado em Física 56 3.7.2 Entrevistas com estudantes da Licenciatura e do Bacharelado em Química 65 3.7.3 Entrevistas com estudantes da Licenciatura e do Bacharelado em Biologia 77 4.1 CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS NO DISCURSO DOS ESTUDANTES 86 86 4.2 CONCEPÇÕES EPISTEMOLÓGICAS NO DISCURSO DOS ESTUDANTES 95 4.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 97 4 DISCUSSÕES DOS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS 4.4 IMPLICAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DAS CIÊNCIAS 101 NATURAIS REFERÊNCIAS 104 ANEXO Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 111 APÊNDICES APÊNDICE A – Roteiro de Entrevista APÊNDICE B – Entrevista 1: Bacharelando em Física APÊNDICE C – Entrevista 2: Licencianda em Física APÊNDICE D – Entrevista 3: Bacharelando em Química APÊNDICE E – Entrevista 4: Licenciando em Química APÊNDICE F – Entrevista 5: Bacharelando em Biologia APÊNDICE G – Entrevista 6: Licenciando em Biologia 114 115 125 131 140 148 155 CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho situa-se na problemática do ensino das ciências naturais de nível superior e enfoca a formação de visões de ciência e de educação nos cursos de Licenciatura. A escolha da Licenciatura deveu-se à relevância atribuída ao potencial multiplicador dos futuros professores na formação das visões de mundo de outros indivíduos no contexto escolar. Sabe-se que, de modo geral, predominou nos Cursos de Licenciatura, nos últimos 40 ou 50 anos, o modelo caracterizado na literatura especializada como sendo baseado na chamada “racionalidade técnica” (ALMEIDA, 2001; CHAPANI, 2008). Para Maldaner (2007), a formação de professores, nessa perspectiva, separa “a formação humanística da formação técnico-científica, os componentes disciplinares de formação geral básica das práticas profissionais” (p.241). Também no ensino básico, os tempos e os espaços pedagógicos das instituições escolares estão organizados nesta racionalidade, assim como os horários dos professores e dos alunos, os conteúdos, as avaliações. Schnetzler (2000) e Terrazzan (2007) apontam como agravante o fato de que os cursos universitários de Licenciatura, ainda hoje, não se desprenderam da vinculação excessiva - e até prejudicial – de seus correspondentes cursos de Bacharelado. A estrutura curricular das Licenciaturas atrelou à formação científica um conjunto de disciplinas pedagógicas para tratar dos conteúdos conceituais específicos relacionados à didática e à prática pedagógica, ou seja, conteúdos operacionais geralmente baseados no modelo psicopedagógico da “transmissãorecepção”. Schnetzler (2000) afirma que tal conduta reforçou a concepção ingênua de que o ato de ensinar é resumido ao domínio do conteúdo científico, o qual deve ser transmitido através de técnicas pedagógicas treinadas. Embora haja muito que avançar com relação à formação de professores, as pesquisas na área de Educação em Ciências têm privilegiado esta temática, juntamente com o tema ensinoaprendizagem (CARVALHO et al, 2009). Estes enfoques sinalizam o compromisso 9 da área com o contexto da sala de aula e com a contribuição desses conhecimentos para a formação de professores. Para Terrazzan (2007), um rápido olhar sobre as produções dos últimos eventos importantes e mais abrangentes na área de Educação no Brasil1 evidencia a diversidade de pesquisas relacionadas à temática formação de professores. Há desde estudos relacionados às concepções de professores sobre diversos assuntos ligados à Educação (ensino/aprendizagem, ciência, avaliação, etc.), assim como estudos sobre avaliação de intervenções planejadas em sala de aula, a partir de metodologias e estratégias de ensino específicas, bem como estudos sobre como a formação continuada2 pode influenciar as práticas pedagógicas de professores em serviço. As pesquisas voltadas para as concepções de professores não ultrapassariam a sistematização das concepções relatadas e não fomentariam relações entre os dados obtidos com aspectos presentes ou ausentes na formação profissional do entrevistado. As pesquisas que promovem intervenções em sala de aula muitas vezes são realizadas com um membro do grupo de pesquisa como agente no contexto do uso do material a ser avaliado, tendo também a participação do professor, como colaborador da equipe de pesquisa. Já as pesquisas voltadas para avaliar a influência de diversas fontes nas práticas pedagógicas de professores foram consideradas frágeis quanto às afirmações encontradas nos resultados, pois “formação continuada”, em muitos casos, foi entendida como “qualquer ação feita envolvendo professores em serviço, ou seja, aqueles que já estão atuando em sala de aula, independente do fato de terem ou não completado sua formação inicial” (p.154), chegando mesmo a ações pontuais, de duração necessária para coleta de informações para investigações, cujos resultados e conclusões nem sempre foram retornados aos professores e escolas envolvidos. O autor percebe, então, que há um investimento menor em estudos acadêmicos abrangentes e aprofundados sobre 1 Seu estudo cita encontros mais gerais, como as Reuniões Anuais da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação), o Encontro Nacional Didática e Prática de Ensino (ENDIPE), o Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC), e encontros de subáreas da Educação em Ciências, como o Encontro de Pesquisa em Ensino de Física (EPEF). 2 Dentre as críticas que tece relacionadas à formação complementar ou continuada, Terrazzan (2007) destaca que esta iniciativa, salvo raras exceções, normalmente configuram cursos de curta duração, de caráter genérico. Segundo o autor, “dificilmente se tem registro de iniciativas nesse sentido, voltadas exclusivamente para a formação de formadores de futuros professores” (p.149). Considerando “o grande e diversificado universo das IES formadoras de professores, pode-se dizer que, em geral, este aspecto nem sequer foi considerado, ou o foi de forma burocrática, apenas para satisfazer exigências formais”. 10 formação inicial de professores e sobre impactos, limites e possibilidades de mudanças neste setor. Segundo Duarte et al (2009), a crítica à racionalidade técnica subjacente aos processos formativos parece ter sido assimilada pelos pesquisadores da área de Educação em Ciências, embora o contexto da prática docente nos cursos de formação de professores ainda apresente dificuldades para superá-la. A prática pedagógica com base na racionalidade técnica se resumiria ao domínio do conteúdo específico e a técnicas didáticas específicas para facilitar o ato de ensiná-los. Em uma análise do ensino de ciências no nível médio, Arroyo (1988) sinalizou que, quando as disciplinas das Ciências Humanas e das Ciências Naturais/Ciências Biológicas não são pensadas de forma integrada, caracteriza-se uma dicotomia. Tal dicotomia torna o educando uma vítima que, ao lidar basicamente com informações restritas às formas técnicas e empobrecidas de pensar, tem sua formação global limitada para entender as complexas relações sociais, históricas, políticas e culturais. A desarticulação entre Ciências Humanas e Ciências Naturais/Ciências Biológicas privilegia, nessa perspectiva, a aquisição de conteúdos abstratos, o que contribui para uma limitação na educação científica frente ao cotidiano dos alunos. Há, ainda, uma assimetria entre os saberes, segundo a qual a aprendizagem abstrata é considerada superior ou mais “nobre” que a aprendizagem prática (WALKERDINE, 1998 apud LEMKE, 2006). Esses são alguns dos aspectos que podem moldar a visão de ciências dos estudantes levando, por exemplo, à priorização da aquisição de conceitos técnicos em detrimento de uma visão crítica sobre as questões relativas à realidade social. Lemke (2006) também assinala que os objetivos da educação científica não podem ser apenas técnicos, limitando-se a produzir “trabalhadores capacitados e consumidores educados para uma economia global” (p.6), mas devem ser também o de retirar as ciências do isolamento acadêmico, expandir o universo de ação da aprendizagem dos estudantes nas aulas, nos laboratórios e nos ambientes virtuais, chegando aos lugares onde se realizam atividades comunitárias. Ressalta, ainda, que a aprendizagem ocorre através de muitos meios, merecendo destaque a linguagem, pois é através dos sistemas semióticos que os significados de diferentes modalidades são integrados, seja de textos escritos, imagens, narrativas ou observações. 11 A dicotomia entre as áreas de Ciências Humanas e Ciências Naturais/Ciências Biológicas foi representada no termo “duas culturas”, cunhado por Snow (1995, p.18), evidenciando a polarização entre os mundos da ciência e das humanidades. Entretanto, o autor considera essa divisão confusa e superficial, pois resulta de uma especialização excessiva nesses campos, a qual leva seus componentes a criarem “imagens distorcidas” sobre os membros do campo ao qual não pertence. Assim, os cientistas “não tomam conhecimento das dimensões psicológicas, sociais e éticas dos problemas científicos” e os humanistas desconsideram o “valor da pesquisa do mundo natural e suas conseqüências” porque “não conhecem conceitos básicos da ciência”. Além da criação das “imagens distorcidas” ou de estereótipos, há a dificuldade de comunicação devido à excessiva especialização desses profissionais e à visão fragmentada sobre o mundo. Segundo Snow (1995), esta dicotomia cultural pode implicar graves conseqüências educacionais pois ao invés de “procurar construir pontes para tornar transponível o que separa as duas culturas, eliminando ou alterando preconceitos mútuos”, resulta em um “corporativismo acentuado e defensivo cristalizado nas instituições”. Nossa hipótese é a de que estas “imagens distorcidas” constroem ou consolidam visões sociais de mundo (LÖWY, 1994), que encerram um conjunto coerente de ideias sobre sociedade, história, homem e sua relação com a natureza. Estas visões de mundo implicam a percepção do mundo como uma paisagem, construída pela perspectiva de quem a vê e a interpreta, e não como uma fotografia, instantânea, uma redução do real. Desta forma, a interpretação da realidade social e o conhecimento sobre ela produzido estariam ligados, a uma perspectiva “global socialmente condicionada, isto é, o que Pierre Bourdieu denomina [...] ‘as categorias de pensamento impensadas que delimitam o pensável e predeterminam o pensamento’” (p. 14). Estas categorias servem também de referência para a visão de ciência e de educação, que são o interesse deste estudo. Os cursos de graduação das ciências naturais que oferecem tanto formação docente (Licenciatura) quanto formação para a pesquisa (Bacharelado), ao contemplarem disciplinas das áreas das Ciências Humanas e das Ciências Naturais/Ciências Biológicas, são contextos interessantes para se investigar o embate entre visões de mundo e a influência da racionalidade técnica. Através dos 12 discursos dos estudantes seria possível tentar compreender os valores difundidos e como influenciam suas percepções. Superar a dicotomia entre as Ciências Humanas e Ciências Naturais/Ciências Biológicas possibilitaria a compreensão e a valorização da ciência como um empreendimento social. Segundo Krasilchik (2000), os alunos somente serão adequadamente formados se “correlacionarem as disciplinas escolares com a atividade científica e tecnológica e os problemas sociais contemporâneos” (p.90). Supõe-se, assim, que a integração das ciências naturais e humanas deva ser um caminho necessário para encontrar soluções para problemas sócio-científicos com os quais a humanidade se defronta hoje (LEMKE, 2005). Para compreender a formação das visões de mundo dos universitários e nelas dimensionar o embate entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais/Ciências Biológicas, supomos que dentro do espaço social tal como o campo acadêmico, os agentes sociais (alunos e professores) não agem sob pressão de causas, tampouco como sujeitos conscientes e conhecedores obedecendo a razões e agindo com pleno conhecimento de causa, mas atuam dotados de um senso prático adquirido de preferências, de estruturas cognitivas duradouras e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada. Essa disposição, ou espécie de senso prático, Bourdieu (2005) denomina de habitus. A prática do professor (neste caso, universitário) pode ser entendida como habitus pedagógico (PERRENOUD, 2001), que participa da regulação, organização e legitimação do acesso diferencial aos bens culturais e que exige concepções compartilhadas intersubjetivamente entre grupos sociais. Assim, os professores de ciências teriam suas noções de ensino, aprendizagem e ciência convertidas em atividades de ensino nas salas de aula e seu conhecimento profissional básico construiria seu modelo pedagógico e seu objetivo ao ensinar uma disciplina (ZIMMERMANN, 2000). Nossa hipótese é a de que o habitus pedagógico dos professores dos cursos de graduação causaria impacto na formação dos graduandos e se tornaria visível no discurso destes. Com base nos conceitos de campo social, habitus e gênero de discurso, pretende-se buscar, através desta pesquisa empírica, uma interpretação, dentre as inúmeras possíveis, sobre como alunos de cursos de licenciatura em ciências naturais de uma universidade pública federal brasileira conformam seus discursos e visões de mundo. Espera-se encontrar marcas nos gêneros de discurso 13 dos alunos que poderão estar relacionadas às características curriculares e ao habitus pedagógico dos professores dos diferentes cursos e que possivelmente têm impacto sobre as várias dimensões da vida social e universitária. Diferenças, por exemplo, ligadas à natureza da ciência e aos modelos pedagógicos vivenciados em cada curso. Assim, supondo os cursos de graduação como campos acadêmicos, pretende-se investigar como os discursos dos universitários sobre Ciência e sobre Educação são conformados por diferentes habitus. CAPÍTULO 2 QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO A perspectiva sociocultural enfatiza os movimentos discursivos e as formas como discursos configuram a formação social e cultural nos diferentes contextos sociais. Ao compreender a ação mental humana a partir dos processos comunicativos, essa perspectiva torna possível problematizar a forma como diferentes gêneros de discurso são colocados em contato a partir da interação social. A linguagem social, constructo teórico de Bakhtin, corresponde a um horizonte social mais amplo do falante, ao discurso próprio de seu lugar social, que apresenta pontos de vista específicos sobre o mundo, explicitando significados e valores próprios ao grupo social de origem. Nos diversos meios sociais, seleciona-se a linguagem mais apropriada para um determinado fim. Esse processo, inicialmente inconsciente, mas que pode vir a ser consciente quando o indivíduo percebe contradições entre as linguagens e as concepções de mundo, é parte de qualquer fenômeno pedagógico e, portanto, comum nas práticas educativas. Para perceber tais contradições é necessário estudar as forças que operam de forma mais geral no nível cultural, histórico e institucional. Neste ponto, Wertsch (1993) sinaliza que é necessária uma aproximação entre a perspectiva sociocultural e uma orientação interdisciplinar mais ampla, como a sociologia e a antropologia, para que se compreenda de forma mais completa o funcionamento mental e quais são os instrumentos mediadores envolvidos em questões que são amplamente estudadas, como, por exemplo, o primado da racionalidade que permeia as sociedades contemporâneas. Ao lado do conceito de racionalidade, Wertsch (1993) considera relevante o conceito de reprodução cunhado por Bourdieu para explicar os gêneros discursivos que conformam o discurso e o pensamento. Este conceito, muito presente nas teorias sociais, se refere à tendência das classes sociais a reproduzirem-se a si mesmas. Se os gêneros discursivos influenciam a visão dos sujeitos quanto às 15 hierarquias culturais e institucionais, então, na concepção de Wertsch, também poderão apontar importantes oportunidades para uma mudança efetiva. Tal mudança estaria relacionada à capacidade para investigar gêneros discursivos específicos e o que estes elegem como padrões desejáveis, o que proporcionaria uma ferramenta analítica para compreender os contextos socioculturais e os processos através dos quais ocorre a incorporação da ordem social e dos valores dominantes. A partir do conhecimento acerca dos mecanismos de inculcação pode-se pensar em modificar os modelos sociais considerados indesejáveis. O quadro teórico dessa pesquisa se espelha no caminho teórico traçado por Wertsch (1993) para compor a perspectiva sociocultural, tentando aproximar a filosofia da linguagem de Bakhtin à sociologia da prática de Bourdieu. 2.1 Elementos da Filosofia da Linguagem A posição dos intelectuais bakhtinianos é a de que não há produção literária, ou artística de modo geral, que possa escapar às influências das esferas ideológicas (ou seja, do domínio dos signos), das transformações econômicas, do contexto social onde foi produzida. O estudo da obra de Dostoievski realizado por Bakhtin mostra a necessidade de, para compreender uma obra literária, ter em mente o contexto social no qual foi produzida. Entretanto, uma obra não corresponde a uma cópia da realidade de uma época, mas o que ocorre é uma reelaboração artística do contexto social. A reelaboração ocorre sob a forma de polifonia, onde as idéias do autor são colocadas em “interação dialógica”, gerando uma obra que é um produto ideológico, mas que não é nem uma cópia da realidade, nem uma criação, e sim um modo específico de refração da realidade social. Bakhtin e o Círculo, apesar de influenciados por leituras sobre o marxismo, buscaram superar o determinismo que a teoria de Marx apresenta, bem como a visão mecanicista de uma base socioeconômica comum sobre os produtos ideológicos. É neste sentido que a noção de esfera social emerge. Esfera social, ou esfera da comunicação discursiva, da criatividade ideológica, da atividade humana, da comunicação social, da utilização da língua, ou apenas ideologia: este conceito encontra-se presente em toda a obra de Bakhtin e seu Círculo e está relacionado à onipresença social da palavra, que encontra-se presente em todos os atos de 16 compreensão assim como em todos os atos de interpretação. Sua influência nas diversas esferas ideológicas (ciência, religião, literatura, etc.) torna possível o estudo da organização dessas diversas esferas. Cada esfera apresenta uma função no conjunto da vida social, assim como apresenta especificidades coercivas: a interação verbal só ocorre entre indivíduos organizados; há contato entre diversos fatores comuns, dentre eles, as bases socioeconômicas e as esferas ideológicas. A noção de esfera constitui, assim, um construto teórico que permite pensar as especificidades das produções ideológicas como os artigos científicos, os livros didáticos, as reportagens de jornal – pois dá conta da realidade plural da atividade humana ao mesmo tempo em que tem entendimento sobre a linguagem verbal humana. Esferas ideológicas são conceitos que permitem identificar, com base na linguagem verbal, questões sobre a realidade plural da atividade humana. Tal diversidade condiciona o modo de apreensão e de transmissão do discurso alheio, assim como a caracterização dos enunciados e de seus gêneros. A dificuldade de teorizar os gêneros do discurso é associada, dentre outros, à grande diversidade decorrente da complexidade das esferas da atividade humana. Grillo (2006) afirma que a importância da noção de esfera encontra-se relacionada à compreensão da natureza e da classificação dos gêneros, que são os tipos estáveis de enunciados. A noção de esfera permeia, então, a caracterização do enunciado e de seus gêneros no que diz respeito ao tema, à sua relação com os elos precedentes (enunciados anteriores) e com os elos subseqüentes (a atitude responsiva dos co-enunciadores). Para um estudo produtivo sobre o diálogo, Bakhtin (2004) sugere uma investigação das formas usadas na citação do discurso, pois estas formas refletem tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de outrem, e essa recepção é fundamental para o diálogo. Temos, então, o estudo da linguagem a partir de um ponto de vista dialético, onde a essência é o fenômeno social da interação verbal, e o diálogo é uma das formas mais importantes desta interação verbal, de qualquer tipo que seja, não apenas da comunicação face a face. A enunciação, o ato da fala, é de natureza social pois é o resultado de dois indivíduos socialmente organizados. Tal afirmação não se restringe apenas à prática cotidiana do diálogo, mas também ao dialogismo (o diálogo entre discursos), à construção do enunciado falado ou escrito, em conversas cotidianas ou presente 17 nas escritas científicas, etc. Enunciar é, portanto, dar vida à palavra, é deslocá-la da posição de sinal para a de signo. Como signo, a palavra é determinada pelas relações sociais e orientada pelo contexto, pressupondo uma audiência socialmente organizada por regras e costumes próprios: o locutor seleciona a palavra (ou a oração) de um estoque social para dirigi-la a um interlocutor (ou a uma plateia), que pode ou não ser real. A comunicação verbal encontra-se necessariamente vinculada à situação concreta e “[...] entrelaça-se inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção [...]” (BAKHTIN, 2004, p.124). As enunciações são consideradas as unidades da cadeia verbal, isto é, da comunicação discursiva: o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva, não podendo ser separado dos elos precedentes que o determinam. O processo de fala não tem início ou fim, mas pode-se identificar seus limites: o início e o fim da enunciação, a primeira e a última palavra, delimitando a alternância dos falantes. Deste modo é possível tomar as enunciações como unidades da análise da cadeia verbal. Cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os gêneros de discurso. Estes são caracterizados pelos contextos nos quais são utilizados, como se no comportamento característico do grupo, se nos jargões profissionais, se na linguagem de autoridades de um círculo. Teremos tantos gêneros de discurso quantas forem as possibilidades da atividade humana. A fala é organizada através de gêneros de discurso, os quais se dispõem em variedade para o uso do falante. Este pode adotar um gênero ou outro, ou combinálos, acrescentando ainda, uma entonação expressiva que demonstra sua vontade discursiva. Considera-se que a expressividade está no enunciado, e não na palavra ou na oração, e que o juízo de valor e a emoção só surgem no processo do emprego da palavra em um enunciado. Cada enunciado apresenta diferentes atitudes responsivas a outros enunciados da esfera da comunicação discursiva onde o falante se encontra, o que gera respostas, concordâncias, polêmicas, ponderações e acréscimo de entonação expressiva. Em cada enunciado encontram-se enunciados anteriores, opiniões de interlocutores, visões de mundo e teorias. A atitude responsiva de um enunciado liga-o aos enunciados precedentes e também aos subseqüentes. Estas conexões conferem aos enunciados o caráter dialógico. 18 As relações dialógicas de um enunciado são polifônicas, ou seja, amplas, complexas, repleta de diferentes vozes e consciências, diversificadas, cheias de possibilidades verbais, e tais elementos não são necessariamente do diálogo ou das réplicas entre falantes/interlocutores, mas podem ser anônimas, distantes no tempo e no espaço, impessoais. Não há palavras neutras, sem aspirações, avaliações ou vozes de outros. O conceito de dialogismo também apresenta a noção de vozes, que se enfrentam em um mesmo enunciado, e que representam os diversos elementos históricos, sociais e lingüísticos da enunciação. 2.2 Elementos da Sociologia da Prática Bourdieu constrói uma teoria para compreender a ordem social (sua estruturação e a ordenação das práticas sociais), onde não há espaço para as perspectivas subjetivistas ou para as objetivistas. Segundo Nogueira e Nogueira (2002, 2004), Bourdieu desconsidera o subjetivismo quando admite que a ordem social não é resultado da consciência e da intenção da ação individual. Assim, rejeita a ilusão do primado da excessiva autonomia. Tampouco considera a ordem social como uma realidade externa que molda, de modo inflexível, as ações individuais, reduzindo a ação a um caráter socialmente condicionado de comportamentos e atitudes individuais. A prática, no objetivismo, seria a execução de regras já dadas, não cabendo espaço para estudar a forma como estas regras sociais são produzidas e reproduzidas. Como alternativa, Bourdieu propôs uma teoria da prática, calcada nos conceitos de habitus, espaço social, campo e capital - econômico, social, cultural e simbólico. Estes são os instrumentos conceituais para compreender a mediação entre estrutura e prática: o “conhecimento praxiológico” (NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2004, p.26) de sua teoria não apenas identificaria estruturas objetivas externas aos indivíduos, mas possibilitaria investigar como tais estruturas encontram-se interiorizadas, formando um conjunto estável de disposições que estruturam, por sua vez, as práticas dos indivíduos. O conceito de habitus pode ser entendido como a mediação entre a dimensão objetiva e a dimensão subjetiva do mundo social, ou seja, a mediação entre a estrutura e a prática. É como uma matriz, determinada pela posição social do indivíduo, que compõe um sistema de disposições estruturadas de acordo com seu 19 meio social. As disposições para pensar, ver e agir em diferentes situações funcionariam como “estruturas estruturantes”. Ou, nas palavras de Bourdieu (2005, pp.21-22), [...] o espaço de posições sociais se retraduz em um espaço de tomadas de posição pela intermediação do espaço de disposições (ou do habitus) [...] A cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (ou de gostos) produzidos pelos condicionamentos sociais associados à condição correspondente e, pela intermediação desses habitus e de suas capacidades geradoras, um conjunto sistemático de bens e de propriedades, vinculadas entre si por uma afinidade de estilo [...] O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas. [...] Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas [...] mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes. O habitus não é um conjunto inflexível de regras, mas sim um princípio gerador que possui uma dimensão dialética: é constituído por disposições gerais (resultantes da incorporação da estrutura social e da posição social de origem interiorizadas), que precisam ser adaptadas pelos sujeitos no momento específico de suas ações. As práticas sociais apresentariam propriedades relacionadas à posição social de quem as produziu, pois a própria subjetividade dos indivíduos (forma de perceber o mundo, preferências, aspirações) seria previamente estruturada em relação ao momento da ação. As situações concretas de ação são sempre diferentes daquelas nas quais o habitus foi formado, mas os sujeitos têm nele uma referência da posição social do seu grupo de origem e, conseqüentemente, uma leitura específica da estrutura e da ordem social. O habitus então traduz estilos de vida, julgamentos morais e políticos, valores estéticos e também é um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas. Com base no conceito de habitus, Bourdieu dá conta de teorizar sobre uma estrutura social objetiva, onde há variadas relações de luta e de dominação entre as classes sociais, sem que os sujeitos participantes destes atos tenham plena consciência de suas ações cotidianas. O exercício do poder, o pertencimento a uma classe ou grupo social, a dominação simbólica e até econômica podem ser atos não intencionais: a hierarquia das posições sociais, bem como suas típicas estratégias 20 de ação e reprodução, crenças e preferências, vinculadas a uma determinada posição social de origem, são incorporadas de forma que se tornam parte da natureza do sujeito. Os sujeitos agiriam tal como aprenderam ao longo da sua socialização, a partir de uma posição social específica, e imprimiriam em suas ações um sentido objetivo que ultrapassaria o sentido subjetivo consciente, percebido e intencionado. Lahire (2002) considera o conceito de habitus uma ferramenta teórica que permite apreender o social sob sua forma incorporada, ou seja, o que o mundo social deixa em cada um de nós, como um “sistema transferível de disposições socialmente constituídas” (p.45). E é através deste conceito que as bases do mito da liberdade individual foram abaladas. As estruturas sociais, na perspectiva bourdieusiana, não produzem comportamentos de forma mecânica: o sujeito não seria diretamente conduzido em uma determinada direção que seu grupo social determinasse, mas o pertencimento a um grupo social e as características da realidade social na qual esse sujeito foi socializado, lhe fornecem um conjunto específico de disposições para a ação, que o orientam nas diferentes situações sociais, ao longo de sua vida. A análise de Bourdieu sobre a realidade social privilegia o papel da dimensão simbólica ou cultural (religião, arte, ciência, língua, moral) na produção e reprodução da vida social. As produções simbólicas são capazes de estruturar (organizar) a percepção dos indivíduos e favorecer a comunicação entre os agentes sociais que compartilham tais estruturas. Estas produções simbólicas são artefatos na manutenção e legitimação das estruturas de dominação social, pois reproduzem as estruturas de dominação social, mas o faz de forma indireta. Os sistemas simbólicos são produzidos por um grupo e apropriados por um campo, isto é, um “sistema” ou um “espaço” estruturado de posições sociais onde um determinado tipo de bem é produzido, consumido e classificado. No interior destes campos da realidade social, diferentes agentes ocupam diversas posições. Os indivíduos envolvidos lutam, então, pelo controle da produção e, sobretudo, para ter o direito legítimo de classificar e hierarquizar os bens produzidos (NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2004, p. 36). As lutas ocorrem também no sentido de apropriação de um capital específico do campo (monopolizar o capital específico legítimo) e/ou da redefinição deste capital, já que o capital é distribuído de 21 forma desigual dentro do campo, determinando dominantes (aqueles que o possuem em maior quantidade) e dominados (LAHIRE, 2002, p.47). Dentro do campo, normalmente, as posições dominantes já estão ocupadas, restando aos agentes que nelas se encontram, conscientemente ou não, adotar estratégias para manter a estrutura tal como ela se encontra. Aqueles que ocupam posições inferiores no interior do campo (indivíduos e/ou instituições) podem aceitar a estrutura hierárquica, restando-lhes reconhecer sua inferioridade, realizar um esforço de aproximação aos padrões dominantes, ou, ainda, contestar as estruturas hierárquicas vigentes (“movimentos heréticos” ou subversivos). A partir do conceito de campo social, Bourdieu constrói o conceito de campo científico como o lugar onde ocorrem as disputas entre agentes que desejam posições hierárquicas que lhes permitam falar e agir legitimamente em assuntos científicos. Percebe-se, assim, que cada campo de produção simbólica é um espaço de disputas entre dominantes e aspirantes ao poder: a lógica de mercado, que permeia todo tipo de produção, encontra-se presente também no campo “da ciência que, sem ser submetida a uma clientela direta, confronta-se com os desafios da concorrência interna, entre pesquisadores” (VASCONCELLOS, 2002, p.82). Este é o cenário no qual são produzidos e reproduzidos os critérios de classificação cultural, onde os padrões são estabelecidos para designar o que é cultura dominante e o que será considerado como produção inferior. O que é considerado naturalmente ou objetivamente superior exerce, sobre os demais, a violência simbólica, a imposição dissimulada de uma cultura dominante como sendo o referencial de verdadeira cultura, a “violência que extorque submissões que sequer são percebidas como tais” (BOURDIEU, 2005, p.171). O princípio de inteligibilidade que orienta o conjunto de reflexões de Bourdieu em “A Reprodução” (1975) é o da relação entre o sistema de ensino e a estrutura das relações entre as classes (p.11). A noção de arbitrário cultural aponta que nenhuma cultura pode ser definida de forma objetiva e universal como superior a qualquer outra. Apesar de arbitrários, a cultura e os valores que orientam determinados grupos seriam vividos como os únicos legítimos, a ponto de constituírem a cultura consagrada e transmitida pela escola. Os indivíduos que compartilham a cultura dominada, vulgar, podem adotar duas estratégias: tentar se apropriar da cultura dominante ou se contrapor à hierarquia vigente para reverter esta posição ocupada pela cultura “superior”. Deve- 22 se ressaltar, ainda, que o conjunto da sociedade (formada pelos indivíduos cujos bens culturais são considerados dominantes e por aqueles cuja cultura é subordinada) curiosamente, desconhece o caráter arbitrário e imposto do padrão estabelecido como referencial – a correspondência entre as classes sociais e as formas culturais não são percebidas facilmente. As hierarquias culturais reforçam, reproduzem e legitimam as hierarquias sociais, isto é, a divisão e a diferença entre grupos, classes e frações de classe dominantes e dominados. As hierarquias culturais classificariam os indivíduos segundo o tipo de bem cultural que produzem, consomem e apreciam, distinguindoos dos demais, socialmente inferiorizados por não compartilhar tais valores. Desta forma, a hierarquia entre bens simbólicos constitui uma base importante para hierarquizar indivíduos e grupos sociais. Os sistemas simbólicos (ou sistemas culturais) moldam as formas de percepção e representação da realidade, produzem e reproduzem as estruturas sociais. Para Bourdieu, segundo Nogueira e Nogueira (2004, p. 46), essa transfiguração das hierarquias sociais em hierarquias simbólicas permitiria a legitimação ou justificação das diferenças e hierarquias sociais. Ela permite, por um lado, que o indivíduo que ocupa as posições sociais mais elevadas se sinta merecedor de sua posição social. Esse indivíduo tende a acreditar que sua posição social não se deve a uma estrutura de dominação, mas que, ao contrário, se justifica por suas qualidades culturais intrinsecamente superiores [...] Dentre os bens simbólicos, encontra-se a cultura escolar, moldada de acordo com a cultura que se pretende manter como dominante, definindo as posições sociais futuras dos indivíduos no mercado de trabalho e nos postos de comando. As hierarquias simbólicas reforçam, assim, a estrutura de dominação social: restringem a mobilidade social dos indivíduos, pois não são todos que compartilham os códigos e os valores difundidos nas instituições escolares, ou seja, não são todos que herdam o capital cultural que favoreça o investimento no campo da educação. O sucesso e o fracasso escolar, então, correspondem à reprodução eufemizada e dissimulada da estrutura social, uma versão da luta de classes. O modo como as variadas formas de poder encontram-se distribuídas na sociedade definem a estrutura social. Bourdieu (2005, pp.28-29) considera que a noção de espaço social 23 contém, em si, o princípio de uma apreensão relacional do mundo social: ela afirma, de fato, que toda a “realidade” que designa reside na exterioridade mútua dos elementos que a compõem. Os seres aparentes, diretamente visíveis, quer se trate de indivíduos quer de grupos, existem e subsistem na e pela diferença, isto é, enquanto ocupam posições relativas em um espaço de relações que, ainda que invisível e sempre difícil de expressar empiricamente, é a realidade mais real [...] e o princípio real dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos. Bourdieu (2005) utiliza a noção de espaço social para apreender o caráter multidimensional da realidade social: considera que o espaço social envolve a ideia de diferenciação, de separação e de proximidade. É construído de “modo que os agentes ou os grupos são aí distribuídos em função de sua posição nas distribuições estatísticas de acordo com dois princípios de diferenciação [...] o capital econômico e o capital cultural” (p.19). O capital econômico corresponde aos bens materiais propriamente ditos; o capital cultural é como uma herança invisível a olho nu: a inserção na cultura escolar de modo que possibilite o indivíduo a prosseguir em seu “destino” escolar. Os indivíduos ocupam, na estrutura social, posições diferenciadas relacionadas ao volume e à natureza de seus recursos, os quais podem ser herdados ou adquiridos em suas trajetórias de vida. Para realizar uma análise mais minuciosa, deve-se considerar a influência do capital social e do capital simbólico. O capital social corresponde ao conjunto de relações sociais mantidas por um indivíduo (parentesco, amigos, contatos profissionais), relações que podem trazer benefícios materiais ou simbólicos (como prestígio por circular em meios sociais dominantes). Já o capital simbólico diz respeito à forma como os demais percebem o indivíduo, ao seu prestígio ou à sua reputação num campo específico ou na sociedade, em geral. Esta percepção pode estar relacionada à posse dos demais tipos de capitais, mas este fato não constitui uma regra. Estes recursos seriam investidos em diferentes mercados, como o escolar, econômico, matrimonial, cultural, dentre outros, de modo a serem ampliados e acumulados. Quanto maior o volume possuído e investido, maior a possibilidade de um bom retorno, tal como na lógica do campo econômico. Mas diferente do mercado financeiro, as decisões tomadas com estes capitais não ocorrem de forma plenamente consciente, com base em cálculos racionais. Os grupos sociais têm conhecimento sobre os investimentos possíveis de 24 serem feitos em sua realidade social concreta e buscam as melhores estratégias de ação, as quais são aquelas mais seguras e rentáveis. As melhores estratégias seriam adotadas pelos grupos e incorporadas como parte do seu habitus. Os indivíduos são agentes que atuam e que sabem, dotados de um senso prático [...], de um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que são essencialmente produto da incorporação de estruturas objetivas) e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada. O habitus é essa espécie de senso prático do que se deve fazer em uma dada situação [...], arte de antecipar o futuro do jogo inscrito, em esboço, no estado atual do jogo [...] Essa é uma das mediações através das quais o sucesso escolar – e social – se vincula à origem social (BOURDIEU, 2005, p.42). 2.3 Reprodução e o Campo Educacional Até meados do século passado, predominava nas Ciências Sociais e no senso comum uma visão funcionalista que, de acordo com Nogueira e Nogueira (2002), atribuía à escolarização o papel central no processo de superação do atraso econômico, do autoritarismo e dos privilégios relacionados às sociedades tradicionais. Através da escolarização seria possível construir uma sociedade justa (meritocrática), moderna (centrada na razão e nos conhecimentos científicos) e democrática (fundamentada na autonomia individual). A escola pública e gratuita resolveria o problema do acesso à educação, o que garantiria a igualdade de oportunidades entre os cidadãos: os indivíduos competiriam, em condições de igualdade, dentro do sistema de ensino. Aqueles que se destacassem por seus dons seriam justamente levados a avançar em carreiras escolares, ocupando posteriormente posições superiores na hierarquia social. Neste contexto, a escola seria uma instituição neutra, difusora do conhecimento racional e objetivo, que selecionaria os melhores a partir de critérios racionais. Entretanto, nos anos 60, esta concepção de escola é abalada por uma profunda crise, o que irrompe numa releitura pessimista do papel dos sistemas de ensino na sociedade. Dois momentos podem ser considerados importantes nesta nova interpretação sobre a educação. O primeiro se deu no final dos anos 50, quando uma série de grandes pesquisas quantitativas patrocinadas pelos governos inglês, francês e estadunidense1 mostrou claramente a influência da origem social sobre o destino escolar. Os resultados não provocaram contestações imediatas 1 Seriam eles: Aritmética Política inglesa, Relatório Coleman – EUA, Estudos do INED - França 25 acerca da perspectiva funcionalista, pois foram vistos como indicadores de problemas passageiros do sistema de ensino, que poderiam ser ajustados através de maiores investimentos. Mas, a médio prazo, desgastaram a propagada ideia acerca da igualdade de oportunidades resguardada pela escola. O segundo momento ocorreu nos anos 60, quando a massificação do ensino gerou efeitos inesperados, como a frustração de obter um certificado escolar cujo retorno social e econômico no mercado de trabalho é baixo: a massificação do ensino e a desvalorização dos títulos escolares cessaram as expectativas de mobilidade social através da escola. Uma nova interpretação da escola e da educação com base naqueles dados surgiu com Bourdieu (1975), que apontou a forte relação entre desempenho escolar e origem social, o que se tornou a sustentação de sua nova teoria. A perspectiva sobre a educação é totalmente invertida: ao invés de ser o local de transformação e democratização das sociedades, a instituição escolar (inclusive a universidade) passa a ser considerada como um dos principais lócus que contribui para a manutenção e a legitimação de privilégios sociais. Bourdieu nega o caráter autônomo do sujeito individual e considera a caracterização do indivíduo como relacionada à sua bagagem socialmente herdada, bagagem esta que inclui: o capital econômico e os bens e serviços que ele dá acesso; o capital social, ou seja, o conjunto de relacionamentos sociais influentes mantidos pela família; o capital cultural, formado principalmente por títulos de escolaridade. A herança cultural familiar pode ser (e normalmente é) posta a serviço do sucesso escolar: para Bourdieu, o capital cultural é o elemento que tem o maior impacto no destino escolar dos sujeitos. Esse é um diferencial de sua teoria sobre Educação: ressalta o fator cultural e atribui a este maior importância, em relação ao fator econômico, nas explicações sobre as desigualdades escolares. Para o sociólogo, o capital cultural facilitaria a aprendizagem dos conteúdos e dos códigos veiculados pela escola, favorecendo o desempenho escolar daqueles cujo meio familiar compartilha dos mesmos valores. A visão de mundo, os conhecimentos considerados legítimos, o domínio da norma culta da língua, por exemplo, potencializariam a ação pedagógica, tornando mais íntima a cultura escolar. O exame escolar encontra-se além da avaliação das 26 aprendizagens: inclui um julgamento cultural, estético e até moral dos alunos. Ele não é apenas a expressão mais legível dos valores escolares e das escolhas implícitas do sistema de ensino: na medida em que ele impõe como digna da sanção universitária uma definição social do conhecimento e da maneira de manifestá-lo, oferece um de seus instrumentos mais eficazes ao empreendimento de inculcação da cultura dominante e do valor dessa cultura (BOURDIEU, 1975, p.153). Há, também, o capital de informações sobre a estrutura e os modos de funcionamento do sistema de ensino, “uma das mediações através das quais o sucesso escolar – e social – se vincula à origem social” (BOURDIEU, 2005, p. 42). Desta forma, são estabelecidas as hierarquias, mais ou menos sutis, que distinguem os ramos escolares sob o ponto de vista do prestígio, qualidade acadêmica e retorno financeiro, conhecimentos estes que ajudarão os pais a traçar estratégias para orientar a trajetória escolar de seus filhos. Vê-se, assim, a importância do capital social para o acúmulo de capital cultural. De acordo com o conceito de habitus, cada grupo social sabe sobre as formas mais apropriadas de ação através dos seus conhecimentos práticos (não totalmente conscientes) construídos através do acúmulo histórico de experiências de êxito e fracasso. Os grupos, então, aprendem sobre aquilo que estaria ou não ao alcance de seus membros, de acordo com a sua realidade social, internalizando suas chances de acesso aos bens simbólicos e materiais, transformando as condições objetivas em esperanças subjetivas. E, de acordo com a posição do grupo no espaço social e com o acúmulo de capitais que possua, as estratégias são reconhecidas como mais ou menos seguras, viáveis, potencialmente rentáveis ou arriscadas. Ao aplicar tal linha de raciocínio no campo da educação, percebe-se que os grupos sociais, com base nas experiências anteriores de sucesso e fracasso de seus membros no sistema escolar, traçam estimativas de chances de sucesso para pensar o investimento no universo escolar. Serão investidos mais ou menos recursos, tempo e energia na educação dos filhos conforme as probabilidades de êxito dos mesmos. Este investimento pode ter o retorno não apenas no mercado de trabalho, mas em diferentes mercados simbólicos, como o matrimonial. Outro fator importante que influencia este tipo de investimento seria o grau em que a reprodução social depende do sucesso escolar, ou seja, o quanto a 27 escolarização dos membros de um grupo social favorecerá a manutenção da posição da estrutura ou promoverá sua ascensão social – por exemplo, as elites econômicas não necessitam de investimento maciço em certificação escolar, ao contrário da classe média, que depende da escolarização para manter sua posição social. Como no campo econômico, a ampliação ao acesso a um título escolar leva à tendência de sua desvalorização: a massificação dos diplomas e sua correspondente perda de valor foi denominada por Bourdieu de “inflação de títulos escolares”. O retorno que um diploma passa a oferecer depende, também, da relação entre o campo escolar e o campo econômico, fator este que determina a correspondência entre o diploma e o posto profissional do indivíduo. O crescimento das taxas de escolarização e sua ampliação a novas clientelas acirram a concorrência entre os grupos sociais na posse do capital escolar e cultural. A principal conseqüência disso reside no que Bourdieu chamou de “translação global das distâncias”, processo pelo qual os antigos detentores desses bens tenderão a deslocar suas estratégias escolares seja em direção a níveis cada vez mais altos do sistema escolar (estudos de graduação, pós-graduação, etc.), seja em direção a estabelecimentos, ramos de ensino ou tipos de escolarização mais seletivos ou mais raros (estabelecimentos de excelência, escolas internacionais ou bilíngues, estudos no exterior, por exemplo), dos quais procuram deter a exclusividade (NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2004, p. 66). Com base em constatações estatísticas, Bourdieu formulou a “lei do rendimento diferencial do diploma”, para explicar como um mesmo diploma, no mercado de trabalho, dá aos jovens com origem social mais elevada melhor rendimento. Por essa lei, o valor do certificado escolar depende, em parte, do grupo social e de como o indivíduo tira proveito desse título: os benefícios podem ser maximizados como, por exemplo, quando filhos de profissionais liberais (advogados, médicos), ao se formarem nas mesmas profissões dos pais, recebem os contatos profissionais, clientela e ambiente de trabalho, além do sobrenome ligado à área de atuação, como capital simbólico. As estratégias escolares recobrem um campo vasto voltado à produção de agentes sociais capazes e dignos de receberem a herança do grupo. Dentre as 28 estratégias educativas, Bourdieu considera como sendo a mais dissimulada a transmissão doméstica do capital cultural, que assegura maior rendimento escolar, ponto onde polemiza com economistas que difundem a idéia que o investimento monetário é o mais importante para sucesso na escolarização. Para melhor compreender o papel da escola e o trabalho pedagógico por ela desenvolvido, Bourdieu remete-se ao sistema das relações entre classes, negando o caráter neutro da instituição, que transmitiria uma forma de conhecimento superior aos outros conhecimentos. Afirma que a instituição escolar dissimula a seleção social sob a forma de seleção técnica e legitima a reprodução das hierarquias sociais ao transmutá-las em hierarquias escolares (BOURDIEU, 1975, p.163) Mesmo arbitrários, estes valores sustentados pelas classes dominantes são vividos como naturais, legítimos, tornando-se parâmetros para todos os grupos sociais, como ocorre com a cultura escolar. Bourdieu (1999a) é contrário à tradição positivista que “permanece filiada no essencial à ideologia romântica do gênio criador como individualidade única e insubstituível” (p.183). Em “A Reprodução”, escrito com Jean Claude Passeron, seus trabalhos voltados ao ensino universitário põem em dúvida as firmes ideias sobre a ideologia republicana sobre a igualdade de oportunidades e a importância do sistema escolar como garantia de igualdade social a todos. “É o próprio fundamento da sociedade meritocrática que eles criticam e o sistema de ensino considerado como a ponta de lança dessa ideologia” (VASCONCELLOS, 2002, p.79). Ao romper com as explicações baseadas em aptidões naturais e individuais, ao criticar o mito do ‘dom’, Bourdieu ressalta as condições sociais e culturais que sustentaram esse mito: é provável, por um efeito de inércia cultural, que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da “escola libertadora”, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural (BOURDIEU, 1998, apud CATANI, 2002, p.66). A autoridade pedagógica e a legitimação da instituição escolar somente ocorrem graças à ocultação do caráter arbitrário da cultura escolar, a qual precisa ser apresentada como uma “cultura neutra”, não vinculada a qualquer classe social, para exercer as funções de reprodução e legitimação das desigualdades sociais. 29 Tratar a todos como iguais em seus direitos e deveres escamoteia as desigualdades pré-existentes advindas da herança familiar, cujos valores são privilegiados na escola, o que favorece aos membros de setores sociais específicos. A escola, ao dissimular que sua cultura é uma cultura das classes dominantes, dissimula também as causas do sucesso ou fracasso escolar: atribui os resultados observados nos alunos dos diferentes segmentos sociais às diferentes capacidades individuais – o mérito do sucesso, assim como o do fracasso escolar, pertence ao aluno, ou pela sua inferioridade intelectual (pouca inteligência) ou moral (falta de vontade, de empenho). Aqueles alunos que dominam os códigos lingüísticos utilizados pela cultura escolar – os mesmos alunos que herdam uma cultura familiar própria das classes dominantes - tenderiam a alcançar êxito escolar “naturalmente”. Instaura-se, desta forma, uma amnésia da gênese que se exprime na ilusão ingênua do “sempreassim”, assim como nos usos substancialistas da noção de inconsciente cultural, pode conduzir a eternizar e com isso, a “naturalizar” as relações significantes que são o produto da história (BOURDIEU; PASSERON, 1975, p.23). É através da noção de “violência simbólica” que o autor desvenda o mecanismo que torna possível ver como “natural” as ideias sociais dominantes. O maior exercício da violência simbólica é, portanto, o reconhecimento da superioridade e da legitimidade da cultura dominante. Mas a reprodução das desigualdades sociais presente na escola não seria resultado apenas da ausência de uma bagagem cultural que facilitaria a recepção da mensagem pedagógica: para o sociólogo, a escola confirma, valoriza e cobra também um modo específico de se relacionar com a cultura e com o saber. Dentre as categorias analíticas de Bourdieu para dar conta das desigualdades sociais relacionadas à escolarização, está a noção de “relação com a cultura”. A sociedade produz, e a escola reproduz uma oposição entre dois diferentes modos de agir, de acordo com a origem social dos indivíduos: o modo aristocrático, marcado pela intimidade e familiaridade com a cultura legítima, próprio dos grupos dominantes e o modo próprio dos grupos dominados, cuja relação com as obras da cultura dominante torna-se árdua, tensa, desajeitada e embaraçosa. O que originará 30 uma ou outra atitude é o modo como a cultura foi adquirida, se por “familiarização insensível” ou se por “inculcação escolar”. A “familiarização insensível” é aquela mais precoce e impregnada nas experiências primeiras dos indivíduos e que influenciam extremamente as experiências escolares posteriores. A intimidade com a cultura e com a linguagem somente seria máxima e duradoura quando encarnada no sujeito na forma do habitus. A “inculcação escolar” é mais tardia e acelerada, própria das camadas desfavorecidas. A avaliação escolar não apenas exige o domínio do conteúdo por parte do aluno, mas também a intimidade entre o saber e a cultura, algo que os alunos membros das classes dominantes podem oferecer. A naturalidade e desenvoltura em relação aos conteúdos aparecem como algo natural do indivíduo, e não como algo socialmente herdado. Ao ressaltar que a cultura escolar está relacionada à cultura dominante, a teoria de Bourdieu abre caminho para uma análise crítica do currículo, dos métodos pedagógicos e da avaliação escolar. Torna-se claro, na teoria bourdieusiana, que a função do exame é mais social (classificação e hierarquização social dos indivíduos) que técnica (classificação escolar de alunos), onde há grande peso da herança de capital cultural: neste ciclo, as vantagens sociais são convertidas em vantagens escolares e estas são reconvertidas em vantagens sociais. Há, entretanto, outro elemento que contribui para a reprodução da ordem estabelecida: a reprodução da estrutura das relações de classe, a mobilidade dos indivíduos pode concorrer para a conservação dessas relações, garantindo a estabilidade social pela seleção controlada de um número limitado de indivíduos, ademais modificados por e pela ascensão individual, e dando assim a credibilidade à ideologia da mobilidade social que encontra sua forma realizada na ideologia escolar da Escola libertadora (BOURDIEU, 1975, p.176). Os conteúdos escolares seriam selecionados de acordo com os interesses, valores e conhecimentos eleitos pelas classes dominantes. Não podem, portanto, ser entendidos e analisados sem considerar outros critérios de diferenciação social. Os prestígios das disciplinas acadêmicas encontram-se igualmente associados à maior ou menor afinidade com as habilidades valorizadas pela elite cultural: a estratificação dos saberes escolares promove, em todos os graus de ensino, “uma 31 hierarquia entre as disciplinas ou matérias de ensino, que vai das disciplinas ‘canônicas’ (as mais valorizadas) até as disciplinas ‘marginais’ (as mais desvalorizadas), passando pelas disciplinas ‘secundárias’ que ocupam posição intermediária” (NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2004, p. 94-95). O princípio organizador desta hierarquia estaria ligado à cultura: encontram-se no topo da instituição escolar as disciplinas mais teóricas, formalizadas e abstratas; aquelas disciplinas mais práticas e técnicas, ou seja, que exigem maior esforço escolar, possuem menor valor. 2.4 O Habitus Pedagógico do Professor das Ciências Naturais A formação de professores de ciências deve compreender a prática educacional como um fenômeno sociocultural, onde a singularidade das relações humanas e as incertezas dos momentos vivenciados escapam a qualquer previsibilidade. À medida que avança o debate sobre como promover uma melhora na qualidade educativa, constata-se a necessidade de superar visões simplistas relacionadas às questões da formação e atualização de professores, isto é, a formação inicial e continuada destes. Perrenoud (2001) se baseia no conceito bourdieusiano de habitus para refletir sobre os saberes formais de professores e sobre a ação pedagógica. Mesmo considerando que o habitus pedagógico é formado nas instituições educativas, à revelia da sua intencionalidade, discute possibilidades de formação e transformação do habitus dos professores. O autor parte, então, da ideia de que o habitus medeia costumes, gestos, atos observáveis, e também percepções e emoções, influenciando o funcionamento psíquico no tratamento de informações, na análise de situações, nas tomadas de decisão a partir da ajuda de esquemas de pensamento previamente incorporados pelos agentes. Os esquemas são uma base para que o sujeito possa coordenar suas ações às demandas que lhe são impostas em uma dada situação. O habitus pedagógico, então, traduziria a capacidade que os professores tem de operar numa rotina econômica frente às emergências do dia a dia. Em toda ação complexa, seja em situação de emergência ou numa rotina, lidamos com informações, representações, conhecimentos pessoais e saberes sociais para criar, registrar, comparar, comunicar e analisar informações e saberes – e é o habitus 32 quem governa estes tratamentos. Perrenoud (2001) propõe que é possível desenvolver estratégias para que o professor tome conhecimento sobre seu habitus pedagógico e possa transformar seus esquemas de percepção, de pensamento, de avaliação, de tomada de decisão, de ação. Considera importante que a formação de professores ofereça mecanismos para formar um habitus profissional consciente, embora reconheça que o habitus é uma realidade manifestada através do currículo visível ou através do currículo oculto das instituições educativas. Entende-se por currículo oculto os saberes do cotidiano escolar que a escola não explicita. Identificar este currículo silenciado, que vive escondido na rotina cotidiana da escola, pode gerar desconforto tanto para o pesquisador quanto para a instituição, já que evidenciaria fatores que comprometeriam a imagem que os responsáveis pelas instituições escolares, incluindo os professores, tem e fazem de si. Além dos saberes declarados no programa, os alunos aprendem, em seu cotidiano escolar, comportamentos disseminados pela rotina, ou seja, pelo currículo oculto. Podem, então, oscilar desde a aceitação, com a execução dócil das atividades, à rejeição dessas imposições, recusando-se a reproduzi-las e a participar da dinâmica imposta na sala de aula. Os casos de recusa são ocasionais, normalmente identificados como “alunos problema” já que a resistência costuma ser caracterizada como um desvio comportamental, sendo dificilmente interpretada como uma reação ou defesa em relação ao sistema escolar. A rotina escolar teria como objetivo viabilizar a aprendizagem e garantir o controle das aquisições dos conhecimentos selecionados como relevantes à manutenção da cultura. O uso de tarefas curtas e padronizadas é privilegiado no sistema escolar, com instruções conhecidas o suficiente para garantir e manter a ordem e a tranquilidade do professor ao executar seu papel de educador. Grande parte das atividades escolares é imposta pelo professor e, em muitos casos, o trabalho é aceito apenas para assegurar vantagens ou evitar embates. Aproxima-se, assim, das tarefas profissionais cumpridas sem alegria e sem motivação pessoal por parte dos trabalhadores, mas que, num primeiro momento, garante a aprovação e, talvez em longo prazo, sucesso escolar. Para Valle (2008), o currículo oculto é, ainda, fruto de uma concepção de inteligência que faz com que os indivíduos aprendam a considerar “normal” o fato de, a todo o momento, serem comparados e classificados. Aprendem, ainda, que é pelo trabalho individual e pela competição que a inteligência se revela. 33 Sendo assim, as instituições educativas, a partir de seu próprio funcionamento, formam e transformam o habitus “através do exercício do ofício de aluno ou de estudante e da individualização espontânea dos percursos de formação” (PERRENOUD, 2001, p.162). Apesar de considerar que o habitus é formado independente da vontade dos sujeitos, seja através do currículo oculto, da socialização no interior da escola, durante os estágios na formação inicial ou nos primeiros anos de prática profissional, Perrenoud (2001) discute a possibilidade de uma formação deliberada do habitus profissional, que não nos interessa aqui. Neste projeto, o conceito de habitus pedagógico é importante para entendermos como é constituída a prática dos professores nos diferentes cursos de graduação e suas conseqüências para a formação dos graduandos. Moraes e Abib (2009) afirmam que as crenças que os licenciandos trazem acerca do papel do professor, do papel do aluno, sobre avaliação, aprendizagem e ensino de ciências moldam suas percepções, principalmente durante o início da graduação e durante suas primeiras práticas docentes, relacionadas aos estágios curriculares. Deste modo, torna-se necessário não apenas entender quais conhecimentos os professores utilizam ao ensinar, mas também buscar crenças, experiências e vivências que apóiem sua forma de ensinar, considerando que estas não só ocorrem no nível individual, mas estão relacionadas ao contexto no qual o indivíduo encontra-se inserido. Diferentes autores fundamentam suas reflexões sobre a formação de professores sustentados por diferentes racionalidades, como a racionalidade instrumental ou técnica, onde o caráter estritamente tecnicista da educação sustenta uma didática instrumental. Há outras visões como, por exemplo, o seu oposto, a epistemologia da prática profissional (TARDIF, 2000 apud DUARTE et al, 2009), que tem por finalidade revelar quais saberes estão relacionados aos conhecimentos, às competências, às habilidades, às atitudes, isto é, “saber, saber-fazer e saber-ser”. Há ainda a racionalidade crítica (CONTRERAS, 2002 apud DUARTE et al, 2009), que acrescenta um viés crítico ao contexto onde a ação educativa ocorre e propõe que os professores questionem suas concepções de sociedade, escola e ensino de modo a promover uma transformação em suas práticas sociais. Pereira (1999 apud LEAL e FONTINELES, 2006), ao analisar os modelos de formação docente no Brasil, contrapõe o modelo da racionalidade técnica ao modelo da racionalidade prática, no qual a teoria (disciplinas teóricas) e a prática (prática docente) são 34 norteadoras na formação do educador e devem ser abordadas numa relação simultânea, preferencialmente desde o início dos cursos de formação. Vários estudos na área de ensino de ciências assumem a relação entre os modelos epistemológicos dos professores como uma matriz para a compreensão de suas visões sobre o processo de aprendizagem e os fatores que influenciam suas formas de ensino. Pecharromán e Pozo (2006) pontuam que há um a priori que medeia as pessoas em suas interações físicas e sociais e que constrói suas teorias implícitas ou “intuitivas” sobre diversos domínios. Desta forma, os professores constroem toda uma epistemologia implícita a partir de sua vivência na organização educacional, desde o momento que se torna aluno, a qual se reflete em suas práticas de ensino. Para Zimmermann (2000), os professores constroem seus modelos de pedagogia a partir do conhecimento profissional básico, que incluiria conhecimento curricular, disciplinar e pedagógico e que seria evidentemente influenciado pelo modelo de natureza da ciência assumido pelo professor. Para a autora, a expectativa do professor quanto ao modo como seus alunos aprendem influencia sua prática tanto quanto sua visão sobre a produção do conhecimento científico. Porlán e Rivero (1998) e Zimmermann (2000) afirmam que as concepções dos professores sobre a natureza da ciência condicionam e influenciam sua atividade docente: a idéia dos professores sobre como o conhecimento científico é construído coincide com suas ideias sobre como os alunos aprendem ciências, o que condicionaria sua prática pedagógica. Porlán et al (1998), através de extensa revisão de literatura, afirmam que os professores transmitem uma imagem deformada do conhecimento e do trabalho científico, com pouca relação com os enfoques tratados pela epistemologia. Esta imagem deformada desenha a ciência como algo acabado, certo, racional e verdadeiro, em constante avanço linear, sendo os cientistas seres de inteligência superior, infalíveis em suas especialidades. Lederman (1992 apud PORLÁN et al, 1998) mostrou, através de revisão, que há uma tendência predominante entre professores jovens e estudantes de licenciatura à visão positivista (empirista-indutivista) da ciência. Pope e Scott (1983), também citados pelos autores, apontam que tanto os conteúdos quanto os métodos de ensino selecionados favorecem nos alunos uma visão cumulativa e objetiva acerca do conhecimento científico e uma visão indutivista da metodologia científica. 35 Haggerty e Linder (1990 apud PORLÁN et al, 1998) realizaram uma pesquisa, através de questionário aberto sobre ciência, ensino e aprendizagem, com 74 estudantes de licenciatura da área de ciências. A análise qualitativa das respostas revelou uma diversidade de concepções sobre ciência, sendo a visão empirista majoritária entre os respondentes. Os autores distinguiram várias concepções de ciência: a ingênua, que entende a ciência como um conjunto de explicações e observações sobre como e porque os fenômenos acontecem; a experimental indutiva, cujo conhecimento provém da observação e da experimentação; experimental “falsacionista”, ou refutadora, onde o experimento tem por finalidade falsear as teorias; a que reduz a ciência a uma atividade tecnológica para melhorar a qualidade de vida; e, finalmente, uma concepção de ciência como baseada em três fases, o desenvolvimento, a comprovação e a aceitação de teorias pela comunidade científica. Sobre as concepções de ensino, praticamente não houve variações: o professor foi considerado como fonte de conhecimentos, sendo o ensino uma transmissão de conteúdos; tais conteúdos devem ser guiados pelo professor através de atividades que possibilitem facilitar sua compreensão. Quanto à aprendizagem, a concepção do aluno como “tábula rasa” apareceu como resposta dominante, juntamente com as concepções de que a aprendizagem deve dar sentido, em função das informações já existentes, às novas informações transmitidas e a de que a aprendizagem é uma resposta afetiva. Gimeno (1988 apud PORLÁN et al, 1998) afirma que o que é chamado de “epistemologia implícita” do professor a respeito do conhecimento é uma parte relevante de seus conhecimentos e se configura ao longo de sua experiência na formação inicial tanto como aluno como quanto aprendiz de professor. Haveria, desta forma, uma cadeia de sucessivos reforços sobre as concepções epistemológicas manifestadas pelos professores, representada pela sedimentação de saberes ao longo de sua formação, constituindo a base de seus valores sobre ciência, conhecimento, cultura e atitudes. Acerca da imagem da ciência, Porlán et al (1998) afirmam que o predomínio em professores em exercício é do empirismo, enquanto os futuros professores tendem a apresentar maior diversidade de concepções. A tendência empirista é caracterizada pelos seguintes princípios: (i) o princípio da neutralidade e autenticidade do conhecimento científico, afirmação que localiza o conhecimento na 36 realidade, sendo a ciência um reflexo dele (realismo). Para se chegar a este conhecimento, há um método único e universal, sem interferências de critérios subjetivos (objetivismo). Este método parte da observação, criação de hipóteses, experimentação, teorização (indutivismo); (ii) o princípio da veracidade do conhecimento científico, que, ao ser obtido empiricamente, apresenta valor absoluto e universal; (iii) o princípio da superioridade do conhecimento científico, um certo “autoritarismo epistemológico” (p.279) principalmente em relação às ciências experimentais; nesta visão, o conhecimento subjetivo e cotidiano é tido como de menor valor. Porlán e Rivero (1998) relacionam as teorias epistemológicas e o conhecimento escolar. A proposta dos autores foi a de estudar as concepções científicas e didáticas dos professores através da aplicação do “Inventario de Creencias Pedagógicas y Científicas”, com uma amostra de 158 professores em exercício e 131 estudantes de licenciatura da área de ciências. As categorias relativas à imagem da ciência são apresentadas a partir de três concepções acerca do conhecimento científico: o racionalismo, segundo o qual o conhecimento é um produto da mente humana, gerado através da razão e do rigor lógico. O conhecimento, nesta concepção, encontra-se fora da realidade e da percepção, pois os sentidos tendem a deformar as observações, comprometendo as informações que poderiam se originar de práticas empíricas. Este posicionamento epistemológico tem perdido influência social frente ao empirismo; o empirismo, que atribui à observação a possibilidade de chegar ao conhecimento objetivo e verdadeiro, através do método indutivo. O conhecimento assim obtido representaria a realidade (realismo); e o relativismo, que desenha a ciência como uma atividade condicionada histórica e socialmente, conduzida por cientistas que se utilizariam de diferentes metodologias e, através destas, construiriam conhecimento sabidamente temporal e relativo, que se modifica e se desenvolve permanentemente. Os cientistas seriam, coletivamente, críticos e seletivos, apesar de serem indivíduos. As categorias relativas às concepções didáticas delimitam três tendências predominantes de visões acerca do processo de ensino: o modelo tradicional, cujo foco seria a transmissão direta de conteúdos prontos aos alunos e segundo o qual basta que o professor domine o conteúdo e que tenha algumas características pessoais favoráveis para ser capaz de ensinar; o modelo tecnológico, que concebe o ensino sob a perspectiva da racionalidade técnica. Nesta perspectiva, há 37 conhecimentos específicos de didática que devem estabelecer normas e procedimentos técnicos que garantam uma prática pedagógica eficaz. O papel do professor seria, então, o de aplicar as técnicas prescritas em suas aulas a partir de uma programação prévia rigorosa acerca dos objetivos previstos em planos de aula fechados, cujas atividades já estariam selecionadas de forma a garantir a aprendizagem; o modelo relativo prega que os conteúdos científicos não são a única fonte de conhecimento escolar, sendo necessária uma concepção mais aberta e flexível da programação escolar. Esta tendência mostrou-se minoritária entre os respondentes. Quanto à concepção de aprendizagem, três enfoques foram ressaltados: a aprendizagem por apropriação de significados, onde o aprendiz recebe determinados conteúdos do exterior (outra pessoa, um texto escrito, a própria realidade). A aprendizagem de conteúdos é um processo linear no qual os significados não são alterados e cada conceito tem uma definição possível. Aquele que aprende ou não possui o conteúdo, ou possui um conteúdo errado; a aprendizagem por assimilação de significados, na qual o sujeito compreende bem os conteúdos escolares apresentados, os quais são incorporados em sua memória acadêmica sendo, portanto, assimilados. Supõe uma disposição ativa daquele que aprende, que deve possuir os significados acadêmicos prévios que permitam assimilar os novos conhecimentos; a aprendizagem por construção de significados para a qual o conhecimento é construído através de um processo no qual indivíduo e grupo se desenvolvem progressivamente, sem estruturas rígidas de desenvolvimento. Porlán et al (1998) consideram, ainda, que a rigidez impregnada na visão empirista e também na racionalista sobre a ciência é um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento de uma epistemologia construtivista: conceber o conhecimento científico como algo absoluto, acabado, neutro e descontextualizado seria um empecilho para visualizar o conhecimento escolar (e o próprio conhecimento profissional) como algo epistemologicamente diferenciado. Entretanto, observa-se o predomínio da concepção enciclopédica, fragmentada e simplificada dos das disciplinas e dos conhecimentos alternativos dos alunos como “erros” que devem ser corrigidos, não como concepções que sirvam de base para que ocorram mudanças conceituais. 38 Mesmo que tais estudos e pesquisas não estejam diretamente relacionados ao conceito de habitus pedagógico, consideramos que a possível relação entre os modelos epistemológicos e pedagógicos e a interação de ambos gera diferentes práticas pedagógicas e que, portanto, constitui parte importante do habitus pedagógico dos professores das ciências naturais. Schnetzler (2000) afirma que na literatura disponível na área de Educação em Ciências sobre formação docente dos últimos 30 anos há muitas constatações acerca da má formação dos professores em todos os níveis de ensino, principalmente quando a formação universitária encontra-se baseada no modelo de superestimar as disciplinas do bacharelado, consideradas de maior prestígio acadêmico e científico, e renegar as disciplinas pedagógicas a uma inclusão na grade curricular no “modelo três mais um”, ou seja, três anos de disciplinas do bacharelado, com conteúdo científico, e um de disciplinas pedagógicas. Este modelo pode ser explicado pela tradição histórica e valores que condicionam e perpetuam as comunidades científicas. Segundo Serra [s.d.], a formação atual de pesquisadores nas áreas de Física, Química ou Biologia dirige-se essencialmente ao desenvolvimento de capacidades técnicas, experimentais ou de cálculo, visando produzir resultados. Parece haver uma incompatibilidade entre a aquisição de conhecimentos de outras áreas e as da própria disciplina, seja na graduação ou, até mesmo, na pós-graduação. Este fato estaria relacionado ao fenômeno da excessiva especialização, mas seria uma característica da “cultura científica”, a qual limitaria os cientistas dentro da própria ciência, priorizando sua capacidade para resolver problemas de investigação relacionados à sua especialidade. No caso da “cultura humanística”, a especialização, segundo a autora, alargaria os horizontes culturais nas áreas de Filosofia ou Literatura, ao invés de restringi-los, mas também representaria limitações no caso da Psicologia, da História ou da Sociologia, por exemplo, devido à necessidade de produzir resultados generalizáveis e/ou sobre grandes populações, levando os especialistas destas áreas a buscar mais dados empíricos e correlações, como um reflexo da redução da ciência a um “conjunto de resultados”. A separação entre as formas de conhecimento é um dos componentes que divorciaram as “duas culturas”: a “cultura científica”, ligada às ciências exatas, é frequentemente relacionada à capacidades técnicas, reduzindo os saberes da área ao conhecimento técnico, aos resultados “úteis” e à importância econômica da 39 tecnociência; já os intelectuais literários afirmam que os cientistas são ignorantes em relação à cultura tradicional e erudita. A aplicabilidade da ciência no cotidiano acirra este confronto de valores: Serra [s.d.] afirma que a distinção entre as “duas culturas” é ainda mais marcante nos dias atuais que na época que Snow assinalou sua existência, em 1959, chegando a haver afirmações injustamente simplistas do tipo “o trabalho em ciências humanas resulta em palavreado sem sentido” ou “o trabalho em ciências exatas é feito por analfabetos altamente qualificados”. Segundo Löwy (1994), há modelos distintos de perspectivas metodológicas para a construção de conhecimento, um que seria próprio das ciências humanas e outro das ciências naturais. A proposta deste autor concebe a metodologia própria das ciências humanas sem importar métodos das ciências naturais. Assim, seria um equívoco tomar a neutralidade como valor científico universal e importá-la para as ciências humanas, pois tal ação ignoraria, ou até negaria, o “condicionamento histórico social do conhecimento” (p.18): a relação entre conhecimento científico e classes sociais seria negligenciada e a própria ciência social apareceria livre dos vínculos sociais do teórico e/ou pesquisador. Para Löwy (1994), o ideal epistemológico de uma “ciência livre de ideologias, julgamentos de valor ou pressuposições políticas, isto é, uma ciência axiologicamente neutra” é possível, até certo ponto, corresponder “à realidade das ciências da natureza” (pp.198-199). Segundo o autor, as ciências ditas exatas podem ser consideradas neutras em relação ao seu “valor cognitivo”, isto é, aos seus conceitos teóricos e metodologias de pesquisa, mas não nega que condições e grupos sociais determinam “tudo o que se encontra antes e depois da pesquisa propriamente dita” (p.199). Assim, as negociações entre pesquisadores são anteriores ou posteriores ao conteúdo científico, mas seu valor cognitivo não seria socialmente determinado. O positivismo, ao homogeneizar as ciências humanas e as naturais e pregar a existência de um só método científico e um modelo de objetividade, negaria a diferença qualitativa relacionada ao papel, à importância e à significação de visões de mundo nas ciências humanas e nas ciências naturais. A especificidade metodológica das ciências humanas estaria fundamentada no caráter histórico, ou seja, na compreensão dos fenômenos sociais, enquanto que a as ciências naturais estariam ligadas à explicação dos fenômenos por ela estudados. O autor ressalta que nas ciências sociais, as opções ideológicas encontram-se relacionadas à própria 40 escolha e delimitação dos objetos de pesquisa, assim como a argumentação científica adotada pelos estudiosos. Aplicar, no domínio das ciências humanas ou das ciências sociais, o modelo de objetividade científico natural seria uma ilusão ou mistificação: as visões sociais de mundo que permeiam os cientistas sociais são fatores inerentes à seleção do objeto, escolha de referencial teórico-metodológico, além de influenciar na análise e interpretação dos dados relacionados aos fenômenos sociais estudados. Ou seja, tal como no conceito de habitus de Bourdieu, Löwy afirma, em seu conceito de visão social de mundo, que há certa regularidade de acordo com os grupos sociais, um estilo de pensamento socialmente condicionado que prescreve para as ciências humanas, características específicas distintas das que constituem as ciências naturais. Por conta dessas diferenças é que Maldaner e Schnetzler (1998) alertam para o fato de que a formação de professores de ciências baseada na convicção de que uma boa formação científica prepara bons educadores é responsável pela falta de sucesso nas licenciaturas. Em contrapartida, em relação à formação pedagógica, apontam a falta de clareza dos alunos das licenciaturas em ciências em relação a conteúdos como didática, práticas pedagógicas, psicologia, sociologia e afins. Desta forma, encontramos duas instâncias acadêmicas, uma com “bases científicas” e outra com “bases pedagógicas”, impedindo que os cursos de formação de professores sejam pensados como um “todo”. A concepção de habitus pedagógico nos ajuda a perceber que a prática pedagógica, as ações de ensino e de avaliação não estão apenas sob controle dos saberes formais, mas aparecem igualmente na complexidade das ações humanas compreendendo as histórias pessoais, as relações, os gostos, os afetos. As ações voltadas para o ensino e para a aprendizagem são diferenciadas “em cada campo do saber erudito, no interior de cada didática de uma disciplina”, onde há lugar para a manifestação de suas faces mais ocultas. A relação entre professor e aluno com o saber, o erro, a incerteza, a diversidade de pontos de vista, a argumentação, a informação mobiliza diferentes “lógicas naturais”, particulares em cada sujeito que age, bem como mobiliza outros esquemas relacionados a saberes não privilegiados durante a formação pedagógica, como saber um pouco mais sobre si e suas próprias limitações, sobre como analisar a própria história de vida a partir do ponto de vista da teoria bourdieusiana para interpretar sua posição dentro do campo e sua trajetória profissional (PERRENOUD, 2001). 41 Deste modo, as histórias pessoais e os valores parecem influenciar os saberes e as atitudes que os educadores manifestam em suas práticas. Assim, o ato de ensinar é permeado de saberes outros que não os científicos, mas que orientam as ações dos educadores e servem de base para as suas concepções de ensino e de aprendizagem em ciências. Os significados de ações expressivas manifestadas pelos futuros professores, como gestos e atitudes verbais e simbólicas, também encontram-se sob o peso da realidade cultural onde o agente está inserido. 2.5 Aproximação entre Bakhtin e Bourdieu As obras de Bourdieu e de Bakhtin e seu Círculo são caracterizadas por Grillo (2006) como sendo formadas por uma complexa e potente malha conceitual. Ambos os autores mostraram-se contrários tanto ao subjetivismo quanto ao objetivismo: em suas novas formulações teóricas, preocuparam-se em forjar teorias onde fossem redimensionados a inserção da ordem social, da história, da linguagem, do sujeito. Aproximam-se, ainda, na afirmação de que os sujeitos são constituídos do social para o individual. As diferenças entre as especificidades dos objetos de investigação dos dois pensadores, bem como das diferenças decorrentes do contexto social e histórico de ambos quando produziram suas teorias, não impedem a aproximação teórica entre estes autores. Bakhtin e seu Círculo, na construção de seu método sociológico para estudar a linguagem, se contrapõem ao subjetivismo, onde o psiquismo individual é tido como fonte da língua e, por priorizar os fatores psicológicos, a linguagem passa a ser vista como expressão de particularidades do sujeito. Bourdieu também se posicionou contra o subjetivismo: os indivíduos pouco refletiriam sobre a ordem social que reproduzem e que os produzem, ao mesmo tempo, pois estariam inseridos na prática, nas ações cotidianas que são, muitas vezes, irreflexivas, e nos costumes, que muitas vezes se impõem sobre os indivíduos de forma irresistível, até mesmo em seus gestos e corpos. Ambos teóricos são contrários a uma concepção de sujeito com consciência livre, auto reflexiva e criadora, pensamentos próprios do subjetivismo, mas também são contrários a uma concepção de língua e de sociedade como sistemas sem sujeitos, conforme a visão do objetivismo, linha predominante nas Ciências Humanas na época em que formularam suas obras. Para Bakhtin (2004), o 42 objetivismo tem como base o racionalismo cartesiano e a ênfase recai na relação de signo para signo dentro de um sistema fechado, não há interesse na relação do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo que o origina. O interesse recai na lógica interna do próprio sistema de signos, o qual é considerado sem qualquer referência às significações ideológicas ligadas a ele, e o ponto de vista do receptor é considerado, “mas nunca o do locutor enquanto sujeito que exprime sua vida interior” (p.83). Bourdieu estudou a relação entre estruturas sociais e formação da subjetividade a partir de críticas ao estruturalismo tanto na Antropologia quanto na Sociologia, tecendo os conceitos de habitus e sentido prático para que o sujeito e seu contexto social e histórico aparecessem como elementos das formações sociais, sem desconsiderar as coerções sociais, mas evitando reduzir os agentes históricos ao papel de “suporte” das estruturas sociais. Bakhtin e o Círculo construíram, a partir da interação entre diferentes domínios das Ciências Humanas (lingüística, sociologia, filosofia, estética, dentre outras áreas), uma teoria com natureza interdisciplinar que permite, sem seccionar a compreensão, elaborar questões e caminhos de pesquisa em diferentes disciplinas acadêmicas. Para o estudo da linguagem, privilegiaram sua natureza social e localizaram na interação verbal o espaço de constituição e existência da língua: A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (BAKHTIN, 2004, p.123). O conceito de interação verbal corresponde a uma opção às perspectivas subjetivista e objetivista para o estudo do diálogo. Segundo os teóricos bakhtinianos, a interação verbal encara a enunciação individual como um fenômeno puramente sociológico. O conceito guarda relação com os principais aspectos da teoria dialógica da linguagem, como “a relação do enunciado com o contexto social imediato e amplo, o modo de constituição da subjetividade na inter-subjetividade e a delimitação do conteúdo temático” (GRILLO, 2006, p.138). Entende-se enunciação como “o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo 43 que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor” (BAKHTIN, 2004, p.112). É importante lembrar que, para Bakhtin, a palavra é um fenômeno ideológico por excelência, considerada como um material privilegiado de comunicação na vida cotidiana e, a partir deste contexto, ocorrem as interações e o compartilhamento de ideias, opiniões, crenças e concepções. A interação ocorre entre indivíduos organizados socialmente e que estão envoltos em condições sócio-históricas de duas ordens: primeiramente, ordens imediatas e, em segundo lugar, pelo meio social mais amplo. Nas ordens imediatas aparece aquilo que é compartilhado pelos coenunciadores, seus conhecimentos, a compreensão e a avaliação que fazem sobre a situação. O meio social mais amplo é definido pela especificidade de cada esfera da produção ideológica (ciência, literatura, religião, etc.) e por temas recorrentes no meio social em razão da linguagem verbal presente em toda parte e da relação que as esferas ideológicas estabelecem com a ideologia cotidiana. A consciência individual é organizada através de materiais semióticos, ou seja, é constituída através das interações verbais realizadas com o meio social. Os signos, uma vez “dentro” do indivíduo, não serão replicados, mas assumirão significação diferente, pois encontram-se em um novo contexto vivencial. Entretanto, o que é expresso pelo indivíduo já é dialogicamente orientado, é o manifesto das condições sociais e históricas relacionadas à existência dos sujeitos. A orientação ideológica da consciência individual está relacionada às dimensões sociais anteriormente descritas (as condições sócio-históricas das ordens imediatas e do meio social mais amplo). A distinção entre significação e tema constitui outra questão delicada relacionada ao sentido dos enunciados e, de acordo com Bakhtin (2004), o problema da significação é um dos mais difíceis da lingüística. A significação é definida pelos elementos estáveis e repetidos do sistema lingüístico. Bakhtin e o grupo chamam o sentido da enunciação completa de tema. O tema da enunciação, assim como a própria enunciação, é individual e se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que originou a enunciação – é determinado pelas formas lingüísticas da composição (palavras, sons, entonação) e também por elementos não verbais do contexto. Caso os elementos da situação não sejam delimitados, a compreensão da enunciação é comprometida como se as 44 palavras mais importantes não tivessem sido registradas. O tema, por ser concreto, singular, determinado social e historicamente, é irredutível a uma análise totalizante. O tema incorpora o caráter ativo da compreensão de um enunciado, e “compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela”, ou seja, o processo interpretativo do locutor está relacionado à sua capacidade de dialogar com o enunciado através da inserção deste em um novo universo pessoal – “a cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica” (BAKHTIN, 2004, p.132). As palavras usadas na fala real possuem, além do tema e da significação no sentido objetivo, um “acento de valor ou apreciativo”, manifesto comumente pela entoação expressiva. As entoações são, portanto, determinadas pela situação social imediata onde ocorre a conversa e exprimem as apreciações dos interlocutores envolvidos. Tanto a obra de Bourdieu quanto a de Bakhtin e seu círculo partiram de pontos importantes em comum: questionaram o subjetivismo e o objetivismo, colocaram o sujeito como um agente com constituição sócio-histórica - constituição esta que não pode ser o resultado de um determinismo mecânico da estrutura, tampouco fruto de uma individualidade livre de coerções e autoconsciente. A constituição dos sujeitos ocorre do sentido social para o individual, pela incorporação de disposições originadas através de regularidades objetivas, situadas na lógica de um determinado campo (família, classe social, ciência, religião, etc.) e que, ao mesmo tempo, são redimensionadas de acordo com a trajetória do indivíduo, bem como da posição que ele ocupa na esfera/no campo. A aproximação entre os conceitos de habitus e gênero de discurso é elaborada teoricamente por Hanks (2008), que postula que as regras de organização discursiva são parte do habitus lingüístico que os atores sociais trazem para o interior de suas falas, isto é, “os gêneros discursivos convencionais são parte do habitus lingüístico que os sujeitos sociais trazem para seu discurso” (p.109). Estes gêneros são, também, produzidos em diversas circunstâncias locais e tornam-se parte da naturalização da experiência social quando vistos a partir da perspectiva da prática. Como já explicitado anteriormente, os indivíduos, segundo Bourdieu, são formados pela incorporação das disposições produzidas por regularidades objetivas, 45 as quais estão situadas em um determinado campo, como o científico, o religioso, o familiar, a classe social, etc. Estas disposições são redimensionadas em razão da trajetória individual e da posição que sujeito ocupa nesse campo. O sentido prático é produzido a partir da relação entre as condições sociais onde se constitui um habitus e as condições onde ele é operado pelos sujeitos “pegos na urgência de agir”. A linguagem da prática de Bourdieu tem como foco objetos inacabados, processos de construção, articulação de redes e tipos de reflexividade. Retomemos o conceito de habitus: sua estabilidade, a regularidade que apresenta e a incorporação das orientações socialmente direcionadas que regulam as perspectivas individuais ao longo dos eventos socialmente definidos, ficam impressos não apenas nos usos mentais, mas também nos usos corporais dos agentes. Em termos lingüísticos, o habitus está relacionado à definição social do falante, mental e fisicamente, aos modos rotineiros de falar, seus gestos e expressões corporais, assim como às perspectivas inculcadas pelas práticas referenciais cotidianas da língua. Do ponto de vista lingüístico, o habitus corresponde à formação social dos falantes, à disposição para determinados tipos de uso lingüístico, às avaliações com base em valores socialmente internalizados e inclui, ainda, a incorporação da expressão, do gesto e da postura à produção da fala. Sendo uma teoria da prática aplicada à linguagem, as regularidades de uso podem ser explicadas por disposições e esquemas incorporados, que não são seguidos ou obedecidos, e sim são atualizados no discurso. Como o habitus não pode emergir do nada, tampouco se atualizaria no vácuo, cabe aqui a ideia de campo, no qual o habitus emerge na interação entre indivíduos e campo (HANKS, 2008). A relação hierárquica dentro de um campo é estabelecida através da apropriação do gênero discursivo que circula no campo: há nuances que percorrem desde os gêneros que melhor representam o campo até aqueles que estão às suas margens e, também deste modo, é possível medir a gradação do prestígio do agente. Ainda pode-se medir o valor do gênero pelas características de seu público alvo, como é o caso de revistas científicas conceituadas internacionalmente - ou não. No caso do campo científico, vê-se o crescimento de manuais e regras para codificar os gêneros produzidos, tornando o domínio de tais códigos indispensável para o êxito. Os campos produzem, ainda, uma linguagem própria para nomear e caracterizar os agentes e seus produtos. Tal linguagem organiza os esquemas de 46 classificação e, dentro da lógica interna do campo, determinam os modos de percepção e as estruturas hierárquicas. O campo apresenta em seu interior uma forma de organização dinâmica, não uma estrutura fixa: as posições, definidas por oposição, correspondem à manifestação do pensamento relacional de Bourdieu. E como as posições em um campo são relacionadas por oposição, os agentes inseridos no campo relacionamse através de competição e disputa. Os valores que circulam no campo incluem elementos como prestígio, reconhecimento dos pares e autoridade, e também riqueza material e capital. A produção da fala e do discurso também são formas de delimitar espaço dentro dos campos sociais, de modo que os falantes buscam trajetos por cujo percurso tenham acesso a diversos valores. Neste movimento, os falantes são constituídos pelo campo, o qual se torna um elemento de formação que modela o indivíduo através do habitus. Conforme afirma Hanks (2008), descrever um fenômeno social como o campo significa prestar atenção em algumas de suas características, como o espaço de posições, o processo histórico de sua ocupação, os valores em jogo, as trajetórias de carreiras dos agentes e o habitus assumido pelo engajamento no campo. Ao perseguir determinada finalidade, o agente entra em disputas lingüísticas mediante o uso de recursos discursivos que estejam de acordo com normas estabelecidas, de acordo com as crenças que fundamentam tal disputa e de acordo com os interesses específicos que estiverem em jogo. Os campos são delimitados por restrições sobre quem pode nele entrar e em que posição. Tal delimitação é evidente nos ambientes institucionais, que orienta as hierarquias através de certificados, treinamentos, seleções competitivas, pois a ideia é justamente a de que não haja limite ao seu redor, mas que o acesso a ele seja sempre seletivo e diferenciado. Neste sentido, o processo histórico de formação do campo é acompanhado por uma reflexão sobre as obras e os gêneros de discurso nele produzidos: é necessário conhecer o gênero de um determinado campo para nele se inserir, ou seja, é necessário conhecer o tipo de discurso ou de agrupamento de discursos cabíveis em uma determinada situação. Hanks (2008, p.49-50) considera que o acesso à língua padrão através da educação fornece o acesso aos lugares de poder no qual ela é empregada. O processo completo constitui um tipo de dominação simbólica no qual as variantes nãopadrão são suprimidas e aqueles que as falam são excluídos ou levados a aceitar essa exclusão. Assim, os indivíduos adquirem a 47 disposição para aquiescerem à variante padrão como uma questão de interesse próprio porque ela dá acesso ao poder. Por meio disso, eles mantêm o sistema de dominação, da mesma forma que os competidores em um campo mantêm a disputa em que competem. Estratégias discursivas voltadas para garantir objetivos implicam a harmonização das demandas do campo, e com isso firmam o campo com suas hierarquias. O resultado é que a hierarquia social, baseada no acesso ao poder, é transposta para uma hierarquia estilística, baseada na associação de diferentes estilos verbais, registros ou variedades com diferentes posições. A partir do momento que a teoria da prática divide a língua em variedades sociais, passa a distinguir diferentes gêneros discursivos. Hanks (2008) entende por gênero os tipos de prática discursiva historicamente específicas, relativamente estáveis, que correspondem a diferentes posições nos campos sociais. Este autor propõe “uma síntese entre a ‘poética sociológica’ de Bakhtin e a teoria da prática de Bourdieu” (p.69) e considera esta síntese válida para a análise de produção discursiva devido à compatibilidade entre os dois autores “sobre a relação entre formas simbólicas e ação social”. Os atores sociais tornam-se cúmplices das relações de poder às quais sua linguagem é incorporada: o poder é simbólico, invisível, que somente pode ser exercido a partir da cumplicidade daqueles que a ele estão submetidos e, ainda, daqueles que o exercem. Tal cumplicidade encontra-se na prática, não sendo explicada por acobertamento consciente, mas através das relações estruturais entre os sistemas semióticos, inclusive a língua, o habitus e o campo. A competência para usar a norma padrão é uma forma de capital simbólico, normalmente visto a partir do valor da “fala refinada” ou “apropriada”, embora seja um poder determinado pelas relações de poder, e não pela língua. Esta circularidade é difícil de ser percebida por aqueles envolvidos porque os sistemas de distinção, incluindo a língua, são apresentados aos sujeitos como naturais. Na prática cotidiana, os falantes assumem tacitamente os sistemas de diferenciação e de divisão. As diferenças hierarquizadas parecem autoevidentes e a incorporação destes valores torna-se algo óbvio. Tal naturalidade é ilusória e só se torna camuflada através do mecanismo de mascaramento–apagamento. Este produz a inconsciência no uso da língua por ser o efeito social através do qual as diferenças de poder e as regras do jogo são apagadas pela prática e pelas ideias explicativas sobre o uso da língua: a elegância, a clareza ou a eficácia na fala, tudo 48 o que é valorizado, o é porque atende às demandas do campo. A convenção herdada, relacionada ao poder, forja um produtor mais eficaz e melhor sintonizado com o próprio campo. Há, ainda, o falante que se censura (assume não poder pertencer ao campo) ou que busca se encaixar ao campo por aceitá-lo como legítimo. Quando sua fala é podada por ele mesmo ou pelo outro, sem que isto lhe cause estranheza, temos a violência simbólica como recurso de mascaramento. A padronização e a hierarquização de estilos e de gêneros dão origem ao que Bourdieu denomina legitimação e autorização, que delimitam como a língua é avaliada socialmente. A legitimidade, imposta pela educação formal, refere-se a determinados modos de falar e de escrever reconhecidos como uma norma a partir da qual as demais variedades devem ser avaliadas. As variedades que fogem ao padrão são reconhecidas como consequências inevitáveis das diferenças sociais. Segundo Hanks (2008), o falante obtém o efeito de oficialidade a partir do campo, e não a partir da língua. Produzir uma língua oficial é valer-se de campo social como autoridade e, ao fazê-lo, reforçar a própria autoridade. Os gêneros de discurso são elementos historicamente específicos da prática social e encontram-se vinculados a atos comunicativos situados, podendo ser definidos como convenções e ideais historicamente específicos a partir dos quais os autores produzem discurso e as audiências os recebem. O gênero é, então, um tipo de discurso ou um agrupamento de discursos em uma dada situação, onde aparecem temas específicos e, nesta perspectiva, Hanks (2008) afirma que os gêneros consistem quadros de orientação, procedimentos interpretativos e conjuntos de expectativas que não pertencem à estrutura do discurso, mas às maneiras pelas quais os atores sociais se relacionam com a língua. CAPÍTULO 3 PERCURSOS DA PESQUISA E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS 3.1 Objetivo A partir da perspectiva sociocultural, tal como foi articulada no capítulo anterior, pretende-se investigar os gêneros de discurso de estudantes de diferentes cursos universitários de graduação em ciências naturais e supondo sua relação com o habitus pedagógico vivenciado por eles nos diferentes contextos, inferir sobre como essa vivência conforma suas visões de ciência, a percepção das culturas científica e humanística e suas visões do ensino e aprendizagem. 3.2 Sujeitos da Pesquisa Foram entrevistados seis estudantes da área de ciências naturais de uma mesma instituição pública federal de ensino superior, considerada de grande porte pelo seu número de professores e estudantes, e reconhecida por sua excelência em pesquisa e ensino. Estes alunos encontravam-se matriculados nos dois últimos períodos de seus respectivos cursos: Bacharelado em Física, Licenciatura em Física, Bacharelado em Química, Licenciatura em Química, Bacharelado em Biologia e Licenciatura em Biologia. Pressupomos que, ao final do curso: (i) os alunos estariam inseridos socioculturalmente em suas respectivas graduações e teriam incorporado as regularidades objetivas próprias de seu campo (no caso, próprias de cada curso de graduação, em usa modalidade específica – bacharelado ou licenciatura); (ii) os alunos compartilhariam o habitus pedagógico específico de cada curso devido ao maior tempo de exposição e vivência do currículo. Os entrevistados têm entre 22 e 24 anos de idade. Dentre os seis, apenas um estudante é do sexo feminino, seleção que ocorreu ao acaso (desistência de um aluno e indicação de outro possível entrevistado para ocupar o seu lugar). A pedido da pesquisadora, alunos dos cursos de graduação em Física e em Ciências Biológicas indicaram, entre seus pares, aqueles que estariam dispostos a conceder entrevista. No caso da graduação em Química, foi pedido ao coordenador da 50 graduação que indicasse um sujeito a ser entrevistado e este, por sua vez, indicou o outro respondente. 3.3 Coleta de Dados Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os estudantes no período de agosto de 2008 a novembro de 2009. As entrevistas incluíram as seguintes etapas: 1) apresentação da pesquisadora, do programa de mestrado e do projeto de pesquisa; 2) aceitação em participar da pesquisa e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo); 3) início da entrevista. As entrevistas envolveram questões relativas às vivências, opiniões, impressões pessoais e concepções acerca dos cursos de graduação das áreas de ciências, conforme roteiro apresentado no Apêndice A. As conversas foram iniciadas com uma exposição padrão dos objetivos da pesquisa. Neste momento, era ressaltado que não haveria respostas certas ou erradas, que o objetivo da pesquisa era ter acesso às impressões e opiniões dos entrevistados, tendo como base sua vivência durante a graduação. Tais relatos foram assegurados pelo anonimato. Apesar das entrevistas iniciarem com a entrevistadora falando o nome do entrevistado, este foi um procedimento padrão adotado a fim de descontrair o contato pessoal, proporcionando maior proximidade entre entrevistadora e entrevistado. 3.4 Aspectos Éticos Os sujeitos participantes da pesquisa foram informados, no primeiro momento do encontro pessoal, sobre os procedimentos previstos através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo). Logo após a apresentação da entrevistadora e dos objetivos da pesquisa, o termo foi apresentado, lido e explicado e, em seguida, assinado por aqueles que concordaram em participar do estudo. Não houve dúvidas quanto ao documento. Foi assegurado o anonimato dos participantes da pesquisa através de garantia sobre as informações expostas, as quais não serão utilizadas de forma inadequada, de modo que não haverá prejuízo futuro aos sujeitos. As entrevistas só foram iniciadas após concordância e assinatura do termo. A gravação em áudio das entrevistas foi transcrita, definindo como corpus a ser analisado o discurso de todos os graduandos após o momento de apresentação. 51 Ao final da pesquisa, os resultados obtidos com o estudo serão disponibilizados para os alunos participantes, os quais serão contatados via e-mail, e publicados em revista científica de grande circulação. 3.5 Percursos e Percalços da Pesquisa Inicialmente, foi delimitado o tema da pesquisa, voltado para a formação acadêmica universitária. Delimitados o tema e o objetivo, foi construído um roteiro de entrevista para que se testasse a abrangência das perguntas e para verificar se estas eram adequadas ao propósito do estudo. Neste roteiro, buscou-se colocar diferentes formas de realizar a mesma pergunta relacionada ao mesmo tema, de modo a evitar a indução da resposta dos entrevistados: caso estes não entendessem o questionamento ou, ao iniciar a entrevista, estivessem tímidos ou ressabiados para se pronunciarem, a pergunta reapareceria em outro momento, considerado oportuno pela entrevistadora, com a finalidade de buscar respostas complementares e maior número de dados. Concluída a primeira entrevista, considerada piloto, o roteiro foi aprovado.. Realizaram-se mais três entrevistas com estudantes do curso de Física, pois o objetivo inicial seria o de entrevistar alunos de cursos de graduação distintos, como Educação Física, Física e Letras, para verificar se haveria diferenças nos relatos das experiências durante a graduação, considerando a Educação Física um curso onde há disciplinas científicas biológicas e da área das ciências humanas; a Física como um curso voltado para a formação de ciências naturais; Letras como um curso típico das ciências humanas. O intuito era, também, o de comparar as diferentes ementas dos cursos de licenciatura e bacharelado, considerando, ainda como variável comparativa, ambos os gêneros. Tal objetivo teve que ser redesenhado pois: 1) o tempo disponível não seria suficiente para cumprir as tarefas necessárias para a confecção do trabalho; 2) das entrevistas realizadas inicialmente, duas foram perdidas por conta de aparelhos de áudio obsoletos. Assim, após a aquisição de outro gravador, foi possível retornar a campo. Alguns meses adiante, o estudo foi novamente reelaborado de modo a retirar a inserção do curso de Letras do grupo selecionado para entrevistas. A exclusão de tais entrevistas, já realizadas e transcritas, e a inclusão de outros cursos 52 universitários no recrutamento de participantes tornou o tempo para conclusão da dissertação de mestrado ainda mais exíguo: assim, optou-se por suprimir as questões relacionadas ao tema “gênero”. Para que se pudesse concluir o trabalho em tempo hábil, tornou-se necessário redefinir o objetivo da pesquisa, delimitando ainda mais os possíveis entrevistados: considerou-se interessante, em um dado momento, entrevistar sujeitos de quatro cursos da área das ciências humanas e sociais (História, Ciências Sociais, Pedagogia e Psicologia), mais quatro das ciências naturais e biológicas (Educação Física, Física, Biologia e Química) do bacharelado e outros quatro da licenciatura. Mas, além do empecilho do tempo (faltavam, na época, quatro meses para o prazo estipulado pela Capes, de 24 meses, para a conclusão do mestrado), percebeu-se outro empecilho ainda maior: a falta de disponibilidade de estudantes para conceder uma entrevista com duração de uma hora, uma hora e quinze minutos. Assim, buscou-se delimitar os sujeitos participantes em número menor, seis entrevistados, eleitos por estarem nos cursos de graduação em Ciências Naturais e Biológicas. A perspectiva em mente, neste momento de pesquisa, era a de comparar o discurso dos entrevistados apontando aspectos em comum e pontos divergentes. Tendo em vista o interesse em construir um instrumento que permitisse apreender as impressões dos educandos sobre seus cursos de graduação, definiu-se que seria importante considerar tanto a análise dos cursos de bacharelado quanto dos cursos de licenciatura. Outro percalço que merece ser destacado refere-se à construção de um dispositivo analítico para análise do discurso dos estudantes. Inicialmente,tentou-se elaborar um dispositivo de análise onde estivessem incluídas categorias criadas por Porlán e Rivero (1998) e Porlán et al (1998), a saber: concepção curricular, concepção de aprendizagem, concepção de ensino e concepção de ciência. Ao se iniciar a análise, percebeu-se que a referência apenas a estas categorias funcionaria como uma “camisa de força” que empobreceria a discussão dos dados coletados. Optou-se, então, por uma análise que expusse a relação entre os discursos, o que pareceu estar mais de acordo com o quadro teórico construído. Assim como proposto por Nicolaci-da-Costa (2007, p.66), este trabalho parte do princípio de que os métodos baseados em entrevistas têm um importante aspecto em comum com todos os demais métodos que pertencem ao campo 53 de pesquisa qualitativa: são adotados por pesquisadores que partilham a firme convicção de que a adequação de um método depende dos objetivos da pesquisa. Como os objetivos das pesquisas humanas e sociais são numerosos também são numerosos os métodos. Vale ressaltar que a opção de análise empregada e os resultados encontrados não são considerados como a única alternativa.. Por isso, decidimos também por disponibilizar as entrevistas na íntegra (Apêndice) para que o leitor tenha oportunidade de se posicionar frente às interpretações realizadas. Para Duarte (2002), a confiabilidade dos resultados e das interpretações apresentadas pode ser garantida através do acesso ao chamado “material bruto”. Boni e Quaresma (2005) ressaltam que, para Bourdieu, a escolha do método não deve ser rígida, mas rigorosa, isto é, o pesquisador não precisa seguir um método apenas, com rigidez, mas qualquer método ou métodos que forem utilizados “devem ser aplicados com rigor” (p.76). Optou-se ainda, neste capítulo e no seguinte, anexar recortes das falas, não para que haja fragmentação de modo a comprovar hipóteses, mas para expor as particularidades e as diferenças encontradas em cada texto analisado. Buscou-se destacar falas que revelam não só pensamentos homogêneos, mas que também revelam diferenças. Como destaca Narita (2006, p.29) através das entrevistas de campo pode-se reconhecer que há, por trás das aparentes formas singulares de existência, uma certa uniformidade entre as formas de existir de uma determinada classe, que tem uma história específica em um determinado momento histórico. . Ressalta-se, ainda, que esta pesquisa foi bem aceita pelos depoentes e que a relação de confiança entre entrevistados e entrevistadora favoreceu a exteriorização de dados tão ricos, os quais foram conscientemente explicitados durante os depoimentos. 3.6 Procedimentos de Análise A perspectiva sobre o discurso presente nesta pesquisa se alinha com a filosofia da linguagem de Bakhtin, que torna possível problematizar os significados daquilo que é emitido pelo sujeito falante: a fala, situada socialmente, permite que o 54 discurso seja analisado em seus componentes ideológicos, considerando o contexto sociocultural que o produz. A partir desta visão da linguagem, entendemos que é possível perceber, por meio da análise do discurso: 1) visões específicas sobre a realidade, refletindo, reforçando e constituindo modos de organizar e interpretar a própria realidade, relações de poder e ideologias; 2) diferentes formas de lidar com a língua, as quais refletem, expressam e reforçam diferenças sociais, econômicas e culturais; 3) o controle dos membros de grupos subordinados em relação aos grupos dominantes, exercido de modo explícito (ordenações, comandos) ou implícito (as ideias naturalizadas sobre as desigualdades sociais, por exemplo); 4) a vida social e cultural onde o entrevistado está inserido pois, apesar dos falantes se expressarem de forma que para eles parece “natural”, suas falas são, na verdade, histórica e culturalmente situadas. A partir das características do enunciado (BAKHTIN, 2004), os procedimentos escolhidos para a análise do discurso pretenderam identificar o tema do enunciado, a perspectiva de seu autor em relação ao tema e a relação do enunciado com outras linguagens sociais. A presença ou ausência de aspectos que estivessem relacionados à ciência ou à educação (ensino, aprendizagem, professor, avaliação, etc.) foi usada como unidade de contexto para identificar o tema dos enunciados. No sentido de identificar a perspectiva do autor em relação ao enunciado, avançamos para a etapa de interpretação e de inferência da análise, na medida em que sua especificidade reside na articulação entre a superfície dos textos, descrita e analisada e os fatores que determinaram estas características (contextos de produção). Os enunciados foram então interpretados buscando-se inferir qual seria o ponto de vista do autor (perspectiva) no que se referia às suas concepções ligadas à natureza da ciência e a percepção sobre a cultura científica e humanística, bem como a suas concepções pedagógicas. Para isso também buscamos analisar a relação dos gêneros de discurso dos alunos com outras linguagens sociais e identificar as diferentes vozes que compunham os enunciados. Os conceitos fundamentais da filosofia da linguagem apresentados no capítulo anterior serviram como matrizes de referência para a interpretação do discurso e para tentarmos vislumbrar o habitus pedagógico vivenciado pelos estudantes universitários em seus cursos. 55 Os cursos de licenciatura da área de ciências naturais foram escolhidos como foco de pesquisa porque apresentam uma composição de diferentes discursos e visões de mundo em sua própria constituição curricular: após o período do ciclo básico dedicado exclusivamente ao conteúdo científico, são justapostas disciplinas pedagógicas na grade curricular. Decidiu-se entrevistar alunos dos bacharelados correspondentes para reforçar o aspecto relacional entre os agentes dentro destes espaços sociais. Através do contraponto entre os currículos dos cursos de bacharelado e licenciatura, será possível realçar o embate entre as Ciências Naturais e Humanas, visto que as últimas só estão presentes nas licenciaturas e como este embate se manifesta nos gêneros discursivos dos estudantes. A partir dos gêneros de discurso identificados tentamos vislumbrar processos de conformação e de resistência ao habitus pedagógico vivenciado pelos estudantes universitários em seus cursos. A análise relacional (BOURDIEU, 2005), que atribui primazia às relações, aponta para o cuidado de não se fazer uma leitura "substancialista", considerando cada prática (no nosso caso, concepção ou visão de mundo) em si mesma ou por si mesma, mas como algo intercambiável, que poderá mudar ao longo do tempo, ainda que a relação entre os grupos permanecerá, distinguindo-os. 3.7 Análise das Entrevistas Nesta seção, será apresentada a análise do discurso dos estudantes entrevistados. A perspectiva dos falantes sobre os temas abordados será comentada e complementada por meio da citação de enunciados dos estudantes, buscando-se ressaltar a pertinência de cada trecho extraído para a questão de pesquisa proposta neste trabalho. A análise será disposta em três subseções, de acordo com o curso aos quais os entrevistados encontram-se vinculados. Assim, na primeira seção, será apresentada a análise das entrevistas realizadas com os estudantes do curso de Física; na segunda, a análise das entrevistas dos estudantes do curso de Química e na terceira, a análise do discurso dos estudantes do curso de Biologia. As entrevistas tiveram duração média de 1 hora e 15 minutos. Nos enunciados transcritos, optamos por incluir a expressão “Nome da Universidade” entre colchetes quando os estudantes mencionavam a instituição e por suprimir os 56 dados de qualquer pessoa mencionada. Os enunciados considerados irrelevantes para a discussão da questão de pesquisa também foram suprimidos, sendo substituídos por reticências entre colchetes. 3.7.1 Entrevistas com estudantes da Licenciatura e do Bacharelado em Física O currículo da Licenciatura em Física parece configurado pelo modelo de ensino tradicional, como pode ser percebido através enunciado da Licencianda em Física sobre a estrutura do curso: voltado ainda pra isso, memorização, decoreba, muita folha de exercícios, listagem de exercícios, e algumas matérias ficam de lado... A desarticulação entre as disciplinas de conteúdo específico e as da pedagogia leva os licenciandos a não verem sentido nem no conteúdo específico, o qual não é adaptado à prática de ensino, nem no conteúdo da Educação, como expresso no discurso da Licencianda, que traz a voz dos colegas: eu não sei onde vou usar isso, eu gosto das matérias da humanas, mas não sei porque as matérias da Educação falam tanta coisa que... muitos amigos acham o mesmo... não vamos usar, não entendemos porque... Quando a pesquisadora perguntou se os professores das disciplinas pedagógicas tentam contextualizar suas aulas em relação aos conteúdos específicos de Física, a resposta obtida foi: [...] A maioria das vezes eles avisam como será o curso, mas não sei... eles não entendem nada da Física, de dar aula de Física... não vejo nenhuma relação... [a aula de hoje é de que?] De Sociologia... [mostra o papel da ementa: Durkheim]... Esse, depois os outros... só ouvi falar do Marx [Ementa constava: Durkheim, Weber e Marx]. É interessante, mas só ouvir o que ele falou, só ler ele... não tem nada a ver com meu trabalho, nem com o dos meus amigos, nem com as aulas daqui... [risos] Deve ser porque eles tem que dar esses autores... Quanto às formas de avaliação, o Bacharelando em Física, ao ser perguntado sobre o que achava, não emite opinião, e descreve o sistema usado pelos professores, sem questioná-lo. O que considera como “invenção” do professor nada 57 mais é que uma prova a mais ao longo do período letivo. Ele considera positivo o fato dos professores não “mudarem as regras do jogo”: O sistema é assim: você tem duas provas, se a média entre as duas provas for 7, você passa direto; se não, se for abaixo de 3, você esta reprovado; se for entre 3 e 7, você tem que fazer uma terceira prova e se a média destas duas primeiras e da terceira, se for 5, você está aprovado, se for abaixo de cinco, reprovado. E normalmente os professores seguem este sistema, mas tem professores que não... assim... tem uns que inventam um sistema... Inventa assim: eu tive Física II e o professor seguiu este sistema, ele deu três provas porque encaixava melhor no programa. [...] Acho que, quando a avaliação varia, depende do programa que o professor vai seguir... [Mas você está satisfeito?] É, não tenho muitas críticas a fazer, eu acho que, de um modo geral, acontece o que eles falaram no começo do curso... Não é algo, assim, que você está jogando e, no meio do jogo, mudam-se as regras, sabe? Eles definem: “é assim, vai ser assim” e ponto. Já a Licencianda relatou experienciar diferentes formas de avaliação ao longo do curso. Provas e relatórios seriam freqüentes nas disciplinas de conteúdo específico, enquanto seminários seriam próprios das disciplinas pedagógicas. Esta diferença parece ressaltar que a parte específica segue o modelo tradicional de ensino, cuja concepção de avaliação correspondente é a de verificar a aprendizagem do aluno através de provas ou de relatórios, no caso das disciplinas práticas: prova, basicamente, tem também muito relatório, mas das matérias da Educação tem muita apresentação de trabalho, de seminário... As disciplinas pedagógicas do curso de licenciatura em Física não parecem ser contextualizadas para o ensino deste conteúdo no nível médio. Esta percepção da Licencianda seria compartilhada também por seus pares: já li Paulo Freire, ele acho importante pra gente que vai dar aula, lidar com aluno mais velho, dá boas idéias de aula, mas esse cara [Vigotski] ele é psicólogo e fala de criança, não entendo mesmo... Acho que aquela parte de movimentos da escola, de tipos de pedagogia, que temos em Didática [refere-se à disciplina Didática Geral] é muito mais importante, deveria ser matéria dada em mais de um período, mas estas outras, Sociologia, Filosofia, Psicologia... [...] Acho que é por isso que a gente não gosta, que as pessoas aqui acabam não gostando, não estudando direito, nem tendo muita paciência com a matéria ou com o professor, porque não tem nada a ver, a gente deixa de estudar outras coisas pra ler isso... 58 Quando se refere aos alunos, percebe-se uma despolitização do corpo discente, que poderia configurar o currículo oculto do curso de Física. A relação entre alunos foi descrita pela Licencianda em Física como uma relação basicamente de grupo de estudos. Tal despolitização poderia estar relacionada à suposta neutralidade atribuída às ciências naturais, difíceis de serem entendidas e que, portanto, demandam tempo dos estudantes. Para atuar num Centro Acadêmico, os estudantes precisariam dispor do tempo que poderiam dedicar aos estudos relacionados à Física: tá todo mundo aqui, estudando, é uma coisa mais desse tipo... o pessoal forma grupos de estudo, pelo menos agora, mais pro final do curso, posso dizer que é assim, que a amizade tá mais em sentar pra estudar, pra ir embora junto, pegar carona... [...] [sobre a organização dos alunos em Centro Acadêmico] o que o pessoal fala, né? Quem não quer estudar fica nessas áreas... assim, entendo que o pessoal acaba tendo dificuldade, porque o tempo que poderia estar estudando, tá resolvendo outras coisas. Se você reparar aqui na Física, não tem quase gente no corredor, conversando, ou em outros lugares. O pessoal ou tá aqui [sala de estudos], ou nos laboratórios, ou nas salas de aula, em grupo ou sozinho, estudando... A dificuldade em relação ao aprendizado do conteúdo é algo ressaltado tanto pela Licencianda quanto pelo Bacharelando em Física: Bacharelando: o que vem na minha cabeça é assim, tipo... dificuldade... É difícil pra caramba, tem que se esforçar muito... É sacrifício, assim... Tem que abrir mão de muita coisa [...] tem que estudar... Licencianda: quando você entra, você acha que vai ter vida lá fora... [...] Se você diz que não tem tempo, ouve coisas como “o que você faz de meia noite às 5h?” [...] o grau de dificuldade dos exercícios que alguns professores passam aqui, você às vezes fica um dia inteiro pra resolver uma folha de exercícios que tem 10 exercícios... Às vezes sobra pouco tempo até para fazer o que você gosta... Mas às vezes você tem que escolher: “ou é a faculdade ou...”... E as pessoas aqui acabam reclamando muito disso, porque você acaba tão focado dentro da faculdade que você não faz outra coisa... Muita gente pensa “quando terminar a faculdade, eu volto a fazer isso”... “quando terminar a faculdade, eu vou fazer aquilo”... e o ideal seria fazer junto, mas você não tem muito tempo. A Licencianda considera o nível de especialização dos professores como fator positivo e negativo para a sua formação. O aspecto positivo seria o grande conhecimento em relação ao conteúdo, o negativo, o fato destes professores não terem “visão de educação” para facilitar a relação ensino-aprendizagem: 59 [...] acho que tem matérias com muito conteúdo e pouco tempo, às vezes... acho que em relação aos professores, muitos são bons, alguns sabem explicar bem, mas como muitos não tem licenciatura, não tem didática, mesmo, pra explicar, e eles querem que a gente acabe decorando... mas é bom porque temos muitos especialistas, mas com visão de educação, às vezes, nula, o que pode complicar. É interessante por um ponto, porque ele é especialista, ele sabe demais, mas por outro lado, ele vai dar uma informação que não preciso, porque não é o que preciso para ser professora. Então decora pra prova, sai e não aprende... O baixo desempenho acadêmico dos alunos da Física é percebido de modo diferente pelo Bacharelando e pela Licencianda, que o generaliza para praticamente todos os estudantes: Licencianda: é muita disciplina, dificilmente você encontra uma pessoa que não tenha repetido matéria na faculdade... Às vezes a pessoa vai passando aos trancos e barrancos, como a gente fala na gíria... [...] passar direto, poucas pessoas conseguem, assim, bolsa, em alguns órgãos. Bacharelando: eu diria, e isso soa até engraçado, que eu acho que as pessoas que se dão mal... Mal, quando eu quero dizer, é mal mesmo, sabe? Tem pessoas que repetem três, quatro vezes a mesma matéria, ficam assim... Então, sei lá, tem dificuldade durante o curso... Eu diria que, de modo geral, as pessoas que estão com esse tipo de dificuldade, com notas ruins e tal, são as pessoas que mais criticam a faculdade... [...] Porque as pessoas que se dão bem, ou razoavelmente bem, não têm muitas críticas a fazer à faculdade... sabe? Ter desempenho suficiente para conseguir bolsa é justamente o caso do Bacharelando entrevistado, que é bolsista de Iniciação Científica e aparenta ter maior facilidade em relação ao aprendizado dos conteúdos de Física: mas apesar disso, [do esforço relatado para estudar os conteúdos das disciplinas] eu acho que vale à pena, assim...vale muito à pena, e eu tô gostando, porque é um desafio que eu tô conseguindo superar, que acaba fazendo com que o curso fique bem... tranqüilo... Para o Bacharelando, as críticas que os alunos destinam ao curso de Física são fruto tanto da dificuldade em relação à aprendizagem dos conteúdos quanto à falta de estudo. Estes fatores seriam responsáveis pelo baixo desempenho e levariam estes alunos a criticarem o curso. Esta visão também ficou clara quando perguntado se outros estudantes também haviam gostado da disciplina que ele mais apreciou: 60 Tinha gente que gostava... Eu acho que é aquela coisa também: tinha os mais interessados que gostavam, mas o pessoal que achava difícil não gostava. A alta evasão no curso parece incomodar a Licencianda em Física, mas não o Bacharelando. Para este, a repetência e a evasão são resultados da falta de esforço e de estudo dos alunos: Bacharelando: É difícil? É difícil, tudo bem, tem problemas, tudo bem, mas nada muito incisivo, muito agressivo [...] Eu acho que, talvez, acaba meio que caindo na... na desculpa, né?, que as pessoas tem de não assumir... Assim é mole, né? Quer dizer, a pessoa não tá conseguindo fazer a faculdade direito, não tá conseguindo acompanhar a matéria direito, fica repetindo, repetindo, ao invés dela dizer “não, sou eu que não me esforço, sou eu que, sei lá, não sou tão bom assim”, não, “a faculdade é uma merda, o professor é maluco porque”. Eu acho que acaba caindo nisso... Licencianda: muita gente abandona, vai largando pelo meio do caminho, ou por dificuldades, ou porque precisa ver uma, duas vezes a mesma matéria, fala “isso não é pra mim”, e pessoas que você fala “poxa, esse daí seria um ótimo professor, uma ótima professora”, mas a pessoa tem que escolher, né? Quando se referem à metodologia de ensino dos professores, as concepções de ensino de ambos parecem calcadas no modelo tecnológico, valorizando o planejamento, a didática, a capacidade do professor de motivar os alunos. Entretanto, o Bacharelando, ao descrever uma metodologia de aula que lhe chamou a atenção por ter apreciado, se restringe a aspectos estritamente tradicionais: acho que sou meio retrógrado com esse tipo de coisa, assim... Tipo, escrever direito no quadro, usar o laboratório, buscar apoio nos livros bons. Mas acho que a coisa mais importante é o livro, o cara no quadro explicando Já a Licencianda, quando se refere ao papel do professor, chama a atenção para a motivação, a capacidade do professor de facilitar e dinamizar a aprendizagem: se o professor não for bom, dificulta o aprendizado... [o professor, então, facilitaria como?...] motivaria... facilita o aprendizado, professor que tem mais... dinâmica... Quando se refere ao ensino oferecido no curso, a Licencianda considera a maioria dos professores como sendo adeptos do modelo tradicional: 61 Tradicionais em tudo, como a gente estuda em Didática: professor fala, dá matéria pra prova, cobra lista de exercícios, cobra relatórios... O conhecimento do professor, o domínio de um conteúdo e o fato de ter especialistas lecionando durante a graduação é visto como aspecto positivo tanto pelo Bacharelando como pela Licencianda. Entretanto, outros aspectos são considerados importantes pelo Bacharelando para avaliar um docente como um bom professor, como, por exemplo, o relacionamento interpessoal que ele estabelece: Bacharelando: Professor muito bom [...] muito bom mesmo. Passava a matéria muito bem, explicava a matéria muito bem, super-bem, e era uma pessoa super-solícita, super-educada, assim, elegante... Como pessoa e como professor, também [...] E eu gostei muito da matéria [...] Bom, a relação interpessoal dele era muito boa. Ele se dava bem com as pessoas, assim... ele não era brincalhão com as pessoas, mas era simpático, tirava dúvidas, super-solícito, super-tranqüilo Licencianda: Um ponto positivo acho que é a especialização dos professores... acho que positivo e negativo, porque eles não conseguem limitar, ver o que é importante pra quem não é da área, quem não é especialista, mas ao mesmo tempo, naquilo que você gosta e quer seguir, ter um bom especialista pra você procurar, perguntar... isso é muito bom! A aula prática também é boa, é teoria e prática junto... Outro aspecto considerado positivo é o fato do professor se disponibilizar para tirar dúvidas dos alunos em horários extra-classe, mesmo que esta possibilidade não ocorra quando surge a necessidade: Bacharelando: o professor dá... o aluno tem toda liberdade para perguntar e, assim, normalmente em sala de aula, eles falam assim “ó, gente, em caso de dúvida, me procura na minha sala, minha sala é tal, tal, vocês podem passar lá”. A questão é que, alguns professores, se você for procurar na sala, eles realmente vão tá lá. Outros professores, você não vai encontrar em sala, ou então, se você bater na sala dele, ele vai falar “poxa, não tem como você vir mais tarde?”, entendeu? Licencianda: tem que estar num momento bom pra gente perguntar.. eles tiram dúvidas, mas tem muito pesquisador, então o pessoal parece que se fecha mais. [mesmo na licenciatura?] Mesmo na licenciatura, os professores, alguns, são mais abertos, mais simpáticos, mas a maioria não tem muito... tempo, sei lá, acho que é mais dar aula e pronto... Ainda em relação à ajuda dos professores, o Bacharelando deixa transparecer em seu enunciado, as relações de poder que presencia na interação professor-aluno, também descritas como “vaidade”: 62 em sala de aula você pode perguntar, eu acho natural, e se tiver alguma dúvida, pode passar na minha sala, mas a questão é se você vai encontrar, se ele vai te responder ou não. Porque também você pergunta alguma coisa pra ele e ele te enrola, porque ele mesmo não sabe a resposta, sei lá... tipo, por vaidade, eles não dizem “ó, não sei, foi mal”, entendeu? O discurso da Licencianda expõe diferentes comportamentos dos professores em relação à ajuda que dão aos alunos. Determinadas atitudes podem revelar uma competição acirrada na área de pesquisa da qual fez parte quando cursava o bacharelado em Astronomia, antes de migrar para a licenciatura em Física: Tive uma professora que era legal, que se aproximava, mas os próprios professores brincavam, porque ela ajudava a gente, até em trabalhos, e eles diziam “Tal professora? Ela é mãe, né?”. Ela era professora do Bacharelado, da Astronomia [esteve engajada em laboratório no curso anterior]... Os professores criticavam o fato dela tentar ajudar, porque eles diziam “ah, eles vão ser nossos concorrentes no futuro”... “tem que exigir deles do mesmo jeito que foi exigido da gente...” E eu acho que não é bem por aí, acho que tem que dar condições pro aluno experimentar e andar com seus próprios pés, dar seus próprios passos... Pra isso, precisa de um empurrãozinho, de orientação, porque às vezes a pessoa tá ali achando que tá abafando, arrasando, e não tá... [...] Às vezes, quando eles vêem que o aluno é muito bom, dá uma brecada, porque às vezes acham que pode ser um concorrente deles no futuro... acho que alguns professores pensam assim, não são todos... A posição do Bacharelando em Física em relação às disciplinas relacionadas às ciências humanas e à educação ficou clara quando comparou o curso de bacharelado ao de licenciatura e o valor que cada um desses grupos sociais atribuía às diferentes matérias: as disciplinas “hard” eram valorizadas pelos alunos do bacharelado e desvalorizadas por alguns licenciandos. É possível enxergar traços da separação entre as culturas das ciências naturais e humanas revelada por Snow (1993), no seu enunciado: No bacharelado não [tem disciplinas da área das ciências humanas], só Física, mesmo, Física hard... Física, matemática... matérias básicas... O Bacharelando foi perguntado se na matriz curricular do curso havia alguma matéria da área das ciências humanas. Afirmou que não e, após insistência da pesquisadora em saber se havia alguma disciplina relacionada à História da Física ou similar, negou. Neste momento, lembrou das disciplinas pedagógicas e 63 declarou que não as considerava muito relevantes, assim como vários alunos da licenciatura: eu vejo assim, o pessoal reclama dessas matérias, aí, o pessoal da licenciatura... acha chato, assim... tem muitas matérias que eles julgam inúteis, assim... entendeu? É mais porque tem que ter no currículo, mas que realmente não tem muito valor e tal... Isso pro pessoal de licenciatura, né? Porque imagina como o pessoal de Física vê isso, né? Pô... só Física hard... Mesmo criticando as disciplinas pedagógicas, o Bacharelando não critica o currículo da Licenciatura em Física e afirma que algumas matérias devem ser feitas por constarem na grade curricular, sem argumentar nada além disto: Eu particularmente, acho que de fato, tem certas matérias que tem que ser feitas, porque... pelo currículo mesmo, eu acho que tem que ter no currículo... mas acho que certas matérias são inúteis, não tem porquê. O estudante admitiu que uma disciplina sobre a História da Ciência poderia ser interessante, porém ressaltou que a mesma não seria necessária para sua formação científica, mas sim as disciplinas de conteúdo específico já presentes no curso: Eu acho que tem outras matérias que eu acho que são relevantes, tipo História da Ciência, ou... sei lá, Filosofia, talvez... Eu não acho que seriam matérias necessárias ao curso de Física, mas matérias que seriam interessantes pra se fazer [...] Mas se você perguntar “por que você não faz?”... É porque eu não vou ter saco pra fazer, eu tô muito mais preocupado com as matérias que eu tenho que fazer, mas se eu tivesse tempo hábil, assim, eu iria fazer essa matéria, História da Ciência. Para o Bacharelando em Física, as pesquisas na área de educação não resultam em nada concreto e estão distantes da realidade, do dia-a-dia do professor. O estudante se valeu da abstração do conhecimento das ciências humanas (ou de certa distância do dia-a-dia) como argumento para criticá-las, mas não se dá conta do caráter abstrato das ciências naturais neste momento: [...] Eu não vejo muita relevância, assim... Eu acho que é importante e tal, mas acho que não é essencial, sabe? [...] Eu não sei que fim que leva a pesquisa... Vamos lá: você tá fazendo agora um mestrado em Educação e faz essa pesquisa. Faz essa pesquisa e chega lá às suas conclusões. E aí? O que é feito com essas suas conclusões? Eu não sei, eu não sei, entendeu? E aí, o que isso pode mudar? Isso pode mudar alguma coisa de fato? Na Educação mesmo, assim, quer dizer, vai 64 mudar alguma coisa no colégio, no Ensino Fundamental, no Ensino Médio? [...] fazem as pesquisas na área de Educação, fazem esse tipo de coisa e fica naquilo, não sai daquilo. Faz pesquisa em educação, que vira artigo, que vira pesquisa em educação, que vira artigo [...] NESSE lugar que eu falei, eu trabalhei num departamento da área de Educação, e tinha muita gente que fazia pesquisa na área de Educação... Agora dali, eu acho que uma deu aula, de fato. O resto, que dizer, fez graduação, aí entrou pro mestrado, foi fazendo mestrado, doutorado e aí, entendeu? Então tem artigo, publicações, pesquisa, na área de Educação, mas tipo, o cara nunca vivenciou. Eu acho que muitas vezes a... a... forma, a maneira de se estudar, de abordar a área de Educação tá defasada, tá longe da realidade. A dinâmica que ele descreve é muito parecida com aquela em geral vivenciada pelos pesquisadores nas ciências naturais. Entretanto, ele critica essa mesma dinâmica quando é experimentada nas ciências humanas. Esta diferença parece estar relacionada à uma possível aplicabilidade da Física, que seria transformada em tecnologia, ou à relação da Física com a realidade, mesmo quando estritamente teórica. A visão empirista da ciência também é percebida nos seguintes enunciados do Bacharelando, ao comparar a Física às pesquisas realizadas na área de educação: A Física é dividida em subáreas, tem a Experimental e a Teórica. A Física Experimental é aquela que você vai pro laboratório, faz as experiências lá e vê se funciona. Física Teórica é cálculo, é ver se um programa funciona... só que uma coisa depende da outra, quer dizer, se você quer ser teórico numa coisa, você tem que saber a experimental pra saber se aquele modelo teórico vai funcionar. Se der certo, então “ah, o modelo teórico está certo”, se não der certo, então esquece esse modelo teórico, ele tá errado, tá? E uma coisa tá sempre associada à outra. Eu acho que na Educação isso não acontece. Eu acho que quando você fala em pesquisas na área de Educação, você fala de coisas teóricas, de artigos, enfim, mas que esqueceu um pouco a parte prática, assim, a parte do dia-a-dia do professor Sua concepção de ciência parece estar baseada em um realismo ingênuo e numa metodologia científica infalível. A imagem tradicional sobre o conhecimento científico aproxima-se de uma visão empista-indutivista, como podemos ver em sua apreciação sobre as aulas práticas: [...] A gente ia pro Laboratório didático, aí depois que a gente já tinha estudado anteriormente a parte teórica, então, tipo assim, se fizer isso, vai acontecer isso... Aí sabia os cálculos e tal. Vamos fazer o experimento. Se fizer isso, vai acontecer o que? Ah, tal e tal coisa, aí a gente demonstrava lá no laboratório... Eu acho que a gente tinha o suporte experimental: a gente aprendia a parte teórica em sala, a fazer 65 as contas, não sei o que, e depois a gente ia para a parte experimental, pra mostrar que aquilo que a gente aprendia era verdade, que tipo assim, não era só números, letrinhas... 3.7.2 Entrevistas com estudantes da Licenciatura e do Bacharelado em Química Os enunciados do Bacharelando1 sobre o currículo do curso de Química deixa transparecer sua visão de ciência, no quanto ele se detém para descrever o conteúdo, voltando-se somente para detalhes técnicos e para a pouca oferta de emprego na área de Química: Um problema do curso é que você não consegue, por exemplo... você se forma, mas a expectativa de emprego aqui no Rio de Janeiro é muito pequena na área de Química. Aí, por exemplo, você se forma muitas vezes... por ex, jáaaa... alguns amigos já sabem, você não passa no exame final, que é o mercado de trabalho. Você bate na porta, fica algum tempo sem trabalhar, ou você faz mestrado... o pessoal faz muito isso, também, algumas vezes porque não consegue emprego, alguma coisa assim, ou tenta, por exemplo, ir pra Escola de Química, um curso como Engenharia Química, algo assim, com aquela visão que lá tem emprego porque... químico tem uma visão, é... normalmente a visão do químico é que engenheiro químico rouba emprego de químico... Noutro momento, ao ser perguntado se o curso de bacharelado seria mais voltado à formação de pesquisadores, novamente se prende a descrições detalhadas do currículo, das funções de cada disciplina no mercado de trabalho: [...] por exemplo, Análise Instrumental não é uma matéria de indústria, é de pesquisa também, mas por exemplo, quando você vai fazer análise num laboratório... por exemplo, você tá lá na indústria química, você tem que fazer controle de qualidade da indústria química, dos produtos... aí a Análise Instrumental é muito útil, é uma ferramenta muito útil neste controle de qualidade, porque você consegue determinar a quantidade de elementos... substâncias lá presentes... se o pH está na faixa ideal, coisas assim. Então uma das matérias que o bacharel tem é Análise Instrumental, ou seja, ele pode ir pra indústria, mas antigamente não tinha esta matéria... [...] 1 O entrevistado cursava a graduação Químico com Atribuições Tecnológicas. De acordo com o próprio entrevistado, o Instituto de Química oferece três diferentes formações de acordo como o curso universitário escolhido: a Licenciatura em Química, curso noturno; o curso de Químico com Atribuições Tecnológicas, integral (manhã e tarde); e o Bacharelado em Química, também noturno. Este Bacharelado é um curso oferecido no horário noturno somente àqueles que já concluíram a Licenciatura e que querem ampliar suas possibilidades no mercado de trabalho nos setores industrial e/ou nas pesquisas acadêmicas, mas não poderiam freqüentar o curso Químico com Atribuições Tecnológicas devido aos horários das aulas. 66 ganha o seu diploma como químico, mesmo. A Atribuições Tecnológicas você ganha lá no CRQ [Conselho Regional de Química]. O bacharel, se não me engano, é o CRQ também que dá... Se não me engano, o CRQ dá 16 atribuições. Fora a parte de Licenciatura, o Engenheiro Químico pega todas as atribuições. O Químico Atribuições Tecnológicas pega 13... já o Bacharel pega 6, acho que alguma coisa assim... Quando a entrevistadora pede para avaliar o curso, o Bacharelando se atém às instalações dos laboratórios: Já fui em encontros de estudantes de Química, em três, e conheci instalações de outras universidades... em relação ao curso de Química, em termos de equipamentos, coisa assim, aqui na [Nome da Universidade] a gente tá muito bem... em outros cursos, a situação tá precária, assim... [Quais cursos? Só para comparar... Seria universidade particular?] Nãaaao, pública mesmo, federal, só que em outros Estados... lá em Alagoas, por exemplo, alguns equipamentos são muito precários, assim, você não tem muito equipamento... até... isso dificulta muito, tipo assim, você... tem equipamentos assim, pesquisa, utilizado pra pesquisa, outra coisa é a graduação. Aqui, apesar de tudo, na graduação a gente vê algumas coisas... a gente pega coisas que a gente acha muito ultrapassado, mas quando a gente vai ver a realidade em outras faculdades, vê que a gente tá muito bem. O enunciado do Bacharelando em Química mostra como a qualidade do curso tem, para ele, relação com a organização das disciplinas na matriz curricular: Tô, tô satisfeito... mas, por melhor que seja, tem sempre como melhorar as coisas... tem algumas matérias, assim, que, por exemplo, até... você fica muito preso na matéria. Tem duas Análises Orgânicas que, eu acho, na minha opinião, poderia ficar numa só... são 2 laboratórios que vai de 1 até às 6 [horas]. Dava pra dar em um período, na minha opinião... porque na verdade é continuação total uma da outra e se adequasse mais um pouco, você poderia fazer num período só... Tem matérias eletivas que, na minha opinião, tinham que ser obrigatórias... Sua concepção de Química enquanto ciência empírica parece evidente quando ressalta o tratamento estatístico dos dados e nas considerações positivas que faz sobre o curso, quando destaca a infraestrutura computacional oferecida para desenvolvimento da parte teórica: [...] o químico trabalha com muitos dados, é experimental, mas algumas vezes você pega vários dados, vai precisar fazer trabalhos estatísticos em cima de vários dados e, se você não fizer essa eletiva, vai sair sem esse conhecimento... [...] Além disso, assim... Química é uma área muito experimental. Ter uma parte teórica, até a parte teórica, precisa de equipamento, que é o computador. E aqui a gente tá bem servido, digamos assim... a estrutura, em si, daqui, é muito boa... 67 Há, entretanto, uma visão criativa para a ciência oferecida no curso do Bacharelando em Química, que é apreciada por ele. Algumas disciplinas experimentais (Inorgânica Experimental e Orgânica Experimental) são ministradas de modo que os alunos escolham as experiências que realizarão ao longo do período letivo, apresentando, ao final, seminários sobre o que fizeram, contando todo o percurso: As InorgExps...você não tava preso, você escolhia o que você queria trabalhar, na verdade... dentre aqueles tópicos você escolhia... e ninguém te dava ordem nenhuma, você tinha que procurar, pesquisar as reações, você tinha que realizar as reações... ajudava muito você a correr atrás, não ficar só naquele roteirinho chato, você pesquisava. E, por exemplo... tem muitos professores aqui na faculdade que são solícitos... uma vez tive que fazer experiência em InorgExp e, além dele ter me cedido um reagente, ele ainda me deu explicação, uma baita aula sobre aquilo... Eu achei muito interessante isso, contato grande dos professores... E o que achei interessante da matéria é você procurar o que fazer, você não ter um roteiro... não tem uma receita, você pesquisa a reação que você tá interessado, descobre coisas novas, e você coloca na prática. E o que você faz é diferente de quem tá do lado. E no final tinha um seminário, que você tinha que expor tudo o que fez, cada grupo, era normalmente trio ou dupla. Para o Licenciando, a qualidade do curso é confundida com o currículo mais extenso oferecido pelo Instituto de Química: A [Nome da universidade] teria a exigência da área um pouco maior do que na [Nome de outra universidade], por conta que a gente tem um tempo maior pra estudar, óbvio que entra mais matérias, e a gente tem um pouco mais de exigências em termos de formação e de experiência Entretanto, o Licenciando percebe que, em muitas disciplinas, o aluno pode estar servindo de mão de obra gratuita: exigência acaba sendo, no meu ponto de vista, um pouco excessiva, a gente já tem a carga horária de estágio pra cumprir no colégio e a gente não recebe nada pra isso, né? E fora que a gente tem que dar monitoria dentro da faculdade e não receber nada pra isso, também. Então se você for contar, existe pra gente mais de 400 horas só de atividades de sala de aula e não remuneradas, o que às vezes é um fator complicado pra muita gente, que trabalha durante o dia e só tem a noite, depois, no final da graduação pra fazer este estágio, então a pessoa já está cansada de ter trabalhado o dia inteiro e ainda tem que trabalhar à noite de graça pra cumprir um componente curricular... é assim que a coisa funciona não só aqui, mas também nas outras universidades 68 Para o Bacharelando, ter maior carga horária em atividades de estágio e cursar a graduação em maior número de períodos seria uma forma de ampliar as experiências profissionais. Não considera o curso de Químico com Atribuições Tecnológicas uma graduação difícil, mas novamente pondera o empenho dos alunos para torná-lo relativamente fácil: Normalmente, o pessoal se atrasa pouco, no curso da Química, conheço gente que vai se formar antes do tempo, mas é aquilo, a pessoa não vive. E também é melhor você ficar um pouco mais na faculdade, pegar experiência, iniciação, estágio, coisa assim, não fazer só matéria por si só... é minha opinião... O Bacharelando em Química considerou como aspecto negativo do curso a falta de horários alternativos para poder cursar determinadas disciplinas. Mais uma vez sua avaliação do curso se atém a aspectos técnicos do currículo: Falta de... falta de opção de horários. Por exemplo, apesar de ser um curso integral, tem matéria que só é dada naquele horário, por exemplo, você quer se adiantar um pouco, ou você se atrasou em alguma matéria, mas você tá preso... Eletiva tem que ter um horário só, porque é eletiva, mas acho que matéria obrigatória você tinha que ter mais de um horário... manhã e tarde, ou outro dia da semana, mas boa parte das matérias só tem aquele horário, e acho isso um ponto negativo. A desarticulação entre as disciplinas de conteúdo específico e as de conteúdo pedagógico é perceptível quando o Licenciando em Química aponta a inutilidade das últimas como aspecto negativo do curso. Esta visão, compartilhada com seus colegas, pode estar refletindo o habitus dos professores do curso que, em geral, não consideram os conteúdos das ciências humanas como importantes: [...] indo pra parte da formação pedagógica em si, acho que deveria ter uma reestruturação do currículo, que até teve. Quando entrei na faculdade, por exemplo, fazia Psicologia da Educação I e Psicologia da Educação II. Hoje em dia, isso foi condensado em apenas uma psicologia. Eu não sei como é que ficaram outras disciplinas, e, pra ser bem sincero, no final das contas, não é aquilo que vai fazer diferença pra gente... isso é minha opinião, como também dos meus colegas [Essas são as disciplinas da licenciatura que são ministradas pela Faculdade de Educação?] Isso, isso. A opinião que tenho é que não vai fazer diferença nenhuma, nenhuma mesmo. Então exigem da gente uma demanda muito grande, uma quantidade grande até de disciplinas pedagógicas... Eu acho até que nesse meio 69 tempo, toda essa parte teórica, eu acho que ela deveria ser dada de forma mais objetiva, ter um enfoque. Apesar de estar satisfeito com a amplitude do currículo do Bacharelado em Química, o aluno considera que os conteúdos disciplinares seriam superficiais por não ser possível se aprofundar em todos os conteúdos abordados durante o curso: [...] acho que tem uns problemas em relação ao curso daqui: ele é superficial, você não pode, não dá pra se aprofundar É superficial, porque na verdade, aqui você aprende muita coisa, mas normalmente você não se aprofunda muito nas matérias Quanto ao papel do aluno, o Bacharelando em Química ressalta as características individuais como essenciais para se avaliar um curso. Sem se ater às relações pedagógicas, o aluno passa uma concepção individualista de ensino quando afirma que quem faz a faculdade é o aluno: eu sou da seguinte opinião: quem faz a faculdade é o aluno, ou seja, não adianta nada estar na melhor universidade do país e não quer nada... não, de repente, uma faculdade muito ruim, mas se você correr atrás, você vai ser um profissional bem qualificado Quanto às aulas teórico-práticas, ministradas em sala de aula e em laboratórios didáticos, revela haver uma separação entre teoria e prática e entre professores, dias da semana e ambientes de ensino, por conta de fatores institucionais: aqui são separadas as aulas teóricas das práticas... Mesmo se for junto, teórico e experimental, é com professor à parte... um só pra teoria, outro só pra experimental. Não que um não saiba dar a teoria, nem o outro não sabe dar experimental, mas teve essa separação por causa de tempo, coisas assim... O Licenciando em Química reconhece que os conteúdos da área humana são importantes, mas não vislumbra sua influência na prática, na medida em que a situação social da escola e seu projeto pedagógico vão determinar, de antemão, como deverá ser seu ensino. Exemplificou contando o caso de um colégio particular voltado para o vestibular: A teoria é ... se você para pra pensar, tem um fundamento, óbvio, praquilo tudo, só que você não vai, quando você vai dar aula, quando vai montar um plano de aula, não vai levar em consideração nada daquilo que você aprendeu. Você vai levar em 70 consideração qual é o seu objetivo, mas seu objetivo vai tá atrelado ao objetivo que a escola tem. Se for um colégio particular voltado pro vestibular, o dono ou o chefe falar “olha, você tem que dar estequiometria em 50 minutos, só, e depois você vai passar pra soluções” e você não tem liberdade pra trabalhar o aspecto cognitivo, você não vai ter tempo pra trabalhar o desenvolvimento do aluno como cidadão, você não vai... vai trabalhar o aluno de forma mecanizada porque é isso que o mercado pede em termos do vestibular, né? Então essas disciplinas acabam que tomam um tempo muito grande da gente na faculdade, seja de presença em sala de aula, seja de trabalho que a gente tem que fazer... Quanto à postura dos professores, o Licenciando evidenciou a diferença entre o campo acadêmico dos alunos, das ciências naturais, e o de uma professora responsável por uma disciplina pedagógica, do campo das ciências humanas. Em seu discurso, percebemos que o fato dela ser da “área humana” deveria conformar, para ele, um determinado habitus pedagógico, tornando-a uma professora mais “humana”. Mas o aluno pareceu decepcionado quando isto não se concretizou em sua prática docente. O estudante relatou momentos de embate com a tal professora, a qual mostrou claramente a insatisfação em lidar com alunos da área das ciências naturais. O Licenciando apontou contradições no trabalho da educadora: Ela passou um trabalho, uns seminários pra gente fazer. Aqui serve ao Instituto de Química, mas tinha alunos da Matemática, Química e Física. E ela criticou TODOS os trabalhos, todos, não teve um trabalho que ela se posicionasse ... pra ela estavam todos muito ruim [...] nenhum trabalho estava bom. Ela não tinha a humanidade de perceber que eu, como aluno da Química, ou como aluno da Física ou da Matemática, se eu pego um artigo e ela manda eu falar, por exemplo, da teoria do movimento da Escola Nova, que foi o meu assunto, a gente vai pegar um artigo, não tenho condição prévia de ver o errado... A professora pareceu não reconhecer a falta de base na sua área de conhecimento (ciências humanas) dos alunos para os quais lecionava (ciências naturais) como algo inerente à formação acadêmica desses alunos, o que levou os alunos a terem dificuldades de relacionamento com ela. No conflito, um aluno usou o embate entre ciências humanas e naturais para caracterizar a mesma “ignorância” por parte da professora: Aí uma pessoa, como falei, eu quase não conseguia falar, explicou isso pra ela que nós, como alunos da Matemática, Física e Química, a gente não tinha embasamento teórico pra ver um artigo e julgar se tava certo ou não o que o cara, a pessoa estava falando. Porque ela, naquele momento, ela botou... ficou traçando um paralelo entre o pessoal da Pedagogia e o pessoal das exatas, criticando a gente, dizendo que os 71 alunos da Pedagogia eram infinitamente melhores, que o seminários deles seriam infinitamente melhores, mas eles desde o 1º. período tem o embasamento teórico pedagógico pra julgar, tem que saber bem melhor que a gente. Então a gente questionou: “professora, se a gente te desse um artigo, pra começo de conversa, você nem saberia como iniciar um seminário na nossa área”. O licenciando em Química esperou dos professores da área de pedagogia uma atitude humanizada, de entendimento, mas o que vivenciou foi algo totalmente diferente, quando no dia da apresentação de seu seminário, pediu à professora para adiar porque tinha extraído um siso: Eu vim com atestado mostrar pra ela que eu não poderia apresentar, ela falou que o problema era meu, que se eu não apresentasse, iria ficar com zero. Eu falei com ela: “professora, eu mal tô conseguindo falar, só minha parte do trabalho, meia hora ou mais”. Ela, como profissional de educação, formando educadores, ela simplesmente colocou de lado tudo aquilo que ela aprendeu na formação dela em educação e simplesmente ignorou que naquele momento eu não conseguiria apresentar o trabalho, mesmo comprovando [...] Moral da história: no final da apresentação meus pontos saíram, estava com a boca sangrando, o que não estava muito bem, piorou. Embates entre ciências humanas e ciências naturais são percebidos pelos alunos também nas aulas de Química, quando eles questionam os professores sobre o ensino de determinado conteúdo dado no Ensino Médio: eu acho que essa parte pedagógica [...] deveria ser dada não pelos professores que a gente tem aqui [no Instituto de Química] da [Nome da Universidade], acho que deveriam ser pelos professores da prática, porque acontecem equívocos, erros. Os professores daqui eles não dão aula no 2o. grau, eles não estão capacitados pra questionar a gente em alguns pontos e falar se tá errado ou não Os “professores da prática” seriam os professores responsáveis pela Prática de Ensino, disciplina voltada especificamente ao ensino de Química e que apresenta caráter teórico e prático, ou seja, o professor tanto é responsável pela orientação quanto à teoria pedagógica quanto pelo acompanhamento e avaliação do estágio curricular dos alunos. A insatisfação do Licenciando em Química pode ser um sinal de que as imposições por relação hierárquica de poder, a visão de que o professor tem a voz do conhecimento sobre um assunto pelo fato de ser professor, não é algo tão naturalizado entre os alunos. Também o Bacharelando relatou dificuldades na relação professor-aluno devido às estruturas de poder: 72 um professor, lembrei, que no começo eu gostava, depois passei a não gostar dele, ele se achava o dono do poder, porque ele dava a aula dele, até gostava da aula dele no começo, mas ele... a gente descobriu depois que era uma aula decorada, na verdade. Pediram pra ele fazer um exercício, ele não conseguiu fazer o exercício [...] na outra semana, ele chegou de manhã e o mesmo exercício ele pediu e corrigiu. Só que ele ficou com ódio das turmas, aí ele sacaneou, literalmente. Se você não fizesse... lembro até que uma questão minha estava certa, porque não fiz do jeito dele, ele “pô, mas isso aqui não é Física, isso é Matemática”. Eu olhei assim... ele “essa prova é de Física, não é de Cálculo”... Percebemos na fala do Licenciando em Química, outro nível de desarticulação curricular, que ocorre dentro das disciplinas de conteúdo específico quando se questiona o ensino do conteúdo no Ensino Médio. O gênero discursivo do estudante que percebe esta desarticulação não parece ser conformado pelo habitus pedagógico dos professores das ciências naturais, já que ele critica a postura dos professores, que não parecem se dar conta do problema: Os professores daqui eles não dão aula no 2o. grau, eles não estão capacitados pra questionar a gente em alguns pontos e falar se tá errado ou não. Eu tive apresentação de seminário aqui, na disciplina de Química do Cotidiano, onde o professor falou que eu tava ensinando algo errado. Aí eu falei “tá, professor, mas o que está errado?” ele, “não, está errado”, “tá, professor, entendi que está errado, mas o que está errado?”, “não, porque não é assim que ensina pro 2º. Grau”, “então como você ensina?”, “é que se ensina assim, assim, assado”. Eu falei “não, professor, isso a gente ensina aqui na faculdade, durante a graduação, no 2º.grau a gente ensina dessa forma”, ele “não, mas tá errado”, eu “professor, você já deu aula no 2º.grau?” “não”, “pois é, eu dou aula no 2º.grau a um ano e meio, em 4 colégios diferentes e a disciplina lá funciona assim”. As disciplinas das ciências humanas são divididas, para o Licenciando, naquelas cujos conteúdos seriam “mais focados” e noutras, que teriam conteúdos mais “gerais”: acho que a parte pedagógica aqui deveria ser mais estruturada, a gente ter uma coisa mais focada lá no final da graduação, que é quando a gente vai estudar Instrumentação pra Química do Cotidiano e Didática Especial da Química, que são duas didáticas especiais, e tem uma que é Evolução da Química. Então são quatro disciplinas só pedagógicas que tem um enfoque restrito na química, que são realmente úteis, agora as outras, Psicologia da Educação I, Psicologia da Educação II, Sociologia, Fundamentos Filosóficos, a gente não usa. 73 A desarticulação ocorre também, de acordo com o discurso do Licenciando em Química, entre os conteúdos dos ciclos básico e profissional. O aluno reclama por uma melhor integração curricular entre estas etapas do curso, que acaba tendo que ser “descoberta” pelos próprios estudantes, ao longo do curso: A gente teve aula de cálculo com professores que são formados em Matemática. Então, muitas vezes, no início do curso, as pessoas falavam “pô, porque estudo isso, é chato” e tal... os professores não sabiam dizer pra que que a gente tinha que estudar cálculo, ou então “ah, tá na grade, porque faz parte do currículo básico”. Só que a gente não vai chegar no final da faculdade sem saber porque que a gente tem que estudar cálculo e Física, que são as maiores repetências aqui da faculdade. Na verdade, a gente questiona, e os professores não sabem porque a gente tem que estudar cálculo, os professores de Física não sabem porque a gente tem que estudar Física... Mas, conforme a gente vai caminhando na graduação, a gente vai vendo a importância daquilo que a gente teve lá no ciclo básico. Por mais que as pessoas não saibam, a gente uma hora vai entender, lá em Bioquímica eu vou usar essa teoria tal tal. Mas porque não dar o enfoque, quando for usar o cálculo, pra que que aquilo existe? Até porque o professor de Matemática não é da Química, ele é lá do Instituto de Matemática, ele simplesmente vem aqui, dá a aula que tem que dar e vai embora. Não sabe relacionar a Química à matéria, por mais que não tivesse relação com a licenciatura... é uma falha que existe na escolha do profissional para ministrar aquilo... O Licenciando em Química menciona a “chamada” e a “reprovação” como “instrumentos de repressão” para obrigar o aluno a estar presente nas disciplinas pedagógicas. Critica tais procedimentos na medida em que os mesmos refletem a incapacidade do professor de motivar os alunos para que estejam presentes e assistam as aulas satisfeitos, dispensando atenção ao conteúdo a ser ensinado. os professores usam, como instrumento de repressão, a chamada pra obrigar que a gente esteja aqui. Mas nem é capaz... às vezes eles não conseguem perceber se ele não é capaz de motivar os alunos pra que estejam aqui presentes na aula, alguma coisa tá errada. E não vai ser prendendo a gente com uma lista de chamada, ameaçando reprovar, que você vai estar ali, satisfeito, querendo prestar atenção ali no que ele tem a ensinar. O bom professor seria aquele que cativa, motiva e que não dá uma aula chata, monótona, enfadonha. O Bacharelando em Química descreve como um professor ruim aquele que “joga a matéria no quadro” e não se mostra solícito ou empenhado para explicar aos alunos o conteúdo: 74 tem professor que você não quer ir pra aula dele... tinha matéria que eu gostava até da matéria, mas não gostava do método do professor... tinha professor que pegava, jogava no quadro a matéria e sumia! Deixava a gente fazendo exercício da matéria... esse professor é um exemplo que, se tivesse opção de horário, você não iria assistir aula dele, com certeza, a turma dele ia ficar vazia. É muito relativo, tinha professor carismático, tinha professor duro, mas que dava aula bem, tem de tudo aqui. Tinha professor que falava muito, você não conseguia absorver tudo, mas a aula era interessante. Acho que não tem um estilo próprio... várias coisas vou aproveitar pra minha vida profissional, exemplos mesmo. Tive professores muito bons e muito ruins... Já o Licenciando considerou um professor da Faculdade de Educação como exemplar, mesmo que os conteúdos lecionados não viessem a lhe servir em sua prática pedagógica. Este professor era substituto, de Psicologia da Educação I, cujo conteúdo é voltado ao desenvolvimento infantil. Tal figura parece ter servido para reforçar a ideia de que as características pessoais dos professores prevalecem sobre os conhecimentos teóricos que ele possa adquirir para modificar sua práxis: o meu professor de Psicologia I foi fora de série, foi excepcional, o melhor professor da área da educação que eu tive e que o pessoal da minha turma também. Eu nem sei se ele continuou, mas ele sabia cativar, sabia motivar, e não era aquela coisa chata, enfadonha, você observava, por exemplo, eu nem lembro se ele fazia chamada ou não, mas independente disso, a aula era cheia O Licenciando valoriza muito a relação que o professor estabelece com o aluno. Defende que a prática de um professor mais “humano” não depende de sua formação pedagógica: a nossa formação não vai ajudar na forma como você vai ajudar, não vai influenciar no momento. Acho que a questão que você tem pra trabalhar com seu aluno, independente da classe social que ele tem, ou se ele vai ter algum problema, acho que isso vem mais da sua vivência de mundo e experiência nossa, não são as disciplinas que eu fiz pedagógicas que vão me ajudar a sentar e compreender um aluno que foi mal na prova porque o pai bebeu, ou porque ele mora numa comunidade que tem traficante, ou então porque ele tem uma outra realidade, que o pai dele tem um cargo alto no trabalho e vive viajando e deixa ele abandonado. A formação pedagógica que eu tive não... pra mim não vai influenciar, acho que isso é mais o lado humano, pessoal, então... a forma como vou tratar esses alunos vai ser mais uma questão minha, mesmo. Acho que todo esse aparato pedagógico da faculdade, acho que não vai fazer diferença nenhuma. Essa declaração do Licenciando em Química parece derivar do habitus pedagógico de um de seus professores da graduação, que ele enaltece: 75 Acho que tem outro também, que são sempre lembrados, que sabem o que significa a relação com o aluno em sala de aula e não limita isso a só estas 4 paredes e quando você sai da porta, né? Essa relação, pra ele, vai bem além da sala de aula... Então por mais que alguns deles não fossem tão bons assim, às vezes não aceitavam muitas as coisas, falavam que você tava equivocado, que a forma certa era a deles, eles sabiam cativar e prender a atenção do aluno, por mais que ele se irritasse com alguma colocação minha, era porque ele, em sala de aula, tinha aquela postura de professor, mas do lado de fora, ele não mantinha aquela...postura de professor. Ele tinha aquela situação “eu sei trabalhar o lado humano”, embora esteja numa... numa... posição acima, “porque sou mestre, sou doutor, mas sei trabalhar o lado humano”. Isso, a gente acaba levando pra nossa vivência de professor, eu levei e muitos colegas também levaram o que aprenderam com esses professores, com os erros deles em sala de aula, algumas coisas que não deveriam cometer, e aprendemos principalmente com os exemplos deles fora de sala de aula. Entretanto, o discurso do Licenciando revela que há também, no curso, habitus pedagógico de professores calcado não no relacionamento humano como o do professor citado, mas no acirramento das relações de poder entre professor e aluno: Na faculdade, principalmente aqui, você tem a questão do professor que está muito acima de você e que ele facilmente tem o domínio da turma seja por ameaça ou seja por algum outro meio que ele vai estabelecer, que seja melhor pra ele, o que no 2º grau não existe. Em relação às formas de avaliação usadas pelos professores, os alunos apontaram que diferentes tipos de avaliação são usadas ao longo da graduação. O Bacharelando menciona uma possível diferença entre as disciplinas obrigatórias e as eletivas: já tive seminário, prova, fazer relatório, disciplina só com relatórios... ou então tudo junto. Teve disciplina que eu tive que fazer relatórios, seminário e ainda prova pra passar. Nas eletivas, normalmente não tem prova, são trabalhos, seminários, relatórios... algumas tem prova. Embora o Licenciando em Química não tenha mencionado a dificuldade do conteúdo do curso, é possível inferir que ele perceba dessa forma a partir do relato das ameaças impostas aos alunos, das inúmeras reprovações, etc. Relatou situações de avaliação em algumas disciplinas onde as relações de poder são esgarçadas ao máximo. Nessas disciplinas, a avaliação funciona claramente como mecanismo de subjugar os alunos, como instrumento de ameaça e repressão: 76 [...] Aqui na parte técnica de química, os professores vão dar a prova, muitas vezes você vai ser ameaçado, reprimido, o professor vai cobrar, muitas vezes, além do que ele deu em sala de aula... Uma vez, um professor de química nosso falou que o papel deles aqui no Instituto de Química era ensinar o caminho... e que a gente deveria trilhar por conta nossa o caminho das pedras, então ele poderia dar, sim, o que ele quisesse na prova, independente se ele deu em sala de aula, ou não. Então meu professor de Bioquímica faz isso, um dos professores mais insuportáveis daqui do instituto... O pessoal que só pode estudar à noite fica muito deprimido com determinados professores, porque você não pode ter problema nenhum com eles, só tem eles pra dar aquela matéria. Você não pode ter problema com ele, se não você não vai se formar. A não ser que ele morra, ele saia, ou que você consiga fazer em algum outro lugar. Porque ele ameaça o pessoal... Então aqui a gente é reprimido por conta desses professores... e aqui as pessoas são caladas, não tem voz, ficam com medo de fazer alguma coisa porque... não vai dar em nada, o cara vai reprovar quantas vezes ele quiser e nada vai ser feito, por mais que você reclame... Ao comparar este tipo de relação professor-aluno com outros tipos, comuns em outros cursos, o licenciando em Química lamenta a desarticulação e a despolitização de seus pares, os quais não partem para o confronto em situações onde a disputa pelo poder gera conflito: quando eu fiz matéria lá na Letras, o pessoal é muito mais politizado.. a gente tinha uma sala de aula muito grande e... quem era o nosso professor era um professor substituto. Tinha um professor da casa, que era adjunto, que a turma dele era de umas 5 pessoas, mais ou menos, e então ele usava a sala pequena. Só que um dia ele encasquetou que um dia ele tinha que usar nossa sala com os 5 alunos dele, querendo, obrigando, exigindo que o professor na época que dava aula de Didática saísse da sala porque ELE era professor adjunto, ele era concursado, ele tinha o direito de usar a sala que ele quisesse. Se isso acontecesse aqui na Química, os alunos não tomariam parte do professor, os alunos não fariam nada, principalmente com medo do professor adjunto, de depender dele pra alguma coisa ou fazer matéria com ele e ficar reprovado. Na Letras, os alunos imediatamente se levantaram e falaram que ele até poderia ser professor adjunto contratado da casa, mas eles, alunos, eram concursados do vestibular da mesma forma que os outros, então eles tinham tanto direito de estar naquela sala quanto os outros, e a gente não vai sair e ponto final. Aí o professor chamou a segurança universitária e os alunos não saíram da sala de aula, não saíram e ponto final. [...] Falta um lado político, um lado humano na área tecnológica, mas a repressão que a gente tem aqui... por esses professores, é muito grande, então nada seria feito... A despolitização dos alunos também é visível quando não se articulam para reclamar das aulas de um outro professor que não leciona aquilo que cobra em suas avaliações, segundo o Licenciando: 77 Passa a aula inteira cantando as garotas, falando do Flamengo, falando besteirinhas, e aí... ensina... esse que não dá aula, que as pessoas falam, ele até ensina, só que o que ele ensina não cai na prova. É Química Analítica Quantitativa, essa disciplina envolve muita reação química, muitas contas chatas que a gente tem que fazer, ele não fala nada disso em sala de aula, ele fala das máquinas, dos equipamentos que são usados pra fazer essas análises. Isso que ele fala em sala de aula não cai na prova. Ninguém faz nada pra trocar o professor, ninguém faz um abaixo assinado, isso daí é assim há anos, da mesma forma que é com o professor de Bioquímica, então nada é feito. O Licenciando em Química estabelece um contraponto interessante quando lembra que os professores pesquisadores atribuem muito valor ao conhecimento especializado em Química, mas consideram, contraditoriamente, que para lidar com a formação de professores, não é necessário ou obrigatório ter uma formação específica: você tem esses entraves dentro da universidade que “eu sou mestre nisso, sou doutor naquilo outro”, mas que você não tem vivência. Então por mais que você tenha o conhecimento teórico, mas da parte técnica – porque tem mestrado em físico-química, em analítica, mas você não é especialista na área de educação e você não tem experiência na área de educação pro público do 2º grau, você tem pro público da universidade, e são públicos muito distintos 3.7.3 Entrevistas com estudantes da Licenciatura e do Bacharelado em Biologia O Bacharelando em Biologia menciona o conhecimento do professor como aspecto positivo do curso: eu acho uma oportunidade incrível você... você tem realmente uma oportunidade de obter conhecimento a partir de um professor que é especialista naquilo que ele tá te passando [...] Uma coisa boa daqui é que os professores são pesquisadores, eles conhecem a fundo aquele assunto, isso me animava muito a vir pras aulas, eu sabia que aquela pessoa era especialista, ela, no Brasil, tá entre as melhores, das que mais entendiam daquele assunto. Então isso eu acho um aspecto muito bom, no caso da minha formação. Já o Licenciando em Biologia menciona a experiência no estágio como sendo o melhor momento de seu curso de graduação. Embora mencione a “aplicabilidade” do conteúdo do curso, seus enunciados expressam uma forma de construção do conhecimento, destacando o grupo, o conjunto: 78 Eu achei o meu processo todo de formação como licenciando foi muito bom, tive matérias boas... algumas matérias não correspondem tanto a expectativa e tudo mais, mas de uma maneira geral, eu acredito que minha experiência foi muito boa, minha formação como licenciando foi muitíssimo boa e... a melhor parte, justamente, foi justamente o estágio no CAp [Colégio de Aplicação], que você vivencia mais aquilo, faz algum sentido, faz O sentido, na verdade, aquilo tudo que você veio estudando, né? De colocar na prática, de construir em conjunto... éee... então eu enxergo que a experiência que eu tive no CAp foi fundamental e a melhor, assim, pra minha formação como licenciado É importante ressaltar que, embora se trate de uma construção coletiva, em momento algum o Licenciando deixou transparecer que não houvesse cobrança por parte dos professores. O aluno considera a cobrança e a fluidez do trabalho como uma construção coletiva: o licenciando da [Nome da Universidade] tem um diferencial porque ele estagia no CAp da [Nome da Universidade], isso é importante pra caramba porque lá você é cobrado, o trabalho flui bastante, tem uma construção coletiva muito boa, então sempre ouvi dizer que isso é um diferencial Ambos os alunos se identificam com as chamadas “saídas de campo”, mas o Licenciando chama a atenção para o trabalho exaustivo de tais atividades, para a relação entre teoria e prática e para a oportunidade de integração entre a turma e o professor: a maioria das disciplinas que achei as mais legais foram as que tiveram saída de campo, não... falando friamente, assim, sem omitir nada... não porque é uma viagem, porque é um oba oba, porque a gente vai pro meio do mato e não tem trabalho. Muito pelo contrário, as viagens que a gente tem é trabalho de manhã, de tarde e de noite, mas é muito bom porque você, tudo aquilo que você vê em sala de aula vira uma coisa mais prática, sabe? E você integra a turma com o professor, e atividade o tempo todo, então isso contribui bastante pra que a disciplina seja boa. Já o Bacharelando aponta a necessidade de planejamento desse tipo de trabalho pedagógico: os próprios trabalhos de campo bem organizados fazem toda diferença na formação do nosso curso. Então alguns professores, bons, realmente se preocupam em organizar uma excursão, em organizar o que vai ser dado naquela excursão. Em relação aos professores, o Licenciando destaca como aspecto positivo o apoio que muitos destes dão ao engajamento político do corpo discente: 79 como muitos dos professores já foram alunos do Instituto de Biologia, então eles tem um carinho por aquilo tudo, eles já passaram por aquilo e sabem o que aquilo representa. Então a articulação com a maioria dos professores é muito boa. [...]. Tem professores que realmente ignoram a opinião e tem professores que querem mais é que os alunos dêem opinião, e abraçam aquilo ali, sabe? Difícil ter uma unidade completa, mas a maioria dos professores apóia muito isso. O Bacharelando assinala que percebeu haver diferenças entre laboratórios e departamentos de seu curso de graduação, o que nos permite inferir haver disputas internas, inclusive relacionadas ao capital econômico: em termos de infraestrutura [...] é... alguns departamentos que fizeram parte da minha formação são excelentes. [...] em alguns lugares, você entra no laboratório e parece que tá em outro mundo. Então aqui a gente tem uma oportunidade éee, assim, sensacional, de fazer pesquisa de ponta. Mas, ao mesmo tempo, alguns departamentos éee... [...] Tem infraestrutura, enfim, pra conseguir produzir pesquisa enquanto que em algum laboratório os professores estão até sem onde ficar, entendeu? É um “puxadinho” dos outros laboratórios, como no caso do laboratório que eu estagiei. Então ao mesmo tempo que tem pesquisadores excelentes, fazendo pesquisa de ponta, em alguns casos, a infraestrutura ainda é muito precária... Já o Licenciando reconhece o capital científico do curso, que é voltado para a formação para a pesquisa. Em relação ao currículo, aponta a desarticulação entre os ciclos básico e profissional que obriga o estudante a escolher a carreira sem maior conhecimento sobre as possibilidades de especialização, após a conclusão do ciclo básico, devido à falta de algumas disciplinas durante os primeiros anos da graduação: Só virei licenciando mesmo no meio da faculdade, mas eu senti falta [...] como eu tava falando, que ela forma muito pesquisador, o Instituto de Biologia, então não me vi muito, assim, pela... por alguma disciplina, não sei como se encaixaria... que a faculdade me preparasse pra ser um biólogo de uma empresa, não sei qual seria o papel numa empresa X ou numa empresa Y, sabe? Ela preparou pra esse tipo de mercado, preparou pra que eu fosse um pesquisador, preparou até muito bem, sabe? Os pesquisadores daqui são muito bons e tudo mais, nada a reclamar, mas talvez faltasse um pouquinho disso... Ampliar... No ciclo básico, eu não vejo nada de educação e eu tenho que, no meio da faculdade, optar se eu quero licenciatura... é engraçado... éee... no ciclo básico, eu não vejo nenhuma disciplina da Biologia Marinha, mas um dos bacharéis é de Biologia Marinha... 80 Quanto à qualidade do curso, o Bacharelando em Biologia prefere adotar uma postura mais resguardada frente à opinião dos demais alunos, os quais “adoram reclamar”. Quando perguntado sobre como o curso pareceu para eles, respondeu: eu tenho um pouco de pé atrás com isso porque eu acho que as pessoas adoram reclamar [risos], né? Então mesmo quando a coisa não está tão ruim assim, ou quando... um pequeno deslize, as pessoas já gostam de fazer um drama. Mas... eu via muita gente reclamando de professores, “ah, não faz essa matéria, essa matéria é muito ruim, não sei o que” e eu decidia “vou fazer”, e via que não era nada daquilo, entendeu? Então eu acho que tem muita reclamação exagerada [risos]... Éeeee, então eu não costumo me basear na opinião... foi uma coisa que eu aprendi aqui: não se basear na... Assim, é bom você ouvir, de repente tinha coisas que eles estavam realmente certos, algumas matérias realmente não prestaram. Mas eu vi que todas as matérias, existe sempre uma pessoa que vai falar mal, que vai esculachar... então não costumava me guiar muito por isso Para o Bacharelando, algumas reclamações pareciam relacionadas à necessidade do aluno queixoso de se dedicar apenas às disciplinas que escolheu para seu aperfeiçoamento profissional: tem gente que entra na faculdade pensando “vou fazer genética”, e tudo que não é genética a pessoa vai falar mal, todas as aulas de Botânica, vai falar “ai, que saco, essa matéria, esse professor...” Assim, se você não tiver a cabeça aberta, realmente vai achar um saco... Então eram poucas as pessoas que realmente se abriam e que avaliavam bem, sabe? “Aquela matéria é boa porque o professor é bom, porque é bem dada” ou se é porque a pessoa não vai com a cara da matéria e simplesmente... Já o Licenciando traz a voz das “pessoas” para ajudar a realçar a qualidade da Licenciatura em Biologia: a impressão que eu tenho é que as pessoas gostam muito dos licenciandos formados aqui O Bacharelando aponta como fator negativo o fato de pesquisadores agirem sem grande compromisso com a obrigatoriedade de lecionarem: um ponto positivo eu já tinha até falado, esse dos professores. Que apesar da gente ter que dar jeitinho de brasileiro, todos os professores tem que dar, eles realmente são... são pessoas de grande conhecimento, então isso pra mim me animou muito, porque é uma coisa que eu sempre quis estudar. Quando cheguei aqui e vi que era um conhecimento todo que iria me passar, foi um ponto positivo pra mim, entendeu? 81 [...] É... mas um ponto negativo seria muitas vezes a falta de compromisso de alguns professores, porque o que acontece aqui é que eles são pesquisadores, são obrigados a dar aula, de uma certa forma, então... então alguns professores se dedicavam muito mais à parte de pesquisa e não davam muita atenção pra parte de ensinar, então ou não preparavam uma aula direito, ou não cumpriam com horário, não cumpriam com a entrega de prova, entendeu? O Bacharelando esclareceu o que quis dizer com “preparar a aula”, fazendo uma ressalva quanto ao material didático usado e ao conteúdo que o professor que utiliza o material, domina: eu acho que é a forma como você passa o conhecimento, não é nem você ter um slide bonito. Eu tive um professor que deu aula em transparência que foi excelente, muito melhor que muita aula em datashow. Então acho que é a maneira como ele passava o conteúdo, de não simplesmente jogar a informação, mas mais fazer você chegar naquele... fazer você seguir o raciocínio dele é o que faz você crescer mesmo porque, bem ou mal, uma informação mal jogada, passa uns meses, você esquece, a não ser que fique lidando com aquilo... então aulas assim, não valem nada... O Licenciando menciona uma disciplina como sendo o diferencial em sua matriz curricular, a melhor matéria que cursou. Percebe-se, claramente, a diferença na forma que a disciplina foi forjada e o quanto contribuiu para que ele aprendesse a avaliar e a construir conhecimento coletivamente: Tem matérias que não tem muito como fugir da sala de aula, não é a melhor metodologia, mas às vezes não tem muito como fugir daquilo ali. Mas eu tive uma disciplina que durante um semestre inteiro, preparamos um curso para professores, e era sobre “Vivências em Ecologia”, então, não tinha aula, assim... a disciplina era... sentava 10 alunos em sala de aula com 2 professores e a gente elaborava um curso de 1 semana, com atividades de manhã e de tarde, que a gente levasse esses professores ou esses funcionários de secretaria de meio ambiente pra ir em... em... determinados ambientes, ou numa restinga, ou numa praia, ou numa lagoa onde houvesse algum impacto ambiental e que a gente teria que, fora do ambiente de sala de aula, transmitir algumas informações pra eles, pra que eles tivessem alguma vivência em ecologia. A gente fazia saída de campo com os professores, atividade lúdicas, jogos, botava os professores pra construir novas formas de ensinar aquilo que eles viram num momento anterior, numa praia, pra que eles tivessem um... trabalhassem o conteúdo que eles tiveram pro próprio grupo, sabe? Preparar como seminário, ou uma história... Construísse alguma coisa sobre o que eles aprenderam de manhã e, à tarde, passasse isso pra todo grupo, era uma turma de 40 alunos. Dá pra dizer que essa foi a melhor matéria, muito gratificante, o resultado final, a construção em grupo de um curso. Você mergulha bastante naquilo ali e vê o resultado positivo do que sai... 82 Embora não pareça valorizar os mesmos aspectos educacionais destacados pelo Licenciando, o Bacharelando considera como aspectos negativos, dentre outros, o fato do professor “jogar informações” para os alunos, não organizar a aula prática e não explicar o “porque” de suas decisões: o professor não era assíduo, faltava, chegava atrasado e... deixava quieto... As aulas eram basicamente... era mais fácil você ler o livro, porque o professor praticamente jogava as informações, sabe? Não tinha uma... não tinha um modo de passar, uma coisa alternativa. Era aquilo, slide cheio de texto, isso é horrível [risos]. Inclusive uma das matérias que tô pensando, tinha aula prática, a aula prática era uma desorganização horrorosa... [...] Nada era explicado, não tinha “porque que a gente tá fazendo nessa aula prática, vocês vão tá vendo o que”, era uma coisa jogada, “ah, isso aqui é isso, isso aqui é isso, pronto, viu? tchau”. Mas ressalta a importância da prática em sua formação: [...] uma coisa que é muito importante, principalmente pro nosso curso, é uma aula prática bem organizada. Isso faz a diferença, assim, da água pro vinho [...] aprender Biologia sem aula prática é inviável. E, pra alguns bacharelados mais do que outros [...] Existe o trabalho de campo, o trabalho prático no laboratório, além das aulas. Então os próprios trabalhos de campo bem organizados fazem toda diferença na formação do nosso curso. Então alguns professores, bons, realmente se preocupam em organizar uma excursão, em organizar o que vai ser dado naquela excursão. Organizar as aulas práticas [...] Muitos professores pareciam comprometidos com sua profissão, de acordo com o discurso do Bacharelando. Este compromisso é percebido pela relação professor-aluno estabelecida e pelo atendimento extra-classe, aspectos positivos e apreciados nos professores: a relação aluno professor, relação até de amizade, muitas vezes, porque... claro que tem seus podres, mas... né? Os professores eles... eles... você tem onde encontrálos, você sabe que o professor é do laboratório tal, você tem alguma dúvida, alguma coisa, você acessa ele. Mesmo que ele seja chato, tenha que encher o saco, mesmo que ele seja o máximo, que te recebe, que te dá maior atenção... então acho que, independente da boa vontade dele, você vai ter acesso... e, no geral, os professores daqui eles tem uma... eles tem uma boa vontade pra te ajudar. Já no discurso do Licenciando, o professor bom, além das demais qualidades, é aquele que é apaixonado por sua profissão, muito comprometido com o que faz: 83 Ele tinha preocupação com os alunos e tudo mais, e essa disciplina não tinha saída de campo, mas o professor era muito bom, ele tinha aquela preocupação com o aluno, sabe? Não tinha preocupação de ter saída de campo, mas uma vez ele foi gripado, doente, levou a gente no jardim de didática, ficou pegando chuva, o cara era apaixonado pelo que ele tava fazendo. Tomando chuva ali, querendo explicar, a gente “não, vamos sair da chuva”, ele “não, vai passar daqui a pouco, só repousar”... Para o Licenciando, a maioria dos professores de sua graduação podem ser considerados bons: Foram poucas as matérias que eu peguei... poucas ou quase nenhuma matéria que eu peguei que realmente o professor só lia o slide, você fazia uma prova e acabou. Dificilmente peguei matéria assim. Já peguei uma matéria que era muito legal, a professora tinha boa vontade, mas a aula é muito ruim, o livro explica melhor, sabe? O professor que se recusa a atender ao aluno, ou que não planeja seu trabalho visando seus alunos, seriam aqueles descompromissados com sua profissão para ambos os alunos: Bacharelando em Biologia: tem aqueles professores que [...] muitas vezes são meio difíceis de encontrar, que são meio escorregadios, não tem tempo, “passa aqui depois”, bábá bibibi... e os que não costumam cumprir com a obrigação que na verdade é deles, e manda outras pessoas fazerem, por exemplo... ele bota estagiário pra dar aula, bota alguém... sem necessidade, entendeu? Não que o estagiário seja incompetente, mas ele não quer dar aula, bota o estagiário... [...] tem professores que não cumprem com a obrigação deles... Licenciando em Biologia: tive muito professor que chegava ali e falava “olha, odeio dar aula, tô aqui só porque sou obrigado, porque minha praia é pesquisa e infelizmente vocês vão ter que me aturar aqui um pouquinho”. Aí ele dava aquela aula de leitura de slide e só isso, sabe? Não tinha aquela preocupação com que a gente... como fazer aquilo de uma forma melhor, ou como tornar aquilo interessante pra gente, ou o que que a gente precisava dele O Bacharelando considera a graduação em Biologia um curso fácil. O que faltaria seriam comportamentos e atitudes sérias por parte dos estudantes quanto à formação profissional: eu vejo uma tendência de piora.. acho que as pessoas tão chegando um pouco imaturas na universidade, e não tão melhorando... porque...éee, passar em matérias, não é muito difícil, eu acho que o interessante da faculdade é você realmente absorver aquilo porque aquilo vai pra sua vida profissional. Então, cada vez mais eu vejo entrando pessoas muito ... assim, infantis... e, na minha opinião, ele é um curso fácil de se passar... o difícil é realmente você absorver o que você vai 84 precisar. Mas passar em matéria é fácil, pessoas que não querem nada com nada conseguiram passar no vestibular, e, infelizmente, vão conseguir um diploma, assim... éeee... assim éee... sem ter levado a sério. Então eu acho que... é... é possível, infelizmente, é possível você não levar tão a sério e, mesmo assim, conseguir o mesmo diploma que uma pessoa que realmente se esforçou... O comprometimento do aluno aparece descrito de forma diferente no discurso do Licenciando, que aponta uma diversidade de atitudes entre os licenciandos: por conta dos alunos, às vezes, assim... nem todo mundo tem tanto compromisso [...] já vi de tudo, de gente que “pô, achei maneiro, super importante”, aquele pessoal que tá empenhado em ler, em se interessar, e já vi gente falando “ah, só tô fazendo aqui pra completar mesmo, pra pegar o diploma no final e poder dar aula”, só pra poder cumprir crédito e pegar o diploma O licenciando coloca, no entanto, a dúvida sobre o baixo interesse nas disciplinas pedagógicas: ou pouco valor atribuído à parte teórica frente à prática ou a teoria pode ser julgada como sendo absolutamente dispensável, em qualquer domínio (específico ou pedagógico): ou ele não julgava que aquela matéria era importante mesmo, só queria que aquilo ali acabasse, ou ele realmente julgava que tudo, não só aquela matéria, mas todas as outras, fossem importantes, fosse importante, por exemplo, só o CAp, que é a hora que ele vai botar na prática mesmo, vai aprender só ali. O fato daquela discussão teórica que você tem antes de ir pra lá não fosse tão importante, sabe? E aí o comprometimento pode ser menor, passa por esses motivos... A politização dos alunos parece algo sacramentado no curso de Biologia, a ponto de o Centro Acadêmico (CA) participar da construção coletiva da reforma curricular da graduação. A carga horária de atividades discentes é uma das pautas de discussão sobre a reforma curricular: O pessoal aqui do Instituto de Biologia, os alunos correm bastante atrás e... reforma de currículo, essas coisas, de procurar bem o que eles acham que é bom pro curso, o que é bom pra Biologia [...] o Centro Acadêmico de Biologia é bastante ativo nessa parte, sabe? Eles participam sempre de congregação, pra discutir currículo, fazer a coisa andar mesmo, fazer a coisa melhorar pra todo mundo como um grupo [...] A gente tá passando agora até por uma reforma curricular... Tem o caso da ampliação das horas que a gente precisa ter estagiado, então como a gente já desempenhava muita atividade educacional extra-acadêmica [...] como é que a gente ia ver no currículo pra que já contassem horas ali, pra que não ficasse pesado cumprir tantas horas e pra que a gente já aproveitasse coisas que a gente já fazia, sabe? A articulação aqui funciona bastante bem. É difícil, as coisas são demoradas, 85 mas não é por culpa nossa, uma reforma curricular não acontece da noite pro dia... Mas tá caminhando e tudo mais, a gente tá correndo atrás de tudo isso... O Licenciando em Biologia descreve o Centro Acadêmico como sendo formado por uma comissão de alunos, de todos os alunos que querem se engajar, o que gera um orgulho nos discentes da Biologia, segundo ele, pois o grupo se empenha em obter conquistas, em deixar “coisas boas” para todos, como um legado para os futuros graduandos: Todo mundo tá ajudando como quer e quando pode o tempo todo. Às vezes tem alguém passando no corredor e “ó, estamos precisando de gente pra assistir uma congregação e contribuir com opinião”, coisa assim... [...] O CA é bastante ativo, você não precisa necessariamente fazer parte, a gente não tem um presidente, por exemplo, do CA. Todo mundo fala... é uma auto gestão, não tem alguém que seja o mentor da coisa. Tem várias pessoas que são chave, que você conhece... Você sempre reconhece aqueles que são mais ativos, mas não tem uma pessoa que responda pelo CA. Mas o CA responde por ele mesmo, é um grupo de pessoas... ... rola bastante, assim, o orgulho que as pessoas transmitem de “olhe tudo o que a gente construiu e olha como é que as coisas tem ficado boas pra vocês... vem ajudar a gente a fazer isso tomar um pouco da sua cara” CAPÍTULO 4 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS Este capítulo encontra-se dividido em quatro seções. Tal disposição visa sistematizar a discussão em relação aos aspectos investigados nas entrevistas, que são as concepções pedagógicas e as concepções epistemológicas presentes no discurso dos estudantes. Na terceira seção, buscamos relacionar e sintetizar concepções encontradas e inferir reflexões sobre a questão de pesquisa. Na última seção são apresentadas algumas implicações dos resultados deste estudo para a formação de professores. Partimos do princípio de que a interpretação e a discussão aqui propostas são consideradas como uma possibilidade, dentre inúmeras outras, para que possamos refletir sobre o processo de ensino e aprendizagem em ciências a partir do relato dos estudantes universitários entrevistados. 4.1 Concepções pedagógicas no discurso dos estudantes O modelo curricular da graduação em Ciências Naturais apresenta praticamente a mesma organização há pelo menos 30 anos, sem alterações significativas. Os valores e os padrões de conduta dos professores universitários com relação à formação docente pouco se modificaram, sendo a formação oferecida ainda voltada à formação científica e à preparação para a pesquisa. A formação do bacharel parece ainda cercada de prestígio acadêmico e científico, enquanto a formação para a licenciatura aparenta ser desvalorizada: são incluídas disciplinas pedagógicas como o necessário para a formação docente ao final da graduação e, muitas delas, são ministradas por professores substitutos, contratados temporariamente, que, por isso, não podem interferir na ementa a disciplina que lecionam (SCHNETZLER, 2000). Dentre os seis entrevistados, todos se declararam satisfeitos com a formação recebida na graduação. Cinco elogiaram seus cursos e ressaltaram como ponto positivo ter aula com professores especializados, detentores de grande conhecimento em suas respectivas áreas. Poderíamos inferir, considerando o 87 dialogismo entre os estudantes de cada curso, que este gênero discursivo é próprio do estudante desta universidade pública, reconhecida pela excelência em pesquisa e valorizada pela sociedade em geral como oportunidade privilegiada de qualidade de ensino. Mas a necessidade de conhecer e dominar a base científica ultrapassa o que é ensinado, de modo geral, nas disciplinas universitárias na área das ciências naturais: nestas, os conteúdos aparecem como prontos, verdadeiros, estáticos, neutros, sem relação com o contexto social, histórico e cultural. São conteúdos mergulhados na crença empirista-positivista-indutivista, onde não há espaço para se pensar algo diferente de uma concepção de ciência neutra, objetiva e que produz verdades. Porlán (1989 apud HARRES, 1999) constatou em estudo com ampla amostra de professores espanhóis que a predominância da concepção positivista da ciência acompanhou a visão tradicional do ensino, a qual apareceu relacionada à visão da aprendizagem em ciências como assimilação de significados acadêmicos acabados. Tais relações nos permitem supor que uma visão absolutista da ciência é referência para uma visão tradicional de seu ensino. Nos cursos de licenciatura, as disciplinas seguem sem que haja aproximação entre as pedagógicas e as de conteúdo específico. A aproximação somente ocorrerá vários meses após o início da graduação, em disciplinas como Prática de Ensino, Didática Especial ou alguma cadeira sobre instrumentação para o ensino. Os valores que perpetuam e condicionam tal tradição parecem ligados à manutenção das comunidades científicas: cabe, então, utilizar os conceitos de habitus e de campo científico para explicar as disposições que promovem a rotina no espaço de ação cujas posições dos agentes parecem determinadas, onde percebemos que a matriz curricular e a especialização dos professores parecem voltadas para a valorização da formação de pesquisadores (bacharéis) em relação à formação de professores (licenciados). “Os currículos reproduzem o arcabouço necessário para sustentar estes valores” (CUNHA, 1994 apud SCHNETZLER, 2000): a pesquisa parece ser a principal atividade dos docentes e o reconhecimento destes como especialistas configura status acadêmico, ou seja, capital cultural reconhecido pelos alunos ao enaltecerem os professores como especialistas. Metodologias de ensino parecem pouco valorizadas entre os professores universitários, devendo o estudante mostrar que é “capaz” e que “se empenha” para adquirir os conteúdos curriculares, pois a 88 graduação é reconhecida como não sendo para todos, já que seus conteúdos demandariam competências específicas, saberes vetados ao domínio universal. Ao lado da valorização da especialização científica, alguns professores foram criticados pelos entrevistados porque, como podemos ver no discurso da Licencianda em Física, estes professores não buscam conhecimentos pedagógicos específicos para lidar com seus alunos. A falta de visão de educação leva-os ao ensino tradicional como única alternativa. O Licenciando em Química, por sua vez, questionou a autoridade de dois professores, mas generaliza para outros a sua crítica, por não terem domínio sobre o conteúdo de Química para o Ensino Médio, segmento com o qual nunca atuaram. De fato, a valorização da alta profissionalização e especialização de saberes, tão difundida em nossas sociedades, não acontece ainda em relação à prática pedagógica. Perrenoud (1993 apud MALDANER e SCHNETZLER, 1998) chama a atenção para o fato de que valorização das tarefas de ensino, especialmente aquelas que culminam em atividades voltadas para os ensinos fundamental e médio, são consideradas como menos complexas e com menor exigência de saberes especializados pelo meio social, e a docência é vista como algo fácil e simples, possível de ser executado por quem não tem formação específica para atuação pedagógica: Se o ensino continuar sendo o fato de passar certos conteúdos no quadro, informar sobre eles, e a aprendizagem continuar sendo o fato de devolver isso nas provas, o tempo e espaço do professor, como estão distribuídos hoje, são adequados. Novos espaços e tempos serão conquistas que somente uma nova prática pedagógica poderá proporcionar e, com isso, a implantação de um verdadeiro processo de profissionalização do professor (MALDANER e SCHNETZLER, 1998, p.207). Para Zimmermann (2000), a profundidade de conhecimento que se tem sobre um conteúdo disciplinar facilitaria sua abordagem em maior profundidade nos cursos de formação, o que, proporcionaria ao futuro professor a capacidade de explicar e discutir os conteúdos com maior facilidade em sala de aula, sem se ater a linguagem excessivamente técnica ou apelar para ela como estratégia de disfarce sobre um assunto que não domina. As explicações durante a graduação também deveriam ser oferecidas através de linguagem acessível aos alunos de modo que o conteúdo 89 abordado durante o curso habilitasse os futuros professores a buscar estratégias de ensino que os faça ser claros quando em sala de aula e que não propaguem a visão deturpada de que o conhecimento científico é algo restrito a um pequeno grupo de pessoas “capazes”. Para tanto, seria necessário conhecer a pedagogia dos conteúdos da disciplina ministrada, que depende tanto do entendimento claro sobre o conteúdo quanto do modo como esse conhecimento é aprendido. Shulman (1986 apud ZIMMERMANN, 2000) afirma que este tipo de conhecimento é o que o professor necessita para desenvolver a habilidade de transformar e reformular o conteúdo, tornado-o compreensível a outros. O professor deveria, então, conhecer os conteúdos da disciplina que leciona e também saber das dificuldades que os alunos apresentam durante o aprendizado de alguns destes conteúdos. Somente assim seria capaz de criar estratégias para facilitar a aprendizagem de um ou outro conteúdo em particular. Tal prática está longe do habitus pedagógico dos professores dos cursos universitários das ciências naturais, conforme pudemos perceber a partir do discurso dos estudantes dos cursos de Física e de Química, já destacados no Capítulo 4. As disciplinas de conteúdo específico seguem numa velocidade acelerada de exposição de conteúdos pelo professor, o qual assume o papel de expor num monólogo para alunos que copiam e assimilam as informações como respostas únicas, conforme relatado pelo Bacharelando em Química, que aponta o fato de que considera o curso “superficial” por falar sobre muitos conteúdos sem, no entanto, haver tempo viável para aprofundá-los. Aprender mais sobre um assunto seria tarefa a cumprir nos estágios ou na iniciação científica. Tal contexto é justificado pela necessidade de cumprir o currículo e o programa estabelecidos, o que gera a necessidade de que os conteúdos sejam apresentados sem re-elaborações ou qualquer reflexão feita pelo professor. Qualquer comprovação ou ilustração do conteúdo teórico encontra-se sob a responsabilidade das chamadas “aulas práticas”, realizadas em laboratório. As práticas de ensinar e aprender são construídas em cima de raciocínio lógico, em especial sobre a dedução, e o objetivo das aulas, neste contexto, é a preparação para as provas. As aulas práticas são, em geral, descritivas, enfatizando o acúmulo de informações e o uso de demonstrações experimentais cujo objetivo é confirmar empiricamente o que já foi ensinado teoricamente. Este tipo de procedimento pode 90 ser constatado através do discurso do Bacharelando em Física e do Bacharelando em Química. Já o Bacharelando em Biologia coloca como ponto desfavorável em sua graduação o fato de haver professores que conduziriam as aulas práticas laboratoriais sem mencionar o motivo da mesma ter sido planejada, mas ainda assim ressalta a importância dessas aulas para a formação. Para Schnetzler (2000), a função das aulas práticas tem sido a de mostrar a importância de seguir o “receituário”: a idéia de que a experiência falhou, isto é, o resultado foi diferente do esperado no objetivo da atividade experimental, ensinando os alunos a considerar como importantes algumas atitudes próprias da atividade científica, restritas ao contexto de prescrição, de “seguir instruções” de modo sistemático. Este tipo de procedimento foi elogiado pelo Bacharelando em Física, o que mostra um habitus pedagógico semelhante ao dos professores do curso. Poderíamos acrescentar as listas de exercícios propostas (ou impostas?) pelos professores do curso de Física, conforme relatado pela Licencianda em Física, como também tendo o objetivo de fazer os alunos memorizarem os procedimentos corretos de solução de problemas. No discurso de licenciandos e bacharelandos, percebe-se que as disciplinas são cursadas sem qualquer integração entre elas. Em cursos deste tipo, a tendência é de que os estudantes acabem com conhecimento compartimentalizado seja em relação às disciplinas de conteúdo específico, seja em relação às disciplinas pedagógicas. Talvez as disciplinas integradoras (Prática de Ensino, Didáticas Especiais, instrumentação para o ensino, metodologia de ensino) sejam o único momento de convergência entre os conhecimentos científicos e pedagógicos. Mas algumas aulas das disciplinas pedagógicas parecem seguir rumo semelhante ao das disciplinas específicas, isto é, exposição de conteúdo de modo rígido e não contextualizado. Este isolamento é notado pela Licencianda em Física e pelo Licenciando em Química. Mesmo sem ter contato com tais disciplinas, o Bacharelando em Física também traz a voz de outros alunos ao relatar que ouve, dos licenciandos, ponderações negativas sobre as disciplinas pedagógicas, consideradas inúteis por muitos estudantes. O divórcio entre a teoria e a prática ocorreria também no interior das disciplinas pedagógicas, com exceção das Didáticas Especiais e da Prática de Ensino, às vezes até nessas disciplinas, como revelado no discurso do Licenciando em Química, ao relatar episódios vivenciados em tais disciplinas. Há, ainda, pouca 91 relação entre as diferentes disciplinas de conteúdo científico dentro da própria unidade/instituto. Como relatou o Licenciando em Química, alguns professores não sabem o motivo de lecionarem para o curso de Química, apenas o fazem porque assim é determinado pela estrutura curricular. Este tipo de desarticulação é sentido, principalmente, entre os ciclos básico e profissional. A integração entre as disciplinas ou entre conteúdos dentro de uma disciplina, quando promovida, é notada e valorizada pelos estudantes. Destacamos o fato do Licenciando em Biologia apontar a Prática de Ensino como ápice de sua formação por dar visibilidade à relação entre a teoria e a prática pedagógica. Ainda que tenha tenha mencionado certa aplicabilidade do conteúdo teórico do curso, na disciplina de Prática de Ensino, a forma como o Licenciando em Biologia expressou seus enunciados o distingue da forma usada pelos enunciados dos Licenciandos em Física e Química, que refletem mais diretamente a racionalidade técnica. Para o Licenciando em Biologia, os conhecimentos teóricos fizeram “todo sentido” em sua prática de ensino, a qual descreveu como uma construção em conjunto dos alunos com os quais manteve contato e com o professor responsável pela disciplina. Já o depoimento do Licenciando em Química revela efeitos pouco significativos produzidos pelas disciplinas pedagógicas. Entretanto, negar o que aprendeu parece fazê-lo refletir sobre uma prática diferenciada em relação àquela vivenciada. Percebemos o mesmo no discurso da Licencianda em Física quanto à sua experiência quando ainda era aluna do bacharelado. Uma experiência universitária empobrecida pela visão simplista e tradicional sobre ciência e sobre concepções de ensino pode ser considerada como um agravante, tal como aponta Schnetzler (2000), pois professores em exercício tendem a utilizar métodos de ensino que fizeram parte de sua vivência e experiência como alunos, e não métodos que foram prescritos e ensinados apenas de modo teórico no decorrer de sua graduação. Da Silva e Schnetzler (2005) apontam outro aspecto importante que é o fato de muitos professores considerarem seus professores formadores não como modelos a serem seguidos, mas sim como exemplos do que não deveriam ser ou fazer, tal como nos dados encontrados nas entrevistas. As relações de poder e os receios presentes no discurso de alguns entrevistados apontam para a possibilidade de que alguns professores universitários tenham incorporado a “nobreza” da ciência que ensinam: as avaliações, as notas, as 92 ameaças de reprovação são armas expressivas do poder pedagógico que submete aqueles que querem concluir o curso às regras do jogo impostas de maneira arbitrária. Como esclarece Arroyo (1988, p.9), “o poder não costuma dialogar com os súditos, nem dar explicações. O poder, quando não está seguro, não se expõe, oculta-se numa mística; neste caso, a mística da ciência e da técnica elevadas à categoria de saber para poucos, saber difícil. O poder ilegítimo legitima-se no medo, na repressão, na reprovação [...]”. Arroyo (1988) ressalta ainda que não é suficiente pensar a área de ensino de ciências apenas através de processos interativos ou de comunicação: para o autor, “o que aí acontece é inseparável dos processos sociais e políticos da produçãoreprodução-apropriação-uso da ciência e das técnicas, tanto nos processos gerais como nas especificidades de nossa formação social” (p.3). Esta relação nos permite entender a presença, nos cursos de Física e Química, da competitividade, a falta de companheirismo, o individualismo naturalizado e até mesmo a concorrência entre professores e alunos, mencionada anteriormente pela Licencianda em Física, ao relatar sua experiência ainda no curso de Bacharelado em Astronomia. Percebe-se pelos depoimentos, que a formação oferecida nos cursos de licenciatura das ciências naturais encontra-se dominada, principalmente, pelos conhecimentos específicos, com pouca ou nenhuma articulação com a ação profissional, devendo, num momento posterior, serem aplicados na prática, através dos estágios curriculares, obrigatórios para a conclusão dos cursos de licenciatura. Os discursos sobre a importância das disciplinas da área de ciências humanas na formação global, em muitos casos, não passa de algo vazio diante das ações dos professores responsáveis por estas mesmas disciplinas e da organização da estrutura curricular, que delega a estes conhecimentos uma reduzida carga horária. “A materialidade a que é submetido o educando incorpora a dicotomia com tal força que destrói qualquer ilusão de formação integral” (ARROYO, 1988, p.8). As práticas de ensino e as atividades práticas relacionadas às disciplinas, como as aulas em laboratório e as saídas de campo, foram as atividades didáticas que receberam elogios e parecem ter sido marcantes para os alunos, por serem contextos de integração entre teoria e prática. 93 A avaliação tradicional não foi questionada pelos bacharelandos em Física e em Química, que descreveram o processo de avaliação ressaltando a média para ser aprovado, somente inferindo outras informações quando novamente indagados. Clarificar os critérios de avaliação é algo importante, seja quanto à média estabelecida, seja em relação à diversidade de trabalhos envolvidos no processo (relatórios, apresentações de seminários, etc.). Desta forma, o processo avaliativo não seria visto pelos alunos como arbitrário, mas sim como transparente. Deve-se destacar que somente o Licenciando em Biologia apontou a avaliação como um processo construtivo, no qual é compreendida sua função real de acompanhamento contínuo e sistemático, como um meio de promover e melhorar o processo ensinoaprendizagem, e não como a finalidade deste. Considera-a também como um meio de ajudar os alunos, futuros professores, a analisar seus conhecimentos e atitudes. Tal forma de avaliar imporia, para ele, maior envolvimento e delegaria responsabilidades aos envolvidos neste processo. Schnetzler (2002) reconhece o papel do grupo no processo de formação docente e salienta que as transformações nas concepções docentes não acontecem apenas pela apresentação de argumentos lógicos e racionais. Os professores necessitam experienciar tentativas de inovação e, para isso, é importante que sejam incentivados a apresentá-las ao grupo, recebendo retroalimentações de seus colegas [...] Para aprender, a gente precisa de um pouco de confusão, de desafio, de problematizações, de suporte teórico e prático, mas também, de apoio, de colaboração, de amizade e, portanto, de respeito humano (SCHNETZLER, 2002, p.19). Esta visão vai contra o atomismo, ligado à compreensão metafísica de que os indivíduos são independentes da sociedade, concepção consoante com ao ambientes socioculturais ocidentais que acentuam o individualismo (REZENDE et al, 2008). A oposição entre individualismo e coletivismo pode ser percebida no discurso do Licenciando em Química quanto ao problema que experienciou tanto com os alunos do curso de Letras, que o resolveram coletivamente, quanto em relação ao poder exercido sobre os professores de modo aparentemente arbitrário O Licenciando em Biologia expôs uma concepção sobre o ensino claramente diferente das demais, baseada no coletivismo. Também difere dos demais entrevistados ao chamar a atenção para o fato de que o professor universitário não 94 necessita ser somente competente em relação aos seus conhecimentos científicos, mas ele necessita ter o que Paulo Freire (1997) chamou de humanidade, de compromisso ético, humildade e amorosidade em relação à sua prática docente. Mizukami (1983 apud SILVA, 2005) afirmou que licenciandos declaravam aprender mais com a prática docente de seus mestres do que com as teorias sobre a prática docente que lhes eram ensinadas. Este resultado foi vivenciado pelo Licenciando em Química, que aprendeu a trabalhar o “lado humano” com o aluno, e pelo Licenciando em Biologia, que concluiu que o professor deve ser comprometido com o que faz. Sobre o currículo, é interessante relacionar os resultados do presente estudo às reformas curriculares dos cursos de Química e Biologia. Sobre as novas diretrizes relacionadas à formação em Licenciatura em Química, Gonçalves et al (2007) afirmam que há uma tensão latente entre os organizadores das reformas curriculares (responsáveis por oferecer propostas oficiais de inovação curricular no processo de formação inicial de professores) e os responsáveis pela implementação destas nos cursos de graduação. A imposição de propostas de inovação sem considerar as condições do trabalho docente, bem como a participação destes na elaboração de novos documentos, normalmente culmina em resistências à inovação ou em mais frustrações aos educadores, inclusive sobre aqueles que trabalham nos cursos de formação inicial. Deve-se tentar superar, no contexto universitário, a valorização da formação para a pesquisa em detrimento da formação para a docência, pois bons pesquisadores não são, necessariamente, bons professores. O Licenciando em Química coloca a reforma curricular de seu curso como um ônus para o aluno, pois a carga horária excessiva de atividades discentes parece não ter sido pensada de modo a contemplar os alunos que necessitam conjugar estudo e trabalho remunerado. A excessiva carga horária encontra-se relacionada à modificação nas Diretrizes Curriculares dos cursos de formação de professores de Química. As horas de prática, de estágio, de aulas voltadas aos conteúdos de natureza científico-cultural e para outras atividades acadêmico-científico-culturais continuariam a apontar, segundo Gonçalves et al (2007) para uma “fragmentação curricular indesejável que valoriza a dicotomia entre teoria e prática amplamente combatida na literatura acerca da formação docente”. Tal modificação pode ser entendida tanto como um entrave quanto como um avanço, por ampliar as possibilidades de obtenção de créditos para fora das salas de aula. No curso de 95 Biologia, as mudanças curriculares constituem um novo cenário propício à discussão sobre o curso, que conta com a participação de alunos e de professores, o que parece ressaltar seu caráter democrático e não impositivo. 4.2 Concepções epistemológicas no discurso dos estudantes A principal avaliação negativa em relação à formação do licenciando em ciências naturais diz respeito à formação técnica marcada pelo divórcio entre a teoria e a prática. As abordagens nas disciplinas de conteúdo específico parecem desvinculadas dos objetivos pedagógicos. Pode-se inferir, a partir do discurso dos alunos, que a formação didática aparece como insatisfatória por não correlacionar os conteúdos ministrados nas aulas das disciplinas pedagógicas aos conteúdos científicos específicos. Pecharromán e Pozo (2006) consideram que há uma epistemologia implícita na organização educacional e nas práticas de ensino, fatores que devem ser explicitados para que se possam educar as concepções epistemológicas dos futuros professores. Roth e Roychoundury (1994, apud PECHARROMÁN e POZO, 2006, p.178) assinalam que a imagem que os alunos constroem sobre conhecimento e aprendizagem tem base no contexto cultural e nas práticas vivenciadas em sala de aula, e ambos parecem convergir mais comumente numa concepção objetivista. Esta concepção parece, ainda, ser reforçada pelos livros-texto, especialmente quanto à característica empirista-indutivista. Nos livros, o conhecimento científico aparece como fruto direto da observação e experimentação, pouco considerando as teorias que elaboraram tais práticas. São descobertas que acumulam progressivamente, feitas a partir de observações imparciais realizadas por gênios que formulam verdades absolutas, sem qualquer conexão com o contexto social ou com a comunidade científica. Assim como Porlán e Rivero (1998) em seu estudo com professores, os dados do presente trabalho, principalmente representados pelo discurso do bacharelando em Física e pelo bacharelando em Química, apontam para o fato que estudantes universitários apresentam uma visão de ciência baseada num realismo ingênuo (ciência que busca a verdade), a qual é construída através de uma metodologia indutiva e sem influências sociais. 96 Para os estudantes da Física e da Química, o conhecimento é concebido como uma verdade extraída de fatos, não como uma construção humana. O predomínio da concepção empirista-indutivista demonstra uma oposição em relação à forma como se tem pensado o conhecimento na comunidade científica: Trindade e Rezende (2008) afirmam que a má compreensão das implicações da epistemologia para a educação em ciências pode ocasionar o surgimento de concepções inadequadas sobre ciência e conhecimento científico nas aulas de ciências. O pensamento dos alunos sobre os conceitos científicos pode ser resultado da ausência de uma abordagem histórica e epistemológica desses mesmos conhecimentos, bem como a falta de uma correlação dos conceitos com os respectivos contextos sociais nos quais foram cunhados, o que poderia atribuir uma participação humana aos conhecimentos científicos. Tal como no estudo de Gilbert e Meloche (1993 apud HARRES, 1999), nossos dados apontam também para a existência de concepções contraditórias apresentadas por um mesmo indivíduo, que ora parece conceber o ensino como algo tradicional/técnico, ora busca mudanças de perspectiva (como, por exemplo, no caso do bacharelando em Química, que buscou cursar a disciplina Didática Geral como forma de ampliar seus horizontes teóricos). Isto seria, para os autores, indício de mudança da imagem tradicional da ciência, ainda não concretizada por falta de base teórica para construir concepções que permitam conceber uma nova visão de ciência. Podemos inferir a necessidade do modelo de formação de professores promover a articulação entre teoria e prática, superando a dicotomia produzida historicamente e que, ao ser perpetuada, somente favorece o predomínio da racionalidade técnica. Ao compreender o significado desta cisão, localizando-a histórica e socialmente, será possível que os cursos de formação de docentes superem esta forma empobrecida de conceber seus currículos e concepções de ensino, aprendizagem e ciências. Para Arroyo (1988), o ensino de ciências teria, como característica, ser tanto pouco acessível quanto nobre, por se tratar de uma prática ligada a conteúdos científicos. Teria, ainda, uma aura de confiança e de inquestionabilidade dominando a área, por lidar justamente com conteúdos nobres, principalmente quando comparado a outros saberes. Talvez o próprio peso imposto ao conhecimento científico, destinado a poucos, seria um dos fatores que entravam o avanço de 97 mudanças no ensino de ciências. O autor lembra que por mais nobres e exatas que sejam, as ciências não são invulneráveis à realidade histórica, social, cultural e política nas quais é produzida, transmitida e divulgada. Outro aspecto importante que deveria ser levado em conta para minimizar a racionalidade técnica que marca os cursos de licenciatura e aproximar a formação do professor das ciências da realidade sociocultural é o abandono da previsibilidade e das certezas e a introdução da incerteza nas situações de atividade docente. A organização dos cursos de formação docente tendem a pensar os conhecimentos como exatos e prévios, “induzindo que o desempenho docente é uma atividade adaptativa, instrumental e funcional” (Da SILVA e SCHNETZLER, 2005). Tal perspectiva é incompatível com a real atividade docente, exercício cujas características imprevisíveis são predominantes. É imperativo, portanto, que a formação fomente a criatividade, que dê suporte para lidar com situações novas e imprevisíveis. Este alerta caberia, também, em relação ao conteúdo, que deve deixar de ser tomado de forma teórica isolada: devem-se buscar novos sentidos para os currículos dos cursos de formação através de diferentes abordagens temáticas que envolvam discussões sobre aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais. 4.3 Considerações Finais Dentre os alunos entrevistados, pode-se inferir um gênero discursivo em comum: os alunos avaliaram positivamente o fato dos professores dos cursos das ciências naturais dominarem suas respectivas áreas de conhecimento técnico/específico. O discurso dos alunos da Biologia superou a valorização do conhecimento técnico dos professores quando utilizaram o termo “comprometimento”, fosse para qualificar o bom professor pesquisador (no caso do Bacharelando) ou o professor apaixonado e dedicado ao ofício (Licenciando). A relação professor-aluno e o entendimento extra-classe parecem ser aspectos positivos e apreciados nos professores, enquanto o professor ruim seria aquele que joga a matéria no quadro, que não oferece explicação e não se mostra solícito aos alunos. Tais características demonstrariam falta de compromisso com a profissão. 98 O discurso dos alunos quanto ao nível de dificuldade de seus cursos de graduação também merece destaque: o curso de Física foi considerado difícil tanto pelo Bacharelando quanto pela Licencianda; quanto ao curso de Química, a dificuldade relatada foi em relação à demanda de carga horária de atividades acadêmicas e serem cumpridas; a Biologia, entretanto, foi um curso de graduação considerado fácil. Este dado provavelmente não pode ser explicado por aspectos puramente cognitivos, mas socioculturais, como uma maior proximidade entre professores e alunos, concepções de ensino de parte dos professores que se distanciam dos modelos tradicionais, motivação do aluno em relação ao curso por conta de participação política, como no caso da reforma curricular, dentre outros aspectos. A relação linear que o Bacharelando em Física estabelece entre a dificuldade do curso para determinados estudantes e a quantidade de crítica que os mesmos tecem sobre o curso parece que assimila perfeitamente o habitus pedagógico dos professores do curso de Física, que propagam a idéia de que a dificuldade da matéria é problema exclusivamente do aluno, o que também ajuda a justificar a percentagem descomunal de reprovações e de evasão já no ciclo básico. Já na visão do Bacharelando em Biologia, essa associação não é feita: ele relaciona o discurso crítico dos alunos em relação ao curso ao fato de gostarem ou não de determinada matéria. A partir de uma perspectiva que valoriza as relações entre conhecimento, poder e linguagem, Mortimer (1998) analisa como as marcas da ciência clássica, de cunho positivista, foram impressas na linguagem científica, denotando um modo de construir o mundo. Este linguajar específico é o que, muitas vezes, torna o conhecimento científico estranho e de difícil acesso a um maior número de pessoas, o que justifica a reprovação e a exclusão daqueles que são menos capazes de entender tais características de linguagem tão específicas. Segundo Mortimer (1998), as relações de poder são perpetuadas através desse ensino que exclui aqueles que não detêm o capital cultural dos códigos relativos ao linguajar científico, tão estranho e distante da linguagem cotidiana. Este talvez seja um dos motivos das resistências encontradas na área de ensino de ciências: promover uma reformulação nas concepções epistemológicas e nas concepções de ensino e facilitar o acesso aos conhecimentos científicos seria o mesmo que abrir mão de uma estratégia de seleção que delimita o número de indivíduos “capazes” de atuar no campo científico. 99 Todos os entrevistados parecem ter um conhecimento sobre epistemologia originário de mensagens implícitas, passadas ao longo da vida acadêmica. Não tiveram aulas formais que tratassem do assunto. A análise das entrevistas permitiu inferir que a concepção epistemológica que aparece de modo recorrente nos currículos e no ensino na área das ciências naturais parece ser a empiristaindutivista, tal como nos estudos de textos escolares realizado por Silveira (1992), nos estudos de Porlán et al (1998) com estudantes e professores de ciências, no trabalho realizado por Zimmermann (2000) com professores de Física, cujos fundamentos são: a observação é a fonte e a função do conhecimento, o qual apresenta sempre relação, direta ou indireta, com a experiência sensível; o conhecimento científico é obtido daquilo que se observa (fenômenos), a partir da aplicação de regras do método científico, ou seja, da síntese indutiva do que foi observado/experimentado; a criatividade, a imaginação ou a especulação não tem espaço no que se refere a conhecimento científico; a ciência é neutra e as teorias científicas são descobertas a partir de dados empíricos. O caráter provisório do conhecimento científico, abalando a crença de ser uma verdade imutável, é outra característica da visão de ciência que não emerge no discurso dos entrevistados. Eles ignoram a idéia de que o indivíduo tem papel ativo na construção do conhecimento, já que toda observação está impregnada de teorias e que são estas que orientam a direção e a atenção dos cientistas. Deste modo, a observação e a interpretação ocorrem em função de expectativas, não sendo dados neutros que traduzem a realidade. A visão dicotômica da função do ensino está presente nos cursos de formação de professores de diversas formas: a separação entre ciência-técnica e cultura-política, muitas vezes não é privilégio das disciplinas de conteúdo específico, como pudemos perceber nos dados obtidos. As disciplinas “humanas” também conseguiram, em alguns casos, ora cair na visão desarticulada e tecnicista, fornecendo conteúdos para atender a demanda da racionalidade técnica de transmissão de conceitos científicos, ora tender a uma visão descontextualizada e tradicional, fornecendo conteúdos curriculares por serem curriculares e pela necessidade de realizar uma avaliação ao final do período letivo. Sejam concepções educacionais ou epistemológicas, membros de uma mesma comunidade, como por exemplo, a de estudantes universitários, não constroem suas falas a partir de unidades lingüísticas tradicionais, mas sim a partir 100 de um conjunto de enunciados relacionados àquele grupo. Tal conjunto de enunciados próprios de um determinado grupo social foi denominado por Bakhtin de gêneros de discurso, os quais caracterizam diferentes linguagens sociais presentes no grupo. Os conceitos de um grupo específico “funcionam como mediadores entre o enunciado individual e as práticas sociais coletivas comuns a esses grupos e comunidades” (MORTIMER, 1998, pp.100-101). A recorrência de termos e expressões de ideias categóricas utilizadas no discurso dos estudantes entrevistados levantam a questão do caráter reprodutivo de algumas referências que podem não ser resultado de uma aprendizagem reflexiva, mas de uma aprendizagem não consciente fruto de uma incorporação acrítica de discursos. Esta construção não é totalmente racional e refletida, podendo ser relacionada à ideia de habitus de Bourdieu devido às características de reprodução e, ao vir à consciência, poderia ser passível de modificação, dependendo do sentido do jogo que o estudante assumirá. A partir dos gêneros de discurso dos estudantes entrevistados, foi possível inferir mais um único habitus pedagógico em cada curso e diferentes níveis de inserção dos estudantes no habitus pedagógico reproduzido em seus respectivos cursos. O discurso do Bacharelando em Física expõe sua visão de ciência e seu modelo de ensino e aprendizagem, que são notoriamente tradicionais. Seu discurso parece resultado de uma aprendizagem não consciente quando assume o modelo configurado em seu curso de graduação, não questiona as metodologias de avaliação, atribui a alta evasão e repetência à falta de dedicação dos alunos e concorda com a ausência de qualquer disciplina da área das ciências humanas, como História da Física ou História da Ciência no curso. Já o discurso do Bacharelando em Química, por um lado, é extremamente marcado pela linguagem técnica quando fala do curso, mas mostra abertura para outros discursos como, por exemplo, o das ciências humanas, o que pode indicar um movimento de resistência ao curso e transição para outras visões. O Bacharelando em Biologia, por sua vez, parece expressar o habitus pedagógico reproduzido no curso, entretanto, ao tecer críticas a alguns professores, que julga descomprometidos, indica que há convivência de diferentes hábitos pedagógicos no curso. A Licencianda em Física, apesar de se declarar satisfeita com a graduação, parece insatisfeita com a configuração do curso de licenciatura. Seus comentários indicam que não acata o habitus de seus professores, principalmente quanto ao 101 modelo pedagógico tradicional adotado por eles, mas suas queixas parecem não estar pautadas em reflexões embasadas, mas apenas na perspectiva individual. O Licenciando em Química, por sua vez, tece críticas severas ao seu curso, mostrando que, além de não estar conformado pelo habitus pedagógico reproduzido no curso, também exerce oposição às forças exercidas neste campo. Por outro lado, aparenta não estar inserido no campo das ciências humanas, o que é evidenciado quando usa o termo “humanas” como sinônimo de “humanitário”. Já o Licenciando em Biologia aparenta reproduzir o habitus de, pelo menos, parte dos professores, os quais identifica como professores comprometidos, que promovem a construção coletiva do conhecimento e a participação ativa dos alunos frente às questões políticas da instituição à qual pertencem. Exibe, portanto, conformação ao habitus desses professores, mas em um nível de reflexão conjunta, diferente do habitus irracional e inconsciente. Para Bourdieu (2004), os agentes sociais não são conduzidos passivamente pelas forças do campo, mas suas disposições adquiridas, isto é, seu habitus, pode levá-los a resistir, a oferecer oposição às forças do campo, chegando mesmo a lutar contra estas forças de modo a tentar modificar as estruturas aí presentes em razão de suas disposições. Gêneros discursivos de alguns estudantes entrevistados traduzem habitus irrefletidos, de reprodução irracional e inconsciente; outros gêneros encontrados revelam resistência ao habitus pedagógico dos professores universitários. Como explicar esta resistência? A compreensão do discurso que resiste às forças do campo está fora do alcance deste estudo. É possível supor, no entanto, que esta perspectiva esteja relacionada às histórias de vida dos estudantes, às experiências vivenciadas no curso e talvez mais fortemente, às expectativas trazidas de seu ambiente familiar e sociocultural. 4.4. Implicações para a Formação de Professores das Ciências Naturais Pelo discurso dos entrevistados foi possível perceber que os cursos das ciências naturais, em especial o de Física e o de Química, ainda propagam a ideia de que produzir conhecimentos, fazer ciência é sinônimo de quantificar dados da realidade, de adotar uma linguagem que seja garantia de objetividade e que não esteja submetida à variância do observador. Exclui-se o sujeito do conhecimento, seu contexto histórico e social, numa tentativa de universalizar o saber científico. 102 Saberes que não possam ser expressos através desta linguagem neutralizada seriam de menor importância: o cientificismo fundamenta-se, então, no mito da objetividade e da racionalidade científica, e os cientistas voltam-se ao esforço de generalizar o conhecimento para unificar os saberes, o que seria conseguido através da adoção de métodos universalizados de observação e descrição de fenômenos. A sociedade contemporânea não parece interpretar as necessidades de escolarização para além dos limites das soluções técnicas. Apenas quando aspectos mais profundos da formação de professores forem questionados, como o motivo mercadológico que leva às concepções epistemológicas empiristas a serem predominantes em nossa sociedade, e como as concepções de ensino respondem pela inserção acrítica dos indivíduos neste contexto produtivo e excludente, mudanças efetivas poderão ser implantadas nos cursos de formação para docência. Afinal seria paradoxal que as universidades preparassem professores com concepções contrárias às atuais exigências sociais. No entanto, Perrenoud (1993 apud MALDANER e SCHNETZLER, 1998) acredita que a renovação desta situação deveria partir da formação inicial de professores e os responsáveis pelos cursos poderiam antecipar e acelerar uma modificação em relação ao papel social do professor. No sentido de confrontar a visão científica e educacional arcaicas nos cursos de licenciatura, Vianna e Carvalho (2001) propõem que a formação de professores contemple as faces do “fazer ciência” e do “ensinar ciência”: pesquisadores e professores dos cursos de licenciatura deveriam buscar interações entre suas áreas de atuação específicas de modo que deixassem de lado a transmissão viciosa dos conhecimentos curriculares. Para tanto, seria necessário um conhecimento claro e preciso dos entraves presentes na graduação e, a partir deste ponto, buscar implantar possíveis renovações através da reelaboração de um modelo alternativo e mais eficaz de ensino, como, por exemplo, detectar, apontar e promover estratégias que busquem modificar o pensamento docente voltado a uma visão simplista da pesquisa científica e de seu produto, desvinculada do contexto social, o que diminui o conhecimento possível de ser trabalhado dentro do contexto da graduação. A distância entre as duas culturas, mencionada por Snow (1995), poderia ser um dos pontos de partida para se pensar os limites da formação pedagógica e para construir estratégias e propagar possibilidades de superação desta “torre de Babel” construída nos cursos de Licenciatura: ao se almejar um objetivo que vise obter 103 maior conhecimento, maiores possibilidades de se tornar uma autoridade sobre um determinado campo, os especialistas, tal como os personagens do arquétipo bíblico, deixaram de compreender uns aos outros, parecendo falar línguas totalmente distintas. Em alguns casos, são como xenófobos, aversivos a qualquer articulação teórica; noutros, são invasivos, tentam construir campos híbridos de conhecimento sem, no entanto, se aprofundar nestes conhecimentos que tentam importar. Desenvolver uma visão crítica relativa à ciência não é tarefa apenas para a reformulação na matriz curricular dos cursos, mas exige uma transformação nas práticas pedagógicas dos formadores responsáveis tanto pelas disciplinas de conteúdo específico quanto por aqueles responsáveis pelas disciplinas pedagógicas e integradoras. Torna-se essencial, portanto, que haja uma reflexão epistemológica articulada, que contemple o conhecimento científico e o ensino de ciências. Inserir obrigações como visitas a museus ou disciplinas curriculares como Filosofia da Ciência são ações interessantes, mas insuficientes para promover uma real modificação de concepções epistemológicas, sobre ensino e sobre aprendizagem, as quais guiarão futuras práticas profissionais. As ações formativas deveriam, portanto, ser pensadas de modo que pudessem superar a lógica do domínio e da aplicabilidade de métodos e técnicas, passando a enfatizar a reflexão e a análise das práticas, as resoluções de problemas, a elaboração de materiais didáticos, dentre outras propostas. Como lembra Schnetzler (2000), “parece ser muito difícil, para não dizer incoerente, procurar-se formar alguém para um campo de atuação que se desconhece” (p.22). Torna-se necessário, neste contexto, que os professores universitários que atuam nos cursos de licenciatura reflitam sobre suas próprias práticas de ensino e que o modelo tradicional e/ou técnico de formação profissional, aparentemente predominante, sejam superado, de modo que não mais limite e reduza os conhecimentos em dois campos de práticas distintas e divergentes, o dos conhecimentos específicos e o dos conhecimentos pedagógicos. 104 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Célia Maria C. 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Procedimentos Os dados coletados consistirão na situação de entrevista entre a mestranda pesquisadora e o discente universitário, armazenadas em áudio. As observações manuscritas, gravações em áudio e cópias de outros materiais que darão suporte à posterior análise ficarão sob a guarda e responsabilidade dos pesquisadores com a garantia de total sigilo. Riscos e desconforto Esta pesquisa não traz nenhum risco nem desconforto aos seus participantes, na medida em que não há possibilidade de danos à qualquer dimensão do ser humano (item II.8 e II.9, da resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde), pois os procedimentos, acima descritos, asseguram a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não estigmatização dos sujeitos de pesquisa, dando a garantia a estes sujeitos, de que sua identidade será mantida em total sigilo durante todo o processo, tendo somente sua condição de aluno da Graduação e da Licenciatura do referido curso de uma Universidade Federal mencionada nos textos que divulgarão os resultados da pesquisa. Garantia de recusa Caso eu não queira participar de qualquer parte da pesquisa comunicarei aos pesquisadores do meu desejo de não participar e este será respeitado. Garantia de acesso aos resultados Os resultados da pesquisa serão explicados a mim, quando por mim solicitado. Garantia de acesso ao pesquisador Sempre que considerar necessário tirar dúvidas, recorrerei a pesquisadora Flávia Rezende por meio do endereço eletrônico [email protected] ou pelo telefone: (21) 2562 6614. Sendo assim, consinto participar da pesquisa como está explicado neste documento. ___________ , ___ / ___ / ______ _________________________________ Participante ____________________________________ Coordenadora do Projeto 113 APÊNDICES 114 APÊNDICE A – ROTEIRO DE ENTREVISTA Público Alvo: Alunos da graduação em Física, Química e Biologia (Licenciatura e Bacharelado), a partir do 7º período. Início da entrevista: breve apresentação, localizando o Nutes, o mestrado em ensino de ciências, o objetivo/ interesse em saber aspectos do curso de Física. Curso: - Qual a sua avaliação do curso de Bacharelado/ Licenciatura em [Nome do Curso] da [Nome da Universidade] quando comparado a outras universidades? Você acha que é um bom curso? - O que você acha do curso? - Como você definiria a sua experiência durante a graduação?/ Como você está vivenciando a graduação? - Como os alunos, de modo geral, avaliam o curso/ a graduação? - Quais aspectos que te fizeram gostar/ desgostar do curso?/ Quais pontos você considera positivos/ negativos?/ O que mais gosta? Por quê?/ O que menos gosta? Por quê? Disciplina: - Dessas matérias/ disciplinas que você falou que mais gostou/ menos gostou: (não) gostou do professor? Era professor ou professora?/ Por quê você achou bom/ boa ou ruim? Como eram as aulas? O que você achava do/ dos método/ métodos, material/ materiais, qual o número de alunos por turma, quais critérios de avaliação, ...? - Em geral, você acha que seus colegas também gostavam/ não gostavam do/ da professor/ professora? Da aula, da metodologia, da forma de avaliar, ...? (perguntar sobre a turma que cursava a disciplina citada pelo aluno como referência boa e/ ou ruim) - E como era o relacionamento entre o/ a professor/ professora e os alunos? E o relacionamento entre os alunos? (mencionar a dificuldade em haver TURMA nos cursos de Física, pois há muitas retenções nas disciplinas; para facilitar a conversa e abrir canal de comunicação com o entrevistado: “O índice de reprovação é alto nos cursos de Física, não? O número de formando é baixo. Deve ser difícil formar uma turma...”). Foram formados grupos, ou só ficavam juntos aqueles que já se conheciam? Como era o entrosamento dos alunos? E entre meninos e meninas, havia diferença? (abrindo margem sobre as diferenças de gênero). 115 APÊNDICE B – ENTREVISTA 1 P: Pesquisadora (mestranda entrevistadora) E1: Entrevistado (graduando entrevistado) Entrevista 1: Bacharelando em Física, sexo masculino, 6º período (mas entrou na Licenciatura em outra universidade: computa 7 períodos), 22 anos P: [apresentação da entrevistadora, dos objetivos da entrevista e do termo de consentimento] Qual é a sua opinião sobre o seu curso de graduação? Você tem alguma noção, quando comparado a outras universidades, de como ele poderia ser classificado? E1: Bom... éeee... Até então eu tenho estado satisfeito com o curso daqui. Na verdade eu não criticaria o curso daqui, do bacharelado. Mas em comparação com certos cursos daqui do Rio, eu diria que é um dos melhores. Quando eu fiz o vestibular, eu fiz pra [Nome de uma Universidade] e praqui. Cursei um semestre na [Nome de uma Universidade] e tranquei... No princípio, não sabia se queria fazer bacharelado ou licenciatura... O que acontece: na [Nome de uma Universidade] os dois cursos são juntos e aqui na [Nome da Universidade] é separado, mas pra licenciatura só tem no segundo semestre e pra bacharelado só tem no primeiro. Então eu me inscrevi pra [Nome de uma Universidade] no primeiro semestre, bacharelado, e na [Nome da Universidade] no segundo semestre, em licenciatura. Fiz um semestre na [Nome de uma Universidade] e tranquei para ver qual era a melhor... se for melhor, depois eu volto... Aí pra cá fiz um semestre na licenciatura e falei “pô... é muito melhor que a [Nome de uma Universidade]”... em termos de organização, qualidade de ensino, a infraestrutura dos laboratórios... Eu acho que a [Nome da Universidade], em relação à [Nome de uma Universidade], é muito melhor... com relação à [Nome de outra Universidade], com outras universidades daqui, a [Nome de mais uma Universidade], eu não conheço... apenas, ao meu ver, em relação à [Nome de uma Universidade]... Bom, fiz um semestre aqui no final de 2005 e em 2006 eu falei “bom, vou passar pro bacharelado”... baseado no que fiz na [Nome de uma Universidade].. Aí passei pro bacharelado...Bom, já visitei a [Nome de uma Universidade em outro Estado] e não tem comparação, é muito melhor que aqui... a infraestrutura, os laboratórios, as salas de aula.. É muito melhor, mas... depende de como você compara... Se for comparar alguma aqui no Estado do Rio de Janeiro, ela é a melhor em Física e, no Brasil, ela é uma das melhores, por causa do histórico dela: primeira faculdade do Brasil, primeira universidade federal... P: Bom... você teve uma experiência na licenciatura, mas optou pelo bacharelado... Por quê? O que você estava procurando quando optou pelo bacharelado aqui na [Nome da Universidade]? E1: Por causa da qualidade do ensino. O bacharelado ele é mais, mais... denso... A matéria é mais densa... Tem muito mais conteúdo, eles vão mais profundamente na matéria, a gente vê melhor e tal. A matéria é mais pesada, mesmo... Eu acho que é isso, porque eu quero aprender mesmo Física... No 116 curso de licenciatura tem menos matéria de Física que no bacharelado... Tanto é que quando fui fazer o pedido para passar pro bacharelado.... é.... a princípio, tem que fazer uma prova... Por quê? Para pedir transferência, tem que ver o número de pessoas que quer entrar e o número de vagas... Quando tem maior número de pessoas que número de vagas, tem que fazer uma prova para ver quem vai passar, né? ... É... parece que quando o pessoal do bacharelado quer passar para a licenciatura, tem que fazer uma provinha... Mas da licenciatura pro bacharelado... tanto é que, a princípio, eu teria que fazer um prova, mas aí chega no dia da prova, o cara falou “só tem vocês dois”, era eu e um colega meu pra passar pro bacharelado... “pra passar pro bacharelado, não precisa fazer a prova não... vocês passaram”... P: Bom... e a sua experiência com relação à graduação: como é que você definiria ela? Definir de uma forma geral... o que vem na sua cabeça com relação a ela? E1: Bom, o que vem na minha cabeça é assim, tipo... dificuldade... É difícil pra caramba, tem que se esforçar muito... É sacrifício, assim... tem que abrir mão de muita coisa: final de semana, tá sol, você quer ir a uma praia, a uma piscina... não, não pode, tem q estudar... Tem isso, mas apesar disso, eu acho q vale à pena, assim...vale muito à pena, e eu tô gostando, porque é um desafio que eu tô conseguindo superar, que acaba fazendo com que o curso fique bem... tranqüilo... A única coisa que de vez em quando me preocupa éeee... uma vez que acabe esse desafio, depois que eu me formo, aí, de vez em quando eu penso... se vou seguir carreira acadêmica, mesmo... Porque o mercado de trabalho para Física não é essas coisas... Então de vez em quando eu penso em acabar Física e fazer outra graduação em Engenharia, em fazer alguma pós-graduação em Engenharia, alguma coisa desse tipo. Para ficar alguma coisa mais fácil, financeiramente falando. Mas a princípio, eu gosto, não trocaria... P: Bom... acho que todos sabem da dificuldade que é manter uma turma no curso de Física, né? E1: Sim P: Então, quando falo sobre outros alunos, sobre a turma, quero dizer as pessoas com quem a gente acaba encontrando mais, não necessariamente quem entrou junto no vestibular... Com relação a essas pessoas, com as quais você mantém maior contato, e tal... qual é a avaliação delas em relação à graduação? A percepção delas... o que elas falam, naquele papo entre alunos... sobre o curso, sobre os professores...? E1: É... .... .... eu diria que a minha relação com as pessoas aqui do curso, só para situar que tipo de relação eu tenho aqui dentro, é... eu diria que minha relação com as pessoas da faculdade é muito mais uma relação de colega, de companheiro de trabalho do que uma relação de amizade e tal... Não sei se faz diferença eu falar, mas só para você situar... Bom... mas eu diria, e isso soa até engraçado, que eu acho que as pessoas que se dão mal... Mal, quando eu 117 quero dizer, é mal mesmo, sabe? Tem pessoas que repetem três, quatro vezes a mesma matéria, ficam assim... Então, sei lá, tem dificuldade durante o curso... Eu diria que, de modo geral, as pessoas que estão com esse tipo de dificuldade, com notar ruins e tal, são as pessoas que mais criticam a faculdade... Aí... Porque as pessoas que se dão bem, ou razoavelmente bem, não tem muitas críticas a fazer à faculdade... sabe? É difícil? É difícil, tudo bem, tem problemas, tudo bem, mas nada muito incisivo, muito agressivo, assim... “ah, essa faculdade é uma droga, é uma merda”... Eu acho que, talvez, acaba meio que caindo na... na desculpa, né?, que as pessoas tem de não assumir... Assim é mole, né? Quer dizer, a pessoa não tá conseguindo fazer a faculdade direito, não tá conseguindo acompanhar a matéria direito, fica repetindo, repetindo, ao invés dela dizer “não, sou eu que não me esforço, sou eu que, sei lá, não sou tão bom assim”, não, “a faculdade é uma merda, o professor é maluco porque”. Eu acho que acaba caindo nisso... As pessoas que conseguem com mais facilidade, não... Eu acho que é por aí... P: Você disse que saiu da [Nome de uma Universidade] e optou pela [Nome da Universidade]... Quais foram os aspectos que te fizeram gostar daqui? Aspectos até mais pessoais, sem ser esses que você falou antes, da infraestrutura... E1: Eu acho que aspecto puramente acadêmico. Eu diria organização e infraestrutura. Até porque eu moro na Barra e, pra mim, é muito mais fácil eu ir pra [Nome de uma Universidade] do que vir pra [Nome da Universidade]. [Nome de uma Universidade], sei lá.. É relativamente fácil, e [Nome da Universidade] não é fácil chegar aqui, é muito mais trabalhoso. Eu já me acostumei, mas é mais difícil vir pra cá que pra [Nome de uma Universidade]. Mas a diferença de organização é gritante, não é a toa que um pilar caiu lá... você sabe disso, né? [risos] pois é... P: Nós vamos afunilar mais um pouquinho: nós falamos da graduação, agora vamos falar da sua avaliação quanto às disciplinas. Sua avaliação em relação às matérias. Tem alguma que você gostou mais, ou gosta mais... Como era a metodologia do professor... era professor ou professora... E1: Ta...éeee... Bom, até agora a matéria que mais me chamou a atenção, a que eu mais gostei na faculdade foi Física III, que é eletromagnetismo. Eletrostática e eletromagnetismo. E... eu não saberia dizer se foi por isso, mas eu diria que foi também por isso, por causa do professor. Professor muito bom, o cara foda, assim, muito bom mesmo. Passava a matéria muito bem, explicava a matéria muito bem, super-bem, e era uma pessoa super-solícita, super-educada, assim, elegante... Como pessoa e como professor, também, foda, muito bom... E eu gostei muito da matéria, assim. Passei benzaço, passei com 9 ponto 4. Passei muito bem, eu tinha prazer em estudar a matéria, gostava, e até... até assim, né: você faz Física I, II, III e IV, são matérias básicas, assim, né? Mecânica, aí Física II tem outra coisa, e Física III tem Eletromagnetismo e tal. Aí depois você tem Eletro I, Eletro II, que é como se pegasse a Física III e você vai mais afundo, analisa a parte matemática com mais rigor, tipo... Eu tô com professora, também e tipo, não é tão boa quanto o 118 professor que tive em Física III, mas... ... eu tô gostando muito da matéria, assim. É praticamente Física III, mas a parte da matemática é outra... é mais pesada, então... eu não sei dizer se foi culpa do professor, vamos dizer assim, ou se é a matéria mesmo, que me fez gostar... P: Bom, então digamos assim, a FORMA como o professor ensinava... Se ele dava mais abertura, como era o relacionamento aluno-professor, se ele parece mais simpático; se acaba fazendo uma avaliação ou outra, dependendo do aluno... Como é que você vê esse aspecto? O modo de dar aula, se buscava material, alguma coisa alternativa para vocês... E1: Bom, a relação interpessoal dele era muito bom. Ele se dava bem com as pessoas, assim... ele não era brincalhão com as pessoas, mas era simpático, tirava dúvidas, super-solícito, super-tranqüilo. E ele usava recurso, sim, ele ia, aqui no Ladif, que é o laboratório, para a gente poder reproduzir certos experimentos, demonstrar certas coisas e tal. E ele, por algumas vezes, eu não saberia te dizer quantas, três ou quatro vezes, ele levou a gente pro Ladif, falou “ó... semana que vem, aula que vem, não sei o que... a gente se encontra em tal lugar”. A gente ia pro Ladif aí depois que a gente já tinha estudado anteriormente a parte teórica, então, tipo assim, se fizer isso, vai acontecer isso... Aí sabia os cálculos e tal. Vamos fazer o experimento. Se fizer isso, vai acontecer o que? Ah, tal e tal coisa, aí a gente demonstrava lá no laboratório... Eu acho que a gente tinha o suporte experimental: a gente aprendia a parte teórica em sala, a fazer as contas, não sei o que, e depois a gente ia para a parte experimental, pra mostrar que aquilo que a gente aprendia era verdade, que tipo assim, não era só números, letrinhas... P: Alguma coisa que te chamou a atenção, assim: “se eu quiser dar aula, isso aqui eu achei legal...” De repente você buscou saber sobre metodologia, para dar aula, algum material que você achou legal... E1: Ah, não sei, assim, acho que sou meio retrógrado com esse tipo de coisa, assim... Tipo, escrever direito no quadro, usar o laboratório, buscar apoio nos livros bons. Mas acho que a coisa mais importante é o livro, o cara no quadro explicando porque, tipo... quando eu tava na licenciatura aqui, eu tive uma professora que ela usava recursos, que chamo de multimídia, Power Point ela usava, e uma ou duas vezes ela trazia alguma coisa pra sala de aula. E tive um professor que sempre usava multimídia. Ele começava, mostrava o Power Point, usava data show, para mostrar Ótica, outras coisas, e chegava até a Física Quântica. Na parte da Ótica ficava bom, tinha o que demonstrar... na outra, ao invés de usar outros recursos... não, era chato, maçante... Acho que o outro não, ele sabia muito, explicava bem. P: Os outros alunos que cursaram essas disciplinas... Você acha que eles têm a mesma opinião que você? E1: Não, Física III... Física IV acho todo mundo achava um saco, assim, tipo “ai, que saco, tem que ir pra aula”... Ou achava chato porque ele só 119 demonstrava uma vez a parte teórica, ia pro auditório, mas não tinha algo mais pra dizer... E Física III eu acho que as pessoas também... Tinha gente que gostava... Eu acho que é aquela coisa também: tinha os mais interessados que gostavam, mas o pessoal que achava difícil não gostava, assim... As aulas também eram no Ladif, assim, no prédio do CT e eu acho que algumas pessoas ficavam com preguiça de se deslocar... mas acho que, uma vez que a gente chegava lá no Ladif e tal, que conseguia ver algumas coisas maneiras, eu acho que as pessoas tipo que assimilavam um pouco, tipo “pô, bacana...” Mas acho que, a princípio, elas ficavam meio... P: E qual seria sua opinião, no geral, com coisas do tipo relacionamento professor-aluno, aluno-aluno, avaliação ... Você avaliou super-bem o curso daqui; você acha que isso é algo da [Nome da Universidade] como um todo? E1: Bom, eu acho que o ser humano é o ser humano... acho que independente da área, em todas as graduações, acho que você vai ter... eu ACHO, né? [P: É, a SUA impressão] eu acho que você vai ter mais ou menos a mesma coisa, assim: aqueles alunos que têm mais dificuldade vão criticar mais a faculdade, os que se dão bem, assim, não vão ter muitas críticas, vão ter críticas, mas não vão ser tão incisivos... os professores a mesma coisa, acho que alguns são solícitos, outros não, acho que mais ou menos a mesma coisa... agora... você está falando de modo geral... P: E quanto à avaliação? O que você acha? Você mudaria alguma coisa, em alguma matéria específica? Ou qual é a sua impressão geral? E1: Bom, aqui na Física tem, mais ou menos, um sistema padrão, que é duas provas... [Para o bacharelado?] É, mas acho que para a licenciatura também... O sistema é assim: você tem duas provas, se a média entre as duas provas for 7, você passa direto; se não, se for abaixo de 3, você esta reprovado; se for entre 3 e 7, você tem que fazer uma terceira prova e se a média destas duas primeiras e da terceira, se for 5, você está aprovado, se for abaixo de cinco, reprovado. E normalmente os professores seguem este sistema, mas tem professores que não... assim... tem uns que inventam um sistema... Inventa assim: eu tive Física II e o professor seguiu este sistema, ele deu três provas porque encaixava melhor no programa. Porque Física II tem hidrostática, hidrodinâmica e a última parte, termodinâmica. Então, quer dizer, você tem, mais ou menos, três matérias. Então, tipo, seria mais lógico você dar três provas, né? E, média 7, e a prova final... Então acho que, quando a avaliação varia, depende do programa que o professor vai seguir... [Mas você está satisfeito?] É, não tenho muitas críticas a fazer, eu acho que, de um modo geral, acontece o que eles falaram no começo do curso... Não é algo, assim, que você está jogando e, no meio do jogo, mudam-se as regras, sabe? Eles definem: “é assim, vai ser assim” e ponto. [A maioria tem o sistema de provas?] É, todo mundo faz provas. A questão é qual o número de provas e como vai ser a média... Eu tenho uma professora de Lab I, Laboratório Avançado I, que ela falou: “olha, vocês têm duas opções: ou a gente faz duas provas, média 7, e prova final, média 5”, esse que tô te falando, “ou a gente faz duas provas, média 5”. As pessoas optaram por duas provas, média 5, porque aí se livra logo da matéria... 120 P: Bom, nós aprofundamos, falamos do curso, da disciplina e vamos aprofundar mais a relação professor-aluno: como você definiria a relação entre professores e graduandos? E1: Bom, eu até hoje nunca peguei assim uma relação professor-aluno que extrapolasse a área acadêmica. Até onde eu vi, o relacionamento é professoraluno e ponto. Agora tem uns professores que é professor-aluno em sala e fora, com outras coisas, e tem professor que encontra dentro de sala e fora de sala... Mas os professores são, assim, preocupados em conversar, em explicar, em ajudar os alunos na matéria, acho que só... A classe docente só reproduz o dia-a-dia. Tem pessoas que são mais simpáticas, mais educadas, outras que vão fazer só o trabalho dele. [Então a relação é mais restrita à sala?] Bom, o que acontece é que o professor dá... o aluno tem toda liberdade para perguntar e, assim, normalmente em sala de aula, eles falam assim “ó, gente, em caso de dúvida, me procura na minha sala, minha sala é tal, tal, vocês podem passar lá”. A questão é que, alguns professores, se você for procurar na sala, eles realmente vão tá lá. Outros professores, você não vai encontrar em sala, ou então, se você bater na sala dele, ele vai falar “poxa, não tem como você vir mais tarde?”, entendeu? Todos eles, a princípio, mostram assim, em sala de aula você pode perguntar, eu acho natural, e se tiver alguma dúvida, pode passar na minha sala, mas a questão é se você vai encontrar, se ele vai te responder ou não. Porque também você pergunta alguma coisa pra ele e ele te enrola, porque ele mesmo não sabe a resposta, sei lá... tipo, por vaidade, eles não dizem “ó, não sei, foi mal”, entendeu? P: Bom, se você tiver mais alguma coisa a falar, sobre a sua graduação, alguma consideração sobre disciplinas, o curso, sinta-se à vontade... E1: Bom, agora, basicamente, minha vida se resume a faculdade e a minha namorada, assim, eu acho que muitas vezes mais a faculdade que a namorada, assim... Tô fazendo várias matérias, acabei o ciclo básico já, do Bacharelado, puxando opcional, e tô fazendo iniciação científica aqui no laboratório... e não tenho um sistema agora, eu acho que é algo que dê algum artigo ou coisa assim, e daí continuar com alguma coisa que eu já tô fazendo lá pro mestrado... continuar lá, e tal... P: Então você quer seguir carreira acadêmica? E1: É, a princípio, eu acho que sim... A única coisa que me desmotiva a seguir a carreira acadêmica é a parte financeira, né? Porque a bolsa que você recebe quando faz pós-graduação não são muito boas, né? Isso desanima um pouquinho. Talvez se eu fizesse alguma outra coisa, eu ganhasse mais, assim... Mas, se eu pudesse... se eu ganhasse... Esquecendo o lado financeiro, eu seguiria a carreira acadêmica. Tenho certeza que seria assim, fazer mestrado, depois doutorado, mas o que me desmotiva é o lado financeiro. P: Onde você está trabalhando por aqui? 121 E1: É no Laboratório de Baixas Temperaturas e a idéia da gente é... a gente acabou de montar um sistema pra medir calor específico de um material, e a idéia é que a gente consiga fazer a medição de calor específico de materiais nano, assim, muito pequenos. Tem uma área que é nanoestrutura, nanociência, nanotecnologia, e... nessa área, quando a gente produz material, amostra e tal, produz em pequenas quantidades. Para medir calor específico, precisa de algo relativamente grande, então fica complicado você fazer a medida disso. Então a gente tá tentando montar um sistema pra que a gente consiga medir o calor específico de amostras bem pequenas e tal... é isso que a gente tá fazendo. E a idéia é que depois que a gente consiga fazer o conhecimento geral do material ou da partícula, e aplicar isso na clínica médica... é o primeiro passo de alguns. P: É, mas você pode se colocar, pode colocar algo mais, da sua experiência própria, algo mais específico... que tenha visto... E1: Eu acho que se você analisar o curso de Física como um todo e os outros cursos, a comparação é feita geralmente com Engenharia, né? É a área mais que tem mais a ver, exata...se você for comparar... isso eu acho bem diferente: se você for comparar o curso, o aluno... um aluno mediano... Se for comparar a postura de um aluno mediano de Física com um da Engenharia, eu acho que... um aluno de Física ele é muito mais sério, muito mais dedicado, concentrado, sabe? Eu acho que nesse ponto, por causa de mercado de trabalho, por causa das dificuldades das matérias, eu acho que essa diferença existe sim. Eu acho que de forma geral, essa diferença não deve ser tanta, da relação aluno-aluno, relação professor-aluno, relação professor-professor... acho que nisso não deve ter muita diferença. Eu acho que a postura do aluno de Física e a postura do aluno de Engenharia, de modo geral, eu acho que tem uma diferença grande. Eu acho o aluno muito mais concentrado, muito mais esforçado, se concentra mais em estudar que o de Engenharia... ele sabe que quando se formar vai ter um trabalho mais ou menos certinho... Até porque acho que na Engenharia se estuda muita coisa que na prática dele, no dia-a-dia dele, ele não vai usar. Então eu acho que acaba refletindo na atitude na faculdade, pra que aprender na faculdade se não vai usar? Já na Física não, você aprende um monte de coisinha, tudo que se liga... P: E no bacharelado, nessas matérias todas, vocês tem alguma da área de humanas? E1: No bacharelado não, só Física, mesmo, Física hard... Física, matemática... matérias básicas... P: História, nada da humanas? E1: Não, mas eu vejo assim, o pessoal reclama dessas matérias, aí, o pessoal da licenciatura... acha chato, assim... tem muitas matérias que eles julgam inúteis, assim... entendeu? É mais porque tem que ter no currículo, mas que realmente não tem muito valor e tal... Isso pro pessoal de licenciatura, né?, 122 porque imagina como o pessoal de Física vê isso, né? Pô... só Física hard... sei lá... P: Mas o pessoal que reclama, reclama de uma forma geral ou é algo específico, de uma matéria, de um professor? E1: Não, é de forma geral, são as matérias mesmo, que acha a matéria inútil, que não aprende muita coisa e tal... Eu particularmente, acho que de fato, tem certas matérias que tem que ser feitas, porque... pelo currículo mesmo, eu acho que tem que ter no currículo... mas acho que certas matérias são inúteis, não tem porquê. Eu acho que tem outras matérias que eu acho que são relevantes, tipo História da Ciência, ou... sei lá, Filosofia, talvez... Eu não acho que seriam matérias necessárias ao curso de Física, mas matérias que seriam interessantes pra se fazer, assim... É, eu acho que é isso... Mas se você perguntar “por que você não faz?”... É porque eu não vou ter saco pra fazer, eu tô muito mais preocupado com as matérias que eu tenho que fazer, mas se eu tivesse tempo hábil, assim, eu iria fazer essa matéria, História da Ciência, eu acho bacana... Quando eu estava na licenciatura, fiz um tempo de iniciação científica no [Nome do Local]... Lá é um museu, mas tem muita coisa voltada pra essa área de divulgação, então tem muita coisa de História da Ciência... E eu acho que é importante sim, mas não é necessário... P: E você, quando esteve lá, fez o que? Foi iniciação em que? E1: Eles fazem pesquisa na área de Educação... [P: Mas você não gostou?... É a sua opinião...] Ah, eu diria que nessa pesquisa que eu trabalhei, especificamente... Bom se eu soubesse, não teria falado o nome, mas já foi gravado [P: Mas isso, então, será retirado, pois é um princípio ético...]... Então tá, vou dizer que essa INSTITUIÇÃO, acho que tem muita gente lá, que trabalha na área, não sei o que, que faz pesquisa na área de Educação, mas... no “vamos ver” mesmo, eles estão lá só pra ganhar o salário deles, no final do mês, pra ganhar dinheiro. Tem que fazer pesquisa... mas eu não vejo... ... eu não reconheço... A minha namorada, por exemplo, ela faz, tá fazendo mestrado na área de Educação, e ela entende muito bem de Educação... [P: E qual foi a graduação dela?] Ela fez História... e tá fazendo mestrado agora na [Nome de uma Universidade] em Educação. E... ela, assim, defende a área, né? Eu respeito, e tal, mas acho que... Eu não vejo muita relevância, assim... Eu acho que é importante e tal, mas acho que não é essencial, sabe?, assim... Como vou dizer? Eu sou meio nacionalista, acho que tudo tem que ser pro país, assim, em prol da nação... Tipo: o que é importante? Ah, é importante Engenharia, Física, Matemática... deixa eu ver... é importante Administração, Economia... Educação...tipo, não e muito... Tipo, Educação sim, claro que é importante, principal, se não você não tem nada disso: tem que garantir Ensino Fundamental, Ensino Médio, mas pesquisa na área de Educação (foi nisso que eu pensei)... isso eu não vejo muita relevância, assim... Talvez até seja a minha ignorância, falta de conhecimento [P: Você acha que tem algo com a sua experiência?] Talvez eu tenha ficado meio traumatizado, não sei, mas... mas... eu não sei que fim que leva a pesquisa... Vamos lá: você tá fazendo agora um mestrado em Educação e faz essa pesquisa. Faz essa pesquisa e chega lá às suas conclusões. E aí? O que é feito com essas suas conclusões? Eu não sei, 123 eu não sei, entendeu? E aí, o que isso pode mudar? Isso pode mudar alguma coisa de fato? Na Educação mesmo, assim, quer dizer, vai mudar alguma coisa no colégio, no Ensino Fundamental, no Ensino Médio? Eu não sei, eu não... eu posso estar redondamente enganado, mas eu não vejo muito isso. Eu acho que fazem as pesquisas na área de Educação, fazem esse tipo de coisa e fica naquilo, não sai daquilo. Faz pesquisa em educação, que vira artigo, que vira pesquisa em educação, que vira artigo [o entrevistado gesticulou, desenhando um círculo com o dedo indicador direito, sobre a mesa] e não sai daquilo. Não sei, sai daqui, “então tá bom... então pesquisou, é assim, vamos fazer tal coisa baseado, vamos alterar o modelo de ensino do país baseado nas pesquisas”. Eu acho que também tem muito o lado... tem uma tendência muito grande na pesquisa em educação pro lado... ... esquerdista... vamos dizer assim... dizer que o aluno é sempre bonzinho, que falta incentivo, que falta estímulo, mas eu não sei, eu não... sou partidário... Eu vi um filme, que era o “Pro dia nascer feliz”... nem era um filme, era um documentário, na verdade, que falava sobre Educação no país, aí pegava vários modelos, tipos de colégio... pegava um colégio de zona rural, pegava um colégio ricão, o colégio mais caro de São Paulo, assim, pra entrevistar os alunos, as pessoas... Eu acho que a abordagem que é feita na área de Educação, com relação às pesquisas, aos preceitos, essas premissas principais da área da Educação, eu acho que está muito distante da realidade. Por exemplo, NESSE lugar que eu falei, eu trabalhei num departamento da área de Educação, e tinha muita gente que fazia pesquisa na área de Educação... Agora dali, eu acho que uma deu aula, de fato. O resto, que dizer, fez graduação, aí entrou pro mestrado, foi fazendo mestrado, doutorado e aí, entendeu? Então tem artigo, publicações, pesquisa, na área de Educação, mas tipo, o cara nunca vivenciou. Eu acho que muitas vezes a... a... forma, a maneira de se estudar, de abordar a área de Educação tá defasada, tá longe da realidade. Pensando um pouco, voltando agora um pouco pra Física, você... A Física é dividida em subáreas, tem a Experimental e a Teórica. A Física Experimental é aquela que você vai pro laboratório, faz as experiências lá e vê se funciona. Física Teórica é cálculo, é ver se um programa funciona... só que uma coisa depende da outra, quer dizer, se você quer ser teórico numa coisa, você tem que saber a experimental pra saber se aquele modelo teórico vai funcionar. Se der certo, então “ah, o modelo teórico está certo”, se não der certo, então esquece esse modelo teórico, ele tá errado, tá? E uma coisa tá sempre associada à outra. Eu acho que na Educação isso não acontece. Eu acho que quando você fala em pesquisas na área de Educação, você fala de coisas teóricas, de artigos, enfim, mas que esqueceu um pouco a parte prática, assim, a parte do dia-a-dia do professor, o lado do professor que tem medo do aluno, que sabe que aluno pode dar um tiro no professor ou, sei lá, um absurdo total que é o colégio que não pode reprovar o aluno. O aluno tem que passar porque se não o professor vai ser chamado na direção, sabe? Isso acontece, isso acontece todo dia, assim, professor não pode reprovar aluno, porque se não você... você é rechaçado, você vai falar com o diretor do colégio... aí acaba passando quem não sabe porra nenhuma e é isso aí. Aí quer dizer, aí o pessoal da Educação estuda o “ah, não, é porque falta estímulo pro aluno”... E não sei se é bem assim, sabe? Tem colégio aí bom e o aluno não tá nem aí, assim, sei lá... Mas eu sou ignorante na área, não sei assim. Eu falo a visão que eu tenho, mas eu assumo que a visão que eu 124 tenho é muito... eu não faço parte da área, eu não sei, eu não sei... é “eu acho”... é isso! P: Não, está ótimo! É realmente a sua opinião o que interessa... E1: Sei lá, eu posso tá falando um monte de bobeira, assim, mas é só o que eu vejo, mas o que eu vejo é uma visão míope, de quem não é da área... é isso?... 125 APÊNDICE C – ENTREVISTA 2 P: Pesquisadora (mestranda entrevistadora) E2: Entrevistada (graduanda entrevistada) Entrevista 2: Licenciatura em Física, sexo feminino, 7º período (mas entrou antes no Bacharelado: computa 11 períodos), 24 anos P: [apresentação pessoal, apresentação do projeto de pesquisa de mestrado] Para começarmos, qual seria a sua avaliação sobre o seu curso de graduação? Não é um juízo de valor, tenha certeza do anonimato, é para perceber qual é a dinâmica da graduação... E2: Acho bem interessante... Gosto muito do curso daqui da [Nome da Universidade], tem algumas dificuldades por conta de localização, mas nada tão ruim, assim, porque dá pra fazer... Só algumas matérias que são mais complicadas, mas a gente vem pra cá pra sala de estudos... Fica ruim quando não tem muito horário para vir pra cá, como agora, para poder encontrar contigo: só posso vir sexta, nos outros dias ou dou aula ou estou na aula. Toma muito tempo, mas no geral, gosto do curso, sim... Só acho que tem matérias com muito conteúdo e pouco tempo, às vezes... acho que em relação aos professores, muitos são bons, alguns sabem explicar bem, mas como muitos não tem licenciatura, não tem didática, mesmo, pra explicar, e eles querem que a gente acabe decorando... mas é bom porque temos muitos especialistas, mas com visão de educação, às vezes, nula, o que pode complicar. É interessante por um ponto, porque ele é especialista, ele sabe demais, mas por outro lado, ele vai dar uma informação que não preciso, porque não é o que preciso para ser professora. Então decora pra prova, sai e não aprende... [ainda existe isso de decorar na faculdade?] Ainda tem, ainda tem... mas ainda acho o nível das disciplinas, dos professores, muito melhor que em outras faculdades, pelo que ouço e pelo que vejo nos estágios, pelo que me falam nos estágios, até os orientadores... Mas chega a ter aquela questão: alguns pontos são específicos que nem sei se valeria ver agora, na graduação, se já seria algo de pós-graduação, de especialização... seria algo como adiantar um mestrado, às vezes... P: Mas isso é do professor, como ele resolve conduzir a matéria, ou...? E2: Não, isso é da estrutura, mesmo, da estrutura do curso, muito voltado ainda pra isso, memorização, decoreba, muita folha de exercícios, listagem de exercícios, e algumas matérias ficam de lado... mais de lado, até porque não dá tempo de estudar tudo, então tem coisa que a gente não faz, não procura em outra unidade porque não dá tempo de ler e estudar tudo direito. Se não, a gente faz matéria aqui, corre o risco de repetir porque puxou matéria em outro lugar, em outro curso, pra se aprofundar em alguma coisa... P: E os seus amigos, o pessoal que faz matéria contigo, o que acham? 126 E2: Acho que o pessoal gosta de criticar, tá no sangue do aluno gostar de criticar... mas o curso, assim, tem muita coisa boa e coisa ruim... por exemplo, as matéria que estou fazendo agora à noite, e fico todo o horário de sexta numa matéria só, da Educação... eu não sei onde vou usar isso, eu gosto das matérias da humanas, mas não sei porque as matérias da Educação falam tanta coisa que... muitos amigos acham o mesmo... não vamos usar, não entendemos porque... P: Mas os professores não delimitam o que dão, não contextualizam? E2: [...] A maioria das vezes eles avisam como será o curso, mas não sei... eles não entendem nada da Física, de dar aula de Física... não vejo nenhuma relação... [a aula de hoje é de que?] De Sociologia... [mostra o papel da ementa: Durkheim]... Esse, depois os outros... só ouvi falar do Marx [Ementa constava: Durkheim, Weber e Marx]. É interessante, mas só ouvir o que ele falou, só ler ele... não tem nada a ver com meu trabalho, nem com o dos meus amigos, nem com as aulas daqui... [risos] Deve ser porque eles tem q dar esses autores... P: E aqui na Física, você tem alguma disciplina da grade que seja de ensino em Física? Ou algum professor contextualiza o conteúdo da matéria teórica, como ensinar na escola...? E2: Não... só instrumentação para ensino... Acho que só essa... P: E a relação professor-aluno? E2: Tive uma professora que era legal, que se aproximava, mas os próprios professores brincavam, porque ela ajudava a gente, até em trabalhos, e eles diziam “Tal professora? Ela é mãe, né?”. Ela era professora do Bacharelado, da Astronomia [esteve engajada em laboratório no curso anterior]... Os professores criticavam o fato dela tentar ajudar, porque eles diziam “ah, eles vão ser nossos concorrentes no futuro”... “tem que exigir deles do mesmo jeito que foi exigido da gente...” E eu acho que não é bem por aí, acho que tem que dar condições pro aluno experimentar e andar com seus próprios pés, dar seus próprios passos... Pra isso, precisa de um empurrãozinho, de orientação, porque às vezes a pessoa tá ali achando que tá abafando, arrasando, e não tá... Mas aqui, na Licenciatura, tem mais professores que dão esse empurrãozinho, mas é um ou outro, não são todos, não... os professores ainda acham que o aluno é meio... não é inimigo... concorrente... Às vezes, quando eles vêem que o aluno é muito bom, dá uma brecada, porque as vezes acham que pode ser um concorrente deles no futuro... Acho que alguns professores pensam assim, não são todos... [mas são todos os professores ou aqueles mais voltados pra área de pesquisa?] De pesquisa, de pesquisa... que o aluno pode passar a perna, essas coisas todas... Quando eu fazia astronomia eu fazia pesquisa e sei como é acirrada essa competição. É aquela correria pra ver se você vai publicar mais rápido que alguém, muitas vezes teu orientador exige mais de você, aí tem que acabar esquecendo um pouquinho a graduação 127 pra poder fazer seu trabalho de iniciação, então é uma correria... é uma coisa complicada.... P: E a avaliação, como...? E2: Daqui, da Física? [É, do curso como um todo] Aqui, é prova, basicamente, tem também muito relatório, mas das matérias da Educação tem muita apresentação de trabalho, de seminário... Essa de Psicologia, sobre o cara que você conhece [referindo-se a Vigotski], será um seminário com esse texto [mostra o texto sobre a mesa]... mas acho que tem muita coisa pra gente ler sobre a mesma pessoa! Ou melhor, sobre as mesmas pessoas [mostra outro cronograma de disciplina da área pedagógica, composta basicamente por Vigotski, Piaget e um terceiro autor]. É até legal, só não entendo porque tenho q estudar isso, não vou trabalhar com criança, mas os professores dão o cronograma e seguem, sei lá... P: As disciplinas da pedagogia vocês fazem aqui? E2: Aqui no Instituto de Física... Tem na [Outra localidade], mas ele vem pra cá, como hoje [sexta feira], aí dão todos os tempos de aula da semana num dia, os 4 tempos num dia, seguidos. Só não entendo as matérias, acho que tem muita coisa boba pra gente ler... Por exemplo, já li Paulo Freire, ele acho importante pra gente que vai dar aula, lidar com aluno mais velho, dá boas ideias de aula, mas esse cara [Vigotski] ele é psicólogo e fala de criança, não entendo mesmo... Acho que aquela parte de movimentos da escola, de tipos de pedagogia, que temos em Didática [refere-se à disciplina Didática Geral] é muito mais importante, deveria ser matéria dada em mais de um período, mas estas outras, Sociologia, Filosofia, Psicologia... a parte de legislação é importante basicamente pra concurso [risos], muito chato, mesmo... Acho que é por isso que a gente não gosta, que as pessoas aqui acabam não gostando, não estudando direito, nem tendo muita paciência com a matéria ou com o professor, porque não tem nada a ver, a gente deixa de estudar outras coisas pra ler isso... eu até gosto, mas seria algo pra ler depois que terminasse a faculdade, ou quando não tivesse que estudar tanto... acho que os professores não sabem bem o que dão pra gente, não fazem idéia do nosso curso, dão o que tá na grade, o que mandam eles darem e só... [e os professores que vocês têm da Pedagogia são titulares ou substitutos, saberia dizer?] Todos os que vem dar aula aqui, pra gente, na Física... quer dizer, todos os que EU peguei aqui, foram substitutos... Então acho que eles dão o que é mandado, de repente nem eles sabem pra que precisa falar daqueles autores, sei lá... mas uma coisa comum é a gente levar essas matérias... eu mesma que gosto, já lia sobre isso quando fazia bacharelado, assistia algumas aulas como ouvinte de filosofia [refere-se a matérias da pós-graduação oferecidas pelo Instituto de Química, sobre Filosofia da Ciência] não entendo o porque de muita coisa que é escolhida pra gente estudar... ... na Didática Especial, não, na parte da escola, mesmo, tenho coisas da Física mesmo, sobre como dar aula de Física, o que posso fazer, leio pesquisas do pessoal que é da Física e que dá aula, aí é muito bom... tenho amigos que reclamam, mas acho muito bom, mesmo... P: E a relação aluno-aluno? 128 E2: Bom... não dá pra ser assim... por exemplo, tá todo mundo aqui, estudando, é uma coisa mais desse tipo... o pessoal forma grupos de estudo, pelo menos agora, mais pro final do curso, posso dizer que é assim, q a amizade tá mais em sentar pra estudar, pra ir embora junto, pegar carona... É uma coisa meio que só na faculdade, não dá muito tempo pra sair, se encontrar fora, e aí estudar o que precisa, sabe? Eu, por exemplo, descanso no final de semana, sexta não fico até mais tarde. Nem dá, né? Estudo no [Local onde se situa o Instituto] [risos] mas assim... é neste nível... [e organização dos alunos, tipo CA, ...?] Muito pouca... não sei, nem sei dizer, mas normalmente... o que o pessoal fala, né? Quem não quer estudar fica nessas áreas... assim, entendo que o pessoal acaba tendo dificuldade, porque o tempo que poderia estar estudando, tá resolvendo outras coisas. Se você reparar aqui na Física, não tem quase gente no corredor, conversando, ou em outros lugares. O pessoal ou tá aqui [sala de estudos], ou nos laboratórios, ou nas salas de aula, em grupo ou sozinho, estudando... P: E agora, como você diria que está o andamento da graduação? Como você definiria sua experiência acadêmica, sua vivência durante a graduação? E2: É sempre complicado... quando você entra, você acha que vai ter vida lá fora... Aqui na Física... Se você diz que não tem tempo, ouve coisas como “o que você faz de meia noite às 5h?” “durmo...” “então, pode esquecer”... O grau de dificuldade dos exercícios que alguns professores passam aqui, você às vezes fica um dia inteiro pra resolver uma folha de exercícios que tem 10 exercícios... Às vezes sobra pouco tempo até para fazer o que você gosta... mas às vezes você tem que escolher: “ou é a faculdade ou...”... e as pessoas aqui acabam reclamando muito disso, porque você acaba tão focado dentro da faculdade que você não faz outra coisa... Muita gente pensa “quando terminar a faculdade, eu volto a fazer isso”... “quando terminar a faculdade, eu vou fazer aquilo”... e o ideal seria fazer junto, mas você não tem muito tempo. Eu gosto muito de ler, por exemplo, mas agora só livro técnico, ou estudar... Gostava de esporte, mas... a única coisa que ainda faço é origami, quando estou muito estressada, faço meu origami e “agora posso voltar a estudar...” P: O seu horário é tarde e noite... E2: É, não é tarde tarde, é 1:30h da tarde e a última aula acaba 9:50h da noite... você chega em casa, ainda vai estudar, ainda vai fazer alguma coisa... e muitas pessoas ainda chegam e, no dia seguinte, vai trabalhar... tem gente aqui que trabalha. Eu faço estágio: terça e quinta no Pedro II às 7:30h da manhã, segunda e quarta saio da faculdade 9:50h. Então chego da faculdade morta, ainda vou procurar alguma coisa pra ler?... não dá, aí desisto, cansada assim... [com uma carga horária assim, deve ter muita repetência...] Sim, é muita disciplina, dificilmente você encontra uma pessoa que não tenha repetido matéria na faculdade... Às vezes a pessoa vai passando aos trancos e barrancos, como a gente fala na gíria... Mas, assim, passar direto, poucas pessoas conseguem, assim, bolsa, em alguns órgãos, porque eles querem CR [Coeficiente de Rendimento, média acadêmica de notas] acima de 7, de 7,5... e é complicado ter CR acima de 7,5... Tem pessoas, não vou dizer que não tem, 129 porque tem, mas é bem difícil. Muitas vezes a pessoa trabalha, muitas vezes precisa fazer a iniciação pra projeto de fim de curso, precisa fazer alguma coisa, mas fica sem bolsa. Você tem que ir pra faculdade, tem que estudar, para fazer a iniciação científica, você tem que se desdobrar... eu acho que pra fazer a faculdade, você tem que se desdobrar... P: E quanto ao número de pessoas que faz a licenciatura em Física, que se forma? Porque, pelo que você tá falando, é muito complicado... E2: É, muita gente abandona, vai largando pelo meio do caminho, ou por dificuldades, ou porque precisa ver uma, duas vezes a mesma matéria, fala “isso não é pra mim”, e pessoas que você fala “poxa, esse daí seria um ótimo professor, uma ótima professora”, mas a pessoa tem que escolher, né? Ou porque tá tomando muito tempo, tem família, larga mesmo de mão... Mas formatura, se não me engano... entra 80 pessoas por ano... deve se formar umas 10 por ano, por aí... Então fica muita gente pelo meio do caminho... que faz, aí vai repetindo, tranca, não aparece de novo... é bem complicado... Você pode ver aqui pela sala de estudos [onde foi realizada a entrevista] Tá no começo do período e tem bastante gente estudando... não tem nem um mês de aula... aí a gente vê que o pessoal acaba desistindo, assim... Casa, tem filho, ou não vê grande razão pra se esforçar, se dedicar tanto... tipo, para fazer concurso e ser professor? Ganhar salário de professor depois de ter estudado tanto? ... ... fora que pras mulheres é mais difícil... P: Como assim? E2: Por ex, ainda hoje, você vê, aqui tem muita mulher... [é, tem bastante meninas...] sim... Mas isso aqui, na faculdade... Quando você vai pras escolas, você vê muito mais professor homem... é meio que selecionado, sabe? Parece que, ainda hoje, é um mercado selecionado... Então conheço muitas meninas formadas que não trabalham mais, porque não são chamadas pros melhores lugares pra dar aula, ou porque não ganham a mesma coisa, não ganham o mesmo número de turmas... Isso desmotiva... Mas tive uma professora de Didática que motivou, que deu esperanças [risos], de ver que posso ser professora assim... mas tem aquelas pessoas que dão aula e parecem que estão mortas, dormindo, sei lá... P: Então, pra você, o professor instiga mais que o conteúdo da disciplina? [...] Porque, por exemplo, tem gente que gosta mais do conteúdo, outros do professor... E2: Com certeza! Com certeza, se o professor não for bom, dificulta o aprendizado... [o professor, então, facilitaria como...] motivaria... Facilita o aprendizado, professor que tem mais... dinâmica... P: E o que você considera positivo, o que te fez gostar mais do curso? [...] [...] Ou faz o inverso, os pontos que você considera negativo no curso... Você já citou alguns... 130 E2: Um ponto positivo acho que é a especialização dos professores... Acho que positivo e negativo, porque eles não conseguem limitar, ver o que é importante pra quem não é da área, quem não é especialista, mas ao mesmo tempo, naquilo que você gosta e quer seguir, ter um bom especialista pra você procurar, perguntar... isso é muito bom! A aula prática também é boa, é teoria e prática junto... P: E como eram os professores dessas disciplinas? E2: Olha, aqui... bem tradicionais, mesmo. Tradicionais em tudo, como a gente estuda em Didática: professor fala, dá matéria pra prova, cobra lista de exercícios, cobra relatórios... eles são fáceis da gente achar, porque vivem nos laboratórios, mas tem que estar num momento bom pra gente perguntar.. eles tiram dúvidas, mas tem muito pesquisador, então o pessoal parece que se fecha mais. [mesmo na licenciatura?] Mesmo na licenciatura, os professores, alguns, são mais abertos, mais simpáticos, mas a maioria não tem muito... tempo, sei lá, acho que é mais dar aula e pronto... Mas eu gosto do curso, de um modo geral, sempre tem alguém que salva, que motiva, que ajuda... tem gente que é até gente boa, mas... não dá uma boa aula... 131 APÊNDICE D – ENTREVISTA 3 P: Pesquisadora (mestranda entrevistadora) E3: Entrevistado (graduando entrevistado) Entrevista 3: Bacharelado em Química, sexo masculino, 7º período (mas veio de outro curso, Engenharia Química, onde cursou outros 7 períodos), 24 anos. P: [apresentação, esclarecimento sobre a pesquisa e sobre perguntas relativas aos aspectos metodológicos, pois o entrevistando perguntou quantos alunos de cada curso seriam entrevistados e se a pesquisa seria um estudo piloto quando dito que seria um aluno do Bacharelado e um da Licenciatura] Como você avalia seu curso de graduação? E5: Eu reparo muito aqui na... porque como eu vim de 2 cursos, eu reparo muito coisas assim... uma coisa que reparei, muito interessante, por exemplo, é que uma visão que um tem, não é a do outro [o que? de curso, coisas assim?] É, de curso. Por exemplo, eu vim da Engenharia Química, vim pra cá pra Química, porque vi que gostava mais da química, e achei o curso de química lá fraco... aí resolvi trocar. [você achou fraca a Engenharia Química?] Não achei fraca, achei com pouca Química... Achei muitas poucas matérias, muita pouca disciplina. [como assim?] Eles pegam mais a parte de processo no ciclo profissional, e coloca muito a parte econômica... Por exemplo, você tem várias matérias lá, algumas eletivas que fiz, Marketing, Comércio Exterior, coisas assim... São disciplinas boas, mas eu sou muito focado em Química, mesmo, aí resolvi trocar, vir pra cá pro Instituto de Química. Mas, por exemplo, eu vejo muito pouca ... muito no sentido contrário. O curso daqui não é focalizado, é um curso mais amplo, que você tem uma visão geral de tudo... por exemplo, da indústria, você pode chegar lá e você pode... você já pode se especializar pra quando for trabalhar, coisa assim... um problema do curso é que você não consegue, por exemplo... você se forma, mas a expectativa de emprego aqui no Rio de Janeiro é muito pequena na área de química. Aí, por exemplo, você ser forma muitas vezes.. por exemplo, jáaaa... alguns amigos já sabem, você não passa no exame final, que é o mercado de trabalho. Você bate na porta, fica algum tempo sem trabalhar, ou você faz mestrado... O pessoal faz muito isso, também, algumas vezes porque não consegue emprego, alguma coisa assim, ou tenta, por exemplo, ir pra escola de química, um curso como Engenharia Química, algo assim, com aquela visão que lá tem emprego porque... Químico tem uma visão, é... normalmente a visão do químico é que engenheiro químico rouba emprego de químico... Só que eu acho que não é bem assim, porque o engenheiro químico tem outros focos. Então o que acontece? Quando você chega lá na frente, você fica desmotivado... Pelo menos o pessoal que eu conheço, tô vendo muita gente até... assim, chega na metade do curso, tenta trocar de curso, algo assim... porque visa muito mercado de trabalho. E aqui no Rio de Janeiro, em termos de indústrias químicas, tá meio fraco... E, por exemplo, concurso, quando abre concurso pra Petrobrás, coisa assim, normalmente cai muita matéria própria de engenharia. Mas eu sou da seguinte opinião: você faz o que você realmente gosta, o que você ama, então eu não me arrependo de ter trocado. 132 P: E você tava falando da estrutura, da diferença, entre a Engenharia Química e a Química... Mas como seria a diferença de curso aqui dentro da própria Química? Porque, fiquei meio confusa com a divisão curricular, porque não é apenas Licenciatura e Bacharelado... E5: Eu faço Química com Atribuição Tecnológica, é um curso integral, manhã e tarde, são 5 anos. O pessoal da Licenciatura é um curso noturno, 5 anos, e o pessoal que estuda à noite é porque normalmente trabalha de manhã ou à tarde, ou manhã e tarde.... aí como o pessoal trabalha, aí o curso de Licenciatura é totalmente licenciatura. Aí o pessoal do Instituto de Química criou um Bacharelado, um curso noturno, pra... por exemplo, a pessoa tá num curso noturno não é porque ele quer ser professor, tem um dom de ser professor... ele pode ir pra indústria porque o Bach ele permite isso. Só que pra fazer o Bacharelado você tem que ser formado em Licenciatura pelo instituto, aí você pode pedir pra fazer as matérias do Bacharelado, mas por exemplo, você não pode sair só com o Bacharelado da noite. E não é oferecido vagas... por exemplo, não tem turma de vestibular, é na verdade como se fosse um complemento. P: Então o seu curso é uma outra história, como um outro bacharelado? E5: Não é um bacharelado... A Atribuição Tecnológica, a impressão que me passa... É...como se fosse um mix entre química industrial e bacharel... na verdade você tem matéria de ambos, tanto se prepara pra ir pra indústria, como pra pesquisa. Sendo que, convenhamos... atualmente, pelo menos eles puxam pra pesquisa, pra indústria eles tem poucas matérias que, digamos assim, capacitam para a indústria... P: E, no caso, o bacharelado da noite seria mais pra pesquisa? E5: O bacharelado da noite? Na verdade, acho que não... acho que é mais pro mercado de trabalho MESMO [mercado mesmo?] Na verdade, o que acontece: não tem matéria de industrial à noite, mas tem muita matéria que você pode aplicar na indústria... por exemplo, Análise Instrumental: não é uma matéria de indústria, é de pesquisa também, mas por exemplo, quando você vai fazer análise num laboratório... por exemplo, você tá lá na indústria química, você tem que fazer controle de qualidade da indústria química, dos produtos... aí a Análise Instrumental é muito útil, é uma ferramenta muito útil neste controle de qualidade, porque você consegue determinar a quantidade de elementos... substâncias lá presentes... se o pH está na faixa ideal, coisas assim. Então uma das matérias que o bacharel tem é Análise Instrumental, ou seja, ele pode ir pra indústria, mas antigamente não tinha esta matéria... P: Isso foi um arranjo feito a pouco tempo, no currículo? E5: Acho que foi, tem uns 3 ou 4 anos... acho.. não sei quando entrou, realmente, mas é uma coisa nova. Achei interessante... porque você diminui... EU acho que foi pra diminuir a evasão e pra dar mais uma possibilidade, é minha opinião, eu não sei... Alguém que fez essa parte tecnológica, esse cumprimento do bacharel, pode te informar melhor o que aconteceu... porque 133 normalmente, além de ter cursos diferentes, com coordenadores diferentes, existe uma certa barreira entre o pessoal da noite e pessoal do diurno... não tô falando de preconceito, mas existe uma barreira que é de tempo. Normalmente, o pessoal da noite, a maior parte, não pode estudar de manhã, e o pessoal da manhã não vai também estudar à noite, então não existe um elo de ligação... P: Obrigada pelo esclarecimento, porque ainda estava meio confuso pra mim... E5: É, é confuso.. porque na verdade você nem pode falar que existe um curso de bacharel, porque não existe. Na verdade, se você quiser fazer um curso de Bacharel em Química, você não vai fazer, porque primeiro você vai ter q fazer a Licenciatura em Química. [E o seu curso?] No meu curso já tá incluído as matérias de bacharel. Ele tem mais atribuições que um bacharel, mesmo... P: Mas, por exemplo, no seu diploma: você aparecerá como... E5: Químico com Atribuições Tecnológicas. Tive uma informação a alguns anos atrás... Esse curso de Atribuições Tecnológicas é um curso meio confuso, mas nem todas as faculdades tem. Você ganha o seu diploma como químico, mesmo. A Atribuições Tecnológicas você ganha lá no CRQ [Conselho Regional de Química]. O bacharel, se não me engano, é o CRQ também que dá... Se não me engano, o CRQ dá 16 atribuições. Fora a parte de Licenciatura, o Engenheiro Químico pega todas as atribuições. O Químico Atribuições Tecnológicas pega 13... já o Bacharel pega 6, acho que alguma coisa assim... E aí existe até uma discussão, porque antigamente só existia 2 cursos de Atribuições Tecnológicas, o... é... aqui no [Campo universitário], no Instituto de Química, e em São Paulo, não lembro se na [Nome de uma Universidade] ou na [Nome de outra Universidade]... Agora, há poucos minutos atrás, fiquei sabendo que a [Nome de uma Universidade] também criou... mas estranhei, porque aqui é integral, manhã e tarde, e 5 anos de curso... e lá, a garota tava me falando, são 4 anos e é só um turno... aí acho que, em termos de carga horária, eles só pegaram o mínimo, também... P: Fica uma diferença grande em relação ao curso daqui... E5: É, mas acho que tem uns problemas em relação ao curso daqui: ele é superficial, você não pode, não dá pra se aprofundar [Superficial, aqui?] É superficial, porque na verdade, aqui você aprende muita coisa, mas normalmente você não se aprofunda muito nas matérias. Você aprofunda quando você faz alguma pesquisa, vai pra alguma área, mas por exemplo, todo curso universitário, na parte de tecnologia... éee... eu diria a maioria – na Engenharia Química também era assim – eu diria que é superficial. O problema que o superficial... o superficial [risos] já tem um conteúdo bastante abrangente, na verdade. Superficial que tô falando é que existe muito mais coisa que poderia se dada... não dá pra estudar tudo a fundo... ele te dá a noção e se você precisar de alguma coisa além daquilo, pelo menos você já tem a base... na verdade, acho até fundamental, muitas vezes, melhor você ter a base pra construir... vai tentar construir um prédio sem base, não dá... mas o curso é meio longo... 134 P: E qual seria a sua avaliação sobre o seu curso? Você tem informações sobre outros cursos, já disse, saberia compará-los ao curso daqui... E5: Já fui em encontros de estudantes de química, em três, e conheci instalações de outras universidades... em relação ao curso de química, em termos de equipamentos, coisa assim, aqui na [Nome da Universidade] a gente tá muito bem... em outros cursos, a situação tá precária, assim... [Quais cursos? Só para comparar... Seria universidade particular?] Nãaaao, pública mesmo, federal, só que em outros Estados... lá em Alagoas, por exemplo, alguns equipamentos são muito precários, assim, você não tem muito equipamento... até... isso dificulta muito, tipo assim, você... Tem equipamentos assim, pesquisa, utilizado pra pesquisa, outra coisa é a graduação. Aqui, apesar de tudo, na graduação a gente vê algumas coisas... a gente pega coisas que a gente acha muito ultrapassado, mas quando a gente vai ver a realidade em outras faculdades, vê que a gente tá muito bem. Em termos de alunos, coisa assim, eu não sei... eu sou da seguinte opinião: quem faz a faculdade é o aluno, ou seja, não adianta nada você estar na melhor universidade do país e você não quer nada... não, de repente, uma faculdade muito ruim, mas se você correr atrás, você vai ser um profissional bem qualificado. É um conjunto todo, não tenho como avaliar em termos de aluno, mas em termos de estrutura, de curso, a [Nome da Universidade], na área de Química, está muito bem servida de material, de equipamento, coisa assim... achei muito interessante essa parte, ter um suporte... e fora o ambiente, também, por exemplo, até aqui dentro da [Nome da Universidade], mesmo, se você for ver, as salas do instituto tem ar condicionado, são bem equipadas, e você vai em outras unidades e você vê... por exemplo, o bloco B, aqui, as salas são meio escuras... [E seria o que, nesse bloco B?] Acho que Desenho Industrial, eu acho... Engenharia Civil... P: E voltando ao seu curso, especificamente. Você disse que teria algumas matérias superficiais, mas que seria um ponto de partida para a pessoa aprofundar... Mas de uma forma geral, o que você acha do seu curso, como você definiria a sua graduação: tá satisfeito, insatisfeito, por que...? E5: Tô, tô satisfeito... mas, por melhor que seja, tem sempre como melhorar as coisas... Tem algumas matérias, assim, que, por exemplo, até... você fica muito preso na matéria. Tem duas Análises Orgânicas que, eu acho, na minha opinião, poderia ficar numa só... são 2 laboratórios que vai de 1 até às 6 [horas]. Dava pra dar em um período, na minha opinião... porque na verdade é continuação total uma da outra e se adequasse mais um pouco, você poderia fazer num período só... Tem matérias eletivas que, na minha opinião, tinham que ser obrigatórias... na verdade, você se especializa no que você quer. Aqui no Instituto de Química tem muita eletiva, se bobear, mais eletiva que obrigatória. Aí você pode se guiar, se você quer seguir uma área, você tem total condições de seguir uma área. Tem algumas eletivas que você olha “existe essa eletiva? Ah, agora existe!” P: Mas isso seria dentro da área de química ou em outras unidades? 135 E5: Não, dentro da área da química, mesmo. A química é uma ciência muito particular porque se divide em vários ramos. Por exemplo, tem Química Ambiental, Química Orgânica, Química Analítica, Química Tecnológica, Química Industrial mesmo, tem várias áreas e dentro dessas áreas, tem várias eletivas. Aqui mesmo, tem vários professores é... algumas eletivas estão surgindo porque temos alguns professores novos, aí se o professor é especialista de uma área do conhecimento, ele dá uma eletiva daquela área. É química mesmo, só que é uma especialização da química. Algumas eletivas eu achava que tinha q ser obrigatória, mas tem o problema dos professores... Eu fiz no período passado uma eletiva chamada Quimiometria, que você usa Estatística aplicada à Química – é “química entre aspas”, é estatística aplicada a várias coisas, depende da área. Além disso, tinha experimentos também, achei muito interessante essa matéria... o químico trabalha com muitos dados, é experimental, mas algumas vezes você pega vários dados, vai precisar fazer trabalhos estatísticos em cima de vários dados e, se você não fizer essa eletiva, vai sair sem esse conhecimento... acho muito importante na área da indústria, e até na área da pesquisa, mesmo... P: E como é colocada a eletiva? É alguém que oferece, cursos de fora, vem alguém de fora, especialista, e oferece, ou...? E5: Não, na verdade, o professor é pesquisador, ele tem a pesquisa, mas tem que dar uma certa quantidade de horas de aula. As matérias obrigatórias não são suficiente pra ele ter aquela carga horária, aí normalmente ele disponibiliza o que ele pode dá. [Entendi] E, no caso, por exemplo, porque... abre concurso toda hora, entra um professor, de repente, entra uma eletiva nova... P: Seria concurso pra professor substituto ou contratado da casa? Porque não sabia que tinha tantos concursos para contratação na [Nome da Universidade]... E5: Acho que substituto também pode dar eletiva, mas professor mesmo, da casa... Toda hora tá abrindo concurso... mas o que acontece? É uma vaga! E uma vaga aqui no universo do IQ não é nada, né? P: Aqui tem muita gente? Você tem idéia de quanto alunos entram? E5: São 50 por ano... à noite acho que são 40... P: E você tem idéia de quantos se formam? E5: Na verdade, ultimamente houve um aumento tremendo, já aconteceu, por exemplo, vou citar o caso da Engenharia, de ter três formandos... aí na Engenharia Química tem sempre mais formandos, tem uns 40, 50 por ano, mais ou menos... Mas contando quem tá atrasado... aqui tá em torno de 20, 25 por ano. Aumentou, aumentou muito...mas tem que levar em consideração que tem formando sem periodização, se formou, mas o cara é de 99, 2001, 2002... Normalmente, o pessoal se atrasa pouco, no curso da química, conheço gente que vai se formar antes do tempo, mas é aquilo, a pessoa não vive. E também é melhor você ficar um pouco mais na faculdade, pegar experiência, iniciação, 136 estágio, coisa assim, não fazer só matéria por si só... é minha opinião... Mas voltando um pouquinho, sobre matéria eletiva, outra q gostei, fui falar com a professora no final, porque não é obrigatória. Aí ela falou que, da [Nome da Universidade], só ela dava. Se ela não pudesse mais, quem daria? Outra pessoa com a mesma qualificação, pra dar o curso. Pra você abrir uma matéria obrigatória, você tem que garantir que a matéria tenha professor. P: E da grade de vocês, de matérias, tem alguma que seja da área de humanas, vocês tem a possibilidade de fazer alguma disciplina...? E5: Não. Na verdade tem 2 tipos de eletivas, do próprio curso e de outras áreas. Eu já fiz matéria de Didática Geral, matéria de outro curso, da área humana, aí então você não é totalmente preso assim... [E o que você achou?] De didática? Achei muito interessante... [Você fez aqui no Instituto de Química?] Eu puxei pelo Instituto, pela Licenciatura, na época eu era até da Engenharia Química, só que puxei e tinha gente da Biologia, tinha gente da Educação Física, tinha gente assim, de vários cursos, não era licenciatura fechada. E uma das coisas que achei interessante foi isso, o ponto de vista, né? Na verdade, você não tinha uma coisa fechada, tinha uma coisa mais abrangente, você conhecia até outros cursos, é legal, essa parte de você não ficar no seu mundinho fechado, é muito interessante... P: E em relação à pessoas que andaram contigo.. não necessariamente turma [Não tenho turma...] É, as pessoas que cursaram contigo disciplinas e tudo mais... Como é que ela avaliam? E5: Depende, depende de tudo, foi o que te falei, depende da pessoa. Porque na verdade não existe um consenso, tem gente que gosta muito do curso, tem gente que ... ... eu conheço alguns calouros que entrou no curso e já tá pensando em sair... o pessoal mais na frente normalmente gosta do curso... [Mais tempo no curso gosta mais?] É, gosta mais entre aspas, porque muita gente acha que não tá preparado pro mercado de trabalho... Mas o problema não é não estar preparado pro mercado de trabalho, o problema é que não tem emprego... Mas a avaliação depende muito, tem gente que odeia o curso, tem gente que ama e tem gente que...[risos] [Tá fazendo] Tá fazendo... aí é sempre relativo... P: E em relação à sua experiência na graduação aqui na Química, quais aspectos você considera positivos, coisas que te fizeram gostar do curso?... E5: Contato com o professor. Contato muito bom com o professor. Além disso, assim... química é uma área muito experimental. Ter uma parte teórica, até a parte teórica, precisa de equipamento, que é o computador. E aqui a gente tá bem servido, digamos assim... a estrutura, em si, daqui, é muito boa... isso é um ponto positivo porque ajuda, é muito melhor você estudar num ambiente agradável... E quando você vai prum laboratório, por exemplo... aí é que tá... eu já vi coisa muito pior... As estruturas dos laboratórios de graduação... Tem coisa que a gente não tem acesso, algumas coisas mais valiosas, alguns reagentes, mas já vi coisa muito pior... Assim, na verdade, tem disciplina, a 137 inorgânica, que não tem um roteiro. Tanto a InorgExp I quanto a InorgExp II [Inorgânica Experimental] eles dão várias opções, por exemplo, eles te dão vários elementos químicos. Aí você escolhe um daqueles elementos e aí você vai fazer a química daquele elemento, vai fazer reações com aquele elemento. Apesar de ser uma matéria só, na verdade lá são vários projetos, cada um faz um experimento diferente. E aquele elemento que você escolheu, na verdade, pode não ter ali o reagente... essa dificuldade... mas com a experiência de ir em outros lugares, o que a gente acha velho aqui, dependendo de onde for, o que a gente tem na graduação muito melhor que em outras universidades... A desculpa que eles dão pra não ter equipamentos muito bom é a seguinte: se você sabe mexer nesses equipamentos, trabalhar com isso, quando você chegar na indústria e você tiver um equipamento de tecnologia, com certeza, você vai saber. Hoje em dia, você chega numa indústria química, é só apertar botão, coisa assim. Se o equipamento falha ou se o equipamento quebra, vai ficar sem fazer a análise? Não, tem outro jeito, que é a maneira mais arcaica, digamos assim... ... Se você for comparar laboratório de graduação com laboratório de pesquisa, não tem comparação: os laboratórios de pesquisa estão muito a frente, mesmo, mas se for comparar... laboratórios daqui com laboratórios de outros lugares, a gente ainda leva vantagem... P: E poderia dizer que é ponto negativo? Desvantagem...? E5: Pode ser... é... P: E tem outro ponto que não tenha te agradado? E5: Falta de... falta de opção de horários. Por exemplo, apesar de ser um curso integral, tem matéria que só é dada naquele horário, por exemplo, você quer se adiantar um pouco, ou você se atrasou em alguma matéria, mas você tá preso... Eletiva tem que ter um horário só, porque é eletiva, mas acho q matéria obrigatória você tinha que ter mais de um horário... manhã e tarde, ou outro dia da semana, mas boa parte das matérias só tem aquele horário, e acho isso um ponto negativo. P: E em relação à disciplinas, afunilando mais ainda a avaliação do curso. Pensa nas disciplinas que você mais gostou... o que teria nelas, na organização delas, na forma como foram dadas, que você ressaltaria como ponto positivo? E5: As InorgExps...você não tava preso, você escolhia o que você queria trabalhar, na verdade... dentre aqueles tópicos você escolhia... e ninguém te dava ordem nenhuma, você tinha que procurar, pesquisar as reações, você tinha que realizar as reações... ajudava muito você a correr atrás, não ficar só naquele roteirinho chato, você pesquisava. E, por exemplo... tem muitos professores aqui na faculdade que são solícitos... uma vez tive que fazer experiência em InorgExp e, além dele ter me cedido um reagente, ele ainda me deu explicação, uma baita aula sobre aquilo... Eu achei muito interessante isso, contato grande dos professores... e o que achei interessante da matéria é você procurar o que fazer, você não ter um roteiro, você... não tem uma receita, você pesquisa a reação que você tá interessado, descobre coisas novas, e você coloca na prática. E o que você faz é diferente de quem tá do lado. [E no final, como...?] E no final tinha um seminário, que você tinha que expor tudo o que 138 você fez, cada grupo, era normalmente trio ou dupla. Outra coisa também, de infraestrutura e coisa assim, aqui normalmente toda sala de aula tem datashow, que você pode usar Power Point para exposição, coisa assim... não precisa mais do retroprojetor antigo, arcaico, coisa assim.... A infraestrutura aqui é muito boa nesse ponto. Isso ajuda muito você... assim, eu odeio aula com datashow, normalmente os professores não dão aula assim, mas uma coisa que acho muito interessante, quando você vai fazer um seminário, é muito importante a tecnologia nessa hora... P: E nessas disciplinas que você gostou, o que teria na relação professoraluno? A forma de dar aula você gostou? Os pontos positivos do professor... E5: Depende muito do professor... Por exemplo, tem professor que te passa muito conhecimento, digamos assim, e dá vontade de assistir aula, algumas vezes você vai pra aula só por causa dele, digamos assim... tem professor que você não quer ir pra aula dele... Tinha matéria que eu gostava até da matéria, mas não gostava do método do professor... tinha professor que pegava, jogava no quadro a matéria e sumia! Deixava a gente fazendo exercício da matéria... esse professor é um exemplo que, se tivesse opção de horário, você não iria assistir aula dele, com certeza, a turma dele ia ficar vazia. É muito relativo, tinha professor carismático, tinha professor duro, mas que dava aula bem, tem de tudo aqui. Tinha professor que falava muito, você não conseguia absorver tudo, mas a aula era interessante. Acho que não tem um estilo próprio... várias coisas vou aproveitar pra minha vida profissional, exemplos mesmo. Tive professores muito bons e muito ruins... P: E o estilo de aula? Pensa em algum, ou em alguns até, que tenham características parecidas, forma de lidar com aluno, organizar aula... por exemplo, aula teórica, depois vai pra prática... E5: Não, não, aqui são separadas as aulas teóricas das práticas... Mesmo se for junto, teórico e experimental, é com professor à parte... um só pra teoria, outro só pra experimental. Não que um não saiba dar a teoria, nem o outro não sabe dar experimental, mas teve essa separação por causa de tempo, coisas assim... P: Essa separação é em dias da semana também, é total? E5: É separação total, um dia da semana uma aula teórica, no outro a prática... tem matéria teórico-experimental, tem matéria só teórica, tem matéria só experimental. Essa de mostrar experimento na teórica, só no começo, mas depois não faz sentido perder tempo da matéria de teoria se depois vai pro laboratório ver o experimento. Mas a parte teórica do experimento, quando as matérias são juntas, vê na hora, no laboratório. Isso é porque o professor também é pesquisador e tem que dividir laboratório com outro professor que também é pesquisador... Quanto a algum professor que me marcou... teve um que, na verdade, no início, eu tinha medo de perguntar alguma coisa pra ele. Você perguntava alguma coisa pra ele e ele te enchia de perguntas... só que depois eu percebi o seguinte: se você não soubesse... na verdade, ele tava testando até onde você sabia daquilo pra poder explicar. Se você não 139 soubesse, ele parava a qualquer hora e ia pra aula experimental, mas ele dava a teoria toda lá no quadro. E te respondia... só que no começo, eu tinha medo, custei a perceber isso... Teve outro professor que também adoro, ele sabia muito, chegava na aula e começava a falar sobre a matéria e sempre dava exemplos práticos... curiosidades sobre o assunto, até coisas bíblicas botava no meio, fazendo a química da bíblia. Muito interessante a matéria, mas conheço gente que odiava a matéria dele, depende muito... O básico, você conseguia aprender tranqüilo. Tem gente que odeia ele, uma turma ficou muito gente reprovada. Mas reparava o seguinte: a avaliação que você vai ter do professor são várias: depende de como você vai se dar na matéria, tem matéria que eu reprovei muito feio, mas a aula do professor era EXCELENTE... o problema é que tava cheio de matéria, a aula é excelente, a prova também é excelente, aí não consegui estudar e reprovei... mas não foi culpa do professor, foi minha culpa. Eu acho que muita gente tem que discernir isso... P: E a avaliação nas matérias? E5: Ah, pra passar direto, média 7... [seria em relação ao métodos dos professores...] Ah, varia muito com o professor: já tive seminário, prova, fazer relatório, disciplina só com relatórios... ou então tudo junto. Teve disciplina que eu tive que fazer relatórios, seminário e ainda prova pra passar. Nas eletivas, normalmente não tem prova, são trabalhos, seminários, relatórios... algumas tem prova. P: E em relação aos professores que você não gostou? Tem alguma característica...? E5: Um deles foi esse que falei, mal humorado: chega, bota a matéria no quadro e vai embora... deixa ver se lembro... porque, na verdade, aqui do Instituto de Química, são poucos os professores que não gosto, gosto da maioria... um professor, lembrei, que no começo eu gostava, depois passei a não gostar dele, ele se achava o dono do poder, porque ele dava a aula dele, até gostava da aula dele no começo, mas ele... a gente descobriu depois que era uma aula decorada, na verdade. Pediram pra ele fazer um exercício, ele não conseguiu fazer o exercício na turma da tarde – ele dava manhã e tarde, aula – aí, estranhamente, na outra semana, ele chegou de manhã e o mesmo exercício ele pediu e corrigiu. Só que ele ficou com ódio das turmas, aí ele sacaneou, literalmente. Se você não fizesse... lembro até que uma questão minha estava certa, porque não fiz do jeito dele, ele “pô, mas isso aqui não é Física, isso é Matemática”. Eu olhei assim... ele “essa prova é de Física, não é de Cálculo”... 140 APÊNDICE E – ENTREVISTA 4 P: Pesquisadora (mestranda entrevistadora) E4: Entrevistado (graduando entrevistado) Entrevista 4: Licenciatura em Química , sexo masculino, 10º período, 23 anos. P: [apresentação dos objetivos da entrevista, termo de consentimento] Qual seria sua avaliação pessoal, uma avaliação geral do seu curso quando comparado com os cursos de outras universidades? Se você tem um parâmetro... Porque a gente sempre ouve algo sobre o curso na universidade tal... E6: Tenho minha opinião formada em relação ao curso de Licenciatura em Química da [Nome da Universidade] quando comparado ao de outras, né? Como, por exemplo, da [Nome de uma Universidade]. A formação lá é dada em 4 anos, em comparação, aqui são 5, né? Em termos estruturais, eu acredito que aqui a gente tenha um pouco mais no pedagógico. É que já dei uma olhada na grade da... da [Nome de uma Universidade] e ambos são cursos noturnos, só que na [Nome de uma Universidade] você tem a opção de estudar durante o dia. Mas independente de você fazer a graduação lá de manhã ou à noite, são 4 anos, enquanto aqui a gente tem um tempo um pouco maior pra tá cumprindo as disciplinas, tanto as do ciclo básico, né?, que são inerentes aos cursos da área tecnológica, de cálculos e de físicas, que é a parte mais complicada dessa área, que a gente tem um tempo um pouco maior pra distribuir essas disciplinas de formação do ciclo básico, as disciplinas de formação em Química e as disciplinas pedagógicas, né? Contando com o tempo que a gente tem pra fazer a prática de ensino, né?, que é obrigatória pra qualquer curso da licenciatura, e... com um diferencial daqui, eu acho que a gente tem... a exigência um pouco maior em relação à carga horária de atividades acadêmicas, atividades docentes. Quando prestei vestibular pra [Nome de uma Universidade], passei lá pra Engenharia Química. Mas mesmo assim, eu dei uma olhada tanto nas matérias da licenciatura quanto da engenharia. Larguei a engenharia lá porque comecei a trabalhar muito cedo e fiquei só aqui no [Nome do campo]. Por exemplo, aqui a gente, além da prática de ensino, a gente tem que cumprir 180, ou se não me engano, 120 horas de monitoria dentro da faculdade, o que na [Nome de uma Universidade] você não tem essa obrigação, por exemplo. E fora essa monitoria que a gente tem que fazer aqui, mais a prática de ensino, a gente ainda tem uma carga horária de 200 horas de atividades científicas, acadêmicas e culturais pra cumprir. E essa carga horária ela é... vai sendo debitada 20 horas, que é a disciplina q a gente tem no 1º. período, que é AACC, Atividades Acadêmicas, Científicas e Culturais, depois a gente tem os 10 períodos pra cumprir tantas horas que são contabilizadas em estágios de iniciação científica.. éee... participação em cursos, participação em congressos, visitas a museus, só que tudo isso tem ser comprovado depois num relatório que vai ser emitido pra secretaria pra você ser considerado então aprovado nessa disciplina de AACC. Então isso comparado com a [Nome de uma Universidade], que acho que seria a que estaria equiparada em qualidade de ensino, de infraestrutura, de corpo docente e acho que também de corpo discente, eu acho que a [Nome da Universidade] 141 teria a exigência da área um pouco maior do que na [Nome de uma Universidade], por conta que a gente tem um tempo maior pra estudar, óbvio que entra mais matérias, e a gente tem um pouco mais de exigências em termos de formação e de experiência, né, dessa troca que a gente vai ter pra essa transição de aluno pra professor. A formação é boa por este ponto de vista, pelo tempo que a gente tem, até pela exigência acaba sendo, no meu ponto de vista, um pouco excessiva, a gente já tem a carga horária de estágio pra cumprir no colégio e a gente não recebe nada pra isso, né? E fora que a gente tem que dar monitoria dentro da faculdade e não receber nada pra isso, também. Então se você for contar, existe pra gente mais de 400 horas só de atividades de sala de aula e não remuneradas, o que às vezes é um fator complicado pra muita gente, que trabalha durante o dia e só tem a noite, depois, no final da graduação pra fazer este estágio, então a pessoa já está cansada de ter trabalhado o dia inteiro e ainda tem que trabalhar à noite de graça pra cumprir um componente curricular... é assim que a coisa funciona não só aqui, mas também nas outras universidades. E... quanto à... saindo da parte tecnológica e indo pra parte da formação pedagógica em si, acho que deveria ter uma reestruturação do currículo, que até teve. Quando entrei na faculdade, por exemplo, fazia Psicologia da Educação I e Psicologia da Educação II. Hoje em dia, isso foi condensado em apenas uma psicologia. Eu não sei como é que ficaram outras disciplinas, e, pra ser bem sincero, no final das contas, não é aquilo que vai fazer diferença pra gente... isso é minha opinião, como também dos meus colegas [essas são as disciplinas da licenciatura que são ministradas pela Faculdade de Educação?] Isso, isso. A opinião que tenho é que não vai fazer diferença nenhuma, nenhuma mesmo. Então exigem da gente uma demanda muito grande, uma quantidade grande até de disciplinas pedagógicas... eu acho até que nesse meio tempo, toda essa parte teórica, eu acho que ela deveria ser dada de forma mais objetiva, tem um enfoque. Por exemplo, a gente chega em Psicologia, vai estudar Piaget, Vigotski, vai chegar em Sociologia, vai estudar Durkheim. A teoria é ... se você para pra pensar, tem um fundamento, óbvio, praquilo tudo, só que você não vai, quando você vai dar aula, quando vai montar um plano de aula, não vai levar em consideração nada daquilo que você aprendeu. Você vai levar em consideração qual é o seu objetivo, mas seu objetivo vai tá atrelado ao objetivo que a escola tem. Se for um colégio particular voltado pro vestibular, o dono ou o chefe falar “olha, você tem q dar estequiometria em 50 minutos, só, e depois você vai passar pra soluções” e você não tem liberdade pra trabalhar o aspecto cognitivo, você não vai ter tempo pra trabalhar o desenvolvimento do aluno como cidadão, você não vai... vai trabalhar o aluno de forma mecanizada porque é isso que o mercado pede em termos do vestibular, né? Então essas disciplinas acabam que tomam um tempo muito grande da gente na faculdade, seja de presença em sala de aula, seja de trabalho que a gente tem que fazer... Alguns professores são pouco compreensíveis, como a professora que tive de Estrutura e Funcionamento, a professora nem sei se ainda tá na faculdade, mas ela tava como professora contratada, substituta. Ela passou um trabalho, uns seminários pra gente fazer. Aqui serve ao Instituto de Química, mas tinha alunos da Matemática, Química e Física. E ela criticou TODOS os trabalhos, todos, não teve um trabalho que ela se posicionasse ... pra ela estavam todos muito ruim, pra ela. Eu lembro que não minha apresentação, no dia, eu não 142 poderia ter feito, porque eu tinha extraído o siso, tinha levado 8 pontos na boca, eu nem conseguia falar direito. Eu vim com atestado mostrar pra ela que eu não poderia apresentar, ela falou que o problema era meu, que se eu não apresentasse, iria ficar com zero. Eu falei com ela: “professora, eu mal tô conseguindo falar, só minha parte do trabalho, meia hora ou mais”. Ela, como profissional de educação, formando educadores, ela simplesmente colocou de lado tudo aquilo que ela aprendeu na formação dela em educação e simplesmente ignorou que naquele momento eu não conseguiria apresentar o trabalho, mesmo comprovando. Eu não passei recado por colega falando, eu estava presente, estava com atestado, estava com a boca inchada, ela viu, poderia ter me liberado, mas me obrigou a fazer o trabalho assim mesmo. Moral da história: no final da apresentação meus pontos saíram, estava com a boca sangrando, o que não estava muito bem, piorou. Então, esse foi um dos exemplos ruins que a gente teve aqui, de uma disciplina que, no final das contas, não fez diferença na minha formação e nem na dos meus colegas, né? E onde a professora praticamente não sabia aplicar o que ela aprendeu durante a graduação, durante o mestrado e doutorado, em sala de aula. Visto que, totalmente incompreensiva, é.... nenhum trabalho estava bom. Ela não tinha a humanidade de perceber que eu, como aluno da Química, ou como aluno da Física ou da Matemática, se eu pego um artigo e ela manda eu falar, por exemplo, da teoria do movimento da Escola Nova, que foi o meu assunto, a gente vai pegar um artigo, não tenho condição prévia de ver o errado. Então se o cara falou algum conceito errado, ou que não tão certo, não tenho embasamento teórico pra ter um senso crítico, chegar e falar “não, está errado”, né? Isso em todos os trabalhos, ela interrompia e falava “não, esse conceito tá errado, esse trabalho tá uma merda, isso não é assim que se faz”. Aí uma pessoa, como falei, eu quase não conseguia falar, explicou isso pra ela, que nós, como alunos da Matemática, Física e Química, a gente não tinha embasamento teórico pra ver um artigo e julgar se tava certo ou não o que o cara, a pessoa estava falando. Porque ela, naquele momento, ela botou... ficou traçando um paralelo entre o pessoal da Pedagogia e o pessoal das exatas, criticando a gente, dizendo que os alunos da Pedagogia eram infinitamente melhores, que o seminários deles seriam infinitamente melhores, mas eles desde o 1º período tem o embasamento teórico pedagógico pra julgar, tem que saber bem melhor que a gente. Então a gente questionou: “professora, se a gente te desse um artigo, pra começo de conversa, você nem saberia como iniciar um seminário na nossa área”. Então esse foi um fato marcante no nosso trajeto pedagógico que, no final das contas, não fez diferença pra mim, nem pra ninguém. Então acho que a parte pedagógica aqui deveria ser mais estruturada, a gente ter uma coisa mais focada lá no final da graduação, que é quando a gente vai estudar Instrumentação pra Química do Cotidiano e Didática Especial da Química, que são duas didáticas especiais, e tem uma que é Evolução da Química. Então são 4 disciplinas só pedagógicas que tem um enfoque restrito na química, que são realmente úteis, agora as outras, Psicologia da Educação I, Psicologia da Educação II, Sociologia, Fundamentos Filosóficos, a gente não usa. P: E os professores com quem você fez essas disciplinas eram professores da cadeira ou eram substitutos? 143 E6: Nunca tivemos aulas com professores adjuntos e assistentes, que realmente foram concursados pela Faculdade de Educação, sempre foram professores substitutos. Não tirando o mérito deles, o meu professor de Psicologia I foi fora de série, foi excepcional, o melhor professor da área da educação que eu tive e que o pessoal da minha turma também. Eu nem sei se ele continuou, mas ele sabia cativar, sabia motivar, e não era aquela coisa chata, enfadonha, você observava, por exemplo, eu nem lembro se ele fazia chamada ou não, mas independente disso, a aula era cheia. Nas outras disciplinas pedagógicas, os professores usam, como instrumento de repressão, a chamada pra obrigar que a gente esteja aqui. Mas nem é capaz... às vezes eles não conseguem perceber se ele não é capaz de motivar os alunos pra que estejam aqui presentes na aula, alguma coisa tá errada. E não vai ser prendendo a gente com uma lista de chamada, ameaçando reprovar, que você vai estar ali, satisfeito, querendo prestar atenção ali no que ele tem a ensinar. Então eu acho que ocorre um equívoco, em muitos casos, nessa área, muito grande, seja por professores que não sabem conduzir a aula, ou pelo menos próximo do que a gente acha que seria melhor pra gente, e também porque tem um número muito grande de disciplinas pra gente fazer, né? Eu trabalhei, dei aula durante 2 anos num pré vestibular, e a minha prática de ensino foi no Colégio de Aplicação da [Nome da Universidade], né? Então eu não conheço a realidade de ensino de uma escola estadual, de um Ciep. Só que também a nossa formação não vai ajudar na forma como você vai ajudar, não vai influenciar no momento. Acho que a questão que você tem pra trabalhar com seu aluno, independente da classe social que ele tem, ou se ele vai ter algum problema, acho que isso vem mais da sua vivência de mundo e experiência nossa, não são as disciplinas que eu fiz pedagógicas, que vão me ajudar a sentar e compreender um aluno que foi mal na prova porque o pai bebeu, ou porque ele mora numa comunidade que tem traficante, ou então porque ele tem uma outra realidade, que o pai dele tem um cargo alto no trabalho e vive viajando e deixa ele abandonado. A formação pedagógica que eu tive não... pra mim não vai influenciar, acho que isso é mais o lado humano, pessoal, então... a forma como vou tratar esses alunos vai ser mais uma questão minha, mesmo. Acho que todo esse aparato pedagógico da faculdade, acho que não vai fazer diferença nenhuma. Quanto à prática de ensino no Colégio de Aplicação, foi maravilhosa, acho que as disciplinas pedagógicas que a gente tem na faculdade com enfoque para o ensino de Química deveriam ser ministradas pelos professores do Colégio de Aplicação. Muitos nem tem formação pra isso. Minha professora de Didática Especial I e II ela é engenheira química e depois fez a licenciatura. Só. Então em termos de conhecimento, ela estava no mesmo estágio que a gente, em termos de experiência, quase todo mundo que já dava aula tinha mais experiência que ela: eu tinha mais experiência que ela, meus amigos também tinham mais experiência que ela. Só que mesmo assim, ela era difícil de lidar em relação a seminários, em relação a debates, onde ela sempre achava que nossa posição estava errada e ela era a mais correta, né? Quando a gente ia debater alguma coisa que a gente tinha lido em Psicologia, Sociologia, e a gente ia tentar contextualizar na 144 sala de aula, ela quase... quase nunca concordava com algum posicionamento de algum aluno, ela tava sempre discordando, dizendo que não era assim, que sala de aula era de outro modo, só que ela esquecia que tinha muita gente ali que trabalhava já dando aula, ninguém estava ali sem experiência nenhuma, então o que ela falaria pra mim, não seria verdade absoluta, porque já venho com uma bagagem da experiência. Pra outros, poderia até ser, mas você considerar essa parte de um professor que não tem formação na área, querer mostrar pra você como verdade absoluta. Então ela tinha essa posição, mesmo não tendo formação acima da gente. Pra mim ela estava no mesmo nível, só tinha licenciatura. Então por isso que eu acho que essa parte pedagógica toda que toma um tempo, é enfadonho, que às vezes se torna até insuportável, deveria ser mais focada, e deveria ser dada não pelos professores que a gente tem aqui, acho que deveriam ser pelos professores da prática, porque acontecem equívocos, erros. Os professores daqui eles não dão aula no 2o. grau, eles não estão capacitados pra questionar a gente em alguns pontos e falar se tá errado ou não. Eu tive apresentação de seminário aqui, na disciplina de Química do Cotidiano, onde o professor falou que eu tava ensinando algo errado. Aí eu falei “tá, professor, mas o que está errado?” ele, “não, está errado”, “tá, professor, entendi que está errado, mas o que está errado?”, “não, porque não é assim que ensina pro 2º. Grau”, “então como você ensina?”, “é que se ensina assim, assim, assado”. Eu falei “não, professor, isso a gente ensina aqui na faculdade, durante a graduação, no 2º.grau a gente ensina dessa forma”, ele “não, mas tá errado”, eu “professor, você já deu aula no 2º.grau?” “não”, “pois é, eu dou aula no 2º.grau a um ano e meio, em 4 colégios diferentes e a disciplina lá funciona assim”. Então você tem esses entraves dentro da universidade que “eu sou mestre nisso, sou doutor naquilo outro”, mas que você não tem vivência. Então por mais que você tenha o conhecimento teórico, mas da parte técnica – porque tem mestrado em físico-química, em analítica, mas você não é especialista na área de educação e você não tem experiência na área de educação pro público do 2º.grau, você tem pro público da universidade, e são públicos muito distintos. Na faculdade, principalmente aqui, você tem a questão do professor que está muito acima de você e que ele facilmente tem o domínio da turma seja por ameaça ou seja por algum outro meio que ele vai estabelecer, que seja melhor pra ele, o que no 2º.grau não existe. Os professores dessas disciplinas não podem colocar como verdade absoluta, querer por goela abaixo uma experiência que ele tem de sala de aula de [Nome da Universidade], de nível superior, é muito diferente. Só que, pra mim, todo mundo sabia disso, isso não é novidade, mas parece que pra eles não é, né? P: Esses professores são formados a muito tempo? E6: São, são professores formados a muito tempo e que só tem mestrado e doutorado na parte técnica ou, às vezes, fizeram uma especialização na área de educação, leram alguns textos, gostam da área, mas não tem grande formação pra isso. Eles tem a experiência deles de aluno lá atrás, lá no passado, eles não tem a experiência dos alunos de hoje. P: Isso parece um pouco de falta de comunicação... 145 E6: Eles não conseguem se comunicar, e também entre eles. A gente teve aula de cálculo com professores que são formados em Matemática. Então, muitas vezes, no início do curso, as pessoas falavam “pô, por quê estudo isso, é chato” e tal... os professores não sabiam dizer pra que que a gente tinha que estudar cálculo, ou então “ah, tá na grade, porque faz parte do currículo básico”. Só que a gente não vai chegar no final da faculdade sem saber porque que a gente tem que estudar cálculo e Física, que são as maiores repetências aqui da faculdade. Na verdade, a gente questiona, e os professores não sabem porque a gente tem que estudar cálculo, os professores de Física não sabem porque a gente tem que estudar Física... mas, conforme a gente vai caminhando na graduação, a gente vai vendo a importância daquilo que a gente teve lá no ciclo básico. Por mais que as pessoas não saibam, a gente uma hora vai entender, lá em Bioquímica eu vou usar essa teoria tal tal. Mas porque não dar o enfoque, quando for usar o cálculo, pra que que aquilo existe? Até porque o professor de Matemática não é da Química, ele é lá do Instituto de Matemática, ele simplesmente vem aqui, dá a aula que tem que dar e vai embora. Não sabe relacionar a Química à matéria, por mais que não tivesse relação com a licenciatura... é uma falha que existe na escolha do profissional para ministrar aquilo... P: Quais seriam as características dos professores que chamaram sua atenção de forma positiva? De recursos didáticos, forma de lidar, postura? E6: Tem o outro professor que citei, que disse que não estava ensinando de forma certa pro 2º.grau, embora ele não tivesse... pensando em educação em outro local, por mais que ele não tivesse essa formação em ciência, o que sempre chamou a atenção nele, apesar dos equívocos em sala de aula, é que ele não era prof que se distanciava da gente. Acho que tem outro também, que são sempre lembrados, que sabem o que significa a relação com o aluno em sala de aula e não limita isso a só estas 4 paredes e quando você sai da porta, né? Essa relação, pra ele, vai bem além da sala de aula... então por mais que alguns deles não fossem tão bons assim, às vezes não aceitavam muito as coisas, falavam que você tava equivocado, que a forma certa era a deles, eles sabiam cativar e prender a atenção do aluno, por mais que ele se irritasse com alguma colocação minha, era porque ele, em sala de aula, tinha aquela postura de professor, mas do lado de fora, ele não mantinha aquela...postura de professor. Ele tinha aquela situação “eu sei trabalhar o lado humano”, embora esteja numa... numa... posição acima, “porque sou mestre, sou doutor, mas sei trabalhar o lado humano”. Isso, a gente acaba levando pra nossa vivência de professor, eu levei e muitos colegas também levaram o que aprenderam com esses professores, com os erros deles em sala de aula, algumas coisas que não deveriam cometer, e aprendemos principalmente com os exemplos deles fora de sala de aula. P: E uma característica aqui do curso, a parte de avaliação.. como é a avaliação aqui? Como é a estrutura de aula e a avaliação? E6: Aqui a gente tem muita disciplina experimental, só que o fato de você estar ali, tendo aquele contato maior com o professor durante o laboratório, não significa que você vai ter um contato mais humano, mais íntimo com ele. Ele 146 continua se distanciando de você, mesmo se tiver que interagir um pouco com você. Tem uns que tem que tá ali no laboratório, mas mantém aquela postura distante como se estivesse numa sala, ele tá lá na frente, numa posição acima... tem professor que ainda trabalha dessa forma. E a avaliação, a parte técnica, a parte da química, nós somos cobrados, no laboratório nós somos avaliados. Já a parte pedagógica, depende muito do professor, não tem uma filosofia, uma política de “não vai ter prova”, não tem essa política de uma avaliação contínua, ele vai tá sempre avaliando o aluno em sala de aula... Aqui na parte técnica de química, os professores vão dar a prova, muitas vezes você vai ser ameaçado, reprimido, o professor vai cobrar, muitas vezes, além do que ele deu em sala de aula... Uma vez, um professor de química nosso falou que o papel deles aqui no Instituto de Química era ensinar o caminho... e que a gente deveria trilhar por conta nossa o caminho das pedras, então ele poderia dar, sim, o que ele quisesse na prova, independente se ele deu em sala de aula, ou não. Então, meu professor de Bioquímica faz isso, um dos professores mais insuportáveis daqui do instituto... o pessoal que só pode estudar à noite fica muito deprimido com determinados professores, porque você não pode ter problema nenhum com eles, só tem eles pra dar aquela matéria. Você não pode ter problema com ele, se não você não vai se formar. A não ser que ele morra, ele saia, ou que vc consiga fazer em algum outro lugar. Porque ele ameaça o pessoal... então aqui a gente é reprimido por conta desses professores... e aqui as pessoas são caladas, não tem voz, ficam com medo de fazer alguma coisa porque... não vai dar em nada, o cara vai reprovar quantas vezes ele quiser e nada vai ser feito, por mais que você reclame... é diferente de quando eu fiz matéria lá na Letras, o pessoal é muito mais politizado.. a gente tinha uma sala de aula muito grande e... quem era o nosso professor era um professor substituto. Tinha um professor da casa, que era adjunto, que a turma dele era de umas 5 pessoas, mais ou menos, e então ele usava a sala pequena. Só que um dia ele encasquetou que um dia ele tinha que usar nossa sala com os 5 alunos dele, querendo, obrigando, exigindo que o professor na época que dava aula de Didática saísse da sala porque ELE era professor adjunto, ele era concursado, ele tinha o direito de usar a sala que ele quisesse. Se isso acontecesse aqui na Química, os alunos não tomariam parte do professor, os alunos não fariam nada, principalmente com medo do professor adjunto, de depender dele pra alguma coisa ou fazer matéria com ele e ficar reprovado. Na Letras, os alunos imediatamente se levantaram e falaram que ele até poderia ser professor adjunto contratado da casa, mas eles, alunos, eram concursados do vestibular da mesma forma que os outros, então eles tinham tanto direito de estar naquela sala quanto os outros, e a gente não vai sair e ponto final. Aí o professor chamou a segurança universitária e os alunos não saíram da sala de aula, não saíram e ponto final. Acharam um absurdo o professor chegar, querer que eles saíssem da sala porque ele queria usar a sala, não fazia o menor sentido, se a gente fosse pra sala que ele dava aula, não iria caber os alunos, e ele queria aquela sala pra dar aula pra 5 alunos, uma sala enorme... falta um lado político, um lado humano na área tecnológica, mas a repressão que a gente tem aqui... por esses professores, é muito grande, então nada seria feito... 147 P: E de uma forma geral, o relacionamento professor-aluno, aqui, seria essa de ficar mais acuado? E6: Sim, são poucos os professores que a gente tem liberdade pra conversar [acesso?] acesso, de ficar mais a vontade... tem professor que você tem que dar sorte do professor gostar da turma, ou gostar de alguém específico, ou de algum grupinho... se não, grita, ameaça, ninguém pode falar nada, sabe? E nada é feito pra tentar ajudar os alunos, e entra ano e sai ano, só pode fazer a disciplina com ele... se você tiver algum problema com ele, nada é feito pra isso... e todo mundo sabe, mas nada é feito. Tem um outro professor que as pessoas reclamavam e tem uma coisa que eu realmente estou constatando, é verdade, que ele não dá aula. Passa a aula inteira cantando as garotas, falando do Flamengo, falando besteirinhas, e aí... ensina... esse que não dá aula, que as pessoas falam, ele até ensina, só que o q ele ensina não cai na prova. É Química Analítica Quantitativa, essa disciplina envolve muita reação química, muitas contas chatas que a gente tem que fazer, ele não fala nada disso em sala de aula, ele fala das máquinas, dos equipamentos que são usados pra fazer essas análises. Isso que ele fala em sala de aula não cai na prova. Ninguém faz nada pra trocar o professor, ninguém faz um abaixo assinado, isso daí é assim há anos, da mesma forma que é com o professor de Bioquímica, então nada é feito. Só q o professor de Química Analítica, se você não conseguir estudar sozinho, você pode procurá-lo pra tirar a sua dúvida... então eu acho que talvez não aconteça de ter uma insatisfação maior por conta disso, porque você consegue estudar sozinho pra fazer a prova e se tiver alguma dúvida, pode perguntar pra ele, ele é acessível a ponto de te ajudar. Ele é acessível até porque ele gosta de mostrar pra você que ele sabe, ele se empolga... infelizmente essa é a realidade que se tem q dizer... 148 APÊNDICE F – ENTREVISTA 5 P: Pesquisadora (mestranda entrevistadora) E5: Entrevistado (graduando entrevistado) Entrevista 5: Bacharelado em Biologia, sexo masculino, 9º período recém concluído (havia colado grau uma semana antes da entrevista, mas ainda concluiria o trabalho no laboratório do referido curso), 22 anos. P: [apresentação da entrevistadora, dos objetivos da entrevista e do termo de consentimento]. Primeiramente, queria saber a sua opinião – é opinião pessoal, mesmo – a sua avaliação em relação ao seu curso, à sua graduação. O que você gostou, o que você não gostou... Sua opinião de uma forma bem geral. E3: De forma bem geral? [É, SUA opinião, sua impressão sobre o curso]... É complicado de dar porque, ao mesmo tempo, é um curso que eu sempre quis fazer, então obviamente eu vou ficar, às vezes, maravilhado com ele, mas, éee... analisando friamente, envolve pontos positivos e também pontos negativos, então dar um parâmetro geral é complicado. É... assim, eu acho que em termos de infraestrutura [...] é... alguns departamentos q fizeram parte da minha formação são excelentes. Porque às vezes as pessoas tem essa impressão da [Nome da Universidade], no geral, só pelos corredores, vê teto caindo aos pedaços, cachorro andando pelo corredor, como as reportagens que fazem: banheiros imundos, né? E tudo mais, mas em alguns lugares, você entra no laboratório e parece que tá em outro mundo. Então aqui a gente tem uma oportunidade éee, assim, sensacional, de fazer pesquisa de ponta. Mas, ao mesmo tempo, alguns departamentos éee... por exemplo, lá dentro do departamento de Zoologia do Instituto de Biologia existem alguns laboratórios que são muito favorecidos, tem... éee...recebem os módulos... os módulos que eles chamam, os módulos para trabalhar no laboratório. Tem infraestrutura, enfim, pra conseguir produzir pesquisa enquanto que em algum laboratório os professores estão até sem onde ficar, entendeu? É um “puxadinho” dos outros laboratórios, como no caso do laboratório que eu estagiei. Então ao mesmo tempo que tem pesquisadores excelentes, fazendo pesquisa de ponta, em alguns casos, a infraestrutura ainda é muito precária... Mas, éee, em relação aos professores, em relação ao conteúdo, éeee... claro que também tem aqueles professores mais... [risos] que deixam mais do que a desejar, mas eu acho uma oportunidade incrível você... você tem realmente uma oportunidade de obter conhecimento a partir de um professor que é especialista naquilo que ele tá te passando. Então o que vi, comparando com outras universidades, é que o professor daria aula... que é da Biologia não sei se posso falar do curso, exemplificar... é que Biologia é uma coisa muito ampla, né? O professor dá aula de um assunto e se vai dar aula de mais de um assunto, ele vai ter que se inteirar, vai ter que ir fora do que ele tá acostumado, e isso é o que acontece nas outras universidades, então acaba que o conhecimento que é passado é um pouco superficial. Uma coisa boa daqui é que os professores são pesquisadores, eles conhecem a fundo aquele assunto, isso me animava muito a vir pras aulas, eu sabia que aquela pessoa era especialista, ela, no Brasil, tá entre as melhores, das que mais entendiam daquele assunto. Então isso eu acho um aspecto muito bom, no caso da minha formação. 149 P: E você tem a prática em laboratório? [É]. No Bacharelado? Você ainda continua, você tá fazendo trabalhos aqui...? E3: Sim, é... o Bacharelado em Biologia também tem uma complicação. Como eu falei, a Biologia é muito ampla, você tem a Licenciatura e dentro do bacharel, do bacharelado, você ainda tem alguns bacharelados pra escolher. Por isso que falei que é meio complicado, então você tem bacharelado em Zoologia, bacharelado em Botânica, bacharelado em Ecologia, e aí, de repente, um aluno de cada bacharelado vai ter uma impressão do curso, até porque, por exemplo, a Zoologia aqui na [Nome da Universidade] é muito forte, enquanto que a Biologia Marinha já é um curso meio precário. Então... eu por exemplo, algumas pessoas da minha turma, vão receber o mesmo título que eu, mas vão ter uma formação completamente diferente, entendeu? P: Tem em Genética? E3: Tem, são 5: Ecologia, Genética, Zoologia, Botânica e Biologia Marinha. P: Isso só no bacharelado? A licenciatura é única? E3: Só no bacharelado, a licenciatura é única desde o início. P: Entendi... P: Qual seria a impressão da sua turma, ou até os alunos que entraram depois... a opinião em relação ao curso? A opinião dos alunos, a avaliação, o julgamento dos alunos em relação ao curso? E3: Você diz como eu acho que meu curso pareceu pra eles? [É] Então, eu tenho um pouco de pé atrás com isso porque eu acho que as pessoas adoram reclamar [risos] né? Então mesmo quando a coisa não está tão ruim assim, ou quando... um pequeno deslize, as pessoas já gostam de fazer um drama. Mas... eu via muita gente reclamando de professores, “ah, não faz essa matéria, essa matéria é muito ruim, não sei o que” e eu decidia “vou fazer”, e via que não era nada daquilo, entendeu? Então eu acho que tem muita reclamação exagerada [risos]... Éeeee, então eu não costumo me basear na opinião... Foi uma coisa q eu aprendi aqui: não se basear na... Assim, é bom você ouvir, de repente tinha coisas que eles estavam realmente certos, algumas matérias realmente não prestaram. Mas eu vi que todas as matérias, existe sempre uma pessoa que vai falar mal, que vai esculachar... então não costumava me guiar muito por isso e, de novo, falando... sei que tô sendo repetitivo de falar que Biologia é ampla, mas... justamente por ser ampla, tem gente que entra na faculdade pensando “vou fazer genética”, e tudo que não é genética a pessoa vai falar mal, todas as aulas de Botânica, vai falar “ai, que saco, essa matéria, esse professor...” Assim, se você não tiver a cabeça aberta, realmente você vai achar um saco... Então eram poucas as pessoas que realmente se abriam e que avaliavam bem, sabe? “Aquela matéria é boa porque o professor é bom, porque é bem dada” ou se é porque a pessoa não vai com a cara da matéria e simplesmente... [Já julga...] Entendeu? P: Você acha então que essas avaliações elas caiam mais por este aspecto pessoal? Ou não, eram outros aspectos...? 150 E3: Muitas vezes... Exatamente, quando a pessoa já não... “não é isso que eu quero fazer na minha vida”, então não ligava pra matéria, levava nas coxas, e enfim... acabava que reclamava, sem sentido, entendeu? P: Bom, a pergunta que te fiz primeiro foi uma pergunta mais ampla, né? Avaliação do curso, e agora vou pedir pra você pensar em alguns pontos mais específicos em relação ao seu curso... Quais seriam os aspectos que te fizeram gostar mais do curso? E3: [...] P: Podem ser palavras, frases, ... pode emendar uma coisa na outra [E: risos ...] E os aspectos que te fizeram gostar menos... E: É, os aspectos que me fizeram gostar mais... P: É o que você considera como um ponto positivo do curso, coisas positivas na sua graduação, e coisas negativas na sua graduação, coisas negativas no seu curso... E3: É, um ponto positivo eu já tinha até falado, esse dos professores. Que apesar da gente ter que dar jeitinho de brasileiro, todos os professores tem que dar, eles realmente são... são pessoas de grande conhecimento, então isso pra mim me animou muito, porque é uma coisa que eu sempre quis estudar. Quando cheguei aqui e vi que era um conhecimento todo que iria me passar, foi um ponto positivo pra mim, entendeu? [...] É... mas um ponto negativo seria muitas vezes a falta de compromisso de alguns professores, porque o que acontece aqui é que eles são pesquisadores, são obrigados a dar aula, de uma certa forma, então... então alguns professores se dedicavam muito mais à parte de pesquisa e não davam muita atenção pra parte de ensinar, então ou não preparavam uma aula direito, ou não cumpriam com horário, não cumpriam com a entrega de prova, entendeu? Então... então nesse aspecto era um pouco..., entendeu?... desanimador, digamos assim... uma outra... um outro ponto que seria mais pro negativo seria... seria a própria infraestrutura da faculdade, que... pra começar, o lugar, a região que esse lugar aqui se encontra, né? Já passei por tiroteio algumas vezes pra chegar até aqui... banheiro com papel é pra fazer festa... [risos] é um milagre... sabe? Sanitários imundos... corredores sujos, muitas vezes funcionários de má vontade, a gente já teve atrito por causa de um cara que não queria ligar o ar condicionado... é... acho que é isso. P: Agora vou dar uma afunilada maior, com perguntas sobre as disciplinas... Pensa agora na que você mais gostou, ou nas que você mais gostou... e descreve ela: como era o professor, como era a metodologia, como ele se posicionava, o que ele fez na disciplina?... E3: Tá... éee... uma coisa que eu prezava muito era o fato do professor preparar a aula, porque quando o professor não prepara, você percebe, né? [risos] Então... éee... quando você vê que o professor no dia anterior relembrou, estudou, preparou os slides pro datashow, preparou os slides direitinho e, uma coisa que é muito importante, principalmente pro nosso curso, é uma aula prática bem organizada. Isso faz a diferença, assim, da água pro 151 vinho. [Vocês tem muita aula prática?] Pois é... Aprender Biologia sem aula prática é inviável. E, pra alguns bacharelados mais do que outros, mas assim... o ciclo básico, pra começar, já tem umas 4 saídas de campo, no mínimo. Existe o trabalho de campo, o trabalho prático no laboratório, além das aulas. Então os próprios trabalhos de campo bem organizados fazem toda diferença na formação do nosso curso. Então alguns professores, bons, realmente se preocupam em organizar uma excursão, em organizar o que vai ser dado naquela excursão. Organizar as aulas práticas aqui, a gente o laboratório, aula prática, que... E preparar aula, assim... é uma coisa que é importante na vida do bacharelado aqui na universidade é o pensamento científico. Então muitas vezes uma aula que a Biologia tem que muitas vezes é maçante, que as pessoas reclamam, metodologia do pensamento científico... Então, às vezes, ela é simplesmente jogar o conteúdo, é muito maçante... Então uma coisa que eu achava muito interessante, que alguns professores só faziam, era indução de pensamentos. Então simplesmente sair jogando informação, você me entende? P: Os professores que davam estas matérias com conteúdo científico, como eles preparavam a aula? Tipo: apresentação de slides ou eles criavam outras estratégias? Como era a linguagem deles, a forma de falar?... E3: Pois é, eu acho que é a forma como você passa o conhecimento, não é nem você ter um slide bonito. Eu tive um professor que deu aula em transparência que foi excelente, muito melhor que muita aula em datashow. Então acho que é a maneira como ele passava o conteúdo, de não simplesmente jogar a informação, mas mais fazer você chegar naquele... fazer você seguir o raciocínio dele é o que faz você crescer mesmo porque, bem ou mal, uma informação mal jogada, passa uns meses, você esquece, a não ser que você fique lidando com aquilo... então aulas assim, não valem nada... P: Como você descreveria metodologia, didática, aula, construção de aula, o uso de materiais de alguma matéria ou algumas matérias que você não tenha gostado? E3: Aí seria basicamente o contrário dos pontos positivos: o professor não era assíduo, faltava, chegava atrasado e... deixava quieto... As aulas eram basicamente... era mais fácil você ler o livro, porque o professor praticamente jogava as informações, sabe? Não tinha uma... não tinha um modo de passar, uma coisa alternativa. Era aquilo, slide cheio de texto, isso é horrível [risos]. Inclusive uma das matérias que tô pensando, tinha aula prática, a aula prática era uma desorganização horrorosa... [era o que? em laboratório?] Era, uma aula prática em laboratório que você entrava e saia do mesmo jeito, sabendo nada. Nada era explicado, não tinha “porque que a gente tá fazendo nessa aula prática, vocês vão tá vendo o que”, era uma coisa jogada, “ah, isso aqui é isso, isso aqui é isso, pronto, viu? tchau”. P: E como foi a avaliação? E3: Uma prova. Peguei o livro, fiz a prova e já não lembro de quase nada [risos] que vi, entendeu? Isso que pra mim é uma matéria ruim... 152 P: E a avaliação nas disciplinas que você gostou, ou a avaliação de uma forma geral, como que é? E3: Principalmente no bacharelado que eu fiz, que fiz Bacharelado em Zoologia, as avaliações começam a ser muito menos de prova e mais de relatório de campo, seminário, mais trabalhos... seria uma coisa mais prática. Apesar de ainda ter algumas provas escritas, que... isso já... em outro bacharelado já deve ter uma outra visão... Bacharelado de Genética é praticamente todo prova escrita, Bacharelado em Zoologia a gente vai a campo toda hora fazer prática, tem relatório pra caramba, entende? Então... P: Sua impressão geral, você acha que tem mais alunos que optam pelo bacharelado ou pela licenciatura? Tem alguma diferença nesse número? E3: [...] Éeeee... [eu, sinceramente, não faço idéia...] É! Geralmente... eu diria mais ou menos meio a meio, até porque o bacharelado, ele se divide em 6, na verdade não é licenciatura ou bacharelado, é licenciatura ou genética, botânica, zoologia, entendeu? [Entendi...] Mas quando a gente opta por fazer licenciatura, não porque tem o sonho de ser professor, mas mais porque a licenciatura é uma garantia de emprego. Então você já sai podendo ganhar seu dinheiro e depois fazer seu mestrado em genética, por ex, entendeu? Ou fazer o bacharelado depois fazer a licenciatura e fazer o mestrado depois. Então tem muita gente que vai pra licenciatura pra ter aquela garantia, pra poder se der tudo errado, “eu sou professor”... P: E em relação aos professores... nessas avaliações a gente sempre fala que tem um professor ou alguns professores são exemplares e outros que não... mas às vezes tem aquele professor que é exemplar pra gente, como profissional, mas ele não é tão acessível... Como era o relacionamento entre alunos e professores? E3: No geral, é uma coisa muito boa ... a relação aluno-professor, relação até de amizade, muitas vezes, porque... Claro que tem seus podres, mas... né? Os professores eles... eles... Você tem onde encontrá-los, você sabe que o professor é do laboratório tal, você tem alguma dúvida, alguma coisa, você acessa ele. Mesmo que ele seja chato, tenha que encher o saco, mesmo que ele seja o máximo, que te recebe, que te dá maior atenção... Então acho que, independente da boa vontade dele, você vai ter acesso... e, no geral, os professores daqui eles tem uma... eles tem uma boa vontade pra te ajudar. Eu acho que tem uma coisa... coisa minha, eu acho que o que ajuda, no nosso caso, é justamente a prática e a saída de campo, porque a saída de campo é uma viagem. A gente vai pro meio do mato, fica, às vezes em alguns lugares sem tomar banho, prática no meio do mangue, sujo de lama, então, assim, pode parecer estranho, mas você cria um vínculo, você... dorme no chão, tá acampando junto, você acaba tendo uma intimidade. Então com muitos professores eu acho que o vínculo é realmente de amizade, de intimidade... no nosso caso... P: Mas você teria algum exemplo de atrito?... Por exemplo, os professores de campo, ter maior intimidade, é algo favorável... e um ponto negativo, algum 153 professor q seria exemplo negativo? Ou então... professores q não vão a campo, como você descreveria? E3: Assim, tem professores que não vão a campo e também são praticamente pais... mas tem aqueles professores que [...] muitas vezes são meio difíceis de encontrar, que são meio escorregadios, não tem tempo, “passa aqui depois”, bábá bibibi... e os que não costumam cumprir com a obrigação que na verdade é deles, e manda outras pessoas fazerem, por exemplo... ele bota estagiário pra dar aula, bota alguém... sem necessidade, entendeu? Não que o estagiário seja incompetente, mas ele não quer dar aula, bota o estagiário... ou falta, ou resolve que naquele dia não é um bom dia pra dar aula e manda um dos alunos colar um papelzinho mixuruca na porta, aí metade da turma não sabe, ele não se interessou, não pegou o e-mail de todo mundo pra avisar, ou nem se interessou em avisar, entendeu?... Tem professores que não cumprem com a obrigação deles... P: E teve professor substituto no seu curso? E3: Não, não porque... ... Você quer dizer assim, o professor não pode ir e mandou alguém no lugar? P: Não, professor substituto, aquele contratado temporariamente... [Entendi] Teve muito, ou mesmo que não, como era o relacionamento com eles? E3: Dos que eu me lembro, muito bons, às vezes até melhor que com os professores da aula... [o titular?] o titular. P: E a relação entre os alunos? E3: Isso já tinha até falado no início, minha turma se deu super bem... [mas assim, pro andamento da turma... por exemplo, às vezes todo mundo se dá tão bem, que aí um cria um atrito com algum professor e todos se envolvem... entendeu?] Eu via nossa turma bem articulada nesse sentido, porque se rolasse de uma pessoa insatisfeita, iria reclamar, geralmente sentar pra conversar, discutir, nunca... nunca vi nada absurdo, assim... P: Em relação ao desempenho acadêmico, ao rendimento dos alunos, satisfação com o curso, você tem uma opinião? Alguma impressão sobre? E3: Você diz da minha turma ou pode ser do curso em geral [o curso em geral...] eu acho que ...éee, com relação a isso, eu vejo uma tendência de piora, porque... acho que as pessoas tão chegando um pouco imaturas na universidade, e não tão melhorando... porque...éee, passar em matérias, não é muito difícil, eu acho que o interessante da faculdade é você realmente absorver aquilo porque aquilo vai pra sua vida profissional. Então, cada vez mais eu vejo entrando pessoas muito ... assim, infantis... e, na minha opinião, ele é um curso fácil de se passar... o difícil é realmente você absorver o que você vai precisar. Mas passar em matéria é fácil, pessoas que não querem nada com nada conseguiram passar no vestibular, e, infelizmente, vão conseguir um diploma, assim... éeee... assim éee... sem ter levado a sério. Então eu acho que... é... é possível, infelizmente, é possível você não levar tão a sério e, mesmo assim, conseguir o mesmo diploma que uma pessoa que realmente se esforçou... 154 P: Nesta sua avaliação, você acha que teria alguma diferenciação, por exemplo... algum curso que o pessoal leve menos a sério, tipo a licenciatura ou o bacharelado...? E3: Não, isso não sei... P: Ou grupos, tipo, meninos levam mais a sério, meninas levam menos a sério...? [negativa com a cabeça] E3: Não, eu vejo o geral... é... eu sempre lidei muito com o ciclo básico, dei muita monitoria, monitoria pra períodos anteriores. Então nos ciclos básicos que fui pegando as turmas, fui vendo isso, entendeu? De repente, quando a pessoa entra pro bacharelado, ela se toca da vida e começa a correr atrás, mas... [isso já seria no 3º. ano?] No 3º, exatamente, mas... 2 anos de ciclo básico que seria, poxa, o que todo biólogo precisa, a pessoa desperdiçou... levou nas coxas... P: Retomando o início... agora a gente já conversou muito e você tem alguma coisa para colocar sobre o que você mais gostou, o que menos gostou, coisas que você considerou positivas e importantes na sua graduação... Você teria algum ponto a colocar E3: Eu acho que alguns aspectos negativos acabam sendo até positivos, porque... é... você, como falei, você não ter material, você não ter coisas básicas, que você acha um absurdo não ter... assim, é a vida, você vai ter que se virar, aqui, então isso acaba, por outro lado, te dando um certo jogo de cintura... então... o professor que não te ajudou em nada na matéria, aí fica te cobrando muito, um professor que ensina mal pra caramba, mas que faz uma prova pesada... você aprende, assim, você vai se descabelar, mas acaba aprendendo. Eu aprendi a ser autodidata, a me virar, a correr atrás... assim, são pessoas que não fizeram a parte deles mas acabaram ajudando de outra forma... 155 APÊNDICE G – ENTREVISTA 6 P: Pesquisadora (mestranda entrevistadora) E6: Entrevistado (graduando entrevistado) Entrevista 6: Licenciatura em Biologia, sexo masculino, 10º período, 24 anos. P: [apresentação da entrevistadora, dos objetivos da entrevista e do termo de consentimento; garantia do anonimato como princípio ético] Qual é a sua avaliação em relação ao seu curso quando comparado aos cursos de outras universidades? Você tem alguma idéia sobre? E4: É a minha experiência no CAp [Colégio de Aplicação] ou minha licenciatura como um todo? P: Sua licenciatura como um todo. Se você acha que o CAp merece destaque, colocar também... E4: Entendi. Eu achei o meu processo todo de formação como licenciando foi muito bom, tive matérias boas... algumas matérias não correspondem tanto a expectativa e tudo mais, mas de uma maneira geral, eu acredito que minha experiência foi muito boa, que minha formação como licenciando foi muitíssimo boa e... a melhor parte, justamente, foi justamente o estágio no CAp, que você vivencia mais aquilo, faz algum sentido, faz O sentido, na verdade, aquilo tudo que você veio estudando, né? De colocar na prática, de construir em conjunto... éee... então eu enxergo que a experiência que eu tive no CAp foi fundamental e a melhor, assim, pra minha formação como licenciado e... ... éee... a respeito, assim, de comparar com outras instituições... eu não sei se tenho muita condição de fazer isso por não tá muito próximo de como outras instituições trabalham com os licenciandos dela, sabe? Pelo que ouço das pessoas, éee... tenho vontade de dar aula e tudo mais, sempre ouvi, pô, que o licenciando da [Nome da Universidade] tem um diferencial porque ele estagia no CAp da [Nome da Universidade], isso é importante pra caramba porque lá você é cobrado, o trabalho flui bastante, tem uma construção coletiva muito boa, então sempre ouvi dizer que isso é um diferencial, só que não sei até onde isso se aplica, se é pra todo licenciando da [Nome da Universidade], sabe? Se basta tá lá que você é licenciando da [Nome da Universidade]... porque nem todo mundo é obrigado a fazer prática no CAp, né? [É...] Éeee... isso eu não sei, se a avaliação que eles fazem é se você é licenciando da [Nome da Universidade] ou se é porque você passou pelo CAp... não sei qualificar isso... mas a impressão que eu tenho é que as pessoas gostam muito dos licenciandos formados aqui. P: E como você definiria a sua experiência durante a sua graduação, suas vivências, sua vida acadêmica? E4: Bom...gostei bastante.. você diz respeito às matérias que cursei... P: O curso como um todo: as matérias, os professores, as disciplinas, o convívio com os alunos, a relação professor- aluno, aquela impressão geral... E4: Pô, eu gostei bastante, no geral gostei bastante... tem lá seus probleminhas lá, com um professor ou com um... é, com aquela matéria que 156 você não tem muita afinidade, que você não acha que foi bem dada, mas às vezes é... não... culpa, assim, é o jeito do professor que não foi compatível com sua... expectativa da aula, sabe? Mas, de uma maneira geral, gostei bastante... P: E os alunos, as pessoas que fizeram o curso contigo, você tem mais ou menos uma ideia de como elas avaliam o curso, a experiência...? E4: Pô, tinha... ... assim, tem... como fiz tanto matérias na [Campo da Universidade] quanto aqui, dá pra quantificar, assim... lá na [Campo da Universidade], a gente tem gente de vários cursos diferentes, então é uma outra aula... aqui a gente tem muito mais aula com o pessoal da Biologia, então... não sei se pela afinidade, se pela convergência de idéias, assim, a aula caminha mais pra onde você sabe, mas... lá na [Campo da Universidade] éee... por conta dos alunos, às vezes, assim... nem todo mundo tem tanto compromisso, assim, não sei, sabe? Mas era um pouco mais solto... Peraí, deixa eu voltar na pergunta que eu acho que me perdi... É das impressões dos outros alunos... [É] Bom, já vi de tudo, de gente que “pô, achei maneiro, super importante”, aquele pessoal que tá empenhado em ler, em se interessar, e já vi gente falando “ah, só tô fazendo aqui pra completar mesmo, pra pegar o diploma no final e poder dar aula”, só pra poder cumprir crédito e pegar o diploma, mas... P: Mas isso seria o que? As disciplinas não eram consideradas importantes? E4: Exatamente, exatamente, fazendo pra cumprir créditos e o importante é ele ter o diploma pra poder dar aula ali... P: Mas seria por que? Porque já saberia uma forma de ensinar, de dar aula...? E4: No caso, se ele não julgasse aquela matéria ali, porque eu não fiz a mesma aula com todas as pessoas, sabe? Muda bastante, então, ou ele não julgava que aquela matéria era importante mesmo, só queria que aquilo ali acabasse, ou ele realmente julgava que tudo, não só aquela matéria, mas todas as outras, fossem importantes, fosse importante, por exemplo, só o CAp, que é a hora que ele vai botar na prática mesmo, vai aprender só ali. O fato daquela discussão teórica que vc tem antes de ir pra lá não fosse tão importante, sabe? E aí o comprometimento pode ser menor, passa por esses motivos... P: Mas fora esses aspectos mais específicos da licenciatura, o curso, a graduação daqui... [da Biologia?] É... O que teus amigos acharam? E4: Não só da Educação... [é, não só lá da Faculdade de Educação, mas daqui mesmo] ... daqui do curso de Biologia [sim]... O pessoal aqui do Instituto de Biologia, os alunos correm bastante atrás e... reforma de currículo, essas coisas, de procurar bem o que eles acham que é bom pro curso, o que é bom pra Biologia [Isso é atividade de Centro Acadêmico?] É, o Centro Acadêmico de Biologia é bastante ativo nessa parte, sabe? Eles participam sempre de congregação, pra discutir currículo, fazer a coisa andar mesmo, fazer a coisa melhorar pra todo mundo como um grupo. Funciona.. tem uma unidade bem grande, assim... em termos de movimento estudantil pra ... que haja uma melhora do que a gente tem... sabe? Assim, a gente fica muito satisfeito com os professores que ajudam, os professores puxam bastante os alunos pra 157 correr atrás, discutir, construir em conjunto essas coisas, sabe? A gente tá passando agora até por uma reforma curricular... tem o caso da ampliação das horas que a gente precisa ter estagiado, então como a gente já desempenhava muita atividade educacional extra acadêmica, tipo... [projetos de extensão?] Projetos de extensão, essas coisas, como é que a gente ia ver no currículo pra que já contassem horas ali, pra que não ficasse pesado cumprir tantas horas e pra que a gente já aproveitasse coisas que a gente já fazia, sabe? A articulação aqui funciona bastante bem. É difícil, as coisas são demoradas, mas não é por culpa nossa, uma reforma curricular não acontece da noite pro dia... mas tá caminhando e tudo mais, a gente tá correndo atrás de tudo isso... P: Você faz parte do Centro Acadêmico ou você tem contato? E4: Na verdade, não é que a gente tem um CA fechado e as pessoas que fazem parte. Todo mundo tá ajudando como quer e quando pode o tempo todo. Às vezes tem alguém passando no corredor e “ó, estamos precisando de gente pra assistir uma congregação e contribuir com opinião”, coisa assim... A gente tem um grupo de e-mail do CA e todo mundo que entre tem oportunidade de se inscrever e tá sempre, por e-mail, informado do que tá acontecendo no CA e fora dele, com relação à própria instituição, alguma mudança, avisos de palestras e coisas assim.. o CA é bastante ativo, você não precisa necessariamente fazer parte, a gente não tem um presidente, por exemplo, do CA. Todo mundo fala... é uma autogestão, não tem alguém que seja o mentor da coisa. Tem várias pessoas que são chave, que você conhece... você sempre reconhece aqueles que são mais ativos, mas não tem uma pessoa que responda pelo CA. Mas o CA responde por ele mesmo, é um grupo de pessoas... ... rola bastante, assim, o orgulho que as pessoas transmitem de “olhe tudo o que a gente construiu e olha como é que as coisas tem ficado boas pra vocês... vem ajudar a gente a fazer isso tomar um pouco da sua cara” P: Então a relação aluno- aluno, na Biologia, pelo que você está falando, é excelente... E4: É excelente, excelente... P: E como os professores lidam com isso? E4: A maioria deles adoram essa articulação que a gente tem porque... não é excludente com os professores, na verdade, como muitos dos professores já foram alunos do Instituto de Biologia, então eles tem um carinho por aquilo tudo, eles já passaram por aquilo e sabem o que aquilo representa. Então a articulação com a maioria dos professores é muito boa. Mas tem professores que... não... não tô dando um motivo, mas que são mais idosos, coisas assim [Que tem uma outra experiência acadêmica...] É, mais velho, que tem outra experiência acadêmica que acha que a opinião do aluno não importa... tem momentos muito bons e muito ruins na congregação. Tem professores que realmente ignoram a opinião e tem professores que querem mais é que os alunos dêem opinião, e abraçam aquilo ali, sabe? Difícil ter uma unidade completa, mas a maioria dos professores apóia muito isso. 158 P: E ainda em relação à sua opinião sobre o curso, a graduação, quais aspectos que te fizeram gostar e desgostar? [Da minha graduação?] É, pontos positivos e negativos... E4: Eu gostei muito dela, mas tem algumas coisas que ela não trabalha tanto. Por ex, aqui a gente é muito formado pra ser pesquisador, sabe? Não sei também muito como trabalhar isso, mas... [Na licenciatura, pra pesquisa?] Tanto pra licenciatura quanto pro bacharel, porque na Biologia funciona da seguinte forma: você, todo mundo tá no ciclo básico até o segundo ano de faculdade e, a partir daí é que você opta. Você não já entra como licenciando... eu, no meio da faculdade, tive que optar por um bacharel ou pela licenciatura. Quem entra no noturno, já entra em licenciatura, não se forma em 4 anos, se forma em 5, mas é licenciando. Mas ele teria como, é.. se mudasse de ideia ao longo da faculdade e quisesse mudar prum bacharel, alguma coisa assim, ele também teria como. Não é excludente, mas você taria já direcionado. Eu, como sou do diurno, no meio do curso tive que optar. Respondendo a sua pergunta, do que que eu acho, se faltou alguma coisa... [é, do que você gostou e não gostou, pontos positivos, pontos negativos...] Por isso tenho que mostrar como licenciando, necessariamente, entendeu? Só virei licenciando mesmo no meio da faculdade, mas eu senti falta, por exemplo, éee... como eu tava falando, que ela forma muito pesquisador, o Instituto de Biologia, então não me vi muita, assim, pela... por alguma disciplina, não sei como se encaixaria... que a faculdade me preparasse pra ser um biólogo de uma empresa, não sei qual seria o papel numa empresa X ou numa empresa Y, sabe? Ela preparou pra esse tipo de mercado, preparou pra seu eu fosse um pesquisador, preparou até muito bem, sabe? Os pesquisadores daqui são muito bons e tudo mais, nada a reclamar, mas talvez faltasse um pouquinho disso... Ampliar... No ciclo básico, eu não vejo nada de educação e eu tenho que, no meio da faculdade, optar se eu quero licenciatura... é engraçado... éee... no ciclo básico, eu não vejo nenhuma disciplina da Biologia Marinha, mas um dos bacharéis é de Biologia Marinha... então é curioso, sabe? Tipo, a Biologia Marinha básica eu puxo no último período como uma eletiva minha... pra ter uma noção da Biologia Marinha e ver se eu quero realmente esse bacharel... Pra isso, inclusive, que tem trabalhado a reforma curricular já pro ano que vem, vai ser inserida no ciclo básico uma disciplina da Biologia Marinha e coisa assim. Então há toda essa transformação... mas tinha algumas falhas assim, hum... não é isso q não me fez não gostar da minha formação, de maneira nenhuma, continuo gostando bastante dela, mas tô aqui pra poder ajudar no que for necessário e poder contribuir pra que as pessoas que venham sintam menos falta das coisas que senti, sabe? P: E fora este aspecto mais curricular você teria outra coisa pra dizer que você gostou ou que você não gostou do seu curso? Aspectos estruturais, aspectos burocráticos, parte de relacionamento aluno- aluno, aluno- professor... E4: Acho que essa parte de relacionamento tá bem respondido, mas de burocracia, problema de inscrição em disciplina, qualquer tipo de burocracia sempre foi... talvez pela relação muito estreita que a gente tenha com os professores e aluno-aluno, todo mundo sempre muito próximo, talvez por isso seja fácil da gente resolver problemas burocráticos, sabe? Você chega e a 159 pessoa já sabe que é você que tá entrando ali na salinha pra resolver isso, então talvez isso ajudasse um pouco, mas as pessoas sempre tiveram boa vontade. Até quando eu era desconhecido, sempre fui muito bem recebido, essas coisas, sabe? Ar condicionado nas salas e tudo mais, mas o banheiro não tem sabonete, tem esses probleminhas estruturais logísticos, na verdade, do prédio. Tem um... tá pra ser criado um novo prédio de Biologia ... olhando no global da situação da [Nome da Universidade], até que a gente tá bem, assim. Não tem muito o q reclamar, não, tem uns probleminhas que poderiam ser resolvidos, mas tá tudo bem... P: Ainda em relação ao curso... A gente falou do curso de uma forma mais ampla, agora algo mais específico com relação às disciplinas. De quais disciplinas você mais gostou e menos gostou, e por que? E4: O que me fez gostar muito de umas disciplinas, e não gostar de outras...? [Isso] Opinião pessoal mesmo. Éee... por afinidade, assim, a maioria das disciplinas que achei as mais legais foram as que tiveram saída de campo, não... falando friamente, assim, sem omitir nada... não porque é uma viagem, porque é um oba oba, porque a gente vai pro meio do mato e não tem trabalho. Muito pelo contrário, as viagens que a gente tem é trabalho de manhã, de tarde e de noite, mas é muito bom porque você, tudo aquilo que você vê em sala de aula vira uma coisa mais prática, sabe? E você integra a turma com o professor, e atividade o tempo todo, então isso contribui bastante pra que a disciplina seja boa. P: Então, neste caso, as disciplinas práticas seriam as que você mais gostou, e as que menos gostou seriam as mais teóricas? E4: Não necessariamente, por exemplo: éee... tive uma matéria de botânica e não necessariamente, não que não gostasse, mas não era minha maior afinidade com botânica, achava interessante e tudo, mas com certeza não era o que eu faria na faculdade, um bacharel de Botânica. Mas um dos professores mais importantes pra mim foi um professor de botânica, que justamente ele dava uma aula excelente, botava aquilo tudo no seu dia a dia e tudo mais, um professor de Fisiologia Vegetal e foi por causa dele, inclusive, que eu decidi fazer licenciatura, sabe? Não foi ele quem me puxou prum bacharel de Botânica nem nada. Eu tava em dúvida no quarto período, último período pra decidir que que eu ia fazer, e ele falou, de verdade, sendo frio com você, éee... ele era um professor muito didático, muito bom... Éee... “o diploma de bacharel não vai te dar nada mais. Se você quiser levar sua pesquisa num laboratório, por fora, sem ter diploma de bacharel. E se você fizer sua licenciatura, não só você vai tá fazendo um trabalho importante pro teu país, sabe? Pra consertar os problemas que você vê, de professores que poderiam ser melhores, e consertar coisas que você acha ruim, éee... como você vai ter diploma pra trabalhar com isso, que o bacharel não dá essa condição, de trabalhar como professor. Se você tá dizendo pra mim que gosta de educação e tá em dúvida entre escolher educação ou bacharel, então vai escolher educação e se você quiser, você trabalha como bacharel, como bacharel, não, como pesquisador também. Não é o fato de você ser licenciado, não exclui de trabalhar com pesquisa em alguma área que você goste”. Ele tinha preocupação com os 160 alunos e tudo mais, e essa disciplina não tinha saída de campo, mas o professor era muito bom, ele tinha aquela preocupação com o aluno, sabe? Não tinha preocupação de ter saída de campo, mas uma vez ele foi gripado, doente, levou a gente no jardim de didática, ficou pegando chuva, o cara era apaixonado pelo que ele tava fazendo. Tomando chuva ali, querendo explicar, a gente “não, vamos sair da chuva”, ele “não, vai passar daqui a pouco, só repousar”... P: E isso que você falou seria [lados positivos] é, lado positivo, um professor que você gostou. E como você descreveria os bons professores que você teve, as qualidades que eles tinham? Pensa nas pessoas que você gostou de ter aula e nas pessoas que você não gostou de ter aula... Quais são as características delas? E4: Os bons professores eram descontraídos, assim, no sentido de... não no sentido de brincalhão, mas no sentido de ser uma pessoa simpática, não uma pessoa fria e distante de você... tinha aquela preocupação em te receber, tava preocupado com a função dele ali, que era trocar informação com alguém, tipo dar e receber ideias novas e tudo mais, sabe? Éee... Gostava muito, como na verdade acho que deveria ser em qualquer profissão, ser apaixonado pelo que faz, pra que isso ajude a fazer da melhor maneira possível... e comprometimento com aquilo que ele faz. Agora tive muito professor que chegava ali e falava “olha, odeio dar aula, tô aqui só porque sou obrigado, porque minha praia é pesquisa e infelizmente vocês vão ter que me aturar aqui um pouquinho”. Aí ele dava aquela aula de leitura de slide e só isso, sabe? Não tinha aquela preocupação com que a gente... como fazer aquilo de uma forma melhor, ou como tornar aquilo interessante pra gente, ou o que que a gente precisava dele, sabe? Coisas assim... ou tornar a disciplina um pouco exterior à sala de aula, enfim... tive muito professor frio, cabeça dura, que não tinha a menor paciência com nada. Tive professores que adoravam dar aula e odiava corrigir prova, o que na verdade você tem q fazer, né? A burocracia exige, tem que tá lá pra ser feita, aplicar a prova e corrigir, por mais que não seja a melhor forma de avaliar, mas que não é a única. Se ele não procurou outra, é porque ele não quis... P: E você gostava mais de qual modelo de avaliação? Você gostava como aluno, você pretende fazer como professor...? E4: Tem matérias que não tem muito como fugir da sala de aula, não é a melhor metodologia, mas às vezes não tem muito como fugir daquilo ali. Mas eu tive uma disciplina que durante um semestre inteiro, preparamos um curso para professores, e era sobre “Vivências em Ecologia”, então, não tinha aula, assim... a disciplina era... sentava 10 alunos em sala de aula com 2 professores e a gente elaborava um curso de 1 semana, com atividades de manhã e de tarde, que a gente levasse esses professores ou esses funcionários de secretaria de meio ambiente pra ir em... em... determinados ambientes, ou numa restinga, ou numa praia, ou numa lagoa onde houvesse algum impacto ambiental e que a gente teria que, fora do ambiente de sala de aula, transmitir algumas informações pra eles, pra que eles tivessem alguma vivência em ecologia. A gente fazia saída de campo com os professores, 161 atividade lúdicas, jogos, botava os professores pra construir novas formas de ensinar aquilo que eles viram num momento anterior, numa praia, pra que eles tivessem um... trabalhassem o conteúdo que eles tiveram pro próprio grupo, sabe? Preparar como seminário, ou uma história... Construísse alguma coisa sobre o que eles aprenderam de manhã e, à tarde, passasse isso pra todo grupo, era uma turma de 40 alunos. Dá pra dizer que essa foi a melhor matéria, muito gratificante, o resultado final, a construção em grupo de um curso. Você mergulha bastante naquilo ali e vê o resultado positivo do que sai... P: E como você acha que seria a avaliação do pessoal que se formou contigo sobre o que a gente já conversou? E4: Acredito que eles, de maneira geral, tenham gostado muito das disciplinas que fizeram aqui, não acredito que tivessem muito o que reclamar. Tem uma ou outra que você fala que foi horrível, mas de maneira geral, acho que eles gostaram muito. P: E exemplos negativos? Assim, não necessariamente que você não gostasse da pessoa, mas como professor não achou bom... E4: Tive professores assim, que se esforçavam mas, não sei se é muito aquilo, que o cara entra aqui como pesquisador e é obrigado a dar aula, então por mais que ele se esforce, não leva jeito, não é o que ele gosta, ele se esforça assim, já que tem que fazer, vou tentar fazer da melhor forma possível, mas... não sei se por falta de ferramenta, por falta de formação como professor... [sinal negativo com a cabeça] [mas como ele é? Descreve...] Você entra na aula, assim, você vê o cara meio devagar..., meio... falando no mesmo tom de voz, te dando um feijão com arroz, assim, muito sem ter como... sem ter tido muito instrumento, muita coleta pra trabalhar um pouco mais a aula... Ele segue aquela linha de raciocínio, mas sem destrinchar muita uma coisa ou outra, é uma aula muito monótona, que você vê que o cara não consegue ter a atenção do pessoal, que não torna aquilo tão interessante quanto deveria... são disciplinas que já vi que o cara lê um livro, não vou perder tempo aqui parado na aula dele porque, tá bom, ele se esforça, mas não dá, não consigo assistir aula dele. Pra ler, leio em casa. Não sei se é falta de talento, se é falta de instrumento, sabe? Se o cara tá dando aula porque ele é obrigado mesmo e nunca teve uma formação pra isso, que auxiliasse ele de alguma forma, ou pra planejar uma aula, ou como conduzir uma aula, sabe? Não dá pra avaliar muito onde tá o defeito do cara... Muitos não saem do livro, muitos professores chegavam e liam slides na aula, “ó, isso aqui, é isso aqui, isso aqui...”, passava slide. Não faz sentido, porque o cara tá ali... não rola uma troca de informação entre aluno e professor, o professor joga... aquele esquema, né? Você é uma tábula rasa e vai depositar informação e pronto. P: E o relacionamento desse professor com o aluno, a avaliação...? E4: Geralmente esses caras não fogem muito do tradicional... é aquilo, ele chega, aí você vai estudar o que ele leu pra fazer uma provinha, não tem muito uma construção de raciocínio. É mais ver se você assimilou o que ele passou pra você. [isso seria comum no curso?] Não, isso não é comum, não. Foram 162 poucas as matérias que eu peguei... poucas ou quase nenhuma matéria que eu peguei que realmente o professor só lia o slide, você fazia uma prova e acabou. Dificilmente peguei matéria assim. Já peguei uma matéria que era muito legal, a professora tinha boa vontade, mas a aula é muito ruim, o livro explica melhor, sabe? O livro torna mais interessante... e essa professora é até uma professora da licenciatura [risos] Mas o mais interessante era que ela dava uma aula... eram duas aulas... No primeiro tempo, ela dava a aula. No segundo, ela já deixava esquematizado prum grupo de alunos dar a mesma aula. Sabe? Ela dava uma aula e um grupo dava um seminário sobre aquele tema... só que os seminários eram sempre mais interessantes do que a aula, sabe? [risos]. Não sei se a gente aprendia mais porque via a mesma coisa seguida, se era porque realmente era mais interessante quando os alunos davam, e a prova dessa professora era decoreba. Poderia ser muito mais interessante, muito mais raciocínio, mas era decoreba, era múltipla escolha, e palavras chave que respondiam as questões... não sei porque ela fazia isso, se era falta de tempo, se era... o que que era...