Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 3, p. 411-426, set./dez. 2013
TRÊS CRIANÇAS A COMPOR
UM PLANO PARA O CURRÍCULO1
Antonio Carlos Amorim
Faculdade de Educação – Unicamp, Brasil
Resumo
Neste artigo, discute-se e problematiza-se a centralidade do conceito de enunciação na teorização
do campo de estudos curriculares brasileiros, como indicado numa pesquisa em rede internacional
coordenada por William Pinar. Destacam-se correlações transversais entre esse conceito com
perspectivas que advogam para a área de educação seu status discursivo e estilístico de ciência, em
detrimento de sua qualificação como estética artística e filosófica. Tendo como inspiração a
criança, ao mesmo tempo imagem e palavra que pulsam em alguns tipos de literatura e do cinema,
apresentam-se sugestões de planos de composição para o currículo que tenham a arte como
referência, agindo criticamente em favor do trabalho do campo de teorias curriculares com os
conceitos da filosofia da diferença de Gilles Deleuze. Para tanto, as imagens da criança são a
companhia para estendermos linhas que dêem à enunciação alguns importantes deslocamentos
para pensarmos teoricamente o currículo.
Palavras-chave: currículo, enunciação, filosofia da diferença, cultura audiovisual.
Abstract
This paper discusses and problematizes the centrality of the concept of enunciation in the Brazilian
curriculum field according to international research network coordinated by William Pinar. It
highlights cross-correlations between this concept with perspectives which advocates the status
and stylistic discourse of science for the education field, opposing to its qualification as aesthetic,
artistic and philosophical. Taking as inspiration the child, as image and word that pulsate in some
kinds of literature and cinema, the paper suggests planes of composition plans for the curriculum
that have art as reference, acting critically on direction of the work of field curriculum theories
with the concepts of the philosophy of Gilles Deleuze difference. Therefore, the images of child
are the company to extend lines to give utterance to important shifts to think theoretically the
curriculum .
Key-words: curriculum, enunciation, philosophy of difference, audiovisual culture.
ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org
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ANTONIO CARLOS AMORIM
Desalojar a enunciação
Minha intenção neste artigo é estabelecer conversações com estudos de currículo que
apostem em deslocamentos e fluxos propulsores de um plano de composição. A
composição, entendida como um terceiro espaço, nas análises de William Pinar (2011),
converte numa tensão produtiva algumas articulações entre os quatro conceitos que
caracterizariam o campo dos estudos de currículo no Brasil: a enunciação, o hibridismo, o
cotidiano e a multiplicidade de acontecimentos. Algumas argumentações de William Pinar
(2011) vão na direção de localizar transversalmente os efeitos do conceito de enunciação,
devido à importância na constituição de teorias curriculares de sua articulação com os
significados, entendidos como sendo múltiplos e sempre passíveis de revisão, contestação e
ressignificação. E que, constantemente, estão em negociação.
Na reconstrução do campo de estudos de currículo no Brasil, em sua pesquisa, William
Pinar (2011) indica que a enunciação torna-se o "motor" de outros conceitos, tais como o
cotidiano , e com o movimento – ou a multiplicidade dos acontecimentos - que a vida
cotidiana prenuncia. A enunciação não é entendida, nesse contexto, apenas como os
pronunciamentos de políticos e administradores e até mesmo de professores, mas também
de alunos e pais, localizados no mundo da escola e de fora dela; assim, a enunciação
conceitualmente seria capaz de operar com a ‘mistura’ que é a realidade social, estruturada
em formas híbridas.
O pressuposto articulador do conceito de enunciação é colocado sob suspensão por
alguns tipos de pesquisa sobre currículo no Brasil – especialmente aquelas que trabalham
no e com os cotidianos e as de cunho pós-estruturalista - que se voltam ao espaço vazio da
estrutura. Localizo, esse grupo, as pesquisas que venho desenvolvendo; elas afirmam,
provocativamente, um espaço de "desfiguração", o trabalho das linhas em um plano que
seja simultaneamente imagético, auditivo e virtual, nos quais o que interessa são as
intensidades. As formas de desfiguração constituem os acontecimentos de um “currículo
criação”, que não é a repetição do mesmo, mas a produção de algo completamente
diferente. Esse algo completamente diferente, segue William Pinar (2011), é especificado
pela abertura de brechas para a reunião heterogênea de sentidos, de invenções, de
fabulações, e intensidades que, por exemplo, fazem o conceito de hibridismo ganhar
dimensões estéticas destacáveis. O híbrido, nessa constituição, nunca é uma entidade
controlável pelos jogos de produção de significados, daí seu caráter aberto e dependente da
multiplicidade de acontecimentos.
Essas discussões colaboram, também, para que se aprofunde a tensão entre as
categorias espaço e tempo nos estudos de currículo no Brasil, marcadamente no contexto da
transversalidade da enunciação. Sob essa égide, tanto o espaço discursivo quanto o
cotidiano têm tomado várias formas de organização, de regulação e de subjetivação. O
cotidiano assume múltiplas formas que podem não ser livres de vigilância [olhar atento] e
regulação. Como a enunciação opera em busca de tornar visíveis as produções discursivas
e, desse modo, traçar as analíticas da emergência dos seus efeitos, sua intenção está, a rigor,
em busca da verdade. “O discurso é uma espécie de negociação, nas qual não é permitido
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Três crianças a comporem um plano para o currículo
excluir ou diminuir ninguém e o que vale são os argumentos e não as imposturas retóricas”
(Pereira, 2013, p. 220). É da negociação, entendida como uma estratégia, que depende o
discurso que encobre o real; nesse movimento, aparece o propósito de verdade. Dos quatro
conceitos com que Pinar (2011) trabalha, a multiplicidade dos acontecimentos é o que
desfere um lampejo de suspeita com relação à enunciação, pois como trabalhar com a
emergência da tradução dos sentidos na multiplicidade? Como garantir o mínimo da perda
irreparável da tradução sobre a busca da verdade que deseja a enunciação?
Como bem destaca Pinar (2011) ao trazer as diferentes nuances sobre os estudos
curriculares no Brasil, na articulação entre os quatro conceitos que caracterizam o campo, é
a reposição central do sujeito da enunciação – é coletivo, é fraturado, é expressão das
diferenças – que responde às perguntas anteriores na direção da produção de discursos
pautados na continuidade e na unidade (mesmo que diversa).
Essa transversalidade da enunciação no campo de estudos de currículo no Brasil
encontra com o conceito de experiência um caminho que, para alguns de seus convictos
seguidores, os faz pensar sobre a exigência de um debate crítico rigoroso, “que nos coloque
frente a frente com a nossa própria experiência, nossa própria história e nosso próprio
exercício de racionalização” (Pereira, 2013. p. 222), em busca de um “exercício de crítica e
autocrítica no interior de uma realidade partilhada e que poderá ser compreendida em
termos de verossimilhança ou inferência” (idem).
A enunciação enquanto estratégia de negociação é, portanto, posição de autoria, que
dirá da realidade a partir do adensamento do estado da experiência subjetiva que é
objetivada. Pereira (2013) centrará atenção na escrita que se produz no “limiar do próprio
sujeito, no limiar do que existe, na delicada e sutil faixa entre o pensamento e a palavra. Ao
escrever, articulamos indissociavelmente três dimensões: a língua, a linguagem e o dizível.
(...) o dizível, por fim, efeito do entrelaçamento entre a palavra e o olhar, aquilo que,
porque é possível ser visto e pensado, é possível ser dito – ou, ao contrário, porque é
possível ser dito, é possível ser visto e pensado” (p. 215/216).
A enunciação, em sua maquinaria interpretativa e de análise, propõe a afirmação do
campo de estudos de currículo como área acadêmica e científica, com os regimes de
verdade que a sustentam. Distancia-se do sensível e aproxima-se de um “equipamento de
enunciações, ponderações, postulados e argumentos que, em última análise, atualizam uma
negociação com o leitor” (Pereira, 2013, p. 226). Para tanto, marcar que “a literatura
continua sendo literatura e a ciência continua sendo ciência” é fundamental para construção
do convencimento. O artigo de Marcos Villela Pereira (2013) torna-se contundente na
crítica a uma passagem (e mesmo um borramento da enunciação como estruturante de
discursos), sem critérios, entre a escrita científica e a literária, quando se tomam como
referência conceitos da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari que desejam relações
entre a escrita e o devir, e a fabulação (o povo que falta) e o fato de nos tornarmos
estrangeiros em nossa própria língua. Ora, em se tratando das escritas curriculares essas
conexões dissonantes podem gerar perfurações importantes aos sentidos de univocidade do
postulado, abrindo espaço para que floresçam as ambigüidades e a incerteza da
interpretação da realidade, pela íris da verdade. O convite que Deleuze e Guattari fazem à
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ANTONIO CARLOS AMORIM
escrita é de ela devir música em movimento e os dedos, ao invés de escreverem/digitarem,
dançam, criam verdades que se possam dançar.
Uma outra mirada para o conceito de verdade se faz necessária, tomando-o como
múltiplo, “verdade intensiva idêntica à Vida: a verdade não faz mais objeto de uma
‘pesquisa’, mas torna-se o sujeito de uma afirmação que se encarna nas idéias e nos corpos
sob uma forma intensiva” (Lins, 2004, p. 46).
Intensiv–ar
Qual o lugar no currículo? De fato, um lugar intensivo2 a ser criado. Estudando as
audiovisualidades, tendo Gilles Deleuze como intercessor, as intensidades são o mote das
linhas de aprendizado com os signos sensíveis, redescobrindo o tempo, restituindo-o no
meio do tempo perdido. Tal restituição traz a agudez da perda e da morte, derivando-se
numa imagem de eternidade. “É no próprio signo sensível que devemos encontrar uma
ambivalência capaz de explicar por que às vezes ele se transforma em dor em vez de
prolongar-se em prazer” (Deleuze, 2003, p. 18). Essa ambigüidade do signo inventa o
currículo por registros que narram avessos da dobra, expondo subjetividades que não
alcançam territorializar-se, e vagam por entre escritas e fundam um vazio.
Uma re-colocação por Gilles Deleuze do papel dos signos, pelo estudo da literatura e
do cinema, tensiona as relações entre o visível e o dizível, paradoxo que escolhi para tratar
das articulações entre currículo, cotidiano e culturas (Amorim, 2013) e, neste artigo, agem a
perfurar a ideia da enunciação.
Estenderei este artigo em linhas que pulsam no encontro com textos acadêmicos e com
imagens e sons da literatura e do cinema. Acompanhado da singular e ordinária figura da
criança, insisto em retomá-la à visibilidade da enunciação do currículo, inventando um
problema, de natureza estética, que se contrasta no clichê do currículo como dispositivo de
fazer a criança conhecer a partir da retirada de sua condição de uma experiência
indisciplinada com o mundo.
Tenho considerado sugestivo pensar as dissonâncias criadas pelo currículo, tomando a
infância como uma linha insubordinada dos movimentos intensivos de espaço (sucessão) e
tempo (duração); são planos de composição em contrações e dilatações, expansões e
adensamentos, nos quais o que interessa são a coexistência e a variação.
Deseja-se rascunhar um estilo em que indagar como sair do caos e conquistar a
autonomia de produzir um mundo seja-nos a condição de pensar o currículo como campo
problemático. A experimentação desse estilo de pensar efetuou-se em dois registros
anteriores de minhas pesquisas.
Em um deles (Amorim, 2011), a partir da escolha de três produções audiovisuais dos
estudantes na disciplina “Escola e Cultura”, no segundo semestre de 2006, estabeleci
conversações em busca de tratar as imagens da escola fora do regime orgânico – e
ensaiando uma proposta do plano de composição intensivo - que as compreenderia por dois
tipos de existência como dois pólos opostos: os encadeamentos atuais, do ponto de vista do
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Três crianças a comporem um plano para o currículo
real, as atualizações na consciência, do ponto de vista do imaginário. O intensivo emerge
pela relação entre o audiovisual e a sincronicidade do tempo da aprendizagem, que
respaldou a edição do material pelas/os estudantes na lógica de um possível, aquele da
percepção reconquistada pela lembrança e pela memória.
Em outro texto, penso as imagens de escola esforçando-se para fixar no caos um ponto
frágil como centro, linhas de fuga, intensidades do abandonado. “O abandono da sensação
de se partir do caos até um agenciamento territorial e depois sair dele. O abandono (...) é o
do corpo impresso na história, permitindo à superfície da imagem ecoar sonora e
visualmente a batalha dos modos de educar fora da lógica das formas. Arrancar a imagem
visual ao clichê nascente para arrancar a si próprio à ilustração e à narração nascentes”
(Amorim, 2012a, p.281/282).
Nesses dois casos, quando percebemos a infância nas imagens, não se apagaria ou se
anularia a característica primeira dos signos, suas qualidades e impressões primeiras, tais
como sua cor, seu gosto amargo, sua vibração tediosa, seu entendimento difícil, sua
nobreza. Mesmo após o processo de afecção, isto é após ser vista, a qualidade da imagem
que é potencialmente considerada como algo a ser expresso - por exemplo, a significação
da infância como rememoração ou como luta contra os clichês na tensão do embate entre
singularidade e subjetivação - restam algumas percepções que se mantêm latentes ou
implícitas na imagem. E é nisso que “resta”, que seria abandonado pela nossa afecção com
as imagens, que o subjetivo e o objetivo dos signos são indiscerníveis. A emergência de
uma inevitável autonomia estética da infância, “caracterizando-a como um objeto
plasticamente construído, dotado de uma consistência visual que o possibilita apresentar o
processo, funcionando em direção a proposições não-lineares, não-dialéticas e nãoconclusivas ao conectar sincronicamente realidades conceituais, objetuais e gestuais”
(Bausbaum, 2006, p. 67).
A esse tipo de movimento, a enunciação está muito pouco interessada, devido à
vinculação que faz à verdade, como expus anteriormente. Voltando nossa compreensão de
que seja no tempo absoluto da obra de arte que todas as outras3 dimensões do signo se
unem e encontram a verdade que lhes corresponde, instaura-se um convite para retomarmos
a relação com os estudos de currículo, deslocando que a enunciação – que faz testemunhar
a irrupção involuntária da verdade, de modo similar à metáfora na linguagem - seja, em
última instância, a verdade da sua verdade. Da literatura de Proust, Deleuze extrai a
propulsão dos signos, “vibração e enlace que testemunham o confronto de duas ordens, a do
sensível organizado pelo entendimento e a do verdadeiro sensível” (Rancière, 2007, p.
137), e faz a recusa da metáfora, abrindo o signo à metamorfose, ao sensível que deve ser
tão diferente daquele que organiza nossa experiência cotidiana “quanto a barata no quarto
de Gregório Samsa é diferente do bom filho e do honesto empregado Gregório Samsa. (...)
Para tanto, é preciso que o artista tenha ele próprio passado ‘do outro lado’, que ele tenha
vivido algo de demasiado forte, de irrespirável, uma experiência da natureza primordial, da
natureza inumana da qual ele retorne ‘com olhos avermelhados’ e marcado na carne”
(idem).
Outro elemento que faz parte do pensamento maquínico da enunciação é a articulação
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ANTONIO CARLOS AMORIM
entre verdade e semelhança, ou verossimilhança. Os estudos de currículo podem enfrentar
tal condição e tratá-la como um tipo de crítica que advém da relação entre a experiência e a
singularidade do vivido na produção da obra de arte por cada artista. É como se
metamorfoseássemos os sentidos que a enunciação engendra ao currículo para um fora da
sua forma e fazê-la trabalhar em favor de tornar visível a força que, produzida pela afecção
de um signo, pode retê-la e transformá-la em sensação como resultado de sua experiência.
Para Deleuze e Guattari (2004), se a semelhança pode impregnar a obra de arte, é
porque a sensação só remete a seu material:
ela é o percepto ou o afecto do material mesmo, o sorriso de óleo, o gesto de
terra cozida, o élan do metal, o acocorado da pedra romana e o elevado da pedra
gótica. E o material é tão diverso em cada caso, que é difícil dizer onde acaba e
onde começa a sensação, de fato. Como a sensação poderia conservar-se, sem
um material capaz de durar, e, por mais curto que seja o tempo, este tempo é
considerado como uma duração. O que se conserva, de direito, não é o material,
que constitui somente a condição de fato; mas, enquanto é preenchida esta
condição (enquanto a tela, a cor ou a pedra não virem pó), o que se conserva em
si é o percepto ou o afecto (p. 216).
Quando a sensação atinge o corpo [ou seja, o material mesmo] através do organismo é
imediatamente convertida na carne pelas ondas nervosas ou emoções vitais. Porém, a
maneira como uma afecção sensorial é experienciada, e as formas que um afecto trabalha,
serão sempre específicas para um corpo. Anna Hickey-Moody (2013) indica que as forças
produzidas pelos trabalhos de arte existem em relação àqueles que as experienciam,
movimento que remete a um esforço para a experiência acontecer. Esse processo ocorre em
um plano de composição; em outras palavras, esse é um processo de produzir um ‘mix’ de
materiais ou agenciamentos que afetam o pensamento através da modulação do corpo e
suas emoções.
Essa autora, ao argumentar as conexões entre o pensamento de Gilles Deleuze e as
metodologias da pesquisa no campo das ciências sociais, destaca que as idéias de percepto,
afecto e blocos de sensação oferecem fontes conceituais críticas para a teorização da
política da estética. Essas ideias necessitam ser tomadas em planos de experimentação para
as ciências humanas mapearem a política dos trabalhos de arte e os afectos que eles criam.
Pelo trabalho do corpo com a capacidade de sentir, responder e imaginar, a estética pode
remapear as rotas do afecto. Rotas que possam ser abertas, conectáveis em todas as suas
dimensões, desmontáveis, reversíveis, suscetíveis de receber modificações constantemente.
Linhas. Corpos e seus poderes de afetar e serem afetados, mais do que suas essências
estáticas. Linhas como as capacidades de os corpos agirem e responderem a partir da
atualização de conexões entre si que estavam previamente apenas implícitas.
Tais derivações do/no corpo têm, para nosso interesse, uma correlação pedagógica,
curricular, que os conceitos de Deleuze e Guattari auxiliam-nos a diferir ao pensarmos uma
relação da criação e da autoria, de outra ordem da escrita que habita o currículo estriado em
pesquisa científica. Talvez a proposição de trazer o currículo a operar no sistema de
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crueldade do vazio, no qual o corpo para e toda a vivência mergulhada implica uma
relação-outra com as coisas e os signos. “Assim, enquanto o juízo impõe uma busca de
interpretação, como na oração, por exemplo, que é uma demanda de sentido que transcende
as sensações, a crueldade propõe a experimentação. ‘Nunca interpretem, experimentem’”
(Lins, 2004. p. 84). Experimentar é a espinha dorsal da estética.
O corpo, nessa condição da experimentação, não é o que pensa – argumenta, negocia e
luta por sentidos hegemônicos; ele força a pensar, e força a pensar aquilo que escapa ao
pensamento. Um esforço de a experiência acontecer. Tal esforço, força e violência nada
têm a ver com as lógicas da enunciação, tais como a negociação e o juízo interpretativo. Ele
não tem na designação o seu critério de “desempate” entre o verdadeiro e o falso.
Verdadeiro, neste caso, significaria que o “preenchimento se faz para a infinidade das
imagens particulares associáveis às palavras, sem que haja necessidade da seleção. Falso
significa que a designação não está preenchida, seja por uma deficiência das imagens
selecionadas, seja por impossibilidade radical de produzir uma imagem associada às
palavras” (Deleuze, 2003, p. 14).
O esforço violento do corpo em direção à experiência é a ampliação e mudança de seus
limites. Um certo tipo de intencionalidade do que Anne Hickey-Moody (2013) denominou
de pedagogia da afecção, trata-se da experiência sensível que, primeiramente, é
reconfiguração corporal e, depois, uma nova geografia emergente da experiência. Como
isso pode acontecer? Pelas correlações entre os perceptos e precisamente os devires nãohumanos do humano, que são criados nas relações entre a tela, os pinceis e a textura da
pintura que se dobram juntas para criar novos imaginários; e as imagens cinema que podem
tensionar os significados das virtualidades: o nada pré-existente, já dado num mundo
inteligível ou em latência e que constitua um modelo do que se atualiza num estado de
coisas ou no vivido; e a literatura, variação de uma língua, tensão da linguagem em direção
a um fora.
Linhas da estética
Rosa Maria Bueno Fischer (2011), em artigo que versa sobre as mídias audiovisuais e a
literatura, retoma problemáticas que considera relevantes para se pensarem os estudos entre
mídia e educação, chamando a atenção para dois aspectos que este artigo tangencia nos
atravessamentos por entre criação e autoria: a genuína experiência conosco mesmo e o
desafio de elaborar estratégias de indeterminação, “manter as buscas, permanecer firme e
atento às grandes e pequenas questões da vida pessoal e política, mesmo que diante da
impossibilidade de prever um destino. A ideia é transformar a imprevisibilidade com algo
que tem a ver com a vida, com a criação de si mesmo, com protagonismo – mesmo que
nessa condição precária de ausência de certezas” (p.80).
Genuína experiência e protagonismo, no texto de Fischer, encontram ressonância na
narrativa, entretecida conceitualmente com aquela luta, a que já referi anteriormente neste
artigo, que merece ser travada com ou contra determinadas forças, valendo-se da energia
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ANTONIO CARLOS AMORIM
desse embate para um exercício da força criativa sobre nós mesmos. Conjugar as mídias e a
literatura, no contexto do risco que tal ação carrega, para Fischer (2011) é “mais do que
uma necessidade, é uma urgência ética e estética no campo da educação” (p. 85).
Abrir linhas insubordinadas a reconfigurar o mapa do sensível, tratando de deixar
confundida a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos ciclos naturais de
produção, reprodução e submissão; a essa sugestão magnífica de Rancière (2005)
associamos, neste artigo, a volta incessante do artista à experiência primeira. “A sua
experiência não é pura, mistura imagens actuais e imagens arcaicas, emoções que acabam
de irromper e recordações de emoções; esta mescla torna-se então a condição da imagem
nova, essa imagem vinda sempre de não se sabe de onde – porque vinda do caos original
que é necessário ao artista reactivar sem descanso” (Gil, 2005, p. 23).
A experiência estética assim começa. Não é a experiência de uma consciência ou de
um sujeito; “não proporciona um sentido a decifrar por uma língua ou a aprender na
evidência de uma presença” (idem). O corpo, portanto, não é o centro ou o quadro, ou a
imagem particular subjetivada sobre as quais a percepção abre uma perspectiva míope. O
corpo aparece de modo imanente, produzido a partir de enquadramentos, fazendo cortes,
criando interstícios entre as imagens. Combinação de relações de força plurais e
diferenciadas, o corpo resulta, nas audiovisualidades, do enquadramento e da montagem
que nos afetam à individuação das imagens.
Retorna-se, em diferença, à ideia da intensidade que apresentamos no início deste
artigo. O artista trabalha na criação de corpos (escrita, imagem, cores, modulações, figuras,
contrastes, etc.) no deslizante processo de refazer um mundo já mais ou menos moldado
pela linguagem. José Gil (2005) potencializará que essa remodelagem do mundo (ou seja,
como o artista enseja a [forma] ação estética dele mesmo e a do mundo] deriva da
experiência primeira, que é a imagem intensiva. “Antes de a percepção se estabilizar, se
fixar à distância e se impor, o mundo da primeira infância organiza-se em torno de vagas
sensoriais num turbilhão, imprevisíveis” (p. 23).
A infância não está oculta ou invisível. Não se ensejará trabalhar nas correlações entre
o dizível e o visível, parte da organicidade do conceito da enunciação, que busca a dobra
onde nasce e mora o invisível. Tanto pela fenomenologia quanto pela hermenêutica, o
sujeito emerge do invisível numa dependência ontológica do visível. “Todo o mistério se
concentra neste ‘eco do visível’ do qual não sabemos bem se é invisível que se vê (segundo
um modo de apreensão análogo ao do visível), ou invisível descrito nas dobras do corpo e
que não se vê – inconsciente -, mas que prepara para a visão” (Gil, 2005, p. 34).
A enunciação, estruturadora da ciência do campo do currículo, aproxima-se dos efeitos
no real que têm os enunciados políticos ou literários. Embora o que fique mais evidente seja
a proposição de modelos de palavra ou de ação, há, também, e talvez mais importante, o
seu trabalho nos regimes de intensidade visível.
Debruçar-me-ei em alguns tipos de literatura e de cinema que “traçam mapas do
visível, trajetórias entre o visível e o dizível, relações entre modos do ser, modos do fazer e
modos do dizer (...) Assim se apropriam dos humanos quaisquer, cavam distâncias, abrem
derivações, modificam as maneiras, as velocidades e os trajetos (Rancière, 2009, p. 59).
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Três crianças a comporem um plano para o currículo
São obras de arte que não aderem a uma condição, não reagem a situações e não trabalham
na recognição de suas imagens.
Territorializam a infância, esteticamente, no mundo sensível.
A palavra-ferida
“O seu nome é Hurbinek; a sua palavra é a palavra secreta que nasce do abandono”. O
nome da criança assemelha-se ao som dos seus gritos inarticulados. Eugénia Vilela (2009)
escolhe a presença obsessiva de uma criança, no Primo Levi de ‘A trégua’, para tratar de
dissonâncias entre narrativa e experiência. Mais do que uma metáfora do holocausto, a
história de Hurbinek encerra uma aporia: qualquer testemunho a respeito do campo é,
quando possível, aproximativo; os que tudo viram – e que tudo sabem – não sobrevivem
para contar. O que parece evidente é a constante de uma aporia: é impossível representar,
mas é imprescindível fazê-lo (Bavesi, 2013). Na sua mais intensa, inacessível e silenciosa
imanência, a criança Hurbinek é a ferida da/na linguagem, expressão da sua impotência
frente ao “inenarrável”. Pela literatura, “de uma realidade incompreensível e caótica como a
do Holocauto podemos ter uma ideia realística somente graças à imaginação estética”
(Bavesi, 2013, p. 165).
Que sentidos atravessam a criança que nasce no campo do extermínio? Essa pergunta
acaba sendo descartada de ser objeto de interesse a partir de um esquema de captura pelo
conhecimento da verdade. Dessa inconsistência, entretanto, nasceria a questão que a
literatura de Levi imprime como um tipo de espera nos limites da verdade: é possível a
minha morte? É possível falar da minha morte? A impossibilidade do possível como tal é
tratada por Eugénia Vilela (2009) pelo testemunho, uma via de acesso ao acontecimento
onde a compreensão é rizoma [Hurbinek] e por Rosa Fischer (2011) pelo amor à narrativa
[a lua abandonada no peito]. A literatura surge, então, para poder narrar o que aconteceu e,
ao mesmo tempo, ela é a expressão da dificuldade de poder encontrar uma linguagem
própria para dizer o vivido.
A ferida é a própria designação do corpo errante daquele que testemunha, um tempo de
errância do real. Uma vez mais, encontramos a negação da referência metafórica, quando
Eugénia Vilela (2009) trata do testemunho.
Paisagem-face
Educar para uma existência artista implica o sacrifício dos posicionamentos
autocentrados em prol da paisagem, tanto em sua extensão concreta como nas
intensidades que a atravessam. (TADEU, CORAZZA E ZORDAN, 2004. p. 81)
Mutum (2007) - http://www.mutumofilme.com.br/, um filme da diretora brasileira
Sandra Kogut, pode ser estudado em termos da sua filmagem, das singularidades e das
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ANTONIO CARLOS AMORIM
linhas de fuga que nos dão a sensação de vazio. Ferida do sertão que designa o corpo de
outra criança, imagem biface Miguilim e Thiago. “MUTUM foi filmado nas chapadas de
Minas Gerais, em pleno sertão mineiro, numa região com poucas estradas e muitos lugares
ainda sem energia elétrica. Mas o isolamento da família de Thiago é mais econômico que
geográfico. O sertão que se apresenta no filme não é meramente uma região geográfica: é
também o interior, o passado, a infância que povoa o imaginário brasileiro”
(http://www.mutumofilme.com.br/sobre.htm).
Davina Marques (2013) estudou a obra literária "Campo Geral", de João Guimarães
Rosa, publicado em 1956, em relação ao filme Mutum. Seu objetivo foi a análise
comparativa de ambos os monumentos de arte, com base na teoria filosófica dos autores
franceses, Gilles Deleuze e Félix Guattari, apresentando análises de que o filme, com
características de fabulação, é a diferença , e não a repetição, da obra literária que o
inspirou. A autora perfura, insistentemente, a relação do cinema como tradução da
literatura, e argumenta que Mutum é um plano de composição, onde tudo se torna possível.
Um lugar muito longe, no sertão, que dá espaço para personagens que são fabulados dentro
da vida real, dando voz às crianças, homens e mulheres, personagens que são atravessados
por riachos, convidados a experimentar em acontecimentos, com toda a intensidade do que
acontece no meio.
Pensando a tradução como o entre, a fronteira borrada, o adensamento da obra de
Guimarães Rosa que o filme faz é levado ao limite de toda uma memória que não cabe
temporalmente no cinema. Não é pelos intervalos, pela edição ou pela ambiência
representacional, que o cinema faz tão bem, que emergem as linhas pulsantes das
singularidades e diferenças do testemunho ser - tão.
Intensidade que deriva da individuação, a que me refiro como potências que geram a
própria diferença ou a diferença pura (a diferença pura do cinema de Kogut na relação com
a literatura), são corpos coagulantes de espaço tempo que vivem e metamorfoseiam à
superfície da película fílmica: olhares, sotaques, improvisos, (des)dramatização e tamanha
afinidade e co-equivalência com o real. Todo este trabalho do cinema ficciona o real. O
trabalho etnodocumental de Mutum prescinde da narrativa literária de Rosa exatamente
para se tornar ficção.
Retomando as considerações de Davina Marques (2013), a produção de sensações é o
resultado da diferença em termos de filmagem, de singularidades e linhas de fuga que nos
dão uma sensação de vazio, dos vazios artísticos, em ação, tempo e imagens, que estão
relacionados à vida, à vida real, nos sertões do Brasil. Esses espaços vazios, onde nada é
fixo ou resolvido, levam-nos a aberturas em pensamento. No caso de Mutum, essa é a
forma como uma criança enfrenta seu processo de individuação. Em um excesso de
realidade, que traz o filme perto de um documentário, Kogut constrói o necessário mise-enscène para mudar literatura para a vida e para ser capaz de metamorfosear Mutum em
ficção.
A individuação – plano sensível e estético desta tradução entre literatura e cinema está sobremaneira centrada na memória voluntária, aquela que nos faz vibrar esteticamente
com o filme. Destaco como é interessante o trabalho que o filme faz em direção à formação
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Três crianças a comporem um plano para o currículo
estética do/no corpo em cuja superfície vibram os afectos e os perceptos. “A
experimentação do signo sem o significante. Em suma, a experimentação das coisas de
maneira bruta, em sua simples presença no mundo e em nós” (Lins, 2004, p.84).
Testemunhos inarráveis dessa experimentação com a memória são as imagenspercepção do close up [a imagem-afecção] e da rostidade [a convivência contígua do virtual
na atualização da imagem, como é o caso da sobreposição do rosto de Thiago com a teia de
aranha que se estende em uma árvore, criando na superfície fílmica a captura da criança no
enredamento da morte]. Após (re)ver o filme, sinto-me atravessado por dois planos.
Primeiramente, a terra - poeira, pedregulhos, grãos, o vínculo com o maior pertencimento
da fixidez - ou seja, o feminino, o devir singularidades menores, nuances do devir-mulher.
“Em termos deleuzianos, poder-se-ia descrever o devir-mulher como uma troca de forças:
numa certa zona de indiscernibilidade, certas forças, certas intensidades masculinas
transferem-se para a mulher segundo uma linha de fuga; e reciprocamente, certas
intensidades femininas transferem-se ao homem, de tal modo que já não se sabe o que no
homem pertence à mulher e reciprocamente (...) É um processo de transformação de
intensidades, que segue uma linha” (Gil, 2008. p. 259).
Fonte: http://www.mutumofilme.com.br/fotos/fotos5.htm
O outro plano do inarrável são os óculos – evidentemente, a visibilidade – que a
criança passará a usar para sair da associação íntima e corporeamente vibrante com a terra,
e o anúncio da partida, o deslocamento do errante para fora do ser-tão. Há olhar
enquadrado, emoldurado, inspirado na fotografia que o filme passa a ter, tal qual a lente que
clareia tudo. O caos é recortado e irrompe, no filme, o futuro (não o devir) da narrativa
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ANTONIO CARLOS AMORIM
roseana. O sonho da partida é um mundo de verdades. Outrem sonha o ser-tão. E não
bastam os olhos abertos, é preciso o anteparo do enquadramento do visível. Os óculos,
futuro que fende Thiago da terra, introduzirão na vida do ser-tão coisas que dela não fazem
parte, pois só se pode entender a vida como a realidade. Os óculos “são o campo perceptivo
– tanto espaciais quanto temporais de um Outrem-suavidade, Outrem-lubrificador contra a
crueldade dos objetos e seus ângulos secos, contra a fúria do juízo e a voracidade quase
carnívora e antropofágica da verdade verdadeira” (Lins, 2004. p. 71)
O sintoma do inarrável faz o visível retornar, em Mutum, em acontecimentos na
individuação da imagem, pelo enquadramento e pela montagem, em alguns momentos em
que a câmera para em objetos específicos: uma roupa, uma janela, uma porta, um ponto de
vista, algumas sombras de folhagens, um buraco na parede ... A criança individuada nessas
imagens não é a do mundo perceptivo, atinge as regiões em que a estrutura-outrem [o pai, a
mãe, o tio, o irmão] já não funciona. Essas imagens repartem pura intensidade, deixando as
singularidades se desdobrarem, em um tipo de distribuição do ser-tão que seja longe dos
objetos e dos sujeitos que ela condiciona.
Nesses contextos de relação entre a literatura e o paradoxo do (in)narrável e do visível,
a criança é um campo de vibrações, de contrações e contemplação do mundo. Suas
sensações “são uma composição dessas vibrações (...) configuração plural e heterogênea,
relação e composição de forças de onde emanam devires e movimentos intensivos” (Santos,
2013. p. 170).
É necessário despojar-se de toda memória para abrir-se a lugares ainda não explorados,
lugares por se constituir ou ainda por vir. Despojar-se é seguir as linhas da ferida, plano no
qual o silêncio faz o corpo desdobrar-se, criar contatos em superfícies efêmeras e instáveis.
A ferida subverte o imperativo de um solo único e originário, ao encontrar-se com as forças
não humanas de um caos universal.
Terra
É por uma terra sonâmbula que o mundo sonha, cria o espaço em que habita, no filme
de Teresa Prata (2007), cujo título é homônimo ao romance fantástico de Mia Couto. Terra
Sonâmbula. Uma terra estriada pela guerra civil em Moçambique. Uma terra que pergunta
“É possível a minha morte?”. E agoniza. Uma terra que quer virar mar, a transpassagem do
espaço liso do deserto para o mar. Essa terra sonâmbula carrega o remorso de ser habitada
por feras terrestres, ao invés de feras marinhas, aqui aludo à peça de Henrik Ibsen, “A
Dama do Mar”. Essa triste verdade não pode ser evitada. Terra Sonâmbula guarda o pesar
secreto de não ser mar.
Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas
as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me
roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes
escritos, serei de novo uma sombra sem voz (COUTO, 1996, p. 9)
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Três crianças a comporem um plano para o currículo
Um ônibus incendiado em uma estrada poeirenta serve de abrigo ao velho
Tuahir e ao menino Muidinga, em fuga da guerra civil devastadora que grassa
por toda parte em Moçambique. O veículo está cheio de corpos carbonizados.
Mas há também um outro corpo à beira da estrada, junto a uma mala que abriga
os “cadernos de Kindzu”, o longo diário do morto em questão. A partir daí, duas
histórias são narradas paralelamente: a viagem de Tuahir e Muidinga e, em
flashback, o percurso de Kindzu em busca dos naparamas, guerreiros
tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que são, aos olhos do garoto, a única
esperança contra os senhores da guerra. É um romance em abismo.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Terra_Son%C3%A2mbula)
A imagem primeira da cineasta Teresa Prata é da criança Muidinga conduzindo um
barco de brinquedo. Esfrega este brinquedo no chão de pedregulhos, poeira, morte e
carbonização. As velas içadas deste brinquedo de criança balançam no atrito. Neste
momento, o filme nos dá sinais de que, nessa terra sonâmbula, é o vento que espalhará os
restos ainda não sonhados. Não há delírio. É tudo movido ao excesso do real. As palavras
escritas no diário de Kindzu são os clarões e as lentidões do acontecimento da condição do
sonambulismo. Quando se despertará dessa intensidade? Somente no mar. O grande oceano
da morte figurativa da criança desmemoriada e que, no apego às palavras que duvidemos se
são mesmo lidas, refaz o retorno ao útero da despatriação. O navio, em que a “mãe” de
Muindiga vive é um outro campo de refugiados da terra sonâmbula, daqueles que não têm
mais para onde voltar.
A criança leitora continua empurrando o barco a velas de brinquedo, movimentando o
papel do drama da terra sonâmbula, num contraste que encarna as relações diferenciais e as
singularidades do testemunho, da enunciação que cria pelas palavras do diário a autoria do
abandono e da morte do significado da guerra. A criança, pelas imagens do filme, continua
sua batalha contra um pano de fundo da percepção que a colocaria como ressurgida ou
imaculada por algum tipo de segunda chance da vida ou do clichê da resistência como
oportunidade para se ganhar o tempo perdido. A criança age raspando cada uma das
páginas do diário. Ela lê. Faz o movimento paradoxal do visível e do dizível. Mas, contudo,
não é capturada pela enunciação. Muindiga devém-mar.
As imagens do filme encobrem, pela poeira, pelo monocromático da paisagem, pelo
isolamento que o sonâmbulo tem com a sua realidade, neste caso, a realidade geológica e
histórico-cultural da terra, da nação de Moçambique. A relação da criança com essa terra
que sonha não tem nada de onírico ou de esperançoso. A terra tem que morrer. E a criança
contamina-se com essa liberação, cavoucando a terra até que ela sangre água. O caminho,
assim, desloca-se, segue em direção ao abismo do fim do significado da terra em sua
brutalidade, crueldade e veracidade que as imagens do filme nos emprestam a perceber.
A imagem-primeira, a experiência sensível com a terra sonâmbula, é o contínuo do
filme que nos apega ao real. Despojar-se de habitar a terra, fazendo cessar a sua referência
ao vivido ou ao território de uma subjetividade. O sonâmbulo desloca-se de uma terra
habitada para um hábito, “não um regime de concordância ou adequação formal, uma
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ANTONIO CARLOS AMORIM
representação do vivente e seu meio; ou ainda um processo de interiorização e fixidez das
sensações, mas um campo de experimentação e inventividade. Adquire-se um hábito não
por um ato da experiência em si ou pela ação e fixidez de estados de coisas na memória,
nem mesmo pela repetição dos eventos a força de um encadeamento ordenado segundo um
tempo cronológico” (Santos, 2013. p. 167).
O vento do barco à vela de brinquedo feriu a terra, e ela despertou quando já era mar.
Nesse novo hábito, Muindiga, como Mia Couto, será de novo uma sombra sem voz. A
sombra do farol que sinaliza a terra. A imagem do necrotério – o ônibus queimado que se
metamorfoseia em devir-mar - coaslesce à deriva.
A força da literatura, e que o cinema experimenta e cria pelas afecções das imagens e
sons, nos três casos apresentados neste artigo está na criação inventiva da estética do
extermínio, do abandono e do hábito que têm sua efetuação fora de lógicas marcadas pela
negociação, tradução e experiência objetivada.
O campo dos estudos curriculares pode traçar linhas de seus planos de composição
inspirados na insubordinação das imagens de criança que a literatura e o cinema inventam
cotidianamente, hibridizam e fazem proliferar multiplicidades de acontecimentos em
agenciamentos [inclusive enunciativos] que são maquínicos. Ao que me parece, trata-se de
esquecermos a incidência perversa da ‘forma” – ação, que opera em retomar a visibilidade
da forma - e capturarmos as forças de um corpo que escapa em silêncio, que se individua
em fragmentos tão e que despertam inorgânicos da violência intervalar do exílio.
Notas
1.
2.
3.
Texto apresentado na Sessão Especial “Formação estética, criação e autoria: qual o lugar no currículo?” na 36ª Reunião
Anual da ANPEd, em Goiânia, 2013. Refere-se à pesquisa Currículo (des)figura, plano da sensação e fabulação (Proc.
CNPq 506990/2010-9) – Bolsa PQ 1D.
Para Manuel DeLanda (2004), o conceito de intensivo tem, na relação com a ontologia, três dimensões destacáveis:
aquela que, originalmente, se refere no sentido termodinâmico, ou seja, as propriedades intensivas tais como pressão,
temperatura ou densidade. Diferenças nessas qualidades têm um efeito morfogenético (elas direcionam fluxos de
matéria ou energia, por exemplo) e que não têm autorização para serem canceladas. Realizam, pois, o potencial total da
matéria-energia da organização em si; um segundo sentido deriva-se da referência ao agenciamento de diferentes
componentes tais como a criação de composições heterogêneas em que as diferenças dos componentes não são
canceladas através da homogeneização; por fim, um terceiro conjunto de aspectos são as propriedades das séries que
constituem as diferenças ‘entre os termos’, as relações assimétricas ‘em entre’, distâncias que não sejam compossíveis
ou inadequações (também chamadas de não-qualidades) constitutivas. Em Amorim (2012b), analisei dois vídeos
experimentais, pelas vias do enquadramento e da montagem, abrindo-se ao caos e criando ou extraindo dele as
intensidades não a partir de uma imagem ou representação, mas um composto ou uma multiplicidade de sensações.
“Os signos mundanos implicam necessariamente um tempo que se perde; os signos do amor envolvem particularmente
um tempo perdido. Os signos sensíveis muitas vezes nos fazem descobrir o tempo, reconstituindo-o no meio do tempo
perdido” (Deleuze, 2003, p. 23).
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Correspondência
Antonio Carlos Amorim – É professor Assistente Doutor ligado ao Departamento de Educação,
Conhecimento, Linguagem e Arte da Faculdade de Educação da Unicamp, onde trabalha desde 1997.
E-mail: [email protected]
Texto publicado em Currículo sem Fronteiras com autorização do autor.
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