[ Entrevista ] José Bento dos Santos é um contador de histórias, e o talento com que as conta torna impossível não ficar preso na sua teia. Engenheiro químico, treinador de rugby, aprendiz de culinária (com os operários das fábricas que geria), cultivou de tal forma o «sentido do gosto», que não admira a ninguém o êxito dos seus vinhos Monte D´Oiro. Nem que durma pouco, para viver intensamente um dia-a-dia dividido entre as empresas, a gastronomia, os livros, a televisão e o ensino. Garante que teve sorte, mas percebe-se que fala é de persistência, rigor e capacidade de trabalho. Porque, como ele próprio diz, «a vida não é uma passadeira vermelha, que se atravessa de patins oferecidos de mão beijada.» Fomos descobrir o que acontece quando a procura da excelência marca a passagem do tempo. entrevista Isabel Stilwell - Directora do Jornal Destak | fotos Nuno Correia Isabel Stilwell – «Dormir pouco e viver intensamente», é o seu lema? “Uma receita é um segredo que funciona com o rigor de um mecanismo de relógio. Aliás, como diz um provérbio australiano, José Bento dos Santos – Adoro dormir, mas a questão é que o tempo é a variável mais escassa do Universo. E quando se quer viver intensamente, não há outro remédio senão geri-lo muito bem. A verdade é que enquanto se dorme não se fazem outras coisas... «Deus fez o tempo mas não falou de pressa».” José Bento dos Santos fruto do suor do que do talento. 90% é trabalho. é a propriedade dos metais voltarem à sua forma primitiva, depois de deformados, pelo calor ou a força. A resiliência, a paciência e a crença, são fundamentais. IS – Mas os 10% é que fazem a diferença... Conta a ca- IS – Acha que em Portugal é mais difícil lutar por um pacidade de enfrentar a desilusão, conta a resiliência? projecto? Gosto tanto dessa palavra. Sou engenheiro químico-industrial, trabalhei sempre com metais, e essa palavra, que hoje passou para o vocabulário da psicologia, vem do meu campo. A resiliência JBS – A vida não é uma passadeira vermelha, nem nos oferecem de mão beijada, uns patins para a percorrer. Temos imensos exemplos de portugueses de sucesso. Mas persiste ainda a ideia de que IS – A «inspiração é uma coisa muito bonita quando nos IS – Diz que teve «sorte» em ter os pais que teve, em apanha a trabalhar»? ter sido capitão de uma equipa de rugby tão cedo e por JBS – Mais ou menos isso. O sucesso é muito mais ai adiante. Acha que é, de facto, o factor sorte que está aqui em causa? A sorte é o contrário do acidente, e nesse sentido tive sorte. É evidente que o esforço e o mérito têm um peso imenso mas, para ser hones to, tenho que reconhecer que nos momentos cruciais tive sorte. Agora, também sei que a sorte é dos audazes. É preciso correr riscos. JBS – 16 Espiral do Tempo 27 Inverno 2007 JBS – Entrevista José Bento dos Santos 17 “A excelência é distinguir o Bom do Melhor. É conseguir dizer «Este vinho não é para o meu gosto, mas é o melhor», ou o contrário «Gosto mais deste, mas sei que há melhor».” José Bento dos Santos são os outros que devem fazer por nós, que é o governo, o Estado, ou os pais. Não assumimos a responsabilidade pelo nosso futuro. E quando não admitimos os erros, e a culpa é sempre dos outros, não se pode ir longe. O desenvolvimento de um país não se faz com esta filosofia. IS – Quando tinha pouco mais de 20 anos, foi chamado a dirigir uma empresa da CUF com 400 empregados, porque consideraram que se era capaz de treinar uma equipa de rugby, estava preparado. Gerir recursos humanos é a parte mais complicada? E de que maneira! Por comparação, tudo o resto se resolve facilmente. Dinheiro, investimento, logística, o que for. Mas gerir as pessoas é o mais difícil. É complicado conseguir levá-las a perceber que embora tenham que procurar a perfeição, não podem desistir, nem cruzar os braços quando não a atingem, porque senão pára tudo. E no entanto, na vez seguinte, têm a obrigação de tentar ir ainda mais longe... IS – Achamos sempre que se aprende a cozinhar com a IS – Já, a mim própria, muitas vezes... mãe, e as mulheres da família... JBS – Mas é claro que sabe, toda a gente sabe tudo, ou seja, tudo aquilo que sabe. Trata-se de um juízo de valores, que se faz com os dados que se têm. Mas quem se dedica a uma área, alarga o seu leque de experiências e consegue relacionar-se com o assunto em questão de uma outra maneira. Até ser capaz de chegar ao ponto máximo, que é distinguir o Bom do Melhor. Quem chega a este ponto, consegue dizer coisas como «Este vinho não é para o meu gosto, mas é o melhor», ou o contrário «Gosto mais deste, mas sei que há melhor». Ai sim, chegou-se à excelência. JBS – Desde o princípio dos tempos que a mulher esteve ligada à alimentação. Os homens caçavam, elas preparavam a comida, alimentavam os filhos e os maridos. Mas quando a cozinha se industrializou, com os restaurantes e as cantinas, as panelas e os tachos eram pesadíssimos, e ai cozinhar passou a ser uma tarefa muito violenta. Ninguém queria que a filha fosse cozinheira. Por isso é que os «chefes» são tradicionalmente homens. JBS – IS – A sua especialidade é o «Sentido do Gosto», é sobre ele que dá aulas na universidade, faz programas de televisão, escreve livros. À primeira vista, é difícil compreender como é que esse sentido nasce no meio de uma indústria metalúrgica. É preconceito? É preconceito. A fealdade de uma metalúrgica é uma ilusão exterior. Um fogo intenso é dantesco, mas extraordinariamente belo. Um forneiro, coberto de fuligem, mas que abre um sorriso naquela mancha preta, pode tocar muito mais do que o sorriso de um homem muito limpinho com que nos cruzamos no autocarro. Sabe que o meu gosto pela culinária conheceu um impulso enorme com os operários com que trabalhava? Como tinham que comer bacalhau todos os dias, inventavam receitas extraordinárias. Cozinhava com eles e aprendi imenso. Olhe aprendi a desmanchar carne com um operário que tinha um talho, um conhecimento fundamental para toda a minha vida. JBS – 18 Espiral do Tempo 27 Inverno 2007 IS – É professor de uma disciplina de opção chamada o «Sentido do Gosto», no Instituto Superior Técnico. Tem IS – Disse uma vez que «a aventura do vinho começou muitos alunos? antes de nascer». Como? Quando andei no Técnico, era apenas uma escola de matemática. Deu-me exclusivamente o meu curso de engenharia, mais nada. Mas as universidades alargaram o seu campo de visão. Hoje, os finalistas podem optar por disciplinas como música, pintura, filosofia. Convidaram-me para dar uma disciplina sobre o «Sentido do Gosto», que inclui tudo, desde como comer bem, até às noções do gosto. E inclui uma outra lição, que me parece que muitos universitários, mesmo finalistas, precisam de aprender: que, quando nos comportamos com sentido cívico (por exemplo, não falando durante uma aula ao telemóvel!), comportamo-nos com bom gosto. O meu pai gostava e sabia apreciar vinho. Tínhamos uma quinta em Alenquer e nasci na vinha, aprendi a vindimar e a pisar uva. Sempre soube que queria ser engenheiro químico, porque tinha qualquer coisa de gastronomia e de alquimia. Na CUF, por uma sorte, que nunca acreditei completamente que fosse coincidência (talvez mais destino), puseram-me a gerir uma fábrica de sulfato de cobre, que era a maior fábrica de sulfato de cobre da Europa. Era como se me estivessem a recordar a minha ligação à vinha. Depois houve um segundo sinal... JBS – IS – Os gostos não se discutem, mas educam-se, é isso? JBS – E é verdade. Se der ao seu filho só batatas fritas e gelados, ele nunca vai gostar de um bom vinho. As nossas mães obrigaram-nos a comer uma boa sopa de feijão, ao princípio não gostávamos, mas agora agradecemos-lhes. Há uma ideia de que estas coisas nascem com as pessoas, o que não é verdade. Ou que há pessoas com jeito, ou sem jeito para elas, com gosto ou sem gosto. Nunca ouviu dizer a alguém «Não percebo nada de vinhos»? JBS – IS – Que aconteceu como? JBS – Estava a visitar uma fábrica nos EUA, e um grande amigo meu citou-me aquela máxima que diz que a terra é o único investimento que vale a pena, porque já não se fabrica. Nessa altura viajava imenso, e senti que era realmente altura de «aterrar». Falei nisso com o meu pai e ele ligou-me, pouco depois, com a notícia de que a Quinta do Monte D´Oiro, que conhecia bem porque era ao lado da nossa, estava à venda. IS – Ou seja, comprou a quinta? JBS – Comprei, comprei. E a quinta tinha um “A paixão pode ser cega, e não acredito em paixões cegas, acredito em paixões muito bem geridas.” José Bento dos Santos Entrevista José Bento dos Santos 19 “Aprendi a desmanchar carne com um operário que tinha um talho, um conhecimento fundamental para toda a minha vida.” José Bento dos Santos IS –Lembra-se de qual foi o seu primeiro relógio? JBS –Lembro-me lindamente, acho que toda a gente da minha geração se lembra, porque marcava a passagem da 4.ª classe. Foi o meu pai que mo deu, um Tissot, que tinha pontei ro dos segundos. Naquele momento estava convencido de que era o relógio para o resto da minha vida. Mas afinal ia ter uma relação mais próxima com os relógios... IS –Quando é que tem consciência dessa relação? O meu pai gostava imenso de relógios e a partir de certa altura passou a oferecê-los a toda a família, no Natal e nos anos. Mais evoluídos, menos evoluídos, mais preciosos ou menos. De bolso ou de parede. O mais divertido é que depois era ele que ia de casa em casa a dar corda aos relógios que oferecia aos filhos. Um dia fui eu que lhe ofereci um relógio, comprei-lhe um Jaeger-LeCoultre, de secretária, que me encantou. JBS – IS –Qual das suas actividades lhe faz sentir de forma mais forte a passagem do tempo? JBS – A culinária é ideal para nos dar essa noção. Os meus fornos têm uns dez cronômetros-íman, porque os diversos componentes de têm tempos diferentes de cozedura. IS – Por isso é que não consigo cozinhar! Tenho a mania que os tempos e a ordem dos «factores» recomendados numa receita podem ser alterados aleatoriamente... Uma receita tem que ser seguida rigorosamente, é um segredo que funciona com o rigor de um mecanismo de relógio. Alias, como diz um provérbio australiano, «Deus fez o tempo mas não falou de pressa». JBS – 20 Espiral do Tempo 27 Inverno 2007 caseiro, que ainda lá está, que era um «expert» na produção de vinho. Nos primeiros anos foi tudo feito de qualquer maneira, mas no terceiro decidimos escolher a vinha com melhores características, informei-me, mandei comprar dois barris de carvalho, selecionámos a melhor casta, ia ser uma coisa a sério. Mas eu continuava a ir e a vir, e um dia cheguei lá e o vinho estava num barril de castanho. Perguntei porquê e o caseiro disse-me, com ar superior, que o «carvalho não presta para nada». Gorara-se a minha primeira intervenção, mas quando percebi que também não tinha usado a vinha escolhida, comecei-me a rir e disse «Isto assim não é nada». Tinha um amigo em França, especialista nesta área, pedi-lhe ajuda e comecei tudo do princípio. Plantámos em 1992, colhemos pela primeira vez em 1997, e para minha sorte ou azar, o Quinta do Monte d´Oiro Reserva 2000, foi eleito para a selecção de «Os Melhores do Ano», do guia Vinhos de Portugal, de João Paulo Martins. Pronto, fiquei preso aos remos... binações aconteçam naturalmente, para deixar a cabeça livre para analisar o desafio do momento. Nem imagina a alegria que me deu a colheita de 2006/2007. Ainda ontem me deitei às três da manhã porque estivemos a fazer provas. Não será o melhor vinho do mundo, mas são vinhos que valem a pena. E isso entusiasma-me, acordo à noite com uma ideia nova, vivo a pensar no que vamos fazer a seguir... E sinto que o que me acontece a mim, acontece a toda a equipa. IS – É uma paixão nova, com a adrenalina das novas paixões? A paixão pode ser cega, e não acredito em paixões cegas, acredito em paixões muito bem geridas. JBS – IS – A sua quinta é em Alenquer. A possibilidade do aeroporto vir a ser na Ota afecta-o? Afecta-me? (a rir) Não, pelo contrário, tenho-lhe até muito «afecto». A porta do duty-free pode abrir logo para a minha adega. JBS – IS – Já antes, o célebre cozinheiro Alain Ducasse, tinha inaugurado o restaurante «Mix», em Nova Iorque, com IS – Fala com tanta energia do futuro, que percebo que um dos seus vinhos no menu... não brinca quando diz que a reforma nunca lhe assen- Era o jantar para a imprensa de inauguração do seu mais recente restaurante, o primeiro em Nova-Iorque, e o vinho eleito era o Vinha da Nora Reserva 1999. Eram 90 jornalistas americanos e estrangeiros, Ducasse não podia brincar, por isso contou tanto para mim, sobretudo porque não lhe pedi nada. tará bem. JBS – JBS – Acredito que o segredo da felicidade e da longevidade está em fazermos coisas, em termos projectos... IS – Deu uma vez o exemplo dos gregos, que só depois de uma vida de experiência, se dedicavam à política. Será que o nosso problema é que geralmente acontece IS – Mas agora o Monte D´Oiro é um «caso sério», no- o contrário: começa-se pela política? meadamente com as parcerias que conquistou. JBS – JBS – Fazer vinho é uma coisa muito séria, e é pre- ciso uma organização extraordinariamente bem montada, tem que estar tudo previsto, e a parceria com a Maison Chapoutier, produtor de referência nas Côtes du Rhône, tem sido fundamental. Aplica-se aqui aquilo que já há anos dizia aos meus jogadores: é preciso que os gestos do corpo estejam todos automatizados, todas as com- É um problema europeu, não é só português. Já gerimos bem empresas; individualmente as pessoas têm performances fantásticas, mas a nível político, atrasámo-nos: na política contrata-se mal, contrata-se quem é capaz de iludir e não o sábio, o que não tem nada a perder, o que não precisa de mentir. Temos que saber usar o conhecimento dos mais velhos, conjugando-o com a energia dos mais novos.