LINHA HERPETOLOGIA Répteis são modelo para estudar animais que se adaptam a condições extremas Anfisbênias: quem são essas desconhecidas? PRIMEIRA LINHA PRIMEIRA FOTO DE GIUSEPPE PUORTO Figura 1. As cobras-deduas-cabeças têm o corpo alongado, delgado e constituído por anéis, como as da espécie Amphisbaena mertensi (na imagem) Popularmente chamadas de ‘cobras-de-duas-cabeças’, as anfisbênias são répteis sem membros, de corpo alongado e escamado e visão reduzida. Embora semelhantes às serpentes, apresentam características comuns aos lagartos, o que levou a várias revisões em sua classificação. Vivem em galerias no solo, que constroem com movimentos da cabeça, graças a um crânio altamente modificado. Esta e outras especializações para a vida subterrânea fazem das anfisbênias um exemplo excelente para o estudo de mudanças sofridas por organismos que se adaptam a modos de vida extremados. Por Maria Eliana C. Navega-Gonçalves (recém-doutora), do Departamento de Zoologia da Universidade de São Paulo. Q uase sempre confundidas com as cobras, as anfisbênias são na verdade um tipo diferente de réptil, com hábitos fossoriais: vivem em túneis subterrâneos, que escavam comprimindo o solo com movimentos da cabeça. A adaptação à vida no interior do solo exigiu especializações marcantes, como o crânio mais rígido, o corpo alongado e sem membros na maioria das espécies (figura 1) e a pele praticamente separada do corpo. Esse curioso réptil também é capaz de se movimentar para frente ou para trás com a mesma facilidade, o que inspirou o nome científico do grupo, Amphisbaenia, baseado nas raízes gregas amphi (duplo) e baen (caminhar). Embora sejam externamente semelhantes às cobras, as anfisbênias apresentam características comuns também aos lagartos e, por isso, sua posição 66 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 4 • n º 204 taxonômica – sua classificação – foi revista várias vezes nos últimos séculos. Em 1758, o naturalista sueco Carl von Linné (1707-1778) incluiu tais animais no mesmo grupo das serpentes, mas outros pesquisadores da época classificaram como lagartos certas espécies portadoras de membros anteriores, como as do gênero mexicano Bipes, com patas anteriores bem desenvolvidas. A confusão durou até meados do século 20, quando foi proposto que as anfisbênias deveriam ocupar uma categoria distinta dos lagartos e serpentes, a ordem Amphisbaenia. No entanto, ainda hoje as relações de parentesco entre esses grupos de répteis não estão bem estabelecidas. A habilidade de se deslocar para diante ou para trás – aliada à semelhança entre a extremidade da IILUSTRAÇÃO DE M. E. NAVEGA-GONÇALVES PRIMEIRA cauda e a cabeça de algumas espécies – originou o nome popular ‘cobra-de-duas-cabeças’. A pele das anfisbênias é constituída por escamas tipicamente arranjadas em anéis, ao longo do corpo e da cauda. O mais extraordinário, porém, é que essa pele quase não apresenta conexões com os tecidos subjacentes, funcionando como um tubo no qual o corpo do animal desliza com liberdade para a frente e para trás. Essa característica, aliada à textura lisa da pele, que minimiza o atrito com o solo, facilita o rastejamento e garante a eficiência da locomoção nos túneis. A morfologia da cabeça nas anfisbênias está relacionada com a maneira como cada espécie realiza a escavação, segundo estudos do zoólogo norte-americano Carl Gans, da Universidade de Michigan. Assim, espécies com a cabeça mais ou menos arredondada exibem uma forma de escavação considerada não-especializada. Já as que têm a cabeça em forma de pá ou as que apresentam uma quilha vertical no crânio são consideradas especializadas para a escavação (figura 2). As formas não especializadas vivem perto da superfície, onde a escavação do solo é relativamente mais fácil, enquanto as formas especializadas ocorrem em solos compactados mais profundos. Para suportar as investidas da cabeça durante o processo de escavação dos túneis, esses répteis con- LINHA Figura 3. Vista dorsal do crânio de Amphisbaena mertensi mostrando as suturas, com forma de dedos, entre os ossos da região anterior (A), e vista lateral do crânio e mandíbula da espécie, mostrando os dentes recurvados e pontiagudos (B) tam com um crânio extremamente rígido, com ossos unidos por suturas digitiformes, que aumentam a adesão entre eles na frente da cabeça (figura 3). Há ainda uma sobreposição desses ossos, que parece fortalecer a parte anterior do crânio, usada como instrumento primário de escavação e, portanto, sujeita a impactos constantes. As cobras-de-duas-cabeças são predadoras de insetos, vermes e até de pequenos vertebrados (figura 4). Isso é possível graças a mandíbulas potentes, com dentes fortes e recurvados, capazes de arrancar pedaços de uma presa grande demais para ser engolida inteira. As presas são localizadas pelo olfato bem desenvolvido e/ou através da captação de vibrações no solo, já que os olhos reduzidos e recobertos por escamas são ineficientes para essa tarefa. ILUSTRAÇÕES DE CAVANI ROSAS Mecanismos de defesa Figura 2. A cabeça das anfisbênias pode ser arredondada, como na Amphisbaena vermicularis (1), ter forma de pá, como na Leposternon microcephalum (2), ou apresentar uma quilha vertical, como na Anops kingii (3) – vistas dorsal (A), lateral (B) e ventral (C) As espécies de cauda longa apresentam uma notável constrição na parte posterior do corpo, caracterizada por um anel mais estreito, que indica o local de autotomia (auto-amputação) da cauda (figura 5). Ao desprender parte da cauda, o animal mutilado procura fugir enquanto o seu predador ou agressor distrai-se com a porção destacada da cauda, que se move rapidamente de um lado para o outro por vários minutos. Essa tática parece ser bastante eficiente como forma de preservação da vida, pois é relativamente comum encontrar exemplares vivos com a cauda autotomizada. No entanto, só pode ser aplicada uma vez, pois a cauda das cobras-de-duas-cabeças não se regenera, ao contrário do que ocorre nos lagartos – nas lagartixas, por exemplo, as caudas são reconstituídas algumas semanas depois da auto-amputação. Em espécies de cauda curta não ocorre a autotomia caudal. Um exemplo disso é Amphisbaena alba, uma das maiores e mais conhecidas anfisbênias do Brasil (50 cm ou mais de comprimento). No entan- maio de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 67 PRIMEIRA LINHA FOTO DE M. E. NAVEGA-GONÇALVES FOTO DE GIUSEPPE PUORTO Figura 4. Amphisbaena alba alimentando-se de larva de inseto Figura 5. Cauda de Amphisbaena mertensi em vista ventral, mostrando (seta) o anel de autotomia (onde ocorre a auto-amputação), mais estreito to, essa espécie exibe um comportamento interessante: ao ser ameaçada, levanta ao mesmo tempo a cauda e a cabeça, mantendo a boca aberta, pronta para morder (figura 6). Hábito fossorial dificulta estudo Figura 6. Amphisbaena alba em posição de defesa pronta para morder Os mecanismos reprodutivos e outros aspectos da biologia e da ecologia desses escavadores especializados são praticamente desconhecidos. Isso decorre do hábito de vida subterrâneo desses animais, que restringe as observações na natureza e dificulta a coleta de exemplares para pesquisas em laboratório. São conhecidas atualmente cerca de 160 espécies de anfisbênias, distribuídas no sul da Europa, oeste da Ásia, África, América do Norte, América do Sul e Antilhas. No entanto, esse número é certamente maior, como indicam – citando apenas o caso do Brasil – os espécimes resgatados durante o enchimento de represas construídas para aproveitamento hidrelétrico nos últimos anos, o que tem permitido a descrição de novas espécies e contribuído para a obtenção de dados ecológicos sobre as mesmas. Esse fato revela a necessidade de valorizar os esforços para a coleta e o aproveitamento desses exemplares, já que as alterações impostas ao meio ambiente pelas atividades humanas podem fazer com que espécies desapareçam sem que tenham sido estudadas ou, pior, sequer registradas. Importante papel ecológico Embora não existam estudos nesse sentido, é possível deduzir que esses répteis têm um papel ambiental tão importante quanto o das minhocas, pois, ao realizar a escavação permanente do solo, eles contribuem para a penetração da água e do ar no mesmo, favorecendo o desenvolvimento da vegetação. No entanto, a semelhança externa com as serpentes, aliada à crença popular (incorreta) de que são perigosos, faz com que esses animais inofensivos sejam sumariamente exterminados quando emergem de suas galerias encharcadas após a chuva, ou quando são trazidos à tona pela enxada ou pelo arado. O que mais atrai os cientistas – entre eles a autora deste artigo – é o fato de serem as anfisbênias um exemplo excelente para o estudo de modificações sofridas por aqueles organismos que se adaptam a um modo de vida de características extremas. Cabe a eles a tarefa de continuar desvendando a biologia desses extraordinários escavadores, inclusive para ampliar a divulgação de informações sobre essas espécies e assim ajudar em sua preservação. ■ FOTO DE M. E. NAVEGA-GONÇALVES 6 8 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 4 • n º 204 Por ser raro encontrar um desses animais, os poucos espécimes encaminhados à Universidade de São Paulo são destinados a pesquisas diversas nas áreas de anatomia, histologia, citologia e genética. Destacam-se, entre os estudos realizados até o momento, o do aparelho respiratório, que revelou ser o pulmão direito muito reduzido ou ausente em algumas espécies de anfisbênias, característica que pode ser explicada pela acomodação das vísceras em um corpo alongado e com pouco diâmetro interno. Em contrapartida, o pulmão esquerdo é extremamente alongado e apresenta duas regiões distintas: a anterior é densamente subdividida em câmaras respiratórias e encarrega-se das trocas gasosas, enquanto a posterior, com poucas câmaras respiratórias, parece funcionar mais como um reservatório de ar, compensando a baixa disponibilidade de oxigênio nos ambientes subterrâneos.