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II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial
Maysa, entre a espetacularização e a sacralização
Do particular, íntimo e transitório para o público e erudito. A migração dos arquivos
pessoais da artista popular para o universo do livro
Valentina da Silva Nunes1
Doutoranda em Teoria Literária, pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
Resumo:
A cantora e compositora Maysa (1936-1977) foi também uma autoarquivista contumaz.
Embora mais conhecida por sua densa interpretação das canções comerciais de fossa
que marcaram a MPB nos anos 1950 e 60 – a maioria falando de amor –, Maysa
produziu na intimidade uma grande quantidade de escritos pessoais. São diários,
cadernos, papéis avulsos e cartas, em suma, variados exercícios de escrita de si –
manuscritos ou datilografados –, em que ela revela sua secreta ambição literária,
compondo sobretudo poemas. Preservados pela família por mais de 30 anos, parte
desses textos – e também imagens – compõe o livro Maysa, uma fotobiografia poética,
lançado em 2008, por uma editora de São Paulo, às vésperas da minissérie homônima
exibida pela televisão. A migração para um livro desses textos marcadamente
transitórios, fragmentários, dispersos, próprios do universo privado, íntimos embora
revelando indícios de espetacularização de si, mas todos de autoria de Maysa,
personagem do cenário popular a compor poemas, é o objeto de análise deste ensaio. A
partir de leituras de pensadores como Michel Foucault, Walter Benjamin, Jacques
Derrida, Philippe Lejeune, Guy Debord e Didi-Huberman, entre outros, interessa pensar
os mecanismos de produção dessa obra – que textos foram escolhidos? Que tratamento
receberam? O que ficou de fora? – como indícios de esforços póstumos para a
monumentalização da artista popular, para a sua sacralização e inclusão, por meio do
livro, no mundo da erudição.
Palavras-chave: Maysa, arquivos pessoais, espetacularização, público-privado,
popular-erudito.
1
Doutoranda qualificada, desenvolve tese sobre os arquivos pessoais da cantora e compositora Maysa,
cedidos para consulta em fonte primária pelos familiares da artista. Organizou e editou o livro Maysa,
estruturado a partir dos arquivos pessoais da artista (Editora Globo, 2008), objeto de análise do presente
ensaio. É mestre em Literatura Brasileira e jornalista profissional, ambos os cursos concluídos pela
UFSC. Concluiu o Nancy 3 pela Aliança Francesa. No mestrado, defendeu dissertação sobre as crônicas
de Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil (1969-1984). Interessa-se pela relação entre
literatura e jornalismo e estudos sobre espetacularização. Escreveu livros ilustrados de história baseados
em minisséries de televisão, alguns adotados pelo Programa Nacional do Livro Didático – PNLD. É
professora do curso de Jornalismo da Universidade de Sorocaba – Uniso. Colabora como autora,
parecerista, editora e revisora free-lancer com várias editoras. [email protected]
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2
De quer vale toda essa pressa?
Que me importa essa falsa fossa
que é só de agora
sem nada de outrora,
me encontrei num caminho reto
que por sorte não sei se é certo.
Já cansei de dar nome aos bois
inventam a fossa errada
e cantam o que não interessa,
com muita pressa,
fossa bossa,
com hora marcada.
Prefiro a morte mais linda
ir do mundo ficando ainda
cantando junto pintando tudo
num canto livre por força indo
que o resto acabe e fique mudo
pra que fique o gosto da eternidade.
Maysa2
Não é por acaso que o poema acima – e em especial o último verso – encerra o
livro Maysa, uma “autobiografia poética ilustrada”, como eu mesma o defini3, lançado
pela Editora Globo em dezembro de 2008. Obra especialmente planejada entre várias
ações para homenagear a cantora e compositora que, nos anos 1950 e 60, fez muito
sucesso interpretando sambas-canções intimistas (ou músicas de fossa4), o que se
observa a partir desse livro, do qual fazem parte sobretudo poemas escritos e quadros
pintados pela artista (suas facetas pouco conhecidas), são os esforços para inscrevê-la
também no mundo da erudição, lançando-a, como quer o poema acima, ao “gosto da
eternidade”.
Porque no cenário da música popular, onde ingressou aos 20 anos de idade, com
o lançamento do disco Convite para ouvir Maysa, em 20 de novembro de 1956, desde
sempre Maysa se destacou, fosse pelo glamour e pela voz e interpretações densas, fosse
pelas parcerias e pelo repertório apurado – tudo isso para além do frenesi midiático que
despertou por ter se casado e depois se separado de um Matarazzo, 20 anos mais velho e
2
Poema sem data, de autoria de Maysa, preservado em seus arquivos pessoais.
Contribui para a produção do livro em questão como organizadora, editora e redatora dos textos de
divulgação. O livro como um todo foi proposto à editora pelo diretor Jayme Monjardim, detentor do
copyright das fotos e textos contidos na obra, idealizada como uma homenagem à sua mãe e como resgate
de sua memória artística.
4
Também chamadas de música de “dor-de-cotovelo”, termo que despontou nos anos 50, “para se referir
às dores de amor [e que] passaria para o vocabulário musical brasileiro como um gênero caracterizado por
3
2
3
uma das maiores fortunas da época. Mas seu sucesso inicial, aquele que a lançou ao
estrelado e a fez ser a cantora mais bem-paga do país5, vinha em boa parte de um
movimento singular e bastante sutil: a sua oscilação natural entre sua origem social
elevada – e o consequente acesso ao bom gosto, compartilhado nos colégios e
ambientes da elite – e a familiaridade com a arte de músicos populares que
frequentavam sua casa, por conta das recepções que seu pai organizava6, lembrando que
Maysa dizia ter aprendido a tocar violão com Silvio Caldas e a cantar com Elizeth
Cardozo, dois artistas de grande destaque no cenário popular de então.
A música de fossa com a qual Maysa acabaria se projetando, é importante
observar, alcançou seu auge no Brasil, mais fortemente no Rio de Janeiro, no intervalo
entre os anos do samba (1930) e os anos da bossa nova (1960), justamente quando
ocorreram mudanças no comportamento noturno da cidade. Com letras e entonação
exageradamente passional, muito influenciada pelo bolero – embora mais intimista e
coloquial –, é dentro desse contexto que Maysa acabaria trazendo inovações, e não por
ser uma sofisticada representante da elite incursionando pelo cenário da música
popular7, mas por cantar canções próprias cujas letras falavam de amor sob o ponto de
vista feminino8 e com forte tons autobiográficos.
melodias dolentes e letras que falavam de corações partidos, fins de casos e almas dilaceradas”. Cf.
NETO, Lira. Maysa, só numa multidão de amores. São Paulo: Ed. Globo, 2007, p.54.
5
“Na ponta do lápis, o ano [1958] havia rendido a Maysa cerca de 10 milhões de cruzeiros – algo em
torno de 1,5 milhão de reais – incluindo cachês, contratos com rádio e televisão, comerciais e direitos
autorais”. Ibidem. p. 29.
6
“A filha não parecia se incomodar em nada com o estilo de viver do sr. Alcebíades Guaraná Monjardim,
o popular Monja, e da sra. Inah Figueira Monjardim. Muito pelo contrário, dizia admirar aquela total
ausência de convencionalismo com que fora criada. Monja, aliás, gostava de brincar e dizer que ‘Guaraná,
só no sobrenome’. Era um boêmio de mão-cheia, amigo de meio mundo artístico do Rio de Janeiro e de
São Paulo. Promovia noitadas homéricas em casa, regadas a uísque e muita música, nas quais artistas
como Silvio Caldas e Elizeth Cardoso eram presenças quase obrigatórias. ‘Estudei piano clássico como
toda mocinha bem-nascida, mas aprendi a tirar os primeiros acordes de violão com Silvio Caldas’,
gabava-se Maysa à amigas de escola, em um tempo em que o instrumento era associado à marginalidade
e à vagabundagem”. NETO, Lira. Ibidem. p.33
7
“Uma noite, em 1955, ele [Alcebíades, o pai de Maysa] se encontrou, na boate Oásis, na praça da
República, com seu velho amigo Zé Carioca, um dos órfãos de Carmem Miranda no Bando da Lua, e com
Roberto Corte Real, radialista ligado à gravadora Columbia. Alcebíades falou-lhes de sua filha: uma
cantora que o mundo estava perdendo para um casamento de conveniência, um talento a ser descoberto,
uma jovem que podia ser a Edith Piaf brasileira. [...] Corte Real não podia acreditar no que ouvia. Ali
estava uma menina que compunha e cantava como uma deusa, com o jeito de uma mulher madura que
tivesse vivido de verdade aquilo tudo. E (não que este detalhe fosse desprezível) o fato de ser a esposa
de um homem da alta sociedade de São Paulo podia ter um fantástico apelo comercial”. CASTRO,
Ruy. Chega de saudade. A história e as histórias da Bossa Nova São Paulo: Cia. Das Letras, 1990. p.110.
Grifo meu.
8
“No campo da autoria, Dolores Duran e Maysa foram nomes de destaque na década de 50. Pode-se dizer
que a partir delas ocorre uma mudança significativa no cenário musical, inicialmente com a própria
3
4
Assim sendo, apesar de mais tarde ter sido acusada pelos bossa novistas, com os
quais chegou a flertar9, de fazer “música cafona”10, em função dos excessos emocionais
e da impostação de voz que eles condenavam em busca de uma nova estética nacional –
o fato é que a cantora pertencia ao universo da música popular brasileira de qualidade.
Mas ainda assim era o mundo da cultura popular. Talvez por isso Maysa, que tinha em
sua bagagem de formação noções sobre o que era então aceito e definido como “arte
elevada”, quisesse mais, como quis Pestana, para lembrar o personagem de Machado de
Assis no conto “O homem célebre”11, o festejado autor de polcas de sucesso que
sonhava compor uma sinfonia, sua obra “eterna”, para assim se inscrever nos altos
patamares da cultura erudita.
A saída para chegar “ao gosto da eternidade” talvez estivesse em seu mundo
particular e privado, onde Maysa acabaria exercitando sua secreta ambição literária,
escrevendo sobretudo poemas que também eram letras autobiográficas que ela acabaria
cantando – de onde se nota forte tendência à espetacularização dela própria12 –,
enquanto outra parte permaneceria apenas como práticas poéticas e de escrita de si13.
abertura de espaço para as compositoras, e também por terem imprimido linguagem poética à dor de
amor, tema central da suas composições, falando dos sentimentos e ressentimentos femininos.” MATOS,
Maria Izilda Santos de. Dolores Duran – experiências, boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de
Janeiro: Bertrand do Brasil, 1997, p.67.
9
Em 1961, ao romper com a gravadora RGE, Maysa faz um trabalho avulso para a gravadora Columbia,
em que se aproxima da Bossa Nova. A música de destaque do disco Maysa e a Nova Onda é “O
barquinho”, de Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal. Em junho do mesmo ano, ela é contratada para uma
turnê no King´s Club, de Buenos Aires, passando também por Montevidéo, fazendo-se acompanhar pelos
compositores e músicos da Bossa Nova – Bôscoli, Menescal, Luizinho Eça, Luiz Carlos Vinhas, entre
outros.
10
“Durante os ensaios [para gravação do disco Maysa e a Nova Onda], por diversas vezes Ronaldo
Bôscoli praguejou contra quatro gerações dos Monjardim ao constatar que Maysa encontraria sérias
dificuldades em adaptar a voz ao balanço e à marcação que a Bossa Nova exigia. ‘Maysa, assim não dá,
você está cantando Bossa Nova como se estivesse entoando um samba-canção daqueles bem cafonas’, ele
reclamava, segundo contaria Luiz Carlos Mièle – amigo e parceiro de Bôscoli na produção de inúmeros
pockets-shows que marcariam época no Beco das Garrafas. Roberto Menescal também testemunhou
várias cenas em que Bôscoli perdeu a paciência e, colérico, parecia querer arrancar os cabelos em
desespero. Mesmo assim, as gravações prosseguiram. ‘Aguardem: a Maysa do novo disco aparecerá
cantando leve, mais perto do ouvinte, sem superdramatização’, prometeu Ronaldo Bôscoli, talvez
tentando convencer a si mesmo, na reportagem publicada pelo Jornal do Brasil. Cf. NETO, Lira. op. cit.
p.164.
11
Esse mesmo conto dará origem ao ensaio Machado maxixe: o caso Pestana, de José Miguel Wisnik,
em que ele faz uma paralelo entre o comportamento de Pestana e o de vários artistas do cenário cultural
brasileiro. Cf. WISNIK, José Miguel. Machado Maxixe: o caso Pestana. São Paulo: Publifolha, 2008.
12
“1 - Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta
como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma
representação.” DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo – comentários sobre a sociedade do
espetáculo. Estela dos Santos Abreu (trad.). Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.p.13
13
“É sua própria alma que é preciso criar no que se escreve; porém, assim como um homem traz em seu
rosto a semelhança natural com seus ancestrais, também é bom que se possa perceber no que ele escreve a
4
5
Os arquivos de Maysa
De tudo o que Maysa escreveu e guardou em vida, boa parte está hoje
preservado em seus arquivos pessoais, sob a guarda de familiares14, em seu arkheîon,
ou a residência de seus guardiões, espécie de arcontes contemporâneos15. Uma análise
do material ali contido faz perceber que Maysa era uma arquivista contumaz. Parecia
não deixar passar papel em branco, escrevendo compulsivamente sobre qualquer tipo de
superfície – folders, cartolinas, cadernos, jornais, folhas avulsas etc. Compunha
sobretudo poemas. Mas também escrevia diários, cartas, bilhetes, autobiografias e ainda
fazia o registro de muitos “nadas cotidianos”, como listas de compras, de enxoval,
números de telefones, contas, desenhos. Ela ainda respondia entrevistas por escrito. E na
adolescência, mantinha cadernos onde se fazia passar por crítica de moda. Em outros,
copiava letras de músicas, com várias referências musicais – em português, inglês,
francês e espanhol –, ilustrando-as com figuras femininas ou de casais apaixonados que
recortava de jornais e revistas. Maysa também guardava uma grande quantidade de
fotos, além de jornais e revistas com reportagens sobre ela. Tudo foi preservado, mas
arquivado sem regras. A única organização que ali encontrei é posterior à Maysa: tratafiliação dos pensamentos que se gravaram em sua alma. Através do jogo das leituras escolhidas e da
escrita assimiladora, deve-se poder formar uma identidade através da qual se lê toda uma genealogia
espiritual.” FOUCAULT, Michel. “Escrita de si”. Ética, sexualidade, política. Manoel Barros da Motta
(Org); Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa (trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2004. p. 153. (Ditos e escritos, V).
14
O arquivo pessoal de Maysa a que tive acesso e que me foi emprestado para digitalização para a
produção do livro Maysa e para minhas pesquisas de doutorado, em junho de 2006, com autorização de
Jayme Monjardim, tratava-se de uma reunião de textos, fotos e alguns objetos, então preservados dentro
de um grande baú preto de plástico, com as dimensões de 0,8m de largura, por 1,20m de comprimento e
0,8m de altura. Estava guardado na residência paulistana de Fernanda Lauer, ex-esposa de Monjardim.
Sua digitalização resultou em 2.890 arquivos escaneados, sendo 1.717 de textos e 1.173 de imagens.
15
“[...] ‘arquivo’ remete ao arkhê no sentido nomológico, ao arkhe do comando. Como o archivum ou o
archium latino (palavra que empregamos no singular, como era o caso inicialmente do francês ‘archive’,
que outrora era usado no singular e no masculino: ‘un archive’), o sentido de ‘arquivo’, seu único sentido,
vem para ele do arkheîon grego: inicialmente uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos
magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandavam. Aos cidadãos que detinham e assim
denotavam o poder político reconhecia-se o direito de fazer ou representar a lei. Levada em conta sua
autoridade publicamente reconhecida, era seu lar, nesse lugar que era a casa deles (casa particular, casa
de família ou casa funcional) que se depositavam então os documentos oficiais. Os arcontes foram os
seus primeiros guardiões. Não eram responsáveis apenas pela segurança física do depósito e do suporte.
Cabiam-lhes também os direitos e a competência hermenêuticos. Tinham o poder de interpretar os
arquivos. Depositados sob a guarda desses arcontes, estes documentos diziam, de fato, a lei: eles
evocavam a lei e convocavam à lei. Para serem assim guardados, na jurisdição desse dizer a lei eram
necessários ao mesmo tempo um guardião e uma localização. Mesmo em sua guarda ou em sua tradição
hermenêutica, os arquivos não podiam prescindir de suporte nem de residência. Foi assim, nesta
domiciliação, nesta obtenção consensual de domicílio, que os arquivos nasceram. A morada, este lugar
onde se de-moravam, marca esta passagem institucional do privado ao público, o que não quer sempre
dizer do secreto ao não-secreto.” DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo, uma impressão freudiana. Trad.
Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. pp.12-13.
5
6
se do arquivamento de parte das fotos, em pastas de plástico, algumas com identificação
de data e evento. A grande maioria do material, porém, caracteriza-se por se apresentar
dispersa, fragmentária, transitória, sem data.
Próprios do universo privado, esses arquivos de Maysa revelam, porém, como
um fator constituinte de boa parte do material ali presente, principalmente em seus
textos, uma forte presença do universo público, como se a todo momento ecoasse sobre
a pessoa física, ou sobre sua persona privada, a personagem Maysa, a cantora e
compositora envolvida pelo que dela diziam e divulgavam, pelo anedotário que
circulava sobre ela – ela que publicamente foi Maysa Matarazzo, Maysa Monjardim ou
simplesmente Maysa, para citar algumas de suas denominações. Muitos dos textos do
arquivo foram escritos na temporalidade do próprio acontecimento, como os diários, as
cartas e os textos confessionais impulsivos. Outros – como os poemas ou as letras de
músicas – sinalizam um trabalho de composição, que foi lido e relido, feito e refeito,
com as respectivas marcas da criação, na tentativa, é bem possível, de produzir novas
canções comerciais para seu repertório musical.
É daí que saltam as várias máscaras de Maysa, como um jogo de
espetacularização, levando-a a um duplo movimento: contaminar-se pela personagem e
à personagem com sua própria vida privada. Para ilustrar essa passagem, um dos
exemplos mais interessantes desse entre-lugar de Maysa, está na fotonovela que ela
protagonizou em 1960, expondo-se publicamente como personagem de uma narrativa
localizada entre a ficção e a realidade, em um veículo de massa popular por excelência,
vendido em bancas e impresso em papel-jornal.
A fotonovela em questão foi publicada pela revista Sétimo Céu, em 1960,
intitulada “Maísa [sic], o drama de uma vida”, em que ela surge como personagem de si
mesma, interpenetrando vida pública e privada, intercalando fotos especialmente
posadas a fotos de seu arquivo pessoal,
revelando-se ao público em seus papéis
(comuns às leitoras) de mãe, filha, dona-de-casa e mulher em busca do amor, mas,
simultaneamente, também revelando no mesmo espaço toda sua sofisticação,
principalmente artística.
6
7
Vale citar também a recorrente exposição pública de suas emoções e sentimentos
mais íntimos, que não se limitavam, porém, às reações ao assédio da imprensa, ou ao
seu comportamento diante do público, mas era visível sobretudo nas canções que ela
própria compunha e interpretava, cuja temática remetia às desilusões amorosas, como as
que ela vivia em sua vida pessoal. A ficção que Maysa assim construía publicamente
para os outros e para si acabou por marcar sua vida privada. Um exemplo disso estão
nas primeiras canções que a lançaram ao estrelato – “Adeus”, “Ouça” e “Meu mundo
caiu”16, para citar três de seus principais sucessos. Todas, de algum maneira, remetem à
despedida e à solidão, conseqüência do amor desfeito, um sentimento que a cantora
então vivia em sua vida pessoal, recém-separada do marido milionário André
Matarazzo, aliás, caso amplamente alardeado pela imprensa da época.
Mas um olhar mais atento em seu autoarquivamento, permite perceber que não
há ali uma autobiografia sistematizada, uma totalidade que dê a ilusão do sujeito
unificado no tempo, mesmo que pela via do eu-textual. O que existe são fragmentos
multiformes, o dilaceramento do sujeito nos relatos de sua intimidade, talvez a
mimetizar o próprio sujeito esfacelado. Maysa se mostra partida, seus textos estão
fragmentados, seu baú é multiforme. Ela se revela deslocada em relação à
espetacularização, mas ao mesmo tempo não deixa de espetacularizar-se.
Se não há uma autobiografia convencional, coube à posteridade escrevê-la. É o
que se revela nos dividendos do arquivo de Maysa, os esforços póstumos para resgatar a
sua memória (qual memória?), de maneira a sacralizar e monumentalizá-la,
reintroduzindo-a no imaginário nacional.
O mais recente bem simbólico produzido com consultas ao arquivo dela é a
minissérie “Maysa – Quando fala o coração”, escrita por Manoel Carlos, dirigida por
Jayme Monjardim e exibida nacionalmente, entre 5 e 13 de janeiro de 2009, pela Rede
Globo, a qual já está disponível em Dvd. Em 2007, foi a vez do lançamento da biografia
Maysa, só numa multidão de amores, de Lira Neto. E antes, entre outras iniciativas,
16
“Adeus”, de Maysa, é canção lançada no LP Convite para ouvir Maysa, em 1956, e em disco de 78
RPM (RGE 10056), em 1957. “Ouça”, de Maysa, foi lançada em disco 78 RPM (RGE – 10047) e no LP
Maysa, ambos em 1957. “Meu mundo caiu”, de Maysa, foi lançada no LP Convite para ouvir Maysa no 2,
e em disco de 78 RPM (RGE – 10083), ambos em 1958.
7
8
ainda houve o documentário “Simplesmente Maysa”17, dirigido por Jayme Monjardim,
em 1979, exibido pela hoje extinta TV Manchete.
Até aqui falamos em recursos audiovisuais e textos jornalísticos de outros
autores. Maysa por si mesma, revelando sua poética, sua “arte elevada”, só acontecerá, e
pela primeira vez, com o livro Maysa, a “autobiografia poética ilustrada”, de dezembro
de 2008. Mas antes, é preciso revelar, porque pertinente, ainda houve uma tentativa de
Monjardim de publicar um livro de poemas da mãe, com prefácio solicitado a Carlos
Drummond de Andrade, conforme carta contida nos arquivos do poeta mineiro18,
convite esse posteriormente aceito por Jorge Amado, segundo texto avulso presente nos
arquivos de Maysa.
Livro com poemas e minissérie de TV, bens simbólicos inerentes ao mundo
erudito e popular, respectivamente, como se leu, viu e ouviu recentemente em mídia
nacional, estavam há 32 anos sendo “gestados” por Monjardim. As palavras explicando
a iniciativa de assim reviver Maysa são dele próprio: “a minissérie é para cima, não uma
lavação de roupa, é uma purificação, uma recuperação de nossa memória e uma
homenagem à música brasileira. O país estava esquecendo um patrimônio nacional”19.
Minissérie à parte, porque não é o objeto de análise deste trabalho, é importante
registrar, no entanto, não só os elogios à produção e o sucesso de audiência que recebeu,
mas a particularidade de ter sido dirigida pelo filho da personagem principal, com seus
dois filhos – André e Jayme – interpretando-o na infância e adolescência,
respectivamente. Mesclar ficção e realidade, portanto, não era um privilégio de Maysa.
Nesse sentido, também interessa registrar aqui a polêmica que a minissérie gerou
com críticas vindas principalmente do biógrafo de Maysa, Lira Neto, que publicou o
artigo “Minissérie global simplifica e distorce biografia de Maysa”, na Folha de
17
Cópia datilografada, e sem assinatura, da carta de Jayme Monjardim ao Chefe do Departamento de
censura da Polícia Federal, solicitando o “certificado de censura” para o documentário, então apenas
identificado como “Maysa”, está incluída no baú-arquivo consultado para este trabalho.
18
Carta com a solicitação em questão está arquivada na Fundação Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro,
junto aos arquivos de Carlos Drummond de Andrade, cuja resposta, se existiu, não tive acesso.
19
MATTOS, Laura. “Minissérie ‘Maysa - Quando Fala o Coração’ estreia amanhã na Globo”. In: Folha
de S.Paulo, 4 de janeiro de 2009.
8
9
S.Paulo, em 14 de janeiro de 2009, reclamando do que chamou de falta de veracidade
da minissérie20.
Para além da discussão sobre o que é verdade e o que é ficção, convém, porém,
deixar registrado que depois da morte do autor21 e do retorno do autor22, o autor já
surgiu praticando o que muitos críticos batizaram de “autoficção”23. Nesse sentido, o
que mais se observa é que o pacto autobiográfico24 que implicava a identificação entre
autor, narrador e personagem está quebrado: por trás de tudo perpassam a crise da
representação, a crise do literário, o esvaziamento e alteração do conceito de
experiência, a redefinição do modo como o sujeito se constitui.
A iniciativa dos guardiões dos arquivos de Maysa de, a partir dele, lançar outros
produtos culturais sobre a cantora – Cds, livros, minissérie de TV e um filme – remete,
para além dos interesses mercadológicos a se considerar, também à constatação do
movimento recente que faz a história entrar para o “mercado simbólico do capitalismo
tardio”, na medida em que várias são as operações, registradas nas últimas décadas,
visando reordenar o passado e seus personagens mediante o resgate de histórias da vida
cotidiana, de seus “pequenos nadas” registrados.
Mudaram os objetos da história – a acadêmica e a de grande circulação –,
embora nem sempre em sentidos idênticos. De um lado, a história social e
cultural deslocou seu estudo para as margens das sociedades modernas,
modificando a noção de sujeito e a hierarquia dos fatos, destacando os
pormenores cotidianos articulados numa poética do detalhe e do concreto. De
outro, uma linha da história para o mercado já não se limita apenas à narração
de uma gesta que os historiadores teriam ocultado ou ignorado, mas também
20
“Ao assistir aos capítulos de ‘Maysa – Quando Fala o Coração’, logo me veio à lembrança o dia em que
um jornalista quis saber a opinião da escritora Rachel de Queiroz a respeito da adaptação de seu romance
“Memorial de Maria Moura” para a televisão, à época também levada ao ar na forma de minissérie.
Rachel, com irresistível senso de humor, sapecou: “Até estou gostando; eles lá na Globo é que não
gostaram muito de meu livro, pois trataram de mudar tudo na história”. Do mesmo modo, no caso da
minissérie sobre Maysa assinada por Manoel Carlos e dirigida por Jayme Monjardim, os roteiristas
parecem não ter gostado muito da verdadeira história da cantora de olhos felinos e alma atormentada.
(Grifo meu)
21
BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
22
BARTHES, Roland. A preparação do romance II – a obra como vontade. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
23
Segundo Diana Irene Klinger, a autoficção nasce do paradoxo entre o desejo de falar de si e a
impossibilidade de exprimir a verdade na escrita. Nesse sentido, na autoficção há sempre um elemento
que corrói a verossimilhança interna, como uma crítica à noção de sujeito e de representação. Cf.
KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro – o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2007.
24
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – De Rousseau à internet. Jovita Maria Gerheim Noronha
(org.) Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
9
10
adota um foco próximo dos atores e acredita descobrir uma verdade na
reconstituição de suas vidas.25
Ao se falar no resgate da memória de Maysa, “um patrimônio nacional”
esquecido – como querem os bens simbólicos derivados dos arquivos pessoais da
cantora e compositora –, dentro de todo esse contexto, há de se repensar novamente a
pergunta: qual memória? No caso do livro Maysa, a autobiografia poética ilustrada,
algumas considerações sobre sua produção podem ajudar a pensar melhor sobre isso.
Maysa, uma autobiografia poética ilustrada
Como observado antes, o livro nasceu de um antigo desejo de Jayme Monjardim,
que, ao disponibilizar os arquivos pessoais da mãe, em contrapartida, exigiu da Editora
Globo, que desse a palavra final sobre a seleção e a composição da obra. Embora eu,
como organizadora e editora, tenha tido certa liberdade de decisão em sua organização e
montagem, elegendo a ordem de apresentação e eventuais cortes e recortes dos textos de
Maysa, bem como a imagem com as quais se fariam acompanhar, a decisão sobre quais
poemas, quais fotos e quais imagens de quadros entrar no livro veio de Monjardim, o
guardião do arquivo de Maysa, seu arconte contemporâneo26.
O que ficou de fora? O que jamais entraria? Por quê? De imediato, conhecendo os
arquivos de Maysa, posso dizer que ficaram de fora os erros gramaticais que ela
eventualmente cometia, corrigidos na transcrição dos poemas e textos selecionados. De
fora também ficaram delírios textuais sob efeito de medicamentos e álcool, rasuras,
intimidades, pequenos nadas, contas a pagar, discussões familiares, repetições de idéias
e versos; em outras palavras, o que não interessa aos objetivos da sacralização da
personagem. Havia ainda a orientação para que as imagens falassem mais do que os
textos em si – o que exigiu a seleção de trechos de poemas mais longos, portanto, um
deslocamento de seu contexto maior – e que ali não entrasse texto de nenhuma outra
pessoa a não ser de Maysa, com exceção dos grandes poetas e escritores que a
elogiaram – Manuel Bandeira, Pablo Neruda, Carlos Drummond de Andrade e Jorge
Amado –, cujos textos foram ali incluídos.
25
SARLO, Beatriz. Tempo passado – cultura da memória e guinada subjetiva. Rosa Freire d´Aguiar
(trad). São Paulo: Cia. das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. p.11-12.
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Ver nota 15.
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Todas essas decisões, adequadas às exigências da indústria cultural e aos objetivos
de sacralização da personagem – isso é um fato para quem trabalha no mercado editorial
e na indústria do entretenimento –, por outro lado, numa visão crítica mais apurada,
também revelam algo mais: no caso das correções e deslocamentos, um falseamento;
enquanto que nas citações pelos escritores canonizados, a legitimação. Tudo isso é aqui
mencionado porque pertinente para pensar os mecanismos da monumentalização
póstuma, visando especificamente inserir Maysa no mundo da arte elevada.
Diante de material completamente disperso e fragmentário, sem data, como são
os textos do arquivo em questão, houve ainda um outro desafio na confecção do livro
Maysa: qual a ordem de apresentação, se não havia indicação de quando foram
produzidos e em que contexto? Note-se que, dividido em cinco blocos – “Em família”,
“Anos 1950 e 60”, “Anos 1970”, “Em cores” e “Poemas” –, o início é quase todo de
textos extraídos de entrevistas e diários, portanto, mais referenciais. É a partir do
segundo bloco, dos anos 1950 e 60, quando Maysa dá início a sua carreira, que os textos
selecionados se compõem de poemas e trechos de poemas, arranjados com as fotos
numa narrativa biográfica livre. Livre porque imagem e texto não foram
necessariamente produzidos na mesma época, não seguem uma cronologia, nem se
referem à mesma vivência. Livre porque a poesia, em sua intemporalidade, assim o
permite. E porque as imagens contêm em si, anacronicamente, todos os tempos. Daí ter
sido necessário incluir uma observação, em letras miúdas, na última página:
Este livro é uma biografia poética ilustrada da trajetória de Maysa, criada
livremente a partir de seus arquivos pessoais. Por toda a vida, Maysa teve o
hábito de expressar seus sentimentos em palavras escritas, muitas vezes de
forma compulsiva. Esse material, reunido e conservado por seus familiares, é de
natureza fragmentária, não-linear, a maioria sem data. A orquestração entre
esses textos (às vezes optando-se por trecho deles) e as fotos deste livro,
portanto, obedece mais a uma narrativa poética do que a uma rígida ordem
cronológica e gramatical.
Em discussão, está também a impossibilidade de apreensão do ser real, na medida
em que toda biografia e autobiografia são sempre ficções.
Referências bibliográficas:
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Boitempo, 2007
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