O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Ao meu irmão. Aos meus pais. Ao Raul. 1 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Agradecimentos Estou verdadeiramente feliz por ter concretizado mais um projecto importante na minha vida: tirar o curso de Mestrado em Ensino da Língua e da Literatura Portuguesas. Para que este sonho se tornasse realidade, eu necessitaria do apoio da minha orientadora, dos amigos e da família. Eles deram-me muito mais do que isso: estiveram ao meu lado nos momentos em que eu me senti menos capaz e demonstraram sempre acreditar que eu teria capacidade para levar a cabo este trabalho. Em primeiro lugar, agradeço a orientação e carinho que recebi da Professora Doutora Henriqueta Gonçalves. Para além do papel de me orientar na elaboração da presente dissertação, a professora Henriqueta também acompanhou o meu trajecto como estudante do curso de Licenciatura em Português-Inglês (ensino de) e como aluna de mestrado. Não tive a menor dúvida que desejava ser orientada por esse ser humano tão culto, dedicado, metódico e sempre disponível a atender as dúvidas dos seus alunos. Durante a elaboração desta dissertação, a professora Henriqueta acompanhou sempre o meu trabalho de perto e nunca me recusou um pedido de ajuda. Muito obrigada, professora. O amor que a minha família sempre me dedicou, os valores da honra, dignidade e perseverança que os meus pais sempre me incutiram, ajudaram-me a conseguir concretizar todos os objectivos que eu tracei na minha vida até hoje. Pai, mãe e maninho, eu agradeço todos os dias a Deus a família bonita que me deu e quero que saibam que vos amo muito. Agradeço ao meu namorado, Raul, ter-me apoiado em todas as decisões, ter-me ajudado a dissipar os meus medos e a acreditar na minha força interior. Contigo ao meu lado, Raul, aprendi o verdadeiro significado da palavra “companheirismo” e aprendi a saber o que é o respeito mútuo, cumplicidade, confiança e dar sem pensar em receber. Espero estar ao teu lado todos os dias do resto da minha vida. À minha colega Letícia agradeço as palavras de afecto, o carinho e os anos de convivência. Espero que a nossa amizade perdure e que os nossos caminhos se encontrem sempre. Agradeço à minha querida amiga Susana ter-me dado a oportunidade de a conhecer e ter-me apoiado sempre que eu necessitei. Tomei contacto com ela no curso de Licenciatura e, quando um azar me bateu à porta, ela esteve lá para me ajudar sem sequer pensar se eu seria merecedora da sua confiança. Nunca poderei agradecer todo o bem que ela e a sua família me têm feito e agradeço do fundo do coração todo o carinho por eles demonstrado. Querida 2 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Susana, na tua companhia aprendi o significado da palavra “amizade” e quero que saibas que vou guardar-te sempre no meu coração. Tu és a minha melhor amiga. Agradeço aos colegas de mestrado, especialmente ao Zé Paulo, ao Tó Zé, à Isabel, à Cristina, à Leonor e à Tânia, o maravilhoso ambiente de trabalho e a entreajuda prestada durante este curso de mestrado. Por fim, quero demonstrar a minha eterna gratidão a uma pessoa extremamente sensível, inteligente e criativa que dá pelo nome de Luísa Monteiro. Muito obrigada por ter atendido os meus pedidos, por me ter recebido de braços abertos em Albufeira e por me ter dado a oportunidade de apreciar a sua companhia. A Luísa é um ser excepcional e admiro-a profundamente. 3 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Resumo O objectivo fundamental da reflexão que este trabalho produz é conhecer em que medida o tema da infância é retratado nas narrativas A Guardadora de gansos e O Estranho Amável da Autora Luísa Monteiro. Para levarmos a cabo tal objectivo, depois de fazermos uma pequena retrospectiva da vida e obra de Luísa Monteiro de forma a dar a conhecer a Autora ao leitor, falamos da importância do estado da infância para Luísa Monteiro. Apercebemo-nos que a Autora explora o estado da infância através da aproximação intertextual a outras obras. Assim, fazemos também referência aos tipos de intertextualidade existentes na Literatura, terminando com a referência ao tipo de intertextualidade utilizado por Luísa Monteiro: o pastiche, o qual consiste na imitação criativa de um texto já existente. Por último, descrevemos as características existentes nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável, que são importantes para analisar em que medida é utilizado o pastiche e de que modo é tratado o tema da infância. 4 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Abstract The main object of this work is to acknowledge in which measure childhood is portrayed in Luisa Monteiro’s novels A Guardadora de Gansos and O Estranho Amável. In order to achieve that object, we focus on the importance of childhood to Luisa Monteiro, not before doing a small retrospective about Luisa Monteiro’s life and work so that the reader get acquainted to the Authoress. We perceive that the Authoress searches into the childhood condition through the intertextual approach to other works. Afterwards, we report the intertextual types existing in Literature, ending with the allusion to the intertextuality type used by Luisa Monteiro: the pastiche, which consist of an existent text creative copy. At last, we describe the existing characteristics in the novels A Guardadora de Gansos and O Estranho Amável which are important to analyse in which way pastiche is used and in which way childhood is studied. 5 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro “Poetas de fim de século e fim de milénio, alguns ainda com a obra em meio (ou em princípio?), eles representam o verbo deslumbrado pela impossibilidade primordial de querer dizer.” Maria Leonor Carvalhão Buescu, História da Literatura Configurando um processo desejavelmente silencioso, recolhido, voluntário e lúdico, a leitura parece ser o momento em que o texto e o leitor se completam reciprocamente, num encontro que pode mesmo ser encarado como acontecimento irrepetível: em relação a outros leitores, a outros textos e até em relação ao mesmo texto, que dificilmente voltará a ser lido pelo mesmo leitor (…) de forma rigorosamente idêntica. Cristina Mello, O Ensino da Literatura e a Problemática dos géneros literários 6 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Índice geral Agradecimentos…………………………………………………………………………………. 2 Introdução……………………………………………………………………………………..... 8 Parte I – Possibilidades da prática intertextual………………………………………………..... 10 1. Luísa Monteiro e a infância……………………………………………………………. 10 2. Possibilidades da prática intertextual……………………………………………........... 17 3. Paródia e Pastiche……………………………………………………………………… 22 Parte II – As narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável.................................... 25 1. Personagens……………………………………………………………………………. 25 2. A construção do nome das personagens……………………………………………….. 36 3. A construção do mundo imaginário…………………………………………………… 42 4. A relação com o mundo circundante…………………………………………………... 62 4.1 Os amigos e a família……………………………………………………………... 62 4.2 O primeiro amor…………………………………………………………………... 69 4.3 Amor absoluto à natureza…………………………………………………………. 77 4.4 Efemeridade da vida………………………………………………………………. 81 5. O uso do pastiche……………………………………………………………………… 89 Conclusão……………………………………………………………………………………….. 91 Bibliografia……………………………………………………………………………………... 94 1. Bibliografia activa……………………………………………………………………... 94 2. Bibliografia passiva……………………………………………………………………. 95 3. Dicionários e Enciclopédias…………………………………………………………… 98 4. Sites da Internet………………………………………………………………………... 99 Apêndice………………………………………………………………………………………... 100 The Goose-girl at the well……………………………………………………………….. 101 7 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Introdução A relação com o outro, a liberdade, a morte, a reflexão acerca da literatura e a infância são, entre outros, alguns dos temas tratados na obra de Luísa Monteiro, mas em “O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro”, centrar-nos-emos no mundo da infância nas duas narrativas em estudo. Por conseguinte, para além de abordarmos a forma como a Autora trata a infância nas suas obras, pretendemos divulgar uma Autora portuguesa contemporânea que ainda é pouco conhecida do grande público. Tornou-se, assim, necessária a colocação, na parte I deste trabalho, de uma pequena biobibliografia da Autora para dar a conhecer ao leitor, não só a sua produção literária, mas também, de que forma a Autora foi demonstrando, ao longo da vida, o gosto pelas letras. De seguida, iremos ver o modo como Luísa Monteiro trata o mundo da infância, que ela considera o estado crucial para a definição da personalidade do ser humano através de uma pequena análise das novelas A Vaca-Loura e O Lagarto. É na infância que o ser humano aprende a dizer as primeiras palavras, ou seja, aprende a comunicar, é neste estado que toma contacto com o meio envolvente e que aprende a conviver com as cores, os sons, os sabores e, também, com os objectos. Neste estado tudo se apresenta de forma primitiva e verdadeira. Todas as experiências que o ser humano retirar desse estado irão influenciar a formação do seu carácter. De forma a poder retratar o mundo da infância, a Autora irá recorrer frequentemente a uma prática intertextual, o pastiche, tornando-se, dessa forma, necessário fazer uma pequena abordagem das várias práticas intertextuais estudadas em literatura de modo a poder distinguilas do pastiche. Começaremos por definir texto nas palavras de Carlos Ceia, Julia Kristeva e Somville para, de seguida, definirmos o termo intertextualidade fazendo também uma distinção entre paródia e pastiche. Na parte II, procuraremos fazer uma pequena apresentação das narrativas em estudo, A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável, para podermos problematizar de que forma de que forma o pastiche é utilizado pela Autora no tratamento da infância nestas narrativas. Notaremos como esta prática intertextual as enriquece, visto que é feita referência a personagens e cenários apresentados nomeadamente nas obras Alice no País de Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho de Lewis Carroll, O engenhoso fidalgo D. Quixote De La Mancha de Miguel de Cervantes, Pinóquio de Carlo Collodi, Lolita de Vladimir Nabokov, Rei Lear de William Shakespeare, Os Cinco de Enid Blyton e nos contos “A Cinderela” de 8 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Charles Perrault, “A Polegarzinha” de Hans Christian Andersen e “A guardadora de gansos” de Jacob e Whilhelm Grimm. Iremos, assim, abordar, ao longo da dissertação, de que forma o pastiche é utilizado para descrever duas personagens com uma história de vida e com uma visão do mundo diferentes. A obra O Estranho Amável conta a história de Alice, uma mulher idosa que sofre de Alzheimer e que vive num lar. Mantém uma relação conflituosa com a família: teve um casamento fracassado com Celso Palma, o qual lhe infligiu maus tratos desde a noite de núpcias; os filhos acreditam que ela “variou”, na expressão da Autora, sem tentarem compreender o seu estado: uma mulher de 80 anos com um passado sofrido (perdeu o seu primeiro amor – o Luís) e uma doença ingrata, mas que não deixa de ser uma mulher sábia que aprendeu com a vida; transformou-se na mulher que é, devido à infância que teve e que influenciou a sua personalidade. A personagem principal da narrativa A Guardadora de Gansos é Vita, uma mulher aparentemente muda e órfã de mãe. É a mais nova de três irmãs, por parte do pai. Após a morte dele, herdou a quinta e as duas irmãs os três grandes prédios da cidade. Vita vai acabar por ter de vender a quinta que se encontrava na falência, abdicando, por isso, da sua herança. Vai viver para a cidade e acabará por casar com Leonardo, mas não será feliz no meio da civilização. Sente que a cidade com toda a sua azáfama a adoece e anseia voltar à infância no meio da natureza. Apercebemo-nos que Alice e Vita cresceram no seio de diferentes comunidades e que não são mulheres felizes, porque a vida foi cruel com elas. Pretendemos, portanto, estudar o modo como estas duas personagens se relacionam com a família, com a comunidade onde nasceram e onde vivem, como constroem o seu mundo imaginário e como este influencia o seu modo de vida e, finalmente, o modo como elas encaram a passagem do tempo. Iremos observar que ambas encontram refúgio na infância de modo a acabarem com a sua frustração. As duas personagens irão transmitir-nos que é apenas nesse estado divinizado que poderão alcançar a imortalidade. Assim, Vita entrega-se ao mar, que é origem de tudo e Alice entrega-se ao mundo de sonho. As conclusões possíveis serão sistematizadas na parte final do trabalho. 9 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Parte I – Possibilidades da prática intertextual 1. Luísa Monteiro e a infância Luísa Augusta Monteiro Araújo de Sá nasceu no dia 12 de Junho de 1968 em Vila Nova de Famalicão. Reside no Algarve desde 1998. Desde os seis anos que publica poemas e contos. O seu primeiro poema foi publicado no jornal “Primeiro de Janeiro”. Aos 15 anos, integrou a companhia de teatro profissional “Teatro Construção” como actriz e, passado um ano, decidiu fazer parte na dramaturgia das peças. Durante essa experiência no teatro, a qual durou três anos (1983-1986), Luísa Monteiro representou em várias peças: “Na Barca com Mestre Gil” – compilação das obras de Gil Vicente –, “O Lobisomem” de Camilo Castelo Branco, “Auto da Índia” de Gil Vicente, “Eu, Tu, Ele, Nós, Vós, Eles” de Sérgio Godinho, “Inventão” e “Assim-assim e Anão-anão” de Custódio Oliveira e, por último, “De Águia a Zebra” de Manuel António Pina. O seu amigo e professor de Jornalismo, Carlos Magno, incentivou Luísa Monteiro a escrever para Jornais nascendo, a partir daí, o gosto da Autora pelo jornalismo. Ao longo de dezassete anos, passou por cerca de quinze jornais e rádios de âmbito regional e nacional, de Norte a Sul do país. Em consequência, Luísa decidiu deixar para trás os cursos de Português/Francês na Universidade do Minho e de Filosofia-Humanidades da Universidade Católica em Braga e licenciar-se em Ciências da Comunicação na Universidade Fernando Pessoa, no Porto. Em seguida, realizou uma Pós-graduação em Comunicação e Marketing Político e uma Pós-graduação em Literaturas Românicas, Modernas e Contemporâneas. Fundou o Círculo de Literaturas, Estudos, Informação e Arte – o CLEIA – e a Revista “Ateneu Cultural”, que não existe hoje em dia por falta de verbas. Nesta revista, Luísa publicou essencialmente poesia. No entanto, foram publicados contos seus em diversos boletins e magazines culturais. O seu primeiro romance surgiu em 1997: As Novas Bruxas do Ave, tendo sido distinguido com o Prémio Nacional Júlio Brandão, prenúncio evidente de que a obra da Autora viria a enriquecer o panorama literário português. Várias produções romanescas e novelísticas se seguiram, dirigidas tanto a um público adulto como a um público juvenil: Tango Triste – memento (1999), A Casa das Areias (2000), O Estranho Amável (2001), O 10 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Evangelho das rãs (2002), O Sorriso de Percival e O Lagarto (2003), Agatha Christie e o Bosque Sagrado (2004), A Guardadora de Gansos e A Vaca – Loura (2005). Actualmente, Luísa Monteiro pertence a um grupo de teatro onde desempenha as funções de dramaturga, encenadora e dramaturgista. Destacam-se as seguintes peças: “Clara Gotinha no Reino das Algas” (2001); “Cores Sensíveis” (2002); “As Sobredotadas” (2003); “Clara Gotinha na Floresta dos Morcegos Azuis” (2004); “Emanuel, o rei” (2004); “Crufeminino/Crumasculino” (2005). É também formadora em teatro: Teatro e Comunicação – para idosos – (Outubro de 2000 a Maio de 2001); Formação para teatro – para professores – (Outubro de 2001 a Junho de 2002; Formação para teatro – para funcionários públicos – (Outubro de 2002 a Junho de 2003); Oficina “Contacto com o teatro” (Setembro de 2004); Oficina “Acontecer no palco para perceber na rua” (Novembro de 2004)1. Ao longo da leitura das narrativas de Luísa Monteiro apercebemo-nos que a sua linguagem se aproxima da lírica como forma de demonstrar a autenticidade e intensidade das emoções expressas pelas personagens. Em dois exemplos retirados da narrativa A Guardadora de Gansos esse aspecto é evidenciado: partirei mesmo que todas as vinhas se enlacem aos meus pés e os girassóis me ocultem a lua; verto o sorriso tinto na pia; espera-me a luz difusa pois sei que além do manto ruivo de vinha há pomares de verdes frondosos onde pulsam veias de cidra; esperam-me os braços da dúvida (Monteiro 2005: 41) O sol morre em mim e nos meus olhos definha toda a claridade do mundo. Desnudada vou pelo vento parabolizando a ilicitude da luz – desnudo o verde-mar que entrança nos meus cabelos as pérolas dos seus beijos de areia. (Monteiro 2005: 44) Na primeira passagem, a personagem Vita demonstra a sua determinação em partir da vinha. Desse modo, deixa para trás tudo o que ama e entrega-se a um futuro indeterminado. Na segunda passagem, Vita profere aquelas palavras quando se encontra a viver na cidade, a qual a adoece. Por isso, sente a necessidade de voltar a contactar com as suas origens e a melhor forma de o fazer é escrevendo os contos que os dezassete caseiros do seu pai lhe contaram. 1 Informação retirada do site da Internet http.alfarrábio.di.uminho.pt/vercial/lmonteiro.htm 11 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Nas narrativas da Autora o leitor é obrigado a reagir com um tempo de leitura mais alargado, propício à reflexão: a sua obra está impregnada de implícitos discursivos ou, para utilizarmos a expressão de Umberto Eco, de espaços do “não-dito” (Eco 1983: 27). Se repararmos nas seguintes passagens da narrativa O Estranho Amável observamos esse aspecto: “O amor só não é perfeito porque os corações não são divinos”; “deixamos de rezar à medida que avolumamos os sonhos. Os próprios. A capacidade de sonhar é o maior desafio que Deus nos propõe” (Monteiro 2001: 38-60). Em ambas as passagens o leitor é obrigado a reflectir, seja acerca do amor, seja acerca da capacidade de sonhar. Luísa Monteiro procura o envolvimento do leitor activo na sua obra, como claramente deixa transparecer em A Guardadora de Gansos, narrativa que também reflecte sobre a importância do verbo no mundo contemporâneo: Vita sabe que só o acto da criação literária é um amigo através das coisas – sendo da substituição que se alimenta: a aurora pura do amor em estado cru. Findo um livro, o reinado do vazio. É sempre preciso reiniciar a leitura de um livro. Vita sente que numa leitura qualquer, num dia qualquer, encontrará quem lhe entre na gruta da noite sem gansos de guizos de ouro ao pescoço – como uma variante oculta e objectiva da física quântica. (Monteiro 2001: 76-77) É, na sua perspectiva, às crianças, seres impregnados de luminosidade, que cabe a esperança no amanhã e, por isso, nos fala tão insistentemente no seu leitor futuro em A Guardadora de Gansos e na importância do mundo dos sonhos em O Estranho Amável. Nas crianças, a criatividade manifesta-se em todo o seu fazer espontâneo, imaginativo, manifesta-se, portanto, no brincar, no sonhar, no associar, no simbolizar e no fingir a realidade. Deste modo, criar significa para a criança viver, o que torna o estado da infância crucial para o desenvolvimento da personalidade do ser humano. Desde cedo, Luísa Monteiro demonstrou nas suas obras a necessidade de escrever para a criança que não teve oportunidade de ser. Para ela, a infância é um estado divinizado e é nesse estado onde Deus existe e se recria. Ela escreve para a infância enquanto estádio, enquanto momento irrepetível ao qual se regressa na morte. A personagem Vita da narrativa A Guardadora de Gansos, ao escrever, conclui que tudo teve origem na infância e que a melhor descoberta da vida foram as palavras. A personagem Alice de O Estranho Amável é precisamente a personagem de Lewis Carroll, mas já envelheceu e sofre de Alzheimer; no fim da narrativa, passa para o reino da fantasia e volta a ser criança. Este retorno à infância acontece porque a Autora considera que as crianças são 12 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro seres luminosos que ainda não foram contaminados pela sociedade, e que, por essa razão, apresentam comportamentos puros. Deste modo, as crianças tornam-se a única esperança no amanhã, pois vivemos numa sociedade competitiva e cruel e só a inocência e pureza da criança poderão transformar o mundo actual. A novela A Vaca-Loura de Luísa Monteiro é uma narrativa em primeira pessoa. Lurdes, a protagonista, é também narradora da história. Conta a fase mais marcante da sua infância, nos anos 702, quando tinha apenas sete anos3. Lurdes é filha de uma relação entre uma adolescente e um homem casado, a Lurdes e o Francisco. A mãe da menina emigrou com apenas quinze anos e Francisco renunciou ao seu papel de pai, fazendo-se passar por tio da criança. Lurdes foi entregue ao cuidado dos tios. Francisco visitava a filha frequentemente e comprou uma lambreta azul para poder levá-la a passear (cf. Monteiro 2005: 15). Lurdes adorava-o e sofreu imenso com a sua morte precoce (cf. Monteiro 2005: 24), da mesma maneira que Vita de A Guardadora de Gansos sofreu com a morte do pai: “desejei tantas vezes que tivesses perdido a vida antes do meu respirar” (Monteiro 2005: 25). A protagonista da novela A Vaca-Loura tem uma prima, que ela pensa ser irmã, a Olga, que, tal como a personagem Vita da narrativa A Guardadora de Gansos, é muda4. Lurdes amava Olga incondicionalmente e demonstrava um amor doentio pela mulher que achava ser sua mãe (cf. Monteiro 2005: 32). Relativamente ao pai adoptivo, considerava-o uma lesma (cf. Monteiro 2005: 31). Lurdes não recebia dos pais adoptivos a atenção e carinho de que necessitava, então encontrou conforto numa bicicleta velha que pertencia ao seu falecido avô e que apelidava de Vaca-Loura (cf. Monteiro 2005: 58). A Vaca-Loura é um insecto coleóptero, portanto, é um insecto da família do escaravelho. O escaravelho é conhecido sobretudo como símbolo egípcio. É considerado um símbolo de ressurreição, imagem do Sol que renasce de si mesmo: Deus que volta. Na pintura egípcia acreditava-se que o escaravelho renascia da sua própria decomposição, por isso, eram também usados como amuletos eficazes, visto que ocultavam em si o princípio do eterno retorno (cf. Chevalier e Gheerbrant 1982: 293). Também esta 2 “Numa altura em que a mãe comentara que o guerreiro fora para Lisboa porque a sua luta aquando de uma tal revolução com cravos lhe permitira agora ocupar uma cadeira cravejada de vaidade e importância” (Monteiro 2005: 35). 3 “Eu tinha mais três sobre os seus quatro anos e era a sua voz e vontade” (Monteiro 2005: 13). 4 “Fora dos portões chamavam mudinha à minha irmã e eu gritava-lhes que ela não era muda, mesmo sabendo que o era. Mas não era a mudinha” (Monteiro 2005: 11). 13 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro bicicleta velha renasceu das cinzas para dar alegria a duas crianças. Funciona como um amuleto para Lurdes e Olga, visto que estas duas meninas se sentem afortunadas por poderem ter a oportunidade de viver a sensação de liberdade. Realmente, pedalando a sua bicicleta, Lurdes poderá cultivar o seu imaginário e perceber pela primeira vez a noção de liberdade5. Por essa razão, um dia, Olga, depois de andarem de bicicleta, arrancou um cravo vermelho e deu-o a Lurdes. Como sabemos, em Portugal o cravo vermelho é o símbolo da liberdade. Assim, nesta novela, o cravo e a bicicleta simbolizavam a concretização do sonho de alcançar a liberdade. A bicicleta irá mostrar novos caminhos a Lurdes: quando atropela a sua mãe adoptiva é obrigada a viver com a sua verdadeira avó materna e acaba por descobrir as suas verdadeiras origens (cf. Monteiro 2005: 79); quando Olga é atropelada quando conduz a bicicleta, Lurdes irá aprender o verdadeiro significado da perda e do amor, irá também lutar, a partir daí, contra o esquecimento, pois pretende recordar sempre no seu coração aquele momento da sua infância em que convivia com a sua irmã do coração e tinha uma família: pela primeira vez depois da tua morte, para ti, a ti regressei: e tal como quando te agarravas a mim sobre a vaca-loura, sinto agora o teu braço a tremer no meu corpo – deste-me o teu amor maior tantas vezes, e o único doce com que retribuo é esta luta contra o esquecimento (Monteiro 2005: 78) A protagonista da novela A Vaca-Loura aprendeu, na infância que a verdadeira família não é a de sangue, mas sim aquela que nos dá amor e carinho, que nos protege do mal e nos ensina os bons valores. Apesar de Lurdes ter descoberto quando era criança que Olga não era sua irmã, nunca a vai esquecer, pois foi junto deste ser que ela sentiu que era amada e pôde também amar. Na novela O Lagarto o protagonista também é o narrador da história. Fala dos seus quatros anos (cf. Monteiro 2003: 9). Era um menino doente e, por essa razão, muito protegido pela mãe. Quase não saía de casa e quando o fazia tinha de vestir demasiada roupa para não adoecer, fazendo lembrar a personagem Eusebiozinho d’ Os Maias de Eça de Queirós: “Só 5 Voávamos até ao pôr-do-sol; até desaparecermos na estrada rumo aos campos de tremoceiros em flor. Voávamos pelo tojo, pelo centeio, pelas papoilas, pelos ribeiros, pelos batatais cobertos de brancas flores, pelos malmequeres silvestres, pelas silvas verdes carregadas de cachos de amoras – e, aqui, Olga abria as pernas e erguia-as para não se picar e abria muito a boca para que eu soubesse que estava a rir (Monteiro 2005: 57); “Numa bicicleta grande, a vida é simples” (Monteiro 2005: 58). 14 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro me lembrava do médico ter dito que eu não deveria andar tão agasalhado; frisou mesmo, enquanto me erguia as sucessivas camisolas para me auscultar o peito, que eu lembrava-lhe um pastel de mil folhas” (Monteiro 2003: 16). Quando conhece Lourenço, o homem mais feio, alto e magro que vira até então (cf. Monteiro 2003: 33), a sua vida irá mudar completamente. Chamava-lhe Mestre e Lagarto6. Com Lourenço o menino podia contactar com a natureza, podia tocar a terra7, molhar-se, respirar o vento, sentir o som da água, dos pássaros, o cheiro das flores e transpirar8. Pela primeira vez ele sentia-se livre e sentia o afago de um homem, visto que o seu pai não gostava de demonstrar os seus sentimentos e os seus irmãos mais velhos não compreendiam a sua maneira de ser e não o respeitavam verdadeiramente: “E o Lourenço, apesar de tolo e feio como um lagarto, como diziam, era muito mais honesto que todos os crescidos juntos” (Monteiro 2003: 58). Com Lourenço, o menino de quatro anos podia explorar o mundo da fantasia, pois na verdade “as crianças pertencem à imaginação” (Monteiro 2003: 67) e aprendeu o verdadeiro significado do amor: “Não, visto de branco para atrair o sol. Sabe, eu sou pedra9 e é sobre as pedras que os lagartos são felizes… Por uma questão de amor, entende?” (Monteiro 2003: 76). Como é na infância que realizamos as primeiras aprendizagens, isso também aconteceu com o protagonista desta história: para além de ter aprendido a amar, aprendeu que um escritor é um vendedor de sonhos (cf. Monteiro 2003: 26); e aprendeu a fingir (cf. Monteiro 2003: 66). 6 “Ele é citado, aliás, na Bíblia, como um desses seres mais pequenos da terra, que, entretanto, são sábios entre os sábios […] O lagarto simbolizaria assim a alma que procura humildemente a luz” (Chevalier e Gheerbrant 1982: 397) – O itálico é da responsabilidade dos Autores. Apesar de Lourenço ter um aspecto desleixado e ser uma pessoa de origem humilde, era mais sábio do que todas as pessoas que rodeavam aquele menino doente. Na verdade, Lourenço era o único adulto que ele conhecia que era feliz e livre: sabia tirar partido da liberdade que tinha e contactava com a natureza. 7 “Sentei-me na terra morna, o cheiro era a podridão e a fresco ao mesmo tempo – mas, era para mim, o verdadeiro cheiro da liberdade” (Monteiro 2003: 36). 8 Demos as mãos e rodamos como as raparigas, ficando as pontas dos pés na terra e girando como um pião feito de risos e de olhos mais brilhantes que as lantejoulas que as senhoras punham nos vestidos nas festas de casamento… Caímos, caras de dementes, sorrisos engelhados… e tudo continuava a correr à nossa volta, como se todos os montes não passassem de sebes gigantes em contraste com o azul orvalhado da tarde (Monteiro 2003: 51). 9 “Na tradição, a pedra ocupa um lugar de eleição. Existe entre a alma e a pedra uma relação estreita. […] Segundo a tradição bíblica, devido ao seu carácter imutável, a pedra simboliza a sabedoria” (Chevalier e Gheerbrant 1982: 510-514) – o itálico e o negrito são da responsabilidade dos Autores. Era como se o menino e Lourenço estivessem unidos pela alma e pelo corpo para sempre. 15 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Como podemos observar, através das considerações que fizemos sobre as novelas A Vaca-loura e O Lagarto, a infância contamina a mente do ser humano para toda a vida. Lurdes, personagem principal da novela A Vaca-Loura, nunca mais esqueceu os seus sete anos, marcados pela morte da sua irmã do coração; o protagonista da novela O Lagarto conservou para sempre na sua memória Lourenço e as aprendizagens que efectuou nos seus quatro anos, aspectos que irão influenciar a sua personalidade. 16 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro 2. Possibilidades da prática intertextual Segundo Vítor Manuel de Aguiar e Silva, todos os homens produzem no seu dia-a-dia um número indefinido de textos narrativos (cf. Silva 1999: 596). Carlos Ceia considera que o texto é “produzido num espaço específico entre o leitor e a escrita, que é o lugar da produtividade, a écriture ou a escritura.” (Ceia 1995: 42)10. Já Julia Kristeva vê o texto como uma entidade compósita matizada pela influência do sujeito de enunciação, cujo discurso reflecte a presença do destinatário e de uma série de textos contemporâneos ou anteriores – “il est une permutation de textes, une intertextualité: dans l’espace d’un text plusieurs énoncés, pris à d’autres textes, se croisent et se neutralisent” (Kristeva 1978: 52) – e Somville define texto como uma encruzilhada de textos (Somville 1995: 117). A obra literária não pode, portanto, ser pensada fora de um sistema: “Todo o texto é parte de um sistema linguístico” (Ceia 1995: 79-80). Sendo assim, o texto é um intercâmbio discursivo no qual convergem, se entrecruzam, metamorfoseiam, comprovam ou se contradizem outros textos, outras vozes e outras consciências: “O texto é sempre, sob modalidades várias, um intercâmbio discursivo, uma tessitura polifónica na qual confluem, se entrecruzam, se metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam outros textos, outras vozes e outras consciências” (Silva 1999: 625)11; no dizer de Laurent Jenny: o texto literário passa a ser o lugar de fusão dos sistemas de signos originários das pulsões e do social, e escusado é dizer que qualquer leitura pressupõe uma teoria acabada do sujeito e da sua relação com o social, o que ultrapassa em geral a ambição do poeticista. (Jenny 1979: 13) Tal como Vítor Manuel de Aguiar e Silva ou Carlos Ceia, também Julia Kristeva considerou que o texto é um sistema de signos, quer sejam obras literárias, linguagens orais, sistemas simbólicos ou inconscientes: “nous définissons le text comme un appareil translinguistique qui redistribue l’ordre de la langue, en mettant en relation une parole communicative visant l’information directe, avec différents types d’énoncés antérieurs ou synchroniques.” (Kristeva 1978: 52)12. 10 O itálico é da responsabilidade do Autor. 11 O itálico é da responsabilidade do Autor. 12 O itálico é da responsabilidade da Autora. 17 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Assim, dentro do texto há um fenómeno de dialogismo textual, o qual foi designado por Julia Kristeva, em 1966, de intertextualidade (foi com esta Autora que este conceito foi introduzido na teoria e na crítica literárias13): “tout texte se construit comme mosaїque de citations, tout texte est absorption et transformation d’un autre texte. A la place de la notion d’intersubjectivité s’installe celle d’intertextualité, et le langage poétique se lit, au moins, comme double” (Kristeva 1978: 85)14. Por essa razão, Laurent Jenny considera que a intertextualidade expressa o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, o qual é realizado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido (cf. Jenny 1979: 14). A intertextualidade corresponde, desse modo, a um processo de absorção e metamorfose de múltiplos textos que se projectam na superfície de um texto literário particular (cf. Reis 1981: 128) e o intertexto corresponde ao “texto ou o corpus de textos com os quais um determinado texto mantém aquele tipo de interacção” (Silva 1999: 625). Gerard Genette define a intertextualidade como “une relation de coprésence entre deux ou plusieurs textes, c’est-à-dire, eidétiquement et le plus souvent, par la présence effective d’un texte dans un autre” (Genette 1982: 8). Assim se explica a razão pela qual Laurent Jenny defende que fora da intertextualidade a obra literária seria incompreensível, tal como uma palavra de uma língua por nós desconhecida (cf. Jenny 1979: 5). Torna-se importante referir três espécies de tratamento que Laurent Jenny considera que os enunciados sofrem quando utilizados num processo intertextual, os quais têm como intuito normalizar o enunciado e garantir a sua inserção num novo conjunto textual: a verbalização consiste em verbalizar uniformemente a substância significante do texto, mesmo se ela recuperar um sistema significante de tipo figurativo (Jenny 1979: 31) e procura articular o sistema dos signos verbais sobre um sistema figurante (cf. Jenny 1979: 33); a linearização – ainda que a intertextualidade convide a uma leitura polissémica, paragramática, ou seja, a uma leitura múltipla, a execução do discurso intertextual confere ao texto uma rigidez monológica – “O significante verbal, mercê das suas determinações espaciais, só se desvenda progressivamente, […] constituindo a significação a pouco e pouco, e de modo cumulativo” (Jenny 1979: 33); e o engaste – de modo a que a harmonização intertextual seja completa, ela deve preocupar-se em unificar a forma e a substância do conteúdo; deve aliar-se à coerência 13 “Datées par Kristeva de 1966, ces lignes engagent l’avenir d’un concept, l’intertextualité” (Somville 1995: 115). 14 O itálico é da responsabilidade da Autora. 18 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro tipográfica uma diminuição das impossibilidades combinatórias de textos originários de horizontes muitas vezes heterogéneos (cf. Jenny 1979: 34). A intertextualidade exige determinações isotópicas muito mais rigorosas do que a classificação lógica dos engastes e opera uma montagem de natureza mais estilística do que narrativa. Esta montagem assenta em três tipos de relações semânticas: isotopia metonímica em que um fragmento textual é utilizado porque permite prosseguir com precisão o fio da narração (cf. Jenny 1979: 35); isotopia metafórica em que um fragmento textual é solicitado por analogia semântica com o contexto (cf. Jenny 1979: 35); montagem não isotópica em que “um fragmento textual está inserido num contexto sem nenhuma relação semântica, a priori, com ele” (Jenny 1979: 37). Laurent Jenny apresenta também uma lista de figuras de retórica que proporcionam ao analista uma matriz lógica, que classifica com exactidão os tipos de alteração sofrida pelo texto no decurso do processo intertextual: a paronomásia consiste na modificação do texto original conservando as sonoridades, mas modificando a grafia; isso irá carregar o texto dum sentido novo (cf. Jenny 1979: 38); a elipse consiste na “repetição truncada dum texto ou dum arqui-texto” (Jenny 1979: 39); a amplificação consiste na transformação dum texto original por prolongamento das suas virtualidades semânticas (cf. Jenny 1979: 39); a hipérbole consiste na “transformação dum texto por superlativação da sua qualificação” (Jenny 1979: 41); quanto às interversões e segundo Laurent Jenny, esta figura deve ser analisada pormenorizadamente porque diz respeito a elementos textuais diversos; podemos encontrar num texto vários tipos de interversões: interversão da situação enunciativa em que “Sendo estável o teor do discurso, muda o alocutário” (Jenny 1979: 41); a interversão de qualificação em que são aproveitados os actantes da narrativa original e são qualificados antiteticamente; a interversão da situação dramática em que o esquema das acções da narrativa recuperada é modificado, por transformação negativa ou passiva (cf. Jenny 1979: 42); a interversão dos valores simbólicos em que “Os símbolos elaborados por um texto são retomados com significações opostas no novo contexto” (Jenny 1979: 43); e, por fim, a mudança de nível de sentido em que “um esquema semântico é retomado no contexto num novo nível de sentido” (Jenny 1979: 43). Todas as figuras da intertextualidade apresentadas oferecem um vasto campo de exploração, porque é raro um texto literário ser recuperado e citado tal e qual. Assim, o “novo contexto procura […] uma apropriação triunfante do texto pressuposto” (Jenny 1979: 43). Por isso, Laurent Jenny compara o trabalho intertextual a uma maquilhagem, visto que este é mais eficaz sempre que o texto aproveitado tiver sido mais sabiamente modificado. 19 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Lucien Dällenbach defende que existe uma discriminação entre a intertextualidade geral, que consiste nas relações intertextuais entre textos de autores diferentes, e a intertextualidade restrita, que apresenta relações intertextuais entre textos do mesmo autor (cf. Dällenbach 1979: 51). No entanto, não coloca de parte a distinção que Ricardou fez entre intertextualidade interna e intertextualidade externa. A primeira trata da relação de um texto consigo mesmo e a segunda trata da relação de um texto com outro texto (cf. Dällenbach 1979: 52). A par destas, deve reconhecer-se uma intertextualidade autárquica ou autotextualidade: conjunto das relações possíveis dum texto consigo mesmo (cf. Dällenbach 1979: 52). Vítor Manuel de Aguiar e Silva entende a autotextualidade como um fenómeno que tende para uma impossível autarcia intratextual e que representa o contrário da intertextualidade (Silva 1999: 631). Para Dällenbach, a autotextualidade engloba a autocitação, a variante e a «myse en abyme». Esta última é percebida como o “redobramento especular, «à escala das personagens», do «próprio sujeito» duma narrativa” (Dällenbach 1979: 53). A «myse en abyme» designa, portanto, um enunciado sui generis e a sua condição de emergência é estabelecida por duas determinações mínimas: a sua capacidade reflexiva (fá-lo funcionar a dois níveis: o da narrativa, o da reflexão); o seu carácter diegético ou metadiegético. Assim, pode considerar-se a «myse en abyme» uma citação de conteúdos ou um resumo intratextual (cf. Dällenbach 1979: 54). Há três espécies de «myse en abyme»: a prospectiva que reflecte antecipadamente a história vindoura; a retrospectiva que reflecte a posteriori a história realizada; e, por último, a retroprospectiva que reflecte a história descobrindo os acontecimentos ulteriores e posteriores ao seu ponto de ligação à narrativa (cf. Dällenbach 1979: 60). Desse modo, a «myse en abyme» garante à narrativa uma espécie de auto-regulação (cf. Dällenbach 1979: 67). Vítor Manuel de Aguiar e Silva considera que, tendo em conta a natureza do intertexto, a intertextualidade pode ser exoliterária ou endoliterária. No que diz respeito à intertextualidade exoliterária, o intertexto é constituído por textos não verbais ou por textos verbais não literários como as obras historiográficas, filosóficas, científicas, livros didácticos, enciclopédias, etc. Em relação à intertextualidade endoliterária, Aguiar e Silva afirma que nesse caso o intertexto é formado por textos literários (cf. Silva 1999: 629-630): “A intertextualidade exoliterária manifesta-se sobretudo nas estruturas semânticas e pragmáticas do texto literário, ao passo que a intertextualidade endoliterária se pode manifestar 20 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro equipolentemente a nível de qualquer dos códigos discrimináveis no policódigo literário” (Silva 1999: 630). Segundo o Autor, também existe a intertextualidade hetero-autoral, a qual é entretecida pelo diálogo de vários textos, de várias vozes e consciências, e a intertextualidade homo-autoral: aquela em que os textos de um autor podem efectuar relações intertextuais com outros textos do mesmo autor “numa espécie de auto-imitação marcada tanto pela circularidade como pela alteridade” (Silva 1999: 630). Carlos Reis considera que os graus da intertextualidade estão relacionados com a problemática da transformação intertextual: “Como grau médio de intertextualidade poderá a análise textual encarar os exemplos até agora facultados; ou seja, alusões próximas, reflexos discretos de uns textos noutros que, por continuidade ou por rejeição, contribuem para a configuração do espaço intertextual” (Reis 1981: 133); como grau máximo de intertextualidade entendem-se práticas que apenas de modo literário alteram outras práticas textuais; fala-se, portanto, de pastiche (cf. Reis 1981: 133). Segundo Vítor Manuel de Aguiar e Silva a presença e a acção do intertexto num texto literário podem ser reveladas de modo explícito: isso sucede com a citação – consiste na reprodução total ou parcial de um texto noutro texto, sem perda de coesão semântica ou formal deste último –, com a paródia e com a imitação declarada, cuja presença depende da existência do texto parodiado e do texto imitado. A intertextualidade pode também influir de modo implícito, oculto ou dissimulado: é o que acontece com a alusão, com as referências críptocas, de natureza hermética e iniciática, a outros textos, com a imitação do tipo fluido, etc. (cf. Silva 1999: 631-632). Para Aguiar e Silva, a intertextualidade representa a força, a autoridade e o prestígio da memória do sistema, da tradição literária, pois permite imitar o texto modelar, citar o texto canónico, reiterar o permanente, ou seja, cultuar a beleza e a sabedoria “sub specie aeternitatis ou, pelo menos, sub specie continuitatis” (Silva 1999: 632). A intertextualidade pode também funcionar como um meio de inabilitar, de refutar e de desfazer a tradição literária ou o código literário vigente: através da citação, que pode ser depreciativa e ter propósitos caricaturais; através da paródia, que, ao utilizar a ironia e o burlesco, contesta, desacredita e dilacera formal e semanticamente um texto importante numa comunidade literária por forma a “corroer ou ridicularizar o código literário subjacente a esse texto, bem como os códigos culturais correlatos, e intentando assim modificar o alfabeto, o código e a dinâmica do sistema literário” (Silva 1999: 632). 21 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro 3. Paródia e Pastiche J. Cândido Martins considera a paródia como imitação ou deformação cómica, marginal e parasitária de um texto ou obras conhecidos (cf. Martins 1999: 1418). Sendo assim, esta prática intertextual relaciona-se simultaneamente com a obra que caricatura e com todas as obras parodísticas constitutivas do seu próprio género (cf. Jenny 1979: 6). Carlos Ceia caracteriza a paródia como uma “deformação criativa de um texto tido historicamente por modelar” (Ceia 1998: 59). Por isso, esta necessita da possibilidade de colocar o texto parodiado em situação de cómico (cf. Ceia 1998: 59). Assim, o “intuito da paródia consiste em ridicularizar uma tendência ou um estilo que, por qualquer motivo, se torna conhecido e dominante” (Moisés 1985: 388). No entanto, a paródia não é sempre concernente a um juízo negativo ou sempre imbuída de intuito cómico (cf. Arnaut 2002: 266267). Linda Hutcheon, baseada em Gerard Genette, percebe a paródia como a relação formal entre dois textos numa perspectiva pragmática, na qual a capacidade do leitor para descodificar e identificar as diferenças entre os textos tem um papel preponderante (cf. Arnaut 2002: 265-266). A paródia constitui também uma homenagem ao valor de uma obra, visto que a imitação recai sempre sobre autores de grande reputação (Moisés 1985: 388). Cândido Martins apresenta-nos três grandes concepções de paródia: a perspectiva retórico-tradicional em que “de acordo com a sua arqueologia, a P. é concebida, restritamente, como técnica retórico-linguística, posta ao serviço da contrafacção cómico-satírica.” (Martins 1999: 1419); a perspectiva formalisto-estruturalista em que a paródia é sistematicamente valorizada como um processo de desautomatização da linguagem e um motor activo da evolução histórico-literária (cf. Martins 1999: 1419); a perspectiva pós-estruturalista em que “A P. é apresentada como género interdiscursivo, diálogo, ditado de ambivalência generadora.” (Martins 1999: 1419). A teoria da paródia integra duas abordagens essenciais: a teoria do cómico que reflecte sobre a relação rica e complexa do discurso parodístico com as técnicas textuais da citação, do plágio, da alusão, referência e reescrita e com géneros do cómico literário como a ironia, a sátira, o burlesco, o pastiche e o herói-comum; a paródia é uma forma de desconstrução fundamentada no mimetismo e no distanciamento; é diferente da sátira e do pastiche, porque a primeira “incide a sua acção corrosiva e reformista sobre alvos da natureza extratextual” (Martins 1999: 1420) e porque a segunda é uma “imitação mais ou menos lúdico-caricatural de um estilo” (Martins 1999: 1420); a poética da paródia que procura conceituar os traços 22 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro configurativos desse activo e multifacetado metagénero dialógico (cf. Martins 1999: 1420); a parodística tem uma natureza intertextual, pois prevê a existência de um texto parodístico e outro(s) texto(s) parodiado(s), normalmente muito divulgados; portanto, a paródia alimenta-se de outros textos. Assim, Cândido Martins (cf. Martins 1999: 1420) e Linda Hutcheon (Hutcheon 1991: 169) consideram que a paródia apresenta uma intencionalidade ambivalente: revolucionária sempre que adultera, de um modo derrotista, textos ou códigos tidos por anquisolados; e conservadora quando censura certas inovações. A paródia tem uma extraordinária amplitude: pode actuar a nível intertextual (quando sobrevem sobre textos mais ou menos breves ou obras completas), arquitextual (sempre que a paródia se insurge contra os códigos e convenções que regulam os processos, temas e géneros literários), interdiscursivo (“quando a P., à luz da heterogénea configuração semióticocomunicacional da literatura, tem por alvo discursos ideológico-culturais dominantes” (Martins 1999: 1421)). Para Carlos Ceia, o pastiche é a imitação criativa de um texto preexistente (cf. Ceia 1998: 49), ou seja, uma obra que imita servilmente outra ou que mistura trechos de várias procedências (cf. Moisés 1985: 389). Genette considera que a paródia comporta a conotação de sátira e ironia e que o pastiche, contrariamente à paródia, aparece como um termo mais neutro e mais técnico (cf. Genette 1982: 38) ou como uma imitação séria (cf. Genette 1982: 43). Já Harry Shaw considera que o pastiche “é uma miscelânea, uma mistura incongruente de formas e de materiais, aquilo a que nós chamamos de manta de retalhos” (Shaw 1982: 345). Para Ana Paula Arnaut, o pastiche encontra-se em textos de onde sobressai uma relação de similaridade. Tal como a paródia, o pastiche é a imitação de um estilo único e peculiar, mas trata-se de uma prática que é neutra, ou seja, sem senso de humor (cf. Arnaut 2002: 266). No entanto, e nas palavras de António M. Feijó, apesar de o pastiche apresentar uma ausência de um impulso satírico, não deixa de demonstrar, do ponto de vista de quem o conduz, fins pragmáticos (cf. Feijó 1999: 1433). O mimetismo deverá, portanto, ser visto como “mimetismo, de um mundo possível” (Feijó 1999: 1434). Por isso, Genette afirma que o pastiche em geral n’imite pas un texte pour une raison simple que j’exprimerai d’abord sous une forme volontairement provocante en disant qu’il est impossible d’imiter un texte, ou, ce qui revient au même, qu’on ne peut imiter qu’un style c’est-à-dire un genre. 15 (Genette 1982: 108)15 O itálico é da responsabilidade do Autor. 23 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Portanto, a prática intertextual utilizada por Luísa Monteiro é o pastiche, visto que procede à imitação da construção das personagens e da acção de obras que servem de intertexto à elaboração das suas narrativas, entre as quais se destacam: Alice no País das Maravilhas e Alice Do Outro Lado do Espelho de Lewis Carroll, O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes, Lolita de Vladimir Nabokov, Rei Lear de William Shakespeare e o conto “A guardadora de gansos” dos irmãos Grimm. De seguida, na parte II desta dissertação, iremos analisar pormenorizadamente em que medida o pastiche é utilizado no tratamento do tema da infância nas duas narrativa de Luísa Monteiro, O Estranho Amável e A Guardadora de Gansos. 24 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Parte II – As narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável Estas narrativas contam a história de Vita e Alice, duas personagens que foram verdadeiramente felizes na infância e que procuram incessantemente encontrar de novo a felicidade e a verdadeira liberdade. Só as poderão alcançar através do contacto com a natureza, no caso da personagem Vita, ou vivendo constantemente no mundo do sonho, como acontece com Alice. 1. Personagens A narrativa O Estranho Amável conta a história de Alice, uma mulher que vivia na Aldeia dos Fernandes, no Alentejo, e que tinha como companhia uma porquinha chamada Lolita. Devido a uma epidemia que atacou os porcos, as entidades sanitárias foram a essa aldeia e abateram todos eles, até a porquinha Lolita. Isto provocou um grande desgosto em Alice: “Gritei com toda a raiva: é a peste! Vão matar todos os porquinhos e enterrá-los numa vala sem dignidade alguma. Os homens das batas brancas já não tardam!” (Monteiro 2001: 19). O narrador, adoptando uma focalização omnisciente, inicia a narrativa contando um episódio acontecido com Alice. Tal como em Alice no país das Maravilhas de Lewis Carroll, esta Alice, que também é a personagem principal da narrativa, cai, mas em vez de ser numa gruta16, é entre uns rochedos. É atraída por um miado, ao contrário da personagem de Lewis que persegue um coelho branco: “Fora o miado lamurioso que atraíra Alice aos rochedos, nas traseiras da casa. Num ermo. Sinistro. […] Ficara entalada lá no fundo, entre dois pedregulhos.” (Monteiro 2001: 7). Alice fica bastante mal tratada com o sucedido – “Explodira por dentro uma espécie de gás a arder que lhe causara um formigueiro estranho em todo o corpo. […] O azul aspirava-a, mas uma angústia indecifrável pesava-lhe profundamente no peito.” (Monteiro 2001: 7). Sobreviveu devido ao canto de um galo que a manteve acordada. 16 Alice started to her feet, for it flashed across her mind that she had never before seen a Rabbit with either a waistcoat-pocket or a watch to take out of it, and, burning with curiosity she ran across the field after it, and was just in time to see it pop down a large rabbit-hole under the hedge. […] The rabbit-hole went straight on like a tunnel for some way, and then dipped suddenly down, so suddenly that Alice had not a moment to think about stopping herself before she found herself falling down what seemed to be a very deep well. (Carroll 1992: 1-2) 25 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Foi levada para o lar do hospital. Quando olhou para uma das suas filhas, que ajudava as enfermeiras a socorrê-la, não a reconheceu. Mais adiante na narrativa, também não irá reconhecer o seu filho (cf. Monteiro 2001: 10). É notório, desta forma, que Alice já não é uma criança como a personagem de Lewis Carroll, mas uma mulher idosa que sofre de Alzheimer: “Era um sentido especial que lhe dizia ser aquele vulto pálido a filha, porque na verdade nunca vira aquela mulher.”; “O vazio apoderara-se da mente” (Monteiro 2001: 8-10). Quando o narrador nos descreve os filhos de Alice, Ana e David, fisicamente – têm olhos e cabelos claros como a mãe (cf. Monteiro 2001: 103) –, dá-nos a entender que esta personagem é loira, tal como a criação Alice de Lewis Carroll17. Alice tem, também, um cabelo encaracolado macio – “enquanto lhe penteavam os finos caracóis de algodão” (Monteiro 2001: 30) – e é uma mulher “esguia e pálida” (Monteiro 2001: 110). Apercebemonos que as informações que vamos obtendo acerca desta personagem nos são fornecidas por uma caracterização directa efectuada pelo narrador, ou pelos diálogos levados a cabo entre Alice e as restantes personagens, ou mesmo pela carta escrita por Alice, os quais dão conta do fazer da personagem e nos descrevem o seu estado psicológico. Pouco sabemos dos traços físicos da protagonista da narrativa. Em menina, Alice conheceu Luís, o seu explicador de matemática, e estabeleceu uma relação de cumplicidade com ele, a qual causará um escândalo na sua família e irá transformar toda a sua vida. Luís era o homem de chapéu alto e cabelos brancos que se tinha enamorado de Alice quando ela era ainda uma menina. Mal a viu na festa no lar, passados tantos anos, reconheceua precisamente porque a sua alma continuava ligada à alma de Alice: “Reconheci-a, sim, ali ao longe. Não pelos olhos, mas pela alma que continua viva, à sua procura.” (Monteiro 2001: 35). Luís era escritor, o que é notório quando o narrador nos descreve a sua testa: era larga e semelhante a uma caveira apresentando um jogo divino de luz (a luz da eternidade) e de sombra (a sombra do mundo das coisas) (cf. Monteiro 2001: 35). Quando Luís decidiu sair da vida de Alice, porque tocou no seu cabelo e a desejou fisicamente, Alice não entendeu a sua ausência e adoeceu (cf. Monteiro 2001: 129). Enquanto convalescia, Alice delirava e cantava uma canção de Alice no País das Maravilhas, a qual falava da existência de Ana – uma mulher bonita de cabelos grisalhos que namorava Luís (cf. Monteiro 2001: 127) – e do segredo partilhado entre Luís e Alice: a imaginação que Alice 17 A verdadeira Alice era morena, mas o ilustrador Sir John Tenniel decidiu desenhá-la loira. (cf. Carroll 2000: 159). 26 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro tinha e que Luís explorava e fazia desabrochar. A família de Alice irá interpretar mal essa canção e acusará Luís de pedofilia. O pai de Alice, um médico conceituado, não conseguindo submetê-la às provas físicas para provar se Luís a tinha maltratado, decidiu apelar a todas as instâncias de justiça e subornar algumas de forma a que Luís não conseguisse leccionar em mais nenhuma escola, nem dar explicações. Esse esforço fê-lo perder grandes quantias de dinheiro. O pai de Luís escorraçou-o e Ana casou-se com outro. Afastado de Alice e sem nada que o ligasse a Portugal, decidiu emigrar para Espanha onde trabalhou nos correios. Quando o aconselharam a afastar-se por motivos de idade, decidiu voltar ao seu país de origem e procurar Alice (cf. Monteiro 2001: 129). Soube que ela tinha ido para o Alentejo. Pensou que seria mais fácil encontrá-la se trabalhasse como ajudante de carteiro: se alguém lhe escrevesse uma carta, ele a entregar-lhaia. Seria uma busca difícil e demorada, mas só lhe restava esse sonho (cf. Monteiro 2001: 130). O sentimento que Luís tinha por Alice era tão grandioso que se tornou exclusivo na sua vida – ele vivia sozinho e não constituíra família (cf. Monteiro 2001: 35). Alice também nunca apagará nela a sua presença: na sua memória ele será sempre um estranho, porque nunca o chegou a conhecer de verdade, e um amável, pois tratou-a com delicadeza e viu-a tal como ela realmente era (cf. Monteiro 2001: 36). Alice mantém uma relação conflituosa com a família: não reconhece os filhos como tal; nega qualquer aproximação a Celso Palma, o seu marido; em criança, era invejada pelas suas tias Elisa e Augusta, os “cisnes da aldeia” (Monteiro 2001: 63). Nutriam um sentimento forte por Luís que não era correspondido, visto que ele só tinha olhos para Alice. Assim, essa criança tornava-se uma rival a vencer. Foi por causa de Luís que as tias se mataram com comprimidos à base de morfina e estricnina (cf. Monteiro 2001: 69). Elisa e Augusta viviam uma vida de aparências – “eram uma cornucópia que não cessava de jorrar benesses e risos floridos” (Monteiro 2001: 65) –, davam muitas festas e vestiam-se sempre de branco, símbolo da sua virgindade. Ao sábado, recebiam a visita do padre e saíam todas as segundas-feiras para visitar doentes (cf. Monteiro 2001: 64), o que Alice considerava serem actos realizados apenas para lhes trazerem reconhecimento aos olhos de Deus e não actos vindos do coração: Porém, aquelas visitas faziam-me sempre lembrar a cena de três perdigueiras à volta do covil, à espera que a raposa levantasse a cabeça e fenecesse nesse instante, de 27 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro susto; cadelas a farejar imundice para a converter em repasto de solilóquio nas orações a Deus. (Monteiro 2001: 64) Por isso, Alice apelidava-as de “santas libertinas” e “bruxas piedosas” (Monteiro 2001: 65). Alice não teve sorte no casamento. Celso Palma tinha um carácter instável e nervoso, comparável à sua descrição física: em novo fora ruivo, tal como Judas Escariotes, o qual, segundo a Bíblia, traiu Jesus por trinta moedas de prata. Esta personagem nutria um sentimento doentio por Alice e queria dominá-la, mas só o conseguia batendo-lhe. Um dia, confessa a Ema que tudo o que fez foi por desespero: quis dominar Alice, apenas por razões de instinto (cf. Monteiro 2001: 124). Como Alice era uma mulher sonhadora, Celso não aguentou esse facto por muito tempo e encontrou conforto nos romances. A vontade de conhecer o mundo tornou-se desmedida. Por isso, vendeu a quinta, menos a casa que seria para Alice e para as crianças, e partiu para sempre (cf. Monteiro 2001: 126). Sentindo que a sua família não lhe dava o carinho e compreensão que ela necessitava, Alice sentir-se-á bem no lar onde estão os seus amigos, ou seja, a sua verdadeira família, aquela que ela verdadeiramente sente como tal. Assim, à medida que Alice se vai integrando no lar, outras personagens nos vão sendo apresentadas. Uma delas é Lolita. Alice estabelecerá amizade com esta idosa porque ela gostava de ser chamada pelo mesmo nome da sua porca, companheira e amiga: Lolita. Se, inicialmente, desconhecemos o seu verdadeiro nome – Flora (cf. Monteiro 2001: 88) –, isso não acontece com a sua descrição física, que é realizada ao pormenor. É-nos descrita pelo narrador heterodiegético como sendo: uma mulher baixa, de ventre volumoso e mãos inchadas e sanguíneas como que curtidas pela geada. […] Um olhar fino e remelado, maçãs do rosto achatadas e lisas, uma boca quase sugada para dentro, sem lábios, […] A voz acompanhava o ritmo cardíaco, oscilando entre sussurros graves e batidas agudas. (Monteiro 2001: 8) Esta Lolita aparece-nos muito diferente da personagem Lolita de Nabokov que ele descrevia como sendo uma criança com cabelos castanhos, de ombros frágeis cor de mel e com um encantador abdómen retraído: “It was the same child – the same frail, honey-hued shoulders, the same silky supple bare back, the same chestnut head of hair. […] I saw again 28 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro her lovely indrawn abdomen where my southbound mouth had briefly paused.” (Nabokov 1989: 39). Esta personagem parece conhecer Alice. Pede-lhe vinho, mas como não vê o pedido satisfeito, enfurece-se e afirma ser a Rainha de Copas, uma das personagens de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, que também se enfurecia facilmente se fosse contrariada18. Na verdade, Lolita tenta aproximar-se de Alice apenas porque queria que ela se lembrasse dela. Um dia, descreve como a conheceu: Eu devo ser mais velha que a menina uns quatro ou cinco anos. O seu pai era um médico rico, o Saavedra. Gostava muito de ir à caça. […] Às vezes íamos trabalhar para as terras da sua família. Um dia, eu vi a menina numa festa. Como era bonita! Tinha um vestido amarelo como as flores do campo e um grande laço a prender-lhe os cabelos, tão escovados que pareciam os de uma boneca que nunca tivesse saído da montra. (Monteiro 2001: 31) Esta personagem é uma mulher letrada. Apercebemo-nos disso quando outra personagem apelida Lolita de Senhora Doutora. Na verdade, Lolita tinha sido sua professora na universidade. Naqueles anos, defendeu uma tese de doutoramento acerca de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, facto que explica a razão pela qual Lolita tinha uma grande capacidade de conjugar as palavras com sensações. Este facto é evidenciado quando Lolita fala do seu Vladimiro: Vladimiro dava-lhes a ideia de ser alguém que apreciava os prazeres da mesa e de dormir de um só sono todas as noites. Não era verdade; mas saber que os outros cobiçavam-lhe esses prazeres era para Vladimiro um satisfatório substituto deles. Creio piamente que se encontra agora, tal como ele desejava, na forma de uma pequena e graciosa raposa, a brincar com a própria sombra, ao lado do seu covil, situado entre uma planície de erva cintilante e a encosta de uma montanha azul. Cantará, por certo, ao eco, que não é uma pequena raposa; é muitas pequenas raposas; é por isso que eu vejo o Paraíso como uma vasta seara de caudas de fulvas raposas, como plumas de jardim (Monteiro 2001: 87). Pela forma como Lolita constrói o seu discurso, torna-se evidente que ela era uma mulher com uma sensibilidade fora do normal. 18 “The Queen turned crimson with fury, and, after glaring at her for a moment like a wild beast, began screaming, «Off with her head! Off –»”. (Carroll 1992: 74) 29 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Tinha-se graduado por causa do marido. Este estava reformado depois de ter sido expulso do ensino por se suspeitar que tivesse seduzido uma menina da instrução primária. Mas, para Lolita, a única menina que o marido tinha seduzido tinha sido ela própria (cf. Monteiro 2001: 88). Esse é o motivo pelo qual Lolita demonstra uma fixação pela obra de Nabokov. Ela fantasiou a sua vida como se tivesse sido a “ninfeta” de Vladimir porque gostava de ter sido ela a menina de instrução primária que o marido seduziu. Jacinta é uma idosa que também se encontra internada no lar. É uma mulher baixa e gorda, de cabelos negros presos na nuca (cf. Monteiro 2001: 72). Jacinta relembra outra personagem da obra Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll quando afirma ser um arganaz19 porque a quiseram meter numa chaleira fina de gente bem instalada na vida. Por causa disso, ficou com a cabeça tolhida, o corpo afunilado e os sentidos completamente adulterados: E para concluir, não disse que eu pareço um arganaz? Pois é o que eu sou. Quiseram meter-me numa chaleira fina de gente bem instalada na vida. Fiquei com a cabeça atrofiada, o corpo afunilado e os sentidos completamente estropiados. […] Quando tinha que representar, nos lanches de madamas, fazia de conta que bebia. Depois ia à cozinha com a desculpa de ir buscar bolinhos de baunilha e chocolate. Mas só os levava depois de uns punhados de fogaça e um copo de tinto no papo. […] Para os convidados, mandava fazer jantares tipo cuisine francaise. Mordiscava. E fazia-me de preocupada com as criaditas, para empanturrar-me, ao lado do fogão, com os rojões e bacalhau na brasa, lá de cima do Norte; (Monteiro 2001: 76) 20 Como podemos observar pelos hábitos alimentares de Jacinta, esta personagem teve uma infância humilde e, por essa razão, vai sentir necessidade de vingar na vida. De modo a alcançar a felicidade, terá de exercer várias profissões: foi fogaceira, depois aguadeira, rendeira, carimbeira e, por último, padeira. Quando toma contacto com a Literatura, por meio do padre da freguesia, vai achá-la interessante, precisamente porque os sujeitos que a produzem são seres extremamente sensíveis. Por essa razão, ela afirma que os seus amantes se chamavam Rosalio de Castro (um 19 There was a table set out under a tree in front of the house, and the March Hare and the Hatter were having tea at it: a Dormouse was sitting between them, fast asleep, and the other two were using it as a cushion, resting their elbows on it, and talking over its head. (Carroll 1992: 61) 20 O itálico é da responsabilidade da Autora. 30 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro jovem da Galiza que fugiu à fome e repressão), Ireno Lisboa (o homem rico com quem casou e de quem não gostava) e Florbelo Espanca (o seu amante, o padeiro). Ela dizia que eles se chamavam assim, porque sempre procurou seres especiais que fossem femininos na forma de sentir e masculinos na forma de pensar (cf. Monteiro 2001: 76). Ema é a directora do lar. Sabe dos maus tratos que Celso Palma infligira a Alice e está disposta a mantê-la naquela instituição mesmo sem o dinheiro da família, caso a sua integridade física ou emocional seja ameaçada. Apesar de parecer rude e pouco acessível de início (cf. Monteiro 2001: 77) devido às suas constantes mudanças de humor, ao longo da narrativa descobrimos que esta mulher necessita de ler Flaubert todas as manhãs de modo a fortalecer o seu espírito e sonhar com o seu Imperador à noite. Este facto demonstra que Ema, tal como a personagem Ema de Flaubert, necessita de algo que a faça sonhar ou ter desejos de uma vida repleta de emoções arrebatadoras para se manter equilibrada emocionalmente: dois nomes que associara de imediato aos dois inimigos de Adriano, esse imperador de Roma por quem se apaixonara […] Para Ema, aquele era o “homem” de que Flaubert […] falava na correspondência […] Desde que fora publicado em português, lia-o diariamente pela manhã, antes do café, como terapia para fortalecimento do espírito. […] Sem esse ritual sentia-se debilitada e recolhia-se cedo, depois de um chá, meio comprimido de Vallium e um quadradinho de chocolate com recheio de hortelã-pimenta, para alívio daquelas labaredas que a consumiam, quando ao esticar as pernas na cama, a imaginação conferia quase contornos reais ao corpo do seu imperador ali deitado, com a boca cheia de desejos, os olhos a transbordar de poemas e o corpo marcado de aventuras. (Monteiro 2001: 103-104) Alice, tal como Lolita, é uma personagem letrada. Este facto é claro quando ela, numa fuga à realidade, imagina ir visitar Dante ao Inferno – “Olha o Dante!, exclamou Alice. Não é nada, contrariou D. Rafeiro. Pela preguiça que a testa denuncia naquelas pregas de pele, é um intelectual.” (Monteiro 2001: 118) –, quando pergunta aos filhos se o nome Nana era o de uma paixão de Zola (cf. Monteiro 2001: 11), ou quando questiona Jacinta se ela gostava de ler os poetas do Orpheu (cf. Monteiro 2001: 74). Aliás, Luís, antes de deixar de lhe dar aulas, aconselhou o seu pai que a aposta deveria ser na área das letras (cf. Monteiro 2001: 128). Os livros infantis que teve oportunidade de ler em criança ajudá-la-ão a confrontar o seu mundo imaginário com o mundo real. Descobre, então, que o mundo real só lhe traz sofrimento, humilhação, mas também degradação e morte. A solução será refugiar-se nesse mundo alternativo onde impera a felicidade e viver lá eternamente. 31 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Por essa razão, todas as decisões que Alice tomará na sua vida terão apenas um objectivo: a procura da identidade. A personagem principal da narrativa A Guardadora de Gansos é Vita. É uma mulher aparentemente muda – por essa razão, é feita muitas vezes alusão às sensações auditivas, olfactivas e visuais –, órfã de mãe e carente de afectos: “Um bosque de cedros reflecte-se no olhar órfão de carinhos e há setas de andorinhas a riscarem o céu pisado e roxo sobre a sua cabeça naquele cemitério onde acaba de despedir-se da mãe” (Monteiro 2005: 11). Esta personagem vai-nos sendo apresentada, ao longo da narrativa, através de personagens que fazem parte do imaginário infantil, Cinderela, Pinóquio e Polegarzinha, através das figuras mitológicas As Horas e As Moiras e através do seu próprio testemunho numa narrativa em primeira pessoa. A mãe de Vita tinha sido uma prostituta pela qual o seu pai se apaixonara. Em consequência, este separou-se da mulher de quem já tinha duas filhas e casou-se com ela. Foram felizes até ao nascimento de Vita (cf. Monteiro 2005: 39), visto que a mulher morreu ao dar à luz. Vita é, portanto, a mais nova de três irmãs, por parte do pai. Foi Cremilde, uma empregada do pai de Vita, que cuidou dela desde que a sua mãe morrera: “Cremilde perdoava-me, enxugava-me as lágrimas, mudava-me o bibe e baloiçavame no colo, cantando e contando a história da Ti Verd’Água até à hora da sesta”; “Eu já estava crescida e soube que tinha chegado a hora de me despedir da ternura daquela que substituiu a minha mãe morta, desde o meu primeiro choro de vida.” (Monteiro 2005: 15-18). A cozinha, espaço onde Cremilde passava mais tempo, era apelidada por Vita de “templo do princípio do mundo”. Ali estava condensada toda a sua história: ali tinha “aprendido a gatinhar”, tinha dado as “primeiras quedas”, sentido o “afago de Cremilde”, trincado as mais tenras cenouras com os seus primeiros dentinhos e tinha sido embalada por Cremilde sempre que ouvia que a sua mãe se encontrava no céu (cf. Monteiro 2005: 16). Nos contos de fadas, a cozinha e a lareira evocam nas crianças lembranças felizes do tempo passado junto das mães, pois é neste espaço que a criança e a sua família se reúnem para fazerem as suas refeições, as quais são preparadas pelas mães, tornando este espaço um lugar de cumplicidade e intimidade para toda a família. Assim se explica a importância daquela cozinha na vida de Vita, visto que Cremilde era a única referência que Vita tinha de uma mãe. Com apenas catorze anos, Vita perdeu o pai (cf. Monteiro 2005: 38). Ao perder o pai, perdeu a terra que tanto amava, pois a quinta que herdou encontrava-se na falência. Então, tal 32 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro como Alice de O Estranho Amável que vai procurar a felicidade num mundo alternativo ao seu, Vita vai passar a sua vida à procura de um novo amor, de algo tão perfeito como a terra e que a faça regressar às origens: o leitor único. Contudo, de modo a concretizar esse objectivo, terá de disfarçar-se, fazendo transparecer algo que não é, escondendo o seu verdadeiro “eu”: Fecho os olhos e caminho pelo meu lado de dentro até à descoberta da porta dos sonhos, onde posso entrar e reviver em espasmos de medo as quedas nas escadas em espiral, escuras, o cheiro a mosto dos quintais, o riso das cantilenas nos bibes a esvoaçar; recordo-me que em criança tinha por hábito girar, girar, eu era o eixo frágil que queria contrariar o movimento da Terra; […] e sempre aquele sorriso sem rosto, a dizer-me em melodia doce, «Há muito que eu te esperava, ó…» e nunca o nome, sempre a última palavra por dizer. No entanto, aquele sorriso era o meu. Como sonhas depressa Lushka. Pela manhã, escreverei o teu sonho desta noite. (Monteiro 2005: 52) Vita vai, portanto, construir uma nova vida com a qual não se identifica, já que irá viver para a cidade e trabalhar em algo de que não gosta: num gabinete fechado e com pouca luminosidade (cf. Monteiro 2001: 43). No entanto, é nessa nova vida que estabelecerá um maior contacto com Lushka e Leonardo. O último foi colega de Vita na escola (cf. Monteiro 2005: 32), mais tarde torna-se seu editor e marido. Vai trair Vita com a sua melhor amiga, Lushka, quando ainda são namorados. Lushka é uma emigrante de Leste (cf. Monteiro 2005: 53), natural da Rússia (cf. Monteiro 2005: 70). Quando é referida por Vita pela primeira vez, não nos é apresentado o seu nome: Vita dá-nos a conhecer essa personagem, primeiro como “ganso desajeitado” (Monteiro 2005: 29) e, só no decorrer da narrativa, na página 45, se irá referir a ela como Lushka. Foi o primeiro vulto de rapariga que prendeu a atenção de Vita (cf. Monteiro 2005: 29). Um dia, Vita deu-lhe uma cotovelada tão forte que a fez cair ao chão. Nessa altura, engoliu em seco e não ouviu se ela a insultou, soube apenas que ela a fez esquecer a vinha por instantes (cf. Monteiro 2005: 30-31). Por este motivo, não é de estranhar que estas duas mulheres tenham no futuro uma relação de grande cumplicidade e Vita chegue a pensar ser ela o seu leitor único: “Queres que te escreva os sonhos por ti?” (Monteiro 2005: 50). A amizade entre elas não vai durar para sempre e Lushka volta para a sua terra natal (cf. Monteiro 2005: 73). 33 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Apesar de Lushka ser uma personagem com uma história diferente da de Vita, noutras alturas da narrativa ela parece-nos um duplo da protagonista do romance. Esse facto é notório quando Vita afirma que Lushka se cruza com ela em todos os caminhos físicos que percorre – parque, pastelaria e Câmara – e em todos os caminhos da sua mente: (Cruza-se em todos os caminhos da minha mente também, esbarra-se no meu sono, entra sem licença pelos sonhos dentro e há cheiro a ela quando desperto com a sensação de não ter dormido sozinha. Mas numa padaria com ela – a esvoaçar). (Monteiro 2005: 45) Quando As Horas nos informam que Lushka se funde no olhar de Vita (cf. Monteiro 2005: 46), essa ideia de que Lushka poderá ser um duplo da protagonista do romance é reforçada. No início do capítulo “Vinte e Oito”, Vita informa-nos que tira “um cigarro do maço de Lushka” (Monteiro 2005: 49), mas, na realidade, esse maço de cigarros poderá ser o seu. Quando Vita conta que se deita frequentemente ao lado de Lushka sem ela saber (Monteiro 2005: 51) e que continua a guardar os sonhos de Lushka enquanto esta dorme, deixa transparecer que estas personagens podem ser uma só: Estou próxima de mim quando ela dorme, na escuridão total e no silêncio quase absoluto, sozinha com os seus desejos que partem como gansos na mudança das Estações […] Eu sei por onde andas enquanto dormes, eu vejo-te do lado de lá deste corredor e ouço tudo quanto pensas. (Monteiro 2005: 50) Se Lushka for um duplo de Vita, Leonardo não a traiu de verdade, nem Lushka se apropriou indevidamente dos escritos de Vita como acusavam Cinderela, Polegarzinha e Pinóquio: - A Lushka está no caminho certinho da fama. Têm sido um sucesso os livros dela! – exclamou Cinderela, babada. - Dela, não! Quem os escreve é Vita! É horrível, o que essa criatura faz à nossa Vita! Apropria-se dos seus escritos e do seu namorado! (Monteiro 2005: 55) De modo a relembrar constantemente o tempo da sua infância e sentir-se realizada, Vita vai registar no seu caderno o seu tempo de menina. Manterá, por essa razão, uma relação muito próxima com a literatura e torna-se escritora. Vita vai escrever para um leitor, mas não 34 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro é um leitor comum, é aquele que ainda não existe, que só está presente na sua mente. Apercebemo-nos que Vita vai procurar o inatingível como forma de preencher o espaço onde se situava a terra que perdeu irremediavelmente. O leitor único é a única coisa que lhe dá alento, pois sabe que a morte é certa e que a juventude e o contacto com a natureza já não podem ser recuperados. Contudo, Vita não assume ser ela a autora daquilo que escreve e será Lushka quem assumirá as obras de Vita perante o público. Era como se, através de Lushka, Vita vivesse os seus verdadeiros sonhos e deixar de estar camuflada por uma máscara. Por isso Vita chega a pensar ser Lushka o seu leitor único. Quando morre, Vita é sepultada à entrada da Porta Antiga, junto da quinta que lhe tinha sido deixada por seu pai (cf. Monteiro 2005: 83), ou seja, junto da terra que ela tanto amava. Quando passam sete anos da morte de Vita, Leonardo irá devolver-lhe a sua obra (cf. Monteiro 2005: 87), tornando-se Vita no leitor único que tanto procurava. A busca incessante pela procura da identidade que esta personagem demonstrou ao longo da narrativa termina nesse preciso momento. 35 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro 2. A construção do nome das personagens Na narrativa O Estranho Amável, Alice mantinha amizade com uma porquinha chamada Lolita, que infelizmente foi abatida pelas entidades sanitárias. Sabemos que Flora também gostava de ser chamada de Lolita. Isto demonstra que talvez Flora e Alice tivessem mantido algum contacto quando eram pequenas, só que Alice, devido à sua doença, esqueceu esse facto. No entanto, não esqueceu o nome Lolita e decidiu colocá-lo à sua porca de estimação. Numa dada altura da narrativa, Flora demonstra não levar a mal o facto de Alice ter dado o seu nome a uma porca, mas demonstra a sua tristeza de, pelo facto de ter querido ser como Alice, ter acabado por perder o seu professor Vladimiro: Eu achava-a tão bonita que fiz tudo para ser como a menina. Se fiquei tão bela ou não, não sei; sei que a ilusão age mais que a vontade e a moral. E porque me achava tão Alice quanto você, seduzi o meu professor. […] Fugimos. Mas nunca fui sua mulher; sempre pensavam tratar-se de pai e filha, tio e sobrinha… (Monteiro 2001: 32-33) Neste momento, surge uma aproximação entre a obra O Estranho Amável de Luísa Monteiro e a obra Lolita de Vladimir Nabokov, o que nos faz entender que a escolha dos nomes das personagens, Lolita e Vladimiro, não foi obra do acaso, mas uma tentativa de aproximação, procurando a Autora um diálogo intertextual. Também Nabokov, autor de Lolita, é Vladimiro, ou melhor, Vladimir. Nessa obra, a personagem Humbert é um professor que se sente seduzido pela graça e inocência de uma Lolita e faz tudo para a ter. Quando o consegue, foge com ela: My scheme was a marvel of primitive art: I would whizz over to Camp Q., tell Lolita her mother was about to undergo a major operation at an invented hospital, and then keep moving with my sleepy nymphet from inn to inn, while her mother got better and better and finally died. (Nabokov 1989: 105) Luísa Monteiro faz também uma aproximação intertextual às obras Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho de Lewis Carroll. Lewis, autor de Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho, apaixonou-se por Alice; em O Estranho Amável de Luísa Monteiro também um Luís se apaixona por uma Alice. Os dois homens até exerciam a mesma profissão: ambos eram escritores. 36 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Luís remete para Lewis e Vladimiro para Vladimir Nabokov. Os nomes das personagens de O Estranho Amável, Alice e Lolita, remetem para as duas criações dos escritores Lewis Carroll e Vladimir Nabokov respectivamente. Vejamos alguns momentos em que a aproximação se torna clara. Aquando do segundo julgamento sonhado por Alice, D. Rafeiro da Mancha, uma personagem imaginada pela protagonista da narrativa, afirma chamar-se Mr. Dodgson (cf. Monteiro 2001: 59). Este é o verdadeiro nome de Lewis Carroll21. Esta personagem afirma, também, que Lewis, o Luís, e Lolita, o amor de Nabokov, são cúmplices (cf. Monteiro 2001: 59), o que obriga o leitor a correlacionar as personagens da obra de Luísa Monteiro com as personagens de Lewis Carroll e Vladimir Nabokov. Quando o Grifo, uma personagem também imaginada por Alice, afirma que ela não se devia lembrar do primeiro julgamento porque este tinha acontecido quando ela era pequena (cf. Monteiro 2001: 58), faz surgir um diálogo intertextual com a personagem Alice de Lewis Carroll, que assistiu ao primeiro julgamento no qual o Valete de Copas era acusado de ter roubado as tartes à Rainha de Copas22. Quando Lolita ameaça contar a todos que o homem de chapéu alto se tinha apaixonado por Alice quando ela era ainda uma menina, caso Alice não lhe dê o vinho que lhe pediu (cf. Monteiro 2001: 9), faz surgir a referência ao amor que Lewis sentiu por uma menina, filha de um casal amigo, e que se chamava Alice Lidell23. 21 “Lewis Carroll nasceu em Daresbury (no Cheshire), Inglaterra, a 27 de Janeiro de 1832, e foi baptizado com o nome de Charles Lutwidge Dodgson.” (Carroll 2000: 157). 22 «Chorus, again, » cried the Gryphon, and the Mock Turtle had just begun to repeat it, when a cry of «The trial’s beginning, » was heard in the distance. «Come on, » cried the Gryphon, and, taking Alice by the hand, it hurried off, without waiting for the end of the song. «What trial is it? » Alice panted as she ran, but the Gryphon only answered «Come on,» and ran the faster, while more and more faintly came, carried on the breeze that followed them, the melancholy words: […] Alice had never been in a court of justice before, but she had read about them in books, and she was quite pleased to find that she knew the name of nearly everything there. […] «Herald, read the accusation! » said the King. On this the White Rabbit blew three blasts on the trumpet, and then unrolled the parchment scroll, and read as follows: «The Queen of Hearts, she made some tarts, All on a summer day: The Knave of Hearts, he stole those tarts, And took them quite away! » (Carroll 1992: 104 – 107). 23 A obra de Lewis Carroll é autobiográfica: E aí se tornou amigo do deão Charles Lidell, pai de três meninas, e que, sem o saber, iria ter importância fundamental na carreira de Dodgson: uma das filhas é precisamente Alice, para a qual irá ser escrito Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho. (Carroll 2000: 157- 158) 37 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Quando Alice e Luís passaram para o mundo alternativo (um mundo construído por Alice como fuga à realidade), sentaram-se no jardim labiríntico da casa onde Alice nascera24. Alice decide perguntar a Luís se ele se lembrava se era ali que ele escrevia tudo o que ela imaginava – “Escreveu muito? Sim, muitos cadernos azuis25. Que título é que lhes deu? Pensei em Terceiro Testamento ou Terceiro Julgamento, mas optei por «As cinzas do Azul», e por subtítulo, «O outro Mundo de Alice».” (Monteiro 2001: 141) –, mantendo-se, portanto, a intertextualidade com a vida do escritor Lewis Carroll, que também escreveu as suas obras baseado em Alice (cf. Carroll 2000: 159). Quando Luís conta a Alice que vai conservá-la sempre entre as páginas dos seus livros (cf. Monteiro 2001: 131), demonstra que gostava de a imortalizar. Lewis fez precisamente isso com a sua personagem Alice, pois utilizou a literatura, que é imortal, para conservar a memória de uma menina chamada Alice que existiu na realidade. Quando Alice reconhece que Luís era o seu escritor (cf. Monteiro 2001: 35), faz referência a Lewis Carroll que era um escritor que inventou uma personagem chamada Alice. Se repararmos na escolha dos nomes dos filhos de Alice, Júlio, Ana, David e Zé, e na escolha do nome do cão que os acompanha ao lar quando visitam a mãe, Tim, apercebemonos que estes são os nomes das personagens da série Os Cinco de Enid Blyton. A diferença entre estas personagens reside no facto de em O Estranho Amável eles serem irmãos e em Os Cinco serem primos: Júlio, Ana e David são irmãos, a Zé é prima deles26. É notória uma semelhança física entre a personagem Zé de Luísa Monteiro e a personagem Zé de Enid Blyton: ambas têm cabelo curto e ondulado27 e vestem roupas de corte masculino. Aliás, é sabido que a Zé da série Os Cinco sempre quisera ser um rapaz (cf. Blyton 2004: 7). Em O Estranho Amável, Júlio é filho mais velho de Alice (cf. Monteiro 2001: 106), também na série Os Cinco de Enid Blyton Júlio é o mais velho dos irmãos (cf. Blyton 2004:15). 24 Referência à obra Alice do Outro Lado do Espelho. O jardim apresentado é também labiríntico: I should see the garden far better,» said Alice to herself, «if I could get to the top of that hill; and here’s a path that leads straight to it – at least; no, it doesn’t do that» (after going a few yards along the path, and turning several sharp corners), «but I suppose it will at last. But how curiously it twists! It’s more like a corkscrew than a path! (Carroll 1992: 148) 25 “o azul é o caminho do devaneio, e quando escurece, de acordo com a sua tendência natural, torna-se o caminho do sonho. O pensamento consciente vai então deixando pouco a pouco o seu lugar ao inconsciente” (Chevalier e Gheerbrant 1982: 105). Quando Luís diz ter escrito muitos cadernos azuis, refere-se ao facto de eles evocarem o mundo da fantasia. 26 “Ana estava a tentar fazer os trabalhos de casa num canto da sala quando a sua prima Zé irrompeu pelo compartimento.” (Blyton 2004: 7) 27 “A tal Zé tinha os cabelos curtos e revoltos” (Monteiro 2001: 103); “Usava o cabelo ondulado curto” (Blyton 2004: 7). 38 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Se atendermos à escolha do nome da personagem Jacinta e tivermos em conta o facto de ser filha do Pimentinha da Estação (cf. Monteiro 2001: 73), apercebemo-nos que há uma aproximação intertextual à personagem Jacinto de As Cidades e as Serras de Eça de Queirós (cf. Monteiro 2001: 76). Tal como Jacinta adorava ler, o Jacinto de As Cidades e as Serras também: possuía uma biblioteca no seu apartamento 202 – “Oh, a invasão dos livros no 202!” (Queirós 1999: 72). As duas personagens viviam uma vida de aparências, junto da classe alta, no entanto, a verdadeira felicidade é sentida quando ambas contactam com as suas verdadeiras origens: Jacinta esgueira-se, sempre que pode, para a cozinha de modo a poder deliciar-se com a comida tradicional e Jacinto rejuvenesce no contacto com a natureza – “a reconciliação do meu Príncipe com a Vida. Segura estava a sua Ressurreição depois de tantos anos de cova, da cova mole em que jazera, enfaixado como uma múmia nas faixas do Pessimismo!” (Queirós 1999: 161). Ema relembra-nos a protagonista da obra Madame Bovary de Gustave Flaubert, visto que, tal como a criação de Flaubert, deixava-se encantar pelos romances que lia e apresentava constantes mudanças de humor. Em A Guardadora de Gansos, Vita chorou no primeiro dia de escola porque não lhe apetecia ir. Então, Cremilde, de forma a acalmá-la, decidiu cantar-lhe uma melodia que falava de gansos brancos28 com guizos de ouro ao pescoço e que grasnavam pelo monte acima. Enquanto Cremilde cantava, Vita adormeceu e sonhou com essa história: ela ia à frente de dezassete gansos e quando necessitou de se resguardar da noite numa gruta, eles seguiram-na. Quando acordou, os gansos tinham-se transformado nos caseiros do seu pai29. Estavam ali para proteger Vita e todos os que despertavam do lado de dentro do sono enquanto dormiam. Vita reproduzia, nesse momento, as alturas em que se encontrava com os caseiros do seu pai e eles lhe contavam as histórias do imaginário popular: Um ruído seco dentro da gruta fez-me abrir os olhos. Assustei-me e de imediato encostei-me fortemente à rocha. O pequeno buraco estava cheio de rostos do passado, como que saídos de um livro antigo de gravuras. Uma estrela que riscou o céu do lado de fora fez-me ver que se tratava dos dezassete caseiros do meu pai. Eram eles, homens e mulheres da terra. Estavam nus, trazendo apenas sobre o corpo amplas capas verdes tecidas com 28 Os gansos apresentados no conto “A guardadora de Gansos” dos irmãos Grimm são também brancos: “Whether the snow-white geese, which were kept near the little hut” – ver apêndice. 29 Também no conto “A Guardadora de Gansos” de Jacob e Whilhelm Grimm, os gansos se transformam no final em seres humanos: “were very young maidens (no one need take offence,) whom the old woman had taken under her protection, and whether they now received their woman form again” – ver apêndice. 39 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro urtigas, unidas no peito por uma simples pena de ganso. Os gansos haviam desaparecido. (Monteiro 2005: 17) Nesse sonho, de modo a que Vita pudesse passar melhor a noite, os caseiros contaramlhe pequenas histórias como faziam aquando das vindimas. Ouviu a história que cada um lhe quis contar e sentiu que poderia ali passar o resto da vida ouvindo mais e mais contos (cf. Monteiro 2005: 17). Este sonho vai marcar a vida de Vita e, depois de perder a quinta de seu pai e deixar de contactar com a terra, Vita vai ter a necessidade de reproduzir no papel esses contos que a ligavam à sua origem. Este facto demonstra que Vita, tal como a princesa do conto “A guardadora de gansos” dos irmãos Grimm, guardava gansos, ou seja, as histórias que cada um dos caseiros do seu pai lhe contaram. Portanto, ao apelidar a sua narrativa de A Guardadora de Gansos, Luísa Monteiro pretendeu aproximá-la do conto de Whilhelm e Jacob Grimm, aproximação essa que se torna evidente se atendermos à descrição da cor dos cabelos da princesa guardadora de gansos e de Vita – ambas têm cabelos cor de prata – e no facto de serem personagens que necessitam de se disfarçar devido à crueldade que lhes é infligida pelas pessoas, ou mesmo pelo meio onde estão inseridas: a princesa guardadora de gansos esconde a sua verdadeira identidade usando uma máscara – “She removed a skin which covered her face” (ver apêndice) – e Vita, ao perder a quinta, vai esconder os seus verdadeiros sonhos. Pinóquio, Cinderela e Polegarzinha são personagens que fazem parte dos contos que Vita lê em pequena e através delas ficamos a conhecer melhor a personagem. Eles representam a sociedade e os seus valores e actuam como juízes das atitudes de Vita. Pinóquio, personagem de Carlo Collodi, teve de passar por várias etapas na sua vida até atingir a fase da maturação. Teve de passar por situações de infracção seguidas da respectiva punição. Só depois de aprender os valores morais da bondade, honra e amor ao próximo encontrou a salvação. Dos três, ele é o juiz mais ingénuo, mas também o mais transgressor. Por isso, a personagem principal da narrativa A Guardadora de Gansos se identificava mais com ele e é o mais acarinhado pela Autora: “Só Pinóquio me alegrava e então, imitando-o, eu lançava as mãos todas à torta de chocolate!” (Monteiro 2005: 2005: 15). No conto A Cinderela de Charles Perrault, a mulher é um objecto que, de modo a realizar os seus desejos, recorre à sedução através da aparência. Para aceder à corte, ela necessitará dos meios materiais: a virtude e a aparência ajudam-na a atingi-los. Nesta narrativa, a Cinderela personifica, portanto, os membros da sociedade que se regem pelas aparências e pelo materialismo, por isso, é uma personagem fútil que critica constantemente a 40 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro figura de Vita: “- É feiinha! Mesmo no seu melhor despertar e com o seu mais deslumbrante vestido, não chega sequer a fazer sombra à minha figura de quando eu era uma simples Borralheira. Falta-lhe graça, falta-lhe garra!”; “- Horrível! tanta gordura! a pequena há ser gorda como um barril; bem se vê que não tem estofo para ser uma princesinha!” (Monteiro 2005: 13-15). Sentimos, por isso, que a Autora não nutre por ela grande simpatia. A Polegarzinha, personagem de Andersen, menina corajosa e que viajou por várias paragens até encontrar a felicidade, é a juíza mais racional e ponderada. Luísa Monteiro utiliza estas personagens que fazem parte de contos tradicionais de mundividência infantil, talvez porque, quando os contos são apreendidos na infância, transmitem significados, estruturam e dão formas às imagens e aos problemas com que as crianças se deparam no quotidiano; são uma importante iniciação, por via da literatura, no mundo, transformando as crianças em leitores atentos e críticos. Esta forma narrativa é também importante na formação da personalidade da criança, porque, ao crescer, ela vai ser o adulto que relativiza e questiona o mundo que lhe ensinaram a ler. O conto é, desta forma, um ponto entre a realidade e a fantasia, entre o adulto e a criança. 41 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro 3. A construção do Mundo imaginário Alice é uma personagem com um carácter sonhador. Essa característica é inerente à sua condição humana e, por esse motivo, ao longo da narrativa O Estranho Amável, é-nos feita referência a essa necessidade de fuga à realidade, seja através do acto de brincar, seja através do acto de dançar, ou através da imaginação. Luís apaixonou-se por Alice devido a essa característica da sua personalidade. No capítulo “Mancebias literárias” de O Estranho Amável, é-nos explicado que, na verdade, nenhum homem gosta de mulheres sonhadoras, sequer deseja casar com uma delas. Como forma de adulterar esse estado, falam dos seus belos atributos, apelidam-nas de fadas e tratam-nas como rainhas, fazendo desaparecer nelas essa leveza tão semelhante à das crianças. Já Luís e outros como ele, que apreciam essa leveza, apaixonam-se por essas crianças, ou mulheres sonhadoras; estas ainda não estão adulteradas pelo homem, são aquilo que são e agem segundo as suas vontades: Sabe, os homens sempre admiraram na mulher tudo quanto a pese para a terra […] Por isso é que os homens sempre lhes cantam e veneram os atributos que as levam a sucumbir […] chamam-nas de anjos, pedacinhos de céu, asas brancas e até as erguem ao mais alto pedestal do conceito de existência, mas isso, desde que não ousem sequer imaginar que podem voar. Os homens não gostam de mulheres que voam. E os espíritos raros que apreciam essa misteriosa leveza, apaixonam-se por crianças. (Monteiro 2001: 38) Por reconhecer esse carácter sonhador em Alice (característica própria das crianças), Luís afirma que ela sempre foi uma borboleta (cf. Monteiro 2001: 38). A borboleta é símbolo da ligeireza e da inconstância; a psicanálise moderna vê na borboleta um símbolo de renascimento (cf. Chevalier e Gheerbrant 1982: 126-127): A maravilha desse fenómeno de metamorfose que se origina e se desenvolve sem intervenção externa, conduzindo o animal da condição de lagarta à de crisálida e depois à de borboleta, tem tocado profundamente o homem, que se vê assim movido a reflectir a respeito da sua própria transformação espiritual, imbuído da esperança de poder ascender algum dia da prisão terrena à liberdade da luz eterna (Biedermann 1994: 57) 42 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Ao comparar Alice a uma borboleta, Luís reconhece que ao sonhar Alice podia renascer e aceder à liberdade da luz eterna ou à imortalidade que demonstrava ter vontade de alcançar. Não é só Luís que reconhece essa característica sonhadora em Alice. O flamingo corde-rosa que se diz chamar Duquesa, e que aparece no mundo imaginário de Alice, é de opinião que ela tem penas (com elas poderá voar), dando assim a entender que observa em Alice esse carácter sonhador: “Não somos parecidas, Alice? Não, eu não tenho penas. Será que não?” (Monteiro 2001: 97). Quando Alice decide escrever uma carta, o primeiro assunto que lhe vem à mente é o do sonho. Afirma que sonhar é uma forma de suicídio encontrada pelas pessoas sérias e polidas, mas que não deveria ser assim. Pensar no sonho como um suicídio, retira-lhes o pensamento que as caracteriza. Sonhar para Alice é muito importante, pois oferece sempre algo de novo e as pessoas precisam de sonhar para não serem absorvidas pelo mundo cruel, para se sentirem renovadas, no fundo, para se sentirem vivas: Sonhar é a forma bem educada de suicídio encontrada pelas pessoas sérias e polidas. E adormecem sempre mal, contando carneiros – deixando os pensamentos, aquilo que lhes confere carácter, seguir sempre na mesma direcção. Não deverão antes afundar o cansaço no ritmo de uma nascente de água, que forma múltiplos veios, caminhos marinheiros à escolha? Nenhum deles garante que se chegue mais depressa ao porto – em cada porto da vida tem de haver um amor –, ao ribeiro ou ao sulco acabado de cavar pelo plantador de trigo, mas oferece sempre algo de novo. Como precisamos de sonhos novos. (Monteiro 2001: 61) Como já foi referido anteriormente, Alice não foi feliz no casamento. O seu marido pensava que ela era sua propriedade e, apesar de no início apreciar o carácter sonhador que a mantinha viva, acabou por não suportá-lo, tentando, por isso, apagá-lo da sua personalidade. Quando se casou com Alice, adorava a sua presença quase imperceptível, a sua leveza rara, mas depois que vieram os filhos esse estado começou a irritá-lo. Apercebeu-se naquela altura que Alice não tinha os pés assentes na terra. Apesar disso, adorava vê-la dançar: Aliás, a Alice tem uma profunda obsessão por bailado; cheguei a surpreende-la fechada no quarto onde em menina tinha explicações, com discos antigos sobre uma grafonola antiga. […] Soerguia lentamente o bico do pé direito, baixava-o, apontava-o para a mesa carregada de livros como se estivesse a iniciar uma dança para alguém; […] era magnífica quando, na oscilação da música parecia elevar-se para o ar pela força de mãos 43 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro invisíveis e subtis. Quando um homem vê uma mulher a levantar voo desta forma, a ascender ao Céu com tamanha felicidade, não pode acreditar no pecado original […] Sentia mesmo que não fazia sentido a existência de Deus, pois Alice, por livre arbítrio, ascendia ao Paraíso… era uma chama branca a desafiar as leis da gravidade, um pião melodioso com a graça de uma flor celestial. (Monteiro 2001: 125) Realmente, dançar, para Alice, era também uma forma de fuga à realidade e quando entrava nesse patamar mais nada importava, mas na vida real os filhos gritavam cobertos de vomitado estando, às vezes, horas sem comer (cf. Monteiro 2001: 125). A solução encontrada por Celso Palma para adulterar esse estado foi ser fisicamente violento com Alice: precisava retirar-lhe as asas que Alice herdara das suas tias, Elisa e Augusta. Sabemos desses maus tratos quando Zé, uma das filhas de Alice, conversa com Ema sobre uma pasta que esta entregou ao seu irmão. Ela continha o historial médico de Alice. Nesses pareceres era sabido que Celso Palma batia à sua mãe: É que esses documentos, cujos originais estão na minha posse, denunciam todas as barbaridades que o seu pai infligiu na dona Alice. Não obstante de lhe ter extorquido todos os haveres, também a violentava. Ela deu entrada no Hospital logo na noite de núpcias; (Monteiro 2001: 107) Ficamos a saber que ele era cruel ao ponto de lhe urinar em cima depois do acto30 e não lhe poupava a cara. Alice teve mesmo de colocar uma prótese no maxilar superior (cf. Monteiro 2001: 107). No entanto, devido à sua doença, Alice julgava que o marido seria um homem que a amava com exclusividade (cf. Monteiro 2001: 53). Não é só Alice que necessita de se refugiar nesse mundo do faz-de-conta de vez em quando. Lolita também o faz, pois considera que esse estado, que os jovens acreditam ser um acto taralhouco próprio dos velhos, é uma das fases mais importantes da sabedoria humana, esse estado é definidor de personalidades. Também na criança a ausência de limites precisos entre a realidade e a fantasia é permanente – a criança é um ser cuja identidade precisa ser formada para que se constitua como sujeito: É por esta nossa capacidade de sentir prazer no faz-de-conta que dizem que os velhos são taralhoucos. Pobres imbecis, esquecem-se que esta capacidade de fazer um 30 “Um dia os médicos até chamaram o senhor Celso Palma para o aconselharem a fazer um tratamento à ureia. Sabe como descobriram? O seu pai urinava-lhe em cima depois… do acto.” (Monteiro 2001: 107). 44 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro crisópraso a partir de um rude calhau é uma das faces mais diamantinas da sabedoria que a experiência da vida confere. (Monteiro 2001: 44) Por isso, Ataíde, o chefe dos correios que socorreu Alice e Lolita quando ambas decidiram fugir do lar, pensava que “aquelas mulheres tinham nas suas cabeças espaços limpos e fantásticos, mas que só elas tinham a chave, como se se tratasse de impenetráveis quartos de lendários castelos da Escócia” (Monteiro 2001: 123). Assim, Lolita e Alice apresentam comportamentos que as aproximam desses espaços fantásticos. Notamos essa aproximação nas seguintes situações: quando Alice ofereceu o seu vestido amarelo a Lolita, esta enrolou-o à volta do ventre e fingiu estar grávida, como se o seu Vladimiro se encontrasse dentro dela (cf. Monteiro 2001: 44-45); num almoço, Lolita e Alice aproximam-se desse espaço fantástico quando decidem brincar – fingem estar num grande banquete; divertem-se imenso; as funcionárias não acham piada nenhuma à brincadeira e retiram-nas da mesa31; quando Ataíde levou Lolita e Alice para o seu apartamento, enquanto esperava que a directora do lar e os enfermeiros as viessem buscar, estas personagens, esquecendo todas as peripécias que aconteceram devido à sua fuga do lar, brincaram com os seus odores: Lolita tirou uma meia do pé e deu a cheirá-la a Alice; esta fingiu que o cheiro era tão intenso que até caía da cadeira (cf. Monteiro 2001: 123). Quando Alice adormece, fica ausente da realidade e imagina um mundo alternativo onde as personagens que contactam com ela são animais. Essa realidade é semelhante à que Lewis Carroll ou mesmo Cervantes imaginaram, o que demonstra que Alice é influenciada pela leitura que fez em pequena das obras Alice no País das Maravilhas, Alice do Outro Lado do Espelho e O engenhoso fidalgo D. Quixote De La Mancha e se refugia nestes sonhos, porque no mundo da fantasia ela pode ser ela própria, pode tomar as decisões livremente sem ser julgada ou reprimida pelos outros. Ao longo da narrativa é-nos transmitida precisamente a tentativa de Alice estar em constante contacto com a obra literária. Talvez por isso, esta personagem não distinga, muitas vezes, o sonho da realidade. Era como se, ao ler um livro, Alice transportasse esse mundo 31 Era cozido, como sempre. Lolita riu e comentou estarem deliciosos aqueles arenques preparados pelo chefe francês; mas não está nada mal este caviar, nem este molho de whisky. Este champanhe, então, é divino! E não aguentando o riso, borrifou Alice com a água que lhe restava na boca. Alice gargalhou e lançou-lhe uma couve de penca à cara. (Monteiro 2001: 45) 45 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro para o seu e deixasse de existir um muro entre esses dois mundos, era como se passassem a ser um só: Manteve sempre com os livros uma espécie de mancebia literária, um jogo de orgias assumido sob a pele e do lado avesso dos sentidos […] E sabia da existência de uma dedicação apaixonada, de ambas as partes. […] sabia-se uma espécie de concubina com a dose certa de desprendimento para enfeitiçar eficazmente o acto da leitura. Ria. A mais ousada soberana sequer ousaria sonhar tanto quanto ela quando um livro se lhe abria. (Monteiro 2001: 29) Isto acontece, porque a relação que Alice mantém com o mundo real é semelhante a uma imagem distorcida “como se fora ela própria um reflexo num espelho quebrado” (Monteiro 2001: 30), o que remete o leitor para a obra Alice do Outro Lado do Espelho, pois o mundo do espelho parecia a Alice alterado relativamente ao seu, apesar de aparentemente parecer igual32. Por isso, a menina que ela ainda era só aparecia reflectida no outro lado do espelho33, ou nos seus sonhos, tornando-se doloroso para ela ver reflectido no espelho do mundo real o seu rosto enrugado: “E lançou-o contra a parede.” (Monteiro 2001: 30). A personagem demonstra mesmo a vontade de ser uma menina e ter o corpo e o aspecto das meninas, de se comportar como elas e ter a sua alegria quando se imagina nesse mundo alternativo ao seu: De súbito rejuvenesceu. Nunca Alice o vira tão rapaz. Gargalhou, pediu licença e sentou-se na berma da cama. […] O cabelo dela cheirava a rosas de Alexandria e a pele, a cocoruto de bebé. […] Ela riu, riu alto como a criança enebriada no dorso de um meigo pónei de carrossel. E cada vibração do riso parecia provocar-lhe no corpo convulsões de juventude, o peito avolumou-se, a pele aveludou e o cabelo ficou com tamanho brilho que mais parecia tentar ocultar estrelas. (Monteiro 2001: 51-52) 32 «Now, if you’ll only attend, Kitty, and not talk so much, I’ll tell you all my ideas about Lookingglass House. First, there’s the room you can see through the glass – that’s just the same as our drawing-room, only the things go the other way. (Carroll 1992: 136) 33 Que reflecte o espelho? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência: como o Sol, como a Lua, como a água, como o ouro, lê-se num espelho chinês do museu de Hanói sê claro e brilhante e reflecte o que existe no teu coração. (Chevalier e Gheerbrant 1982: 300). O itálico é da responsabilidade dos Autores. Só no espelho do mundo de sonho Alice conseguia ver a sua face ainda jovem. Isso acontecia porque esse espelho reflectia o que realmente existia no coração de Alice: a ânsia de voltar a ser criança. 46 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Ao sonhar, ela pode ser a criança que sente dentro de si e comunicar com os animais, ver o mundo tal como eles o vêem, um mundo sem maldade onde impera a inocência (é também assim o mundo das crianças) e repartir com eles todas as experiências da vida. Em diálogo com Lolita, Alice afirma que os animais estão a tomar a dianteira em relação aos humanos, pois entendem mais do ser humano do que o ser humano entende deles e são grandes juízes quanto ao carácter das pessoas, enquanto que a sociedade humana está cada vez mais animal, materialista e fria no trato dos da sua espécie (cf. Monteiro 2001: 116). Isso é notório quando as auxiliares de acção médica fazem comentários maliciosos ao grisalho da púbis ou aos seios murchos das idosas, demonstrando desrespeito e crueldade (cf. Monteiro 2001: 30). Por essa razão, Alice relaciona-se melhor com os animais e escolhe-os para seus confidentes em vez de escolher os da sua espécie. No mundo alternativo, Alice mantém amizade com Lolita e Dina. Essa amizade era já evidente no mundo real, pois, quando Alice se encontrava internada devido aos ferimentos provocados pela queda, perguntou por Dina a uma enfermeira (cf. Monteiro 2001: 10). Também na obra Alice no País das Maravilhas, a gatinha Dinah é amiga de Alice: “«Dinah, my dear! I wish you were down here with me!” (Carroll 1992: 3). No mundo imaginário, na altura do julgamento, essa relação de grande amizade e respeito é comprovada. Alice estava desiludida com Lolita, pois considerava-a sua amiga e num momento difícil ela não esteve ao seu lado: “Como poderia a sua Lolita estar a julgá-la? Estava desiludida – de nada vale o amor que se devota aos outros.” (Monteiro 2001: 93). Lolita preparava-se para proferir a sentença quando aparece Dina, que defende Alice: “Estava enfurecida, bufando em todas as direcções, os dentes aguçados e finos, eriçada até aos bigodes e com as enormes unhas laminares fora das patas. Desapareceram todos num pestanejar de olhos.” (Monteiro 2001: 93). Esta, vendo a atitude da sua gatinha, abriu-lhe os braços. A gatinha saltou-lhe para o colo e mostrou-se meiga para com ela “ronronando e esfregando o focinho no seu queixo” (Monteiro 2001: 94). Num momento anterior da narrativa, quando Alice e D. Rafeiro da Mancha encontraram Dina, a qual já tinha parido uma cria chamada Sindbad34, Alice decide não prosseguir viagem e ficar a cuidar da sua amiga, a única que lhe restava, visto que a porquinha Lolita tinha sido abatida: “E enquanto que Dina recordava em silêncio a vivência 34 Esta personagem tem o nome da personagem da história de origem persa “Sindbad the Sailor”. Conta a história de um navegador de Basrah que vive numerosas e fantásticas aventuras durante as suas viagens pelos mares do este de África e Sul da Ásia. É uma das histórias que fazem parte da obra The Book of One Thousand and One Nights. Informação retirada do site da Internet http://en.wikipedia.org/wiki/Sindbad_the_Sailor. 47 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro dolorosamente inenarrável do parto, Alice ia sentindo aquela dor como se fosse ela própria um espasmo nervoso. Enrolaram-se uma na outra e deixaram-se cobrir pelo sono” (Monteiro 2001: 24). Quando, ao longo do sonho, Alice aparece transformada num porco assexuado, apercebemo-nos que essa transformação acontece por amor a Lolita, para se poder assemelhar a ela e senti-la a seu lado (cf. Monteiro 2001: 22). Este animal era a sua melhor amiga, facto que é demonstrado pela nostalgia que Alice sente ao recordar-se dos bons momentos que passaram juntas: “dos momentos em que corriam pela planície até caírem, extenuadas, em risos, as flores por todo o corpo e aquele cheiro a ervas que só é genuíno quando perto da terra que as acolhe e fortalece.” (Monteiro 2001: 117). Na obra A Guardadora de Gansos essa ideia de que os animais são fiéis e puros na amizade que demonstram pelos humanos é reforçada através do cão do pai de Vita, o Wagner. Segundo Vita, este animal “tinha um carácter preciso e um juízo de valor acerca dos humanos que seria lirismo idiota pô-lo em causa” (Monteiro 2005: 37). Quando o pai de Vita morreu, Wagner não aguentou a ausência do dono e suicidou-se (cf. Monteiro 2005: 40). As influências das leituras que Alice fez em pequena são evidentes na escolha do cenário do seu mundo imaginário, ou de sonho: Alice encontra-se numa toca35: Acordou. A escuridão era densa e cheirava a animais mortos. Estava num espaço exíguo. […] Aos poucos, os olhos foram-se habituando aos frouxos feixes de luar que entravam naquela espécie de lura. A toca estava ocultada por tojo que em breve começou a estremecer (Monteiro 2001: 12-13). O mesmo acontece com o rafeiro Alentejano que encontrou Alice numa bouça e a arrastou para aquela toca para a proteger das entidades sanitárias. Achava-se um vagabundo, um D. Quixote, e estava influenciado pelas aventuras de Cervantes que o seu amo lia em voz alta para a família (cf. Monteiro 2001: 14-15). 35 Em Alice no País das Maravilhas, Alice cai na toca de um coelho: The rabbit-hole went straight on like a tunnel for some way, and then dipped suddenly down, so suddenly that Alice had not a moment to think about stopping herself before she found herself falling down what seemed to be a very deep well. (Carroll 1992: 2) 48 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Tal como D. Quixote, as leituras que D. Rafeiro fez vieram alterar a sua forma de pensar, tornou-se um ser com uma imaginação demasiado apurada, vivendo constantemente no mundo da fantasia36. Alice seria o seu Sancho e iria acompanhá-lo na viagem. Devia tratá-lo por D. Rafeiro da Mancha por este ter uma mancha branca no peito (cf. Monteiro 2001: 14). Como já foi referido, no mundo alternativo ao mundo real, Alice não é um ser humano, mas sim um porco (cf. Monteiro 2001: 13). Depois de recriar a sua queda entre os rochedos de forma a explicar a D. Rafeiro a sua história, conta que viu o seu corpo transformar-se quase no de Lolita, tornando-se, desse modo, um porco assexuado (cf. Monteiro 2001: 22). Isto prova que tudo é permitido no sonho. Tal como as crianças que imaginam ou sonham, porque isso faz parte do seu processo de crescimento, também Alice, quando imagina ou sonha, altera o ambiente que a rodeia, mas não o faz intencionalmente, pois tudo o que faz é resultado de uma busca de auto-realização. Quando aparece a personagem Grifo, apercebemo-nos que, de facto, estamos perante a continuação do sonho que a Alice de Lewis Carroll teve enquanto pequena e que Alice de Luísa Monteiro reproduz37. Esse facto não é de estranhar já que a criatividade infantil é a semente que contém tudo o que o adulto vai realizar, ou seja, na criança, o imaginar, que faz parte do seu viver e agir, é uma tomada de contacto com o mundo onde ela se muda a si mesma e procura realizar-se enquanto ser. A imaginação condiciona, assim, a realização da personalidade de um ser. A Duquesa de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll surge também neste mundo de sonho transformada num flamingo cor-de-rosa: Ao tocar os lábios na casca, surgiu uma cabeça cor de rosa […] A casca partiu-se por completo e um esplendoroso flamingo agitou as asas […] Alice achou-o bonito e sorriu. És um flamingo cor de rosa? Eu, não, respondeu o passarão. Eu sou uma Duquesa! (Monteiro 2001: 96) 36 En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer, se le secó el celebro de manera que vino a perder el juicio. Llenósele la fantasía de todo aquello que leía en los libros, así de encantamentos como de pendencias, batallas, desafíos, heridas, requiebros, amores, tormentas y disparates imposibles; y asentósele de tal modo en la imaginación que era verdad toda aquella máquina de aquellas soñadas invenciones que leía, que para él no había outra historia más cierta en el mundo. (Cervantes 2004: 29-30) 37 “Grifo não escondeu a fadiga e deitou-se. […] Mas do que eu gosto mesmo, é da quadrilha de lagostas! Lembra-se Alice? […] E começou a cantar: «Entrar na dança?” (Monteiro 2001: 25). 49 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Anteriormente, foi referido que no mundo do sonho tudo é possível e isso é notório quando somos informados de que o tempo não condizia com o espaço, pois Alice e D. Rafeiro da Mancha “Percorreram longos vales, cordilheiras, atravessaram um oceano, um deserto ardente e uma vasta planície de neve, passaram pela lua e desceram ao Inferno38” (Monteiro 2001: 117). Nos romances de cavalaria acontece precisamente isso, já que os heróis percorrem lugares e travam batalhas num espaço de tempo muito curto. Na obra de Cervantes isso é também notório, pois sempre que D. Quixote sai de casa embrenha-se em grandes aventuras. A introdução a cada capítulo demonstra isso mesmo: “Del buen suceso que el valeroso don Quijote tuvo en la espantable y jamás imaginada aventura de los molinos de viento, con otros sucesos dignos de felice recordación” (Cervantes 2004: 75), “De la jamás vista ni oída aventura que con más poco peligro fue acabada de famoso caballero en el mundo como la que acabó el valeroso don Quijote de La Mancha” (Cervantes 2004: 174), ou “De lo que le aconteció al famoso don Quijote en Sierra Morena, que fue una de las más raras aventuras que en esta verdadera historia se cuenta” (Cervantes 2004: 211). A realidade também surge mais embelezada porque Alice tem a liberdade de apreender as coisas segundo a sua perspectiva – sente tanto carinho pelas personagens que lhe fazem companhia nesse mundo que embeleza tudo à sua volta: E sobre aquele jardim, ramos de lilases que baloiçavam para afagar aquelas mulheres ou conceder-lhes uma bênção perpétua. Dina surgia pelos passeios de pedra cobertos de tegumentos acetinados que caíam das folhas novas, com pão fresco e manteiga, acompanhada por um arganaz de rosto aureolado com pétalas de margarida e, à cabeça, um grande pote de café fresco que seria servido sobre a toalha da relva. (Monteiro 2001: 139) Esse facto é notório no lanche que em Alice no País das Maravilhas é extremamente atribulado39 e aparece descrito no mundo imaginário de O Estranho Amável como algo belo e sereno. 38 Também na Divina Comédia quando a vida de Dante deixa de seguir o caminho certo, ele terá de encontrar o rumo e o único caminho para encontrar a salvação é atravessando o inferno até encontrar as portas do céu. Talvez Alice também tivesse esse sentimento, primeiro passaria por provações (inferno) e só depois alcançaria o mudo de sonho (céu). 39 There was a table set out under a tree in front of the house, and the March Hare and the Hatter were having tea at it: a Dormouse was sitting between them, fast asleep, and the other two were using it as a cushion, resting their elbows on it, and talking over its head […] The table was a large one, but the three were all crowded together at one corner of it […] Alice looked all around the table, but there was nothing on it but tea (Carroll 1992: 61) 50 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Neste mundo, Alice pode proteger-se a si e aos que ama, tornando-os imortais. Ela transforma todos os seres que convivem com ela no mundo real em animais, porque, como ela nos faz entender, não só gosta de animais, como também os inveja por não terem consciência da morte, ao passo que os humanos morrem duas vezes (cf. Monteiro 2001: 136) – morte da alma e morte do corpo. Assim, neste mundo recheado de simplicidade tudo pode acontecer, até imortalizar os simples mortais: “Esta é a terra mais simples de que eu ouvi falar. E simples, é a palavra mais importante dos mundos: deste e do outro em que acreditamos.” (Monteiro 2001: 21) Quando a doença de Alice se apodera, finalmente, de toda sua mente – “Durante algum tempo enrijeceu tanto quanto uma estátua. Depois o corpo amoleceu, no contacto com a cama.” (Monteiro 2001: 137) –, esta personagem consegue, por fim, passar para o mundo alternativo, como se estivesse do outro lado de um espelho. Ela desejou sempre estar nesse lugar como compreendemos pela descrição da sua felicidade: “De súbito, sentiu-se uma mera sombra branca que deslizava sobre um caminho de luz dourada. O sentimento de felicidade plena adoçava todos os átomos da sua existência.” (Monteiro 2001: 137). Finalmente, essa vontade de dar vida eterna a todos os que ama e admira pode tornarse realidade: Ficamos a saber que D. Rafeiro da Mancha é, na realidade, Jacinta; por esse motivo, quando Jacinta nos é apresentada pela primeira vez, o narrador informa-nos que ela tinha “uma grande mancha de pele despigmentada abaixo do pescoço” (Monteiro 2001: 72), fazendo lembrar a mancha branca que D. Rafeiro apresentava no peito. Tal como Jacinta demonstrava gosto pela leitura, D. Rafeiro da Mancha demonstrava paixão pelas histórias de D. Quixote. Ema é um disfarce utilizado por Dina para estar junto de Alice; por isso, Alice tinha razão em desconfiar daquele andar de felino da directora e do facto de ela ser muito dada aos prazeres romanos da mesa e da cama, embora os evitasse devido à sua condição de ser racional (cf. Monteiro 2001: 137-138). O Grifo é Luís. Por isso, tal como Luís era um senhor de idade, o Grifo era “demasiado velho, trôpego” (Monteiro 2001: 24-138). É sabido que Luís gostava de acompanhar Alice, o Grifo também o fazia, pois acompanhou-a ao julgamento. Lolita é, na realidade, a porquinha Lolita – ambas tinham olhos “Redondos e negros” (Monteiro 2001: 12-137) – por isso, compreendemos que, pela convivência, a relação entre Alice e Lolita se vá tornando mais cordial: Lolita continua a chorar por Alice, mesmo depois de terem apagado as luzes (cf. Monteiro 2001: 138). 51 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro A enfermeira com cara de Lebre de Março é a Duquesa: “A enfermeira com cara de Lebre de Março estava a fazer-lhe companhia, abrindo as grandes asas de flamingo cor de rosa para que o vento não a tocasse.” (Monteiro 2001: 138-139). As empregadas de limpeza do lar, que nem sempre respeitaram Alice, são anjos ou brancas aves da capoeira, o que demonstra que Alice é um ser bondoso que perdoa a maldade que muitas vezes os outros lhe infligem (cf. Monteiro 2001: 138). Mais à frente na narrativa, ficamos a saber que Chuchinha, a boneca de trapo que Alice traz sempre consigo, é a lebre de Março. Cansada de usar aqueles trapos, decidiu despilos e passar as patas pelo pêlo fazendo lembrar o coelho branco de Alice no País das Maravilhas40: Despiu os trapos e passou as patas pelo pêlo. Continuava macio e branco. Mirouse no lago: as orelhas estavam cada vez mais compridas. E os dentes também! Deu um salto no ar – não por ser novamente a Lebre, mas porque era Março. E foi atrás, abrindo-nos o caminho; por entre girassóis. (Monteiro 2001: 143)41. A passagem de Alice para este novo estado demonstra que o mundo dos sonhos é uma realidade nova que gira em torno de nós, mas em níveis de consciência mais elevados e mais complexos. Portanto, a descrição da passagem de Alice de um mundo para outro é semelhante à efectuada logo no primeiro capítulo, aquando da sua queda – estava a ser “desagradavelmente sugada para um abismo escuro, rodopiando, com milhares de pequenas luzes a penetrarem-lhe o corpo, a picarem-lhe os braços e as pernas” (Monteiro 2001: 136). É como um voltar ao princípio de tudo, como um nascer de novo. Não é por acaso que os miados se tornaram mais audíveis, visto que estava mais próxima de Deus (cf. Monteiro 2001: 137). Quando Luís, não aguentando estar longe de Alice, viaja também até esse mundo alternativo – “Luís estava consigo nesse outro lado” (Monteiro 2001: 140) – sofre uma 40 So she was considering in her own mind (as well as she could, for the hot day made her feel very sleepy and stupid), whether the pleasure of making a daisy-chain would be worth the trouble of getting up and picking the daisies, when suddenly a White Rabbit with pink eyes ran close by her. (Carroll 1992: 1) 41 A apresentação gráfica da citação está de acordo com o original. 52 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro transformação também visível em Alice: ela tem uma fita de seda azul a prender-lhe o longo cabelo – “E enquanto ele lhe prendia os longos cabelos com a fita de seda azul” (Monteiro 2001: 141) – e ele tem calções e suspensórios vestidos e os joelhos arranhados por ter subido às árvores para lá colocar um ninho para os cavalosquitos: esses calções são novos? São. […] Ela apontou-lhe o dedo para as pernas. Tens os joelhos arranhados? Há bocado estive a subir às árvores, fui lá pôr um ninho para os cavalosquitos que já não tardam. […] E Luís correu, atrapalhado com uma das alças dos suspensórios (Monteiro 2001: 141-142) Os dois voltaram a ser crianças, ou seja, renasceram, tornaram-se naquilo que sempre desejaram42. Já referimos anteriormente que para a Autora a infância é um estado divinizado e que é nesse estado onde Deus existe e se recria, por essa razão tínhamos afirmado que Alice antes de morrer ouvia miados muito fortes. Como era de novo criança, estava mais perto de Deus. Estando num corpo de crianças, Alice e Luís podiam atingir mais facilmente a imortalidade. O girassol, que foi referido anteriormente na citação retirada da página 143 e que Luísa Monteiro utiliza como forma de concluir a narrativa, é considerado na China um alimento de imortalidade (cf. Chevalier e Gheerbrant 1982: 353). Esse retorno à infância é notório nos comportamentos realizados pelas duas personagens. Alice dizia estar mais alta do que Luís. Ele achava que era por causa dos sapatos de salto que ela usava. Decidiu, então, ir à macieira e colher um chapéu de estilo Borsalino. Agora estava mais alto do que Alice. Ela riu, da mesma forma que riem as crianças e até caiu sobre uma massa de malvas-rosa. Ao ouvirem um galo, decidiram ir apanhá-lo e correram como as crianças fazem, ou seja, correram “como gazelinhas num prado” (Monteiro 2001: 143). Para D. Rafeiro, Alice cheirava a cocuruto de bebé, tal como as crianças (cf. Monteiro 2001: 17) – Lolita considerava o mesmo (cf. Monteiro 2001: 93). Na verdade, Alice nunca deixou de ser criança. Até considerava que ser velha lhe tornava escassa a eternidade (cf. Monteiro 2001: 18), se fosse sempre criança poderia rebelar-se, pois teria a eternidade como fonte de vida. 42 Nesse mundo alternativo, ou do outro lado do espelho, Alice e Luís tornaram-se crianças, estas têm uma alma pura, imaculada. Uma das simbologias do espelho é a seguinte: “No Japão, o Kagami, ou espelho, é um símbolo de pureza perfeita da alma, do espírito sem mancha, da reflexão de si mesmo na consciência” (Chevalier e Gheerbrant 1982: 301) – o negrito é da responsabilidade dos Autores. Por isso, Alice demonstrava ânsia em viajar para o mundo alternativo, o mundo da verdade, da consciência limpa e pura. 53 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Em O Estranho Amável, Alice refugiou-se no mundo do sonho como forma de alcançar a imortalidade. Na narrativa A Guardadora de Gansos, Vita só conseguiria alcançar essa almejada imortalidade através do contacto com a vinha. Como acaba por perdê-la, terá de encontrar algo que a substitua: o leitor único. Quando Vita vendeu a quinta que lhe foi deixada por seu pai, vai viver para a cidade. A Cidade adoece-a. Resta-lhe, desse modo, refugiar-se no sonho como forma de voltar ao passado e de recordar a infância no meio da natureza: Fecho os olhos e caminho pelo meu lado de dentro até à descoberta da porta dos sonhos, onde posso entrar e reviver em espasmos de medo as quedas nas escadas em espiral, escuras, o cheiro a mosto dos quintais, o riso das cantilenas nos bibes a esvoaçar; recordo-me que em criança tinha por hábito girar, girar, eu era o eixo frágil que queria contrariar o movimento da Terra; (Monteiro 2005: 52) Vita começa a registar no seu caderno recordações do seu tempo de menina: os “caseiros da quinta com cestos aos ombros carregados de uvas tintas, as senhoras a escreverem à sombra de tílias nos jardins” (Monteiro 2005: 49-50). Necessitava escrever as histórias que os caseiros lhe contaram (cf. Monteiro 2005: 44). A partir desse momento, manterá uma relação muito próxima com as palavras, ou com a literatura, tornando-se, assim, uma escritora. Já em pequena Vita demonstrava essa necessidade de contactar com as letras: “Os meus dez anõezinhos encetam danças sobre o papel só para agradarem à Ti Verd’Água, desenhando letras, encenando paisagens, inventando vidas e de vez em quando deixam o lápis alado para namorarem a cesta de figos maduros” (Monteiro 2005: 13). Vita vai escrever para um leitor, mas não é um leitor comum, é aquele que ainda não existe: “enquanto o incriado não chega” (Monteiro 2005: 36). Apercebemo-nos, deste modo, que ela procura o inatingível como forma de preencher o espaço onde estava a terra que perdeu irremediavelmente: “O leitor que não existe ainda, é o único atenuante para a escrita – e esta é a mais refinada manifestação contra a violência que vira as lanças aguçadas contra mim” (Monteiro 2005: 45). O leitor que não existe é a única coisa que lhe transmite esperança, pois é só através do inatingível e do misterioso que existe a possibilidade de ser. Só o que existe no nosso pensamento não tem idade. O leitor único, que só existe na mente de Vita, é, portanto, a única coisa que lhe resta, já que a morte a espera e não pode recuperar a terra, nem a juventude – “pingos murmurantes 54 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro da adega perdida na infância irreversível”; “Para lá da janela está a vida. E Vita não pode.” (Monteiro 2005: 69-70). Assim, deseja partir em busca dele (cf. Monteiro 2005: 70). Contudo, Vita não assume ser ela a autora daquilo que escreve e ser ela o “eu” que necessita de encontrar algo desconhecido como forma de acabar com a sua solidão. Lushka será escolhida por ela para assumir as obras perante o público (cf. Monteiro 2005: 54). Era como se, através de Lushka, Vita vivesse os seus verdadeiros sonhos e deixasse de estar camuflada por uma máscara: Continuo a guardar os sonhos de Lushka enquanto dorme, contando os seus carneirinhos que esvoaçam pelo quarto e aonde quer que eles possam ir, eu protegerei os seus olhos de tristeza […] Quanto tempo será preciso para deixar crescer o meu tronco de vida, a ponto de Lushka poder gozar à sombra da minha confiança? Queres que te escreva os sonhos por ti? Eu sei por onde andas enquanto dormes, eu vejo-te do lado de lá deste corredor e ouço tudo o que pensas. Sim, eu também quero aumentar a minha colecção valiosa de observações que faço acerca da natureza humana, embora me sinta perturbada e ferida pela marca dos espíritos das coisas, dos rostos e situações, profundamente marcada por marcas afinal tão subtis, tão sem nome ou corpo, e que eu sou capaz de lhes dar cheiros, cores e estados cerebrais. (Monteiro 2005: 50) Vita compara-se a Brunilde de Wagner, Cordélia de Shakespeare e à princesa guardadora de gansos de Grimm. Estas personagens também recorrem ao disfarce para acabarem com a sua solidão, isto é, seduzem através do recurso ao disfarce (cf. Monteiro 2005: 62). A guardadora de gansos de Grimm é uma princesa que se disfarça de guardadora de gansos e vive camuflada por uma máscara (cf. Monteiro 2005: 62). Assim, os seres que se apaixonam por estas personagens são seres volúveis, que se deixam encantar pelos sentidos ou pela imagem transmitida e não pela verdadeira personalidade desse ser. É o que acontece com Leonardo, marido de Vita, mas já não é o que acontece com Lushka, visto que esta não se contaminou pelo disfarce. Por essa razão, desde que conheceu Lushka, Vita se sentiu muito próxima dela e julga que ela será o seu leitor único: Eu sabia que já tudo estava escrito e, para não te perder, também eu comecei a escrever algumas coisas de modo a que pudesse regressar ao nosso tempo, de modo a nunca te esquecer. De manhã, escrevo os teus livros, Lushka; à noite, os meus. […] 55 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Voando em V voarás mais do que se voasses sozinha, Lushka. E sempre que um dos gansos sai da formação em V logo fica perdido, sentindo a forte resistência do espaço e o arrasto para trás. […] E quando um ganso adoece, Lushka, se fere ou é abatido, dois outros gansos saem do voo em V e acompanham e ficam com o ganso carente para o proteger – até que ele se voe de novo; ou então morra. […] … Voando em mim voarás mais do que se voasses sozinha, Lushka (Monteiro 2005: 54-55) Ao contactar com o mar, Vita vai recordar a infância perdida. O mar simboliza a dinâmica da vida, pois tudo sai do mar e a ele regressa. Por essa razão, é um lugar de nascimentos, transformações e renascimentos. Pode ser ao mesmo tempo a imagem da vida e da morte (cf. Chevalier e Gheerbrant 1982: 439). Quando ela toma banho e pensa em nomes possíveis a dar ao seu leitor único, as Horas comparam o nome do leitor único à espuma que as ondas derramam pela senda impossível do regresso à fonte (cf. Monteiro 2005: 76). Isto acontece porque o leitor único é uma esperança, é como um renascer de Vita para a vida – “«Pode ser, mas o sonho fez-se filho maior no mundo…»” (Monteiro 2005: 77). Ele é a base que a sustenta neste mundo, pois “A náusea pelo mundo estremece-lhe a carne até à gelatina amarga dos ossos” (Monteiro 2005: 77). Vita recorre ao mar – “«Que as águas me cubram, é isso que pedirei ao poço dos desejos” (Monteiro 2005: 77) – como modo de alcançar o mundo dos gansos, ou seja, o regresso às origens: “as ondas erguem-lhe os pés e arrastam-lhe o corpo até ao mundo frio dos búzios e ela ergue a cabeça lambida de carícias de mar para desejar o universo impossível dos gansos – mas sempre regressa à areia brutal”; “Por todo o lado, o odor a cadáver, doce e profundo de pátria a despertar-lhe a ânsia de aspirar a vida plena que no mar se respira.” (Monteiro 2005: 74-76). O contacto com o mar fá-la querer escrever novos contos, os contos das novas horas, ou seja, fá-la querer começar de novo regressando, desse modo, ao passado: à gestação no ventre da mãe – “horas que prometem valores de placenta num colo de menina com carícias intocáveis” –, ao acto de se sentar no colo da mãe – “o conto num colo maternal e luzes siderais sobre as nossas cabeças” – e à amizade mantida com Lushka – “quero pensar que no ar trémulo voa um desajeitado ganso branco como um sonho de vida e aventura em torno da minha figura apagada” (Monteiro 2005: 81). Para regressar ao passado terá de entrar no mar, visto que é a água ou líquido amniótico que gera o ser humano: 56 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Vita está a entrar no rio. Quer desaguar no mar. Pensa no leitor, no seu leitor, no único, no que está por nascer. Pensa: Iremos ver-nos ali, onde todos nós éramos. […] E será uma vez uma vindima em tarde ruiva ao som das cantigas de mulheres […] e deixaremos que a cor vermelha do vinho nos invada as veias […] Quero pensar no despertar dos girassóis, no amanhecer dos pessegueiros com penugem suave. […] Quero pensar que vou começar o conto das novas horas… (Monteiro 2005: 82) Quando Vita morre, o seu cadáver é encontrado na praia. Laura, a irmã de Leonardo, aproxima-se, reconhece-a e informa o polícia que Vita era irmã de Luís de Camões. Vita lançou-se ao mar porque sabia que a origem de tudo era a palavra: “Vita bem o procurou, mesmo sem saber o que procurava; mas não a deixaram encontrá-lo, senhor polícia. O mal, senhor polícia, é que os pais continuam a morrer com vergonha dos seus segredos antigos.” (Monteiro 2005: 83). Vita escreve também como forma de lutar por e pela continuação da palavra, criticando a conduta do homem que se deixa dissolver pelo silêncio: A guardadora de gansos é o mais misterioso de todos os contos, de todos os tempos, pois nele existem todos os elementos sedutores do ser humano, especialmente aqueles que nem sempre a consciência consegue discernir (parece-me evidente que também a ameaça do fim da literatura, dos contos tradicionais, das bibliotecas em papel, provém apenas da luta do homem contra aquilo que, por lhe ser inferior, o atrai para baixo, dissolvendo-lhe os valores humanos e conduzindo-o ao silêncio) (Monteiro 2005: 64). Quando Vita confia a sua vida à natureza, evidenciando a consciência da morte, sabe que só irá morrer depois de escrever os contos que os dezassete caseiros de seu pai lhe contaram: Duplicava-me a convite da janela onde o horizonte era sempre azul, verde ou anil e me dizia que haveria de me acolher o corpo quando morresse. Claro, teria que ser só depois de eu passar para o papel os contos dos dezassete caseiros da quinta. (Monteiro 2005: 23) Sabe, portanto, que, ao acabar de ler um livro, outro terá de ser iniciado, porque é da substituição que a criação literária se alimenta (cf. Monteiro 2005: 76-77); afinal, no dizer de 57 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Ana Paula Arnaut, as palavras são “a matéria prima das nossas emoções e das nossas vivências” (Arnaut 2002: 9). Vita irá intitular o seu próximo livro, que conta as histórias dos caseiros do seu pai, A guardadora de gansos (cf. Monteiro 2005: 79). Esta relação com a palavra, ou melhor, com os gansos faz-nos entender a razão da escolha do título da narrativa de Luísa Monteiro. De facto, a segunda parte desta obra está dividida em 1743 histórias, as dezassete histórias contadas pelos caseiros, ou gansos que Vita guardava no sonho. Esses gansos foram as palavras que ela foi aprendendo na infância, ou seja, as palavras que constituem os contos que lhe eram narrados. Por isso, ela substitui a terra pela escrita, pela procura de um leitor único, pois esta terra é a das palavras, é essa terra que dá origem à Língua e, em consequência, à produção literária. Tal como a princesa do conto “A guardadora de gansos” de Grimm, que conduzia os gansos, também Vita conduz a palavra pela vida fora não a deixando desvanecer-se, perderse. Isto explica precisamente o sentimento de perda que acompanhou Vita quando deixou de contactar com a terra e com as histórias do imaginário popular da sua comunidade. Assim, todas as histórias apresentadas na segunda parte da narrativa vão ter como objectivo fundamental representar os acontecimentos existentes na vida de Vita. Vita é uma personagem que reflecte acerca da passagem do tempo; também no conto “Narciso Margarida Rosa Amarilis (conto triste de jardim)” é explorada a sucessão das 43 Este número, tal como o 72 que está relacionado com ele, sendo o primeiro a soma e o segundo o produto de 9 e de 8 apresenta uma grande importância simbólica. Na tradição islâmica, o 17 é […] o número das palavras (17) que compõem a chamada para a oração. […] aparece sobretudo nas lendas, principalmente nos 17 conselhos murmurados ao ouvido do rei no momento da sua coroação e nos 17 componentes do estandarte. […] É, sobretudo, no xiismo […] que uma importância quase mágica é dada ao número 17 […] O 17 representava o número dos que seriam ressuscitados, tendo cada uma destas personagens de receber uma das 17 letras do alfabeto, com as quais se compõem o nome supremo de Deus […] e deve ser considerado como o cânone do equilíbrio de todas as coisas. […] Para os Gregos antigos, o 17 representa o número das consoantes do alfabeto; divide-se, por sua vez, em 9 (número das consoantes mudas) e em 8 (número das semivogais ou semiconsoantes). Estes números estavam também estreitamente relacionados com a teoria musical e a harmonia das esferas. (Chevalier e Gheerbrant 1982: 262-263) O itálico é da responsabilidade dos Autores. Como o número 17 está relacionado com o número 72, é também importante referir a sua simbologia: Os derivados ou os múltiplos de sete implicam também uma ideia de totalidade […] 72 é solidário de 70 […] é o múltiplo de 9 números: 2, 3, 6, 8, 9, 12, 18, 24 e 36. […] A Bíblia tem inúmeros exemplos em que o emprego do septenário e dos seus derivados serve para designar superlativamente a totalidade do real, e até mesmo do possível. […] Este número, 70, indica sempre, na Bíblia, a universalidade. (Chevalier e Gheerbrant 1982: 606-607) O negrito e o itálico são da responsabilidade dos Autores. 58 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro estações que marcam o ritmo da vida, as etapas de um ciclo de desenvolvimento: nascimento, formação, maturidade e declínio. Vita não mantém uma relação de proximidade com as suas irmãs, mas mantém uma grande amizade com o seu pai. Quando este morre, o mundo de Vita irá desabar, pois o pai era um grande suporte na sua vida. No conto “O sorriso dos ponteiros” é explorado o significado do amor fraterno, ou seja, uma relação de amizade e cumplicidade entre seres humanos, tal como a relação que Vita mantinha com o seu pai. Quando Vita teve de vender a quinta, afastou-se das suas origens e esse facto fê-la sentir-se só; por isso, teve necessidade de voltar e reencontrar a infância perdida. Também no conto “A Morgue baptismal” é feita referência a essa infância perdida. No conto “O jardim das oliveiras” é retratada a amizade e como ela é importante nos momentos difíceis. Também Vita se apoiou na amizade ou na imagem de Lushka durante muito tempo para se esconder do mundo que a asfixiava. Vita entrega-se ao mar como forma de alcançar o mundo da infância e acaba por morrer. No conto “A cor do tijolo”, Constantino também espelha na morte o sonho que tinha em vida, o de montar um cavalo da cor do tijolo, um cavalo da cor da terra. No conto “A coroa de pérolas negras” é abordada a avareza do ser humano, que o transforma num ser desconfiado e, muitas vezes, cruel, tal como o porqueiro que comprou a quinta que era de Vita e despediu os caseiros. No conto “A juventude vermelha da mãe” é explorada a traição de uma mãe que abandona o filho e a consequente desilusão que o filho sente devido a essa acção realizada pela mãe. Também Vita se sente desiludida quando tem de vender a quinta, pois sente que foi traída pelo pai. O facto de Vita esconder o seu verdadeiro eu por detrás da imagem de Lushka evidencia a ideia de que Vita se apresentava como que coberta por uma máscara. Esta ideia é explorada no conto “Violetas em gelo”. O conto a “Ronda da noite” explora a produção artística. Tal como Joana começou a produzir a sua obra de arte no mês de Maio, considerado o mês da fertilidade, e vai produzir uma espécie de auto-retrato, Vita também escrevia acerca da sua infância como forma de se encontrar. Através da personagem Cinderela Vita retratou uma sociedade fútil e que julga as pessoas pela sua aparência. No conto “O gigante da comporta” é abordada a vaidade e a futilidade do ser humano, o qual se enraivece se não lhe é prestada a devida atenção. 59 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro O conto “Transplante de Mar” analisa a sensibilidade extrasensorial. Também Vita era uma personagem extremamente sensível, que analisava o mundo à sua volta. Tal como Vita tem saudades da infância e luta contra o esquecimento, também o conto “O sapateiro da insónia” aborda a infância e a vontade de a relembrar para sempre. O conto “A Bicicleta fantasma” explora a incompreensão. Também Vita se sentia uma incompreendida. Tal como Vita consegue a liberdade, através do contacto com o mar, também no conto “O soldado desconhecido” é abordada a repressão e consequente libertação. O conto “A colcha dos 7 tostões e meio” aborda o poder dos sonhos ou da imaginação, a qual Vita apurava quando escrevia. O conto “Um touro de fita vermelha” aborda a crença no sobrenatural, própria das gentes que vivem nas aldeias do interior de Portugal, como os caseiros do pai de Vita Por fim, no conto 17, “O Baptizado”, é apresentada uma personagem chamada Maria, mas que, ao contrário da Maria apresentada na Bíblia, anda à procura de um novo começo. Tal como a princesa guardadora de gansos de Grimm tinha uma companheira que a protegia, uma senhora idosa, também Maria pode contar com o carinho e protecção de Madalena. Da mesma forma que a princesa guardadora de gansos, em vez de chorar lágrimas, chorava pérolas e diamantes, também Maria o fazia44. A pérola simboliza “a sublimação dos instintos, a espiritualização da matéria, a transfiguração dos elementos, o termo brilhante da evolução […] No sentido místico a pérola é também tomada como símbolo da iluminação e do nascimento espirituais” (Chevalier e Gheerbrant 1982: 522-523)45. O facto de Maria chorar diamantes e o facto de o conto terminar, na página 158, fazendo alusão ao verbo como início de tudo, faz-nos lembrar a ânsia que Vita demonstrou ao longo da narrativa pelo regresso à palavra, que é a origem de tudo. Assim, todos os contos apresentados na segunda parte da obra funcionam como se se tratasse de pequenos retalhos que, se forem reunidos, formam a totalidade de um ser. Se juntarmos os 17 contos iremos reunir a narrativa A Guardadora de Gansos de Luísa Monteiro: nos contos é abordada a desilusão, a incompreensão, a luta pelo esquecimento, o regresso às origens, o acto de nos escondermos por detrás de uma máscara de forma a fazermo-nos passar por aquilo que não somos e a reflexão acerca da morte. A Autora pretende, desse modo, demonstrar que todas as palavras produzidas num conto dão origem à Literatura, a qual está em constante evolução. A Literatura transporta-nos 44 “Maria estava com os olhos cheios de diamantes” (Monteiro 2005: 144). 45 O negrito é da responsabilidade dos Autores. 60 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro para um mundo alternativo onde podemos relembrar os momentos em que fomos mais felizes: Vita refugia-se na produção literária para se sentir a eterna criança que vivia numa quinta e que contactava com a natureza, uma criança feliz e livre como o vento que sopra nos campos ou a água que corre num riacho; Alice de O Estranho Amável transfigura o mundo das obras que leu e transforma-o no seu mundo para voltar a encontrar a infância que a fez tão feliz. 61 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro 4. A relação com o mundo circundante Para as crianças, as relações que mantiverem com os amigos, com a família e mesmo com o mundo que as rodeia são muito importantes para o seu equilíbrio mental e para a formação da sua personalidade. 4.1. Os amigos e a família No ponto A construção do Mundo imaginário referente a esta dissertação, vimos que todos os animais presentes no mundo alternativo imaginado por Alice de O Estranho Amável eram pessoas em relação às quais ela sentia alguma afinidade. Por isso, nesse mundo é revelada uma relação de proximidade entre ela e esses animais. Essa relação é notória, também, no mundo real. Alice sente-se protegida e amada por esses seres que não fazem parte da sua família. Sente-se bem no lar onde estão os seus amigos, a família do coração, e a razão que explica isso mesmo é eles a amarem por aquilo que ela é sem nenhum interesse: O lar era um alicerce firme e Alice, apesar da sua ânsia de voar sempre para outro lugar onde não estivesse, parecia já enquistada nele, com segurança, com as suas vulnerabilidades acauteladas pelas enfermeiras, tanto que parecia viver em tom de brincadeira. (Monteiro 2001: 131) Só te digo que a moral disso é: “Sê o que quererias parecer ser, ou, se quiseres que eu te explique melhor, nunca imagines ser diferente daquilo que possa parecer aos outros que foste ou pudesses ter sido, que não era diferente do que foste e que teria parecido diferente aos outros”. (Monteiro 2001: 98-99)46 Assim se explica a razão pela qual a relação que Alice mantém no mundo real com Lolita se vai tornando, ao logo do tempo, numa relação de amizade. Várias passagens evidenciam essa evolução, como veremos. Quando Alice está enfraquecida e triste devido ao soro que a fez dormir durante um mês, Lolita permaneceu ao seu lado (cf. Monteiro 2001: 44). 46 O itálico é da responsabilidade da Autora. 62 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Numa dada altura, Alice ainda escrevia uma carta quando o papel lhe foi arrancado das mãos e a empregada de limpeza leu em voz alta o que ela acabara de escrever. Estava a violar o direito que Alice tinha à privacidade. Alice não se controlou e atirou-se à mulher; o mesmo fizeram Lolita e as outras idosas. Quando a directora chegou e arrancou os papéis das mãos de Alice, a empregada chamou-a de cobra venenosa disfarçada de passarinho inocente. Lolita imediatamente defendeu Alice, dizendo-lhe que ela não era uma cobra venenosa, mas antes uma piton, que se matava era pelo enorme abraço que dava aos outros (cf. Monteiro 2001: 71). Com o passar do tempo, Alice vai reconhecer o sentimento terno que Lolita nutre por ela. Então, vai achar as mãos gretadas, sujas e vermelhas de Lolita cada vez mais belas: “Quando a vi pela primeira vez, achei que tinha umas mãos tão feias, Lolita. Gretadas, sujas e vermelhas; agora, encontro-lhes tanta beleza naquilo que elas são, que cada fenda significa.” (Monteiro 2001: 72). Quando Lolita ouviu o filho mais velho de Alice dizer que iria a tribunal de modo a tirar a mãe do lar para ir viver com o marido, contou esse facto a Alice. Esta levou as mãos ao peito horrorizada com a ideia de ficar sem Luís e decidiu fugir: “Tenho que fugir daqui. […] E é já hoje. […] Tenho que ir buscar a Chuchinha ao quarto. Não posso levantar-me, estou a tremer. Vai tu, Lolita.” (Monteiro 2001: 109). Lolita não a deixou desamparada: acompanhoua na fuga. Quando Ataíde oferece o jantar a Alice e a Lolita, Alice dá a mão à amiga. Este gesto dá conta, mais uma vez, do sentimento terno que nutriam uma pela outra (cf. Monteiro 2001: 111). Quando Lolita confessa a Alice que gosta dela (cf. Monteiro 2001: 122) e que deseja a sua felicidade (cf. Monteiro 2001: 136) demonstra que sentia uma a amizade incondicional por Alice. Até Luís encontra em Lolita uma boa relação de amizade: Comiam em silêncio. De vez em quando sorriam-se. […] Seguiram para o jardim. Sentaram-se no banco do costume. Lolita encostou-se a Alice, dobrou as pernas e adormeceu quase aninhada no seu colo. Alice acariciou-lhe o cabelo. Olhe, adormeceu. Ele espreitou e sorriu. (Monteiro 2001: 126) A directora do lar, depois de saber os motivos da fuga de Alice e Lolita, mostra-se comovida: abraça-as e, num gesto de ternura, leva-as pela mão. A partir dali, Ema fará da 63 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro defesa da estabilidade emocional e física de Alice uma missão. Irá garantir a Alice que ela não sairá do lar, porque os homens que a querem levar são “malucos”: Explicaram a Ema o motivo da fuga. Ela sorriu, estava satisfeita: suas tontinhas! Aquele lar é a minha vida, de lá ninguém sai. Senão, que iria ser de mim sem as minhas meninas? Não se preocupe, dona Alice. Ninguém a tira de lá, garanto. Eu não tenho filhos nem marido, pois não, senhora directora? Não, claro que não tem. São malucos, não são? São, são muito malucos! (Monteiro 2001: 123) A relação que Alice mantém com os filhos não é de cumplicidade. Ela já não os reconhece e rejeita-os – “Já todos tinham ido embora. Até aqueles palhaços que se divertiam em dizer que eram seus filhos, que tolice!”; “Eu estou viva, ainda. Podem ir embora, não os conheço, não me lembro de os ter parido, não tenho filhos! E parir não significa que se é mãe.” (Monteiro 2001: 39-43) –, o que não é devido apenas à sua doença, mas também ao facto de se sentir incompreendida por eles. A boa relação que Alice mantém com Lolita já não é mantida da mesma forma com Nana, a sua netinha, chega mesmo a lutar com ela para lhe tirar a Chuchinha: “E foi necessária a intervenção de dois enfermeiros para pôr cobro à gritaria entre avó e neta naquela enfermaria, cada qual puxando pela boneca de trapo.”; “Não gostava da rapariga. E num dos intervalos da garfada do bolo, disse-lhe de dentes cerrados: és pequena mas és egoísta, hipócrita e falsa! A Chuchinha é minha! E nunca há-de parar a essas tuas mãos conspurcadas de mimo!” (Monteiro 2001: 11-34). Talvez não goste da neta porque, como ela é criança, é também capaz de sonhar e de fantasiar e Alice tem medo que ela lhe roube as fantasias (cf. Monteiro 2001: 43). Depois do episódio em que Alice tem um desentendimento com a neta por causa da Chuchinha, os filhos de Alice saíram apressados e sem perceberem realmente o estado da mãe. De facto, Alice é uma idosa de 80 anos que sofre de Alzheimer, mas que aprendeu com a vida. Quando o médico lhe receita vitaminas e recomenda a visita da família, Alice insiste que a sua única família é a sua porquinha Lolita e que não quer a visita de ninguém: Eu não tenho família! Tiraram-me a Lolita, aquela que me amava, que me acompanhava e me ouvia. Família o que é? Uma convenção social! […] Família é o núcleo de seres estranhos que se agrega a outros núcleos para constituírem a chamada sociedade – 64 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro uma bela flor, perfeita, que quando esfolhada, esmiuçada até esse núcleo, transforma-se afinal num ninho de micróbios. Não quero visitas da família! (Monteiro 2001: 43) É notório o motivo pelo qual Alice demonstra um amor incondicional pela porquinha Lolita. Como qualquer animal doméstico, esta era-lhe fiel e amava-a verdadeiramente. Acompanhou-a em todas as decisões que tomou e, mesmo que não a compreendesse, ouviu-a quando ela mais precisou, estava sempre ao seu lado, o que não fazia a sua própria família. Até na boneca Chuchinha, Alice sente mais protecção do que na família e, por isso, desde o início da narrativa, não se desprende desta boneca e se sente muito ligada a ela, chegando mesmo a afirmar que gosta mais dela do que de Lolita: Gostas mais dela do que de mim, Alice? Se calhar. Porquê? Talvez porque… o nome Chuchinha tem qualquer coisa a ver com seios de mulher, de mãe, cordão umbilical mal cortado ou simplesmente porque me sugere protecção; deve ser muito bom adormecer entre os seios macios e cálidos de uma mulher. (Monteiro 2001: 92) Assim, Alice tem toda a razão em achar que a instituição família não passa de uma convenção social, pois nunca recebeu dela o amor, compreensão e companheirismo de que necessitou: Ninguém sabe entender as palavras dos velhos, que numa primeira impressão podem até parecer delírios – porque não sabem escutar; não basta ouvir um velho. Os velhos são loucos, seres demasiados maduros, prestes a cair; são corpos descompassados em relação ao ritmo da vida que parece ser pertença exclusiva dos jovens; crianças de cérebro oco. (Monteiro 2001: 43) Esta ideia vai ser retomada aquando do aparecimento do marido de Alice. Os filhos querem que ele volte para a mãe e nem sequer tentam compreender a reacção de desespero que ela demonstra em não querer regressar com o marido: aquele homem só lhe trouxe sofrimento. A própria directora do lar considerava que havia algo de estranho naquela família, descrevendo-os como “actores representando um penúltimo acto de uma farsa” (Monteiro 2001: 103), o que evidencia mais uma vez a ideia anteriormente expressa de que a família de Alice não passa de uma convenção social, de uma aparência. Alice considera que ela e os outros idosos que se encontram no lar são lá colocados pelos filhos e estes deixam-nos ao 65 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro abandono. Portanto, o lar é para Alice um lugar onde se encontram “senhoras que estão doentes e que não têm família, mesmo que tenham” (Monteiro 2001: 120). A directora defende que Celso não tem capacidade para tomar conta de Alice, dado os antecedentes: batia-lhe e deixou-a sozinha com os filhos para criar (cf. Monteiro 2001: 104). E quando este se confessa arrependido, Ema demonstra que aquele discurso de arrependimento não a comove: mas essa é a versão soalheira e primaveril da história, senhor Celso Palma; bem sei que a sua aventura revestiu-se de uma certa aura mística para os que cá ficaram. Mandava de vez em quando um postal de Nápoles, outro de Paris, outro de um canal de Amsterdão… até eu acho fascinante esse devaneio quase homérico. (Monteiro 2001: 105) Porém, uma das filhas de Alice, Ana, defende-o, acha que ele não deve pagar toda a vida por um erro do passado, ainda mais porque está velho e “sem forças” (Monteiro 2001: 105). Falando em nome de todos os filhos de Alice, Ana queixa-se de que a mãe nunca tinha querido saber deles. No entanto, a directora defende Alice lembrando-lhe que ela vendeu a casa para colocá-los no melhor colégio de Lisboa, enquanto que o pai gastou todo o dinheiro dos terrenos deixando-lhes só a casa: Que eu saiba, a sua mãe vendeu a casa para colocar os senhores no melhor colégio de Lisboa, de forma a que o dinheiro rendesse até que vocês se formassem. […] Porque ficou só com a casa e ninguém come paredes ou veste tectos. Os campos, que davam rendimento, transformaram-se em gôndolas, camelos e haréns para gozo do seu pai. (Monteiro 2001: 105) Apenas Zé, uma das filhas de Alice, que ficou curiosa com o conteúdo da pasta que Ema entregou ao seu irmão mais velho e que continha todo o historial de maus tratos infligidos pelo seu pai à sua mãe, se demonstrou arrasada. Não fazia ideia que o seu pai tinha esse tipo de comportamento. Conhecer quem era o seu pai verdadeiramente ajudou-a a tomar a decisão de não levar Ema a tribunal e de convencer os irmãos a continuarem a pagar a mensalidade para a mãe continuar a viver no lar (cf. Monteiro 2001: 108). Como já foi referido anteriormente, Alice também tinha uma relação conflituosa com as suas tias gémeas Elisa e Augusta. Eram mulheres que transmitiam franqueza e modéstia a todos – “pirilampos que continuavam a irradiar lanternas durante o dia” (Monteiro 2001: 63) 66 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro –, mas não dirigiam essa amabilidade a Alice, pelo menos ela não a sentia: “menos a mim que, sempre que me dirigiam aqueles olhares castanho marron, parecia lançarem-me num alto baloiço para montanhas petrificadas de neve.” (Monteiro 2001: 63)47. Na verdade, as tias sentiam-se ameaçadas pela jovem Alice, a quem Luís dava toda a atenção. Sentiam ciúmes por não poderem partilhar os segredos de Luís e apenas Alice ter esse privilégio (cf. Monteiro 2001: 71). Um dia, Alice decide perguntar às tias a razão pela qual ainda não tinham casado, e Elisa não esconde nesse momento a raiva que sentia pela sua sobrinha, levantando-lhe o queixo com o indicador e respondendo-lhe que quanto mais madura uma mulher se casasse, melhor: “porque à semelhança do vinho do Douro, Alicita, o Lavrador deixa a sua vinha predilecta amadurecer mais que as outras, para lhe aumentar o travo doce e, daí, irradiar um perfume inigualável” (Monteiro 2001: 65). Vendo que os seus esforços saíam sempre defraudados, que não conseguiam lutar contra aquela menina, essas mulheres mataram-se ao ingerirem comprimidos à base de morfina e estricnina. Por causa de Alice, Luís tinha sido expulso daquela casa e agora não o voltariam a ver: Foi depois do canto do galo que a criada irrompeu pela manhã aos gritos: as meninas estavam mortas! Ingeriram a quantidade exacta dos comprimidos à base de morfina e estricnina, com que o mau pai atenuava as garras do cancro nas carnes indefesas dos doentes. […] As tias puseram cobro à vida por causa do Luís; ou seja, pelo facto do meu pai o ter expulso de casa, por minha causa. Elas rejubilaram com as faces a arder, incitaram e apoiaram o papá. Mas logo definharam. (Monteiro 2001: 69) Como Alice ainda era pequena, nunca chegou a entender bem o que se passou entre Luís e as suas tias. Lembrava-se apenas do comportamento estranho que Elisa e Augusta apresentavam quando ela estava com Luís: as tias passaram a importunar o Luís a propósito de tudo e de nada. Invadiam as aulas com bules de chá, tiravam-nos das equações a propósito dos bolos no forno […] Convidavam-no frequentemente para jantar, e antes de se sentarem ao piano, mandavamme para a cama. Despenteavam-no, despiam-no, tragavam-no com suculentos beijos, bebiam-lhe a vida em cada poro da pele – e isto, só com o olhar. 47 (Monteiro 2001: 70) O italico é da responsabilidade da Autora. 67 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Essa falta de proximidade com os seus familiares é evidenciada quando, na sua carta, relatada, por essa razão, em primeira pessoa, Alice escreve que se achava a degenerada da família. Alice considera que tem de haver sempre um degenerado na família de modo a haver um exemplo de desobediência filial para que se consigam dissuadir os vindouros de enveredarem pelos caminhos da fraqueza e do vício, pois em todas as famílias há sempre uma página do álbum de fotografias que fica vazia (cf. Monteiro 2001: 69). A explicação para este mau relacionamento que Alice tinha com a família desde que era menina é-nos dada pela Duquesa: a vida é imprevisível, visto que não comandamos o nosso destino, ele é que dita os nossos passos. Como tal, também não comandamos os actos daqueles que nos são próximos e que, muitas vezes, nos magoam ou nos desiludem – “nunca se pode confiar nos ases e reis que nos calha do baralho, porque a qualquer instante alguém surgirá com um grande trunfo para nos derrotar; mesmo quando se tem a certeza de que não há trunfos para se jogar” (Monteiro 2001: 99). A verdadeira família não é aquela que nos transmite os laços de sangue, mas sim aquela que nos dá carinho e compreensão, aquela que mantém uma relação estreita connosco. Na verdade, Alice foi traída pelas circunstâncias da vida e, por isso, como pensa Ema, Alice perdeu muito, demasiado cedo: perdeu Luís ainda pequena, perdeu o respeito do marido e o amor dos filhos. 68 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro 4.2. O primeiro amor Quando Lolita e Alice da narrativa O Estranho Amável se tornam mais próximas, Lolita confessa a Alice ter tido inveja dela quando ela era pequena, principalmente devido à ternura que o homem de chapéu alto demonstrava quando brincava com ela (cf. Monteiro 2001: 32). Alice não se lembrava desse homem, mas Lolita informa-a que foi por causa dele que o seu pai tinha ido quase à ruína e lembra-lhe que ele a “ensinava a ler e a escrever. Ele era escritor e também dava lições a meninos ricos.” (Monteiro 2001: 32). Na altura, aquele homem – o Luís – apaixonou-se por Alice e chegou a escrever-lhe livros. Até falou em tribunal do segredo que ambos partilhavam, facto que nos faz lembrar a personagem Humbert de Nabokov, o qual defendeu em tribunal o amor que sentia por Lolita48. Por isso, a Lolita de Luísa Monteiro sentia ciúmes de Alice, já que ela tinha o amor de um homem que não demonstrava medo de o reconhecer em público. Luís tinha na altura vinte e sete anos e Alice apenas cinco. Por esse motivo, não podia expressar os seus sentimentos a Alice, nem imaginá-la deitada a seu lado. O seu estado emocional ficou conturbado e ele deixou de comer, deixou de dormir, estando sempre envolto em ansiedade: Se na altura eu pudesse dizer-lhe em pensamento o que me ia na alma, outra paz repousaria então no meu olhar; dizer-lhe que a amava, não podia, sequer ousava imaginar o seu rosto deitado ao lado do meu. Era uma inquietação permanente. Não dormia, não suportava a comida e transpirava de ansiedades estranhas, como só um louco se dilui no estertor da ilusão. (Monteiro 2001: 127) Na altura, ele tinha uma noiva, Ana. Não a amava como amava Alice e, por isso, mentia e pecava quando dizia que a amava, apenas a desejava fisicamente. Contudo, sentia admiração por Ana, o que é notório na forma terna como a descreve: “belo rosto, branco e macio como teriam as pupilas de Safo. Era de uma ternura lunar os seus olhos traquinas; tal como eu, tinha já alguns cabelos grisalhos, o que lhe aumentava o encanto” (Monteiro 2001: 127). 48 “Ladies and gentlemen of the jury, exhibit number one is what the seraphs, the misinformed, simple, noblewinged seraphs, envied. Look at this tangle of thorns.”; “For reasons that may appear more obvious than they really are, I am opposed to capital punishment; this attitude will be, I trust, shared by the sentencing judge.” (Nabokov 1989: 9-307). 69 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Apesar de Luís adorar Ana, ela não o completava verdadeiramente e não era a ela que a sua alma pertencia, mas sim à infantilidade de Alice. Só no amor de Alice, um amor desprovido da necessidade de matéria, podia encontrar a paz, a verdadeira razão e até Deus (cf. Monteiro 2001: 128). Ana não entendia esse sentimento que Luís demonstrava por essa criança. Quando Luís tocou pela primeira vez em Alice e sentiu um arrepio intenso, decidiu partir: Uma vez tive medo de mim; a Alice levava os dedinhos ao queixo para contar os números que tinha de subtrair. Toquei-lhe numa madeixa de cabelo e experimentei um arrepio tão intenso, uma sensação tão sedutora que não duvidei tratar-se de uma partida satânica que a vida me estava a pregar. No dia seguinte, disse ao seu pai que não poderia continuar a dar-lhe aulas, iria embora. (Monteiro 2001: 128) Como admirava Ana e queria com ela constituir família, Luís confessou-lhe esse facto. Não lhe poderia esconder o lado mau do seu espírito. Ana, demonstrando mais uma vez esse estranhamento relativamente ao sentimento de Luís por Alice, denunciou-o – “A Ana era frágil, mas tinha momentos de grande impetuosidade, como as gatas mansas que, imprevisivelmente, em determinadas luas, são descobertas com penas na boca, rondando os galinheiros de unhas afiadas” (Monteiro 2001: 128) – e, por isso, o pai de Alice chamou-o à sua presença e agrediu-o. Elisa e Augusta revelaram também, na altura, estarem apaixonadas por ele e acusaram-no de ser um canalha que alimentara a expectativa de um dia casar com uma delas. Ninguém era capaz de entender que ele apenas pretendia encontrar Deus através de uma criança (cf. Monteiro 2001: 128-129). Este sentimento que Luís nutria por Alice e a relação que estabelecia com outra mulher, faz-nos lembrar um pouco a vida da personagem Humbert de Nabokov, embora o amor que ele sentia por Lolita fosse provido da necessidade de matéria e não sentisse grande admiração por Mrs Haze. Humbert descrevia Lolita como: “LOLITA, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul.” (Nabokov 1989: 9). No que diz respeito à sua futura mulher, não a descrevia tão carinhosamente como Luís fazia relativamente a Ana: “The poor lady was in her middle thirties, she had a shiny forehead, plucked eyebrows and quite simple but not unattractive features of a type that may be defined as a weak solution of Marlene Dietrich.” (Nabokov 1989: 37). Chegava a apelidá-la de gorda – “that big Haze” (Nabokov 1989: 51) – e de mulher, num tom impessoal – “and L. was between the woman and me” (Nabokov 1989: 45). 70 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Humbert afirmava que Mrs Haze estava completamente eliminada da sua vida amorosa, pois só queria Lolita: “Her mother is messily but instantly and permanently eliminated, along with everybody else for miles around.” (Nabokov 1989: 52). Humbert reagia, também, de forma contrária a Luís para conseguir estar perto da sua amada. Enquanto Luís contou os seus sentimentos a Ana, Humbert escondeu o que sentia verdadeiramente a Charlotte e decidiu casar com ela enganando-a: I did not plan to marry poor Charlotte in order to eliminate her in some vulgar, gruesome and dangerous manner such as killing her by placing five bichloride-of-mercury tablets in her preprandial sherry or anything like that; but a delicately allied, pharmacopoeial thought did tinkle in my sonorous and clouded brain. (Nabokov 1989: 70); Wishing to spare poor Charlotte two or three hours of suspense on a winding road […] I made a thoughtful but abortive attempt to reach her at the camp by telephone. She had left half an hour before, and getting Lo instead, I told her – trembling and brimming with my mastery over fate – that I was going to marry her mother. (Nabokov 1989: 71) Apesar de Humbert achar Charlotte ridícula – “rather ridiculous” (Nabokov 1989: 75) – com a convivência vai-lhe encontrando virtudes: Never had I thought that […] Mrs Haze […] could turn into such a touching, helpless creature as soon as I laid my hands upon her which happened on the threshold of Lolita’s room whither she tremulously backed repeating ‘no, no, please no’. The transformation improved her looks. Her smile that had been such a contrived thing, thenceforth became the radiance of utter adoration […] Deeply fascinated, I would watch Charlotte while she swapped parental woes with some other lady and made that national grimace of feminine resignation […] which, in an infantile form I had seen Lo making herself. (Nabokov 1989: 75) Quando Charlotte descobre que Humbert se casou com ela para estar perto da sua amada Lolita, fica furiosa com ele e ameaça afastá-lo para sempre daquela criança: My fair accuser stopped, swallowing her venom and her tears. Whatever Humbert Humbert said – or attempted to say – is inessential. She went on: ‘You’re a monster. You’re a detestable, abominable, criminal fraud. If you come near – I’ll scream out the window. Get back!’ 71 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Again, whatever H.H. murmured may be omitted, I think. ‘I am leaving tonight. This is all yours. Only you’ll never, never see that miserable brat again. Get out of this room.’ (Nabokov 1989: 95) Como nos apercebemos, tal como Humbert foi ameaçado por Mrs Haze de nunca mais ver a sua Lolita, Luís ficou impedido de ver Alice devido à denúncia feita por Ana. Depois do incidente em casa do pai de Alice, Luís nunca mais se deu a ninguém. Ele próprio diz caber em toda a mão de Alice, pois tinha sido ela a única mulher da sua vida (cf. Monteiro 2001: 52). Por isso, apesar de ele compreender que a poligamia num homem é normal – o que faz com que os homens vejam as mulheres iguais umas às outras –, ele nunca escolheu esse caminho, não só porque nunca conheceu mulheres iguais umas às outras, mas também porque o amor verdadeiro é exclusivo e transforma o Homem: Nesses casos, é como se cada mulher fosse a réplica de uma outra. Exactamente todas iguais. E dessas, eu nunca conheci. Há quem meça a virilidade pelo número de conquistas. Obtém-se vezes sem conta uma fiel repetição – uma tolice, porque é uma competição. […] Quando se chega a um ponto elevado dessa competição, não há espaço para admirar os semelhantes, restando apenas o desprezo. O desprezo é um vício – torna o ser mais dependente dos outros do que um drogado do seu pó maravilha. Claro que a poligamia é natural, mas o amor sempre impõe exclusividade. (Monteiro 2001: 53) Assim, Luís, que já é um homem maduro, ainda é virgem, porque, na relação que manteve com Ana, o único contacto que os dois realizaram foi um beijo na cara: Nunca lhe toquei. Nem um beijo? Beijei na face; era o que eu mais desejava nela. Os seus lábios na face dela resultavam num sabor a alperce, depois, quando os humedecia com a língua? Sim, sabiam a alperce… mas às vezes a baunilha. Eu também gostava de ter beijado a sua Ana, senhor Luís. O senhor está a dizer-me que é virgem? Sim, sou e não tenho vergonha disso. (Monteiro 2001: 130) Aquele sentimento que nutria por Alice fazia-o anular-se a si próprio: Nem me recordo da data em que nasci. Sempre e só me recordei de si, como se a sua imagem me sugasse do sono da morte e me arrastasse para a superfície como um pedaço de madeira à deriva depois de um naufrágio. (Monteiro 2001: 38). 72 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Por este motivo, Luís nunca a prenderia nos seus braços, pois ele é que se sentia prisioneiro dos encantos de Alice. Quando Luís e Alice se tocaram pela primeira vez, ele até corou: Ficaram em silêncio. Ela procurou-lhe a mão. Enlaçaram os dedos, trémulos, como que para não apertar demasiado, ou demasiada que era a emoção de sentirem a pele um do outro. Era a primeira vez que se tocavam. Luís corou e umas pérolas minúsculas de suor brotaram na testa lisa e pequena de Alice. (Monteiro 2001: 50) Vindo esse sentimento da alma, a intenção de Luís para com Alice era a de passear com ela de mão dada, nem que fosse só por um instante; não a beijaria, nem lhe tocaria, não precisava disso para atingir toda a felicidade (cf. Monteiro 2001: 51). Quando Alice sabe da virgindade de Luís, conta-lhe que também se sente virgem, porque nunca se deu ao seu verdadeiro amor (cf. Monteiro 2001: 130) – o Luís. Agora que o tinha encontrado, esse sentimento não podia ser mais perfeito (cf. Monteiro 2001: 38). Não é, assim, de estranhar que a designação ‘estranho amável’ seja substituída por ‘estranho amante’, ou seja, aquele que ela amou de verdade (cf. Monteiro 2001: 53). As suas almas combinavam-se e isso é notório no “prazer inefável” (Monteiro 2001: 36) que lhes invadia o corpo quando partilhavam um espaço e um tempo só seus. Esse espaço será, no final da narrativa, outro mundo, o do outro lado do espelho, onde eles podem realmente concretizar todos os seus sonhos. Alice e Luís sentiam-se cúmplices, e isso não teria acontecido se não tivesse havido aquele afastamento quando Alice ainda era pequena e ele era seu professor. Como o homem não sabe bem o que é a mulher nem a mulher sabe bem o que é o homem, com aquele afastamento conseguiram amadurecer esse entendimento e agora a cumplicidade era maior (cf. Monteiro 2001: 37). Realmente, Luís rejuvenesceu, nasceu de novo ao ter encontrado o seu amor (cf. Monteiro 2001: 127). Só que essa felicidade, quando está consolidada, parece condenada: Alice sente dúvidas em casar com Luís, porque pensa que nunca poderá vir a ser uma boa companheira de um intelectual já que estes “são preguiçosos, adoram que as mulheres façam petiscos e digam palavrões na cama” (Monteiro 2001: 135); Alice pensa que um intelectual é um falhado porque recorre aos prazeres da mente por não encontrar outros fora de si mesmo, é pobre de espírito e com o tempo torna-se mesquinho, caprichoso e parasita; Alice sente-se enganada por Luís esconder ser S.Luís, o protector dos protectores dos animais; assim, Alice pensa que ele demonstrava esse sentimento forte por ela só pelo facto de ela nutrir um carinho 73 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro especial pelos animais (cf. Monteiro 2001: 136); Como Alice sofre de Alzheimer, pode, a qualquer momento, deixar de reconhecer as pessoas que contactam com ela: “A qualquer momento, Alice poderia apagar-se para sempre, lampejando talvez por breves instantes, ocasionalmente” (Monteiro 2001: 130). Apenas resta a Luís passar os dias a fazer-lhe companhia, esperando que esse momento aconteça: “Acabar-se-lhe-iam os risos de menina, as interrogações sábias de tão simples, as afirmações que ela fazia tão óbvias que quase cegavam de lucidez… acabava-se a semente para estagnar em flor.” (Monteiro 2001: 130). Pouco depois da mente de Alice ter deixado de reconhecer o mundo real e ter passado definitivamente para o mundo do sonho, Luís beijou o seu rosto e prendeu-lhe um dos caracóis do cabelo atrás da orelha. Depois, tomou Chuchinha nos braços como se fosse um recém-nascido, como se fosse um filho dos dois: “e tomou Chuchinha nos braços como se segura um recém-nascido” (Monteiro 2001: 139). Uma lágrima rolou pela face de Alice ao assistir a essa acção de Luís. Não conseguindo suportar o fardo de estar longe de Alice, Luís decidiu partir também para o mundo de fantasia, onde Alice a mente de Alice se encontrava. Junto de Alice, Luís volta a recorda-lhe as suas verdadeiras intenções: a minha intenção para consigo, menina Alice, é a de […] passear com a mão dada à sua, por um só instante que seja; […] nem a beijarei sequer, sequer sentirá o peso das minhas mãos, não conhecerei os seus aromas ou cores, prometo sequer respirar ao seu lado, mas venha um só instante que seja, passear comigo, de mão dada; para num só instante acreditar que eu a enlouqueço, porque é a menina quem me devora, quem ri da minha liberdade encarcerada, há tanto tempo, na sua timidez, Alice. (Monteiro 2001: 140) A relação entre Lolita e Vladimiro, que é uma relação fantasiada por Lolita, não durou para sempre. Lolita conta, numa primeira versão, que Vladimiro se lançou ao mar para pescar atum de forma a poder ganhar dinheiro para lhe comprar um vestido novo (cf. Monteiro 2001: 33). Mas, mais tarde, no almoço na cantina do novo centro paroquial, quando Lolita relembra o seu Vladimiro, acaba por admitir que ele voltou à praia a sucumbir, acabando por falecer: Os olhos avermelharam. Depois de uma pausa, prosseguiu: eu ainda não lhe disse; o Vladimiro só morreu depois de ter dado ao areal, ou antes, depois de eu ter beijado os seus lábios roxos. […] Ao abrir os olhos, os pescadores à sua volta admiraram-se com as centelhas de luminosidade que pareciam jorrar da harmonia do coração. Sorriu para mim. Era estranho que albergasse de um momento para outro tamanha tempestade de triunfo e 74 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro luz; tratava-se, sem dúvida, do seu canto do cisne. Depois, uma palidez de líquen ou de alga cinzenta das profundezas do mar, soterrara-lhe aquele efémero rubor de vida. Morreu. (Monteiro 2001: 86-87) No fim do almoço, quando tomam um cálice, Lolita, mais uma vez, relembra o seu Vladimiro que não passava sem beber um cálice depois do jantar. Tinha sido irónica a forma como ele tinha falecido, visto que ele se tinha tornado pescador e estava habituado a lidar com o mar. Mesmo a memória da bofetada que ele lhe deu, de momento é preciosa para ela, embora na altura ela o tivesse odiado (cf. Monteiro 2001: 86). Também na obra Lolita de Nabokov, Humbert agride Lolita: “Lo looked up with a semi-smile of surprise and without a word I delivered a tremendous backhand cut that caught her smack on her hot hard little cheekbone.” (Nabokov 1989: 225). Vladimiro teve esse gesto violento para com Lolita porque estava com ciúmes de um armador que tinha oferecido um ramo de flores à sua amada. O ciúme demonstrado por Vladimiro elevou a autoconfiança de Lolita, sendo este um sinal de que ele a amava: Um armador apaixonou-se por mim e impedido de ver a razão […], resolveu num dia soalheiro oferecer-me um ramo de buganvílias vermelhas com jacarandás azuis; mandou uma criança entregar-mo. Aceitei e Vladimiro pensou que eu estaria a responder à loucura do armador. O ciúme do nosso parceiro sugere a possibilidade de nos apaixonarmos por alguém, e não alguém por nós – como isso nos exalta a autoconfiança! Sim, porque é terrível viver-se com alguém que por nós não sinta ciúmes; ficamos tão banalizadas quanto um pequeno favo de mel numa colmeia que se perde de vista; (Monteiro 2001: 86) Lolita acreditava que, no Paraíso, Vladimiro teria adquirido a forma de uma pequena e graciosa raposa (cf. Monteiro 2001: 87-140). A sabedoria africana descreve a raposa como um ser “semper peccator, semper justus”: um ser independente, mas satisfeito por sê-lo; activo, inventivo, mas ao mesmo tempo destruidor; audacioso, mas também medroso; inquieto, astucioso e desenvolto, encarnando, portanto, as contradições inerentes à condição humana. Ao reflectir como um espelho as contradições humanas, a raposa poderia ser considerada como um duplo da consciência humana. Para os chineses, a raposa é o único animal que saúda o nascer do sol: dobra as patas de trás, alonga e junta as patas da frente e prostra-se. Se fizer isto durante vários anos, a 75 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro raposa será capaz de viver no meio dos homens sem chamar a sua atenção (cf. Chevalier e Gheerbrant 1982: 561-562). Vladimiro aparece, nesta narrativa, como uma personificação do ser humano com os seus defeitos e virtudes, com a sua coragem e os seus medos: depois de uma vida de sofrimento e decepções, Lolita encontrou nesta personagem que inventou um novo alento para continuar a viver. Ao construir esta personagem, Lolita alheou-se de tudo o que a fazia infeliz e inventou um ser com defeitos e virtudes, corajoso, mas também cauteloso, acima de tudo, um ser que transmitia esperança num mundo melhor, pois Lolita sabia que, para sobrevivermos, é preciso sonhar: “Creio piamente que se encontra agora, tal como ele desejava, na forma de uma pequena e graciosa raposa […] Cantará, por certo, ao eco, que não é uma pequena raposa; é muitas pequenas raposas” (Monteiro 2005: 87). Também o amor entre Alice e Luís personificava essa esperança num mundo melhor. Luís admirava o carácter sonhador que Alice apresentava em criança, e, por essa razão, ajudou-a a explorá-lo. Alice nunca vai deixar de contactar com esse espaço fantástico, mesmo quando está afastada de Luís. Quando estes dois seres se voltam a encontrar, Alice é uma mulher casada e com filhos. A sua relação com Luís não pode ser realizada: num primeiro momento, os filhos de Alice são contra a relação porque desejam que a sua mãe volte a viver com o seu pai, e, num segundo momento, Alice encontra-se com um estado de saúde debilitado e a sua mente pode deixar de reconhecer o mundo real a qualquer momento. Assim, esse espaço imaginário que Alice constrói como fuga ao mundo real, é o único sítio onde estas duas personagens poderão encontrar a verdadeira felicidade, visto que voltam a ser crianças e, acima de tudo, voltam a ser livres, não precisando, portanto, de respeitar nenhuma norma social que os impeça de perpetrar o seu amor. 76 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro 4.3. Amor absoluto à natureza Na narrativa A Guardadora de Gansos, a personagem Vita sentia uma grande amizade pelo seu pai. Ela diz mesmo que era a sua videira predilecta, o que deixava as suas irmãs mais velhas enciumadas (cf. Monteiro 2005: 22). Foi ele que a ensinou a amar a terra. Quando Vita tinha apenas catorze anos, o seu pai morreu de um ataque cardíaco fulminante – “agarrado ao lado esquerdo do peito, os olhos revirados, esperneando no chão” (Monteiro 2005: 37) –, facto que a vai marcar toda a vida: Mas não consegui olhar para o meu pai morto, branco e frio como uma estátua de sal, ostentando um fato muito negro, uma gravata muito negra, as mãos falsas entrelaçadas sobre o peito traiçoeiro. Fiz várias tentativas para permanecer na capela, mas o choro vinha-me ao peito como um vómito de lava. Precisava de ar constantemente […] A imagem do bombeiro de pedra com uma rapariguinha morta nos braços fundia-se na de meu pai branco e frio esticado dentro de um fato negro lá dentro. […] O pai não me olhava, não me falava, não estendia a mão… (Monteiro 2005: 38) No entanto, o amor que Vita sentia pelo pai vai ser superado pelo amor à natureza que se torna, assim, absoluto: Vita adorava tocar a terra, respirar o vento – “cheira o aceno perfumado das dedaleiras na despedida do vento que lhe faz cócegas na pele molhada” (Monteiro 2005: 12) – e deslizar na água – “ao caminhar em movimento contrário ao das águas da ribeira” (Monteiro 2005: 12). Ao longo da narrativa, é notória a ânsia de comunhão de Vita com a natureza: Desde o despertar da aurora até à sua gravidez de tarde tudo era fascinação aos meus sentidos; e quando o sol cobria com uma fina película de luz alaranjada o horizonte, eu sentia que se tratava da placenta da terra no instante do dilúvio das águas – para que um novo líquido surgisse para harmonizar o caos. (Monteiro 2005: 26) Para ela, esta não era só bela, mas também harmoniosa, onde o ser humano podia reflectir, descansar e ordenar o mundo à sua volta. Além disso, funcionava como elo de ligação às origens genéticas e culturais. Por este motivo, Vita faz várias vezes alusão à vindima e conta que, na altura da recolha do bagaço, as mulheres contavam episódios de bruxas cheias de ronha, de mulheres que ao longo de sete noites corriam transformadas em cabras brancas, ou homens que se transformavam em lobos, ou seja, lendas ou contos 77 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro fantásticos que povoam o imaginário das gentes do interior de Portugal (cf. Monteiro 2005: 26). O aniversário de Vita era na Primavera, mas seu pai festejava-o no Outono, na altura das vindimas, demonstrando uma relação próxima com a videira e o seu fruto. Essa necessidade de estar em constante contacto com a vinha é explicada fazendo alusão à simbologia da videira49: garantia de vida. Como Vita sabia que, por ser a mais nova de três filhas (cf. Monteiro 2005: 25), estava destinada à morte tentava contactar com o vinho como tentativa de conseguir alcançar a imortalidade – “ele é, por conseguinte, a bebida de vida ou de imortalidade” (Chevalier e Gheerbrant 1982: 694)50. Na quinta de seu pai, Vita sentia-se livre e, por essa razão, a disciplina incomodava-a e ela considerava a escola como uma ladra que lhe roubava o que ela mais amava: a vinha, ou seja, o contacto com a terra. Portanto, desejava ser sempre uma criança sem ter que passar pela “provação” que era a disciplina (cf. Monteiro 2005: 15-16): Eu soube-me livre. Aquilo a que absurdamente chamam de disciplina incomodava-me e a escola era a ladra que me roubava aos cheiros das adegas e ao calor das parras […] Do que eu gostava era de me deitar sob as ramadas, no chão atapetado de ervas e agulhas lascadas das videiras e ver as uvas amadurecerem. Sabia de cor todos os cambiantes de cor dos cachos, os seus múltiplos sabores e tamanhos. (Monteiro 2005: 21) Não queria, por essa razão, ir à escola, pois ali não havia pinóquios, rios, cheiro a vinhas ou a carnudos anõezinhos Verd’Água (cf. Monteiro 2005: 16). Na verdade, ela achava que a escola era algo insustentável para quem queria ser livre – “as celas que me aprisionariam por mais um ano, cada uma com a sua tortura específica em horas e dias rigorosamente programados” (Monteiro 2005: 27). 49 Desde a origem, portanto, que o simbolismo da videira tem um aspecto eminentemente positivo. A videira é, acima de tudo, propriedade, e, por conseguinte, a garantia da vida e aquilo que lhe dá o seu preço: um dos bens mais preciosos do homem […] Em iconografia, a videira é muitas vezes uma representação da Árvore da Vida. […] Tal como a videira era a expressão vegetal da imortalidade, também o álcool permaneceu, nas tradições arcaicas, como o símbolo da juventude e da vida eterna (Chevalier e Gheerbrant 1982: 693-694) O negrito é da responsabilidade dos Autores. 50 O itálico é da responsabilidade dos Autores. 78 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Para além de manter uma relação conflituosa com essa instituição, Vita também não queria amar outros seres, pois tinha medo de perder o amor que sentia pela vinha. Em consequência, não fazia amigos, o que tornava esse amor pela vinha exclusivo: “eu nunca correspondia a qualquer manifestação de simpatia ou amizade – com o riso conquistam-se corações; e as paixões pelos seres roubar-me-iam à vinha – pois é sabido que o maior inimigo da liberdade é o amor ao próximo” (Monteiro 2005: 22). Chegou mesmo a comparar o amor, sem ser o amor pela terra, a um Bicho que lhe cheirava a “mijo” (Monteiro 2005: 22). Quando Vita se vê obrigada a vender a quinta por se encontrar na falência, o novo proprietário, o porqueiro, despediu os dezassete caseiros tão importantes no mundo de Vita. Fê-los partir durante a noite, o que a desgostou, visto que os perdia para sempre: “Perdia-os para sempre, perdia as suas histórias contadas ao lusco-fusco no tempo das vindimas. E aquelas histórias eram os guizos de ouro da minha existência” (Monteiro 2005: 40). Tinha perdido o seu pai e agora os gansos, irremediavelmente. Esses desgostos envelheceram-na (cf. Monteiro 2005: 40), o que se tornou visível na transformação da cor dos seus cabelos: tornaram-se cabelos cor de prata51. Decidiu não ficar na quinta devido ao seu orgulho que era maior do que o sentimento que nutria pela vinha (cf. Monteiro 2005: 40): “Esboroo a fatia mais fina da vida na mesa da família vazia; partirei mesmo que todas as vinhas se enlacem aos meus pés e os girassóis me ocultem a lua;” (Monteiro 2005: 41). Mas partir para ela significava abrir a porta à solidão e à tristeza. Como deixa de estar em contacto com essa cultura dos seus antepassados, Vita vai relembrar constantemente o tempo da sua infância como modo de se sentir realizada: “Saudades de saudades imaginadas”; “Ainda sabe as canções floridas das mulheres de lenço na cabeça e ancas redondas e cheias” (Monteiro 2005: 74-75). Por esse motivo, para Vita, estar crescida significava morrer um pouco, pois o passado que ela amava desvanecia-se. Era preciso, desse modo, renascer, mas para renascer precisava de uma nova paixão e ela só amava a quinta e as suas histórias: O primeiro dia de escola é feito para se experimentar o sabor ainda pouco apaladado de faltar às aulas. Por isso, fui-me demorando pelo caminho entre as videiras já 51 a prata é o princípio passivo, feminino, lunar, aquoso, frio […] Branca e luminosa, a prata é também símbolo de pureza, de toda a espécie de pureza. […] Na simbologia cristã, representa a sabedoria divina […] Mas a prata, no plano da ética, simboliza também o objecto de todas as cobiças e as desgraças que estas provocam, assim como o aviltamento da consciência: é o seu aspecto negativo, a perversão do seu valor. (Chevalier e Gheerbrant 1982: 541). 79 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro podadas. […] Mas não sentia qualquer vontade de conhecer outras crianças – eu estava bonita para a vinha e sentia-me impar ao imaginar-me dona daquelas longas parcelas de videiras. Casar-me-ia um dia com a terra e as minhas noites seriam na adega a escrever os contos que os caseiros me contavam. (Monteiro 2005: 18) Vita irá viver para a cidade, mas lá não é feliz – “e eu nunca fui urbana”, “na cidade que não era minha” (Monteiro 2005: 22-43). O Presidente da Câmara ofereceu-lhe trabalho na autarquia por ser amigo de seu pai, mas ela não gostava do seu emprego, sentia-se confinada a um espaço pequeno, sentia-se uma prisioneira (cf. Monteiro 2005: 43). Quando ia trabalhar, Vita sentia-se, portanto, desnudada de si mesma: “O sol morre em mim e nos meus olhos definha toda a claridade do mundo. Desnudada vou pelo vento parabolizando a ilicitude da luz” (Monteiro 2005: 44-45). Depois do expediente, passava pelo parque com gansos preguiçosos e lá meditava acerca da sua vida. Um dia, decidiu escrever um poema intitulado “A cor da romã”. Nele exprimiu a dor que sentia por ter perdido o que mais amava e estar confinada a viver no meio da civilização: “como um rato de esgoto eu observo tudo/ à lupa dos sentidos entristecidos/ sem vontade das migalhas dos celeiros abandonados/ mas com a fome apenas/ de olhar o que não desejo – nem creio/ e por isso não crio.” (Monteiro 2005: 44). Quando Vita observa a civilização sente-se triste, pois tudo o que ela vê não lhe traz a felicidade que o contacto com a terra lhe dava: “ – todos nos tornamos (entronamos, entornamos) / [escravos;/ beber café, cidadãos cruci-/ fixados, é um dever, uma obrigação, / um prefixo da civilização (…) pátria suja a quem a modernidade trouxe apenas/ dois poetas e a bica expresso” (Monteiro 2005: 29). Vita pretende demonstrar que a civilização nos aprisiona, visto que, como é obra do ser humano, impõe regras, que o tornam um ser dependente de um sistema jurídico, político, económico e social e, portanto, esse ser deixa de ser criativo, livre e feliz. Vita sente que só a natureza, que criou o ser humano, não impõe regras ou preceitos e transforma o Homem num ser feliz, visto que esta não é corrompida por normas ou valores corruptos e está em constante evolução e renovação. Só no meio da natureza podemos aspirar à perfeição e à liberdade, pois não somos julgados, nem reprimidos por uma sociedade com a qual não nos identificamos e podemos ser aquilo que realmente desejamos. Na natureza, tomamos contacto com as nossas origens genéticas e culturais, travando, assim, uma aprendizagem acerca do que somos e qual o nosso papel no mundo. 80 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro 4.4. Efemeridade da Vida Alice de O Estranho Amável tem consciência que passou de menina a velha, não houve para ela um estado intermédio entre a infância e a velhice. Foi criança e depois velha (Monteiro 2001: 62). Este factor foi causado pelas circunstâncias da vida: perda de Luís, os conflitos existentes entre ele e a família dela, a ruína de seu pai e o seu casamento falhado. Teve, por essas razões, de amadurecer rapidamente, o que a fez sentir desde cedo muito próxima da morte. A consciência de que a vida é efémera também acompanha Vita de A Guardadora de Gansos desde que era uma menina. Desde cedo, ela sabe que o seu destino está marcado e que nada pode fazer para evitar a morte. Por essa razão, tem medo dela. Como já foi referido anteriormente, a narrativa A Guardadora de Gansos é contada a três vozes, uma delas é a da própria personagem principal, Vita. Outra voz é a das personagens Pinóquio, Cinderela e Polegarzinha. A restante é a de duas figuras mitológicas: As Horas e As Moiras. As primeiras são as divindades das estações, ou seja, personificam a passagem das horas, do tempo: “As Horas são filhas de Zeus e de Témis e irmãs das Moiras. […] São três: Eunómia, Dice e Irene, ou seja: Disciplina, Justiça e Paz. Os Gregos, contudo, designavamnas: Talo, Auxo e Carpo, três nomes que evocam a ideia de nascer, crescer e frutificar” (Grimal 2004: 235). A arte representava estas figuras como três lindas donzelas com grandes túnicas recolhidas numa mão, realizando uma espécie de dança (cf. Martinez, Galiano, Melero 1997: 197). Estas vozes funcionam como uma segunda visão de Vita acerca das coisas, mas uma visão positiva. São, portanto, figuras simpáticas que relatam as transformações existentes na vida desta personagem e são ao mesmo tempo orientações de vida para Vita. As Moiras são a personificação do destino de cada ser humano, do quinhão que lhe cabe neste mundo. São também filhas de Zeus e Témis e irmãs das Horas. As três irmãs, Cloto, Láquesis e Átropo, dominam o destino de Vita desde o nascimento até à morte, com a ajuda de um fio que a primeira fia, a segunda enrola e a terceira corta, quando a vida correspondente acaba. A primeira preside ao nascimento de Vita, a segunda ao seu casamento e a terceira, a impiedosa, preside à sua morte (cf. Grimal 2004: 306-355). Hesíodo considerava-as filhas da Noite e a mentalidade popular imagina estas divindades como três velhas fiandeiras (Martinez, Galiano, Melero 1997: 247). 81 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro As Moiras funcionam, portanto, como um prenúncio da morte. Estas fazem Vita acreditar desde cedo que o seu destino já está traçado e que só poderá levar à dissolução: “Até a mais graciosa mulher morre macho e estéril. A função pública está cheia de falsas mulheres. Virá a morte e todos partirão: o mundo continua a dormir, no feitiço das cumplicidades.” (Monteiro 2005: 47). Após a morte do pai, Vita herdou a quinta que estava falida acabando por vendê-la. As duas irmãs herdam os três grandes prédios da cidade. Na obra Rei Lear de Shakespeare, também a filha mais nova sai prejudicada. O Rei, que ia renunciar ao poder, aos direitos sobre o reino e às preocupações de estado, quer saber qual das filhas o ama mais de modo a recompensar melhor esse amor. A filha mais velha, Gonerill, afirma que o pai é como a própria vida, a graça, a saúde, a beleza e a honra: Sir, I love you more than word can wield the matter, / Dearer than eyesight, space and liberty, / Beyond what can be valued rich or rare, / No less than life, with grace, health, beauty, honour, / As much as child e’er loved or father found; / A love that makes breath poor and speech unable;/ Beyond all manner of ‘so much’ I love you. (Shakespeare 2002: 163); A filha do meio, Regan, afirma o mesmo que a irmã e acrescenta que o amor do pai lhe enche a felicidade: I am made of that self mettle as my sister/ And price me at her worth. In my true heart/ I find she names my very deed of love; / Only she comes too short, that I profess/ Myself an enemy to all other joys/ Which the most precious square of sense possesses,/ And find I am alone felicitate/ In your dear highness’ love. (Shakespeare 2002: 163); A mais nova diz ao Rei que não pode traduzir em palavras o que sente e estranha o facto de as irmãs se terem casado depois de saberem que nutriam um amor absoluto pelo pai. Se ela casar, o seu marido só poderá ter metade do seu amor, mas provavelmente não casará para dedicar todo o seu amor ao pai: Unhappy that I am, I cannot heave/ My heart into my mouth. I love your majesty/ According to my bond, no more nor less. […] You have begot me, bred me, loved me./ I return those duties back as are right fit,/ Obey you, love you, and most honour you./ Why have my sisters husbands, if they say/ 82 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro They love you all? Haply when I shall wed, / That lord whose hand must take my plight shall carry/ Half my love with him, half my care and duty. / Sure I shall never marry like my sisters, / To love my father all. (Shakespeare 2002: 164) O discurso de Cordélia não agrada ao rei e ele decide renegá-la. Assim, enquanto Cordélia não herda nada e é expulsa do reino, Gonerill e Regan herdam o reino do pai dividido em partes iguais: Let it be so! Thy truth then be thy dower! / For by the sacred radiance of the sun,/ The mysteries of Hecat and the night,/ By all the operation of the orbs/ From whom we do exist, and cease to be,/ Here I disclaim all my paternal care,/ Propinquity and property of blood,/ And as a stranger to my heart and me/ Hold thee from this for ever. Peace, Kent! / Come not between the dragon and his wrath. / I loved her most, and thought to set my rest/ On her kind nursery. (To Cordelia) Hence and avoid/ my sight! - / So be my grave my peace as here I give/ Her father’s heart from her. Call France! Who stirs? / Call Burgundy! Cornwall and Albany,/ With my two daughters’ dowers digest the third./ Let pride, which she calls plainness, marry her./ I do invest you jointly with my power,/ Pre-eminence, and all the large effects/ That troop with majesty. Ourself by monthly course, / With reservation of an hundred knights, / By you to be sustained, shall our abode/ Make with you by due turn. Only we shall retain/ The name and all th’addition to a king; the sway, / Revenue, execution of the rest, / Beloved sons, be yours; which to confirm, / This coronet part between you. (Shakespeare 2002: 164-165)52 Tal como Cordélia é renegada por seu pai, também a princesa guardadora de gansos dos irmãos Grimm é obrigada a deixar o seu lar, porque afirma gostar do pai tanto como do sal53. Este condimento pode ter um significado ambivalente, pode significar conservação e destruição, mas, se atendermos ao seu sabor indestrutível, pode simbolizar a amizade (cf. Chevalier e Gheerbrant 1982: 582). O rei não interpretou bem o discurso da filha. Também Vita, a menor de três, herda o pior. Por isso, vai chamar o seu pai de “pai ingrato” (Monteiro 2005: 46) e vai acreditar que a desgraça recai sempre sobre a última das filhas, como aconteceu com Cordélia, Afrodite, Cinderela, Psique, a princesa guardadora de 52 O itálico é da responsabilidade do Autor. 53 But the youngest was silent. Then the father said, “And thou, my dearest child, how much dost thou love me?” “I do not know, and can compare my love with nothing.” But her father insisted that she should name something. So she said at last, “The best food does not please me without salt, therefore I love my father like salt” – ver apêndice. 83 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro gansos e a parca Átropos, porque a terceira significa última, portanto, significa a esterilidade que leva à morte: Porquê a mudez a recair sobre a terceira, sobre a última? Talvez porque saibamos todos que a última seja, precisamente, a última e que a mudez significa a morte. (…) Talvez por isso, a terceira das Moiras se chame Átropos, a inexorável. As encantadoras Horas bem tentam zelar pela ordem da Natureza, repondo as Estações, mas as Moiras sabem bem que a ordem da natureza sempre impele para a dissolução e para a morte. (Monteiro 2005: 63) Realmente, o três: é, universalmente, um número fundamental. Exprime uma ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmos ou no homem. Sintetiza a tri-unidade do ser vivo (…) A razão fundamental deste fenómeno ternário universal deve sem dúvida ser procurada numa metafísica do ser composto e contingente, numa visão global da unidade-complexidade de todo o ser na natureza, e que se resume nas três fases da existência: aparição, evolução, destruição (ou transformação); ou nascimento, crescimento, morte; ou ainda, segundo a tradição e astrologia: evolução, culminação, involução. (Chevalier e Gheerbrant 1982: 654-657) A própria relação que Vita mantém com o sexo oposto evidencia essa esterilidade que a vai acompanhar toda a vida. Vita não gostava de estar com os rapazes na escola, porque a envergonhavam, mas eles procuravam-na pelo seu aspecto. Ela tinha cabelos curtos e trabalhava na vinha, o que a fazia par deles e não uma rapariga que pudesse vir a fazer par com eles (cf. Monteiro 2005: 33). Apesar de Vita saber que é estéril, não vai desistir facilmente de procurar a fertilidade. Uma das suas flores predilectas é a orquídea. Para ela, esta flor é a expressão máxima da beleza. Na China antiga, as orquídeas eram associadas às festas da Primavera. Eram utilizadas para expulsar influências perniciosas como a esterilidade. A orquídea é o símbolo da fecundação, ela facilita a geração e é garantia de paternidade (cf. Chevalier e Gheerbrant 1982: 492). Compreendemos, assim, a razão pela qual ela acha a orquídea a expressão da máxima beleza, não só porque realmente é bela, mas porque é símbolo de fecundidade. Os poemas que escreve são intitulados “A cor da romã”. Esta cor 84 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro É, antes de mais, um símbolo de fecundidade, de posteridade numerosa […] Na Ásia, a imagem da romã aberta serve como expressão dos desejos, quando não designa expressamente vulva. O que confirmaria uma lenda duma imagem popular vietnamita: a romã abre-se e deixa sair cem crianças […] Igualmente no Gabão, esse fruto simboliza a fecundidade maternal. Na índia, as mulheres bebiam sumo de romã para combater a esterilidade. (Chevalier e Gheerbrant 1982: 574)54 Vita tem uma relação próxima com Lushka, não só por esta não se ter contaminado pelo disfarce, mas também porque é fértil. Através de Lushka, Vita poderá conservar a juventude: por isso, Vita compara Lushka ao jasmim que, como é uma flor, não morre, já que muitas vezes a flor simboliza a juventude (cf. Chevalier e Gheerbrant 1982: 330): “símbolo amplamente difundido da vida jovem” (Biederman 1994: 160). Por isso, num sonho que Vita teve numa noite de Primavera, Lushka sai de casa para desposar um marido e pede a Vita que mostre aos convivas o lençol da sua noite de núpcias, e deixa nas mãos dela o seu ovo que ovulava sobre si mesmo (Monteiro 2005: 53). O ovo: considerado como aquilo que contém o germe a partir do qual se desenvolverá a manifestação, é um símbolo universal e que se explica por si mesmo. O nascimento do mundo a partir de um ovo é uma ideia comum a Celtas, Gregos, Egípcios, Fenícios, Cananeus, Tibetanos, Hindus, Vietnamitas, Chineses, Japoneses, povos siberianos e indonésios, bem como a muitos outros. (…) O ovo é uma realidade primordial que contém em germe a multiplicidade dos seres. (Chevalier e Gheerbrant 1982: 497) O próprio quarto destinado a um possível filho de Leonardo e Vita demonstra essa busca pela fertilidade: na cama estava um quadro de Leonardo da Vinci, O Salvador, e as paredes e estantes estavam pintadas da cor da romã. Vita não o tinha colocado aquele quadro ali e pintado as paredes daquela cor por acaso. Na realidade, um filho seria a sua única salvação, pois não morreria depois da morte (cf. Monteiro 2005: 88). Como Vita tem consciência da sua esterilidade que a levará à dissolução, sente ciúmes da eternidade de Lushka e da sua liberdade – “Até ao pôr-do-sol, a sua mensagem, a sua notícia, o seu presente de amor hereditário está subjugado ao ciúme que Vita sente por Lushka, a ganso moscovita, a que esvoaçava por aí.” (Monteiro 2005: 72) – e considera o acto de fazer amor um sacrifício. Não o seria se desse frutos: 54 O negrito e o itálico são da responsabilidade dos Autores. 85 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro O acto de amor é uma lepra que morde o verde coração terno da espera que não sabe evitar o logro; […] O desejo disfarçado de donzela continuou a salpicar de beijos a boca que sugara a uva primogénita de todas as auroras, deixando, no final, afinal, o malestar do sacrifício. (Monteiro 2005: 72). Ao longo da narrativa, várias passagens evidenciam que Vita está destinada ao desaparecimento. A imagem que aparece repetidamente ao longo da narrativa, “um bombeiro de pedra a segurar nos braços uma rapariguinha morta” (Monteiro 2005: 28-38-43-70) é a representação da morte de Vita. O romance é iniciado com a referência à morte da mãe de Vita. Muitos contos de fadas são iniciados com a morte da mãe ou do pai das personagens principais, o que cria nelas problemas angustiantes, como a própria morte, ou o medo dela. Também Vita, que perdeu a mãe ao nascer e o pai ainda nova, vai temer a chegada da morte: “Eu não quero morrer depois da morte.” (Monteiro 2005: 57). Quando Vita afirma, aos vinte e oito anos, que conhece perfeitamente o lado trágico da vida (cf. Monteiro 2005: 49), está consciente do seu fim eminente: “Espera-me a morte. Antes, porém, o silêncio mostrará os meus sinais.” (Monteiro 2005: 65-67); “irei voar até à queda” (Monteiro 2005: 41). Quando atende o telefone e lhe dão a notícia de que irá receber um prémio pelo seu trabalho literário, ela recusa-o. Tem a noção de que quando um escritor é premiado já morreu ou está prestes a morrer – “depois a morte torna-se mais previsível e chamam-nos para prémios e exibições, como coisas velhas e raras de exibir pelas feiras.” (Monteiro 2005: 79) – e isso assusta-a. Quando ela vai a uma manifestação, chega à conclusão de que está tudo errado no mundo e de que não há esperança. Só no mundo da sua infância essa esperança existia e ela era feliz, porque era um mundo onde a palavra estava em constante evolução: “Grita porque os meninos amanhecem sob o céu de sangue; grita porque o amor amortalha-se em sudários de velhos e nas ruas portuguesas, mesmo sem salpicos de sangue, vive morta também e vestida de resignação a esperança.” (Monteiro 2005: 78). Por isso, ela afirma que no mundo está “O Bicho” (cf. Monteiro 2005: 81). Quando, cansada da sua vida que a está a levar à loucura, Vita decide morrer e cumprir o seu destino, demonstra que está destinada ao desaparecimento: 86 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Vita apresenta demissão da sua própria loucura; […] demite-se do mundo e segue os trilhos das ondas que lhe cobrirão a cabeça de seixos e algas… «Um dia, um menino encontrará um fóssil pequeno numa praia cheia de sol» – pensa por fim. (Monteiro 2005: 83); Quando fazia sete anos da morte de Vita, Leonardo decide reunir todos os escritos de Vita que andavam espalhados pela casa. Quando pega no relógio que ela usava no tempo de liceu, este deixou de trabalhar. Sabemos que o relógio aponta a passagem das horas e estas deixaram de passar, demonstrando que o tempo de Vita tinha acabado: Era o relógio pequeno e redondo que Vita usava no tempo de liceu, lembrou-se – e milhares de picadas minúsculas e finas cravaram-se-lhe nos olhos. Ainda trabalhou por mais uns segundos na sua mão e expirou de vez. Viu-o como um passarinho a quem se acode tarde demais e que falece inocente do tiro em mãos impotentes. (Monteiro 2005: 85) Na primeira parte da obra, todos os capítulos designam a idade de Vita. Todos eles estão numerados de sete em sete anos55, evidenciando os diferentes estágios de evolução na vida de Vita desde o nascimento até à morte. Como o número sete aponta a passagem dos vários ciclos da nossa vida, é anunciador da sua efemeridade. Por isso, com a passagem dos anos, e estando mais próxima da morte, a transformação mais notória em Vita é o facto de ela se ter tornado um pálido reflexo do que era na infância: “do lado de cá da janela a solidão de Vita é o pálido cadáver da infância num bosque de bronze e mármore com anjos de asas quebradas querendo cerrar os olhos.”; “Vita é o fim de tarde” (Monteiro 2005: 69-70): 55 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. O sete comporta, no entanto, uma ansiedade pelo facto de indicar a passagem do conhecido para o desconhecido: um ciclo encerrou-se, qual será o seguinte? […] Nos contos e nas lendas, este número exprime os Sete estados da matéria, os Sete graus da consciência, as sete etapas da evolução: consciência do corpo físico: desejos satisfeitos de forma elementar e brutal; consciência da inteligência da emoção: as pulsões complexificam-se com o sentimento e a imaginação; consciência da inteligência: o sujeito classifica, ordena, raciona; consciência da intuição: as relações com o inconsciente são percebidas; consciência da espiritualidade: desprendimento da vida material; consciência da vontade: que faz com que o saber passe para a acção; consciência da vida: que dirige toda a actividade para a vida eterna e para a salvação. (Chevalier e Gheerbrant 1982: 604-606). O itálico é da responsabilidade dos Autores. 87 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Vita está sentada à porta como um resto de vida, como um simples retalho do presente abolido que diz ao vento não haver amanhã (…) Os demónios do vinho aninhamse insones na sua velha figura que só tem como traição às Horas, nos olhos – às vezes – uma chispa de criança. Colheu já 42 bagos do cacho parco da vida. (Monteiro 2005: 79) Apesar de na altura Vita achar banal os caseiros lhe darem os parabéns (cf. Monteiro 2005: 25), com o passar do tempo, vai dar valor a esse momento, pois apercebe-se que os anos que lhe restam são poucos e o fim se aproxima. 88 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro 5. O uso do pastiche Como já foi referido anteriormente, e nas palavras de Massaud Moisés, o pastiche consiste numa obra que imita servilmente outra ou que mistura trechos de várias procedências. Luísa Monteiro também procede à mistura de textos de várias procedências nas duas narrativas em estudo, visto que os cenários e as personagens apresentados são semelhantes aos imaginados por outros Autores, nomeadamente Lewis Carroll, Vladimir Nabokov e Whilhelm e Jacob Grimm. A Autora procede à utilização do pastiche nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de modo a analisar de que forma as circunstâncias da vida, o meio onde a criança está inserida e a relação com a família, os amigos e o primeiro amor são importantes para a formação do carácter do ser humano. Em O Estranho Amável, Alice é uma idosa que sofre de Alzheimer e que se encontra internada num lar. Em criança vê-se afastada de Luís, o seu primeiro e único amor, devido a uma suspeita que ele tivesse abusado dela. Esse facto irá provocar um sentimento de perda em Alice, que só deixará de existir quando essa personagem e Luís se encontram de novo. Alice passará por um casamento falhado de onde resultarão filhos, que mais tarde não entenderão a sua forma de ser e estar na vida. Apesar de sofrer de Alzheimer, esta personagem tem momentos de lucidez que a ajudam a analisar o mundo à sua volta e a perceber que não se identifica com esse mundo envolvente. Assim, encontrará refúgio num mundo imaginário semelhante ao mundo alternativo que a personagem Alice de Lewis Carroll imaginou. Alice de Lewis Carroll é uma menina que tinha uma imaginação apurada e que inventou um mundo alternativo ao seu onde convivia com animais e objectos. Também Alice quando sonha imagina um mundo alternativo ao mundo real onde as personagens que convivem com ela são animais, notando-se, deste modo, a utilização do pastiche. Lolita é uma das personagens que convive com Alice no lar. Provinha de uma família humilde, que trabalhava para o pai de Alice. Conseguiu estudar e tornar-se numa mulher letrada e culta. No entanto, sofrerá um desgosto que envolverá o bom nome do seu marido e decide refugiar-se na obra de Nabokov para encontrar equilíbrio emocional: conta que se apaixonou pelo seu professor, o Vladimiro, e que fugiu com ele. A personagem Lolita de Valdimir Nabokov desperta um interesse amoroso num homem mais velho, Mr. Humbert, o qual decide fugir com ela. Vita de A Guardadora de Gansos é uma personagem que cresceu num meio rural, porque o seu pai era proprietário de uma quinta. Tinha duas irmãs com as quais não mantinha 89 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro um bom relacionamento e nunca conheceu a mãe que falecera quando ela nasceu. Com a morte do pai, Vita herda a quinta, mas não consegue geri-la. Terá de a vender e afastar-se do contacto com a natureza. Na cidade, a sua nova morada, não será feliz, pois sente-se asfixiada. Conhece Lushka e casa-se com Leonardo, mas também nesse momento não alcança a desejada felicidade. Então, refugia-se na escrita de modo a transportar a sua mente para o tempo de infância onde ela se sentia realizada. A partir desse momento, vai reproduzir os contos que ouviu dos caseiros do seu pai remetendo, desse modo, para a personagem a princesa guardadora de gansos de Whilhelm e Jacob Grimm. Tal como a personagem criada pelos irmãos Grimm guardava gansos e apresentava-se camuflada por uma máscara de forma a não ser reconhecida, também Vita escondia a sua verdadeira maneira de ser, porque não se identificava com a sociedade onde estava inserida, e guardou sempre na sua memória os momentos inesquecíveis da sua infância perdida. Apercebemo-nos que nas narrativas em estudo, Luísa Monteiro faz referência a personagens que nas obras dos autores imitados são crianças, mas que nas suas narrativas são adultos com um passado sofrido. Por isso, a Autora utiliza o pastiche para, a partir da realidade vivida pelas personagens imaginadas por Lewis Carroll, Nabokov e os irmãos Grimm, criar uma nova realidade. Nessa realidade, as personagens são adultos que experimentaram diferentes circunstâncias na sua vida e formaram, por essa razão, diferentes personalidades. Apesar disso, as personagens Alice, Lolita e Vita apresentam de igual modo medo da passagem do tempo e consequente morte e demonstram uma ânsia de retornar à infância perdida. Portanto, o uso do pastiche na concepção das duas narrativas da Autora em estudo serve para demonstrar a convicção de que a infância é um momento irrepetível e só se pode a ele regressar na morte: Alice sabe que, só alcançando o mundo dos sonhos, pode retornar à infância – “Ninguém viu, mas ela sorriu-lhes, como se tivesse passado para um outro lado de um espelho. […] O sentimento de felicidade plena adoçava todos os átomos da sua existência” (Monteiro 2001: 137); Vita sabe que só encontrará a infância de novo se se entregar às águas do mar – “Iremos ver-nos ali, onde todos nós éramos […] Iremos ver-nos ali, onde as palavras nos pedirão para seguirmos o caminho onde somos a canções das colheitas. Quero pensar que vou começar o conto das novas horas…” (Monteiro 2005: 82). 90 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Conclusão Tendo em conta o seu título, a presente dissertação teve como objectivo fundamental estudar o tema da infância em Luísa Monteiro. Por essa razão, na parte I do presente trabalho, depois de fazermos uma pequena retrospectiva da vida e obra de Autora e antes de procedermos à análise das duas narrativas em estudo, fizemos uma pequena abordagem às duas novelas da Autora, A Vaca-Loura e O Lagarto. Depois de feita a leitura da obra Agatha Christie e o bosque sagrado e das novelas A Vaca-loura e O Lagarto decidimos fazer apenas uma pequena análise das duas novelas, visto que ambas reflectem acerca da infância como momento irrepetível, que permanece na mente do Homem para toda a vida, ideia também defendida nas duas narrativas da Autora em estudo. Estas novelas apresentam-nos duas personagens que relatam a fase mais marcante da sua vida: a infância. Como sabemos, é neste estado que o ser humano realiza as primeiras aprendizagens, que são cruciais para a sua constituição como Homem. Em A Vaca-loura, Lurdes aprende na infância o significado do amor quando perde para sempre a sua irmã do coração e contacta com as suas verdadeiras origens. Na novela O Lagarto, a personagem principal aprende que os escritores são vendedores de sonhos, aprende a fingir pela primeira vez e toma contacto com o verdadeiro significado da palavra amor quando conhece Lourenço. De forma a lutarem contra o esquecimento, estas duas personagens vão relembrar constantemente o tempo da infância: Lurdes jamais esquecerá Olga e o protagonista da novela O Lagarto irá vestir-se sempre de branco para se sentir ligado a Lourenço. Notamos, portanto, que estas duas personagens evidenciam a convicção defendida por Luísa Monteiro de que o estado da infância é um momento que contamina a mente do ser humano para toda a vida: Lurdes de A Vaca-Loura e o menino doente da novela O Lagarto são personagens marcadas por uma infância que não conseguem esquecer. Na parte II desta dissertação procedemos à apresentação das personagens das narrativas em estudo e tomámos conhecimento que Luísa Monteiro não procedeu à escolha dos nomes das personagens que fazem parte destas narrativas ao acaso. Em A Guardadora de Gansos, Vita é constantemente comparada a uma guardadora de gansos remetendo, desse modo, para a princesa guardadora de gansos de Whilhelm e Jacob Grimm. Em O Estranho Amável a personagem Alice e a sua relação de proximidade com um escritor chamado Luís remete para a personagem Alice e o seu criador, Lewis Carroll. Também nesta narrativa a relação descrita entre as personagens Lolita e Vladimiro remete para a personagem Lolita e o Autor que a criou, Vladimir Nabokov. No ponto da dissertação “O uso do pastiche” é 91 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro explicada esta aproximação intertextual. Na verdade, a Autora utiliza as personagens infantis imaginadas por Nabokov, Lewis Carroll e os irmãos Grimm e apresenta-as inseridas numa nova realidade de modo a poder demonstrar que as experiências de vida efectuadas por diferentes indivíduos condicionam a formação da sua personalidade. Assim, o ser humano retratado nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável é um ser que analisa o seu desenvolvimento espiritual e sentimental e a aprendizagem humana e social que vai realizando ao longo da vida. Portanto, as personagens retratadas nestas narrativas são adultos que, confrontados pelo meio onde estão inseridos, aprendem a conhecer-se e a questionar a sua existência. As duas personagens principais dos romances em estudo, Vita e Alice, são felizes na infância: Vita vive no meio da natureza, na quinta de seu pai, e Alice junto da pessoa que a faz mais feliz, o Luís. Quando perdem a estabilidade emocional experimentada na infância, porque o mundo adulto é cruel – Vita perde a quinta do pai e Alice o contacto com Luís –, as duas personagens sofrem uma crise de identidade. Nada prende estas mulheres ao mundo adulto que conhecem: Vita sente-se entediada no meio da civilização; Alice mantém uma relação conflituosa com os filhos e não pretende voltar a perder Luís. Por isso, anseiam pelo mundo da infância como forma de reestruturarem o mundo que as rodeia e com o qual elas já não sentem afinidade. De facto, crescer e aprender anulou-lhes muito desse lado animal onde as sensações e sentimentos são mais apurados e retirou-lhes a oportunidade de alcançar a felicidade, visto que, durante esse crescimento, estas duas personagens efectuaram uma aprendizagem importante: ninguém controla o seu destino, ele é que dita os nossos passos. A partir desse momento, estas personagens irão procurar encontrar a totalidade como forma de preencher esse espaço vazio, mas essa almejada totalidade é impossível de alcançar. A solução encontrada por ambas as personagens é regressar ao passado, a esse mundo da infância impregnado de felicidade: Vita entrega-se à escrita como forma de libertação e como forma de regressar à origem de tudo, ou seja, à palavra; Alice decide visitar o mundo imaginário, um mundo onde se sente protegida do mal e consegue ser ela própria. Quando o refúgio encontrado pelas duas protagonistas das narrativas deixa de preencher a ânsia de alcançar o impossível só resta a morte: Vita entrega-se ao mar, pois só assim poderá renascer e recuperar a infância feliz; Alice decide deixar o mundo real de vez e partir para o mundo de sonho onde pode renascer e voltar a ser a criança que nunca deixou de ser. 92 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Através do desfecho destas duas personagens, Luísa Monteiro pretende demonstrar que a infância é um momento extremamente marcante na vida do ser humano, aspecto já abordado na análise às duas novelas da Autora, A Vaca-Loura e O Lagarto, e que é um momento que não volta a repetir-se. A única forma possível de o voltar a recuperar é alcançando a imortalidade, ou seja, a morte. Uma das preocupações demonstrada pela Autora ao longo da narrativa A Guardadora de Gansos é a ideia de que a escrita está em risco de se perder, porque vivemos numa era digital onde o acto de escrever ou de ler perde cada vez mais adeptos: “parece-me evidente que também a ameaça do fim da literatura, dos contos tradicionais, das bibliotecas em papel, provém apenas da luta do homem contra aquilo que, por lhe ser inferior, o atrai para baixo, dissolvendo-lhe os valores humanos e conduzindo-o ao silêncio” (Monteiro 2005: 64). Vimos que Vita luta para recuperar a terra que tanto amava, porque esta terra personificava a palavra que dá origem à língua (forma primordial de comunicação) e consequentemente à produção literária, a qual, segundo Luísa Monteiro, deve continuar em construção precisamente para não se desvanecer – “Vita sabe que só o acto da criação literária é um amigo através das coisas – sendo da substituição que se alimenta” (Monteiro 2005: 77). Uma das formas encontradas por Vita para lutar contra o desaparecimento da Literatura seria escrever para um leitor único, ou seja, para um leitor futuro, pois é “sempre preciso reiniciar a leitura de um livro” (Monteiro 2005: 76-77). Por esse motivo, espero sinceramente que o presente trabalho, que poderá estar sujeito a novas considerações, sirva como um ponto de partida para outras investigações académicas sobre a obra da Autora, sinal evidente de que a sua produção literária ainda estará em construção e consequente renovação. 93 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Bibliografia 1. Bibliografia activa Andersen, Hans Christian (1998): “Thumbelina”. In: The Complete Fairy Tales. London: Wordsworth Editions, 30-41. Blyton, Enid (2004): Os Cinco e os Espiões. A. Rodrigues (tradução) 2ª edição. Madrid: Edimpresa Editora. Carroll, Lewis (1992): Alice in wonderland. Chicago: J.G. 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Any one would have thought that the heavy load would have weighed her to the ground, but she always brought it safely home. If anyone met her, she greeted him quite courteously. “Good day, dear countryman, it is a fine day. Ah! You wonder that I should drag grass about, but everyone must take his burthen on his back”. Nevertheless, people did not like to meet her if they could help it, and took by preference a round-about way, and when a father with his boys passed her, he whispered to them, “Beware of the old woman. She has claws beneath her gloves; she is a witch.” One morning, a handsome young man was going through the forest. The sun shone bright, the birds sang, a cool breeze crept through the leaves, and he was full of joy and gladness. He had as yet met no one, when he suddenly perceived the old witch kneeling on the ground cutting grass with a sickle. She had already thrust a whole load into her cloth, and near it stood two baskets, which were filled with wild apples and pears. “But, good little mother”, said he, “how canst thou carry all that way?” “I must carry it, dear sir,” answered she, “rich folk’s children have no need to do such things, but with the peasant folk the saying goes, don’t look behind you, you will only see how crooked your back is!” “Will you help me?” she said, as he remained standing by her. “You have still a straight back and young legs, it would be a trifle to you. Besides, my house is not so very far from here, it stands there on heath behind the hill. How soon you would bound up thither.” The young man took compassion on the old woman. “My father is certainly no peasant”, replied he, “but a rich count; nevertheless, that you may see that it is not only peasants who can carry things, I will take your bundle.” If you will try it,” said she, “I shall be very glad. You will certainly have to walk for an hour, but what will that signify to you; only you must carry the apples and pears as well?” It now seemed to the young man just a little serious, when he of an hour’s walk, but the old woman would not let him off, packed the bundle on his back, and hung the two baskets on his arm. “See, it is quite light,” said she. “No, it is not light,” answered the count, and pulled a rueful face. “Verily, the bundle weighs as heavily as if it were full of cobble stones, and the apples and pears are as heavy as lead! I can scarcely 101 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro breathe.” He had a mind to put everything down again, but the old woman would not allow it. “Just look,” said she mockingly, “the young gentleman will not carry what I, an old woman, have so often dragged along. You are ready with fine words, but when it comes to be earnest, you want to take to your heels. Why are you standing loitering there?” She continued. “Step out. No one will take the bundle off again.” As long as he walked on level ground, it was still bearable, but when they came to the hill and had to climb, and the stones rolled down under his feet as if they were alive, it was beyond his strength. The drops of perspiration stood on his forehead, and ran, hot and cold, down his back. “Dame,” said he, “I can go no farther. I want to rest a little.” “Not here,” answered the old woman, “when we have arrived at our journey’s end, you can rest; but now you must go forward. Who knows what good it may do you?” “Old woman, thou art becoming shameless!” said the count, and tried to throw off the bundle, but he laboured in vain; it stuck as fast to his back as if it grew there. He turned and twisted, but he could not get rid of it. The old woman laughed at this, and sprang about quite delighted on her crutch. “Don’t get angry, dear sir,” said she, “you are growing as red in the face as a turkey-cock! Carry your bundle patiently. I will give you a good present when we get home.” What could we do. He was obliged to submit to his fate, and crawl along patiently behind the old woman. She seemed to grow more and more nimble, and his burden still heavier. All at once she made a spring, jumped on to the bundle and seated herself on the top of it; and however withered she might be, she was yet heavier than the stoutest country lass. The youth’s knees trembled, but when he did not go on, the old woman hit him about the legs with a switch and with stinging-nettles. Groaning continually, he climbed the mountain, and at length reached the old woman’s house, when he was just about to drop. When the geese perceived the old woman, they flapped their wings, stretched out their necks, ran to meet her, cackling all the while. Behind the flock walked, stick in hand, an old wench, strong and big, but ugly as night. “Good mother,” said she to the old woman, “has anything happened to you, you have stayed away so long?” “By no means, my dear daughter,” answered she, I have met with nothing bad, but, on the contrary, with this king gentleman, who has carried my burthen for me; only think, he even took me on his back when I was tired. The way, too, has not seemed long to us; we have been merry, and have been cracking jokes with each other all the time.” At last the old woman slid down, took the bundle of the young man’s back, and the baskets from his arm, looked at him quite kindly, and said, “Now seat yourself on the bench before the door, and rest. You have fairly earned your wages, and they shall not be waiting.” Then she said to the goose-girl, “Go into the house, my dear daughter, it is not becoming for 102 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro thee to be alone with a young gentleman; one must not pour oil on to the fire, he might fall in love with thee.” The count knew not whether to laugh or to cry. “Such a sweetheart as that,” thought he, “could not touch my heart, even if she were thirty years younger.” In the meantime the old woman stroked and fondled her geese has if they were children, and then went into the house with her daughter. The youth lay down on the bench, under a wild appletree. The air was warm and mild; on all sides stretched a green meadow, which was set with cowslips, wild thyme, and a thousand other flowers; through the midst of it rippled a clear brook on which the sun sparkled, and the white geese went walking backwards and forwards, or paddled in the water. “It is quite delightful here,” said he, “but I am so tired that I cannot keep my eyes open; I will sleep a little. If only a gust of mind does not come and blow my legs of my body, for they are as rotten as tinder.” When he as slept a little while, the old woman came and shook him till he awoke. “Sit up,” said she, “thou canst not stay here; I have certainly treated thee hardly, still it has not cost thee thy life. Of money and land thou hast no need, here is something else for thee.” Thereupon she thrust a little book into his hand, which was cut out of a single emerald. “Take great care of it,” said she, “it will bring thee good fortune.” The count sprang up, and as he felt that he was quite fresh, and has recovered his vigor, he thanked the old woman for her present, and set off without even once looking back at the beautiful daughter. When he was already some way of, he still heard in the distance the noisy cry of the geese. For three days the count had to wander in the wilderness before he could find his way out. He then reached a large town, and as no one knew him, he was led into the royal palace, where the King and Queen were sitting on their throne. The count fell on one knee, drew the emerald book out of his pocket, and laid it at the Queen’s feet. She made him rise and hand her the little book. Hardly, however, had she opened it, and looked therein, than she fell as if dead to the ground. The count was seized by the King’s servants, and was being led to prison, when the Queen opened her eyes, and ordered them to release him, and every one was to go out, as she wished to speak with him in private. When the Queen was alone, she began to weep bitterly, and said, “Of what use to me are the splendours and honours with which I am surrounded; every morning I awake in pain and sorrow. I had three daughters, the youngest of whom was so beautiful that that the whole world looked on her as a wonder. She was as white as snow, as rosy as apple-blossom, and her hair as radiant as sun-beams. When she cried, not tears fell from her eyes, but pearls and jewels only. When she was fifteen years old, the King summoned all three sisters to come before his throne. You should have seen how all the people gazed when the youngest entered, 103 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro it was just as if the sun were rising! Then the King spoke, “My daughters, I know not when my last day may arrive; I will to-day decide what each shall receive at my death. You all love me, but the one of you who loves me best, shall fare the best.” Each of them said she loved him best. “Can you not express to me,” said the King, “how much you do love me, and thus I shall see what you mean?” The eldest spoke. “I love my father as dearly as the sweetest sugar.” The second, “I love my father as dearly as my prettiest dress.” But the youngest was silent. Then the father said, “And thou, my dearest child, how much dost thou love me?” “I do not know, and can compare my love with nothing.” But her father insisted that she should name something. So she said at last, “The best food does not please me without salt, therefore I love my father like salt.” When the King heard that, he fell into a passion, and said, “If thou lovest me like salt, thy love shall also be repaid thee with salt.” Then he divided the kingdom between the two elder, but caused a sack of salt to be bound on the back of the youngest, and two servants had to lead her forth into the wild forest. We all begged and prayed for her, said the Queen, “but the King’s anger was not to be appeased. How she cried when she had to leave us! The whole road was strewn with the pearls which flowed form her eyes. The King soon afterwards repented of great severity, and had the whole forest searched for the poor child, but no one could find her. When I think that the wild beasts devoured her, I know not how to contain myself for sorrow; many a time I console myself with the hope that she is still alive, and may have hidden herself in a cave, or has found shelter with compassionate people. But picture to yourself, when I opened your little emerald book, a pearl lay therein, of exactly the same kind as those which used to fall form my daughter’s eyes; and then you can also imagine how the sight of it stirred my heart. You must tell me how you came by that pearl.” The count told her that he had received it from the old woman in the forest, who had appeared very strange to him, and must be a witch, but he had neither seen nor hear anything of the Queen’s child. The King and the Queen resolved to seek out the old woman. They thought that there where the pearl had been, they would obtain news of their daughter. The old woman was sitting in that lonely place at her spinning-wheel, spinning. It was already dusk, and a long which was burning on the hearth gave a scanty light. All at once there was a noise outside, the geese were coming home from the pasture, and uttering their hoarse cries. Soon afterwards the daughter also entered. But the old woman scarcely thanked her, and only shook her head a little. The daughter sat down beside her, took her spinningwheel, and twisted the threads as nimbly as a young girl. Thus they both sat for two hours, and exchanged never a word. At last something rustled at the window, and two fiery eyes peered in. It was an old night-owl, which cried, “Uhu!” three times. The old woman looked up 104 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro just a little, then she said, “Now, my little daughter, it is time for thee to go out and do thy work.” She rose and went out, and where did she go? Over the meadows ever onward into the valley. At last she came to a well, with three old oak-trees standing beside it; meanwhile the moon had risen large and round over the mountain, and it was so light that one could have found a needle. She removed a skin which covered her face, then bent down to the well, and began to wash herself. When she had finished, she dipped the skin also in the water, and then laid it on the meadow, so that it should bleach in the moonlight, and dry again. But how the maiden was changed! Such a change as that was never seen before! When the grey mask fell of, her golden hair broke forth like sunbeams, and spread about like a mantle over her whole form. Her eyes shone out as brightly as the stars in the heaven, and her cheeks bloomed a soft red like apple-blossom. But the fair maiden was sad. She sat down and wept bitterly. One tear after another forced itself out of her eyes, and rolled through her long hair to the ground. There she sat, and would have remained sitting a long time, if there had not been a rustling and cracking in the boughs of the neighbouring tree. She sprang up like a roe which has been overtaken by the shot of the hunter. Just then the moon was obscured by a dark cloud, and in an instant the maiden had put on the old skin and vanished, like a light blown out by the wind. She ran back home, trembling like an aspen-leaf. The old woman was standing on the threshold, and the girl was about to relate what had to befallen her, but the old woman laughed kindly, and said, “I already know all.” She led her into the room and lighted a new log. She did not, however, sit down to her spinning again, but fetched a broom and began to sweep and scour, “All must be clean and sweet,” she said to the girl, “But, mother, “ said the maiden, “why do you begin work at so late an hour? What do you expect?” “Dost thou know then what time is it?” asked the old woman. “Not yet midnight,” answered the maiden, “but already past eleven o’clock.” “Dost thou not remember,” continued the old woman, “that it is three years to-day since thou camest to me? Thy time is up, we can no longer remain together.” The girl was terrified, and said, “Alas! dear mother, will you cast me off? Where shall I go? I have no friends, and no home to which I can go. I have always done as you babe me, and you have always been satisfied with me; do not send me away.” The old woman would not tell the maiden what lay before her. “My stay here is over,” she said to her, “but when I depart, house and parlour must be clean: therefore do not hinder me in my work. Have no care for thyself, thou shalt find a roof to shelter thee, and the wages which I will give the shall also content thee.” “But tell me what is about to happen,” the maiden continued to entreat. “I tell thee again, do not hinder me in my work. Do not say a word more, go to thy 105 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro chamber, take the skin off thy face, and put on the silken gown which thou hadst on when thou camest to me, and then wait in thy chamber until I call thee.” But I must once more tell of the King and Queen, who had journeyed forth with the count in order to seek out the old woman in the wilderness. The count had strayed away from them in the wood by night, and had to walk onwards alone. Next day it seemed to him that he was on the right track. He still went forward, until darkness came on, then he climbed a tree, intending to pass the night there, for he feared that he might lose his way. When the moon illumined the surrounding country he perceived a figure coming down the mountain. She had no stick in her hand, but yet he could see that it was the goose-girl, whom he had seen before in the house of the old woman. “Oho,” cried he, “there she comes, and if I once get hold of one of the witches, the other shall not escape me!” But how astonished he was, when she went to the well, took of the skin and washed herself, when her golden hair fell down all about her, and she was more beautiful than any one whom he had ever seen in the whole world. He hardly dared to breathe, but stretched his head as far forward through the leaves as he dared, and stared at her. Either he bent over too far, or whatever the cause might be, the bough suddenly cracked, and that very moment the maiden slipped into the skin, sprang away like a roe, and as the moon was suddenly covered, disappeared form his eyes. Hardly had she disappeared, before the count descended from the tree, and hastened after her with nimble steps. He had not been gone long before he saw, in the twilight, two figures coming over the meadow. It was the King and Queen, who had perceived from a distance the light shining in the old woman’s little house, and were going to it. The count told them what wonderful things he had seen by the well, and they did not doubt that it had been their lost daughter. They walked onwards full of joy, and soon came to the little house. The geese were sitting all round it, and had thrust their heads under their wings and were sleeping, and not one of them moved. The King and Queen looked in at the window, the old woman was sitting there quite quietly spinning, nodding her head and never looking round. The room was perfectly clean, as if the little mist men, who carry no dust on their feet, lived there. Their daughter, however, they did not see. They gazed at all this for a long time, at last they took heart, and knocked softly at the window. The old woman appeared to have been expecting them; she rose, and called out quite kindly, “Come in, - I know you already.” W hen they had entered the room, the old woman said, “You might have spared yourself the long walk, if you had not three years ago unjustly driven away your child, who is so good and lovable. No harm has come to her; for three years she has had to tend the geese; with them she has learnt no evil, but has preserved her purity of heart. You, however, have been sufficiently punished by the misery in which you have lived.” 106 O espaço da infância nas narrativas A Guardadora de Gansos e O Estranho Amável de Luísa Monteiro Then she went to the chamber and called, “Come out, my little daughter.” Thereupon the door opened, and the princess stepped out in her silken garments, with her golden hair and her shining eyes, and it was as if an angel from heaven had entered. She went up to her father and mother, fell on their necks and kissed them; there was no help for it, they all had to weep for joy. The young count stood near them, and when she perceived him she became as red in the face as a moss-rose, she herself did not know why. The King said, “My dear child, I have given away my kingdom, what shall I give thee?” “She needs nothing,” said the old woman. “I give her the tears that she has wept on your account, they are precious pearls, finer than those that are found in the sea, and worth more than your whole kingdom, and I give her my little house has payment for her services.” When the old woman had said that, she disappeared form their sight. The walls rattled a little, and when the King and Queen looked round, the little house had changed into a splendid palace, a royal table had been spread, and the servants were running hither and thither. The story goes still further, but my grandmother, who related it to me, has partly lost her memory, and had forgotten the rest. I shall always believe that the beautiful princess married the count, and that they remained together in the palace, and lived there in all happiness so long as God willed it. Whether the snow-white geese, which were kept near the little hut, were very young maidens (no one need take offence,) whom the old woman had taken under her protection, and whether they now received their woman form again, and stayed as handmaids to the young Queen, I do not exactly now, but I suspect it. This much is certain, that the old woman was no witch, as people thought, but a wise woman, who meant well. Very likely it was she who, at the princess’s birth, gave her the gift of weeping pearls instead of tears. That does not happen now-a-days, or else the poor would soon become rich.56 56 Conto retirado do site da Internet http://www.ucs.mun.ca/~wbarker/fairies/grimm/179.html. 107