CRITÉRIOS DE REALIDADE A REALIDADE DO MUNDO EXTERNO E O PROBLEMA CÉTICO - É o mundo que nos cerca real? - Se não é, haverá um outro mundo por trás dele que seja verdadeiramente real? - E se esse outro mundo também não for real? Essas questões não são tão retóricas quanto possam parecer. Elas atormentaram os filósofos durante séculos. Quero esboçar aqui uma resposta a elas com base em uma análise dos critérios de aplicação do conceito de realidade (ou existência) externa. Como resultado dessa análise quero esboçar uma prova do mundo externo e uma resposta ao argumento cético da ignorância sobre o mundo externo. I. Assunções metodológicas I. entre nossas assunções metodológicas estão dois princípios semânticos tomados de empréstimo de Wittgenstein: (i) O primeiro é o de o significado de uma expressão é o seu modo de uso na linguagem; uma diferença no modo de uso de uma expressão (palavra, frase) corresponde a uma diferença no seu sentido ou significado. A atenção à praxis de nossa linguagem mostra que uma mesma expressão pode ser usada em uma variedade de jogos de linguagem – de práticas lingüísticas – variando em cada jogo o seu modo de uso e assim as suas nuances de sentido, sem que disso tenhamos consciência. Não é preciso aceitar a tese, atribuída a Wittgenstein, de que a filosofia se reduz a confusões lingüísticas, para admitir que devido à inconsciência de distinções semânticas finas produzidas pela variação contextual dos modos de uso de uma mesma expressão somos facilmente levados a nos extraviarmos em confusões e equívocos filosóficos sutis. - Sugiro que esse seja o caso em se tratando de enigmas não-substantivos como os do ceticismo. ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ (ii) O segundo princípio semântico é que as regras criteriais para a aplicação de uma expressão são constitutivas do seu significado. Wittgenstein sugere que uma expressão sem critérios de aplicação é carente de significado, e quando alteramos os critérios para a sua aplicação, nós alteramos o seu significado. Os princípios (i) e (ii) estão interligados porque quando falamos de uso não entendemos ocorrências de uso, mas modo de uso, e por modo de uso entendemos regras (ou combinações de regras) que determinam as ocorrências de uso. Como notou Wittgenstein: “Um significado de uma palavra é uma forma de sua aplicação... Daí que há uma correspondência entre os conceitos ‘significado’ e ‘regra’” (ÜG: 61-62) Ora, as regras criteriais estão entre as regras que condicionam as ocorrências de uso. Exemplo: um critério de aplicação referencial da frase “Está chovendo” são “Gotas de água caindo das núvens”. Mas isso é também constitutivo das condições que norteiam o uso referencial da expressão. II Atribuições de realidade: sentido inerente (usual) e aderente (das hipóteses céticas) Dois sentidos de nossas atribuições de realidade externa Sem discutir a famosa e problemática distinção de Carnap entre questões de existência interna (das entidades pertencentes a um framework) e externa (do framework enquanto tal), parece que podemos claramente distinguir entre (a) realidade/existência das coisas no mundo, ex: Cristo redentor, Papai Noel (que interessa ao homem comum) (b) Atribuição da realidade/existência ÚLTIMA do mundo como um todo (de modo a provar que uma hipótese cética é falsa, ex. que não somos cérebros na cuba ou almas enganadas pelo gênio maligno (interessa ao cético). Parece que há aqui usos – sentidos – diferentes da palavra ‘realidade’ ou ‘existência’. Um indicador dessa diferença é que no sentido (a) posso dizer, em inglês, que se as coisas são ‘real’, elas são ‘actual’. Mas no sentido (b) se digo que o mundo não é ‘real’ isso não implica que ele não é ‘actual’. Outro indicador disso é que em (a) posso dizer que as coisas reais ‘possuem realidade’, enquanto que as coisas não-reais ‘não possuem realidade’. Mas no uso (b) o mundo pode não ser real e mesmo assim podemos dizer dele que ele ‘possui realidade’ (o mundo da alma cartesiana enganada pelo gênio maligno pode possuir toda a realidade com a qual estamos acostumados!). Chamarei o primeiro uso da palavra ‘realidade/existência’ de sentido inerente e quero analisar a seguir os critérios para a sua aplicação. III Critérios standard para a atribuição de realidade Critério standard de realidade: Parece claro que essas atribuições/desatribuições inerentes de realidade (do Cristo Redentor, de Papai Noel) se originam de perguntas acerca da realidade ou existência das coisas pertencentes ao mundo que nos circunda, posto que é com elas que somos inicialmente familiarizados. De acordo com o princípio semântico (ii), podemos supor que o sentido inerente das expressões conceituais usadas para a atribuição de realidade externa ao nosso redor possa ser explicitado em termos de regras criteriais para essa atribuição. Tais regras nos dirão que somente a satisfação de certos critérios de realidade externa nos permitirá aplicar predicados como ‘...é externamente real’ ou ‘...existe objetivamente’ ou ‘...é atual’... Podemos encontrar tais critérios? Minha convicção é a de que esses critérios existem. Podemos inclusive rastrear sua discussão em muitos pensadores influentes e verificar o quanto eles convergem, malgrado diferenças doutrinárias. Vejamos: LOCKE: nossas opiniões sobre objetos materiais se justificam pelas propriedades ligadas a idéias de sensações; tais propriedades seriam principalmente o caráter involuntário dessas idéias, além da ordenada e coerente relação entre elas (refletindo o fato de serem governadas por regras) e da consciência delas também por outras pessoas. BERKELEY: idéias firmadas pela imaginação são fracas, indistintas e inteiramente dependentes da vontade, enquanto idéias percebidas pelos sentidos são vívidas, claras e independentes da vontade. HUME: as percepções das coisas reais entram com mais força e violência na alma, diversamente das fracas imagens do pensamento e do raciocínio. KANT: para ele a conformidade com a lei (Gesetzmäsigkeit) de todos os objetos da experiência é o que define o aspecto formal da natureza. J. S. MILL: para Mill o mundo externo (material) é constituído de contínuas ou garantidas possibilidades de sensação, seguindo-se uma à outra de acordo com leis; embora as sensações sejam subjetivas, as contínuas possibilidades de sensação são para ele objetivas. FREGE: de acordo com Frege, o principal critério de objetividade é o acesso intersubjetivo, seguido da independência da vontade, enquanto o principal critério de realidade é a experiência espaço-temporal. Juntando-se os critérios chegamos então ao reino da realidade objetiva, que é para ele constituído por aquelas coisas que são intersubjetivamente acessíveis à experiência espaço-temporal. C. S. PEIRCE: Peirce reconhece o real como aquilo que é intersubjetiva-mente identificado como tal pela comunidade lingüística “in the long run”. G. E. MOORE: sumariza em um artigo as propriedades da realidade externa dizendo que o real é aquilo que é independente da mente, que é verificável por outros, que está sempre conectado com certas outras coisas, tendo desse modo certas causas, efeitos e acompanhamentos, e que tem o mais elevado grau de realidade. FREUD: sugere que um recém-nascido seja movido pelo assim chamado princípio do prazer, buscando sempre a imediata satisfação de seus instintos e incapaz de distinguir o mundo externo do interno. Só gradualmente a criança aprende que o mundo externo, diversamente do mundo de sua imaginação, não se conforma à sua vontade, o que a força a aprender a postergar a satisfação pulsional e desse modo a substituir o princípio do prazer pelo princípio da realidade. De fato, desde nossa infância aprendemos a distinguir a realidade externa da aparência por meio de critérios tais como o da maior intensidade da sensação, independência da vontade, acesso interpessoal e obediência a regularidades. Não faltou quem se queixasse da fraqueza desses critérios. Laurence BonJour, por exemplo, criticando o representacionalismo de Locke, demonstrou sem qualquer dificuldade que nenhum dos critérios propostos por esse filósofo é suficiente. Com efeito, se tomados individualmente eles sempre podem falhar. Contudo, poderíamos continuar considerando os critérios insuficientes se eles fossem tomados em seu conjunto? ------------------------------------------------ Minha estratégia: juntar os critérios relevantes, defendendo então a idéia de que quando tomados em conjunto eles se fazem suficientemente fortes para tornarem a atribuição de realidade externa, no sentido inerente, conceptualmente irrefutável. Assim, usando a palavra ‘coisa’ em seu sentido mais amplo, de modo a incluir objetos, propriedades, condições, circunstâncias, estados de coisas, eventos, processos, acontecimentos etc. podemos sumarizar o essencial estabelecendo um conjunto standard de critérios, a serem direta ou indiretamente satisfeitos pelas coisas externas ao nosso redor... Eis o conjunto standard de critérios de realidade inerente que quero propor: 1) nossa experiência sensível delas deve ter a mais alta intensidade, 2) elas permanecem independentes da vontade, 3) elas são interpessoalmente checáveis por todos os outros, geralmente seguindo uma co-sensorialidade própria para cada caso. 4) elas são sujeitas a regularidades apropriadas (coisas externas seguem regularidades impostas por leis naturais, normas sociais etc.). Considere tal conjunto de critérios: 1) nossa experiência sensível delas deve ter a mais alta intensidade, 2) elas permanecem independentes da vontade, 3) elas são interpessoalmente checáveis por todos os outros, geralmente seguindo uma co-sensorialidade própria para cada caso. 4) elas são sujeitas a regularidades apropriadas (coisas externas seguem regularidades impostas por leis naturais, normas sociais etc.). Quero sustentar que se alguma coisa efetivamente satisfaz (diretamente ou não) todos esses critérios, é simplesmente inevitável que ela seja considerada externamente real no sentido (a) ou inerente da palavra, e que se alguma coisa de fato não chega a satisfazer todos esses critérios, então ela não chega a ser inerentemente real. Exemplo: “Esse livro é real” (existe realmente), “Isso é um livro” (implicitamente: um livro real)... (a) Máxima intensidade de sensação (diversamente do sonho). (b) É independente da minha vontade (não posso transformá-lo em outro objeto etc.) (c) É interpessoalmente acessível (mesmo que eu esteja sozinho nessa sala, algo me diz que se outras pessoas estivessem aqui o livro seria co-sensorialmente experienciável por elas também...) (d)Segue regularidades da natureza (permanece sólido, cai quando solto no ar, pega fogo se aquecido...) Note-se que minhas sensações podem estar embotadas por algum medicamento (~a), que há estados internos independentes de minha vontade, como pensamentos obsessivos (~b), que alucinógenos podem produzir alucinações grupais (~c) e que nem a regularidade da natureza é garantida (~d). Mas se todos esses critérios estão sendo satisfeitos, parece praticamente inevitável a admissão de que o objeto, o livro, é real para nós em um certo sentido (inerente) da palavra, e a necessidade disso parece conceptualmente inevitável. (Esse é o ponto crucial do argumento.) Objeção: que dizer de entidades postuladas pela ciência como forças físicas, partículas subatomicas etc.? Resposta: uma sugestão seria a de que elas satisfazem indiretamente os critérios de realidade e por isso sejam consideradas reais. Ex: tenho duas placas de ferro fortemente imantadas e só com esforço consigo separá-las... Mas a adesão das placas possui máxima intensidade perceptual, é interpessoalmente experienciável, segue regularidades próprias das leis físicas etc. Mas indiretamente podemos inferir a existência de uma força magnética. Como? Se os efeitos dessa força são reais no sentido de satisfazerem os critérios standard, então parece que posso estender o uso da palavra real a essa mesma força. (Essa poderia ser uma linha de defesa do realismo quanto a entidades teóricas na ciência). Curiosamente, é aplicando tais critérios que satisfazemos o que para Carnap era condição da realidade “interna” de uma coisa no mundo das coisas (thingworld), qual seja: “ser bem sucedido em incorporar essa coisa em um sistema de coisas em uma particular posição espaço-temporal, de tal modo que ela se encaixe com outras coisas reconhecidas como reais, de acordo com as regras do sistema” (Carnap) Essas últimas, agora já sabemos, são as regras criteriais para atribuições de realidade inerente das coisas no mundo externo. IV Prova do mundo externo Prova da realidade inerente do mundo externo: Há um ponto importantíssimo ignorado por Carnap em sua discussão sobre questões internas e externas de existência: Para ele questões externas, envolvendo a existência da totalidade do mundo, eram sempre metafísicas, dependendo de um fiat (decisão pragmática) Já para nós é possível uma resposta nãometafísica a esse problema, baseada em uma extensão do conceito inerente de realidade recém exposto. Vejamos como fazer isso... ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Até agora aplicamos os nossos quatro critérios standard de realidade para coisas (objetos, propriedades, condições, estados de cosias, eventos, processos) de um grupo (A): o das coisas que se encontram em torno de nós, presentemente satisfazendo as condições (o que inclui satisfação indireta, por exemplo, sei que existe energia elétrica no monitor pelo fato da tela se iluminar). Mas há também o caso (B) das coisas que não estão sendo presentemente experienciadas, mas que com boas razões supomos que satisfariam os nossos critérios standard e que, conseqüentemente, também podem ser admitidas como os satisfazendo e portanto sendo externamente reais. (B) se divide em: (B1) Todas as coisas que já experienciamos, mas que se encontram agora demasiado distantes e inacessíveis para serem (direta ou indiretamente) experienciadas. (B2) Muitas coisas que sabemos satisfazer os critérios de realidade somente via testemunho de outros que os aplicaram. (B3) Muitas coisas que certamente existem, mas que nunca foram e mesmo nunca serão experienciadas, pois sabemos por experiência que o mundo é inesgotavelmente aberto. (Basta admitirmos a indução para que isso tudo seja aceitável.) Ora, parece claro que podemos indutivamente inferir, começando com a experiência sucessiva das coisas ao nosso redor – as quais satisfazem os critérios standard de realidade inerente – que há domínios cada vez maiores de coisas que repetidamente se demonstraram capazes de satisfazer os mesmos critérios, e que por isso dizemos que os satisfazem, mesmo que, por não estarem sendo experienciadas, elas não os satisfaçam para nós no momento atual. Quero denominar todas essas generalizações para domínios que vão além da experiência presente de sentidos inerentes estendidos de nossas expressões conceituais referentes à realidade externa, em contraste com o que chamei de seu sentido inerente primário (caso A). O nível de generalização máximo, o sentido inerente mais extenso possível da atribuição de realidade externa, é o que consiste na afirmação da realidade do mundo externo como um todo (juntando os casos A e B). Sistematizando essas considerações podemos construir uma prova do mundo externo, refazendo assim o raciocínio que todos nós, no processo de nosso desenvolvimento, devemos ter inadvertidamente realizado para chegarmos à conclusão de senso comum de que o nosso mundo externo como um todo obviamente existe. Para tal, usando a palavra ‘coisa’ no sentido amplo já indicado, usando a palavra ‘experiência’ não somente para referir à experiência direta (da caneta, das mãos, do monitor de computador), mas também à experiência mais ou menos indireta (da eletricidade no monitor, pela iluminação, dos neutrinos atravessando a terra, pelos rastros deixados em tanques de água subterrâneos...), e tendo em mente somente o sentido inerente do conceito de realidade externa, ou seja, relativo às aplicações dos quatro critérios standard de realidade que basicamente o constituem, eis o argumento: PROVA DO MUNDO EXTERNO: (1) Muitas coisas que estão sendo presentemente experienciadas satisfazem os 4 critérios standard de realidade externa (nossos corpos, os objetos ao nosso redor...). (2) A maioria das coisas que experienciamos no passado satisfizeram sucessivamente os critérios de realidade externa sempre que foram novamente experienciadas. (3) (Indutivamente de 2) Há coisas que foram objetos de experiência no passado e que, embora não estejam sendo experienciadas agora, ainda são capazes de satisfazer (ou seja: satisfazem) os critérios de realidade externa. (4) Sempre estivemos experienciando coisas novas ao nosso redor, as quais têm satisfeito os critérios de realidade externa. (5) (Indutivamente de 4) Deve haver portanto coisas nãoexperienciadas que são capazes de satisfazer (satisfazem) os critérios de realidade externa (o mundo é aberto). (6) Testemunho é uma forma geralmente confiável de conhecimento. (7) Há muito testemunho de coisas que satisfazem os critérios de realidade externa. (8) (Dedutivamente de 6 e 7) Há muitas coisas nãoexperienciadas que satisfazem os critérios de realidade externa, sendo isso sabido via testemunho. (9) (Dedutivamente de 1, 3, 5 e 8) Há uma imensidade de coisas, algumas delas sendo (A) coisas presentemente experienciadas, satisfazendo nossos critérios de realidade externa, algumas delas sendo (B1) coisas que não estão sendo experien-ciadas agora, embora saibamos que satisfazem nossos critérios de realidade externa, pois os satisfizeram no passado, algumas delas sendo (B2) coisas não-experienciadas por nós que satisfa-zem os critérios de realidade externa via testemunho, e algumas delas sendo (B3) coisas ainda desconhecidas, mas capazes de satisfazer nossos critérios de realidade externa, posto que sem-pre estivemos experienciando novas coisas que os (10) O que nós queremos dizer com a idéia do nosso mundo externo como um todo é o conjunto constituído pela totalidade das coisas, tal que parte dele é (A), parte dele é (B1), parte dele é (B2), e parte dele é (B3). (11)(Dedutivamente de 9 e 10) Nosso mundo externo como um todo satisfaz os critérios de realidade externa. (12) O que satisfaz os critérios de realidade externa é (inerentemente) real. (13) (Dedutivamente de 11 e 12) Nosso mundo externo como um todo é (inerentemente) real, ele existe. Esse argumento relativamente simples eu reputo como constituindo a verdadeira prova do mundo externo – aquela cuja ausência foi reclamada por Kant como o escândalo da filosofia e por muitos outros desde então! Embora isso seja passível de um maior detalhamento, parece claro que é por já termos todos realizado – de modo geralmente não-consciente – raciocínios semelhantes que, enquanto não-filósofos, nos sentimos tão seguros em responder afirmativamente quando nos perguntam se o mundo externo de fato existe. Parece-me claro que em seus traços essenciais um raciocínio similar tem sido feito por todos os homens de todas as épocas. Pois se pudéssemos perguntar ao homem pré-histórico se o mundo externo existe, se ele é real, ele certamente responderia que sim, referindo-se com isso, sem sabê-lo, à soma de todas as coisas, próximas ou distantes, que ele com razão acredita satisfazerem os critérios standard de realidade externa. A importância das atribuições inerentes de realidade generalizadas e que elas parecem resgatar aquilo que o homem comum quer dizer com frases como “É óbvio que o mundo existe” ou “Só filósofos e loucos colocariam em dúvida a realidade de nosso mundo exterior”. Tudo o que ele quer dizer é que temos uma ampla base inferencial indutiva para crermos que o mundo, como a soma dos seus constituintes presentemente experienciados, já experienciados e ainda não experienciados, satisfaz os critérios standard de realidade inerente, sendo assim real. Finalmente, o argumento recém-exposto explica a débil força sugestiva da conhecida prova do mundo externo proposta por G. E. Moore. Eis o que ele diz: I can prove now, for instance, that two human hands exist. How? By holding up my two hands and saying, as I make a certain gesture with the right hand, “Here is one hand”, and adding, as I make a certain gesture with the left, “And here is another”. And if, by doing this, I have proved ipso facto the existence of external things, you will all see that I can also do it now in a number of other ways: there is no need to multiply examples. Ora, a força indicativa e lacunar desse argumento decorre, creio, do fato de ele se apoiar em uma instanciação prática da primeira premissa da prova do mundo externo acima exposta e, saltando sobre tudo o mais, afirmar a sua conclusão. V Atribuições aderentes de realidade e hipóteses céticas PARTE II REALIDADE ADERENTE E AS HIPÓTESES CÉTICAS Há, contudo, um suposto sentido aderente de atribuições de realidade usado pelo cético, quando ele nega a existência do mundo externo, e que tem semelhanças com o que Carnap chamava de questão externa de existência, só resgatável por um fiat pragmático... Quero mostrar que ele é diferente do sentido inerente generalizado e que por isso podemos falar da existência do mundo externo em um outro sentido dependente das hipóteses céticas. EX: Suponhamos agora que você tenha tomado uma droga que por algumas horas lhe tenha produzido uma perfeita alucinação da China na época em que Marco Polo lá esteve. Agora, já tendo passado o efeito, você diz para si mesmo: “Aquele era um mundo de minha imaginação, não o real”, pois tem boas razões para pensar assim. .......................................................... Nesse caso você não está desatribuindo realidade no sentido inerente, pois os critérios standard de realidade, como a máxima intensidade das experiências, a independência da vontade e a interpessoalidade estavam sendo todos satisfeitos. E como, mesmo não sendo real, aquele mundo foi dado (was actual), como ele possuiu ou teve realidade, a desatribuição de realidade que você faz dele não pode ter sido inerente, posto que ele inerentemente existiu. Esta seria uma desatribuição de realidade no uso aderente da palavra realidade. Se é assim, quais são os critérios para a espécie aderente de atribuição ou desatribuição de realidade? Só Podemos explorar esse ponto imaginando hipóteses céticas. Suponhamos que certa noite você acorde em um ambiente completamente diverso, com um estranho corpo cheio de braços e rodeado por criaturas igualmente estranhas. Elas lhe explicam que até então você não havia vivido no mundo real. Contam-lhe que em toda a sua vida anterior você havia sido um simples cérebro na cuba, monitorado por um supercomputador que simulava para você a realidade externa. Elas dizem que esse é um procedimento pedagógico usual para produzir diversidade mental no planeta Ômega, onde cada novo cérebro recebe, em sua formação, um programa diferente, que em seu caso aconteceu de ser ‘habitante do planeta terra’. Mas agora, lhe informam, o seu cérebro foi implantado em um corpo de verdade e você irá viver o resto de sua existência no mundo verdadeiramente real. Como todas as experiências que você passa a ter se demonstram em perfeita concordância com as explicações dadas, gradualmente você acaba chegando à conclusão de que os habitantes do planeta Ômega dizem a verdade e que o mundo no qual você viveu anteriormente não era real, mas meramente virtual... É importante notar que podemos encontrar critérios que nos conduzam a essas atribuições/desatribuições de realidade aderente. Não obstante, eles pouco têm a ver com os critérios standard para sentidos inerentes de realidade externa, sejam eles o primário ou os estendidos! A mais elevada intensidade de experiência, a independência da vontade, a possibilidade de acesso interpessoal… estavam todas sendo dadas a você quando você ainda era um cérebro na cuba se imaginando a viver no planeta Terra, não menos do que agora no planeta Ômega. Você pode até mesmo dizer que o seu mundo – em seus tempos de cérebro na cuba – era tão atual (actual) e possuia tanta realidade inerente quanto o mundo ao qual você está sendo apresentado agora. Conseqüentemente, a conclusão de que o seu mundo anterior não era real precisa ter uma outra origem. Em minha opinião essa conclusão é alcançada por meio de critérios aderentes de realidade, os quais são tipicamente coerenciais. Eles podem ser resumidos em termos de coerência das novas informações e experiências com as crenças fundamentadoras que você já possui. É a coerência entre as crenças adquiridas através das novas informações e um conjunto de crenças fundamentadoras que lhe leva a desatribuir realidade ao seu velho mundo na terra, por contraste com a sua atribuição de realidade ao novo mundo do planeta Ômega. Os critérios de realidade aderente são, portanto, muito diversos dos da realidade inerente, e a ligação entre eles é que os primeiros são usados para a escolha entre duas realidades conflitantes que em si mesmas já satisfazem os critérios de realidade inerente, de maneira a distinguir uma delas geralmente como um subproduto ilusório da outra. Outras experiências em pensamento confirmam a diferença. Ex.: podemos imaginar critérios trabalhando, não de maneira a sugerir que o mundo passado não foi real, mas de modo a sugerir que a realidade aderente falta tanto no presente quanto no futuro. Suponha que na civilização do planeta Ômega, ao invés da pena capital, os criminosos sejam condenados a viver o resto de suas vidas como cérebros em cubas monitorados por supercomputadores. Após ouvir a pena, o criminoso é colocado para dormir e o seu cérebro é removido e imerso em uma cuba, onde ele poderá levar uma vida perversa perfeitamente normal, ainda que desagradavelmente consciente de que está vivendo em uma realidade virtual produzida por um supercomputador. Ele existirá então em um mundo que é perfeitamente real (actual) no sentido inerente, que é possuidor de realidade inerente, muito embora ele saiba que é e será sempre virtual, ou seja, que não é real no sentido aderente. Também aqui podemos encontrar critérios de natureza coerencial para a ausência de realidade aderente de um mundo relativamente a outro. VI Realidade aderente e hipóteses céticas Contra as considerações feitas até aqui poderia ser objetado que tal conhecimento criterial da realidade ou irrealidade aderente do mundo externo, ou mesmo de partes dele, é demasiado frágil. O ponto pode ser ilustrado pelo que acontece no filme The Real Thing. Nele as pessoas se plugam a computadores vivos semelhantes a fetos, perdendo então a consciência e passando a viver em um mundo semelhante ao dos jogos eletrônicos. Contudo, nesse mundo elas encontram outros cérebros-fetos similares (alguns adoecidos) e neles se plugam outra vez, passando a viver em uma nova dimensão de realidade virtual, e assim sucessivamente. No final do filme, após um tiroteio, um forasteiro entra no bar e pergunta: “Alguém pode me dizer se estamos no mundo real?” A objeção recém sugerida pode ser radicalizada como uma objeção relativista.... Isso parece ficar claro quando examinamos as possibilidades de derrota (defeat) de nossos exemplos, sejam eles quais forem. Poderia ser que o novo mundo do planeta Ômega, no primeiro exemplo, fosse apenas uma outra aparência de realidade, precisamente como o da terra... só que um novo programa – chamado de “Ser acordado de uma vida como cérebro na cuba” – estaria sendo implementado no lugar do velho programa intitulado “Habitante do planeta terra”. É também possível supor que a sua vida passada até esse acontecimento tenha sido de fato no mundo real, e que à noite você tenha sido raptado por alienígenas que, tendo extraído o seu cérebro do crânio, o colocaram em uma cuba e o ligaram a um supercomputador, no qual foi implementado o programa “Sendo acordado de uma vida como cérebro na cuba”. Nesse caso você terá sido duplamente enganado: com relação à realidade do seu mundo presente e com relação à irrealidade do seu mundo pregresso. A recém-apresentada objeção relativista é em meu juízo apenas parcialmente correta. Para podermos identificar a fonte da confusão a ela inerente precisamos distinguir entre dois usos ou sentidos concebíveis de atribuições aderentes de realidade: (a) um sentido relativo, considerado em nossos experimentos em pensamento com hipóteses céticas. (b) um sentido não-relativo ou último ou absoluto. Quero mostrar que a objeção relativista se aplica ao sentido (b), mas não ao sentido (a) da atribuição de realidade aderente, e que o erro está em querer estendê-la também ao sentido (a). Consideremos primeiro o sentido (a). Como é sabido, o sentido de uma palavra é relativo quando ganho por contraste com o contexto. A palavra ‘pequeno’, por exemplo, tem um sentido relativo; um bebê elefante é pequeno relativamente a elefantes, mas é grande relativamente a um rato. O mesmo acontece com o conceito aderente de realidade externa, tal como ele é considerado nas experiências em pensamento com hipóteses céticas. Tal sentido aderente só pode ser relativo, ou seja, ganho através do contexto criado pelas hipóteses céticas que já se demonstraram verdadeiras à luz das evidências dadas, mesmo sob a consciência de que tais evidências podem ser sempre derrotadas por outras novas. Ora, quero sustentar que esse sentido relativo de atribuições aderentes de realidade é perfeitamente legítimo, posto que podemos conceber critérios que lhe sejam constitutivos. Mas ele só vale relativamente ao contexto dado (de comparação entre o mundo ilusório e o atualmente aceito como real) e deixa de valer quando tal contexto se altera (por exemplo, quando este último mundo também for demonstrado ilusório). Considere agora o sentido (b), o pretensamente nãorelativo ou último ou absoluto dos tipos aderentes de atribuição de realidade. Ele deveria responder ao problema de se saber se o nosso mundo (ou se o mundo do planeta Ômega, ou qualquer outro) é em última instância real, ou seja, se ele é real para além de qualquer possibilidade de hipóteses céticas acerca de sua realidade serem verdadeiras. Pelo que vimos sobre a relatividade de nossos exemplos, parece claro que tais critérios de realidade última não podem ser encontrados. Se tal é o caso, a resposta à objeção relativista de que não podemos verdadeiramente saber se o nosso mundo é aderentemente real, posto que os critérios para a realidade aderente são sempre derrotáveis, é dupla. Quando a realidade aderente tem o sentido relativo (a), em que a atribuição de realidade é válida por contraste com o contexto criado por um cenário cético que até o momento se evidenciou verdadeiro, podemos saber que um mundo é aderentemente real em termos relativos, por contraste com um outro mundo admitido como não-real, sob a assunção das informações e evidências dadas. Já quando a realidade aderente é entendida no sentido (b), como não-relativa, dizendo respeito a uma realidade aderente última, não podemos obter resposta alguma e a objeção relativista se torna justificada. Parece, assim, que somos no final das contas completamente incapazes de saber da realidade aderente não-relativa ou absoluta ou última do mundo externo. Mas em minha opinião não precisamos nos desesperar diante dessa constatação, dado que ela é inofensiva. Para percebê-lo, basta nos lembrarmos que não temos critérios para tal conhecimento, e que enunciados sem critério de aplicação devem ser carentes de sentido. Admitido isso, então o enunciado “O mundo externo como um todo é em última instância real” se evidencia tão carente de sentido quanto enunciados como “O mundo externo como um todo (com todas as coisas dentro dele) dobrou de tamanho esta noite”, “Meu irmão morreu depois de amanhã”, “Essa pedra está triste”. Embora possuam sentido gramatical (gramaticalmente eles são corretos), tais enunciados não dispõem de critérios de aplicação, sendo tão inúteis e carentes de aplicação ou significação cognitiva quanto (para usar uma metáfora de Wittgenstein) a roda solta na engrenagem, a qual apenas parece exercer uma função. Por extensão, o enunciado “Não sabemos se o mundo externo é em última instância real” é também vazio carente de sentido. Pois nosso mundo realmente conta para nós pela qualidade pragmaticamente relevante de ser inerentemente real (intenso no mais alto grau, independente da vontade, público etc.) e não por ser o mundo aderentemente real no sentido último, dado ser a posse de tal conhecimento insustentável. VII Resposta ao cético ceticismo Além de um interesse teórico-cartográfico interno, que nos permitiu sugerir uma prova da realidade do mundo externo, as análises feitas acima nos oferecem o que parece ser uma melhor chave para a resposta ao argumento cético da ignorância sobre o mundo externo. Um primeiro ponto a ser notado é que o cético está certo ao dizer que não podemos saber se o mundo externo é em última instância real, se ele é real em termos absolutos. Mas, como já foi visto, esse é um não-saber inofensivo, pois é carente de conteúdo semântico, dado que não diz respeito a algo que possui critérios de aplicação. É como dizer: “não posso saber se essa pedra está triste”. Se esse não-saber parece mais importante é por uma confusão que o cético faz da questão da realidade última do mundo – que é carente de sentido – com a questão da realidade relativa do mundo – colocada em cena pelas hipóteses céticas e experiências em pensamento nas quais elas se confirmam. Esta última questão tem um sentido, embora relativo e geralmente sem importância alguma no contexto de nossa experiência ordinária. Há, finalmente, uma maior e mais destrutiva falácia produzida pelo cético, também ela se apoiando na falha em realizar distinções semânticas finas com respeito a atribuições de realidade. Trata-se de um equívoco resultante da importação do sentido aderente para o contexto do sentido inerente de atribuições de realidade. Eis como ele se dá... Tendo percebido que não podemos saber se o mundo externo é aderentemente real no sentido último (que ele acredita fazer sentido por confundi-lo com o sentido relativo), o cético quer nos convencer que por isso devemos concluir que o mundo externo não é inerentemente real, como se ele não passasse de uma fantasmagoria subjetiva, feita da matéria dos sonhos. Mais ainda: ele quer nos convencer que se não podemos saber da realidade inerente do mundo, então não podemos mais saber da realidade de coisa alguma a ele pertencente. De acordo com o seu raciocínio, como não posso saber da realidade ou existência do mundo externo, então não posso sequer saber que estou diante de um monitor de computador real, que tenho duas mãos reais, que estou sentado, que o meu relógio existe – como se a nossa usual atribuição de realidade ou existência a essas coisas não fosse respaldada tão somente pelo fato delas estarem satisfazendo os critérios standard para a sua atribuição de realidade inerente. PARECE, POIS, QUE O CÉTICO RECORRE A ARGUMENTOS EQUÍVOCOS: PARTINDO DE UM PSEUDOPROBLEMA, QUE É O DA REALIDADE ÚLTIMA DO MUNDO, QUE ELE CONFUNDE COM UM PROBLEMA DE REALIDADE ADERENTE, QUE É O DA REALIDADE RELATIVA NO CONTEXTO DA HIPÓTESE CÉTICA, ELE TERMINA POR QUERER ATACAR O NOSSO SENTIDO USUAL DE REALIDADE OU EXISTÊNCIA INERENTE.