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AS POLÍTICAS PÚBLICAS NA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL
Ana Luiza Gomes de Araujo1
Pode-se afirmar que um dos grandes dilemas a ser enfrentado, na atualidade, pelos
operadores do direito, se refere ao questionamento de como conseguir concretizar os direitos
previstos na Carta Constitucional, de modo a de fato, efetivá-la.
As políticas públicas têm se mostrado como um importante instrumento para tanto. Mas,
não podem ser concebidas como “palavras mágicas” que terão o condão de, sozinhas, realizar
direitos e garantias e edificar um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Bernardo Kliksberg (2001:134) nos afirma que:
“Parece haver um amplo espaço para uma revalorização do papel das políticas públicas
frente aos problemas sociais no mundo em desenvolvimento. Não se trata de voltar a
visões onipotentes do Estado, mas de pensar em um modelo estatal diferente, muito
articulado em redes produtivas com a sociedade civil, em todas as suas expressões, e
com as próprias comunidades pobres, buscando, em seu conjunto, soluções realmente
válidas para os problemas. Há um clamor crescente nessa direção.”
Destarte, considerando-se o fato de que as políticas públicas constituem importantes
instrumentos de realização do direito é que se busca, neste artigo, analisar a inserção das políticas
públicas em relação à Lei de Responsabilidade Fiscal, e ao equilíbrio econômico-financeiro que a
mesma trouxe como princípio e vetor da atuação pública.
Entende-se que um importante questionamento a ser feito, em relação ao ordenamento
jurídico pátrio, se refere a existência ou não de um equilíbrio entre as demandas e as necessidades
da população por políticas públicas e a viabilização das mesmas pela Lei de Responsabilidade
Fiscal. Em razão disso, propõe-se, por meio deste artigo, uma análise da adequação e
compatibilização desses diferentes instrumentos jurídicos: Lei de Responsabilidade Fiscal e
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Mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Graduada em Direito Público
pelo Instituto de Educação Continuada –IEC/PUC/MG. Professora Convidada do Curso de Pós-Graduação IV
PROAP, em Direito Público da Fundação João Pinheiro. Advogada.
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políticas públicas, em busca de soluções que priorizem o interesse público, razão primeira da
existência do Estado.
Conforme Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (1979:8), seja qual for o tipo de nação, a
personalidade do Estado será somente uma. “O que preexiste nos regimes políticos,
constitucionais e administrativos chama-se direitos a proteger, que antecedem às leis e aos atos
administrativos, cabendo às leis regular o seu exercício fixando alcances e limites.” Assim, seja
qual for a nação, caberá ao Estado constituído o papel de proteger os direitos, o que antecede até
mesmo à organização institucional. Então, tem-se que o Estado surge com um papel bem claro a
desempenhar, tal seja, proteger e atender as necessidades coletivas.
E é justamente para “buscar o que é comum à totalidade da convivência social”, na
expressão utilizada por Kildare Gonçalves Carvalho (1996:33) ou seja, para atender as
necessidades sociais, de maneira impessoal e universal, é que o Estado se vê dotado do atributo
da soberania, como forma de “direção, ordenação e governo.” Na atuação estatal, em prol das
necessidades coletivas, que consistem em espécies de interesses coletivos, de caráter primário e
universal, ou seja que pertencem a toda uma coletividade, sob sua noção de conjunto, optou-se
pela positivação de tais necessidades em forma de direitos e princípios, assegurados por meio das
garantias constitucionais.
Destarte, há que se considerar que os princípios são reflexos diretos das demandas da
sociedade, consistindo no que é materialmente justo para a população, possibilitando à
Constituição sua mutação recorrente, conforme mudem também os anseios sociais. Segundo
Cármen Lúcia Antunes Rocha (1994:21) “os princípios consistem na raiz e meta do ordenamento
jurídico”, uma vez que além de serem os alicerces do ordenamento, são também os objetivos e
metas sociais a serem cumpridos. E o Estado deve buscar em sua atuação a defesa dos mesmos.
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Mas, tem-se que o papel desempenhado pelo Estado não tem sido algo estanque ou
determinado. Pelo contrário, tem mudado bastante no decorrer do tempo. Nos anos 1980, parecia
encerrada a discussão a respeito de que papel o Estado deveria desempenhar. Afirma Bernardo
Kliksberg (2001:121) que predominavam correntes de opinião que consideravam que o Estado,
em quase todas as suas expressões, era um “estorvo” para o mercado. Que este solucionaria por si
os problemas e que o Estado, deveria, portanto, ser desmantelado e reduzido à sua mínima
expressão. Essas visões vinham substituir a idéia de que o Estado, por si só, podia gerar o
desenvolvimento, que foi característica das décadas anteriores. Atualmente, constata-se que
ambos os extremos do pêndulo foram desmentidos pelos fatos. Assim como foi errônea a
concepção centrada na onipotência do Estado, a realidade demonstrou que o mercado tem um
grande potencial produtivo, mas que, carente de regulações, pode gerar desequilíbrios de enorme
envergadura.
O pêndulo foi de um extremo ao outro. Ambos produziram conseqüências muito
discutíveis, e hoje tem sido questão corriqueira nos debates a pergunta sobre como conseguir um
equilíbrio diferente entre Estado, mercado e outro grande ator, a sociedade civil, e qual papel o
Estado poderia exercer a respeito.
Segundo Marta Ferreira Santos Farah, no Brasil, a ocorrência de práticas de cunho
clientelista e marcadas pela corrupção, que se tornaram recorrentes após a democratização dos
anos 1980, contribuíram sobremaneira para a situação de descrédito da opinião pública em face
da atuação estatal. Ensejou ainda, a expansão de idéias de cunho minimalista, neoliberal, que
propõe a redução radical do Estado, contaminando a visão que os cidadãos têm da ação
governamental e da administração pública em todas as esferas de governo. O Plano de Reforma
do Aparelho do Estado mostrou-se como uma forte expressão de descrença na atuação estatal,
pautando-se pela idéia de que o Estado, tal como se apresenta, possui um caráter clientelista,
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patrimonialista e ineficiente.
Mas, há que se ter claro que, à parte de quaisquer posições
ideológicas, o Estado tem um importante papel a desempenhar em prol da coletividade, que,
como aponta José Afonso da Silva (1995:135), se manifesta na “elaboração e execução de
políticas públicas no interesse da coletividade como um todo”. E, no desempenho desse papel, o
Estado estará atuando de modo impessoal e universal, de modo a fazer valer os direitos
assegurados constitucionalmente, garantindo, inclusive, uma retomada de credibilidade junto à
população.
Portanto, em consonância ao que foi dito, tem ficado evidente a necessidade de o Estado
cumprir papéis que não se limitem apenas a permitir que o mercado opere e aloque os bens
escassos. Compete ao Estado primar pelo desenvolvimento social, pela prestação de serviços
públicos e pela realização de políticas públicas em benefício da coletividade.
Afirma Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (2000:35), que “de nada adianta ter direitos
universalmente declarados, se os mesmos não são passíveis de exercício na comunidade na qual o
indivíduo vive, ou seja, se sua cidadania e suas características próprias não são reconhecidas.”
Outrossim, percebe-se que a doutrina atribui às políticas públicas o papel de instrumento
realizador dos interesses sociais, o que se configuraria em uma função básica do Estado. Tem-se,
que nesse contexto, a realização de políticas públicas apresentaria o importante papel de não só
realizar os fins estatais como também buscar uma maior moralidade e impessoalidade na atuação
pública, uma vez que as políticas públicas, via de regra, se dirigem à coletividade de maneira
genérica e as demandas sociais de forma impessoal. Pela realização de políticas públicas em prol
da sociedade, o Estado, em muito contribuiria para mudar a opinião pública negativa a seu
respeito, conforme já descrito.
Então, por conceber-se as políticas públicas como um importante instrumento realizador
dos valores sociais e edificador de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, tendo sido,
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portanto, plenamente recepcionadas pelo ordenamento jurídico pátrio, é que se entende que não
deve haver limites à sua realização que não decorram também legitimamente de nosso
ordenamento jurídico. Desse modo, propõe-se o estudo da adequação das políticas públicas em
relação à Lei de Responsabilidade Fiscal, averiguando à inserção desta lei no ordenamento
jurídico e compatibilizando esses dois instrumentos, em benefício do interesse público.
Inicialmente, deve-se considerar que as normas jurídicas não podem e não devem ser
analisadas isoladamente, uma vez que integram um todo harmônico, sistematizado e com regras
próprias de funcionamento e interpretação. Logo, a interpretação da Lei de Responsabilidade
Fiscal - LRF só faz sentido dentro de um contexto, como integrante de um sistema. Sistema esse
que se potencializa por meio dos princípios que o fundaram. Desse modo, a abordagem sobre o
novo modelo de gestão fiscal deve, além de contemplar uma análise sistemática, dar também
especial atenção à questão dos princípios do regime jurídico administrativo.
Assim, sob essa ótica, proceder-se-á a um breve estudo da Lei de Responsabilidade Fiscal,
abordando a questão referente à maneira como ela se insere em nosso ordenamento jurídico,
razão pela qual deve ser interpretada em consonância com os princípios e os valores que fazem
parte do mesmo.
Marcos Nóbrega (2002:20) afirma que:
“A responsabilidade fiscal representa um conceito inovador no ordenamento jurídico
brasileiro. Transcende a mera responsabilidade civil do Estado e invade outros campos
como a prestação de contas, a transparência, a cidadania. Responsabilidade fiscal
também é um parâmetro comportamental que busca estabelecer um novo modelo de
gestão fiscal no Brasil. Advém do conceito alienígena de accountability, porém vai além,
posto que assume uma dimensão ampla, abrangendo ideários tão caros em um país com
déficit de cidadania e desestímulo ao controle social como o Brasil.”
Essa é uma das grandes dificuldades que se vislumbra na aplicação da Lei de
Responsabilidade Fiscal da maneira como foi idealizada, uma vez, que seu modelo não condiz
com a cultura política e social brasileira. A lei introduz mecanismos de prestação de contas e
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transparência, condizentes com o princípio constitucional da publicidade, mas que o ultrapassam,
construindo uma ótica em que os governos seriam mais accountables, mas não necessariamente
mais responsivos às demandas populares, em face das restrições econômico-orçamentárias a que
se sujeitam. Ademais, a lei demanda uma participação popular considerável, para que muitos de
seus valores sejam de fato implementados, como os de transparência na gestão fiscal e controle
social. Questão um tanto complicada, em um país de baixo capital social, na nomenclatura de
Putnam, como o nosso.
Chama a atenção Marcos Nóbrega (2002:26) para o fato de que a LRF apresenta
inicialmente uma preocupação com a receita, o que se constata tanto pela conceituação de Receita
Corrente Líquida (art. 2º, IV), de forma bem abrangente, como também pela preocupação com a
arrecadação. Assim, tem-se que a lei determina que os entes federados ultimem esforços para
maximizar suas receitas próprias (art. 11 e seg.). Dentro desse contexto, ela impõe a necessidade
de que as previsões de receitas sejam estabelecidas com base em metodologias transparentes e
economicamente consistentes. Por fim, e este é um ponto importante da lei: o diagnóstico de que
as renúncias de receitas representam uma perda significativa de receitas para os entes federados,
razão pela qual devem ser evitadas. Com este fim, a lei impõe uma série de restrições a concessão
de benefícios fiscais no artigo 14.
Estevão Horvath (2001:160), ao discutir sobre o tratamento que foi dado pela Lei de
Responsabilidade Fiscal à concessão de benefícios fiscais que importem em renúncia de receita,
chama a atenção para a questão de que:
“A concessão de benefícios fiscais, pela própria natureza destes, é feita para buscar
minorar desigualdades regionais e sociais. Diríamos, até, que a concessão de uma
isenção, por exemplo, é forma legítima de procurar a igualdade. É desigualando-se que,
muitas vezes, se iguala. Certos incentivos, outorgados com vistas a estimular
determinadas atividades, estão proibidos de ser concedidos por um Município, por
exemplo? Queremos crer que não.”
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Para explicitar melhor a questão, apresentam-se dados do BNDES, constantes de estudo
realizado pela Fundação João Pinheiro, que indicavam em 2000 que a agropecuária é o setor que
mais gera oportunidades de trabalho na economia: para cada R$ 1 milhão investido na
agropecuária, são criados 182 vagas no mercado de trabalho (R$ 5,5 mil/emprego criado),
enquanto na construção civil o mesmo investimento gera 48 postos de trabalho (R$ 20,8
mil/emprego criado). De acordo com o Conselho Regional de Economia de São Paulo (CRE/SP),
o agronegócio gera 2,7 vezes mais empregos por unidade de capital investido que os outros
grandes setores da economia. O mesmo estudo conclui que o agronegócio do leite, em média,
gera 3,02 vezes mais empregos que a siderurgia, 3,5 vezes mais que a construção civil e 4,77
vezes mais que a indústria automobilística. Ademais, o agronegócio gera oportunidades de
trabalho em regiões carentes, fora das regiões com maior dinamismo, onde a geração de emprego
industrial é mais difícil. E assim sendo, fixa mais trabalhadores no campo, evitando que eles
venham para as cidades que já não dispõem de infra-estrutura para recebê-los, ocasionando
assim, um grave problema social.
Então, a primeira pergunta que surge é se estaria o Poder Público vedado, pela Lei de
Responsabilidade Fiscal, de conceder incentivo fiscal a agroindústria, por exemplo, tomando-se
em consideração os benefícios sociais que a mesma ocasiona. Há que se considerar que uma
renúncia de receitas, em dado momento, para um setor como este, pode gerar um aumento de
receitas no futuro, pelo aumento de empregos e reaquecimento da economia.
Mas, o fato é que para que o Poder Público conceda um benefício fiscal para a
agroindústria, no exemplo dado, terá que atender a toda uma série de exigências estabelecidas
pelo artigo 14, da Lei Complementar 101/2000:
Comentando tal dispositivo, Betina Treiger Grupenmacher apud Benedito Antônio Alves
(2002:42) aduz que:
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“A vedação de renúncia de receita e a imposição de medidas de compensação
estabelecidas pelo art. 14 consubstanciam-se em medidas inconstitucionais, pois que lhes
limitam a prerrogativa e autogovernabilidade (...) o art. 14 da LC 101/2000 é inoperante,
pois ao invadir as competências legislativas e administrativas dos Estado e Municípios
encerra comando inconstitucional.”
Tem-se então, que embora não se possa afirmar que a renúncia de receitas foi vedada pela
Lei de Responsabilidade Fiscal, ela encontra restrições que em certos momentos podem ser
intransponíveis. Com isso, têm-se maiores dificuldades na idealização e aplicação de políticas
públicas fundamentadas em incentivos fiscais. Betina Treiger Grupenmacher (2001:23-24)
entende que, assim como a Constituição reservou aos Estados e Municípios a competência
tributária, “reservou-lhes por igual a possibilidade de deixar de exercê-la e, ainda, de deixar de
arrecadar as receitas dela decorrentes, inclusive renunciando aos respectivos recursos sem
necessidade de adoção de providências compensatórias.” Entende a citada autora, que o disposto
no artigo 14, da Lei Complementar 101/00 é inócuo e não tem qualquer aplicabilidade, de modo
que o ente federado que quiser conceder renúncia fiscal, poderá fazê-lo, a despeito do que prevê a
Lei de Responsabilidade Fiscal.
Convém ressaltar que não se está aqui discutindo a importância da imposição de limites
para a dívida pública, via Lei de Responsabilidade Fiscal, que sem dúvidas, é extremamente
necessária. Não se entende, contudo, que se possa atribuir a deficiência de políticas públicas
experimentada ao longo do tempo no Brasil apenas ao desequilíbrio orçamentário e à falta de
instrumentos de responsabilidade fiscal, como a recém editada Lei Complementar 101/2000.
Percebe-se que tal problema é mais denso do que parece e envolve inúmeras outras órbitas, que
partem desde a cultura política brasileira de autoritarismo e ausência de participação popular até
questões relacionadas ao controle e à responsabilização dos agentes públicos. Se, a solução para o
problema estivesse na LRF, a partir da edição e implementação da mesma, os problemas
referentes à prestação de serviços públicos e políticas sociais estariam resolvidos como em um
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“passe de mágica”. No entanto, não é isso o que se constata na prática. Enfrenta-se ainda uma
grande carência em tais aspectos. Por óbvio que há que se considerar o entendimento de Juarez
Freitas, proferido no Congresso Interamericano de Direito Administrativo, segundo o qual “sem
responsabilidade em matéria de gastos públicos não haverá justiça social, pois o país quebrará”.
Mas não se acata a idéia de que se possa atribuir toda a deficiência da prestação de serviços
públicos e de políticas sociais à irresponsabilidade fiscal generalizada até então. Não se discute a
necessidade e as melhorias que a Lei de Responsabilidade Fiscal pode trazer à sociedade, em
termos orçamentário-financeiros, mas discute-se como serão as políticas públicas contempladas
pela mesma, pois assim como o equilíbrio financeiro e orçamentário encontra-se tutelado pelo
ordenamento jurídico, as políticas públicas também o são.
Nesse ponto, chama-se a atenção para o disposto no artigo 9º, § 2º, da LC 101/2000, que
ao tratar sobre a limitação de empenho, em se constatando que a receita será insuficiente, excetua
de tal limitação, o pagamento do serviço da dívida.
Destarte, excetuados os casos assegurados pela LRF, as demais despesas estariam sujeitas
à limitação de empenho, dentre elas, políticas públicas que abrigassem despesas de caráter
continuado, por exemplo. E, nesse caso, questiona-se: seria compatível com os princípios
ordenadores de nosso ordenamento jurídico, o corte de despesas com políticas públicas, e a
manutenção das despesas para pagamento de dívidas? Essa questão possui difícil solução, por
que não restam dúvidas de que se faz necessário o pagamento da dívida, como forma de manter a
confiabilidade do Poder Público, primordial para a negociação em mercado. Entretanto, o que a
análise da LRF deixa claro é que a busca por um equilíbrio financeiro-orçamentário tem-se
mostrado como o grande vetor para a atuação pública, e há que se discutir se ele deveria,
realmente assumir um papel tão relevante em um país tão carente da atuação pública em prol de
políticas públicas, como é o Brasil.
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Marcos Nóbrega (2002:32) aponta o princípio do equilíbrio fiscal como o grande
princípio da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ele afirma que o equilíbrio fiscal é mais amplo e
transcende o mero equilíbrio orçamentário. “Equilíbrio fiscal significa que o Estado deverá pautar
sua gestão pelo equilíbrio entre receitas e despesas. Dessa forma, toda vez que ações ou fatos
venham a desviar a gestão da equalização, medidas devem ser tomadas para que a trajetória de
equilíbrio seja retomada.” Tal constatação da preponderância desse princípio é evidente, haja
vista os já apontados dispositivos que dificultam chegando até mesmo a vedar a renúncia de
receitas e os outros tantos que preceituam a limitação de despesas.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu artigo 17, estabelece inúmeras restrições à
realização de despesas de caráter continuado, que, segundo Marcos Nóbrega (2002:33), “seriam
aquelas derivadas de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que estabeleçam para
o ente uma obrigação legal de sua execução por período superior a dois exercícios. São aquelas
despesas que se protraem no tempo”, nas quais, entende-se que poderiam se enquadrar as
políticas públicas. O artigo 17, entre outras coisas, estabelece que a criação ou o aumento de
despesa obrigatória de caráter continuado terá que ser acompanhado de “comprovação de que a
despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais, (...) devendo seus efeitos
financeiros (...) serem compensados pelo aumento permanente de receita ou pela redução
permanente de despesa.”
A questão que se apresenta então, é como proceder na hipótese da criação de uma despesa
obrigatória de caráter continuado, que consista em uma política pública demandada
legitimamente pela população que escolheu um dado governante para realizá-la, e tendo o gestor
público feito prova de que a mesma não afetará as metas fiscais, pela existência de um superávit,
por exemplo. A pergunta que surge é se estaria o gestor obrigado a compensá-la pelo aumento
permanente da receita ou pela diminuição permanente da despesa. À primeira vista, a letra da lei
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parece levar a conclusão de que sim, mas entende-se que tal questão não é tão simples. Há que se
considerar que em nada ficou prejudicado o equilíbrio fiscal pela adoção de tal despesa de caráter
continuado. Dessa forma, entende-se que seria desarrazoada a cobrança de um aumento de receita
ou diminuição de despesa permanente para compensar a assunção da despesa de caráter
continuado, legitimamente escolhida.
Figueiredo apud Marcos Nóbrega (2002:34) ensina que:
“Verifique-se, para tal, que pode ocorrer a expansão das receitas do Estado mediante o
combate à sonegação e que o princípio norteador de toda a LRF é o da busca permanente
do equilíbrio entre a receita e a despesa, que não seriam considerados caso se adotasse a
mera interpretação literal. A conjunção desses dois fatores e a incidência do princípio da
razoabilidade permitem-nos atestar que não há a obrigatoriedade de que a compensação
mediante aumento permanente de receita ou redução permanente de despesa seja
indispensável em todos os casos de criação ou aumento de despesas obrigatórias de
caráter continuado. (...) Assim, ocorrendo o aumento das despesas continuadas, faz-se
necessário apenas demonstrar que as novas despesas não afetarão as metas fixadas na
LDO vigente para o período em que ocorrerão ou, ao menos, para o triênio abrangido
pela lei de diretrizes e que, somente quando não puder ocorrer o cumprimento de tais
metas, deve-se proceder à compensação imediata deste acréscimo mediante aumento
permanente de receita ou redução permanente de despesa na forma preconizada no § 2º,
parte final, e § 3º”
Então, tem-se que, a partir de uma interpretação que tome em consideração o princípio da
razoabilidade e que busque a realização das demandas sociais, uma vez comprovada que
determinada política pública não afetará as metas de resultados fiscais, entende-se que poderá ser
implementada independentemente de comprovação de aumento de receita ou de redução de
despesa permanentemente. Entender de modo contrário dificultaria ou até mesmo inviabilizaria a
implementação de políticas públicas, à vista da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Conforme já foi dito anteriormente e se percebe à primeira vista em uma breve leitura da
Lei de Responsabilidade Fiscal, tem-se que a mesma tomou como grave preocupação o gasto
público, criando vários mecanismos e restrições às despesas. Entretanto, considerando-se a teoria
econômica de Keynes, tem-se que nem sempre o gasto público é um mal. Ele pode servir para
gerar empregos e reaquecer a economia, gerando no longo prazo, crescimento econômico. O
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gasto irresponsável e sem planejamento sim é ruim. Dillard (1993:113), ao tratar do gasto público
em um estudo sobre a teoria econômica de Keynes, ensina que “um governo que deseje estimular
um nível mais elevado de emprego pode combinar o gasto, o empréstimo e a tributação em
qualquer dos três tipos de política fiscal.”
Sendo assim, entende-se que de fato era necessária uma lei que viesse a tratar dos gastos
públicos impondo sanções para os gestores irresponsáveis. Mas, o limite ao gasto público deve
ser tomado dentro de parâmetros plausíveis, em que se considere as finalidades da despesa, a
maneira como a mesma foi contraída e as conseqüências que a mesma gerará na sociedade e na
economia. O equilíbrio financeiro-orçamentário não pode ser tomado como um fim em si mesmo.
Ele deve ser uma necessidade e um instrumento para a busca da realização de um Estado mais
distributivo, que se aproxime mais do Estado idealizado em nossa CR/88, “Estado Democrático
de Direito”.
Por fim, e para demonstrar que a Lei de Responsabilidade Fiscal também contemplou os
gastos sociais, convém chamar a atenção para o teor do artigo 25, § 3º, da Lei Complementar
101/2000, que excetuou da sanção referente à suspensão de transferências voluntárias os valores
relacionados a educação, saúde e assistência social. Percebe-se aqui, uma preocupação do
legislador com essas três áreas tão carentes no Brasil, atualmente, e que necessitam de
investimento.
Entende-se que os agentes políticos, legitimados pelo povo, o foram para atender os
interesses públicos e ainda, para cumprir as metas estabelecidas em seus planos de governo,
criando, de fato, um compromisso com seus eleitores, que deve ser cumprido. Infelizmente, a
cultura brasileira demonstra o contrário, e os cidadãos não costumam cobrar de seus
representantes o que foi prometido, durante a campanha eleitoral, constatando-se rotineiramente,
uma situação de afronta à democracia. No entanto, reside na autonomia dos Municípios e
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Estados, a possibilidade de ditar suas prioridades, que não necessariamente terão que ser as
mesmas da União.
Como afirma Estevão Horvath (2001:158):
“Os interesses do Presidente da República – e do Governo que ele representa – podem
diferir, em muitos aspectos da orientação ideológica, social e econômica de um
governador de Estado ou de um Prefeito. Estes, tal como aquele, foram
democraticamente eleitos para, em tese ao menos, colocarem em execução o seu
programa de governo, e não necessariamente, para avalizar o programa do governo
federal. Suponha-se que a prioridade de determinado governo federal seja o pagamento
dos juros da dívida externa brasileira, enquanto que um certo Estado-membro da
Federação tenha por objetivos fundamentais a realização de programas sociais. Será que
esse Estado federado terá a obrigação – imposta pela LRF – de desviar-se do seu projeto
somente para atender o que for da predileção do ente federal? Quer-nos parecer que não.
Caso contrário, poder-se-ia falar, realmente, de autonomia? A União poderá, com efeito,
elaborar e executar planos nacionais e regionais visando ao desenvolvimento regional e
nacional em consonância com aquilo que o Congresso Nacional houver aprovado. No
entanto, que o faça com os seus recursos, sem pretender impor aos demais entes
federados destinação de verbas para fins outros que não os desejados pela esfera
federal.”
Por fim, traz-se à discussão a questão referente à falta de recursos para a realização de
políticas públicas em benefício da coletividade, que usualmente é abordada como justificativa
para a não concretização dos direitos sociais. Conforme assevera Ricardo Lobo Torres apud
Luiza Cristina (2000:69), ainda que quisesse o administrador público se furtar de seu dever de
implementar políticas públicas, visando a realização de direitos constitucionalmente garantidos,
alegando para tanto, a falta de recursos financeiros, não poderia, pois “a preocupação está ligada
à eficácia das normas constitucionais da ordem social. Ao se definir mínimos sociais, o Poder
Constituinte originário pretende ultrapassar as questões atinentes aos limites financeiros do
Estado para a realização da referida ordem.”2
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O Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu em mandado de segurança No. 250.351-4/00 que “o artigo 196 da
Constituição Federal [dispõe] que a saúde é direitos de todos e dever do Estado, que deverá garanti-lo mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos. (...) Por essas razões,
entraves burocráticos, como a discussão de qual ente federado seria a responsabilidade pelo custear do tratamento,
não podem, de forma alguma, agravar ainda mais a enfermidade do impetrante. Além disso, os argumentos da falta
de previsão orçamentária e recursos financeiros não procedem.” (Publicado no “Minas Gerais”de 25/09/02).
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Então, tem-se que apesar das restrições contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal e
ainda, das limitações financeiras vivenciadas pelo Poder Público, os direitos sociais estabelecidos
pela Constituição e ainda, regulamentados por legislação própria, não podem ser tidos como
meras “figuras decorativas” e requerem políticas públicas para serem implementados. De modo
que, faz-se necessária uma compatibilização, em termos práticos, das restrições da Lei
Complementar 101/2000, em razão da moralidade na gestão fiscal, com as demandas e
necessidades da concretização dos direitos sociais. Encontrar o ponto de equilíbrio nesta questão
é o grande desafio a ser enfrentado pelo administrador público.
A questão que se propôs então, a respeito da situação das políticas públicas na Lei de
Responsabilidade Fiscal, deve tomar as políticas públicas como um valor juridicamente
protegido, bem como a responsabilidade fiscal, de modo a compatibilizá-los. Não se pode
esquecer de que se, a moralidade, transparência e a limitação dos gastos públicos foram
recepcionadas por nosso ordenamento jurídico, também o foram a prestação de educação, saúde,
moradia, dentre outros. Portanto, a restrição à despesa pública não pode se dar a tal ponto, que se
transforme em um fim em si mesma, impossibilitando a realização dos direitos sociais.
Desse modo, o administrador público assume o importante papel de buscar o equilíbrio
entre as políticas públicas e a lei de responsabilidade fiscal, para tanto, utilizando sempre dos
princípios constitucionais como condicionadores da aplicação da lei de responsabilidade fiscal.
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