CADEIRA : História do Cinema DOCENTE: Prof. José Manuel Costa DISCENTE: Ana Filipa Gonçalves Gaspar 4º Ano n.º8474 Ciências da Comunicação 1º Semestre 2002/2003 “A classic film cannot translate the real rhytmn of modern life (…). Modern life is fragmented, everyone feels that. Painting, as well as literature, bears witness to it, so why should the cinema not to do so as well, instead of clinging to the traditional linear narrative?” Alain Resnais citado por David Parkinson (1995) “Alain Resnais é um cubista (...), o primeiro cineasta moderno do cinema falado (...). Não houve ainda um cinema profundamente moderno que tentasse fazer o que o cubismo fez na pintura e o romance americano na literatura, isto é, como uma espécie de reconstituição da realidade a partir de uma certa fragmentação”. Eric Rohmer in “Cahiers do Cinéma”, n.º 97, Julho de 1959 2 Índice Introdução 1. Um filme no seio de uma História 2. Uma leitura de imagens em movimento Conclusão Bibliografia 3 Introdução P orquê uma análise sobre Hiroshima Mon Amour? Porquê um olhar atento sobre as cenas iniciais? Em primeiro lugar, pelo cineasta por detrás do filme, porque é dele o olhar ao longo de todo Hiroshima Mon Amour e, como Serge Daney confessa, há algo que permite pensar que «os corpos dos primeiros planos (...) são coisas que me olharam mais do que eu olhei a elas»1. Alain Resnais possui uma perspectiva muito particular da realidade e o reflexo do seu pensamento na sua obra gera grandes paixões e grandes ódios. Com influências culturais múltiplas e contraditórias, desde a literatura de Proust à banda desenhada, este cineasta assumiu um papel relevante na revolução do modo de fazer cinema, no final da década de 50. Durante trinta e cinco anos, realizou treze filmes. Por outro lado, o filme em si. Considerado como a consequência lógica de dois filmes chaves na filmografia de Resnais, Guernica e Nuit et Brouillard, Hiroshima Mon Amour narra uma história complexa, que oscila entre o presente, o passado e o futuro. Resnais e Duras chegaram à conclusão de que, apesar do seu carácter ficcional, o filme deveria conter um documentário, «a sort of false documentary that would probe the lesson of Hiroshima more deeply than a made-to-order documentary»2. Manifestando uma relação irónica com a tradição documental, o filme encerra dentro de si vários filmes, várias histórias, nomeadamente a narrativa de Nevers e o registo ficcional, a narrativa de Hiroshima e o registo documental. A personagem interpretada por Emmanuelle Riva, cujo nome nunca saberemos, diz a certa altura que os únicos filmes possíveis em Hiroshima são sobre a Paz. Todavia, Hiroshima Mon Amour não é um filme sobre a paz. É um filme sobre o esquecimento, a morte e o amor. Nele, duas personagens conhecem-se, amam-se e separam-se. Eiji Okada interpreta a personagem masculina da qual também nunca saberemos o nome. No final, Riva e Okada assumem um nome eterno para serem recordados e esquecidos: Nevers e Hiroshima, as duas cidades onde se viveram as grandes tragédias, semelhantes porque dolorosas de igual modo e não pela dimensão que atingiram. in “O «travelling» de Kapo”, publicado na “Revista de Comunicação e Linguagens” O que é o cinema? 2 Marguerite Duras citada por Marsha Kinder e Beverle Houston in Close-up: a critical perspective on film. Tradução: “Uma espécie de falso documentário que provaria a lição de Hiroshima mais profundamente do que um documentário por encomenda”. 1 4 1. Um filme no seio de uma História “With Hiroshima Mon Amour Alain Resnais (…) emerges as one of the best moviemakers of our time” John McCarten in “The New Yorker”, 28 de Maio de 1960 E m 1959, Hiroshima Mon Amour de Alain Resnais é, em conjunto com Les quatre cents coups de Truffaut e À bout de souffle de Jean-Luc Godard, um dos três filmes que revelam a emergência de uma nova linguagem audiovisual no cinema. O final da década de 50 e o princípio dos anos 60 ficaram marcados por constantes lutas entre o mundo ‘antigo’ e a modernidade. Num contexto de mudança social e política, o cinema sentia necessidade de acompanhar as aspirações dos espectadores, cuja presença nas salas diminuía rapidamente. A primeira viragem fundamental teve lugar em França através da denominada Nouvelle Vague, um movimento que contagiou o modo de fazer cinema em todo o mundo, afectando igualmente os comportamentos de Hollywood. Pela mão de Resnais, Truffaut e Godard, entre outros, instalou-se uma reacção contra o Cinéma du Papa, o convencional cinema francês assente em comédias, aventuras românticas e adaptações de clássicos. Advogando o cunho único do cineasta visível na sua obra e o uso da câmara como meio de expressão pessoal, os membros da Nouvelle Vague distinguiam-se estética e ideologicamente entre si, mas partilhavam o desejo de se distanciarem e se oporem à indústria cinematográfica (mainstream industry). Inscrevendo-se num cinema intelectual e ‘militante’, a obra de Alain Resnais desenvolveu-se a partir de documentários com o formato de curta-metragem, que progressivamente delinearam o estilo do cineasta e muitas das ideias que enformaram a Nouvelle Vague. Hiroshima Mon Amour surge como a primeira longametragem de Resnais e consolida a tendência do autor para explorar uma realidade que é, antes de tudo, privada. O filme representa temas que anteriormente Resnais já tratara e que no futuro continuariam a marcar a sua obra. O tempo, a memória e o esquecimento atravessam Hiroshima Mon Amour como outrora Les Statues meurent aussi (1950-53), Nuit et Brouillard (1955) ou Toute la Mémoire du Monde (1956). De facto, o cineasta confessa ser «obcecado pela morte, pelo tempo que passa, pelo desgaste das coisas»3 e posteriormente reencontraríamos vestígios dessas obsessões em L’année derniére à Marienbad (1961), Muriel ou Le temps d’un retour (1963) ou L’Amour à Mort (1984). Para além disso, nos filmes de Alain Resnais, destaca-se ainda a importância da cidade ou do local onde decorre a acção, assumindo um papel de protagonista na narrativa. Hiroshima imortalizada pela realidade e pelo título do filme é estudada atentamente pelo olhar do cineasta, como Bolonha seria um dos sujeitos vitais em Muriel e Paris seria revista em La Guerre est Finie (1966). A nova linguagem fílmica de Hiroshima Mon Amour, comparada por vezes à revolução atingida por Intolerance de Griffith ou Citizen Kane de Orson Welles nas 3 Alain Resnais em entrevista citado por Claude Beylie in Os Filmes-Chave do Cinema. 5 respectivas épocas, revela-se no «diálogo lírico que define ao mesmo tempo a estrutura da obra, a montagem e o som» (André Delvaux4). Esta técnica, esboçada desde Guernica (1950), consiste no emprego subtil do travelling, investigando a intimidade dos seres e a sua presença ao mundo, combinado com um monólogo ou música interiores, que ecoam os sentimentos desses mesmos seres. Por outro lado, a história do filme mantém uma relação intrínseca com a história no filme. No âmbito da produção, a primeira longa-metragem de Alain Resnais inscreve-se na história de uma pequena sociedade, a Argos, cujo objectivo era apoiar o esforço de cineastas à margem da apreciação do público conservador e favorecer o desenvolvimento de uma arte progressista. Fundada em 1949, esta sociedade possuía uma empresa satélite que, entretanto, se associou a Pathé Overseas, fundada com o intuito de encorajar co-produções entre a indústria cinematográfica francesa e asiática. Desta conjuntura de forças nasceu a ideia de produzir um documentário franco-japonês acerca das consequências das armas nucleares. Após o sucesso obtido por Nuit et Brouillard, cujo resultado agradou à produtora, Resnais recebeu o convite para realizar aquele que poderia ser um trabalho de aproximação do documentário sobre os campos de concentração à destruição de Hiroshima pelo bombardeamento atómico. Após um estudo sobre o assunto, Resnais acabou por abandonar a concepção inicial do documentário e levantou a possibilidade de um registo ficcional. O produtor e distribuidor japonês apresentou apenas algumas condições acerca da história: deveria ser, em parte, filmada no Japão e incluir um actor japonês. A partir destas circunstâncias, principiou a tomar forma uma história de amor assombrada pela angústia ‘atómica’. No Japão, Alain Resnais confiou a imagem a Takahashi Michio e, em França, o director de fotografia foi Sacha Vierny, não sendo permitido a cada um a visualização das filmagens produzidas pelo outro. Com um argumento inicialmente atribuído a Françoise Sagan, que o rejeitou, o trabalho de Alain Resnais foi complementado com o esforço criativo de Marguerite Duras, cujo romance Moderato Cantabile havia interessado particularmente o cineasta, incutindo-lhe o desejo de ‘imaginar’ algo a partir das linhas do romance. «The idea of two stories, each contained within the other, and both of which would be recounted in the present»5 – eis os termos em que Resnais apresentava a Duras as linhas que deveriam orientar a história de Hiroshima Mon Amour. Na verdade, não seria a primeira vez que Resnais iria trabalhar com um escritor. Anteriormente, em Nuit et Brouillard, o argumento fora escrito por Jean Cayrol e, mais tarde, em L’année derniére à Marienbad, Alain Robbe-Grillet colaboraria igualmente no argumento. Ao conciliar o seu modo de fazer cinema à escrita de Marguerite Duras, Alain Resnais aliava a Nouvelle Vague ao Noveau Roman, obtendo um resultado particularmente interessante e polémico. Se certos autores defendem a originalidade de Hiroshima Mon Amour tanto pela imagem como pela palavra, outros criticam com acervo a associação do cinema à literatura e o trabalho de Marguerite Duras na obra final. Como refere Kast, «Hiroshima é um filme literário. Ora, o adjectivo literário é o cúmulo da injúria no inventário quotidiano do cinema. O que salta à cineasta belga citado por Claude Beylie, idem. Alain Resnais citado por Lynn A. Higgins in New Novel, New Wave, New Politics. Tradução: “A ideia de duas histórias, cada uma contida no interior da outra, e ambas seriam novamente narradas no presente”. 4 5 6 vista de uma forma deslumbrante em Hiroshima é a negação desse hábito de linguagem. Como se, à maior ambição cinematográfica, Resnais tivesse sobreposto a maior ambição literária»6. Assim, Hiroshima Mon Amour é o reflexo de várias condicionantes económicas e criativas. A história de uma actriz francesa e das suas memórias de Nevers, enquadradas em flashback num presente vivido em Hiroshima são o retrato de um financiamento comum a França e ao Japão e o resultado do empenho e imaginação de Resnais e Duras. E é esse filme que chega ao público em geral e ao espectador em particular, a quem Resnais pretende dirigir-se através de um estado mental crítico – «I want the spectator to identify himself not with the hero but only from time to time, with the feelings of the hero»7. Em 1959, quando o comité de selecção do Festival de Cinema de Cannes escolhe a primeira longa-metragem de Alain Resnais como um dos três filmes franceses presentes nesse ano, a comissão desse mesmo festival opta por retirá-lo, alegando a possibilidade do filme prejudicar as relações internacionais, nomeadamente com os Estados Unidos. Na realidade, repete-se o incidente de 1955, quando Nuit et Brouillard fora igualmente excluído do festival, por se recear ofender a Alemanha. Contudo, por detrás desta constante censura, na opinião de Edgar Morin, reside o facto dos filmes de Resnais serem incompatíveis com a Quinta República Francesa. De qualquer modo, apesar de se encontrar fora da competição, o filme recebe o Prémio da Crítica. A 16 de Maio de 1960, Hiroshima Mon Amour estrearia no Fine Arts Theatre em Nova Iorque e os americanos, que o júri de Cannes temia desagradar, louvam e glorificam o filme de Resnais. No Saturday Review de 21 de Maio de 1960, o crítico Hollis Alpert refere-o como sendo «a work of enormous dignity, a landmark in motion pictures»8. O argumento original de Marguerite Duras receberia, inclusivamente, uma nomeação para os Óscars. Em Portugal, a obra-prima de Alain Resnais só viria a estrear quinze anos depois da sua realização, dois dias depois da revolução que libertou o país das amarras da censura, no Cinema Londres. in “Cahiers do Cinéma”, n.º 97, Julho de 1959. Alain Resnais citado por Marsha Kinder e Beverle Houston, idem. Tradução: “Eu quero que o espectador se identifique não com o herói mas apenas, de quando em quando, com os sentimentos do herói”. 8 in SLIDE, Anthony, Fifty Classic French Films, 1912-1982: a pictorial record. Tradução: “uma obra de enorme dignidade, um marco no cinema”. 6 7 7 2. Uma leitura de imagens em movimento “Tanto Resnais como eu concordámos que não podíamos imaginar um filme sobre o Japão sem tocar em Hiroshima, e também sentimos que isto podia ser feito mostrando o horror de Hiroshima, na linha do que foi feito pelos próprios japoneses”. Marguerite Duras em entrevista com Richard Roud, “S&S” 29/1, Inverno de 59/60 H iroshima Mon Amour, o título do filme, tem o seu sentido expresso de imediato nas suas imagens iniciais, apesar de somente o final ter o poder de o esclarecer por completo. Os primeiros 14 minutos e 21 segundos da primeira longa-metragem de Alain Resnais são planos de corpos a fazer amor e de corpos a morrer, imagens de vida e de morte numa estranha coincidência, possível apenas porque, através dos processos mentais, a memória ressurge na consciência do ser humano. O genérico do filme é uma marca fossilizada que convém recordar. A música ao longo do conjunto de sequências em análise é o resultado do trabalho de Giovanni Fusco. O tema inicial denomina-se oubli e, de um modo quase imperceptível, introduz na mente do espectador, desde o primeiro segundo, um dos temas fundamentais de Hiroshima Mon Amour – o esquecimento. A primeira cena do filme é constituída por cinco grande planos encadeados de dois corpos abraçados com uma força tal que parecem unidos desde sempre e para sempre9. Sobre um fundo negro, os corpos amam-se lentamente e atravessam vários estados. No primeiro plano, estão cobertos por uma espécie de pó que se assemelha à cinza atómica, remetendo directamente para o bombardeamento de Hiroshima. Do lado de cá do ecrã, o espectador questiona-se durante os 18 segundos do plano se são corpos a morrer ou se são corpos a fazer amor. A estranha proximidade entre o amor e a morte começa a desenhar-se. No plano seguinte, o pó sobre os corpos transformase numa substância brilhante, como o orvalho. Em seguida, o grande plano fixo sobre os corpos revela-os inicialmente secos, mas progressivamente suados. Os corpos são diferentes e percebe-se que o tom da pele é distinto. O quarto plano consuma a evolução do plano anterior e a imagem dos corpos entrelaçados e suados apresentase ao espectador, confirmando o acto de fazer amor. Pressente-se que um estranho desejo os une. Por fim, a imagem fica ligeiramente nublada e uma mão surge nas costas de um dos corpos. A mão revela a natureza feminina do corpo e no dedo anelar tem uma aliança, que passa quase despercebida. Neste momento, inicia-se aquilo que Resnais intitula como a ‘Ópera’. Uma voz masculina desencadeia uma 9 No guião inicial, estava previsto que a abertura do filme iria realizar-se com a formação do ‘cogumelo’ do bombardeamento atómico. Em consequência, os corpos dos primeiros planos teriam sobre si depositados os resíduos da explosão. Contudo, decidiu-se conferir às imagens dos corpos uma dimensão de antecipação qualitativa, tornando mais subtil a analogia ao drama de Hiroshima. 8 série de imagens e uma espécie de diálogo lírico, ao interpelar a voz do outro corpo, a voz da amante: «Tu n’as rien vu à Hiroshima. Rien». Ela responde: «J’ai tout vu. Tout». E com a repetição de palavras inicia-se uma narração assente num discurso fragmentário, quase poético, distinto do que seria habitual no cinema. O diálogo das personagens assume características de um monólogo, como se cada voz falasse apenas para si. O primeiro filme dentro do filme é, assim, desencadeado. Como se o espectador pudesse ver a memória da personagem, principia o desenrolar de experiências dela em Hiroshima, o ‘todo’ que ela viu. Na verdade, o motivo pelo qual a personagem masculina a irá constantemente contestar, afirmando que ela nada viu, reside no facto de ambos os amantes não estarem na cidade, no momento da explosão. O ‘todo’ que ela viu é uma ilusão, ou seja, uma colecção de documentos, objectos e factos que não revelam a essência da experiência do acontecimento. O conjunto de imagens assume, deste modo, um carácter documental e aproxima-se de Nuit et Brouillard. Alain Resnais realizara em 1955 um documentário sobre os campos de concentração e elabora agora um trabalho semelhante ao olhar as consequências da bomba sobre Hiroshima. Ela viu o hospital. O primeiro de sete planos no cenário diurno corresponde a um plano médio em contra-picado do edifício do hospital e da sua torre, procurando coincidir com a imagem que os olhos da personagem poderiam ver. Entramos no hospital com um travelling para a frente no corredor, onde mulheres estão paradas diante das portas dos quartos e olham directamente para a câmara, como se olhassem para uma pessoa. A voz de Emmanuelle Riva coloca interrogações retóricas com o intuito de justificar a impossibilidade de não ter visto Hiroshima nem o seu hospital. Mediante o uso do travelling, o plano seguinte consiste na entrada para um quarto, onde à porta uma mulher desvia-se, deixando ver dois pacientes, um que abana um leque e outro que lê. Em seguida, dois planos médios ligeiramente picados reflectem um olhar sobre os pacientes que, incomodados com esse olhar alheio, voltam os seus corpos contra a objectiva. Um plano geral de um outro quarto apresenta outros pacientes, um dos quais, em primeiro plano, manifesta uma atitude igual à verificada previamente, enquanto outro se mantém estático e absorto, sentado sobre a cama, indiferente ao olhar exterior. Em último lugar, um novo travelling no mesmo corredor onde a personagem/o espectador entrou para o hospital, só que agora vazio - um travelling a uma velocidade constante conferindo à imagem uma sensação de imobilidade. De novo, a voz dele surge sobre o fundo musical do tema corps, que, entretanto, termina: «Tu n’as pas vu d’hôpital à Hiroshima. Tu n’as rien vu à Hiroshima». Com um silêncio e um retorno aos corpos, o documentário faz uma breve pausa. Durante cinco segundos, o grande plano dos corpos é composto pelo mesmo abraço e pela mesma mão que acaricia as costas do amante com sensualidade. O regresso ao documentário faz-se através de um plano geral de um museu e a voz de Riva que declara «Quatre fois au musée», introduzindo o tema musical musée. Nos cinco planos fixos seguintes, reconhece-se o museu e as escadas que permitem entrar no edifício. Entretanto, a voz de Eiji Okada contrapõe novamente «Quel musée à Hiroshima?» Ela descreve-o, referindo o que viu nas imagens de que se recorda: as 9 pessoas a passearem, as fotografias, as explicações, o ferro, as cápsulas, as peles humanas, as pedras, os cabelos das mulheres. Em doze planos, que oscilam entre o geral e o médio, recorrendo à captura fixa da imagem ou em movimento pelo uso de travellings ou panorâmicas, o espectador acompanha passo a passo o relembrar da personagem, que insiste em enumerar cada prova, cada elemento, cada descoberta de Hiroshima e da sua história, como se tentasse através das próprias palavras, aliadas à recordação da experiência, alcançar a realidade de ter visto ‘tudo’ em Hiroshima. Subitamente, ao passo que as imagens de visitantes que olham quadros com fotografias de vítimas alternam para imagens dessas mesmas fotografias, onde homens estão retratados com as suas diversas queimaduras, a voz silencia-se como se estivesse a absorver a experiência para dizer que sentiu o calor na Praça da Paz. Um plano geral da Praça da Paz, em travelling para a esquerda, apresenta o local onde a bomba explodiu. Localizada ao lado do museu, visualiza-se na imagem as colunas do edifício. A voz de Riva relembra os dez mil graus na Praça da Paz e de novo coloca uma interrogação retórica: «Comment l’ignorer?» A voz de Okada replica mais uma vez «Tu n’as rien vu à Hiroshima. Rien». Com um fundo negro, o documentário é pela segunda vez suspenso por um plano dos corpos, onde a mão feminina envolve o ombro do amante. Sete segundos depois, voltamos ao museu e a voz de Riva recomeça, sem responder à provocação de Okada. Com um plano geral, num travelling em frente, vêem-se manequins em montras de vidro, mas com uma panorâmica rápida horizontal no sentido da direita passa-se repentinamente para imagens de actualidades, isto é, filmes feitos pelos japoneses na sequência do acontecimento para ilustrá-lo. A voz feminina refere uma ilusão quase perfeita, ao ponto de fazer os turistas chorar. Ela, que havia olhado atentamente as pessoas que passeavam no museu, as suas atitudes e as suas descobertas, sorvia de igual forma os seus sentimentos e, como elas, afirma chorar por Hiroshima. Enquanto isso, os vinte e quatro planos que recriam os momentos vividos após o bombardeamento, desde as pessoas a fugirem do fogo, os cadáveres amontoados, as ruínas, os bichos, os animais até às pessoas mutiladas, intensificam sucessivamente o drama, atingindo uma espécie de clímax com um grande plano de uma mão estropiada e um plano médio de um rosto, onde um dos olhos é aberto com pinças cirúrgicas para ser retirado. Durante estes planos, o diálogo entre Riva e Okada introduz ainda aspectos relevantes para o desenvolvimento posterior da narrativa. A voz masculina replica que ela não chorou por Hiroshima. A voz feminina prossegue a sua narração e recorre à história para comprovar como sabe e viu as actualidades, as notícias de Hiroshima. Ele contrapõe de novo «Tu n’as rien vu. Rien». Ela fala de uma cidade que se recobriu de flores e ele contesta-a, afirmando que ela inventou tudo. Aí, a voz de Riva anuncia uma ideia essencial ao filme – a ilusão de nunca esquecer, no amor e na tragédia, na felicidade e na desgraça. Novamente, o documentário pára e um grande plano dos corpos mostra claramente ao espectador a aliança da personagem feminina. O espectador é convidado a reter na sua memória este novo pequeno indício. «J’ai vu aussi les rescapés et ceux qui étaient dans le ventre des femmes de Hiroshima.» - assim, a voz de Riva reintroduz o documentário e onze planos de imagens perturbantes de pessoas que sofreram as consequências físicas da catástrofe. De crianças a adultos, a 10 tragédia afectou indiscriminadamente os sobreviventes e as gerações vindouras, conferindo-lhes deformações e problemas capilares, sintomas de uma morte lenta. A personagem encontra nessas pessoas uma ‘doçura aparente’ no modo como se conformam ao destino - «un sort tellement injuste». A narração pára de novo e o grande plano dos corpos regressa ao ecrã. Uma mão aberta nas costas do amante e, após uma paragem de sete segundos, o documentário regressa. Agora, a personagem recorda a cidade e, ominisciente, diz: «Écoute, je sais. Ça a continué.» O primeiro plano desta nova sequência é um grande plano de uma explosão da bomba H. O bombardeamento de Hiroshima não foi o fim. Depois disso, outras guerras continuaram. Ele contesta-a e afirma: «Rien. Tu ne sais rien.» A voz de Riva fala nos perigos de as mulheres gerarem monstros, os homens ficarem estéreis e a comida estar contaminada. Planos gerais das pessoas nas ruas, enquanto chove. Grandes planos da detecção de radiação junto do crânio de um homem, de um homem morto, de um peixe contaminado e de um cardume idêntico em várias filas. Ela relembra a raiva das multidões em protesto, que são obrigadas a enterrar os seus peixes. Planos gerais e muito gerais apresentam ao espectador as aglomerações de pessoas, em reivindicação e em marcha. Riva interpela o seu interlocutor e diz-lhe:« Comme toi, je suis douée de mémoire. Je connais l’oubli». De novo, a memória e o esquecimento são sublinhados e imagens de lojas de recordações e respectivos produtos tomam forma no ecrã. Ele replica: «Non. Tu n’es pas douée de mémoire.» Os catorze planos seguintes dizem respeito a monumentos e a excursões turísticas pelas ruínas de Hiroshima. A memória que preocupa frequentemente Resnais assume aqui grande relevância, ao se tratar de uma reflexão mental, que recorre à lembrança, e que assenta sobre a memória física dos monumentos e das ruínas. Nos últimos cinco planos da sequência, há uma gradação do olhar em contra-picado, partindo de imagens de ruínas muito gerais para pormenores particulares, como a estrutura de uma cúpula. Pela penúltima vez, os corpos dos amantes na cama, sobre um fundo negro, tornam a suspender a narração de cariz documental. No mais breve dos planos neste cenário, as mãos da personagem feminina continuam a abraçar as costas do amante. De novo, o documentário volta à cidade onde a voz de Riva repete como antes: «Écoute-moi. Je sais encore. Ça recommencera.» Como se prevesse futuros acontecimentos, a personagem descreve o número de mortos, a duração da explosão e a temperatura. Os planos principiam com imagens de árvores quase nuas e uma imagem de um Buda rodeada de pedras anuncia a civilização. Na cidade, as imagens destacam a presença nas ruas de uma espécie de foguete de guerra. Num plano geral, em contra-picado, vê-se no topo de um edifício um foguete ou uma bomba. Desse mesmo lugar, vê-se o resto da cidade, com um plano geral, em picado. Após estas imagens, ela descreve o ressurgimento da vegetação. Um grande plano, em picado, da vegetação inclui na imagem um maço de tabaco «Peace», mais uma mensagem para o espectador. Em seguida, Riva evoca quatro estudantes à espera da morte, cuja imagem finaliza a sequência. Desta vez, a transição para uma outra perspectiva no documentário é feita com um breve plano idêntico à marca fossilizada do genérico, mas com mais luz e sem fundo musical. O registo documental prossegue de imediato com oito muito grande 11 planos do Rio Ota e o seu estuário, constatando-se uma evolução do geral para o particular. O tema musical que acompanha as palavras de Riva durante os trinta e cinco segundos da sequência possui o título fleuve. Finalmente, o último grande plano dos corpos introduz o tema corps pela última vez até ao terminar do conjunto de sequências analisadas. As mãos femininas abraçam o corpo do homem. Em seguida, o documentário apresenta os seus momentos finais, onde se une a cidade à narração seguinte de uma história de amor. Através de cinco planos gerais, em travelling para a frente em velocidade constante, a mente da personagem atravessa toda a cidade e medita sobre a relação amorosa. A sensação que o espectador fica destas imagens é equivalente à que teria se andasse de bicicleta pelos mesmos lugares que visualizou. A voz de Riva assinala uma descoberta: «Je te rencontre. (...) Tu me tues. Tu me faits du bien. Comment me serais-je doutée que cette ville était faite à la taille de l’amour ?» A personagem descobriu em Hiroshima, ao tentar reviver a história da sua tragédia, o seu drama pessoal. A partir deste momento, estão propiciadas as condições para o desenvolvimento da história de outra cidade, igualmente feita ao tamanho do amor – Nevers. Em conclusão, o conjunto de imagens analisadas corresponde a uma primeira parte de Hiroshima Mon Amour que não é facilmente aceite pelo espectador, quando vê o filme pela primeira vez. Como Godard refere, «o que me choca em Hiroshima é que, reciprocamente, as imagens do casal a fazer amor durante os primeiros planos metem-me medo tal como as [imagens] das chagas, também em grande plano, provocadas pela bomba atómica. Há algo, não imoral, mas amoral ao mostrar assim o amor como o horror com os mesmos grandes planos»10. Por isso, e ainda por estas sequências possuírem uma unidade própria, vários autores questionaram a consistência da narrativa, no âmbito global do filme. Contudo, a perspectiva que levou Resnais e Duras a colocarem lado a lado imagens de estranha beleza e imagens de incómoda aberração reside no seio da narrativa fílmica: amor e morte são os dois acontecimentos na origem das duas tragédias, uma colectiva, outra individual. Após a leitura das imagens, reconhece-se a mensagem: no amor, como na morte, é preciso reviver a lembrança e esquecê-la, apesar da ilusão de não ser capaz de esquecer. 10 in “Cahiers do Cinéma”, n.º 97, Julho de 1959. 12 Conclusão A última página de um livro pode ser como a última imagem de um filme, ou seja, pode dizer tudo e pode não acrescentar nada. Tal como o livro, o filme pode ou não ter um final. Hiroshima Mon Amour não termina. Antes, começa e recomeça continuamente, porque a estrutura da narrativa permite ao espectador acreditar que o princípio é o fim e que os amantes voltaram a unir-se no acto amoroso. Segundo Alain Resnais e Marguerite Duras, ele e ela separam-se após a última cena, regressando aos seus lares. Contudo, o espectador insatisfeito insiste em conferir um final feliz a um filme pleno de dor e de uma estranha doçura. A personagem interpretada por Riva fica na memória do público como um misto de racionalidade e de loucura, próxima de heroínas da literatura e do cinema, como Madame Bovary. Experienciando um reviver de memórias, a personagem feminina é, desde as cenas iniciais, interpelada e questionada pelo personagem de Okada, que procura, através de uma estratégia de persuasão, fazê-la prosseguir na sua tomada de consciência sobre o presente e o passado que o condiciona. Ao ser confrontada com as imagens de Hiroshima, ela absorve a tragédia colectiva e relembra a tragédia pessoal. Desde o primeiro plano do filme ao último, uma mesma história ganha contornos, adensando-se e revelando-se ao espectador. Após uma análise minuciosa das imagens iniciais, constata-se uma montagem extremamente inteligente, na medida em que, como Rivette evidencia, reencontra uma unidade na fragmentação, sem anulá-la, mas acentuando-a ao acentuar a independência do plano. Este duplo movimento característico da montagem de Alain Resnais aproxima-o de Eisenstein, segundo o crítico do «Cahiers du Cinéma». Ao olhar cada plano e perceber o seu sentido individual e a sua significação no todo, percebe-se que tudo aquilo que se pensou é ainda parcial e subjectivo. Resta talvez dizer: «Je n’ai rien vu à Hiroshima. Rien.» 13 Bibliografia AA. VV., Tu n’as rien vu à Hiroshima, Editions L’Instituit de Sociologie, Belgique, cop. 1962. ANDRADE, João Navarro de (org.), Alain Resnais, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1992. BEYLIE, Claude, Os Filmes-Chave do Cinema, Editorial Pergaminho, Lisboa, cop. 1997. CARLIER, Christophe, Marguerite Duras, Alain Resnais – Hiroshima mon amour, Presses Universitaires de France, Paris, 1994. CASE, Christopher, The Ultimate Movie Thesaurus, Henry Holt and Company, New York, 1996. DURAS, Marguerite, Hiroshima Meu Amor, Quetzal Editores, Lisboa, 1997. 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