Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
PEDAGOGIA ECOVIVENCIAL NO ECOSSISTEMA DO MANGUEZAL – UMA
RELEITURA DO QUERER BEM FREIREANO
Luciane Schulz (UFPB – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação)
Francisco José Pegado Abílio (UFPB - Professor Associado I Programa de Pós-Graduação em Educação)
Resumo: Levando-se em consideração o cotidiano de uma escola da rede estadual, numa
perspectiva de EA crítica, objetivou-se pesquisar o entrelaçamento de ecovivências com os
saberes freireanos, tendo como foco o querer bem ao ecossistema manguezal, por entendermos
que a aprendizagem envolve também os processos afetivos. O público alvo foram alunos do 7º
ano do Ensino Fundamental na cidade do Natal (RN), no primeiro semestre de 2012.
Desenvolveram-se ecovivências junto aos alunos e o aprendizado foi avaliado por meio de
questionários e do sandplay. Os resultados mostraram que as atividades entrelaçadas aos saberes
freireanos no ecossistema manguezal, contribuíram para a aprendizagem significativa dos alunos.
Palavras-chave: Ecovivências, Manguezal, Processo Ensino-aprendizagem, Saberes freireanos.
PEDAGOGIA ECOVIVENCIAL NO ECOSSISTEMA DO MANGUEZAL – UMA
RELEITURA DO QUERER BEM FREIREANO
Luciane Schulz (UFPB – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação)
Francisco José Pegado Abílio (UFPB - Professor Associado I Programa de Pós-Graduação em Educação)
1.
Os saberes freireanos e o querer bem ambiental
A expressão querer bem apresentada por Freire (2011a) remete à questão da docência
e da prática educativo-progressiva em favor da autonomia dos educandos. Essa preocupação
tão presente na prática desse grande pensador e educador brasileiro revela sua permanente
dedicação à educação e reflexão sobre a condição do saber e do ser humano. Emerge da
postura crítica e amorosa do autor o legado de ideias, práticas e de valores como caminhos
para a pesquisa, a formação e a prática educativa. Ao entrelaçar a Educação Ambiental – EA,
com os saberes freireanos, buscamos algumas reflexões importantes. Freire (2011a), nos fala
que nas relações justas, humildes e generosas, nasce o clima de respeito, autenticando o
caráter formador do espaço pedagógico. Por outro lado, os saberes epistemológicos e
metodológicos freireanos contemplam a formação cientifica, correção ética, coerência,
responsabilidade, capacidade de viver e aprender com o diferente, não deixando que o mal
5043
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
estar pessoal ou a antipatia em relação ao outro interfira na dedicação da prática educativa.
Um dos saberes fundamentais na prática educativo-crítica é que o ser aprendente assuma-se
como responsável pela produção do seu saber. (FREIRE, 2011a).
O autor destaca que ensinar exige a corporeificação das palavras, pelo exemplo, na
aceitação do novo. Isto nos convida a uma reflexão sobre uma prática educativa ambiental em
favor da implicabilidade das emoções e dos sentimentos para a autonomia do educadoreducando. Também leva em consideração a inconclusão do ser humano num movimento
contínuo de busca, pautado numa ética, denominada ‘ética universal dos seres humanos’.
Porém, para pesquisar e compreender criticamente é necessário pensar, duvidar de suas
próprias certezas e se questionar acerca de suas verdades. É preciso desenvolver a
‘curiosidade epistemológica’, promovendo a criticidade, reconhecendo dessa maneira a
educação como ideológica e como forma de intervenção no mundo. Além do mais, ao
fazemos parte de um processo inconcluso, há sempre possibilidades de interferir na realidade
de modo a modificá-la, em concordância com Freire (2011a).
Fazendo um recorte mais específico para os problemas que afligem o ensino de
ciências e biologia, destacamos a necessidade de propiciar experiências significativas de EA
que fomentem ao educando, seu processo de autoformação, principalmente referentes à
integração com a sua realidade de maneira crítica (FREIRE, 2011a). Atualmente, no cotidiano
escolar, percebe-se, de um modo geral, ações educativas que concebem o desenvolvimento
humano, na visão da cultura do capital, contemplando na maioria das vezes apenas do
desenvolvimento cognitivo. Assim, as práticas pedagógicas dos docentes centram-se na
exacerbação dos meios técnicos de transmissão e de apreensão dos conteúdos e no princípio
do rendimento, numa concepção bancária (FREIRE, 2011c). Muitos estudos apontam que a
aprendizagem não se limita ao campo cognitivo, mas envolve também os processos afetivos,
ou melhor, os reflexivos, afirmando que a interação sensorial impulsiona os pensamentos, os
sentimentos, as emoções e as sensações no decorrer de nossa existência. Além do mais, para
compreender a preferência ambiental de uma pessoa, é necessário examinar, segundo Tuan
(2012), sua herança biológica, criação, educação e arredores físicos. Sendo a EA um processo
participativo e contínuo, com o propósito de formar cidadãos com consciência local e global
(SATO, 2004), a ressignificação dos ambientes de aprendizagem é fundamental.
Ao possibilitar momentos de experiencialidade junto ao seu entorno, em concordância
com Freire (2011a), por meio das mudanças dos espaços tradicionais para espaços
emocionalmente sadios, permitimos o fazer em contínuo diálogo com o ser. Essas mudanças
possibilitam assim a mobilização e a transformação da realidade, como autor e ator da própria
5044
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
história, que, por sua vez, é entendida como o modo de relacionar-se com outros e com a
natureza. Além do mais, estaremos permitindo a aprendizagem com criatividade e afetividade,
onde a experiência ambiental, propiciando descobertas que revelem caminhos de
sensibilidade, da imaginação, da espiritualidade, além de recuperar e revitalizar os valores e
sabedorias tradicionais.
As ecovivências podem promover a reflexividade sobre nossos mundos vividos,
oferecendo, como nos fala Guattari (2012), um sentimento de reencontro com as
sensibilidades da natureza e de pertencimento a ela. Vem de encontro com a Ecopedagogia de
Gutierrez e Prado (2008), com a aprendizagem do sentido das coisas, de cada momento, a
partir da vida cotidiana, defendendo que a dimensão sociopolítica também carece de ser
contemplada nas atividades educacionais, uma vez que torna o indivíduo consciente do seu
entorno e co-responsável por ele. Gadotti (2000) nos aponta que precisamos de uma
Pedagogia da Terra para a re-educação do homem ocidental, prisioneiro de uma cultura cristã
predatória. De acordo com Figueiredo (2007), para termos uma educação verdadeiramente
ambiental, numa leitura popular, precisamos superar as bases conservadoras, indo na direção
de uma EA dialógica. Para Abílio (2010 et al.), a EA contribui para um processo interativo,
participativo e crítico, vinculada e condicionada a mudanças de valores, atitudes e práticas
individuais e coletivas. Como vemos, os autores defensores da esfera crítica buscam superar
as matrizes educacionais centradas na conservação ecológica, incorporando dimensões
sociais, culturais, políticas e ambientais, ou seja, as condições básicas para a sustentabilidade.
Fazendo um recorte para o ecossistema em estudo, em consonância com uma
percepção crítica da EA, os manguezais são ecossistemas costeiros de transição entre a terra e
o mar que distribuem-se nas regiões tropicais e subtropicais, apresentando produtividade
primária biológica com taxas bem elevadas, por esse motivo ele é a base da cadeia alimentar.
No Brasil, são encontrados praticamente em todo o litoral, desde o Amapá até Laguna em
Santa Catarina (YOKOYA, 1995). No que se refere ao aspecto socioeconômico, o manguezal
é fonte para diversos recursos como madeira, remédios naturais, tinturas, peixes, crustáceos e
moluscos o que o torna fonte para o sustento de populações ribeirinhas e, no que se refere aos
caranguejos braquiúros, podem ser recursos para a comercialização e desenvolvimento da
economia (ALVES & NISHIDA, 2003).
No Rio Grande do Norte os manguezais se
encontram em situações críticas, variando na escala de degradação, entre moderadamente e
fortemente degradados, e alguns estudos apontam a forte contaminação por metais pesados
nesse ambiente (SILVA et al., 2001), através do aumento populacional, exploração da
5045
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
atividade carcinicultora 1 e implantação de salinas, além de assoreamento causado pelo
desmatamento (IDEMA, 2002).
Ao levar-se em consideração a experiencialidade com o cotidiano, junto ao
ecossistema de manguezal numa perspectiva crítica, como processo fundamental no ensino de
Ciências e Biologia, o presente trabalho objetivou pesquisar, compreender e experienciar o
entrelaçamento de ecovivências com os saberes freireanos, bases constitutivas de uma
proposta por hora nomeada Pedagogia Ecovivencial 2. Destacou-se ainda a importância de
preservar e conservar o meio ambiente, tendo como foco o bem querer com ecossistema
manguezal, visto que esse assume um importante papel no equilíbrio ambiental, social e
econômico.
2. Percurso metodológico
Como ponto de partida pra esse estudo, escolhemos como público alvo alunos de duas
turmas do 7º ano do Ensino Fundamental de uma escola estadual localizada próxima a um
ecossistema de manguezal na cidade do Natal (RN), buscando dessa forma a contextualização
do conhecimento. A turma era composta por 68 alunos, sendo 39 do sexo feminino e 29 do
sexo masculino. Foram aplicados questionários, observação participante e o jogo de areia
(sandplay) como técnicas de coleta de dados. As atividades de coleta de dados foram
desenvolvidas em dois momentos distintos, sendo o pré-teste no mês de março de 2012 e o
pós-teste no mês de maio de 2012, utilizando-se os seguintes procedimentos:
I - Diagnóstico da percepção dos alunos sobre o meio ambiente e o ecossistema
manguezal antes e depois de intervenções pedagógicas: para as análises dos questionários,
foram utilizadas as categorias de Sauvé (1997). Dentre elas, pode-se citar, o ambiente visto
como natureza, recursos, problema ou lugar para viver. Devido à variedade de respostas dos
alunos utilizou-se também uma técnica desenvolvida por Vasconcelos (2005 apud PEREIRA;
FARRAPEIRA; PINTO, 2006), a qual considera três categorias de respostas: “Satisfatórias”
para as respostas completas onde os alunos demonstraram ter um conhecimento significativo
do assunto; “Parcialmente satisfatórias” onde os alunos demonstraram ter um conhecimento
1
A carcinicultura - cultivo de camarão em cativeiro - é uma das atividades que mais crescem no Brasil e, em
especial, no Nordeste (http://institutochicomendes.org.br/anuario/?page_id=1331 – acesso em 17.07.2013)
2
Tese de doutorado em construção junto ao Programa de Pós Graduação em Educação da UFPB – Grupo de
Estudos e Pesquisas em Educação Ambiental.
5046
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
mínimo do assunto; e “Insatisfatórias” para aquelas onde os alunos demonstraram não saber
nada sobre o assunto ou ainda quando deixaram as questões em branco;
II - Jogo de Areia ou sandplay (SCOZ, 2011): essa ferramenta utiliza-se da caixa de areia,
como campo concreto e uma coleção de miniaturas, que foram disponibilizadas para a
construção dos cenários a partir de uma questão problematizadora, que nesse estudo foi o
querer bem para o ecossistema de manguezal.
Essa técnica, que permite o brincar se
entrelaçando com o sentir e o criar, num encontro simbólico revelador de experiências e
descobertas significativas, também foi aplicada antes e depois das intervenções pedagógicas.
Após a coleta de dados junto aos alunos, durante o mês de abril de 2012 foram
desenvolvidas ecovivências, no intuito de promover uma sensibilização ambiental desses
alunos em relação ao meio ambiente, tendo como foco o querer bem ao ecossistema
manguezal:
1ª Ecovivência - O ambiente manguezal: Fauna e Flora: Como estratégias metodológicas,
houve uma breve introdução através de materiais audiovisuais (multimídia), com exibição de
vídeo, dando ênfase para as espécies vegetais e animais, gerando uma discussão, aplicando-se
em seguida o jogo da memória 3 com animais e vegetais típicos do ecossistema;
2ª Ecovivência - A importância ecológica e socioeconômica dos manguezais: Como
estratégias metodológicas, foram apresentados material audiovisual da região estuarina de
Natal-RN, com destaque para o manguezal junto ao rio Potengi e os impactos ambientais
sofridos nessas áreas, além da releitura da música “Manguetown” de Chico Science e Nação
Zumbi;
3ª Ecovivência - Passeio no barco escola Chama-Maré pelo rio Potengi em Natal-RN 4:
Como estratégias metodológicas, pontuou-se a observação e percepção durante o passeio pelo
rio das margens contendo de um lado a região urbana com destaque para o porto e do outro
lado o manguezal.
Os questionários e o jogo de areia foram aplicados aos alunos antes e depois das
oficinas (pré-teste e pós-teste), com o objetivo de avaliar a eficácia da intervenção
pedagógica. O pré-teste foi aplicado a 68 alunos e o pós-teste a 65 alunos.
3. Os saberes freireanos e o querer bem ao manguezal - Diagnose e Percepção
3
O jogo da memória é um clássico que foi adaptado como recurso didático (Krasilchik, 2008)
contendo imagens referentes ao ecossistema do manguezal, com suas características, fauna e flora.
4
As aulas nesse barco escola fazem parte do Projeto Potengi Vivo do IDEMA – Instituto do Meio
Ambiente do Rio Grande do Norte.
5047
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
O meio ambiente natural e a visão de mundo estão, segundo Tuan (2012),
estreitamente ligados, uma vez que a visão de mundo pode ser construída a partir dos
elementos do ambiente social e físico da uma comunidade. Assim a partir da análise dos
questionários aplicados antes das ecovivências (pré-teste), pode-se afirmar que a maioria dos
alunos entende o meio ambiente (questão 1), como natureza, (“Local onde podemos
encontrar muitos animais e plantas”, “Meio em que a natureza se encontra com suas árvores
e bichos”, “Lugar natural dos seres vivos como os animais”). Ou seja, um lugar para ser
apreciado, respeitado, preservado, do qual o homem está dissociado, como nos aponta Sauvé
(1997). Com relação ao ecossistema manguezal, ao analisar a percepção prévia dos alunos,
evidenciou-se que eles não possuem um conhecimento significativo sobre a temática, tendo
em vista que a maioria das respostas foi insatisfatória. Mesmo estando a escola situada nas
proximidades de um manguezal, quando perguntado “O que você entende por manguezal?”,
muitas respostas mereceram destaque, no qual algumas evidenciaram uma
percepção
depreciativa (questão 2): “Lugar cheio de lixo e mal-cheiro”, “Lugar com lama escura e com
cheiro ruim”, “ambiente feio pelo cheiro e esgoto escorrendo”. Na questão 4, quando
perguntado “Porque é importante preservar os manguezais?”, a maioria dos alunos percebia a
importância da preservação do manguezal pelo aspecto econômico, com a área portuária com
embarcações comerciais. Na questão 6,
constatado que a maioria dos alunos,
quando perguntado “O que é mangue?”, foi
normalmente considera mangue (a árvore) como
sinônimo de manguezal (o ecossistema).Esses achados nos remetem aos pensamentos de
Freire (2011a) quando nos fala que o homem não vive autenticamente enquanto não se acha
integrado com sua realidade, dai a necessidade de práticas educativas contextualizadas com o
seu entorno ambiental.
Alicerçada no querer bem freireano, foi preparado um ambiente para a realização do
jogo de areia (pré-teste). Para tal, uma sala de aula foi reorganizada, tendo no centro uma
manta, sobre a qual estavam distribuídos conchas de moluscos contornadas com folhas de
manguezal, formando uma mandala, que para Tuan (2012), é um símbolo junguiano que
representa a totalidade e harmonia que reconcilia os opostos. Havia música suave e muita
alegria no recebimento de todos. Os materiais e miniaturas que iriam ser utilizados,
relacionados ao vivencial de cada participante, estavam à disposição de todos assim como as
caixas de areia. Os alunos, por sua vez, se acomodaram confortavelmente ao redor da
mandala, e, como desafio, cada participante construiria um cenário imagético com o jogo de
areia, representando o querer bem ao manguezal. Ao final das contruções, houve a
socialização da simbologia do cenário de cada um dos alunos, no qual a categoria natureza e
5048
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
recurso de Sauvé (1997) aparecem como as mais citadas no querer bem com o manguezal,
convergindo com os resultados do questionário.
Entre os cenários construídos, destacamos o aluno J.V. (Figura 1 pré-teste), no qual
esse evidenciou o barco escola ‘Chama-maré’, onde haveria uma das ecovivências e a
expectativa do adolescente em poder encontrar e visualizar muitos animais no manguezal.
Percebe-se no cenário que o rio Potengi está circundado por dunas, não havendo menção para
o encontro com o mar e o manguezal por sua vez, não aparece representado pela flora. Essa
“cegueira” para o seu entorno segundo Tuan (2012, p.259), ocorre por que “as pessoas,
independentemente da sua classe econômica e cultura, tendem a julgar a qualidade do seu
meio ambiente mais pelo que percebem ser um bom vizinho do que pela condição física do
bairro”.
4 – Materializando os saberes freireanos: o encantamento com o manguezal
Freire (2011a) foi um professor que através da sua vida não só procurou perceber os
problemas educativos da sociedade brasileira e mundial, mas propôs uma prática educativa
para resolvê-los: o dialogar, o estar com o outro, o corporeificar as palavras. Assim,
realizamos as ecovivências dialogando sobre os saberes freireanos, vivenciando com entrega
amorosa, alegria e ludicidade, cientes da construção de conhecimentos coletivos pelos
participantes, assim como da possibilidade de aprofundar a reflexão sobre a educação, a
escola e a prática que nela se efetiva. (ABÍLIO et al., 2010). Assim percebe-se a importância
de realizar atividades voltadas ao manguezal no intuito de oferecer subsídios para um ensino
aprendizagem construtivo e reflexivo, pois como nos fala Gadotti (2000, p. 86), “não
aprendemos a amar a Terra, lendo livros sobre isso, nem livros de ecologia integral, a
experiência própria é o que conta”. Como a escola estava inserida numa região próxima a esse
ecossitema, era possível promover a aprendizagem do sentido das coisas, e esse sentido não é
dado apenas pelas verdades transmitidas e os discursos proferidos, mas primordialmente pela
vivência dos participantes, a partir da vida cotidiana, ou seja, por suas experiências, seus
olhares, a partir da sua prática naquele local (SCHULZ, 2013).Foram então desenvolvidas as
seguintes ecovivências:
I - Primeira Ecovivência: O ambiente manguezal - Houve uma conversa coletiva sobre o
ecossistema manguezal, sendo em seguida apresentados materiais audiovisuais (multimídia),
com exibição de vídeo, dando ênfase para a flora e a fauna, com o intuito de levar os alunos a
5049
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
conhecer as diferenças entre os termos manguezal e mangue, além da biodiversidade local
(SCHAEFFER-NOVELLI, 1989).
Os alunos mostraram-se interessados, gerando em seguida uma discussão e reflexão. Ao final
da ecovivência, foi aplicado o ‘jogo da memória do manguezal’, demonstrando ser outra
estratégia dinâmica para construção do conhecimento, ao consolidar as informações gerais
sobre o ecossistema e seus componentes biológicos. Os alunos demonstraram interesse em
conhecer cada espécie de vegetal e animal do jogo, tendo maior interesse pelas “canetas-domangue” (embriões em desenvolvimento do mangue, liberados no ambiente e levados pela
maré) que chamaram bastante atenção e se destacam na paisagem do ecossistema local;
II - Segunda Ecovivência: A importância ecológica e socioeconômica dos manguezais Foram apresentadas imagens antigas e atuais da região de manguezal de Natal (RN),
principalmente das regiões mais próximas da escola dos alunos em estudo, com discussão
sobre a história e também sobre os impactos causados. Objetivou identificar as agressões
sofridas pelo ecossistema manguezal e analisar a ação do homem em relação ao mesmo.
Também foi exibida a música “Manguetown” de Chico Science e Nação Zumbi. Os alunos
receberam uma folha com a letra da mesma, enfatizando o ecossistema manguezal com suas
características e a importância, sendo assim um meio efetivo para fazer uma releitura da ação
antrópica junto ao ecossistema. Em seguida houve um momento de discussão e reflexão, no
qual os alunos apontaram dentre estes impactos ambientais, o lixo, o esgoto doméstico e a
carcinicultura. Esses achados vêm de encontro com os princípios enunciados por Freire
(2011a), que respeitam e querem bem aos educandos, compreendendo a leitura do mundo de
cada um como ponte de libertação e autonomia de ser pensante, participativo e pró-ativo no
seu próprio desenvolvimento;
III - Terceira Ecovivência: passeio no barco escola Chama-Maré pelo rio Potengi Houve a visualização do manguezal e sua interação com o estuário de um ângulo até então
não vivenciado pelos estudantes, pois para a maioria era o primeiro passeio de barco.
Experiência essa fundamental para o processo educativo, uma vez que para Freire (2011b)
“quando o homem compreende a sua realidade, pode levantar hipóteses sobre o desafio dessa
realidade e procurar soluções”. Durante a aula de campo, o barco Chama-Maré aproximou-se
do manguezal preservado, ainda presente em uma das margens. Permitiu dessa forma, a
observação de vários aspectos, tais como as margens do rio, contendo de um lado a região
urbana (bairro das Rocas, da Ribeira e do porto, da Cidade Baixa, Igapó) e do outro lado o
manguezal, assim como suas cores e seus aromas típicos. Diante da percepção do contraste,
foi possível observar nos alunos, sentimentos de alegria, desafio, prazer, encantamento,
5050
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
ansiedade, surpresa, compromisso e acolhimento para com os demais diante do novo que se
apresentava.
Esses momentos proporcionaram conexões e relações do querer bem na vida, assim
como no seu meio. Enfim, momentos de liberdade e sensibilidade, são fundamentais para
compreender os princípios da pedagogia da autonomia (FREIRE, 2011a), no qual a educação
não se restringe apenas aos aspectos cognitivos, mas valoriza também o papel da intuição, do
imaginário e do corpo na construção dos conhecimentos. A partir das ecovivências, houve
nova aplicação do questionário e do jogo de areia (pós-teste) com o objetivo de avaliar
eventuais mudanças na percepção e a aprendizagem dos alunos com relação ao manguezal. A
análise dos questionários demonstrara que o conhecimento construído durante esse percurso
em relação ao meio ambiente foi significativo, mas a percepção dos alunos sobre o meio
ambiente ainda está ancorada em grande parte na categoria ‘natureza’. Algumas respostas
como as destacadas, “local que precisa ser preservado”, “lugar que precisa ser cuidado”,
“para continuar bonito, precisa ser cuidado”, se apoiaram na categoria ‘recurso’ ou seja,
uma percepção de desenvolvimento e gerenciamento (SAUVÉ, 1997).
Com relação ao entendimento sobre o ecossistema manguezal, percebeu-se que houve
um avanço considerável, no qual daremos destaque para questão 2, com respostas valorizando
o ambiente e não mais depreciando, tais como “lugar de lama escura, mas que é um berçário
de peixes”, “ambiente com cheiro forte, mas rico em alimentos para as plantas e animais”,
“lugar que não deveria ter esgoto sendo despejado, pois mata os animais que se reproduzem
lá”; questão 4, no qual a importância da preservação do manguezal, está agora ancorado no
cuidado com a biodiversidade local e como fonte de alimento humano. Na questão 6, na qual
se pediu que o aluno diferenciasse mangue de manguezal, observou-se uma gradação
crescente de respostas satisfatórias, em que parte dos alunos respondeu corretamente que o
mangue é uma planta e que o manguezal é o ecossistema.
Novamente o ambiente (sala de aula) foi preparado e um segundo jogo de areia foi
aplicado e socializado entre os participantes. Na análise das simbologias, apareceram as
categorias natureza, recurso e problema de Sauvé (1997). Como referencial comparativo,
novamente destacamos o cenário construído após as ecovivências pelo aluno J.V. como
mostra na figura 1 pós-teste a seguir, no qual observamos outra percepção do manguezal, bem
diferente do cenário no pré-teste. Nesse cenário houve a simbolização da fauna abundante em
A, que o aluno esperava encontrar, das dunas contornando o rio Potengi em B e dos turistas
em C. Já no pós-teste, evidenciou-se a preocupação em registrar a poluição observada no rio
Potengi em A, aparecendo a ocupação urbana nos bairros de margeiam o rio assim como o
5051
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
porto em B, o barco “Chama-Maré” em C e também sendo destacada a presença da flora do
manguezal representado em D, além da representação reduzida da fauna. Ou seja, vêm em
convergência com os pensamentos de Gutiérrez e Prado (2008) quando esses nos apontam
que o sentido das coisas não é dado apenas pelas verdades transmitidas e os discursos
proferidos, mas primordialmente pela vivência sentida pelos participantes, a partir da vida
cotidiana. Durante a socialização do seu cenário para o grupo, o aluno J.V., comentou que
“imaginava o ar semelhante ao esgoto perto da minha casa, e na verdade o cheiro era bom e
diferente [...] acho que o manguezal que eu conhecia, lá perto de casa, tinha um cheiro ruim
por causa do esgoto que tem nele”. Expressou surpresa ao observar e respirar o ar na margem
ao lado do manguezal durante a ecovivência, o que poderia estar remetendo a lembranças
vividas, carregadas emocionalmente; experiência que o sentido da visão somente não abrange,
pois não envolve profundamente as emoções (TUAN, 2012).
Figura 1: Cenário imagético representando o bem querer ao manguezal.
Pré-teste
Pós-teste
Fonte: Schulz (2012).
Essas reflexões nos levam a perceber a importância de desenvolver a capacidade
perceptiva por meio dos sentidos, num estender-se para o mundo, como nos aponta Tuan
(2012). Vem de encontro com os saberes freireanos quando nos aponta que ensinar exige
querer bem aos educandos, no qual as práticas educativas vividas junto ao meio ambiente,
alegres, permeadas com afetividade, amorosidade, capacidade científica séria e com clareza
política (FREIRE, 2011a).
Outra reflexão que merece destaque refere-se ao aluno L.C., que não imaginava como
o rio era destruído pela atividade portuária, “ me dá pena, pois a cor da água é muito escura e
o cheiro bem forte no lado do porto [...] queria que a água estivesse bem limpa”. Essa fala,
nos leve a refletir da importância de adotarmos metodologias estimuladoras da
5052
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
ecovivencialidade, da sensibilidade e da expressividade, como possibilidade para a construção
de um ambiente de ensino-aprendizagem mais cooperativo, mais solidário, mais humano
(SCHULZ, 2013). Trouxe em si os princípios enunciados por Freire (2011a), nos quais
permitir a curiosidade, a liberdade, assim como a sensibilidade e o corpo na transmissão dos
conhecimentos, são fundamentais para compreender os princípios da pedagogia da autonomia.
O autor não crê na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos
tornamos capazes de amar o mundo e de assumir o dever de lutar pelos princípios éticos
fundamentais como o respeito à vida humana, aos animais, aos rios e às florestas. E dessa
maneira, “a ecologia ganha uma importância fundamental, tendo de estar presente em
qualquer prática educativa de caráter radical, crítico ou libertador” (FREIRE, 2000, p.67).
4. Reflexões finais
O esforço e o desafio postos nesse artigo, foram de pesquisar, compreender e
experimentar a influência de práticas ecovivenciais sobre a mudança de percepção junto ao
ecossistema de manguezal, no ensino de Ciências e Biologia, entrelaçando-as com os saberes
freireanos. Essa busca foi fundamental para compreender melhor a necessidade de abordar a
temática ambiental no espaço escolar, visto que, adquirir novas atitudes, comportamentos e
valores condizentes ao meio ambiente é de suma importância para o processo de
autoformação do adolescente como co-responsável.
Nessa tentativa de entrelaçamento, investiu-se em metodologias que possibilitem a
vivencialidade, a sensibilidade e a expressividade dos alunos envolvidos, enriquecendo dessa
forma o sentir, o pensar, o criar, o amar para colaborar nas transformações necessárias em
relação ao seu entorno.
Assim, permitiu-se vivenciar pontos fundamentais da obra da
Pedagogia da Autonomia, como: o querer bem, a rigorosidade metódica, a pesquisa, o
respeito pelos saberes do educando, o reconhecimento da identidade cultural, a rejeição de
toda e qualquer forma de discriminação, a reflexão crítica da prática pedagógica, a
corporeificação, o saber dialogar e escutar, o ter alegria e esperança, o ter liberdade e
autoridade, o ter curiosidade, o ter a consciência do inacabado.
A beleza dos momentos ecovivenciais revelou o encantamento dos saberes freireanos
na educação como uma nova perspectiva epistemológica e metodológica para reencantar a
vida e os ambientes de formação. Assim, propõe-se que a Educação Ambiental, tema
transversal proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, seja abordada pelos professores
no ambiente escolar proporcionando aos alunos uma aprendizagem voltada a realidade em
5053
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
que estão inseridos, para tanto, é preciso que haja o envolvimento da comunidade escolar
como um todo.
Referências Bibliográficas
ABÍLIO, F.J.P.; et al. Oficinas pedagógicas: meio ambiente, educação ambiental e as ciências
naturais no ensino fundamental. In: ABÍLIO, F. J. P. (Org.). Educação ambiental e ensino
de ciências. 410 p. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2010. p. 15-33.
ALVES, R. R. N; NISHIDA, A. K. Aspectos socioeconômicos e percepção ambiental dos
catadores de caranguejo-uçá Ucides cordatus (Linnaeus, 1763) (Decapoda, Brachyura) do estuário
do rio Mamanguape, nordeste do Brasil. Interciência,vol. 28. 2003.
FIGUEIREDO, J. B. A. Educação ambiental dialógica: as contribuições de Paulo Freire e a
cultura sertaneja nordestina. Fortaleza: UFC Edições, 2007.
FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo:
Editora UNESP, 2000.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários a prática educativa. São Paulo: Paz
e terra, 2011a.
FREIRE, P. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011b.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011c.
GADOTTI, M. Pedagogia da Terra. 3ª ed. São Paulo: Peirópolis, 2000.
GUATTARI, F. As três ecologias. 21ª edição. São Paulo: Papirus, 2012.
GUTIÉRREZ, F.; PRADO, C. Ecopedagogia e Cidadania Planetária. 4ª. ed. São Paulo:
Cortez: Instituto Paulo Freire, 2008.
IDEMA. Perfil do Estado do Rio Grande do Norte. In: Anuário Estatístico 2001. 2002. CDROM.
KRASILCHIK, M. Prática de Ensino de Biologia. 4ª ed. revista e ampliada, 2ª reimpressão.
São Paulo: EDUSP, 2008.
PEREIRA, E. M.; FARRAPEIRA, C. M. R.; PINTO, S. L. Percepção e educação ambiental sobre
manguezais em escolas públicas da região metropolitana do Recife. Revista Eletrônica do
Mestrado em Educação Ambiental. V.17, 2006.
SAUVÉ, L. Educação ambiental e desenvolvimento sustentável: uma análise complexa.
Rev. Educ. Pub., v.6, n. 10, 1997.
SATO, M. Educação ambiental. São Carlos: Rima, 2004.
5054
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
SCHAEFFER-NOVELLI, Y. Perfil dos ecossistemas litorâneos brasileiros, com especial
ênfase sobre o ecossistema manguezal. Publicação esp. Inst. Oceanogr. S. Paulo, (7): 1-16,
1989.
SCHULZ, L. Ecoformação por meio de acampamentos: ressignificando os ambientes de
aprendizagem com adolescentes do ensino médio/técnico. Revista Eletrônica do Mestrado
em Educação Ambiental. V. 30, n. 1, p. 320– 334, jan./ jun. 2013.
SCOZ, B. J. L. Identidade e subjetividade de professores – sentidos do aprender e do
ensinar. Petrópolis: Vozes, 2011.
SILVA, C. A. R.; P. S. RAINBOW; SMITH, B. D. & SANTOS, Z. L. Biomonitoring of trace
metal contamination in the Potengi estuary, Natal (Brazil), using the oyster Crassostrea
rhizophorae, a local food source. Wat. Res. v. 35, n. 17, p. 4072–4078, 2001.
TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente.
Tradução de Lívia de Oliveira. Londrina, PR: Eduel, 2012.
YOKOYA, N. S. Distribuição e origem. In: SCHAEFFER-NOVELLI, Y. Manguezal:
ecossistema entre a terra e o mar. São Paulo: Caribbean Ecological Research, 1995. p. 9-12.
5055
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Download

Baixar PDF