Lugares praticados versus
lugares de memória
Alexandre Alves Costa
Alexandre Alves Costa
Francisco Teixeira
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Editor #4
José Martins
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Coordenadores #4
Luís Vidal
João Abreu
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Fotografia de Capa
Centro de Estudos da Escola de Arquitectura
da Universidade do Minho
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Impressão e acabamento
Norprint
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Tiragem
100 exemplares
Numa primeira advertência afirmo que não me interessa, nem
acho operativa, a distinção entre o chamado “centro histórico”
e o resto da cidade. Tudo é a cidade e toda ela é, hoje, cidade
herdada. Aliás o próprio termo “centro histórico” constitui, em si
mesmo, uma armadilha.
Referir, seguidamente que para nós, arquitectos, a História
interessa-nos particularmente, quando alguns dos seus aspectos nos ajudam a reconhecer o território para o nosso exercício
disciplinar. Como este exercício parte da capacidade de imaginar
soluções para o futuro, são estas eventuais soluções que nos
fornecem a matriz analítica, isto é, são estas que condicionam,
definem e limitam o nosso campo de análise, não sendo, pois, toda
a História que nos interessa. É assim, mesmo quando o futuro da
cidade, como facto social por excelência, é, ainda, uma nebulosa
sem contornos claros, que só o desenho poderá evidenciar, num
processo que os vai conformando, encaminhando-os para uma definição rigorosa. É, pois, o nosso desígnio, que vai evidenciando a
necessidade da análise: a histórica e todas as outras, as geográficas, as morfo/tipológicas ou sociológicas e antropológicas, ou ainda, as políticas, por estarmos no campo dos direitos dos cidadãos.
Esta posição de partida tem implícita a não consideração de
qualquer fatalidade inelutável para o desenho do território em
transformação, que poria de parte qualquer intervenção do arquitecto, inutilidade, talvez, alargada aos centros históricos, já
estabilizados e a conservar, por efeito da sua classificação patrimonial, que os identifica como lugares especiais, bem definidos e
limitados, defendidos da fúria desenfreada, seja da especulação,
seja do exercício das necessidades vitais da contemporaneidade.
Estes parentesis que aprisionam os centros históricos e os
retiram do contexto mais alargado da cidade em expansão, tem
produzido os maiores equívocos.
Estas palavras preliminares justificam a minha ambição e, talvez o meu dever, de reflectir, fora do colete de forças que tantas
vezes me aprisiona - falar das pedras velhas, deixando as novas
para a cartografia do difuso ou para os livros do Álvaro Domingues.
Tratarei, em primeiro lugar, dos processos analíticos na sua
relação com o projecto.
Começo por afirmar a minha convicção de que, mesmo que baseemos a análise da cidade em técnicas e procedimentos aparentemente objectivos, isso não impede que aquela não seja tomada
pelo desejo, pela imaginação e pela recordação. É aí que residirá a
chave que nos permite considerar a análise como parte do projecto.
Analisar equivale a redescrever. Só com um trabalho paciente
de re-descrição da cidade, poderemos chegar a conhecer a sua
íntima substância. Observar, imaginar e projectar, talvez seja o
único caminho transitável, para nos aproximarmos de uma interpretação da cidade que, ao mesmo tempo, pressuponha uma
ideia de transformação e de projecto.
Esta mistura de rigor e de invenção poderá lançar alguma luz
sobre a, sempre discutida, relação análise/projecto.
O vínculo que estabelecemos com a cidade e a sua condição
enigmática, é complexo e instável: tão depressa se instala na
cumplicidade, como deriva na repreensão e no desgosto. Mas, na
minha opinião, conforme se vai cumprindo a nossa experiência da
cidade, esta vai-se convertendo numa construção imaginária a
que podemos e devemos ir dando forma.
É verdadeira, de facto, a minha confiança, embora não desmedida, no exercício da nossa actividade de arquitectos... desde que tenhámos coragem, e sobretudo vontade, de voltar a falar de política.
Tentarei aproximar-me do concreto do nosso território, litoral
do noroeste peninsular, a partir das minhas convicções disciplinares que, obviamente, não põe de parte o papel essencial da teoria
e da crítica, nem esquecem a importância das novas tecnologias.
Falarei do urbanismo difuso para defender a “tese”, obviamente discutível, de que este conceito, tão estimulante como aparentemente inovador, tem fundamentado reflexões académicas,
sendo puramente formal a sua cartografia, que não aprofunda o
conhecimento do real, antes o desconhece.
conspicuamente o dualismo cidade nova/cidade antiga através
da reativação da sua velha metáfora de “múmia envolvida por
rica redoma de plástico”2, instrumento de caracterização do centro histórico que ele próprio desenhou e visando explicar o como
aquela centralidade se transformou numa ilha face ao espaço adjacente, fazendo emergir o espaço urbano local como artificialmente descontínuo, dado, portanto, ao solipsismo urbano e ao
seu consequente instrumentalismo político, museológico e, até,
psicoidentitário. De facto, a descontinuidade urbana, para mais
quando é politicamente produzida, cai directamente no domínio
da patologização do espaço urbano enquanto espaço de falsificação relacional, cívica, económica, cultural e, claro, política.
implica a actualidade do não-dito, tão digna como a calosidade da
simbólica cardinalícia do capitas, senão muito mais digna que esta.
Por trás, ou por baixo, de uma possibilidade de abertura e
morte há sempre, na cidade real ou imaginária, uma possibilidade
rizomática que não é compatível com o pensamento pré-galilaico
em que a “Capital” se apoia. Daí que a organização de um evento
cultural de grande magnitude como se fosse um sistema geocêntrico, girando à volta de um palácio oitocentista, refulja como a
Terra no centro do universo. Como um erro ou, benevolamente,
um gigantesco anacronismo.
Tentando evitar o ridículo, a capitas púrpura sempre optará
pelo poder de configuração totalitária, Capital, em que se joga a
vida e a morte, do próprio e do alheio. E, claro, sendo o caso, é
sempre preferível a morte do alheio que do próprio (a não ser que
sejamos Obi-Wan Kenobi, mas não será o caso). A luta, de cada
vez que a Capital emerge, é, então, de vida ou de morte, como
Sauron perseguindo o Anel.
Ao contrário desta tanatologia, seguindo uma cidade como
uma densa possibilidade de heterogeneidades, como um rizoma
vivo albergando segredos, não-ditos e palavras por inventar, a
capital da vida e da morte poderia auxiliar a emergência do secreto existente e, até, aspirar a criar novos segredos que outros
fariam, noutras oportunidades, emergir, tornando a cidade continuamente viva. Guimarães não foi exemplo disto. A opção foi a
da afirmação da púrpura cardinalícia, Capital, de onde irradiariam
os saberes teológicos e demiúrgicos, afirmando o seu poder de
vida e de morte. Mas podia não ser assim. Podia dar-se o sistema a inventar à periurbanidade cultural, estimulando a criação de
sentido e de instrumentos de cozedura e preenchimento dos interstícios rural/urbanos, cidade antiga-cidade nova, confuso/com
sentido. Para que tal acontecesse seria necessário elidir a Capital
na capital, i.e., nas organizações e sujeitos culturais, urbanos e
periurbanos, dando-lhes o espaço (isto é, o tempo e o dinheiro)
para pensar e agir sobre o seu território, a partir das suas próprias
desorganizações espaciais e simbólicas. Em certo sentido, pode
dizer-se que a Capital teria que se descapitalizar, tornar-se, para
usar uma terminologia conhecida, uma capital débil. Mas sabemos como isso é, hoje, perigoso e fora de moda. Mais vale estar
capitalizado e, de qualquer modo, isso seria pedir de mais a um
arconte demiúrgico, ou a um concerto coletivo de arcontes, que
se vê como arquiteto da realidade.
Bem entendido, não há arconte que resista ao sarcasmo da
dissimulação. Daí a confusão entre “participação” e “figuração”,
publicitariamente servida como politicamente quente, assente
na liquidez emocional do choque e da agitação mecânica. Mas os
conceitos são bem diferentes. Enquanto no primeiro caso, “participação”, o que está em causa é a presença capital, texturada, de
um sujeito e de uma organização, já no segundo caso, “figuração”,
o que está em causa é a presença abstracta de uma emoção anónima produzida pelo capitalista, financeiro simbólico que organiza o mundo onde a vida capital se inscreve e, claro, se dissolve.
A palavra gémea de figuração é alienação. No primeiro caso, da
participação, estamos na presença de uma pulsão de vida e, no
segundo, da figuração, de uma pulsão de morte.
E pior do que isso, na minha opinião, não é operativo nem instrumental na transformação do real, impondo-lhe, até, um certo
fatalismo que esvazia a função do desenho.
Quando os romanos despovoaram os castros e entregaram
terras ao seus habitantes, num gesto de grande alcance económico, a população espalhou-se pelo agro de forma dispersa.
Os colonizadores não construiram para aqueles, agora cidadãos de Roma, “aldeias da luz” para os realojar, dispersando-os
pelos terrenos férteis, construindo, para eles próprios, paços
senhoriais. Uma rede de caminhos se foi desenhando no território ligando casas, campos e moinhos, pombais ou zonas para
tratamento de couros, pequenas oficinas artesanais, capelas ou
santuários e cemitérios. As estradas romanas, anteriormente traçadas de forma menos orgãnica, ligavam os centros urbanos de
forma independente daquela rede.
Esta dispersão era difusa e foi estudada por Alberto Sampaio.
E aqui, abro um parentesis, para lhe prestar homenagem.
Os escritos e as reflexões sobre a chamada “decadência nacional”, intensificaram-se com a Geração de 70. Mas os autores
desta época, de que faz parte Sampaio, não se limitaram a explicá-la e a propor remédios para a combater. Procuraram, também,
compreender a Nação, definir e explicar as suas características,
nomeadamente por meio de estudos sobre as origens do povo
português e a averiguação exacta da sua história.
O que surpreende nas “Vilas do Norte de Portugal” é a sua
cientificidade positiva. É a tentativa de aliança multidisciplinar
com outros saberes, como os da geografia ou da arqueologia, com
especial relevância para os estudos do Sr. Sarmento, como é referido no texto o vimarense Martins Sarmento. É o reconhecimento
directo, não só dos documentos, mas do próprio território, na sua
conformação contemporânea, em grande parte idêntica, ainda, à
racionalidade romana sobre contextos mais silvestres, a que se
sucederam outros, da Reconquista e da Nacionalidade que, sem
porem em causa os seus fundamentos, a tornam mais complexa
e de leitura obrigatoriamente mais detalhada.
Depois, estabelecendo metas e objectivos a alcançar, propõe-se colaborar na sua edificação, apontando caminhos para a sua
regeneração ou adaptação ao mundo moderno. Serve-se para
isso, e essa é a sua maior actualidade, de processos intelectuais
como a averiguação exacta da história portuguesa ou de outros
mais pragmáticos, como os meios para o seu desenvolvimento.
O que ele estuda é uma pequena parcela do nosso território,
que percebemos vai tendo os seus prolongamentos naturais para
outros mais vastos, construídos sob as mesmas condições. E, assim, reconstrói, a unidade de um território que é sobreponível ao
da Gallaecia romana, quer dizer, o noroeste peninsular.
A exemplaridade e os ensinamentos deste seu trabalho de
ciência do território, extraordinariamente inovador, tem uma das
suas mais valias na tentativa de definição rigorosa e fundamentada de limites regionais, talvez estranha, hoje, neste nosso mundo
global e, aparentemente, sem fronteiras.
Este território, que Sampaio estudou, foi-se densificando,
com gente e funções, fábricas e armazéns, aproximando-se das
cidades que também cresciam em gente e funções, comerciais,
administrativas ou simbólicas. Estas duas lógicas, inicialmente
bem distintas, tocaram-se, interceptaram-se, confundiram-se. O
conjunto conforma, hoje, aquilo a que podemos chamar, simplificando, conurbação urbana.
Interrogo-me, sobre o sentido de cartografar esta densificação, ou de fotografar as suas impurezas se, afinal, não as nomeamos? E, como sabia qualquer cartógrafo do século XVI, ou até
qualquer bandeirante, cartografar sem nomear não é conhecer.
Desenvolvendo a minha ideia.
Este território é, na sua globalidade, constituido por fragmentos,
crescendo por fragmentos que se vão somando e muitas vezes
sobrepondo – o depósito dos séculos, como diria Aldo Rossi.
Cada um destes fragmentos, da pré-história até hoje, tem uma
história. Constitui um lugar antropológico, identitário, relacional
e histórico. O nosso povo vai chamando e bem, “lugar”, a cada um
destes fragmentos que, como todos sabemos, não são realidades
estáticas, mas em contínuo processo de transformação.
Tive a sorte de, num encontro sobre o Bairro do Aleixo, convocado por um amigo, militante cívico, ter conhecido um pequeno
grupo de jovens do Vale do Ave, freguesia de Lordelo, do Conselho
de Guimarães, a seguir a Covas, encostada a Santo Tirso.
Estes jovens com idade média de cerca de 18 anos, pertencem
ao difuso movimento dos indignados, peace and love, facebook,
capuz, nenhuma violência no olhar, no trato ou nas palavras. São
operários fabris, estudantes, freaks com BPM médio e charro
pronto a usar. Auto denominam-se “guerreiros da paz”.
Questionados por mim, explicaram-me que, sendo todos de
Lordelo, pertenciam a lugares diferentes e deram-me, até, alguns
nomes que me entusiasmaram, lugar da Chamusca, do Alto, da
Rua Nova, de Atainde, do Monte, de Lubazim, do Paço, lugar dos
Escalheiros, etc.
Não foram capazes de me explicar (boa pergunta!, disseram-me) como se definiam as fronteiras destes lugares e prometeram investigar, consultar os mais velhos e a internet.
Eu próprio sabia, que no caminho rural para a minha escola primária, passava por quatro lugares. Sabia, até, que numa mesa de
granito, colocada num sítio chave, mas enigmático, se realizava
um almoço anual, de representantes dos seis lugares da freguesia.
Passados dias recebi um correio electrónico. Pesquisamos, e
nos mapas da freguesia não aparecem indicados os lugares, mas
sim os nomes das ruas e das travessas... e concluíam: modernizaram-se! Um deles morava na Rua da Estrada 105!
Entretanto lembrei-me do SAAL e das parcelas do território a
que chamamos unidades operacionais, lembrei-me do Arquitecto
Távora e dos seus Planos de Pormenor a anteciparem o Plano
Geral... mas duvidei! Os tempos são outros, os meus amigos
dizem-me que os caminhos do presente devem percorrer outros
caminhos, que a nossa época corresponde a um novo e ainda não
reconhecível paradigma.
Mas, apesar das dúvidas, resolvi prosseguir o caminho que
eu próprio iniciara, encorajado pela perplexidade dos “guerreiros
da paz”, que me tinham informado, também, que há na freguesia
deles, uma fábrica tão grande que ocupa parte de dois lugares...
Então, por ela passa, digo eu, uma linha virtual que os separa,e
esta linha é visível por alguns, por eles.
Primeira conclusão, sem eles nunca compreenderei nada, a
não ser as espectaculares imagens de desordem que são a expressão misteriosa de um território que é necessário decifrar,
analisar, antes de actuar (mal) ou desistir (pior)!
Quer dizer, segunda conclusão, é necessário dar sentido à cartografia, preenchê-la com conteúdo e, para isso, entram todas as
disciplinas que antes referi, incuindo a história e a participação
dos cidadãos!
O planeamento, a que também se tem chamado, ironicamente, “ordenamento do território”, tem, assim, duas hipóteses
metodológicas distintas que, em termos extremos, podemos caracterizar da seguinte forma:
irreversívelmente perdido. Este processo intermédio, a que se
tem chamado “desenho urbano” vai permitindo aos arquitectos
darem o “gosto ao dedo”, sem grandes dramas que os obriguem
a reflectir mais profundamente ou a ponderar as suas soluções
perante os cidadãos.
Colocando-me na segunda hipótese metodológica, e para
terminar com o “centro histórico”. Este é um dos lugares, entre
outros, talvez subdivisível ainda, com a vantagem sobre os outros de ter, à partida, uma definição clara de limites, normalmente
correspondentes à muralha medieval, exista esta ou não.
Será, assim, a partir da sua lógica própria, como na de outro
qualquer dos lugares que hoje constituem o chamado difuso, que
se fudamentarão os processos e se buscarão as referências para,
no caso a caso de cada um, se encontrar o desenho apropriado
para os redefinir e qualificar, sem nenhuma transposição morfo-tipológica mecânica, de um lugar para outro qualquer. Mesmo que
aquele tenha a dignidade e o valor simbólico da cidade medieval.
Concluindo, não acredito que as regenerações urbanas, de
forma e conteúdo, baseadas em programas como o desenvolvido pela “Guimarães - Capital Europeia da Cultura 2012”, tenham
algum valor, na transformação dos hábitos, acessos e usos da
“cultura”, num território mais amplo do que o massacrado “centro
histórico”, espécie de condensador das boas intenções que teimam em abandonar o referido território no seu conjunto.
Criar uma estrutura que englobe tudo, estabelecendo uma
nova malha ou rede que se sobreponha à realidade territorial,
sem buscar nenhuma das suas particularidades, como que
propondo um novo super-lugar, um novo mundo com valor
em si próprio, a-histórico, intemporal, moderno, como um
projecto do Mendes da Rocha.
ou
Desenhar ou redesenhar o território, a partir da sua decifração, a que antes chamei re-descrição, procurando identificar
os seus fragmentos, explicando-os e limitando-os e, a partir
do caso a caso desse particular, fazer decorrer a sua reestruturação. A intervenção projectual deverá, nesta opção,
consolidar ou reinventar “lugares praticados” que, como os
lugares antigos, inventariados e classificados fossem, como
eles, promovidos a “lugares de memória”.
Para os arquitectos que, como no meu caso particular, tem negado o primeiro processo e com a preguiça do aprofundamento que
o segundo implicaria, o mais fácil será ir desenhando os espaços públicos, sem entender continuidades ou descontinuidades,
como se estes fossem, automaticamente, geradores de novas sociabilidades, sempre com o fundamentado receio de alguma conotação com a chamada “cidade histórica”, considerada modelo
CIDADE, CAPITAL,
TRANSFORMAÇÃO:
seguido de um post scriptum
1. CIDADE
Um dos mais desafiadores, e todos são desafiadores, dos livros
de Peter Sloterdijk chama-se “O Estranhamento do Mundo”.
Sloterdijke opera aí através do conceito de “estranhamento”, tentando compreender como é que se pôde ser humano no mundo
antigo e como é que, hoje, essa possibilidade radical ainda é possível. No passado, o humano construiu-se, no seguimento da tese
de Louis Dumomt no seu “Ensaios Sobre o Individualismo” (1992),
como um renunciante, seja na sua retirada para o deserto, seja
na sua retirada para o mosteiro. Mas, pergunta Peter Sloterdijk,
“para onde se orientam os impulsos monásticos e de fuga do
mundo numa era em que, na sua compreensão, nem reconhecem um princípio-deserto nem concedem direitos de cidadania a
eventuais guias celestes?” (2008: 70). O problema é grave. Sem
linha de fuga, o humano estaria em vias de extinção.
Até certo ponto, a sociologia contemporânea tenta responder a
este problema. O texto clássico de Georg Simmel “A Metrópole e a
vida do espírito” (2002: 31-43) constitui uma notável via de acesso à compreensão do humano nas condições urbanas e culturais
do mundo de hoje. Tematizando as condições de possibilidade do
“individualismo”, Simmel descobre que a o individualismo metropolitano alimenta-se da “divisão do trabalho”, da “indiferença”, da
“autonomia” e dos “particularismos pessoais”, tornando a metrópole indiferente relativamente às “mais proeminentes individualidades”, permitindo-lhe sobreviver à sua morte e desaparecimento,
alicerçando-se somente na “funcionalidade da sua magnitude”. A
ideia é a de que na “metrópole” se constitui o espaço moderno do
novo renunciante e se constrói a nova possibilidade do humano,
pese embora as mais variadas e incandescentes tensões que aí se
vivem, desde logo também a alienação e a morte.
Francisco Teixeira
A ideia de “renúncia” é afim da ideia de “estranhamento”. O
estranhamento é a experiência de uma exterioridade ou irredutibilidade relativamente ao sistema de regras dominante. A renúncia é a experiência de resistência às regras. Quer num caso quer
no outro, aquilo que se alcança é uma experiência de si mesmo
nos limites da viabilidade funcional aproveitando-se do despojamento funcionalista para fazer emergir uma cisão do corpo e do
espírito, em que o melhor de si mesmo se liberta e se emancipa
dos poderes exógenos. Em certo sentido, autorizando um novo
dualismo entre o corpo e o espírito, a cidade pode, e deve, ser a
oportunidade de uma nova salvação, mesmo que à custa do corpo, dado à funcionalização em troca da liberdade.
Esta possibilidade de cisão operada pelo urbano é lapidarmente apresentada por Louis Wirth no seu também clássico “O
urbanismo como Modo de Vida” (2001), onde apresenta as características estruturantes do que seria, e de como pode ser, uma
cidade. Hoje elas são facilmente reconhecidas: dimensão, densidade e heterogeneidade. Em cada uma destas características
essenciais de um modelo urbano, aquilo que se assinala é o poder
e a necessidade da multiplicidade, condição em que o humano
pode emergir e persistir.
Relendo Louis Wirth em ordem à possibilidade do humano na
cidade, “dimensão” urbana (em quantidade e qualidade) é condição de possibilidade de um certo nível de funcionalidade, permitindo a divisão estrutural de cada pessoa em múltiplas funções,
tornando-a irredutível a uma única e, portanto, a um único poder
de identificação. Sem um certo tamanho é muito fácil a coordenação urbana e o planeamento condutual comuns, pelo qual cada
indivíduo se mataria numa unívoca funcionalidade. Mas uma certa dimensão, e consequente distância do centro, liberta o espírito
(e o corpo), tornando maior a possibilidade de inarticulação, sendo que é nos interstícios do inarticulável que as possibilidades
verdejam mais intensamente.
Sejamos claros: a publicidade e o marketing não transformam, antes são instrumentos de simulacro e de mentira, embora
não no sentido comum. Quando falo de simulacro, não quero dizer
que a realidade não possa ser alterada como simulacro. Há uma
certa força ontológica na mentira, no poder da inautenticidade.
A publicidade funda-se num psicologismo básico. Se eu convenço o consumidor da sua identificação com o produto ele, claro,
no sentido psicológico da relação, torna-se realmente o produto,
sem o que sofrerá todas as dores de um síndrome de abstinência,
de que a falta de reconhecimento não será o mais pequeno. Ora,
em Guimarães, particularmente em Guimarães, colonizado pela
hiperidentificação com a Nação, não há quem sobreviva sem reconhecimento. Não precisamos, sequer, de invocar o “Síndrome
de Estocolmo”, que não é mais que o paroxismo deste rapto da
identidade pela alienação, que começou lá bem atrás, no Estado
Novo, e na ereção mística (mistificadora) da Colina Sagrada.
Quem quer uma Transformação aspira a mais que arritmias publicitárias. Investe na autopoiese mental e motora, nas acções logísticas e físicas, i.e., nas ideias e nas organizações. A ereção vem
e vai. Já o enrijecimento dos mecanismos de confiança/desconfiança, construção/desconstrução do visível e dos dizeres pode durar uma vida, que não sequer simplesmente uma vida, antes uma
vida carregada de segredos que não se deixam visibilizar senão por
atos de vontade própria e, mesmo aí, sem que se consigam dizer
completamente. E sem isso não há cultura e humanidade.
Post scriptum:
toural, cultura e segredos
Uma das críticas mais recorrentes a Derrida é que terá caído num
idealismo linguístico, segundo o qual a linguagem se cindiu definitivamente da realidade, esvoaçando, irreal, sobre o mundo. Mas
alguma coisa da crítica a Derrida parece fazer sentido, já que o
próprio, numa fase bastante mais recente do seu pensamento,
admite que para que se “comunique, objective, tematize, a condição é que haja não-tematizável, não-objectivável, não-compartilhável” (Derrida, 1997: 77), i.e., para que a comunicação se
torne possível é necessária uma resistência à decifração, um segredo do real, um deo abscondito, sem o que se cairia na absoluta transparência, no totalitarismo mediúnico e político, quase
sempre a par um do outro, aliás. Continua Derrida: “Tenho gosto
do segredo, o que decerto tem a ver com a não pertença; tenho
um movimento de temor ou terror diante de um espaço político,
por exemplo, um espaço público que não dê espaço ao segredo.
Para mim, exigir que se faça sair tudo à praça e não haja foro íntimo, é já o fazer-se totalitária da democracia. Posso transformar
o que disse em ética política: se não se mantiver o direito ao segredo, entrar-se-á num espaço totalitário. A pertença, o facto de
a confessarmos e a pormos em comum, quer se trate da família,
da nação ou da língua, significa a perda do segredo” (Ibid.: 79).
Talvez por isso não goste do novo Toural. Porque ele é um
exercício de despojamento, de visibilização totalitária, onde quase não há uma árvore para nos escondermos, a não ser como
lembrança de um segredo perdido. Ao tornar tudo pretensamente visível, o novo Toural aspira a uma totalidade do visível (horizontal e vertical), cujo modelo é o cosmopolitismo turístico em
que tudo se deve dar a ver: uma praça como um largo, de vistas
largas.
Neste sentido cosmopolita de tudo se dar a ver, de uma partilha universal do olhar, a mais emblemática obra da recente
transformação do centro simbólico de Guimarães é alinhada pela
lógica big brother e pelo desvelo turístico espectacular, em que
as praças, para além de praças, também devem ser pensadas
como teatros do visível organizados panopticamente, transformando espaços de opacidade e de invisibilidades (as pessoas que
resistem à redução de ser vistas, escondidas em árvores, esquinas, monumentos kitsch e circuitos de flores) em espaços da totalidade da visão.
Agora só falta mesmo uma câmara de vídeo e a visibilidade
tornar-se-á ainda mais funda.
O POSTER #4 chega ao penúltimo apeadeiro da sua
viagem. Quando os projectos desta natureza nascem
com um fim à vista – no caso: a edição de cinco números
correspondentes a cinco temas, cada um deles envolvido
numa cidade para criar o seu entendimento - acrescem as
responsabilidades de uma procura ampla e justificada
em problemas correntes que os decisores de planos
têm entre mãos, sejam arquitectos, agentes culturais
ou o corpo político. Falamos, portanto, de um espectro
alargado de interesses e dúvidas que importa discutir.
A equipa do Núcleo de Arquitectos da Região de Braga
encontrou neste espaço um ponto de fuga de perspectiva
ampla. Na sequência das edições, fomos variando a
escala ( Território no #1; Cidade no #2) e os seus entendimentos ( Infraestrutura no #3; e, Transformação
no número actual, o #4) sempre acompanhados de
duas leituras e de dois convidados interessados em
participar com a sua (pro)vocação; e a quem nunca
será suficiente o nosso agradecimento.
Transformação: Capital urbano e cultural é o tema
que apresentamos usando da cidade de Guimarães
como ponto de ligação. Parece-nos natural a sua
correspondência. Esta cidade média – na sua dimensão
ou na sua leitura à escala urbana –, em bom rigor, usa
Derivando do latim capitalis, “Capital” refere-se àquilo que é relativo à vida, que é mortal ou, necessariamente, vital. O “Capital”, ou a
“Capital”, seria aquilo ou aquele lugar onde se joga a vida e a morte.
Mas há uma aproximação latina mais interessante. Aquela que
faz derivar “Capital” de capitas, barrete dos sacerdotes das religiões antigas, usado aquando de funções sacrificiais. Uma “Capital”,
entendida neste filo hierático, é bem curiosa e pode levar-nos a
imaginar os chefes das capitais embarretados por adornos de
vida e de morte e os edifícios e sedes administrativas (tipicamente edifícios antigos com carga histórica) como protuberâncias
simbólicas em que se joga a morte e a vida das pessoas, dos projetos e dos territórios. Carrascos políticos e urbanos, em suma.
Mas a ideia “Capital” também é antiga e moderna até ao tutano. É antiga porque vem de longe; é moderna porque carrega
consigo a ideia de uma capacidade dispositiva integralmente
racional, pela qual a vida e a morte poderiam ser ativadas sem
grandes custos. Uma “Capital” seria, então, uma centralidade hierática que disporia o mundo de modo ordenado, sendo que o seu
poder derivaria de capacidades mágicas de hierarquização, com
origem em mundos superiores de verdade e conhecimento, de
que o barrete “Capital” seria a marca e a unção. Isto é, a ideia
de “Capital” deriva de uma concepção teológica e mágico/religiosa que foi, paulatinamente, sendo substituída pela ideia de razão
política, de conhecimento privilegiado do Bom, do Verdadeiro e do
Belo, que irradiaria de um centro para as periferias e que se instanciaria como critério universal. Neste particular, aliás, na unção
divina do que sabe irradiando sobre o que não sabe, o moderno (a
autonomia da razão) e o pré-moderno (a infância da razão) não
estão assim tão longe um do outro.
Como é fácil de imaginar, o barrete da “Capital”, que imaginamos de púrpura cardinalícia, afunda-se quando aplicado à cultura
enquanto instância de significação.
Nas cidades rizomáticas de hoje as linhas de orientação não
estão, sequer, à vista; são arquipossibilidades feitas de contínuos obscurecimentos e efémeras luminescências em que qualquer
púrpura cardinalícia se faz caricatura, quando não se faz violência
ou redução política e urbana. O rizoma (Guattari & Deleuze: 2007)
A ideia de transformação tem, como a de Capital, tudo de religioso. Imediatamente transformação evoca transubstanciação e,
claro, transcendência.
A polémica da transubstanciação é conhecida. Os católicos ainda
hoje afirmam a transformação real do pão e do vinho no corpo e no
sangue de Cristo, ainda que as suas formas acidentais de pão e de vinho permaneçam tal e qual. Já os luteranos, por exemplo, defendem
a presença real do corpo e do sangue de Cristo no pão e no vinho,
mas sem a sua real transformação – o que dá em consubstanciação.
Outros consideram, ainda, que a transubstanciação é apenas a metáfora, ou o símbolo, da presença de Cristo na comunidade.
De qualquer modo, a ideia de transubstanciação evoca a
transformação de uma substância noutra substância, por influxo
de uma força sobrenatural.
Como se sabe, estas subtis distinções deram guerras crudelíssimas e provocaram absurdas mortandades para, por fim, se
profanizarem, até perderem todo o seu sentido original. Hoje já
ninguém mata, ou morre, por um símbolo ou uma asseidade, embora alguns certamente não hesitassem, se pudessem, em reintroduzir o ostracismo como pena cívica (Sócrates, como se sabe,
preferiu a morte ao ostracismo democrático, o que diz bem da
presença das pulsões de morte nas próprias democracias).
Mas a ideia de transcendência é mais longínqua que as guerras teológicas do século XVI. Mas fiquemo-nos por Platão, pela
“Teoria das Ideias” e pela “Alegoria da Caverna”. Pela primeira o
mundo das ideias verdadeiras só pode ser alcançado através da
superação do mundo fantasmático em que nos encontramos. Só
saindo deste mundo e alçando-nos a outro, o mundo inteligível,
de todas as perfeições reais, poderemos conhecer-nos e conhecermos o mundo. Só trans-cendendo-nos, superando-nos, indo
para além de nós mesmos e do nosso mundo, poderemos ver o
mundo verdadeiro. Trans-cendermo-nos exige, então, a necessidade de uma transformação, necessária para qualquer homem
que não quer ser um simples fantasma.
É o que, grosso modo, ocorre na “Alegoria da Caverna”, com a
agravante de o seu contexto ser iminentemente político. Sair da caverna é trans-cender, superar, o nosso modo fantasmático de não-ser (cindido) através de uma transformação, por via do contacto
(místico, claro) com a verdade do Ser. Transformar-se é emancipar-se transcendendo a sua forma habitual de alienação e cisão.
A ideia de transformação é, então, claramente religiosa e a
sua ressonância política não mostra senão que a maioria da política emerge de categorias religiosas.
O mesmo, aliás, para o urbanismo, a arquitectura e a criação
artística e estética.
A dimensão ontológica de todas essas formas é óbvia. Todas
ambicionam fazer mundo. As duas primeiras inventando o espaço
físico e mental e a terceira o espaço mental e físico.
O urbanismo e a arquitectura instanciam o espaço. Fazem o espaço, em sentido literal, e assim condicionam de modo naturalista
as relações dos corpos e das mentes com o mundo. Por onde ando,
a que ritmo, com que sinuosidades, determina grande parte do
meu corpo e do meu pensar, das minhas formas simbólicas de representação. A íntima relação entre o pensamento e a motricidade
é já um lugar-comum, embora se insista em ensinar as crianças
e os jovens sentados e, de preferência, calados. Os peripatéticos
sabiam bem, antes da neurobiologia contemporânea, como esta
pedagogia da imobilidade podia ser catastrófica.
Pelo seu lado, as formas mais eminentemente culturais e simbólicas criam significados (formas mais ou menos abstratas ou
contexturais) que aspiram dar sentido ao mundo, interpretando-o,
desde as formas semânticas mais evanescentes até às mais solidamente naturalizadas (seja lá porque razões seja, incluindo as razões e circunstâncias políticas mais venais, aliás bem frequentes).
A circularidade e mútua imbricação de umas e outras formas
de criação (o urbanismo, a arquitectura e a criação artística e estética) são evidentes.
Literalmente, o urbanista, o arquiteto e o artista são demiurgos, ou arcontes, que aspiram à criação, ou transformação, do
mundo, a partir de uma forma prévia que se julga, de um modo ou
de outro, caótica, cindida, gasta ou pouco operativa.
A grande diferença daqueles relativamente aos políticos enquanto demiurgos de primeira ordem é que os políticos se permitem uma articulação vertical de toda a criação, enquanto os
arcontes, ou demiurgos, de segunda ordem, se limitam aos seus
horizontes específicos do universo. Mas do que se trata, nuns casos como noutros, é de uma prática arcôntica de instanciação da
ontologia do mundo, transformando-o, desde alguma coisa.
Neste sentido muito amplo, políticos, urbanistas, arquitectos
e criadores artísticos são demiurgos., i.e., fazem mundo.
A grande diferença entre os demiurgos antigos e a demiúrgia profana é que enquanto os primeiros celebram a ignorância
do seu poder totalitário e omnipotente, a demiúrgia profana, diria contemporânea, é sabedora da relatividade, ou nihilidade, de
toda a criação, tornando-se, em certo sentido, mais religiosa (o
que, bem sei, vai contra o senso comum ou as certezas populares,
pelo qual o religioso tem de ser forte e não fraco). Em certo sentido, o demiurgo antigo, ou totalitário, é representado pela figura
Javaica para quem “Não há outro Deus fora de mim, Deus justo
e salvador não existe a não ser eu” (Isaías 45, 19-20), enquanto o demiurgo contemporâneo, conscientemente decaído, percebe a evanescência de todas as formas de poder, aceitando a sua
profunda fraqueza ou debilidade. O demiurgo antigo é Javaico e
o novo demiurgo cultural e urbanístico é cristão, frágil e dado à
morte na cruz, à mais temível e dolorosa das contingências.
A Fundação Cidade de Guimarães, CEC - Guimarães 2012, entrou em Guimarães como Javé antes a visão abortiva do cosmos.
Como o Deus verotestamentário, proclamou que “Não há outro
Deus fora de mim”, definindo a realidade local como o fez o demiurgo Javeísta. Tendo-se embora instalado com fanfarras, já não
é deste tempo. E quando se perde a noção do tempo, da diferença
e da contingência das coisas, assentando-as numa teologia do
poder (e do dinheiro, claro), a possibilidade de se perder a cabeça é sempre grande. Mesmo que se mantenham firmes os outros
apêndices, no seu caráter mais denotativo.
1 Miguel Serra descreve esta “cidade distópica” como um “sistema de ruas e
outros espaços abertos, um misto das malhas rurais pré-existentes, de estruturas
viárias mais recentes (produtos de promoções imobiliárias de escalas diversas, mas
que se agregam de forma desconexa) e de ‘infra-estruturas de transporte’ (auto-estradas e vias rápidas), cuja lógica é metropolitana ou regional. As parcelas (na maior
parte dos casos de matriz rural) são transformadas em meras ‘áreas de construção’
e já não definem o sistema de espaço construído, que é descontínuo, com elementos
autónomos partilhando apenas o mesmo canal viário. Fragmentos de tecido urbano
misturam-se com fragmentos rurais, sem distinção organizacional entre os dois
usos” (2009: 72-75), descrição que assenta que nem uma luva a Guimarães.
2 O primeiro uso dessa metáfora fá-lo Fernando Távora no seu “Da Organização
do Espaço”, em edição de autor, já em 1962, texto que viria a ser sucessivamente reeditado, até 2008, desta vez sob a insígnia da FAUP. Mas eu próprio tive
oportunidade de o ouvir e ver “reeditar” a metáfora a propósito do centro histórico
de Guimarães, num programa da Rádio Fundação em que ambos participamos,
em 2002, comemorando o 1º ano da elevação do centro histórico de Guimarães a
Património Cultural da Humanidade. Curiosamente, ao mesmo tempo que tínhamos
esta conversa na Rádio, num programa em direto do Café Coconuts, na Praça da Oliveira, decorriam no Paço dos Duques de Bragança as comemorações oficiais desse
primeiro aniversário, para as quais Fernando Távora não foi convidado.
Referências bibliográficas:
DERRIDA, Jacques & FERRARIS, Maurizio (1997), O Gosto do Segredo, Ed. Fim de
Século, 2006, s/l.
DUMOMT, Louis (1992), Ensaios Sobre o Individualismo, Ed. Dom Quixote, Lisboa.
GUATTARI, Felix & DELEUZE, Gilles (2007), Mil Planaltos - Capitalismo e
Esquizofrenia, Ed. Assírio e Alvim, Lisboa.
INNERARITY, Daniel (2010), O Novo Espaço Público, Ed. Teorema, Lisboa.
SERRA, Miguel (2009), “Explorando a forma da cidade periférica - Uma Abordagem
Sintáctica”, in Arquitetura e Arte, Março, pp: 72-75.
SIMMEL, Georg (2001), “A Metrópole e a vida do espírito”, in FORTUNA, Carlos (Org.),
Cidade, Cultura e Globalização, Ed. Celta, Oeiras.
SLOTERDIJK, Peter (2008), O Estranhamento do Mundo, Ed. Relógio D’Água, Lisboa.
TÁVORA, Fernando (2008), Da Organização do Espaço, ED. FAUP, Porto.
WIRTH, Louis (2001), “O urbanismo como Modo de Vida”, in FORTUNA, Carlos (Org.),
Cidade, Cultura e Globalização, Ed. Celta, Oeiras.
EDITORIAL
—
José Martins, arquiteto
Presidente do Núcleo de Arquitectos da Região de Braga – OASRN
2. CAPITAL
3. TRANSFORMAÇÃO
DESIGN: NUNO BASTOS & RAQUEL PEÃO
desperdícios ou redundâncias energéticas do mais variado tipo
(económicas, desde logo, mas também simbólicas, políticas, etc).
Neste sentido, uma certa dose de desperdício, redundância e repetição funcional é não só necessária a toda a diferenciação sistémica mas, também, ao funcionamento social e urbano, sem o que a
quebra de um sistema desempenhando uma função vital poderia
representar o colapso do todo social. Deste ponto de vista, a tentação de hegemonização e ordenação política/cultural constitui não
só um arcaísmo político-ideológico e cívico mas também um sinal
de disfunção urbana e reaccionarismo tecnológico/social, o que
não deveria ser esquecido na deriva postiço-mediática das capitais culturais, quase sempre ardentes e desviantes nos tentames
adicto/compulsivos da racionalização, articulação e centralização.
Como já se assinalou, esta desestruturação urbana pode conduzir, porém, à perdição, por via de desidentificação pessoal e
social, tornando o espaço social mera redução funcional. Essa possibilidade é real, especialmente quando a cesura funcional e psicológica operada conduza à incapacidade de um certa sensibilização
do próprio e do alheio. Sem a criação de estruturas de interface global e ou parcial (de verdadeiro interface psicológico), sem limiares
de intersecção e interpretação sistémica, o humano pode tornar-se
um bicho e o urbano uma selva. Aliás, essas estruturas de interpretação alheia e própria são elas mesmas condições de possibilidade da vida das várias urbanidades e humanidades que a cidade
reproduz dentro de si própria, sob perigo de cristalização e calcificação, mais cedo ou mais tarde vítimas de vários traumatismos
imaginários ou reais. Daqui a importância da cultura e de espaços
plurais de leitura e produção simbólica, capazes de produzirem as
significações mais variadas, susceptíveis de operarem como instrumentos de coordenação urbana e conductual (que não de redução
ou comando, i.e., no seu sentido técnico de mútua e interpretável
perturbação sistémica) e, portanto, relação inter-sistémica social e
psicológica, obstando ao solipsismo psicológico e sistémico.
Por outro lado, e mais em particular, nesta concepção de cidade
plural, os dualismos “cidade-campo” e “cidade antiga-cidade nova”
há muito que foram superados, no que se confirma pela curiosa defesa que a “cidade” faz do campo, da contínua migração rural para
as cidades ou da extensão da cidade ao campo, fazendo emergir aquilo que Daniel Innerarity chama o “periurbano” ou espaços
de “urbanização frouxa” (2010: 128) ou, ainda, aquilo que Miguel
Serra1 chama cidade “periférica, fragmentada e distópica” (2009:
72-75), em que o rural e o urbano se entrecuzam numa crescente
indistinção e em que o antigo sofre manifesto cansaço de auto-identificação e incapacidade de agenciamento económico e populacional, desde logo pela dificuldade em dialogar com o novo. Bem
entendido, este espaço periurbano sofre de especial inospitalidade
mercê de um déficit de estruturas de significação e ordenação, de
cultura, conduzindo a que as suas incongruências funcionais sejam
vistas como destituídas de sentido, beleza e bondade.
Curiosamente, em Guimarães, mas não só, de há muito que
Nuno Portas defende que a organização da urbanidade local
deve ocorrer como um “cozimento” dos interstícios campo/cidade, cidade nova/cidade antiga, dando sentido àquilo que o tempo “desplaneado” veio a concretizar. Fernando Távora (o inventor
do centro histórico de Guimarães), por sua vez, também tratou
/100 exemplares
Para mais, hoje já não é nada paradoxal (espero!) a ideia segundo a qual só a desunião psíquica estrutural do homem garante
um certo nível de emancipação. Distante do centro do poder e da
articulação, o homem pode fazer-se por todos os descaminhos
possíveis e inimagináveis. A ideia pode ser difícil de compaginar
com um ideal de penas e recompensas salvíficas, em que é necessária uma alma una e transparente a si e ao mundo, a quem se
possa adscrever uma responsabilidade. Mas as coisas já não são
assim. E essa possibilidade, ou estado, é condição e possibilidade
de liberdade. Naturalmente, esta fuga das máximas articulações
pode criar (se cria!) problemas de identificação, empatia e comprometimento próprio e alheio. Mas o caminho do solitário sempre foi um caminho de escolhos.
Por sua vez, a “densidade” como critério do urbano corresponde à necessidade de uma proximidade funcional que obrigue
a um certo tipo de desidentificação egóica que vá em favor das
relações de totalidade e abrindo espaço às relações multiculturais, à intimidade e à diferença, nos seus sentidos mais amplos. A
densidade obriga a uma intimidade com a diferença que estimula a tolerância ao outro, nem que seja de modo puramente funcional e operacional, independentemente das relações de pura
textura cultural: “A justaposição de personalidades e modos de
vida divergentes tende a produzir uma perspectiva relativista e
um sentido de tolerância face à diferença, que podem ser vistos
como pré-requisitos racionais, conducentes à secularização da
vida” (Wirth, 2001: 55).
Por último, a relevância da heterogeneidade para que o urbano
possa vir a ser decorre da des-hierarquização social, económica e
política que aí se produz, mas também des-hierarquização urbana e funcional, abrindo espaço a múltiplas direcções e centralidades. A cidade ou é múltipla ou é uma aldeia, daí que a sensação
de que uma terra “é uma aldeia” esteja associada à percepção de
que todos se conhecem, i.e., todos sabem quem é quem e qual o
seu lugar nas relações urbanas, sociais, políticas, económicas e
culturais, nos seus sentidos mais amplos.
A heterogeneidade decorre, desde logo, da multiplicidade
funcional da cidade, organizada de modo assimétrico ou sistemicamente diferenciada, para utilizar a terminologia de Niklas
Luhmann, aberta à inserção múltipla e parcelar dos sujeitos nos
vários sub-sistemas, assim impossíveis de “objetuar”. Só na medida em que os vários sub-sistemas sociais (culturais, económicos, religiosos, educacionais, etc…) são capazes de se diferenciar
e escapar a agenciamentos centralizados é que é possível falar
de uma sociedade urbana, i.e., aquela em que os sub-sistemas
resistem à integração funcional totalitária, seja ela de tipo comunitarista ou político-funcional. Como estou apenas uma parte de
mim em cada sistema e em cada lugar, não só é difícil reduzir-me
como reduzirem-me a apenas uma das minhas funções urbanas,
sociais ou, até, psicológicas.
Uma cidade, assim sendo, seria um sistema sem uma unidade central de processamento mas com unidades múltiplas de processamento, cada uma delas operando como uma centralidade
relativamente ao seu entorno respetivo e sistemicamente diferenciado relativamente a outros contextos, intersectando-se através
de elementos de mútua ressonância ou perturbação e cruzando
da filosofia e do conceito de cidade intermédia nos
pressupostos apresentados durante o ano de 2012,
sendo uma cidade-território em rede e constituída por
exigências urbanas, culturais, sociais, programáticas;
e também por exigências económicas face a um sistema
em contínua decapitação.
Guimarães acolheu a Capital Europeia da Cultura em
2012 e parece fundamental medir o efeito da sua regeneração lido pelo envolvimento da população (ou pela
falta dele), onde o indivíduo é peça central deste capital
que julgamos ter-se gerado. Estamos, pois, interessados em perceber diferentes processos de transformação do ponto de vista da “cidade” e do “indivíduo”.
Dentro deste enquadramento, convidamos o arquitecto Alexandre Alves Costa, para fazer a sua leitura de
cidade-território por aproximação de valores da cidade
histórica versus cidade “ordinária” (território difuso
do Vale Ave), e o filósofo Francisco Teixeira, para uma
segunda leitura, dentro de um escrutínio crítico, e até
mesmo irónico, de “Capital”. Sobre estas reflexões,
traça-se o sentido dos lugares, as suas sobreposições,
identidades e memórias e com isto, cremos, a “exacta”
medida da sua dimensão urbana e cultural.
O POSTER #4 apresenta-se.
Março 2013
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