SER REI, SER PAI: A EXEMPLARIDADE DE D. JOÃO I NA CRIAÇÃO
DOS INFANTES DA ÍNCLITA GERAÇÃO (PORTUGAL – SÉCULO XV)
Mariana Bonat Trevisan1
Resumo: No Portugal do século XV, a dinastia de Avis, que havia sido fundada por um bastardo
régio, estabeleceu um amplo programa de legitimação política. Tal programa incluiu a produção de
diferentes formas textuais, como crônicas régias, tratados técnicos, moralísticos e compilações
legislativas, elaboradas tanto por membros da família real quanto por servidores. Nosso propósito
nesta comunicação é evidenciar como a legitimação avisina passou também por uma afirmação
moral, tendo, como um de seus pressupostos, a criação da imagem de uma família régia exemplar,
partindo da figura de seu pai-fundador, D. João I (1385-1433). Deste modo, através da cronística e
tratados moralísticos avisinos, procuramos apreender como as representações de D. João I como pai
exemplificam valores medievais relacionados à paternidade e, especificamente, a complexa
paternidade régia, que envolve tanto a educação dos infantes quanto a associação da figura do rei
com a de “pai protetor do reino”. Sendo assim, procuramos perceber ligações entre gênero e
política, observando como o exemplo da relação entre pai e filhos atua como modelo para a relação
entre monarca e súditos.
Palavras-chave: Paternidade régia. Legitimação política. Representações de gênero.
Quais as relações entre as funções de rei e pai na Idade Média? Tal questão é o que
pretendemos discutir sumariamente neste texto, buscando perceber interações específicas entre
gênero e política régia em fins do medievo. Para isso, abordaremos o caso do rei D. João I, fundador
da dinastia de Avis em Portugal em finais do século XIV. Observamos ao longo de nossas pesquisas
a importância que a figura do monarca João I enquanto pai de uma virtuosa geração assume nos
discursos legitimadores de sua Casa Real. Tal relevância possui ligação fundamental com o modo
de ascensão do Mestre de Avis ao trono e com uma característica específica detida pelo novo
governante do reino português: a bastardia régia.
Em 1383, o rei D. Fernando, já muito debilitado por sua doença, morre. Porém, o herdeiro
do monarca D. Pedro I não deixou um varão legítimo e pelo Tratado de Salvaterra de Magos
assinado com Castela, incumbiu a esposa (D. Leonor Teles) da regência do reino até que a filha de
ambos, D. Beatriz, tivesse um varão com seu marido, o rei Juan I. Contudo, o poder em mãos
femininas será contestado, tanto por grupos nobres portugueses, quanto pelo monarca castelhano, o
qual descumprindo o tratado, invade Portugal buscando tomar a coroa para si, justificando o ato em
nome da esposa Beatriz.
1
Doutoranda e Mestra pelo PPGH-UFF (Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ). Integrante do Scriptorium
(Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos da UFF), bolsista pela CAPES, orientada pela Profa. Dra. Vânia Fróes.
e-mail: [email protected]
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Em defesa do reino português, junto a grupos nobres, citadinos e populares, entrou em cena
o Mestre de Avis, D. João (1385-1433), irmão ilegítimo de D. Fernando. Após diversos conflitos,
D. João I e seus partidários saem vitoriosos. Mas não sem enfrentar a oposição de nobres partidários
de outros de outros dois infantes portugueses, D. Dinis e um homônimo D. João. Contudo, estes
eram filhos do monarca D. Pedro com a amante Inês de Castro e teriam sido legitimados pelo pai.
Porém, a conjuntura favorece o Mestre de Avis, pois os irmãos Castro haviam sido excluídos do
testamento de D. Fernando e se encontravam em Castela no momento. Deste modo, o Mestre de
Avis é eleito rei de Portugal nas Cortes de Coimbra em 1385.
Emerge o momento em que a nova dinastia, fundada por um herdeiro maculado pela
bastardia e elevado ao trono pelo já não tão comum princípio eletivo, precisava provar sua
dignidade real e legitimidade política, tanto dentro quanto fora do reino. Assim, uma ampla política
legitimadora é iniciada, tanto no plano da ação (através de atos como o casamento com uma nobre
Lancaster, D. Filipa, em 1387 e a expansão marítima com Ceuta em 1415), quanto no plano
discursivo, com uma série de obras capitaneadas tanto pelo monarca e seus filhos, quanto por
servidores régios, tal qual o cronista Fernão Lopes.
A partir do esfriamento das lutas com Castela pelas negociações de paz de 1411, a
legitimação do poder do ex-Mestre de Avis se dá em grande parte pela valorização das virtudes do
rei (morais, religiosas, guerreiras, políticas, etc.), em oposição a seu defeito de sangue. Deste modo,
todas as ações executadas pelo novo governante se destacariam pela exemplaridade. Os
acontecimentos que precederam a nomeação de D. João I como regedor e defensor do reino, bem
como a sua eleição em Cortes, a vitória militar contra os castelhanos em Aljubarrota, entre outros
pontos, são marcados por uma fortíssima componente mítica e simbólica. Efetivamente, tratava-se
de uma época de instabilidade, incerteza e, por conseqüência, propícia à formação e vigência de
mitos e símbolos políticos. Nas palavras da historiadora Margarida Ventura: “Ainda durante a vida
de D. João I e, sobretudo, nos reinados de D. Duarte e D. Afonso V, recolhe-se e constrói-se a
imagética mitologia do rei-fundador da Dinastia de Avis. Escrevi ‘recolhe-se’ porque não podemos
supor que o edifício mitológico foi somente invenção a posteriori”2.
Assim, na nova dinastia, assente o pó da mudança sociológica e política, era tempo de se
erguer uma teoria de legitimidade inabalável. E, quanto mais irregular ou pouco comum fosse essa
tomada de poder, tanto mais a teoria se reportaria à fonte de todo o poder: Deus3.
2
VENTURA, Margarida Garcez. O Messias de Lisboa. Um estudo de mitologia política (1383- 1415). Lisboa: Cosmos,
1992. p. 1, 2.
3
Ibidem. p. 7.
2
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Segundo José Gama, a instauração e consolidação de Avis foi um processo efetuado ao
longo de décadas e teve a sua primeira geração como principal protagonista e impulsionadora. As
profundas mudanças sociais e políticas exigiram uma correspondente ação cultural e pedagógica.
As obras escritas por D. João I, por seus filhos D. Duarte e D. Pedro, e por servidores fiéis como
Fernão Lopes, são a melhor prova dessa intenção e ação iniciada. Era necessário consolidar
internamente a nova dinastia, não só politicamente, mas também e, sobretudo, moral e
culturalmente, através do exemplo e da intervenção da família real. A educação dos príncipes
obedeceu certamente a esses objetivos e a cuidada formação literária que receberam assegurou a sua
decisiva participação no processo de maturidade e de autonomia da língua e da cultura portuguesas
na primeira metade do século XV4. Deste modo produzem-se tratados técnicos (como os de
montaria de D. João I e D. Duarte), tratados filosófico-moralísticos (como o Livro da Virtuosa
Benfeitoria, de D. Pedro, e o Leal Conselheiro, de D. Duarte) e as crônicas régias (como a trilogia
composta pelo funcionário Fernão Lopes).
Entre 1350 e 1450, D João I e seus filhos exerceram um importante papel na consolidação
interna de uma identidade portuguesa. Suas obras marcam uma nova etapa no uso da prosa
doutrinária vernácula, sobretudo no campo da filosofia moral e política5. Desta forma, podemos
perceber o quanto a família régia iniciada por D. João I preocupou-se com o saber e a legitimação
de sua própria casa real através deste. Nesta discussão, privilegiamos a concepção de Joan Scott de
que o gênero é um aspecto geral da organização social que atua na construção e legitimação de
hierarquias em diferentes âmbitos sociais e em diversos tipos de lutas pelo poder6. Neste sentido,
percebemos que a questão da paternidade régia do ex-Mestre de Avis, entendida aqui como a figura
do rei D. João I enquanto pai, adquire grande importância nas obras que compõem o programa
legitimador avisino, sendo construída a partir de referências específicas do medievo cristão com
relação às questões sobre a função paterna.
A identidade construída para o monarca fundador de Avis e, especificamente sua identidade
de gênero7, passam fortemente pela componente da paternidade. Afinal, o resultado mais importante
4
GAMA, José. D. Duarte. In: CALAFATE, Pedro (Dir.). História do pensamento filosófico português. Idade Média.
Lisboa: Cosmos, 1999. v. 1. . p. 381.
5
Ibidem. p. 386.
6
Cf: SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, n.
16 (2), pp. 5-22, jul/dez,1990. p. 13; ________. Prefácio à Gender and Politcs of History. In: Cadernos Pagu,
Campinas, v.3 , pp. 11-27, 1994, p. 12, 13, 20.
7
A identidade de gênero compõe a identidade social de um indivíduo, a qual Denys Cuche define como caracterizada
pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social (sejam vinculações de ordem sexual, etária, social, territorial,
etc.). Possuindo sentido somente através da percepção do contexto no qual está inserida, a identidade se reconstrói
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para o homem que casa na Idade Média é a geração de filhos legítimos, pois até aquele momento
ele não havia reivindicado seu lugar na cadeia genealógica. Nos setores aristocráticos, mormente na
cúpula régia, este papel é fundamental, o que faz com que a paternidade seja um componente
essencial da ideologia medieval de masculinidade, como apontou Ruth Karras8. Mas como um
bastardo régio e ex-clérigo da Ordem de Avis poderia ter seu poder legitimado e de seus herdeiros
do trono também? Através de seu exemplo moral. A exemplaridade do “pai” D. João I servirá de
referência nos discursos avisinos não só para outros pais nobres na criação de seus filhos, mas
também para todos os súditos, que seriam tão cuidados e amados como os infantes por este pai.
A questão da paternidade no medievo cristão tem interessado a diferentes medievalistas
preocupados com as questões referentes ao gênero, à família e ao parentesco na Idade Média. Dois
exemplos notáveis são Jerôme Baschet e Didier Lett na historiografia francesa, incentivados por
iniciativas como a coletânea História da Família – Tempos Medievais: Ocidente, Oriente9, lançada
em 1986 e dirigida por pesquisadores como Christiane Klapish-Zuber e Martine Segalen. Na obra
Le sein du père, Baschet disserta a respeito da referência paterna de Abraão no Ocidente medieval,
buscando também perceber como podemos apreender as concepções de maternidade e paternidade
no período. O historiador liga-as à noção fundamental no medievo de parentesco divino, com a
complexa estrutura da Trindade e outras imagens, como a de Deus-Pai, da Mãe-Igreja, da
fraternidade entre Cristo e os homens, entre outras, apontando o papel estruturante das relações de
parentesco no mundo medieval10. Já Didier Lett, em diferentes trabalhos, procura analisar como
estas percepções específicas da cristandade medieval estão presentes em diversos exemplos de
relações entre pais e filhos, em diferentes tipos de fontes11.
Em nosso caso, buscamos apreender como uma paternidade específica (a paternidade régia)
é representada em fontes cronísticas e em tratados filosófico-morais avisinos. Além disso,
evidenciar como estas representações paternas estão relacionadas a um propósito político
contundente: a legitimação de uma nova autoridade e dinastia no reino português do século XV.
Encontramos referências à D. João como pai de uma geração de virtuosos infantes em diferentes
permanentemente no interior das trocas sociais, não tendo uma essência fixada. Cf: CUCHE, Denys. A noção de cultura
nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. p. 177, 182, 183.
8
KARRAS, Ruth Mazo. From Boys to Men. Formations of Masculinity in Late Medieval Europe. Pennsylvania:
University of Pennsylvania Press, 2003. p. 16.
9
Cf : ZONABEND, Françoise ; BURGUIÈRE, André ; KLAPISH-ZUBER, Christiane & SEGALEN, Martine.
História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997. v. 2.
10
Cf : BASCHET, Jeróme. Le sein du père. Abraham et la paternité dans l'Occident médiéval. Paris, Galimmard, 2000.
p. 22-25.
11
LETT, Didier. Pères modèles, pères souverains, pères réels. In : Cahiers de recherches médiévales et humanistes.
Être père à la fin du Moyen Âge. n. 4, 1997. Disponível em : <http://crm.revues.org/958>. Acesso em: 17/06/2012.
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narrativas produzidas na corte de Avis, tais como a Crónica de D. João I, do cronista Fernão Lopes,
a Crónica da Tomada de Ceuta, do cronista sucessor, Gomes Eanes de Zurara, o Livro da Virtuosa
Benfeitoria, escrito pelo infante D. Pedro e o Leal Conselheiro, escrito pelo herdeiro do trono, D.
Duarte. Portanto, é preciso perceber que uma gama diversa de obras, com diferentes estruturas,
composições narrativas, períodos de escrita e propósitos específicos conjugam em determinados
momentos um tema comum e respondem sempre a um mesmo objetivo maior: a legitimação de
Avis através da escrita, poderoso instrumento do poder simbólico, como enunciado por Pierre
Bourdieu12.
Iniciemos com a cronística. O primeiro cronista-mor do reino, Fernão Lopes, era já notário
geral e guardador dos Arquivos da Torre do Tombo quando D. Duarte o incumbiu oficialmente em
1434 da escrita das crônicas dos reis que governaram Portugal até D. João I13. Até nós, chegou
somente a trilogia composta pela Crónica de D. Pedro I (pai de D. João), a Crónica de D. Fernando
(seu irmão legítimo) e a Crónica de D. João I, dividida em duas partes (antes e depois da ascensão
do Mestre de Avis ao trono). Após o afastamento do cronista, em 1454, a Crónica da Tomada de
Ceuta, que seria uma terceira parte da Crónica de D. João I, seria composta pelo cronista
subseqüente, Gomes Eanes de Zurara, servidor já do neto de D. João,o rei D. Afonso V.
Assim, o cargo de cronista-mor foi um ofício régio que, a serviço dos monarcas de Avis,
organizou o fazer histórico com um fundo moralista, comum à escrita de outros ofícios e
semelhante à própria escrita dos reis14. Como observou Miriam Coser, o cronista tinha
primordialmente duas funções: ser o produtor de uma memória oficial do reino e o divulgador de
modelos sociais a serem seguidos15. A crônica régia medieval, como afirmou Bernardo Vasconcelos
e Sousa, constitui um acurado tipo de historiografia na forma narrativa, promovido pela Coroa e no
qual o protagonista central é o monarca e suas ações. Em Portugal este gênero inicia-se com Avis,
12
Conforme Bourdieu, o poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e crer,
confirmar ou transformar a visão de mundo e assim, a ação sobre o mundo (portanto, o mundo), permite obter aquilo
que é equivalente ao que é obtido pela força, graças a um efeito de mobilização. Os ‘sistemas simbólicos’, produzidos
muitas vezes por um corpo de especialistas, e seu poder definem-se numa relação específica– e por meio desta - entre os
que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos. É essencial para nossa compreensão o trecho em que Bourdieu afirma:
“O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na
legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”. Cf:
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 12, 14, 15.
13
Cf: SARAIVA, António José. História da Cultura em Portugal. Lisboa: Jornal do Foro,1950. v.1. p. 457, 458.
14
TEODORO, Leandro Alves. A escrita da história na Corte dos reis de Avis. In: Anais do XIX Encontro Regional de
História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Disponível em:
<www.anpuhsp.org.br/downloads/CD%20XIX/PDF/Autores%20e%20Artigos/Leandro%20Alves%20Teodoro.pdf>.
Acesso em: 12/03/2011. p. 1, 4, 7.
15
COSER, Miriam Cabral. A dinastia de Avis e a construção da memória do reino português: uma análise das crônicas
oficiais. Caderno de Ciências Humanas- Especiaria, Santa Cruz, v. 10, n. 18, p. 703-727, jul.-dez. 2007. p. 725.
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configurando-se como um discurso de identidade e poder da coroa, totalmente dedicado ao reino
português, mas também subordinado à história de seu rei16.
Na configuração da identidade do reino português a partir da figura do monarca João I o
Fernão Lopes procura oferecer em determinado momento a imagem do progenitor D. João I. Assim,
começa por enunciar a extensa prole tida por aquele rei para os padrões do período: primeiro, cita os
filhos naturais, tidos antes do casamento com D. Filipa, os quais eram D. Beatriz e D. Afonso.
Depois, vieram os filhos legítimos do matrimônio: D. Branca (falecida poucos meses depois de
nascer), D. Afonso (que viveu só até os 12 anos), D. Duarte (que se tornaria então o herdeiro do
trono), D. Pedro, D. Henrique, D. Isabel (a única mulher a sobreviver), D. João e D. Fernando,
respectivamente. Em seguida, o cronista constrói uma imagem exemplar da prole gerada pelo rei D.
João, tal como podemos apreender no seguinte trecho:
E estes Ifamtes que dizemos sairam taees e tam bõos, que de nenhu rei que da Espanha nem
mais alomguada terra fose se lê que semelhantes filhos ouvese, por que se as cives e
humanaes leis e tam espeita como naçoees de gemtes (p. 321) todos outorguã que os filhos,
em quoall quer estaado e comdiçaom que sejam, obedeçam sempre a seus padres, louvamdo
muito os que asy fazem, avemdo por maa e escomunguada desobediemcia qualquer que o
filho per palavra ou feito comtra seu padre mostra. Os filhos deste nobre Rei imteiramemte
tem tall louvor, caa todos lhe foram sempre tam obidiemtes, asy solteiros como casados,
que nehuu estaado nem crecimemto de homrra os pode mudar [...]. Asy que ha humildade
destes Iffamtes, e gramde amor acerca de seu padre nenhuu louvor se pode emader que
maior grao merecer posa. E porque elles esplamdeseram por fremosura de obediemcia tãto
per Deos emcomemdada, que podem ser emsino aos filhos dos Reis, que depois delles ham
de vir, [...]. (LOPES, 1949, cap. CXLVII, p. 320).
Deste modo, Fernão Lopes destaca uma das grandes referências tidas na educação dos filhos
pelos pais no medievo: o valor da obediência. Tal valor seria plenamente detido pelos infantes
avisinos, os quais jamais procurariam desagradar ao pai, pois:
Quoamdo duvidavaom dalgua coussa se aprazeria a seu padre ou nam, muito se
guoardavam de a cometer ate que eram em conhecimemto quoall era sobre ello sua
vomtade, avisandose nam desviar de toda cousa a que seu bom prazer tocasse, como se elle
fose hu esquivo senhor que os asperamente ouvese de ponir (LOPES, 1949, cap. CXLVIII,
p. 322).
Assim, os infantes buscariam sempre obedecer e agradar ao pai, tomando uma série de
precauções enunciadas por Lopes, tais como: 1) Recebiam sem resistência sua determinação,
mesmo que fosse contra seu prazer e vontade, sem demonstrar aborrecimento ou tristeza; 2)
Segredo que lhes contasse era perfeitamente guardado e falavam-lhe sempre a verdade; 3) Se
queriam demonstrar que suas razões estavam certas, com muita calma e humildade mostravam que
16
SOUSA, Bernardo Vasconcelos e. Medieval Portuguese Royal Chronicles. Topics in a Discourse of Identity and
Power. In: e-Journal of Portuguese History , v. 5, n.2, Winter 2007. Disponível em:
<www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/html/issue10/pdf/bsousa.pdf>.
Acesso
em:
14/03/2011. p. 1, 2.
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sua intenção era fundada no serviço de Deus e dele, e não por proveito nem prazer deles próprios ou
de outra pessoa; 4) Em monte e caça serviam a seu pai com bestas, cães e aves, ficando muito
felizes quando ele aceitava; 5) Quando ele estava doente, por mais longe que estivessem,
apressadamente vinham para junto dele, visitando-o e servindo-0 o quanto bem podiam fazer; 6)
Quanto mais a vida do rei se acrescentava em tempo, mais reverência e amor lhe mostravam,
servindo-o sem empecilhos, com todas as cerimônias que à sua honra podiam acrescentar. Por todas
estas razões, o cronista afirma que D. João os amaria muito, tendo grande alegria por Deus ter-lhe
dado tão bem-aventurados filhos17.
Uma demonstração destes princípios seguidos pelos infantes pode ser encontrada na obra do
cronista seguinte, Gomes Eanes de Zurara. Na Crónica da Tomada de Ceuta, o autor justifica a
iniciativa de tomada do porto marroquino como um ato dos infantes, rogado ao pai com grande
respeito e reverência. O pai, preocupado com a honra dos três jovens filhos, pensa em fazer festas
reais para armá-los cavaleiros. Contudo, os infantes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique teriam outra
idéia: queriam conquistar a honra da cavalaria na prática, através da guerra. A tomada de Ceuta aos
infiéis mouros seria uma forma para isso18. Os infantes não queriam contrariar o pai, mas achavam a
causa justa, a qual também fora aprovada pelo conde D. Afonso, seu irmão natural e mais velho:
“[...] posto que os Infantes fossem tão prudentes e discretos, tomaram, porém, de grande ousio para
falarem a seu padre, quando viram que lhes o conde tão grandemente louvava seu bom propósito”
(Zurara, 1992, cap. VIII, p. 57).
Contudo, D. João se mostraria reticente inicialmente, tendo grande preocupação para com a
juventude e inexperiência dos filhos, tal como no seguinte trecho: “Mas porque vi outros mui
grandes feitos e experimentei seus grandes carregos, conheço como são caros de acabar. A qual
cousa ainda a vós outros é escura de conhecer.” (Zurara, 1992, cap. XII, p. 68). Porém, o pai
permite aos filhos contrargumentar: “E se, por ventura, algum de vós entender que estas dúvidas
não são justas nem razoadas, mostrem-me o contrairo, e eu lho conhecerei, segundo for direito e
razão” (Zurara, 1992, cap. XII, p. 71). Ao final, com o convencimento do pai pelo infante D.
Henrique, os irmãos pegam seus cavalos e vão até o monarca para lhe mostrar grande reverência e
17
LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Edição Preparada por M. Lopes de Almeida e A. de Magalhães Basto.
Segundo o códice inédito CIII/1-10 da Biblioteca Pública de Évora confrontado com o texto impresso em 1644 e
versões quinhentistas da mesma crônica existentes nas bibliotecas da Universidade de Coimbra e Municipal do Porto.
Porto: Livraria Civilização, 1949. v. 2. Cap. CXLVIII, p. 323, 324.
18
ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica da Tomada de Ceuta. Introdução e notas de Reis Brasil. Lisboa: Publicações
Europa-América, 1992. Cap. VIII, p. 55.
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agradecimento por tamanha mercê, beijando as mãos de seu pai e senhor rei19. Portanto, em Zurara
também percebemos o valor hierárquico na relação entre pai e filhos, contudo, sem abusos de poder,
tal qual deveria ser também a relação do rei para com seus súditos. Os quais, em contrapartida
deveriam lhe mostrar reverência. Desta forma, deveria ser uma relação hierárquica, porém, marcada
pela justiça, grande princípio da monarquia medieval.
A exaltação desta hierarquia é marcada também pelo infante D. Pedro na obra de sua
autoria, o Livro da Virtuosa Benfeitoria, um tratado filosófico-moral marcado por referências
clássicas, tais como Cícero e Sêneca, além das cristãs, como Egídio Romano e as passagens
bíblicas. De modo objetivo, o tratado busca revitalizar a ideologia cavaleiresca, servindo-se do
método escolástico para justificar a hierarquia feudal com respaldo na religião, mostrando os altos
senhores enquanto recebedores de doações divinas, os quais teriam a responsabilidade de fazer
reverter em bem-estar para os súditos da mais “virtuosa” forma20. A benfeitoria ou o benefício
(conceito central do livro) é o elo que sustenta a sociedade. O benefício não é mais que a
materialização do “amor” (no sentido de “benquerença”), que torna possível a sobrevivência dos
homens. A concessão do benefício começa hierarquicamente com Deus e vai descendo na escala
social, reis e príncipes seriam os primeiros a recebê-lo do Todo-Poderoso, sendo responsáveis por
transmiti-lo a todos os seus súditos21. Partindo deste princípio, D. Pedro ressalta a importância da
figura do rei como pai dos súditos:
Quall quer padre deue auer cuydado de gouernar seus filhos, assy como suas próprias
cousas. Porem como os príncipes seiam padres dos seus próprios subdictos, os quaaes elles
geeram assy como naturaaes marydos com a terra que he seu senhorio. Seguese que lhes
deue fazer bem acorrendo aas mínguas das suas feyturias (D. PEDRO, 1981, cap. IX, p.
578).
Assim, como pai dos seus súditos - tidos aqui como filhos do rei com a terra do reino, numa
instigante metáfora - o príncipe deveria bem governá-los, provendo seu bem e cumprindo uma das
funções primordiais do monarca medieval: a de protetor. Em contrapartida, assim como os filhos ao
pai, os súditos deveriam procurar sempre serem leais a seu senhor, honrando-lhes e mostrando-lhes
virtude22.
Já o herdeiro D. Duarte, que se tornou rei a partir de 1433, lança-se, a pedido de sua esposa,
na escrita da obra moral, filosófica e política intitulada Leal Conselheiro (a qual o próprio monarca
19
Ibidem, cap. XV, p. 78.
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Humanismo. In: MOISÉS, Massaud (Dir.). A Literatura Portuguesa em
Perspectiva. São Paulo: Atlas, 1992. v. 1. p. 142
21
SARAIVA, António José. O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1988. p. 221, 223.
22
D. PEDRO, Infante. Livro da Virtuosa Benfeitoria. In: Obras dos Príncipes de Avis. Introdução e revisão de Manuel
Lopes de Almeida. Porto: Lello & Irmãos editores, 1981. Cap. X, p. 580, 581.
20
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chama de “ABC de lealdade”23). Tendo a virtude da lealdade como seu eixo central, trata de temas
relativos ao poder, paixões, virtudes e bondades, males e pecados dos homens24, baseando-se em
autores cristãos e clássicos, como Aristóteles, São Tomás de Aquino e Egídio Romano, mas,
sobretudo, em experiências pessoais, o que confere à obra certo grau de empirismo. Os temas
tratados possuem uma ampla variedade, indo desde o comportamento amoroso dos homens nobres
até questões de saúde, preceitos e valores políticos para governantes, além de reflexões sobre a
tristeza e a saudade.
No capítulo “Das praticas que tínhamos com El Rei, meu Senhor e Padre, cuja alma Deos
haja”, D. Duarte vem louvar a memória de seu pai, atentando para o amor e temor que ele seus
irmãos lhe tinham, contudo, este temor não era simplesmente um medo do pai, mas sim de fazer
algo errado que o entristecesse. Do mesmo modo, tinham certeza do amor que D. João lhes tinha:
“Havíamos teençom sem duvida que nos amava e prezava muito, e era bem firme em esta boa
voontade, havendo segura sperança que nunca jamais antre nós haveria mudamento de todo boo
amor.” (D. Duarte, 1998, cap. LRVIII, p. 349-350).
Os infantes tinham a crença de que o pai, por suas bondades e virtudes, fazia com bom
fundamento todas as coisas relacionadas aos filhos, tendo estes recebido grandes honras do
progenitor D. João. Por seu lado, os infantes buscavam lhe mostrar obediência e reverência 25. A
relação de um pai com os membros de sua casa, tal como expôs Aristóteles em A Política, é
comparável à relação de um rei com seus súditos26. Portanto, ao falar sobre a relação dos infantes
com o pai, D. Duarte não estaria só expressando a experiência sua e de seus irmãos com a figura
paterna, mas também o comportamento desejável dos súditos portugueses para com seu rei. Um rei
que, mesmo sem estar no trono pela via da sucessão hereditária e tendo seu sangue maculado pela
bastardia, possuiria as principais virtudes régias, obtendo o respeito e obediência dos súditos do
mesmo modo que qualquer governante que havia recebido o poder hereditariamente.
Deste modo, o sistema discursivo de legitimação avisina, baseando-se em autores da
Antiguidade Clássica e autores cristãos medievais, como Egídio Romano - certamente lido na corte
de Avis através da glosa castelhana do século XIV elaborada por frei Juan de Castrojeriz - procura
ressaltar a significativa analogia entre a figura do pai e a do governante, passando também pela
23
Cf: D. DUARTE. Leal Conselheiro. Prefácio de Afonso Botelho. Edição crítica, introdução e nota de Maria Helena
Lopes de Castro. Colecção Pensamento Português, s/l, 1998. f. 3c, p. 9.
24
SARAIVA, António José. O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Op. Cit. p. 227.
25
D. DUARTE. Leal Conselheiro. Cap. LRVIII, p. 351, 360.
26
ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. 2ª Edição Revista. Bauru, SP: EDIPRO, 2009. .
Livro I, Cap. IV, p. 34.
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questão do parentesco divino (pois Deus seria o grande Pai dos homens). Assim, podemos comparar
os relatos avisinos de D. Pedro, D. Duarte, Fernão Lopes (este certamente baseado em D. Duarte) e
Zurara com os princípios da relação entre pais e filhos presentes no Regimiento de Principes de
Egídio Romano, glosado por Castrojeriz em Castela.
Neste referencial espelho de príncipes da Idade Média, que possui uma parte exclusiva sobre
o governo da casa e da família, encontramos a necessidade de sabedoria e cuidado que os pais
deveriam ter no governo de seus filhos, pois os precederiam naturalmente e hierarquicamente. Por
outro lado, os filhos deveriam sempre honrar os pais, tal como mandado por Deus. O cuidado dos
filhos pelos monarcas deveria ser muito maior que o de outros senhores, pois os infantes deveriam
ser preparados para o importante ofício que iriam desempenhar, atuando no comando do destino dos
outros homens27. O amor e temor ao pai, enunciados nos textos avisinos, também se encontram
presentes em Egídio Romano, sendo os pais responsáveis por afastar os filhos dos vícios e educá-los
nos bons costumes e virtudes, tornando-os dignos de sua herança28. Para isso, os pais precisavam
dar o exemplo, sendo bons e honrados29.
Portanto, podemos concluir que a partir de diferentes referências culturais e imagéticas do
medievo os discursos legitimadores avisinos buscaram ressaltar a exemplaridade da figura de D.
João I como pai. Este seria o pai fundador de uma nova dinastia e de um novo tempo para Portugal,
um tempo que deveria ser marcado pela virtude, pela moralidade e pelo respeito recíproco entre
governantes e governados. A exemplo do Pai Criador, o pai do novo Portugal seria também o
progenitor de uma bem-aventurada geração, educada nos valores da cristandade medieval. Em meio
a este quadro exemplar, a bastardia do monarca é posta de lado, dando lugar à afirmação dinástica
pela moral e virtudes governativas. Gênero e política se conjugam para afirmar este novo poder.
Referências
Fontes:
ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. 2ª Edição Revista. Bauru, SP:
EDIPRO, 2009.
27
CASTROJERIZ, Juan García de; ROMANO, Egídio. Glosa castellana al "Regimiento de Principes" de Egidio
Romano. Édicion, estudio preliminar y notas de Juan Beneyto Perez. Madrid: Centro de Estudios Politicos y
Constitucional, 2005. L. II, 2ª parte, cap. II, p. 445.
28
Ibidem, p. 446.
29
Ibidem, p. 450.
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CASTROJERIZ, Juan García de; ROMANO, Egídio. Glosa castellana al "Regimiento de
Principes" de Egidio Romano. Édicion, estudio preliminar y notas de Juan Beneyto Perez. Madrid:
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Being king, being father: The exemplarity of D. João I in the raising of infants from the
“Ínclita Geração” (Portugal – 15th Century).
Astract: In the Portugal of the 15th Century, the Avis’ Dynasty, which was founded by a royal
bastard, established a wide program of political legitimation. Such program included the production
of different textual forms, like royal chronicles, technical treatises, moral treatises and legislative
compilations, produced both by members of the royal family as by servers. Our purpose in this
communication is to point how the Avis’ legitimation also went through a moral claim, having, as
one of its assumptions, the creation of an exemplary royal family image, starting from the figure of
its founding father, D. João I (1385-1433). Thereby, through the cronistic and the moral treatises,
we aim to apprehend how representations of D. João I as a father exemplify medieval values of
paternity and, specifically, the complex royal paternity, which involves both the infants’ education
as the association of the king’s figure represented as protector father of the kingdom. Therefore, we
seek to perceive connections between gender and politics, noting how the relationship between
father and children serves as a model for the relationship between monarch and subjects.
Keywords: Royal Paternity. Political Legitimation. Gender Representations.
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a exemplaridade de D. João I na criação dos infantes da Ínclita