Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o
feminino na poesia contemporânea em português
Rhea Sílvia Willmer
Rio de Janeiro
2014
Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o
feminino na poesia contemporânea em português
Rhea Sílvia Willmer
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Doutor em
Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e
Africanas).
Orientador: Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira
Co-orientadora: Professora Doutora Rosa Maria Martelo Fernandes Pereira
Rio de Janeiro
Março de 2014
Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o feminino na
poesia contemporânea em português
Rhea Sílvia Willmer
Orientador (UFRJ): Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira
Co-orientadora (UP): Professora Doutora Rosa Maria Martelo Fernandes Pereira
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas.
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira – UFRJ (Orientador)
_________________________________________________
Professora Doutora Sofia Maria de Sousa Silva – UFRJ
_________________________________________________
Professora Doutora Mônica Genelhu Fagundes – UFRJ
_________________________________________________
Professora Doutora Celia de Moraes Rego Pedrosa – UFF
_________________________________________________
Professora Doutora Joana Matos Frias – UP
_________________________________________________
Professora Doutora Gumercinda Nascimento Gonda – UFRJ, Suplente
_________________________________________________
Professora Doutora Tatiana Pequeno da Silva – UFF, Suplente
Rio de Janeiro
Março de 2014
WILLMER, Rhea Sílvia
Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o feminino na
poesia contemporânea em português / Rhea Silvia Willmer – Rio de
Janeiro: UFRJ/ 142 FL, 2014.
Orientador: Jorge Fernandes da Silveira
Co-orientadora: Rosa Maria Martelo Fernandes Pereira
Tese (Doutorado) – UFRJ/Faculdade de Letras/ Programa de
Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2014
Referências Bibliográficas: f. 146
1. Poesia Portuguesa Contemporânea. 2. Poesia Brasileira
Contemporânea. 3. Literatura Comparada. 4. Feminismo
I. SILVEIRA, Jorge Fernandes da II. MARTELO, Rosa Maria
III. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Faculdade de Letras/
Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas/ Literatura
Portuguesa IV. Ana Cristina Cesar e Ana Luísa Amaral: tradição
literária e subjetivação no feminino na poesia contemporânea em
língua portuguesa
Autorizo a reprodução parcial ou total desta tese para fins acadêmicos.
_____________________________________________ Data: 02/10/2014
Assinatura
RESUMO
Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o feminino na poesia
contemporânea em português
Rhea Sílvia Willmer
Orientador (UFRJ): Jorge Fernandes da Silveira
Co-orientadora (UP): Rosa Maria Martelo Fernandes Pereira
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Letras
Vernáculas.
Ana Cristina Cesar (1952-1983) e Ana Luísa Amaral (1957) problematizam a
subjetivação no feminino a partir da tradição literária, enquanto Ana Cristina Cesar, de
certa forma, apropria-se de um lugar na tradição Modernista brasileira, escrevendo
como nenhuma mulher modernista chegou a escrever, Ana Luísa Amaral prefere
retomar a tradição e subvertê-la, evitando colocar-se ao lado dessa tradição.
Pretendemos, a partir disso, observar como a questão da revisão da tradição erudita se
apresenta na poesia a partir de um olhar no feminino.
Palavras-chave: Ana Cristina Cesar, Ana Luísa Amaral, Poesia portuguesa
contemporânea, Poesia brasileira contemporânea, Literatura comparada.
Rio de Janeiro
Março de 2014
RÉSUMÉ
Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o feminino na poesia
contemporânea em português
Rhea Sílvia Willmer
Orientador: Jorge Fernandes da Silveira
Co-orientadora: Rosa Maria Martelo Fernandes Pereira
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Letras
Vernáculas.
Ana Cristina Cesar (1952-1983) et Ana Luísa Amaral (1957) remettent en question la
subjectivité féminine dans la tradition littéraire. Nous avons l'intention d'observer
comment la question de la révision de la tradition classique de la poésie est présentée du
point de vue d'une femme, puisque Ana Cristina Cesar et Ana Luísa Amaral se
présentent comme des héritières de la tradition littéraire. Ana Cristina Cesar s'approprie
d`une place dans la tradition moderniste brésilien et Ana Luisa Amaral préfèrent
récupérer la tradition et de subvertir cette tradition. Elles ont, tous deux, des façons
particulières d'être et de penser la poésie des femmes contemporaines en portugais.
Mots-clés: Ana Cristina César, Ana Luísa Amaral, Poésie contemporaine portugaise,
Poésie contemporaine brésilienne, Littérature comparée.
Rio de Janeiro
Março de 2014
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO …………………………………………………………...……………...1
1. TRADIÇÃO LITERÁRIA E REVISÃO DO CÂNONE A PARTIR DA SUBJETIVAÇÃO NO
FEMININO ……………………………………………………………...……………….8
1.1. ANA CRISTINA CESAR E A TRADIÇÃO MODERNISTA ………………………………..17
1.2. A ARTE POÉTICA DE ANA LUÍSA AMARAL………………………………………….19
1.3. ANA C., ANA LUÍSA AMARAL E A POÉTICA DO FINGIMENTO………………………..23
1.4. TRADIÇÃO DA ESCRITA FEMININA…………………………………………………..29
1.4.1. ANA CRISTINA CESAR E CECÍLIA MEIRELES………………………………….…31
1.4.2. “AQUI
MEUS CRIMES NÃO SERIAM DE AMOR”: TRADIÇÃO NA ESCRITA DE
ANA
CRISTINA CESAR………………………………………………………………...37
1.4.3. A CONDIÇÃO FEMININA NA POESIA DE ANA LUÍSA AMARAL……………………41
1.4.4. DAR VOZ ÀS MUSAS: ANA LUÍSA AMARAL E A POESIA CLÁSSICA……………….48
2. ANA CRISTINA CESAR EM SUA GERAÇÃO: POETAS NOS ANOS DE CHUMBO …...…53
2.1. POESIA MARGINAL, ANTICONCRETISMO E ANTICABRALISMO……………………….55
2.2. A TRADIÇÃO MODERNISTA E OS POETAS MARGINAIS……………………………….64
2.3. O “IMPULSO DE COLOQUIALIZAÇÃO” DE ANA CRISTINA CESAR……………………66
2.4. ANA CRISTINA CESAR, POESIA MARGINAL E EXPERIÊNCIA URBANA………………..73
2.5. ANA CRISTINA CESAR: DOS ANOS DE CHUMBO AO SÉCULO XXI. ……………..……80
3. ANA LUÍSA AMARAL: ESCRITA NUMA LÍNGUA NOVA, EM GRAMÁTICA PRÓPRIA..89
3.1. AGRAMATICALIDADES: ANA LUÍSA AMARAL E EMILY DICKINSON……………….96
3.2. MANIFESTO ANTI-POETISA………………………………………….……………..105
3.3. DOMESTICIDADES NA POESIA DE ANA LUÍSA AMARAL……………..……………..110
3.4. O RETORNO DO ÉPICO NA POESIA DE ANA LUÍSA AMARAL……….……………….119
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………………….127
5. BIBLIOGRAFIA……………………………………………………………………132
6. ANEXOS...................................................................................................................140
Para Jorge Fernandes da Silveira e Rosa Maria Martelo,
orientadores e mestres.
AGRADECIMENTOS:
Ao CNPq, pela bolsa de pesquisa e pela bolsa-sanduíche em Portugal, imprescindíveis
para a realização deste trabalho.
A Jorge Fernandes da Silveira, meu orientador, pelo imenso carinho, por sua presença
constante, pela confiança depositada em mim, por ter me ensinado que o importante é
ler poesia (e ler e ler mais), por ter ido me receber calorosamente em Coimbra assim
que cheguei a Portugal e por me dizer para ouvir Maysa nos momentos difíceis.
À Rosa Maria Martelo, minha co-orientadora, pela acolhida em Portugal, pelo carinho,
pela paciência, pelas conversas, pelas aulas, por me mostrar a importância de nos
posicionarmos nas Humanidades – o que mudou o rumo desta tese – e, principalmente,
pela orientação precisa.
À Ana Luisa Amaral, pela receptividade, por disponibilizar o acesso aos seus arquivos
pessoais, pelas aulas de estudos feministas e pelo maravilhoso jantar de Páscoa.
À Sofia de Sousa Silva, por ter sido minha “madrinha de guerra” durante o ano que
passei em Portugal: correspondente fiel e constante. É para você que escrevo, querida.
À Celia Pedrosa, pela leitura atenta, pelas aulas e pelas referências que direcionaram a
pesquisa a respeito de Ana Cristina Cesar.
À Mônica Fagundes, pela interlocução, pelas leituras, pelos cafés, e, principalmente,
pela delicadeza de sua amizade.
À Joana Matos Frias, pelos diálogos, pela simpatia, por compartilhar a paixão por Ana
Cristina Cesar e por aceitar prontamente o convite para participar desta banca.
À Cinda Gonda, sempre gentil e simpática ao meu trabalho como professora de escola
pública ou como orientanda do Jorge.
À Tatiana Pequeno, pela generosidade e pelas discussões sobre feminismo, questões de
gênero e astrologia.
À Carmen Lúcia Tindó, pela excelente orientação no meu primeiro ano de doutorado e
pela generosidade de me dizer que eu deveria estudar com o Jorge.
À Maria Teresa Salgado, pelas conversas alegres e pelo apoio constante.
À Luci Ruas, pela orientação no mestrado.
À Luciana Salles, pela corajosa e inspiradora autenticidade.
Ao Leonel Velloso, querido amigo e interlocutor, pelas leituras e pela disponibilidade,
mesmo que seja três da madrugada ou que estejamos a um Atlântico de distância.
Ao Eduardo Ochs, pelos diálogos intermináveis, pelas leituras originais, questionadoras
e inquietantes.
Ao Leandro Gomes e à Renata Cardoso, minha família mineira.
À Fernanda Drummond, amada, amiga da maior importância, porque uma mulher é
sempre uma mulher, etc e tal. (Escorpião, sagitário, não sei que lá…)
Aos amigos que de alguma forma colaboraram com a escrita desta tese: Thiago Hartz,
Mônica Machado, Gabriela Ventura, Deyse Santos Moreira, Juliana Queiroz, Oz Ozzy,
João Vilhena e Maíra Ferreira.
À Violeta Flora, minha irmã, pela estrela solitária que carregamos no lugar do coração.
Ao meu pai, pelos depoimentos sobre os poetas marginais, sobre os eventos do Nuvem
Cigana e sobre as aulas (e festas) do Cacaso na PUC dos anos 1970.
Às minhas tias Cármen e Ana Luiza, pelo suporte e pelos almoços de domingo em que a
pauta pode ser ditadura militar brasileira, reforma agrária, feminismo ou a questão da
Palestina.
Ao Aristóteles Predebon, por todo amor, com todo amor.
On ne naît pas poétesse.
(parafraseando Simone de Beauvoir)
Anna Klobucka
INTRODUÇÃO
Um homem não teria a ideia de escrever um livro
sobre a situação singular que ocupam os machos na
humanidade. Se quero definir-me, sou obrigada
inicialmente a declarar: 'Sou uma mulher'.
Simone de Beauvoir
A tese aqui proposta versa acerca da obra de duas escritoras: Ana Cristina Cesar
(1952-1983), brasileira, e Ana Luísa Amaral (1957), portuguesa. Num primeiro
momento, pretende-se observar de que maneira estas duas poetas 1 problematizam a
subjetivação no feminino a partir da tradição literária erudita, ou seja, compreender de
que maneira a tradição é revista. Pretende-se, primeiramente, observar as diferentes
leituras que fazem das escritoras que as antecederam: Ana Luísa Amaral reverencia
algumas escritoras portuguesas – o título do seu primeiro livro, Minha Senhora de Quê,
apresenta uma clara alusão ao livro Minha Senhora de Mim, de Maria Teresa Horta –,
enquanto Ana Cristina Cesar critica e ironiza as poetisas brasileiras.
Assim, pretendemos observar de que maneira a questão da revisão da tradição
erudita se apresenta na poesia a partir de um olhar no feminino, uma vez que as duas
poetas podem ser lidas como herdeiras da tradição literária ocidental e se aproximam
ainda por darem à luz modos de ser e pensar o feminino na poesia e em poesia
contemporânea em português, conferindo voz a inquietações a respeito do papel, da
linguagem e do lugar da mulher. É fundamental perceber que, apesar de terem nascido
na mesma década, são poetas que escrevem em momentos diferentes: enquanto Ana
1
A escolha do termo poeta em detrimento de poetisa se dá primeiramente pelo fato de ambas as autoras
utilizarem este termo, ainda que Ana Luísa Amaral – hoje em dia – utilize poeta e poetisa
indistintamente, mas principalmente por nos sentirmos mais confortáveis com a não-marcação distintiva
na palavra de acordo com o gênero de quem escreve. Em Portugal o uso da palavra poetisa é o mais usual
atualmente, no Brasil o uso indiscriminado da palavra poeta é o mais comum desde que foi consagrado
por Cecília Meireles: “Não sou alegre nem sou triste: sou poeta”. No Houaiss, observa-se que a palavra
poeta vem sendo utilizada, modernamente, como substantivo de dois gêneros no Brasil e em Portugal.
1
Cristina Cesar escreve a maior parte de sua obra nos anos de 1970, momento do que
pode hoje ser chamado “feminismo histórico”, Ana Luísa Amaral lança o seu primeiro
livro de poemas em 1990 e publica continuamente desde então. Faz-se necessário
apontar para o fato de que as duas são estudiosas de escritoras – traduziram obras de
autoras de língua inglesa, como Emily Dickinson, Sylvia Plath e Katherine Mansfield –,
ou seja, são leitoras de mulheres. É, portanto, interessante refletir sobre como um certo
perfil feminino – ou a figuração da poeta, enquanto construção textual –, vai sendo
repensado e construído na poesia de cada uma dessas escritoras.
A leitura de Simone de Beauvoir, particularmente de O Segundo sexo, é uma
premissa para esta tese, assim como para o trabalho de muitas das autoras abordadas
aqui, cujos textos são, muitas vezes, desdobramentos de sua teoria. Embora este
trabalho não seja sobre teoria feminista, uma vez que o nosso objeto de estudo é o texto
poético, ressaltamos que a teoria é importante na medida em que contribui para o
entendimento das questões presentes nas obras poéticas de Ana Luísa Amaral e de Ana
Cristina Cesar. A questão do “falso neutro” na linguagem, uma das questões centrais
nesta tese, por exemplo, pode ser lida como um desdobramento linguístico de sua
afirmação de que
Um homem não começa nunca por se apresentar como um indivíduo
de determinado sexo: que seja homem é natural. É de maneira formal,
nos registros de cartórios ou nas declarações de identidade que as
rubricas, masculino, feminino, aparecem como simétricas. A relação
entre os dois sexos não é a das duas eletricidades, de dois pólos. O
homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de
dizermos 'os homens' para designar os seres humanos, tendo-se
assimilado ao sentido do vocábulo vir o sentido geral da palavra
homo. A mulher aparece como o negativo, de modo que toda
determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade
(BEAUVOIR, 1980, p. 9).
2
Uma vez que o homem domina o discurso masculino e o discurso “neutro”. O
discurso pretensamente neutro é, portanto, o discurso daquele que fala de dentro das
estruturas do poder instituído, o que faz com que haja a necessidade de se marcar aquele
que fala quando este não é o “neutro”, o dominante, isto é, o homem, de modo que seja
possível para o homem apagar a sua masculinidade, enquanto a feminilidade nunca
pode ser apagada. As questões relativas ao falso neutro mostram-se mais relevantes ao
tratarmos de autoras que escrevem em português, que, de modo particular, é uma língua
explicitamente sexista, na qual não apenas as generalizações são feitas no masculino,
como também o plural misto (ainda que majoritariamente feminino) é sempre
representado por um plural masculino.
Não obstante nossa base teórica, queremos deixar claro que não pretendemos
estabelecer aqui um método para o estudo indiferenciado de quaisquer autoras, pois
trata-se de um estudo pontual, não da criação de uma teoria a respeito, genericamente,
da literatura escrita por mulheres. Acreditamos que a leitura dos poemas e das autoras
precede a formulação de uma teoria e que não seja possível “aplicar” determinada teoria
a todas as escritoras apenas pelo fato de serem mulheres. Partimos do pressuposto de
que o poema não existe por si só: o poema existe a partir de um determinado autor, que
é de determinado país, escreve em determinada língua; importam ainda as condições
sociais, culturais e históricas em que o autor escreve. Assim, é com respeito às
particularidades das autoras aqui estudadas que acreditamos que a diferença sexual seja
uma categoria de análise válida, uma vez que elas também utilizam tal diferença como
categoria de análise literária e que, como defendemos, incorporam essa categoria em sua
própria escrita poética.
Levar em consideração a diferença sexual como uma categoria de análise
literária nos reporta ao que Anna Klobucka afirma ser o “paradoxo central do
3
feminismo” 2, ou seja, ao mesmo tempo que afirmamos a existência de uma “escrita
feminina”, precisamos reconhecer a instabilidade e potencial impossibilidade de nosso
tema. Feita esta ressalva, consideramos que seja de fundamental importância para este
estudo o fato de que ambas as poetas possuem assumidamente uma expressão artística
marcada no feminino, de maneira que, como afirmamos, o fato de serem mulheres se
torna determinante em sua escrita, especialmente – mas não só – quando reinvindicam a
sua sexualidade, uma vez que a sexualidade em poesia costuma ser fortemente marcada
pela masculinidade do sujeito da escrita.
Observamos que, embora nos estudos sobre gênero e sexualidade, hoje, haja
uma diferença bem definida entre noções de sexo e gênero, trata-se de uma distinção
teórica pouco presente, se não mesmo pouco perceptível, na poesia dessas escritoras,
pois não problematizam a identificação entre gênero e sexo, que, também por isso,
andam alinhadas em suas escritas, ou seja: as referências à sexualidade corroboram as
características de gênero e vice-versa. Os poemas revelam as duas dimensões, tanto a
construção de uma identidade de gênero como um comportamento sexual: o modo
como se fala de comportamento sexual ou de comportamento social tem relação estreita
com a identidade de gênero nestas poetas.
Buscamos, ao longo da tese, observar de que maneiras Ana Cristina Cesar e Ana
Luísa Amaral estabelecem e problematizam a subjetivação no feminino a partir da
tradição literária erudita, masculina por excelência – pois, ao lidar com a tradição
literária é preciso referenciar a uma poética e a uma dicção que são essencialmente
masculinas. Quanto a este aspecto, parece-nos pertinente o conceito elaborado por
Elaine Showalter de que as mulheres poetas não negam a tradição masculina, mas
2
Segundo Anna Klobucka, em O Formato Mulher, a expressão foi cunhada por Betsy Erkkila, em The
Wicked Sisters.
4
problematizam essa tradição, assumindo uma genealogia dupla: masculina e feminina,
ou seja, assumem-se leitoras e herdeiras de escritores e de escritoras.
Tentamos, portanto, trazer para este estudo algumas questões relevantes para a
construção de uma poética em feminino em ambas as autoras, sendo fundamental
abordar a relação das duas com os poetas homens que as antecederam – especialmente
com alguns dos “grandes” escritores do cânone. Quanto às mulheres, reafirmamos,
porém, que a referenciação, na obra destas escritoras, se dá por caminhos diversos e,
algumas vezes, antagônicos: enquanto Ana Luísa Amaral estabelece uma relação de
filiação com as poetas portuguesas, como Maria Teresa Horta e Luiza Neto Jorge, por
exemplo, Ana Cristina Cesar critica a poesia de mulheres feita no Brasil (especialmente
a de Cecília Meireles, que chama de “limpa, tênue, etérea”), onde não haveria uma
mulher modernista que reivindicasse esse lugar de mulher poeta e que se escrevesse
como mulher, a exemplo das mulheres modernistas da literatura de língua inglesa –
extremamente importante para a leitura tanto de Ana Cristina Cesar, como de Ana Luísa
Amaral, pois ambas estudam e traduzem escritoras de língua inglesa. No segundo
capítulo desta tese, abordamos também as semelhanças e pontos em comum entre Ana
Cristina Cesar e a sua geração – anticoncretista e anticabralina –, que promove uma
retomada da vanguarda modernista de 1922, e a filiação de Ana Cristina Cesar à sua
geração, filiação que exige, em certa medida, um posicionamento quanto às questões
feministas de seu tempo. Defendemos ainda que Ana Cristina Cesar, à sua maneira,
recriando-se numa espécie de mito de segundo grau, toma esse lugar de mulher
modernista na Literatura Brasileira para si, o que faz com que se constitua na mais
importante poeta brasileira posterior a 1970.
No terceiro capítulo abordamos a poética de Ana Luísa Amaral e algumas
questões essenciais em sua constituição, como o diálogo com as formas fixas; e,
5
simultaneamente, algumas subversões formais, essas, ao que parece, provenientes da
poesia de Emily Dickinson – por exemplo, certa agramaticalidade, presente em sua
poesia desde a publicação do primeiro livro, Minha Senhora de Quê. Segundo Rosa
Maria Martelo, ter uma escrita que não se compreende totalmente e uma poesia que não
é completamente desvendável é justamente uma das características da poesia de Ana
Luísa Amaral, herdadas da poesia Moderna. No entanto, essa agramaticalidade não é
apenas uma herança do Modernismo: é possível pensar que Ana Luísa Amaral traz para
a poesia em língua portuguesa a herança de uma dicção feminina em língua inglesa – a
de Emily Dickinson. Além disso, exploramos neste terceiro capítulo uma das
características mais notáveis e notadas na poesia de Ana Luísa Amaral, que é a
articulação entre poesia e cotidiano – conforme Isabel Pires de Lima, “um quotidiano
tradicionalmente periférico, o quotidiano feminino” (LIMA, 2001, p. 49). Este cotidiano
feminino e doméstico, que não tinha lugar na poesia – assim como a maternidade – e
que parecia mesmo ser incompatível com a escrita nobre e elevada, por isso periférico,
transforma-se em tema e motivo na poesia de Ana Luísa Amaral, ou seja, a poeta
apropria-se de temáticas ligadas ao cotidiano feminino para construir a sua própria
poética, isto é, as atividades cotidianas constituem-se em matéria poética. As atividades
cotidianas, “menores”, aproximam ainda a poética de Ana Luísa Amaral do “retorno da
épica breve”, na qual o herói tradicional, representado pela figura do comandante ou
guerreiro, é substituído pelo indivíduo comum, o que possibilita o protagonismo
feminino, da mulher comum. Há que se notar ainda que as épicas breves, como sua
designação já assinala, são de pequena extensão, se comparadas com as épicas
homéricas ou camoniana, por exemplo. O retorno do épico, em Portugal, seria um
retorno não à temática épica clássica, camoniana, mas a uma linguagem portuguesa, a
um “modo de ser em português”.
6
Para além dessas questões, talvez o fundamental aqui para nós seja pensar na
importância e na ousadia dessas – e de outras – poetas ao reivindicarem a própria voz,
apropriando-se da língua, portuguesa, e da palavra. Se existe dificuldade, para citar
Virginia Woolf, em pensar o passado através de suas mães (especialmente em língua
portuguesa), isso ocorre pelo fato de que as mulheres passaram séculos mudas ou
emudecidas, cabendo-lhes o lugar de musas e de corpos desejados, não de poetas ou de
corpos desejantes.
7
1. TRADIÇÃO
LITERÁRIA E REVISÃO DO CÂNONE A PARTIR DA SUBJETIVAÇÃO NO
FEMININO
“A mulher esteve sempre e em todo lado subjugada ao homem."
Se aprendemos algo nestes anos sobre o feminismo de finais do século XX,
foi o fato de que aquele "sempre" escamoteia aquilo que
realmente precisamos saber: Quando, onde, e em que circunstâncias,
esta afirmação foi verdadeira?
Adrienne Rich
Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar são poetas que trazem a público
questões a respeito da construção de uma escrita feminina contemporânea, provenientes
de reflexões acerca das mudanças provocadas na sociedade pelo movimento feminista:
são mulheres envolvidas com as questões ligadas ao feminino, ao feminismo e às novas
possibilidades de comportamentos, de modos de vida e do uso da linguagem pelas
mulheres. Ana Luísa Amaral afirma que o homem, como representante das estruturas de
poder instituídas, possui a dominância do discurso, desta forma, o discurso “neutro” (ou
pretensamente neutro) seria o discurso daquele que detém o poder, daquele que fala de
dentro das estruturas do poder instituído. A mulher, por estar à margem destas estruturas
de poder, seria, portanto, o Outro:
Uma ideia basilar avançada pela teoria feminista deste século [século XX]
(Simone de Beauvoir assina-a e Luce Irigaray desenvolve-a) é a de que as
mulheres da sociedade patriarcal são construídas como o Outro – como tudo
aquilo que os homens não são. Se o homem é activo, a mulher é passiva; se
ele tem o falo, ela, simplesmente, não o tem. A feminilidade é a masculidade
invertida (CAMERON, 2002, p. 125-6).
Ser mulher seria, portanto, na sociedade patriarcal, uma forma de ser um
“negativo” do homem, por isso haveria a necessidade de marcar aquele que fala quando
não é o “neutro”, o dominante, isto é, o homem. O sistema linguístico binário
estabelecido por Saussure endossa essa oposição homem-mulher, pois a ideia de
contraste é fundamental no modelo de dualidade de sua teoria. A partir do interesse
8
renovado por gramática e linguística na virada do século XIX para o XX, as teorias
linguísticas cristalizam a dicotomia, consequentemente, a oposição entre masculino e
feminino na linguagem. Ou seja, o “neutro” é um masculino sem oposição e o feminino
só existirá em oposição, por contraste, ao masculino. Ana Luísa Amaral explica essa
oposição por contraste com base nas estruturas de poder, pois para ela é claro que o
discurso da mulher é marcado por sua sexualidade porque a mulher não tem o mesmo
acesso às estruturas de poder que o homem. A autora observa que a condição sexual é
uma das condições passíveis de influenciar a escrita e transparecer na mesma:
Se a escrita não está, enquanto produto humano, isenta da influência dos
contextos histórico, literário, social ou religioso, porque deverá estar isenta
da condição sexual de quem a produz? Julgo que devemos pelo menos
interrogar-nos sobre a importância de quem escreve ser mulher ou homem;
ou por que razão parece ser mais viável ignorar o sexo masculino de quem
escreve, o mesmo não sendo tão pacífico em relação ao sexo feminino. Uma
possível resposta pode estar precisamente na relação que um e outro sexo
mantém com as estruturas de poder […], o sexo feminino surgindo como o
lugar da diferença, do deslocamento (AMARAL, 1995, p. 23).
Dessa forma, podemos pensar que a autora estabelece que há necessidade de não
se ignorar a condição sexual de quem produz literatura 3. Talvez haja maior equívoco em
acreditar na suposta neutralidade de um discurso produzido por um escritor homem
(especialmente um homem branco ocidental), do que observar que quem escreve é uma
mulher. Anna Klobucka, no mais importante estudo a respeito da emergência da autoria
feminina portuguesa – sua tese transformada no livro O formato mulher –, faz
importantes observações a respeito desse “falso neutro” no discurso e nos coloca a par
do questionamento de Nancy Miller sobre a suposta neutralidade do discurso literário:
Citando o ensaio influente de Michel Foucault (“Qu´est-ce qu´un auteur?”,
1969), Nancy Miller replica: “Que importa quem está a falar? Responderia
que importa, por exemplo, a mulheres que perderam e continuam a perder o
seu nome próprio no casamento e cuja assinatura (…) não tinha sequer o
3
. Observamos que a autora, em seu objeto de análise, fala em sexo masculino e não em gênero
masculino. Ou seja, embora existam distinções, aqui elas se identificam, uma vez que não se está a tratar
das diversas orientações sexuais ou de identidades que não sejam as de cisgêneros.
9
valor do papel em que era colocada; mulheres para quem a assinatura – em
virtude do seu poder no mundo em que circula – não pode deixar de ser
importante. Só os que têm podem brincar com a ideia de não ter” (Klobucka,
2009, p. 68-69).
Ana Cristina Cesar e Ana Luísa Amaral questionam a respeito da dominância do
masculino na literatura, assim como a respeito da produção de poesia por mulheres; e, a
partir disso, pensamos ser importante refletir sobre as escolhas que as autoras fazem na
tradição literária. Ana Luísa Amaral, em sua tese a respeito de Emily Dickinson, ressalta
que normalmente se salienta a autoria feminina no caso da escrita por mulheres porque,
sendo o homem aquele que mantém acesso (ainda que simbólico) a certas estruturas de
poder, não é tão importante se referir ao sexo do poeta quando homem, uma vez que ele
representa essas estruturas de poder.
No caso dos homens, e porque o seu sexo lhes permitiu (e continua a
permitir), mais do que às mulheres, um acesso, quanto mais não seja
simbólico, a essas estruturas, é compreensível que essa condição de “ser”
homem esteja inscrita no texto produzido. E, apesar de os poetas raramente
serem os detentores do poder na sociedade patriarcal, tem sido sempre
considerado menos relevante referir de que sexo é o poeta, quando ele é
homem (AMARAL, 1995, p. 23).
Note-se que Ana Cristina Cesar, apesar de não ser uma estudiosa do feminismo e
das teorias feministas, como Ana Luísa Amaral (um dos grandes nomes portugueses nos
estudos queer, feministas e de gênero), revela seu interesse a respeito da temática da
“escrita de mulher” em alguns ensaios e cartas, afirmando que se interessava em
pesquisar a fundo o assunto (numa carta a Cecília Londres diz que pensa até mesmo em
fazer uma tese sobre o tema). Ao mesmo tempo, ambas as escritoras apresentam íntima
relação com a tradição literária, aliás, para Ana Cristina Cesar “íntima” assume um
sentido quase literal:
I
Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum.
Poética quebrada pelo meio.
II
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil
escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas
dos poetas pensados no meu seio.
(CESAR, 2005, p. 42)
10
Neste poema, Ana Cristina Cesar nos apresenta questões relativas à tradição
literária e à sua escrita, feminina. Note-se que Ana Cristina afirma:
O feminino só existe na sexualidade. Em todos os outros aspectos da vida é o
social que domina, é o ser construído pela cultura do meio e da época. Todas
as vezes, pois, que nos distanciamos da sexualidade pura, será difícil
distinguir o feminino do masculino (CESAR, 1999, p. 227).
Assim, se o feminino só existe na sexualidade, ao aproximar dos bicos de seus seios os
poetas pensados no seu seio, Ana Cristina Cesar dá pistas de que sua escrita é feminina
e sexualizada, pois, se por um lado, ler exige concentração e um quase esquecer-se do
corpo, por outro, o seu corpo (de mulher) faz com que ela não consiga “neutralizar-se” e
tornar feminino e masculino indistinguíveis. Ler com os seios a descoberto obviamente
remete-nos a uma leitura “de peito descoberto”, ou seja, sem reservas, mas Ana Cristina
dá um novo sentido à expressão quando remete aos bicos de seus seios. De resto, talvez,
aliás, seja impossível a uma mulher dizer que lê ou faz algo “de peito descoberto” com
o mesmo caráter de neutralidade que a expressão contém quando proferida por um
sujeito masculino. E, como os seus seios, os seus “textos se fazem descobertos”. Talvez
seja possível aqui pensar na inquietação que transparece em muitos de seus textos:
leitura e escrita são quase simultâneas – simultaneidade marcada pela palavra
“enquanto” – como se ela descobrisse seus textos dentro dos textos dos poetas que lê.
Neste poema a sexualidade está na exposição quase erótica da intimidade – intimidade
muitas vezes presente na forma de seus poemas, quando escritos como se fossem
diários, por exemplo – como se fosse possível ao leitor espreitar a nudez da poeta,
nudez perturbadora, que interfere no processo de leitura, escrita e criação. Ana Cristina
Cesar, na sua maneira de apropriar-se das suas leituras, demonstra que é uma poeta que
lê, que se nutre “das tetas dos poetas”, expressão curiosa também pelo fato de associar a
criação a um elemento feminino (tetas), mesmo no caso dos autores masculinos. Note-se
11
que, se muitas vezes as atividades de criação artística e poética são equiparadas à
gestação e ao parto (no “parir” um texto, por exemplo), Ana Cristina Cesar dá a essas
metáforas uma continuidade natural: os poetas agora dão as tetas para nutrir outro ser.
Ana Cristina Cesar, em seu ensaio “Literatura e Mulher: essa palavra de luxo”,
critica severamente a poesia escrita por mulheres no Brasil antes da década de 1970, e
essa crítica se dá, principalmente, devido ao fato de que para ela as mulheres não
participaram realmente do Movimento Modernista brasileiro enquanto poetas e
escritoras, ao passo que participaram nas artes plásticas, tendo sido Tarsila do Amaral
um dos maiores ícones do Modernismo brasileiro. O ensaio parte de um elenco de
questionamentos acerca da questão da existência de uma “poesia feminina”:
– Haverá uma poesia feminina distinta, em sua natureza, da poesia
masculina? E no caso de existir essa poesia especial, dever-se-á procurar nela
caracteres tais como uma sinceridade levada até o exibicionismo, uma
sexualidade que nada mais é do que o desejo de se fazer amar pelos leitores?
Poder-se-ia dizer que o homem é mais intelectual ou então se aprofunda
mais? Será preciso ligar o sentido da experiência interior a um caráter
essencialmente feminino? Poder-se-ia dizer que o apegamento ao real seja
uma das características do homem em oposição à mulher? (CESAR, 1999, p.
224)
Neste ensaio, que seria originalmente uma resenha a respeito de reedições de
livros de Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, que não foi publicada por conter críticas
severas a duas escritoras consagradas, Ana Cristina observa o fato de que são poetas
tidas como modernistas pela crítica literária, sem que, no entanto, tenham trazido à
literatura brasileira inovações que pudessem se comparar às das mulheres modernistas
nas artes plásticas. As inovações feitas por essas escritoras, especialmente no uso do
verso livre, ocorreram após a consagração do seu uso, sem, no entanto, que lançassem
mão de outros elementos marcantes do Modernismo, como o uso da ironia, de temas do
cotidiano e, principalmente, no que diz respeito ao uso da linguagem, pois Ana Cristina
12
Cesar considera que seria fundamental para uma escrita modernista que as poetas
deixassem de lado a linguagem elevada:
Cecília é boa escritora, no sentido de que tem técnica literária e sabe fazer
poesia, mas, como se sabe, não tem nenhuma intervenção renovadora na
dicção poética brasileira. A modernidade nunca passou por essas poetisas,
que jamais abandonaram a dicção nobre e o falar estetizante (CESAR, 1999,
pp. 227-8).
Outra crítica de Ana Cristina Cesar à escrita de Cecília Meireles e Henriqueta
Lisboa encontra-se no fato de as duas não “se colocarem como mulheres” (nas palavras
da própria Ana Cristina Cesar), realçando, assim o caráter etéreo dessa escrita,
configurando uma não-corporalidade feminina que Ana Cristina Cesar parece querer
afrontar em determinados momentos de sua escrita poética. Podemos citar como
exemplo o poema “Arpejos”:
Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho examinei o local.
Não surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não
percebem que um rouge a mais tem significado a mais. Passei pomada branca
até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam
igualmente os meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim
poderia reavivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura (CESAR,
1998, p. 96).
Nesse trecho (primeira parte do poema), podemos notar que Ana Cristina Cesar
faz uma série de oposições ao que critica na poesia de Cecília Meireles e Henriqueta
Lisboa: tudo o que não temos aqui é um poema “limpo, tênue e etéreo”. Descrevendo e
elencando uma série de acontecimentos banais em ordem cronológica, a primeira coisa
que chama atenção, obviamente, é, mais uma vez, a exposição da intimidade, talvez da
“intimidade mais íntima”, aquela a ser revelada somente a um médico, visto que o
hímen não assume um caráter erótico, esse sim passível de ser compartilhado e
revelado. Aqui o hímen não traz consigo uma dimensão metafórica da pureza, não é a
virgindade que é relevante; há uma certa “estranheza” provocada pelo uso da palavra
“hímen”: refere-se a um elemento anatômico bastante particular, no limiar entre o
13
“dentro” e o “fora” do corpo feminino, marcado por ser o indicador da virgindade, mas
sua presença se dá não por algum acontecimento especial, afora o fato de coçar,
incomodar e atrapalhar os planos de um passeio de bicicleta pela Zona Sul do Rio de
Janeiro.
É curioso o fato de muitas mulheres, a partir dos anos de 1970 – e dos
movimentos de libertação da mulher e de liberdade sexual –, escreverem poemas em
que falam mais ou menos explicitamente da vagina, do hímen, do mênstruo ou do útero.
Podemos citar, nomeadamente, Maria Teresa Horta, Luiza Neto Jorge e, mais
recentemente, Adília Lopes e Angélica Freitas. Maria Teresa Horta é conhecida e
reconhecida particularmente pela coautoria das Novas Cartas Portuguesas e de poemas
eróticos, especialmente no seu livro Minha Senhora de Mim, que – assim como as
Novas Cartas Portuguesas – chegou a ser censurado no começo da década de 1970
devido ao seu teor erótico. Além da censura, Maria Teresa Horta relata que sofreu
agressões e ameaças:
[Em Portugal] uma mulher não diz esperma, senão é prostituta. E eu escrevi
esperma num poema de poucas linhas do livro 4. Minha senhora [de mim] foi
proibido e comecei a receber cartas ofensivas ou indignadas, com convites
para ir para a cama, ameaças a mim e a minha família; homens juntavam-se à
porta da minha casa gritando ou cuspiam na rua quando eu passava com meu
marido (HORTA, 1974b, p. 10).
Maria Teresa Horta, nesta entrevista, afirma que a partir de 1963, com O
Candelabro, ela assume a sua sexualidade, não a que o homem impunha às mulheres,
especialmente às latinas e católicas, como era o caso das portuguesas. E seu livro está
repleto de imagens eróticas e de imagens de relações sexuais. Embora utilize-se de
matáforas como “espada” para se referir a “pênis”, o léxico e a construção dos poemas
não deixam dúvidas quanto ao teor erótico, sensual e sexual dos seus poemas. Podemos
4
Maria Teresa Horta refere-se ao poema “Rosa”: “Desenha no meu ventre / a rosa / com o teu esperma /
Ó meu amor! / Como a tua boca / é doce / no cimo das minhas pernas” (HORTA, 1974, p. 88).
14
apontar para o uso das palavras corpo, orgasmo, desejo, ventre, lençol, sentidos,
sedução, vontade, pele, cama, gozo e esperma como exemplo dessa escolha lexical; e
citar aqui um exemplo de poema erótico, com a descrição de uma cena de sexo oral –
delicada e explícita –, deste livro que causou escândalo:
O MEU DESEJO
Afaga devagar as minhas
pernas
Entreabre devagar os meus
joelhos
Morde devagar o que é
negado
Bebe devagar o meu
desejo
(HORTA, 1974, p. 79)
Quando falam de hímen, útero ou vagina, as poetas estão não apenas
explicitando a sexualidade, mas reivindicando também a autonomia da sexualidade e da
palavra feminina, para que não continuem a ser um negativo da palavra e da sexualidade
masculina. Em seu primeiro livro de poesia, Minha Senhora de Quê, Ana Luísa Amaral
explicita essa questão no poema com o sugestivo título “Angústias (não ter ou não ter)”:
Realmente não tenho
o quê não sei
mas não tenho
(o Freud explica e diz
mas não é isso
– que eles também não têm
o que eu tenho)
(AMARAL, 2010, p. 51)
Ana Luísa Amaral aqui – assim como as demais poetas citadas, ao falarem de
hímen, útero e vagina – confronta a famosa teoria de Freud a respeito da “inveja do
15
pênis”, pois está afirmando a existência e visibilidade dos órgãos sexuais femininos. Ou
seja, Ana Luísa Amaral está negando, conscientemente, o padrão freudiano orientador
da psicologia feminina do “complexo de castração”. A mulher da teoria freudiana não
apresenta órgãos sexuais visíveis, assim como a Vênus de Botticelli (que cobre
pudicamente seus órgãos sexuais), a de Milo (que tem seus órgãos sexuais cobertos) e a
de Bouguereau 5 (que, apesar de desnuda e da pose sensual, não tem propriamente uma
vagina), bem como a imensa maioria dos nus femininos esculpidos e pintados desde a
Antiguidade, que apresentam apenas o monte pubiano, mais conhecido pelo sugestivo
nome de “monte de Vênus”, desprovido de pelos, à semelhança dos órgãos sexuais não
desenvolvidos de uma criança, como se tivessem uma sexualidade incompleta, note-se a
diferença quanto à representação do homem, na qual muitas vezes não apenas o falo,
mas também os pelos pubianos estão lá. O feminino define-se pela sexualidade
incompleta e pela ausência do falo, portanto.
Talvez seja devido à tradição (milenar) na representação da mulher sem órgãos
sexuais que a obra de Gustave Courbet, A Origem do Mundo, cause tanto espanto e até
mesmo uma espécie de pudor e de constrangimento, pois apresenta, na pintura de um
plano fechado de um ventre feminino, a visibilidade da vagina, com seus pelos e
reentrâncias. É possível que o efeito perturbador no poema “Arpejos”, de Ana Cristina
Cesar, esteja no fato de sentirmos uma espécie de pudor ao nos depararmos com a
exposição do sexo feminino, como se Ana Cristina Cesar conseguisse, na escrita,
reproduzir alguns dos efeitos inquietantes causados pelo quadro de Courbet.
5
As imagens abordadas aqui encontram-se em anexo.
16
1.1. ANA CRISTINA CESAR E A TRADIÇÃO MODERNISTA
Em seu ensaio já referido a respeito de Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa,
Ana Cristina Cesar afirma que fez falta ao Modernismo, na poesia escrita por mulheres,
justamente uma figura que causasse inquietação:
É curioso que nenhuma mulher tenha produzido poesia modernista –
irreverente, mesclada, questionadora, imperfeita como não se deve ser [...] As
duas são figuras consagradas e que nunca inquietaram ninguém. Mas não é a
consagração que critico, nem a marca nobre. Apenas acho importante pensar
a marca feminina que elas deixaram, sem no entanto jamais se colocarem
como mulheres (CESAR, 1999, p. 228).
De acordo com Maria Lúcia de Barros Camargo, Ana Cristina Cesar se enreda
em algumas armadilhas nesse questionamento às poetas brasileiras: se confunde e se
contradiz, retoma o ensaio posteriormente e escreve uma “errata”, na qual afirma que as
mulheres exageraram no que seria uma expressão feminina a partir da sexualidade e da
linguagem chula. No entanto, nos parece que a riqueza deste ensaio está no fato de que a
partir dele é possível nos aproximarmos de uma busca fundamental da própria Ana
Cristina Cesar enquanto poeta:
pode-se dizer que a possível nova dicção da mulher, aquela que Ana Cristina
aprecia e deseja, deve desvencilhar-se dos padrões “perfeitos” já
estabelecidos. Deve elaborar a relação com os modelos masculinos, tanto na
construção da linguagem poética, como na revisão das imagens de mulher,
tradicionalmente representada pela dicotomia anjo-monstro (CAMARGO,
2003, p. 75).
Ana Cristina Cesar questiona-se a respeito de existir uma fala feminina na
poesia, busca uma fala inovadora, procura lacunas no papel das mulheres na literatura
brasileira, tenta, de alguma forma, encontrar seu lugar nessa literatura; numa tradição
literária predominantemente masculina, busca a sua própria voz, a sua dicção. De
acordo com Anna Klobucka, na prática artística de inspiração feminista, uma arma
17
contra a opressão do poder simbólico vigente é a produção de um “mito artificial”, de
acordo com o conceito barthesiano de um “mito no segundo grau”, a
noção do mito reintegrável na História, um “mito no segundo grau” […].
Para Roland Barthes, esta é a melhor arma contra a opressão do poder
simbólico vigente: “a melhor arma contra o mito é talvez a de, por sua vez, o
mitificar, é produzir um mito artificial […]. Trata-se do que se poderia
chamar um mito experimental, um mito no segundo grau”. A prática artística
de inspiração feminista não raro tem seguido o mesmo rumo através das
estratégias de mitificação revisionista (KLOBUCKA, 2009, p. 201).
Assim, podemos pensar que Ana Cristina Cesar, de certa forma, encontra, ou
cria, uma espécie de lacuna no Modernismo brasileiro – a ausência de uma voz feminina
autenticamente modernista: que produzisse uma poesia irreverente, questionadora e
imperfeita – e se apropria desta lacuna criando o seu próprio mito, ou ainda criando-se
como seu próprio mito: uma espécie de “mito artificial modernista”.
Se, de acordo com Heloísa Buarque de Hollanda, a geração de poetas dos anos
de 1970 assume-se como herdeira dos modernistas brasileiros, Ana Cristina Cesar está
em perfeita consonância com esta atitude. Enquanto Francisco Alvim, com os seus
poemas-piada, retoma o caráter anedótico dos modernistas, Ana Cristina Cesar toma
para si – questionando-se e com a ironia que é característica sua e dos modernistas – um
lugar relevante dentro dessa tradição modernista: colocando-se no lugar de poeta
portadora de uma voz feminina modernista que nunca existiu, assume-se como primeira
poeta com uma dicção feminina no uso da linguagem consagrada pelo Modernismo. E
as inovações de Ana Cristina Cesar no uso dessa linguagem irreverente, irônica e
imperfeita fazem com que ela acabe tendo um papel tão relevante entre os poetas da sua
geração, que muitos críticos chegam a questionar a presença de seu nome entre esses
poetas chamados “marginais”, pois Ana Cristina Cesar destaca-se deles como poeta
única, devido à sua linguagem e erudição.
18
Não podemos deixar de notar que se, por um lado, Ana Cristina Cesar é vista por
parte da crítica como uma poeta que não pertence à sua geração, por outro lado, é
também um de seus ícones 6. Maria Lúcia de Barros Camargo afirma que a poesia de
Ana Cristina Cesar tem sim uma escrita do seu tempo, embora apresente algumas
particularidades:
Acredito que lidamos com uma poesia totalmente imersa no seu tempo, mas
de um modo peculiar, não pelas identidades e sim, especialmente, pelas
diferenças. E, mais ainda, pelo rico e irônico diálogo que estabelece entre a
tradição literária e seu presente, transformando em matéria poética e crítica a
problemática estética dessa geração de poetas (CAMARGO, 2003, p. 16).
As primeiras edições dos seus livros Correspondência Completa e A teus pés
figuravam em destaque, por exemplo, na exposição Poesia Marginal – Palavra e Livro,
realizada em 2013 no Instituto Moreira Salles. Uma fotografia da poeta ilustra uma das
versões da capa do catálogo da exposição, que conta ainda com outras fotografias suas e
a reprodução de uma entrevista da qual participou em 1976 7; ou seja, ao menos quando
se fala em “Poesia Marginal”, o nome de Ana Cristina Cesar está fortemente vinculado
aos dos poetas de sua geração.
1.2. A ARTE POÉTICA DE ANA LUÍSA AMARAL
Enquanto Ana Cristina Cesar, de certa forma, apropria-se de um lugar na tradição
Modernista brasileira, de modo a escrever como nenhuma mulher modernista jamais
chegou a escrever, verificamos que Ana Luísa Amaral prefere retomar a tradição em
6
Nos aprofundaremos nessa questão a respeito de Ana Cristina Cesar e sua geração no segundo capítulo
desta tese.
7
Entrevista “Poesia Hoje”, publicada em 1976, na revista José, com Heloisa Buarque de Hollanda, Ana
Cristina Cesar, Geraldo Eduardo Carneiro e Eudoro Augusto. A publicação conta ainda com artigo de
Frederico Coelho, texto de Eucanaã Ferraz (curador da mostra), portfólio das obras expostas e entrevista
inédita com Heloisa Buarque de Hollanda e os poetas Chico Alvim, Chacal e Charles, mediada por
Eucanaã Ferraz.
19
que está inserida (e subvertê-la ao mesmo tempo), evitando colocar-se ao seu lado. Para
Rosa Maria Martelo, Ana Luísa Amaral se relaciona com a tradição de maneira
ambivalente, ora respeitando-a, ora desviando-se dela (mas sem nunca a abandonar
inteiramente); apropriando-se dela, de maneira pessoal e criativa, a “arte poética” de
Ana Luísa Amaral estaria – para Rosa Maria Martelo – contida no poema “Soneto
científico a fingir”, de seu quarto livro, E Muitos os Caminhos, no qual a poeta
estabelece um vínculo com a tradição ao mesmo tempo que se opõe a ela subverte,
modificando-a e, consequentemente, renovando-a. Observe-se:
Soneto científico a fingir
Dar o mote ao amor. Glosar o tema
tantas vezes que assuste o pensamento.
Se for antigo, seja. Mas é belo.
e como a arte: nem útil nem moral.
Que me interessa que seja por soneto
em vez de verso ou linha devastada?
O soneto é antigo? Pois que seja:
também o mundo é e ainda existe.
Só não vejo vantagens pela rima.
Dir-me-ão que é limite: deixa ser.
Se me dobro demais por ser mulher
[esta rimou, mas foi só por acaso]
Se me dobro demais, dizia eu,
não consigo falar-me como devo,
ou seja, na mentira que é o verso,
ou seja, na mentira do que mostro.
E se é soneto coxo, não faz mal.
E se não tem tercetos, paciência:
dar o mote ao amor, glosar o tema,
e depois desviar. Isso é ciência!
(AMARAL, 2010, p. 215)
Neste poema – um “soneto coxo”, ou seria um soneto estrambótico “na largueza
de cinco quadras que multiplicam os decassílabos em ausência de tercetos”?
(MARTELO 8) – Ana Luísa Amaral expõe algumas características que estarão presentes
8
Texto encontrado no arquivo pessoal de Ana Luísa Amaral, gentilmente cedido pela escritora durante
nossa estada na cidade do Porto, provavelmente publicado em alguma revista que não encontramos.
20
em toda a sua obra: o tão antigo e cantado tema do amor continua e continuará presente
em sua poesia e, mais ainda, se for um soneto de amor – tradição da poesia petrarquiana
– retomado pela poeta em A Gênese do Amor (seu décimo livro de poemas). No entanto,
este soneto não é um soneto de amor, trata-se de um soneto “científico” – que tem
ciência. Ciência de si mesmo? Consciência? Conhecimento para a execução de uma
arte? Ou ciência que tantas vezes se opõe ao amor e que o explica como reação
química?
Obviamente que, em se tratando de poesia portuguesa, num “Soneto científico a
fingir” (grifo nosso) não pode passar despercebida a “poética do fingimento” de
Fernando Pessoa, a poética que tem “ciência” de que está “a fingir”. Portanto, ainda no
título do poema, nos deparamos com a herança clássica: o soneto (de Petrarca, Dante e
Camões) e a herança do maior poeta moderrnista português: Pessoa. E essa é mais uma
característica marcante da poesia de Ana Luísa Amaral: a poeta explora a possibilidade
de dialogar com a poesia clássica, com a poesia modernista e mesmo com a poesia
contemporânea portuguesa.
Portanto, Ana Luísa sente-se à vontade para, ao contrário dos poetas
modernistas, explorar os temas e as formas clássicas – abandonados pelos poetas
modernos com seus versos e linhas “devastados” –; mas retornar a estas formas
clássicas não deixa de ser, de certo modo, uma forma de subversão: Ana Luísa Amaral
ao retornar ao uso das formas e dos temas clássicos confronta um paradigma instaurado
pela poesia modernista, a regra de não ter regra: “Que me interessa que seja por soneto /
em vez de verso ou linha devastada? / O soneto é antigo? Pois que seja: / também o
mundo é e ainda existe” (AMARAL, 2010, p. 215). Mas Ana Luísa Amaral nos
apresentará uma espécie de alternância no uso das formas clássicas e modernas:
observemos que, apesar de a princípio estar nos apresentando uma forma clássica, há
21
uma continuidade, na não utilização de rimas, com o modernismo: “Só não vejo
vantagens pela rima” (AMARAL, 2010, p. 215). Ou melhor, na não utilização das rimas
como forma fixa, pois também este não seria um critério rígido: “Dir-me-ão que é
limite: deixa ser. / Se me dobro demais por ser mulher / [esta rimou, mas foi só por
acaso]” (AMARAL, 2010, p. 215). E é exatamente neste ponto de seu “Soneto
científico a fingir”, que a poeta trará a referência ao fato de ser uma poeta, uma mulher
que escreve dialogando com as poéticas clássica e moderna.
Na tradição da poesia modernista portuguesa, pessoana portanto, Ana Luisa
Amaral “sabe” que deve apropriar-se da poética do fingidor, do poeta que “finge tão
completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”, ou seja, deve
“falar-se” e “mostrar-se” na “mentira que é o verso”: “Se me dobro demais, dizia eu, /
não consigo falar-me como devo, / ou seja, na mentira que é o verso, / ou seja, na
mentira do que mostro” (AMARAL, 2010, p. 215). Assim, é possível perceber que Ana
Luísa Amaral transita entre as tradições antigas e as (já tradições) modernas,
estabelecendo, assim, uma nova poética, que não é rígida nem na forma de seguir a
tradição, nem na forma de romper com ela. Melhor dizendo: a poeta dialogará com as
tradições, subvertendo as regras na sua maneira de não as seguir estritamente. Escreve
um soneto, mas é um soneto “coxo” e com linguagem coloquial.
Não se trata de um soneto de catorze versos, com dois quartetos e dois tercetos,
mas de um poema de vinte versos, com cinco quartetos. Do mesmo modo, não se utiliza
de linguagem elevada, mais apropriada a um soneto tradicional, e sim de uma
linguagem irônica, à maneira de Bocage ou Gregório de Matos. Vejamos a última
estrofe do poema: “E se é soneto coxo, não faz mal. / E se não tem tercetos, paciência: /
dar o mote ao amor, glosar o tema, / e depois desviar. Isso é ciência!” (AMARAL,
2010, p. 215).
22
Ana Luísa Amaral estabelece, dessa forma, que é necessário dialogar com a
tradição: escrever sonetos, explorar ainda a temática amorosa, “dar mote ao amor” e
depois ter a sabedoria (“ciência”) de desviar do tema, ou seja, como numa espécie de
imitatio, a autora demonstra que conhece a técnica, tem ciência, e a partir da tradição se
desvia da mesma tradição, criando sua própria arte, ainda que para isso seja preciso
escrever versos de “pé quebrado” e que a emenda seja pior do que o soneto.
Voltemos outra vez ao verso central do primeiro poema de Ana Cristina Cesar
apresentado aqui: sua poética é “quebrada pelo meio”, talvez seja imperfeita como o
“poema de pé quebrado”, ou o “soneto coxo” de Ana Luísa Amaral –, ou seja, há nessa
imperfeição uma ruptura com a poética que a precede, ruptura ocasionada pelo fato de,
por ser mulher, ao deparar-se com a sua própria sexualidade e feminilidade, não é
possível manter-se estritamente na tradição.
1.3. ANA C., ANA LUÍSA AMARAL E A POÉTICA DO FINGIMENTO
Segundo Maria Lúcia de Barros Camargo, Ana Cristina Cesar é “uma das mais
fortes e intrigantes dicções poéticas brasileiras das últimas décadas” 9, que, com exercer
o tríplice ofício (poesia, tradução e crítica), se revela “uma poeta que, ao falar do outro,
fala de si própria”. Assim, enquanto muitos poetas apresentam a metapoesia como
chave de leitura de seus poemas, Ana Cristina Cesar, ao escrever sobre outros, lança
mão de noções que participam de sua própria escrita ficcional, ou seja, apresenta-nos
seus ensaios críticos também como (auto)reflexão a respeito da poesia. A propósito do
seu ensaio a respeito das Cartas de Álvares de Azevedo, no qual discorre sobre essa
escrita, que alega ser ficcional, devemos observar que o gênero epistolar – assim como o
9
O Globo, 2 de junho de 2012.
23
diário, fictício – é forma literária de muitos de seus poemas. Note-se, porém, que Ana
Cristina Cesar recusa, paradoxalmente, a fama de poeta intimista e autobiográfica,
conforme Marcos Siscar:
em suas falas e escritos críticos, Ana C. já recusava seu próprio mito, isto é, a
fama de uma poesia intimista e autobiográfica. A poesia, dizia, é construída,
e o poeta é um fingidor [...] Entrar no poema é uma metamorfose. No poema,
saímos do material bruto e entramos na literatura. Trata-se de uma produção
de sentido, da criação de uma nova realidade (SISCAR, 2011, p. 15).
Ou seja, a recusa a essa fama de poeta intimista e autobiográfica parte da
observação (explícita em seu ensaio sobre Álvares de Azevedo) de que há construção
literária e fingimento nas cartas, em todas as cartas, e no jogo entre a confissão e a
ficção. O que seria uma escrita desimportante – a carta – é elevado à condição de objeto
poético.
Escrever cartas é mais misterioso do que se pensa. Na prática da
correspondência pessoal, supostamente tudo é muito simples. Não há um
narrador fictício, nem lugar para fingimentos literários, nem para o domínio
imperioso das palavras. Diante do papel fino da carta seríamos nós mesmos,
com toda a possível sinceridade verbal: o eu da carta corresponderia, por
princípio, ao eu “verdadeiro”, à espera de correspondente réplica. No entanto,
quem se debruçar com mais atenção sobre essa prática perceberá suas
tortuosidades (CESAR, 1999, p. 202).
Mas, ao alçar a carta escrita, mesmo com o objetivo de ser carta, ao status de
texto literário, não estaria Ana Cristina Cesar declarando que a sua escrita ficcional não
é, afinal, tão ficcional assim? Em sua escrita, a autora mantém uma espécie de
“interlocução”, mesmo que implícita, ou ainda, quando explícita, uma interlocução sem
destinatário
definido.
Por
exemplo,
o
destinatário
presente
em
seu
livro
Correspondência Completa, “My dear”, que pode servir, inclusive, para pessoas de
ambos os sexos. Observemos aqui que o título é irônico, obviamente, pois que a
“correspondência completa” é somente uma carta, sem interlocutor determinado,
24
assinada por “Júlia”, que escreve: “Você não acha que a distância e a correspondência
alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)?” (CESAR, 1998,
p. 117). A escrita de Ana Cristina Cesar situa-se nesse limite entre a confissão e o
fingimento; ou seria, nas palavras da própria autora, uma confissão fingida:
não é um diário mesmo, de verdade, não é meu diário. Aqui é fingido,
inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção.
[…] A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se
coloca na literatura. É como se eu estivesse brincando, jogando com essa
tensão, com essa barreira (CESAR, 1999, p. 259).
E, mais uma vez, observamos que, quando falamos em fingimento, falamos em
Fernando Pessoa. Assim como Ana Luísa Amaral, no seu “Soneto científico a fingir”,
Ana Cristina Cesar – que escreve: “a gente sempre acha que é Fernando Pessoa” –
remete-se repetidamente ao poeta português. É curioso que, nesse mesmo artigo, Ana
Cristina coloque em voga o quanto essa reflexão já estava presente no Romantismo: “O
Romantismo por sua vez, põe bem em cena essa discussão: quem é esse eu lírico que se
derrama em versos? Será sincero? Reflete o Autor? Mascara?” (CESAR, 1999, p. 202).
Por outro lado, as “tensões” em Ana Cristina Cesar encontram-se não apenas
entre a poesia e a prosa, mas também entre a poesia e a carta e, mais
surpreendentemente, entre a ficção e a não-ficção. Segundo Maria Lucia de Barros
Camargo, seus ensaios trazem algo de ficcional, especialmente no que diz respeito à
invenção de uma personagem para embasar algumas de suas ideias: Ana Cristina Cesar
apresenta em seus ensaios uma personagem fictícia, Syvia Riverrum. Problematiza,
portanto, o próprio gênero ensaístico e a escrita acadêmica, que para ser credível precisa
estar embasada na crítica teórica: os estudantes e estudiosos precisam referenciar outros
autores para dizer o que pensam, para apresentar as suas ideias e teorias. Dessa forma,
Ana Cristina Cesar cria uma personagem ficcional que, não por acaso, é uma doutora,
tem biografia, diga-se de passagem. E cria um heterônimo acadêmico, melhor dizendo,
25
uma “heterônima” crítica, que, aliás, já foi envolvida com o feminismo. Ana Cristina
Cesar subverte, assim, esse discurso submetido à rígida hierarquia do meio acadêmico,
na qual os mais jovens devem submeter-se às ideias dos mais velhos, dos Doutores,
discurso em que há pouco espaço para a originalidade. Se o autor não tem um
“reconhecimento”, não pode simplesmente dizer algo em que pensou; é necessário,
muitas vezes, depois de “ter uma ideia”, buscar referências do que seus antecessores
disseram. Não é à toa que Sylvia Riverrum tem um passado.
Mas voltemos à escrita declaradamente ficcional de Ana Cristina Cesar. Boa
parte de Cenas de Abril, por exemplo, poderia ser um trecho de um diário. Neste livro
cria-se um espaço de intimidade, mas o que se escreve não são confidências. A
descrição de feitos, alguns até muito banais, é fruto de construção, de elaboração
estética, trata-se de um texto cheio de lacunas, que talvez fossem simples apontamentos
sobre os feitos de um dia, e nesses trechos mantém-se a maneira de Ana Cristina de
fazer referências a outros escritores, na qual muitas vezes a intertextualidade é explícita
a ponto de a poeta citar ipsis litteris outros escritores, que muitas vezes não
identificamos por encontrarem-se as citações diluídas no texto, ou por terem sido
apropriadas de tal maneira que já não as reconhecemos como a fala de outro escritor.
Nisso cria-se ainda uma outra tensão: entre o registro coloquial, comum nesta geração, e
o registro mais elevado, comumente presente na escrita dos autores dos quais a escritora
se apropria. Muitas vezes Ana Cristina Cesar não apenas cita, mas personifica esses
autores dos quais se apropria, numa espécie de “heteronimização”.
Em Crítica e Tradução, Ana Cristina dirá: “Ler é meio puxar fios, e não
decifrar” (p. 264). Desse modo, descobre-se uma e outra referência, alguns significados,
sem que, no entanto, sua poesia deixe de ter algumas lacunas, que para muitos leitores
de sua obra é o que confere – citando uma postagem a respeito da poeta, num blog sobre
26
literatura – o “tom de mistério sedutor” a sua poesia. Talvez seja interessante
observarmos alguns desses aspectos presentes num de seus poemas em prosa de Cenas
de Abril:
16 DE JUNHO
Decido escrever um romance. Personagens: A Grande Escritora
de Grandes Olhos Pardos, mulher farpada e apaixonada. O
fotógrafo feio e fino que me vê pronta e prosa de lápis
comprido inventando a ilha perdida do prazer. O livrinho que
sumiu atrás da estante que morava na parede do quarto
que cabia no labirinto cego que o coelho pensante conhecia e
conhecia e conhecia. Nessa altura eu tinha um quarto só para
mim com janela de correr narcisos e era atacada de noite pela
fome tenra que papai me deu. (CESAR, 2013, p. 35)
Este poema começa com a presença de uma personagem escritora fictícia, mas
não uma poeta – uma romancista, que escreverá sobre uma outra escritora, personagem
de um romance: “A Grande Escritora de Grandes Olhos Pardos”, grande escritora com
letra maiúscula, pois trata-se de um título, descrita como “mulher farpada e
apaixonada”. Seria Clarice Lispector? Talvez a escritora de Água Viva, livro do qual a
escrita de Ana Cristina Cesar se aproxima pela presença de um interlocutor mudo, numa
escrita assemelhada à epistolar, que muitas vezes aparenta ser a metade de um diálogo,
apresentando respostas a questões supostamente feitas por um interlocutor. Vejamos a
caracterização da escritora-personagem de Água Viva: “Sou inquieta, áspera e
desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que eu não sei usar amor. Às
vezes me arranha como se fossem farpas” (LISPECTOR, 1998a, p. 51). É também de
Clarice Lispector o livro infantil O Mistério do Coelho Pensante, que pensa e
compreende as coisas com o nariz e que tem ideias cheirando-as, e que tem por mistério
a capacidade de fugir da casinhola em que morava, desaparecendo (talvez num
labirinto) sem que ninguém pudesse descobrir de que maneira isso acontecia. Antes de
começar a contar a história do coelho pensante, Clarice adverte aos pais que, como foi
27
uma história criada por insistência do seu filho, Paulo, ela tem vazios e entrelinhas que
deverão ser preenchidos pelos pais, tios e avós; no entanto, cito: “Conversar sobre
coelho é muito bom. Aliás, esse 'mistério' é mais uma conversa íntima do que uma
história” (LISPECTOR, 1998b, s/p. grifos nossos). E a atmosfera de intimidade
presentifica-se em “Nessa altura eu tinha um quarto só para mim com janela de correr
narcisos”, altura, quem sabe, de ler O Mistério do Coelho Pensante. Ana Cristina Cesar,
como afirma Annita Costa Malufe:
cultivou a curiosidade do leitor com esta escrita que parece esconder
segredos íntimos de mulher. Nada inocente: ela dizia mesmo brincar
propositadamente com o desejo de identificação romântica, tentação em que
tantos costumam cair (MALUFE, 2014, s.p.).
E, no seu jogo de fazer citações deixando pistas ao leitor, Ana Cristina Cesar nos
remete ao quarto “só para mim” – espaço privado, necessário e até mesmo privilegiado
–, como o referido por Virginia Woolf em Um teto todo seu, o espaço que possibilita
que a mulher possa escrever e criar: “a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela
se pretende mesmo escrever ficção” (WOOLF, 1985, p. 8).
Observamos que existem dois poemas “16 de junho”, intercalados por outros,
com outras datas, e ainda um poema intitulado “Meia noite, 16 de junho”, que
curiosamente começa abdicando da escrita: “Não volto às letras, que doem como uma
catástrofe. Não escrevo mais” (CESAR, 1998, p. 107). Será que aquela escritora que
decidiu escrever um romance desistiu de escrever à meia-noite? ou foi a Grande
Escritora de Grandes Olhos Pardos que abdicou da escrita? ou, num rasgo
metalinguístico, Ana Cristina está dizendo que escrever dói como uma catástrofe?
Obviamente esse é um jogo, jogo do poeta fingidor. Como afirma a própria Ana
Cristina, em seu ensaio sobre as cartas de Álvares de Azevedo, publicado em 1977 no
Jornal do Brasil, justamente sob o título: “O poeta é um fingidor”:
28
A literatura mexe com essa contradição: desconfia da sinceridade da pena e
do cristalino das superfícies; entra a fingir para poder dizer; nega a crença na
palavra como espelho sincero – mesmo que a afirme explicitamente. Finge o
que deveras sente, já se disse (CESAR, 1999, p. 202).
Dessa forma, apropriando-se da “Autopsicografia” de Fernando Pessoa, sem
citá-lo nominalmente no artigo ao qual dá o título “O poeta é um fingidor”, na sua
escrita, no seu modus operandi, Ana Cristina Cesar cria uma poética única em sua
geração, distinta das demais justamente por ter consciência de que está a forjar o
intimismo e a confissão, ainda que seja para forjar o que “deveras sente”.
1.4. TRADIÇÃO DA ESCRITA FEMININA
É essencial, na fundamentação do nosso trabalho, observar não apenas que as
autoras são leitoras e estudiosas de escritoras, como já citado, mas de que modo essas
poetas lidam com a escrita das mulheres que as antecederam. Por um lado, percebemos
que Ana Cristina Cesar é extremamente crítica à escrita das poetas brasileiras,
especialmente Cecília Meireles, e leitora atenta das escritoras inglesas e norteamericanas; Ana Luísa Amaral, por sua vez, também leitora e estudiosa das escritoras
inglesas e norte-americanas, apresenta uma leitura menos conflituosa com as escritoras
de seu próprio país. Talvez por escreverem em momentos diferentes ou talvez pelo fato
de Portugal, no século XX, ter-se tornado um país com vasta produção poética por parte
das mulheres, fato é que as relações das duas escritoras com as poetas de seus países são
quase diametralmente opostas.
Ressaltamos que Ana Luísa Amaral coordena atualmente um grupo de estudos
internacional sobre as Novas Cartas Portuguesas, livro de Maria Teresa Horta, Maria
Isabel Barreno e Maria Velho da Costa (as “Três Marias”), de 1972, ícone do
29
movimento feminista português. Essas três escritoras apresentam, nas Novas Cartas
Portuguesas, uma escrita bastante pessoal e provocativa, remetendo a uma forma
literária que, tradicionalmente, está relacionada à forma de expressão feminina: a carta.
Ana Cristina Cesar, em seu livro Escritos do Rio, afirma que a escrita das mulheres é
sempre feita na esfera do privado, do íntimo, porque “mulher, na história, começa a
escrever por aí, dentro do âmbito particular, do familiar, do estritamente íntimo”
(CESAR, 1999, p. 257). O principal texto com o qual essa obra dialoga, Cartas
Portuguesas, do século XVII, não poderia ter sido escrito de forma diferente: são cartas
que, a partir desse espaço evocado pela escritora Ana Cristina Cesar, privado, tomam
grandes proporções, ainda que marcadamente como uma dolorosa imagem da mullher
abandonada. Do mesmo modo, saindo do espaço aludido pela poeta Ana Cristina Cesar
(privado), as Novas Cartas Portuguesas tomam grandes proporções quando o livro é
apreendido – durante o Estado Novo – graças aos inúmeros protestos em âmbito
mundial a favor da causa das “Três Marias”, pois, ao escreverem, as três autoras negamse à submissão, são ativas, portanto assumem, metaforicamente, a posição de “machos”:
Em salas nos queriam as três, atentas, a bordarmos os dias com muitos
silêncios de hábito, muito meigas falas e atitudes. Mas tanto faz aqui ou em
Beja a clausura, que a ela nos negamos, nos vamos de manso ou de arremesso
súbito rasgando as vestes e montando a vida como se machos fôramos –
dizem. (BARRENO; COSTA e HORTA, 2010, p. 27)
Acreditamos que esse papel ativo na escrita e na história portuguesa recente seja
um ponto importante nas diferentes formas de leitura que as autoras aqui estudadas
fazem das escritoras que as antecederam em seus países. Destacamos o fato de Ana
Cristina Cesar estar mais próxima temporalmente das autoras das Novas Cartas
Portuguesas que de Ana Luisa Amaral, além de que, provavelmente, a poeta brasileira
teve notícia da censura que o livro sofreu em Portugal, uma vez que a repercussão do
processo enfrentado pelas autoras foi mundial e que o Jornal Opinião, para o qual Ana
30
Cristina Cesar escrevia, publicou entrevistas com Maria Teresa Horta. Ademais, por
estarmos numa ditadura, houve grande interesse no país a respeito da Revolução dos
Cravos.
Apesar de a carta pessoal, assim como o diário íntimo, ser o gênero de escrita
tradicionalmente permitido à mulher, Ana Cristina Cesar, assim como fazem as “Três
Marias”, se apropria dessa forma para problematizá-la, tornando-a forma literária, ou
seja, joga propositalmente com esses valores para subvertê-los. No caso das Novas
Cartas Portuguesas, é a partir da esfera do particular, do íntimo, dos espaços legados às
mulheres que as escritoras chegam a contestações éticas e, assim, sociais e políticas.
1.4.1. ANA CRISTINA CESAR E CECÍLIA MEIRELES
Retomaremos o artigo “Literatura e mulher: essa palavra de luxo”, datado de
1979, no qual Ana Cristina Cesar critica a ausência de mulheres na poesia modernista,
especialmente devido ao fato de Cecília Meireles ser a grande voz feminina do
Modernismo sem, no entanto, aproximar-se da escrita coloquial e irônica que marcou a
linguagem modernista:
Baudelaire já transtornara a rígida relação entre poesia, dicção nobre e
assunto elevado, causando o escândalo que instaurou a modernidae poética.
O modernismo brasileiro abriu-se para a modernidade. Cecília e Henriqueta
continuaram a falar sempre nobres, elevadas, perfeitas (CESAR, 1999, pp.
227- 228).
Ou seja, Ana Cristina Cesar “acusa” Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa de
terem passado ao largo do Modernismo, mantendo a dicção nobre, elevada e perfeita,
ignorando não apenas o principal movimento literário brasileiro do século XX como
também a modernidade poética ocidental. Neste mesmo ensaio, Ana Cristina Cesar
reitera a ausência de mulheres na poesia modernista, afirmando que à mulher ainda não
31
foi dado o direito de expressar-se totalmente. Afinal, se no campo das artes plásticas as
mulheres modernistas andaram ao mesmo passo que os homens – especialmente Tarsila
do Amaral e Anita Malfatti –, na poesia estariam com cinquenta anos de atraso. As
críticas de Ana Cristina Cesar podem ser fundamentadas, de certo modo, ao
observarmos um dos poemas mais famosos de Cecília Meireles – “Motivo”:
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem triste:
sou poeta.
(MEIRELES, 1983, p. 63)
Neste poema, Cecília Meireles afirma-se como “poeta”, não poetisa; no entanto,
esse afirmar-se como “poeta”, a nosso ver – além de ser uma escolha lexical dentro da
forma do poema, na rima entre “poeta” e “completa” –, aproxima-se da busca de uma
voz “neutra”, quiçá masculina, como a de Sophia de Mello Breyner Andresen ao
afirmar que é “um poeta” 10. Talvez seja este um dos motivos que tenham levado Ana
Cristina Cesar a afirmar certa vez que “Cecília Meireles é homem” 11. Aliás, notamos
que, em um ensaio sobre Cecília Meireles, Sophia Andresen, além de endossar a visão
de Ana Cristina Cesar a respeito dessa linguagem poética etérea, diáfana, cristalina,
“que fala de coisas muito leves da natureza, nuvens e riachos, alguma coisa que não
'toca' direito” (CESAR, 1999, p. 269), refere-se a Cecília Meireles tratando-a por “um
poeta”:
A objectividade de Cecília Meireles está na forma real e exacta em que ela
nos fala de estrelas, ondas e árvores. Está naquelas imagens dos seus poemas
que nos mostram as coisas tais como elas são em si, na sua forma própria e
na sua própria natureza. Cecília Meireles é um poeta objectivo [...] porque é
um poeta que vê as coisas e não um poeta que as sonha (ANDRESEN, 1999,
p.64).
10
Desta forma, é possível criar a hipótese de que, para afirmar-se enquanto “poeta”, quando Sophia de
Mello Breyner Andresen diz ser “um poeta”, toma para si uma voz “neutra”, reivindicando, assim, uma
não-oposição entre masculino e feminino em sua poesia, entre “poeta” e “poetisa”.
11
Armando Freitas Filho afirma em depoimento disponível no youtube (vide bibliografia) que Ana
Cristina Cesar afirma que Cecília Meireles é homem em entrevista feita por alunos da PUC-RJ.
32
Enquanto, para Sophia Andresen, Cecília Meireles tem, na forma de ser poeta, a
propriedade que caracteriza o gênero poético – não o gênero feminino –, para Ana
Cristina Cesar, Cecília Meireles havia definido o que era a “poesia de mulher” no
Brasil: “Marcaram não a presença de mulher, mas a dicção que se deve ter, a nobreza e
o lirismo e o pudor que devem caracterizar a escrita de mulher” (CESAR, 1993, p. 142).
A crítica de Ana Cristina Cesar nos parece pertinente devido ao fato de que, por ser a
grande poeta brasileira do século XX, Cecília Meireles acabou por ser uma espécie de
modelo, um grande referencial, mas somente da poesia escrita por mulheres. Afinal,
apenas os homens haviam transformado a poesia brasileira até então, Cecília Meireles
teria se mantido ligada à poesia lírica, à dicção clássica e, de certo modo, ao
Romantismo. Ana Cristina Cesar critica o fato de Cecília Meireles determinar, para
além de um modelo, “um senso comum que a gente tem em relação ao feminino”
(CESAR, 1999, p. 269), um feminino que não sente “gozo nem tormento” (MEIRELES,
1983, p. 63). A nosso ver, este é um ponto fundamental de atrito entre a linguagem
poética de Cecília Meireles e a concepção de feminino que estava sendo pensada por
Ana Cristina Cesar:
Talvez o feminino seja alguma coisa de mais violento que isso. Talvez o
feminino seja mais sangue, mais ligado à terra. Recentemente, pegando uma
série de autoras mulheres, vejo que essas autoras tentam colocar esse
feminino de maneira mais violenta (CESAR, 1999, p. 269)
Ou seja, Ana Cristina Cesar pensa que o feminino pode ser algo que vai além da
nobreza, do lirismo e do pudor que caracterizam a linguagem de Cecília Meireles. À
mulher ainda caberia buscar a sua voz, a sua fala e a sua escrita. Neste sentido pode-se
pensar que a poesia de Ana Cristina Cesar – assim como as Novas Cartas Portuguesas,
em Portugal – enfrenta a censura e pode ser considerada um ícone contra a opressão,
não apenas a opressão política, mas a opressão da mulher, combatida pelas feministas.
33
Não podemos ignorar que, a partir dos anos de 1960, a liberdade sexual passa a ser uma
das bandeiras feministas: o direito a exercer a plena sexualidade entra em pauta, o que
leva, consequentemente, à luta pelos direitos ao divórcio e ao aborto. E, neste cenário,
há o desejo de se combater uma certa idealização romantizada da mulher como ser puro,
leve e doce: em se falando de luta por direitos e liberdade (sexual, inclusive), uma
mulher que não sente gozo – frígida? – nem tormento é o oposto do que as mulheres da
geração de Ana Cristina Cesar desejam ser.
Observamos que estamos falando de uma geração de mulheres que, muitas
vezes, viram a necessidade de um feminismo combatente, marcado por apropriar-se da
mesma linguagem utilizada pelos homens – através da ironia e da agressividade – tanto
no uso de palavras de baixo calão como no falar da sexualidade sem pudores ou
reservas. Essa linguagem passa a ser uma nova “arma” no combate à censura, pois o
novo uso da linguagem traz à tona um novo comportamento da mulher na sociedade
moderna, o que, se não é uma manifestação política no sentido partidário do termo, é,
certamente, uma manifestação política no sentido a ela atribuído por Hannah Arendt:
“política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes” (ARENDT, 2008,
p. 145). Embora esta definição de política nos pareça bastante adequada, achamos
necessário fazer uma ressalva ao uso sistemático da palavra “homens” e não “seres
humanos” aqui, já que o uso do falso neutro é sintomático, ainda que saibamos que há
relação com a expressão latina homo faber, que excluía, a princípio, a mulher:
Os homens podem ser representados através de um discurso neutro de
pertença inerente à espécie humana, ou então através de um outro discurso
que codifica a sexualidade masculina. Pelo contrário, as mulheres só têm à
sua disposição um discurso em que a sua sexualidade é preponderante. Os
homens podem, assim, apagar a sua masculinidade, ao passo que a
feminilidade nunca pode ser apagada. Isto produz a sensação de que as
mulheres são a excepção à norma masculina (CAMERON, 2002, p. 140).
34
De certo modo, a visão de Deborah Cameron se alinha à de Ana Cristina Cesar,
quando esta afirma que “o feminino só existe na sexualidade” (CESAR, 1999, p. 227), e
à de Ana Luísa Amaral, quando esta observa que o sexo feminino é o lugar da diferença
e do deslocamento: talvez fosse mais adequado dizer que política diz respeito à
coexistência e associação de seres humanos diferentes, ou, melhor ainda: à coexistência
de homens e mulheres diferentes.
Em seu ensaio, Ana Cristina Cesar demonstra a sua inquietação a respeito do
que deveria ser a fala da mulher. Num primeiro momento, com uma preocupação
comum às escritoras dos anos de 1970 e princípios dos anos de 1980:
Uma atitude que se generaliza entre as mulheres poetas é evitar serem
confundidas com a tradicional “delicadeza feminina”, para a qual os críticos
sempre apelam quando querem reconhecer alguma peculiaridade em nomes
como Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa (CACASO, 1997, p. 255).
Se, por um lado, Ana Cristina Cesar critica a escrita limpa, tênue e etérea de
Cecília Meireles, por outro, também critica a produção poética feminina do final da
década de 1970, fruto do feminismo militante, e afirma que essa poesia se opõe de tal
maneira ao que antes era tido como “poesia de mulher”, que corre o risco de se tornar
inócua. Nas palavras da poeta:
a operação toda me parece uma virada inócua da cara em direção à coroa,
uma proeza militante de troca em que importam menos os poemas do que
uma poética da nova “poesia de mulher” [...] Mulher não lacrimeja mais
piegas: conta aos brados que se masturbou ontem na cama, e desafiante, e
faiscante, e de perna aberta. A escrita da mulher é agora aquela que berra na
sua cara tudo que você jamais poderia esperar da senhora sua tia? A produção
de mulher fica novamente problemática (CESAR, 1993, p.145).
Assim, percebemos que o desconforto de Ana Cristina Cesar com os estados de
interdição à fala feminina não diminui com o uso da linguagem coloquial pelas poetas
suas contemporâneas. Afinal, o feminino não deve ser um masculino às avessas, e
“colocar-se como mulher” é uma questão que está entre as questões centrais do
35
movimento feminista. Ana Cristina Cesar não deixa de observar que continua sendo
necessário que a mulher se posicione na poesia, questionando inclusive os limites da
irreverência, do tom coloquial e da ironia. No poema “Sete chaves” sintetiza essa
questão – não querer ser elegante como Cecília Meireles nem estar no outro extremo
disso, numa modernidade forjada pelo linguajar agressivo, irreverente e coloquial: “Não
sou dama nem mulher moderna” (CESAR, 1998, p. 40). Talvez por isso sua poesia tenha
tão boa receptividade ainda hoje, trinta anos após sua morte, pois a poeta tinha a
preocupação, expressa em seus ensaios e cartas, de não escrever poesia de um
feminismo militante, cuja maior função seria chocar a sociedade “careta” daquele
tempo, mostrando que a mulher também pode falar de sexo, usar termos chulos e agir
como um “macho”, numa oposição veemente à imagem convencional da mulher,
levando-a a assumir traços convencionalmente masculinos, o que é muitas vezes uma
marca do feminismo de segunda vaga, ora abandonado, mas que nem por isso deixa de
ter importância histórica, como um primeiro passo, um início do questionamento do
lugar da mulher na sociedade, numa forma de oposição completa ao que seria esperado
de uma mulher, tornando-se uma espécie de “sombra” e, neste caso, uma sombra tanto
da imagem feminina convencional, como da imagem masculina convencional. A atitude
de Ana Cristina Cesar parece, de certa forma, mais ponderada, o que talvez só seja
possível porque teria antes havido justamente a oposição. Notemos que há uma
diferença grande entre o oposto e o outro. O primeiro precisa daquilo a que se opõe para
se definir, o segundo não prescinde, mas pode abarcar, entre outras características, por
exemplos, traços não comparáveis, por serem completamente dissemelhantes. Assim,
Ana Cristina Cesar participa dos movimentos de seu tempo, através da recusa da
“nobreza” da poesia feminina anterior à sua, escapando das armadilhas do feminismo
hoje considerado radical, que talvez já não chocasse hoje como nos anos de 1970.
36
1.4.2. “AQUI
MEUS CRIMES NÃO SERIAM DE AMOR”: TRADIÇÃO NA ESCRITA DE
ANA
CRISTINA CESAR
Apesar das críticas que Ana Cristina Cesar faz à escrita das poetas brasileiras, a
relação que estabelece com a prosa de Clarice Lispector é de outra ordem. Poderíamos
mesmo dizer que há uma relação bem mais estreita entre a sua poesia e a prosa de
Clarice, do que entre a sua poesia e a poesia de Cecília Meireles, por exemplo. Um fato
curioso na relação entre as duas escritoras está em Inéditos e dispersos, a saber: uma
frase cortada de Clarice é publicada como um poema de Ana C.: “Aqui meus crimes não
seriam de amor” (CESAR, 1998, p. 127).
Dos poemas editados em Inéditos e dispersos, encontramos várias versões
escritas à máquina – com marcas manuscritas da mãe – que têm uma versão
em prosa e outra em verso, deixando transparecer a indecisão de quem levou
a cabo a tarefa de datilografar. Também existem folhas com frases soltas
cujos originais não estão no arquivo. Assim descontextualizadas, as frases
tanto poderiam ter sido pensadas como fragmentos para futuros textos, ou
como micro-poemas prontos, ou simples transcrição de frases alheias, de
poesias ou músicas, sem intenção de se apropriar delas. Soltas, essas frases só
desvendam sua genealogia ou por acaso ou se perseguidas pelo pesquisador:
por exemplo, “aqui meus crimes não seriam de amor”, editado como poema
em 1985, certamente corresponde a uma frase de uma crônica de Clarice
Lispector sobre a criação de Brasília, de 1970, reproduzida em A descoberta
do mundo. Ana C. autora de Clarice? Poderia ser, é verdade que Ana em seus
poemas não poupou citações veladas, mas não parece ser o caso (LEONE,
2008, p. 29).
O que talvez fosse uma anotação de Ana Cristina Cesar está, originalmente, na
crônica “Nos primeiros começos de Brasília”: “ Aqui é o lugar onde os meus crimes
(não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de
amor” (LISPECTOR, 1999, p. 294). No entanto, para o leitor de Ana Cristina, tirada do
seu contexto original, a citação toma outra dimensão e tem um sentido diverso do
sentido clariciano. A começar pelo advérbio “aqui”, que, para Clarice Lispector, tem um
lugar definido: obviamente, a cidade de Brasília; já em Ana Cristina Cesar este “aqui”
não encontra um referencial. A frase de Ana Cristina, por ser mais enxuta, soa muito
37
mais passional que a de Clarice e, além disso, por não haver um contexto que a envolva,
reveste-se de certo ar de mistério: temos um “aqui” indeterminado. Mas este lugar onde
os “meus crimes não seriam de amor” é um lugar de exceção, contrapõe-se
provavelmente a algum lugar onde os [meus] crimes são de amor. O impacto causado
pela leitura do poema de um único verso, curto, numa página quase vazia, é, sem
dúvida, muito maior do que o impacto da frase (longa, se comparada ao excerto
utilizado por Ana Cristina Cesar) de Clarice Lispector, em meio a uma crônica sobre o
homem de Brasília. É presumível que o impacto dessa frase de Clarice sobre Ana
Cristina Cesar tenha sido maior do que o impacto que tem sobre o leitor comum, afinal,
fez com que Ana Cristina enxergasse ali uma frase poética, ainda que tenha aparado as
arestas da frase de Clarice para transformá-la num verso.
Sabemos que as citações, assim como a apropriação de frases e versos de outros
autores, são sistemáticas na escrita de Ana Cristina, o que leva alguns estudiosos a
ficarem intrigados com o fato de Ana Cristina ser lida por jovens que certamente
desconhecem a maior parte dos autores com os quais a poeta dialoga. André Cechinel –
que, com uma leitura original de “Tradição e talento individual” 12, de T. S. Eliot,
estabelece relação entre a ideia de tradição apresentada pelo escritor e o seu poema “The
Waste Land” – sustenta a hipótese de que Eliot promove o “estranhamento dos
clássicos”, de modo que reconhecer as suas fontes, em vez de esclarecer o sentido final
de seu texto, nos afasta desse sentido:
12
A originalidade de André Cechinel, a nosso ver, consiste na leitura de um trecho fundamental do ensaio
de T.S. Eliot: “os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo
aparecimento de uma nova obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça;
para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser
alterada” (ELIOT, 1989, p. 39). Para André Cechinel, o cerne da questão não é a palavra “ordem”, como
a crítica entende normalmente: “o fundamental seria a palavra ´alteração`. A tradição permanece viva
porque se altera a todo instante. Talvez essa seja uma lição importante e que ainda não foi inteiramente
absorvida: para Eliot, a tradição, ou melhor, o cânone não pode ser desconstruído, pois o cânone é,
paradoxalmente, aquilo que só existe por se desconstruir a todo instante” (CECHINEL, 2011).
38
A hipótese que sustento é a de que Eliot promove, em sua obra, o
estranhamento dos clássicos. Poderíamos chamar a sua noção de tradição,
portanto, de uma tradição estranhada – a literatura do passado é sempre
revivida, e esse reviver dos clássicos exige um estranhamento que nos insere
num movimento paradoxal: podemos avistar as obras aludidas, as obras
reencenadas, porém, como uma nova encenação, essas obras jamais dão
conta de explicar referencialmente o que se passa nos versos de Eliot. O
reconhecimento das fontes, das alusões, implícitas ou explícitas, nesse
sentido, sempre nos afasta de um sentido final, lançando-nos num loop
hermenêutico sem fim (CECHINEL, 2011).
Talvez seja interessante pensar, por esta perspectiva, que o mesmo ocorre na
poesia de Ana Cristina Cesar: o reconhecimento de suas fontes afasta-nos de um sentido
final. Sabendo que Ana Cristina Cesar era uma estudiosa de Literatura Inglesa e
recenhecendo T. S. Eliot em seus textos, não seria possível deixar de observar que em
alguns momentos a construção de seus poemas faz alusão à construção de “The Waste
Land” 13 e – num loop de alusões – assim como no texto de Eliot, podemos encontrar as
obras aludidas por Ana Cristina Cesar, sem que essas obras nos ajudem a compreender
o que se passa nos poemas da poeta brasileira. Obviamente não ignoramos o fato de que
uma quantidade maior de referências por parte do leitor pode elevar a leitura, mas, como
bem observa Manuel Gusmão em seu ensaio “Anonimato ou alterização?”, “em
momento algum do tempo, um leitor ou os leitores podem esgotar o sentido, reunir
todas as citações, até porque não podem esgotar o tempo a vir, as leituras futuras”. Da
mesma forma, nenhum leitor de Ana Cristina Cesar jamais apreenderá todos os sentidos
de seus poemas, e, provavelmente, uma busca obsessiva por referências será infrutífera,
pois no máximo conseguirá abarcar as suas referências literárias, e é possível que em
sua obra as referências extraliterárias sejam tão importantes (ou desimportantes) quanto
as referências literárias. Observemos que Ana Cristina, sob a assinatura de “Júlia”, em
13
Em depoimento de 1983, transcrito em Crítica e tradução, Ana Cristina Cesar referencia
explicitamente T. S. Eliot ao afirmar que a poesia moderna é fragmentária: “Então, se você pega Eliot,
não sei se você teve a oportunidade de dar uma sacada no Eliot. Tem uma tradução recente, do Ivan
Junqueira. Você pega os poemas do Eliot, ele faz exatamente isso: coloca uma cena duma cartomante
jogando cartas e, de repente, ele corta, ele está em Londres, atravessando uma rua; de repente ele corta,
está no fundo do mar, falando com as sereias” (CESAR, 1999, p. 261).
39
Correspondência Completa, critica tanto o leitor que a lê puramente como literatura
quanto o que a lê puramente como biografia.
Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar
mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta
sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o hermetismo. Não se confessa
os próprios sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura pura, e não
entende as referências diretas (CESAR, 1998, p. 120).
Mas seria realmente possível atribuir a Ana Cristina Cesar a autoria de “Aqui
meus crimes não seriam de amor”? Lembremo-nos de que o trecho-verso-poema é
publicado postumamente – num volume organizado por Armando Freitas Filho (que
afirma que a edição foi feita com a colaboração de outras pessoas). O fragmento foi
provavelmente selecionado por alguém que, ao encontrar a anotação, não reconheceu ali
a escrita de Clarice Lispector, talvez porque, de fato, ao ser retirado do seu contexto, a
ressignificação seja tão grande que possa mesmo ser atribuída uma nova autoria. Talvez,
numa espécie de radicalização da teoria barthesiana, de 1968, a respeito da morte do
autor, Ana Cristina Cesar declare a morte da autoria, desconfigurando assim qualquer
forma de plágio, através da ressemantização das palavras das quais se apropria
livremente.
Curiosamente, a noção de plágio como uma coisa negativa é relativamente
recente. Sabemos que, na Antiguidade, copiar um bom modelo era recomendável: o
autor precisava mostrar que conhecia e dominava uma técnica existente e que era capaz
de com ela dialogar. Quando Virgílio cita frases e versos de Homero, por exemplo, isto
não é visto como um “furto”, pois Virgílio, por estar à altura de Homero, é capaz de
relê-lo, imitá-lo e de dialogar com a sua obra. Observemos que é necessário que o
escritor que imita esteja à altura de seu modelo, pois, caso contrário, o verso ou mesmo
a referência ao modelo toma a forma de imitação servil. Durante o Romantismo, o autor
como criador original e único passa a ser hipervalorizado e a cópia, a imitação e o
40
plágio assumem conotação extremamente negativa – que em determinados aspectos
ainda se mantém –, até Pound retomar, em sua poesia, questões da poética clássica,
utilizando-se também dessas formas de diálogo com outros poetas. Assim, observamos
que Ana Cristina Cesar, na sua maneira de dialogar com grandes poetas e escritores,
utiliza-se de uma tradição poética corrente e que sempre existiu. Acreditamos, portanto,
que, ao atribuir um novo significado e novas hipóteses de leitura ao excerto retirado da
crônica de Clarice Lispector, Ana Cristina Cesar é legitimamente autora do poema de
um único verso.
1.4.3. A CONDIÇÃO FEMININA NA POESIA DE ANA LUÍSA AMARAL
Poemas em que as mulheres são todas belas
e, de preferência, jazem adormecidas.
Adrienne Rich
Como já foi assinalado, Ana Luísa Amaral é estudiosa da poesia escrita por
mulheres e do feminismo, talvez por isso seja difícil dissociar a sua escrita desse
universo feminino e cotidiano. Na obra de Ana Luísa Amaral temos poemas que
tratam, com linguagem que se aproxima da linguagem do cotidiano, de uma temática
aparentemente simples, mas que está em busca de descrever e expressar inquietações
profundamente femininas. Talvez, nesse sentido, Ana Luísa Amaral se negue a taxar
sua poesia de feminista, pois em sua procura por uma “língua nova” não pretende
igualar-se aos homens poetas, mas busca algo inteiramente novo e “em feminino”, “no
41
saber ancestral de entranhas próprias” (AMARAL, 1993, p. 58). Ana Luísa Amaral,
como alguns dos poetas portugueses mais recentes
pode centrar-se em pequenos acontecimentos quotidianos, banais, sem
grandeza aparente, procurando situar a poesia como uma epifania na vida,
e não no texto, se bem que sem deixar de fazer pairar a suspeita de que
esse é um efeito que só a textualidade consente. Talvez a poesia de Ana
Luísa Amaral seja aqui um exemplo particularmente legível, porquanto
assumidamente se divide por esses dois caminhos, explorando uma
sintaxe inovadora e transgressiva, sem deixar de desenvolver também
uma temática facilmente integrada pelo leitor no seu mundo habitual
(MARTELO, 2007, p. 47).
No poema “Inspirações”, as atividades do cotidiano parecem atrapalhar o fazer
poético, mas constituem o próprio poema: “Se em vez de televisão /eu escrevesse
poema” (AMARAL, 1993, p. 47); no entanto, essas atividades, tais como cozinhar,
pagar contas, fazer compras, trabalhar, constituem um acúmulo de afazeres típicos da
mulher desde o pós-guerra até os dias de hoje. E, diante de todas essas atividades, que
muitas vezes desviam a atenção intelectual, seria preciso alguma renúncia, se não
houvesse a possibilidade de a televisão, o empadão ou o fogão constituírem a própria
matéria poética. É, portanto, a partir da reflexão acerca do cotidiano que Ana Luísa
Amaral “busca ressensibilizar os materiais poéticos” (SILVESTRE, 1998, p. 56), a partir
de uma experiência estética que constitui muito da sua maneira de lidar com a língua
de Camões, nas palavras de Ida Alves:
Com o primeiro livro editado em 1990, Minha senhora de quê, a poeta
assinou seu nome na poesia portuguesa e desde então vem desenvolvendo seu
trabalho de escrita sobre o avesso da tradição literária, interrogando os
bastidores da cena poética e ultrapassando os limites de uma poesia feminina.
(ALVES, 2008, pp. 227-228)
Assim, nessa espécie de “avesso da tradição literária”, Ana Luísa Amaral
inscreve sua poesia na Literatura Portuguesa de maneira inovadora, e ao mesmo tempo
inscreve-a na própria tradição literária, já que o “avesso” é indissociável do “direito”
42
(que normalmente não é sequer nomeado). Na poesia escrita por mulheres no século
XX, notamos a importância de se trazer a público a sexualidade e o desejo femininos.
Ana Luisa Amaral assume ainda certa óptica feminina desprovida de romantismo (ou
do que se entende como romantismo no senso comum), capaz de apresentar o sexo
cruamente, como no poema com o sugestivo título de “Kamasutras”, que retrata o
início de uma relação sexual de maneira áspera, pois o sexo aqui não é o desfecho de
um jogo de sedução. A luz é crua como os desejos também são crus, e sem o uso de
artifícios, sem a preocupação com apagar a luz ou esconder os corpos, o “kamasutra
em última edição” (AMARAL, 1993, p. 75) já não é um manual de conduta sexual, mas
uma forma de satisfazer os desejos urgentemente. O ato sexual é sem palavras, sem
olhares, sem ambiguidade nem subterfúgios; o momento de sedução, ou de
envolvimento, ocorre depois do sexo, quando já não há urgência. Curiosamente,
depois do sexo cru, come-se o assado: “os restos do assado do jantar” (AMARAL, 1993,
p. 74), verso que tira parte do romantismo da sedução que poderia ser encontrada na
“poética de mãos” com que comem lentamente, pois agora o sedutor não precisa estar
contido numa linguagem romântica vulgar, pode estar numa trivialidade. A “língua
nova” é também a maneira feminina de encarar a quase brutalidade de uma relação
sexual sem espanto e, com naturalidade, passar à cozinha, atendendo às necessidades e
desejos do corpo.
Há uma outra vertente na poesia de Ana Luísa Amaral de fundamental
importância para este estudo: a poesia que conta com a presença de personagens
míticas femininas. Sejam personagens históricas, como a rainha Vitória, sejam
personagens da tradição literária, como Laura ou Beatriz. Ana Luísa Amaral modifica
o discurso tradicional que se faz a respeito dessas figuras a partir da nova escritura,
pois a poeta é capaz de recriar uma tradição histórico-literária a partir de uma
43
perspectiva nova. Talvez seja necessário assinalar algumas das ocorrências dessas
personagens na poesia de Ana Luísa Amaral, a fim de deixar claro que a poeta dialoga
com essas tradições. Notemos que não há um rompimento: a poeta mantém-se dentro
da tradição, mas de maneira a deslocá-la.
No poema “Reais Ausências”, do livro Coisas de Partir, Ana Luísa Amaral
apresenta-nos a ausência das mulheres na história oficial e imaginária de Portugal (e
da Inglaterra). A negativa é categórica: “Não há rainhas, não. / Quando se fala em
mitos, é sempre Artur /ou D. Sebastião” (AMARAL, 1993, p. 57). Note-se que a
mitificação de Dom Sebastião em Portugal ocorre à maneira de Artur, na figura do rei
que poderia salvar a nação. E Ana Luísa Amaral enumera reis e rainhas, comparandoos para explicitar a pouca importância dada às rainhas, seja a piedosa rainha Isabel – a
santa do milagre das rosas – com Henrique VIII – famoso por ter se casado seis vezes,
por ter sido declarado soberano da nova Igreja Anglicana (fundada depois do seu
rompimento com a Igreja Católica), por ter exercido o poder mais absoluto dentre
todos os monarcas ingleses e pela peça teatral de William Shakespeare –, seja
comparando Maria da Escócia – uma das mais famosas rainhas do século XVI, bela,
instruída e inteligente, sentenciada de morte pela filha de Henrique VIII, Elizabeth I,
sua prima, que “pouco fez, que já tinha o país quase estrumado, pupila em oceano e
abolidas bulas” (AMARAL, 1993, p. 57) – a D. Dinis, marido da Rainha Isabel, trovador
e plantador de pinhais (“de naus a haver”, como está em Mensagem), de “olho ferrado
no futuro” (AMARAL, 1993, p. 57).
De acordo com este poema, as mulheres seriam responsáveis pela ruína dos reis
míticos, Artur e D. Sebastião: Guinevere traiu Artur com Lancelot, um de seus
companheiros da Távola Redonda. A D. Sebastião, por ser solteiro (uma ausência
feminina de fato), coube o fim da dinastia de Avis. As ausências de rainhas são
44
especialmente perceptíveis em Mensagem, de Fernando Pessoa, em que as duas únicas
mulheres são as rainhas D. Tareja, “Mãe de reis e avó de impérios”, mãe de D. Afonso
Henriques, e D. Filipa de Lancastre, “Humano ventre do Império”, a “que só gênios
concebia”, ou seja, são importantes não por seus atos ou por suas qualidades, mas por
terem concebido os reis de Portugal, como se a função das mulheres fosse,
unicamente, a de conceber e como se a virtude da mulher pudesse ser medida pelas
virtudes de seus filhos, como se esses filhos fossem uma continuação da mãe, não um
começo em si. Talvez, para que isso mudasse, tenha sido fundamental a percepção de
que “É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser previsto
a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes” (ARENDT, 1987, p. 190); assim, se a
partir de cada nascimento se inicia algo totalmente novo, torna-se possível reconhecer
a mulher como um indivíduo.
Este cunho de surpreendente imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda
origem. [...] o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem
é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de
realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada
homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo
singularmente novo. Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que
antes dele não havia ninguém. (ARENDT, 1987, pp. 190-191)
Especialmente as rainhas deveriam ser férteis, uma vez que dependia delas dar
herdeiros (preferencialmente homens) de linhagem nobre ao trono, assim como Maria,
cujo fruto é sagrado, ainda que o seu ventre não o seja, pois, para se manter à altura de
ter concebido o filho de Deus, deve ser mantido intacto, para sempre virgem. Nas
primeiras páginas de Memorial do Convento, demonstra-se a preocupação com o fato
de a rainha, depois de quase dois anos de casamento, ainda não ter dado um filho ao
rei. A mulher, então, por ter como única função gerar filhos, é chamada, numa
45
metáfora bíblica, “vaso de receber”: “um rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede
[ao céu] o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão porque sendo a
mulher, naturalmente, vaso de receber, há-de ser naturalmente suplicante”
(SARAMAGO, 2008, p. 11).
No poema de Ana Luísa Amaral a única mulher reconhecida como
historicamente relevante é a rainha Vitória. Note-se que a rainha Vitória apenas pôde
assumir o trono do Reino Unido porque não havia nenhum homem para suceder, por
linhagem direta, ao rei George III, e que ela não assumiu o poder em Hannover, onde
vigorava a lei sálica, que impedia que uma mulher fosse a soberana 14. Mas há a
ressalva: “na forma de mandar, foi mais que homem” (AMARAL, 1993, p. 58).
Interessante notar que há certa tendência a considerar que as mulheres, quando são
governantes rígidas e conservadoras, são comparáveis a homens, como se tivessem se
masculinizado para exercer o poder. Como exemplos mais recentes dessa analogia
temos Margaret Thatcher (que recebeu, aliás, a alcunha de Dama de Ferro) no Reino
Unido e Golda Meir, em Israel. Talvez a comparação com homens se faça pelo fato de
essas mulheres, por um lado, não assumirem uma posição “maternal” em relação ao
seu povo – uma das grandes crises políticas causadas por Margaret Thatcher, quando
Ministra da Educação, foi a determinação de que se cortasse o leite das crianças nas
escolas, a fim de reduzir gastos do governo – nem tampouco uma posição progressista
esperada por muitos homens e mulheres que veem no conservadorismo uma forma de
perpetuar as desigualdades, dentre as quais, as desigualdades entre homens e mulheres.
Ainda que a rainha Vitória não tenha sido uma rainha absolutista, é comparada a um
homem pela maneira de exercer o poder e pela rigidez, presente nas normas sociais,
14
Na Inglaterra, somente em outubro de 2011 as filhas primogênitas passaram a ter preferência para
assumir o trono; até então só o fariam se não tivessem um irmão do sexo masculino.
46
nas roupas vitorianas e mesmo na linguagem: há que se notar a presença dos “toucados
opressores” e do “verso espartilhado e de costumes” (AMARAL, 1993, p. 58).
Portanto, como que em busca de um feminino que possa exercer o poder num
“reinado feminino e língua nova, / nariz torcido à guerra no saber ancestral / de
entranhas próprias” (AMARAL, 1993, p. 57), a poeta afirma: “não me lembro
nenhuma”, pois ainda que tenhamos uma Rainha Santa (Isabel) e outra que exerceu o
poder por mais de sessenta anos (a rainha Vitória), não existe uma rainha mitificada
pela maneira como exerceu o poder. Talvez a mais mítica de todas as rainhas, a única
que possa ser equiparada em importância literária ao rei Artur ou a Dom Sebastião,
seja aquela que foi coroada depois de morta, porque não poderia ter amado o soberano
português: Inês de Castro (heroína com sobrenome próprio, dado que não chegou a ser
desposada), mitificada justamente porque foi mais do que um “vaso de receber”.
Conceber filhos de rei foi uma consequência do seu “puro amor” (Lusíadas, III, 119),
ou de suas relações sexuais com o filho do rei que a matou: Inês é morta – e
posteriormente mitificada – por não ter seguido o exemplo da Virgem, satisfez seus
desejos de maneira que às mulheres só foi permitido trazer a público e à linguagem
muito recentemente. No entanto, Ana Luísa Amaral sugere que Inês apenas tornou-se
mito porque morta, em seu poema intitulado “Inês e Pedro: quarenta anos depois”.
Chega a ser cruel a imagem que faz do casal: Inês agora é velha e desdentada, Pedro
sofre de cãibras e o passado – glorioso? – é fantasia ou imaginação.
Inês é velha, hélas,
e Pedro tem caibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando a chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
47
de imaginação.
O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurónios).
Mais sábia e precavida (sem três dentes
da frente),
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.
(AMARAL, 2010a, p. 636)
A morte prematura permite à rainha tornar-se um mito, ela está morta, mas
mantém-se linda e jovem: “Estavas, linda Inês, posta em sossego” (Lusíadas, III, 120).
Envelhecer e tornar-se mito será sempre difícil para as mulheres; não foram poucas,
afinal, as musas hollywoodianas que abandonaram a carreira antes dos 40 anos – como
Greta Garbo – para ficarem imortalizadas no auge de sua beleza.
1.4.4. DAR VOZ ÀS MUSAS: ANA LUÍSA AMARAL E A POESIA CLÁSSICA
Apesar de já à primeira vista ser possível compreender que Ana Luísa Amaral,
ao escolher o título de seu livro – metapoético e quase inteiramente composto por
diálogos entre os poetas maiores da tradição lírica ocidental: Petrarca, Dante e Camões
(entre si e com suas musas) – tem a percepção de que o amor, tal como conhecemos,
idealizamos e trazemos para nossas vidas, baseia-se essencialmente no universo
amoroso criado por esses três poetas; daí o termo “gênese”. Paula Morão aponta
também para o fato de que a palavra gênese pode se referir ao livro do Gênesis, ou seja,
à história do primeiro par:
Na obra que agora lemos, esse processo vai ser retomado, não para se
reconfigurar a narração mítica de um mundo que emerge das trevas e do caos,
mas para se contar e indagar o que é “o amor” recorrendo a histórias maiores da
48
tradição sobre a impossibilidade do mesmo amor. Essas narrativas evocam pares
míticos, todos eles – não por acaso – constituídos por poetas e suas amadas, que
mesmo quando foram pessoas reais chegaram até nós pela sua espessura como
personagens, como seres de papel: Camões e Natércia ou Catarina, Dante e
Beatriz, Petrarca e Laura (MORÃO, In AMARAL, 2007, p. X).
Há algo de novo na escrita desse livro: aqui as musas não são apenas cantadas:
elas possuem voz. No entanto, quando a musa fala, ela quase deixa de ser musa, pois a
musa idealizada não se manifesta, não demonstra vontades ou desejos, daí que este seja
visto como um livro feminista de Ana Luísa Amaral: afinal, ela dá voz a mulheres que
ficaram em silêncio durante séculos. Paula Morão escreve o “Prólogo” deste livro –
observe-se que não é um prefácio, portanto deve ser lido juntamente com os poemas –
de modo a elucidar a forma de a poeta trazer à tona motivos tradicionais da poesia:
[Há] duas vertentes principais na construção deste volume que os anteriores
foram prefigurando: por um lado, o entremostrar de referências literárias,
patentes e subjacentes; por outro, a perfeita organização dos poemas num
crescendo que acentua a vertente metapoética, estendendo-se da glosa de
motivos tradicionais e suas matrizes textuais ao saber do verso, bem patente
no cuidado com o ritmo do verso curto, com a assonância e com processos de
rima interna e externa. Tudo isso dá forma a um livro que atrai aquele leitor
que for além de uma leitura apressada. (MORÃO In AMARAL, 2007, p. VII)
Se levarmos em consideração estudos como os de Spivak, perceberemos que de
fato há íntima relação entre a mulher e o silêncio. Explico: em Pode o subalterno falar?
Gayatri
Spivak
demonstra
que
o
discurso
e
a
produção
intelectual
são
predominantemente os daqueles que estão em situação superior, ou seja, o homem
ocidental. Aqueles que estão em posição subalterna são impedidos de falar e, tendo sido
a mulher silenciada por muitos séculos, tirá-la da obscuridade pode sim ser encarado
como uma atitude feminista.
Ana Luísa Amaral apresenta inúmeros poemas de caráter metapoético e nesses
costuma trazer à tona a tradição literária não só portuguesa, mas ocidental. Note-se a
presença de elementos da cultura clássica por toda sua obra; quando esses elementos
vêm à tona, não é a escrita de fatos do cotidiano que prevalece, mas sim uma escrita
49
elevada: “se até aqui a sua obra se caracterizava, globalmente, por um tom menor [...], a
verdade é que, lendo-a agora como um todo, a alguma distância, nela se vão
encontrando balizas” (MORÃO, In AMARAL, 2007, p. VI), e essas balizas estão tanto nas
referências às personagens literárias quanto na construção dos poemas em si, isto é, no
trabalho poético: no verso, na métrica e na rima. Na primeira parte do seu livro:
“topografias em quase dicionário”, Ana Luísa Amaral, de certo modo, mostra como será
feito o que virá depois. Em seus primeiros versos há esse caráter de reinauguração da
língua:
Reaprender o mundo
em prisma novo
pequena bátega de sol a resolver-se
em cisne,
sereia harmonizando o universo
(AMARAL, 2007, p. 3)
Ora, esse “prisma novo” não seria apreender o olhar feminino sobre o mundo? Afinal, a
harmonizar o universo está a “sereia”, aquela que canta, encantando, amedrontando e
enlouquecendo os homens. A única maneira de lidar com esse “novo” olhar, feminino, é
com uma língua nova. Voltemos ao poema:
Sei que preciso de uma forma nova,
que precisava de palavra nova
para a moldura, ou cor
(AMARAL, 2007, p. 7)
A segunda parte do livro, intitulada “a gênese do amor”, como o próprio livro,
inicia com a voz de Camões (“Camões fala a Petrarca”). Cito: “De ti tardei a tradição e /
o tempo” (AMARAL, 2007, p. 13). Camões escreve sonetos, mas não na língua de
Petrarca: “Só não herdei a voz” (AMARAL, 2007, p. 13), e segue interpelando o poeta
italiano, porque a poesia é atemporal e “a vida em verso, / maior às vezes / do que a
50
outra vida” (AMARAL, 2007, p.14). Camões como que reconhece em Fernando Pessoa
um seu herdeiro e termina este poema da seguinte forma:
como depois de nós,
muito depois,
alguém, que será muitos,
falará.
(AMARAL, 2007, p. 14)
Ana Luísa Amaral, portanto, insere Fernando Pessoa como herdeiro da tradição
lírica portuguesa, herdeiro de Camões. Em seguida, “Camões fala a Natércia”, “Natércia
fala a Camões” e há “Diálogo[s] entre Natércia e Camões”, Dante e Beatriz, Petrarca e
Laura, depois os poetas e as musas falarão entre si. Faz-se necessário, neste momento,
explorar a fala da musa; portanto, tomarei Natércia (que é também Catarina), no
segundo poema intitulado “Diálogo entre Natércia e Camões”, que se inicia com a fala
de Natércia, e a musa interpela o poeta:
– Chega, sem me chegares,
vem, sem partires,
meu brando amor
que, ao desejar,
sonhara
E não fales de mim:
fala comigo
(AMARAL, 2007, p. 27)
A musa fala e é como se pedisse para ser amada de fato, quase como se quisesse
que o poeta deixasse de ser poeta, para amá-la; falar com ela e não dela é pedir o
impossível ao poeta, que responde:
– Eu falarei
com mais suave voz
de ti, amada,
porque tanto amada
(AMARAL, 2007, p. 27)
51
O apelo de Natércia é pessoal; ela pedirá: “fala comigo”, mas o poeta insiste em querer
cantá-la:
E se além de mil almas
eu tivera
teceria por ti
perfeitas rimas
(AMARAL, 2007, p. 27)
Ana Luísa Amaral ousará, agora, fazer com que a musa deseje o poeta. E é
provavelmente por causa do desejo que a poeta atribui às musas, que seu livro é tido
como feminista:
Seduz-me novamente,
traz-me versos
em que queira sentir
que em ti navego
(AMARAL, 2007, p. 28)
Camões, à moda maneirista, assegurará a permanência do amor e da poesia com seus
versos. Verificamos, assim, que Paula Morão toca no que é essencial no livro de Ana
Luísa Amaral, pois A gênese do amor “defronta-se com a impossibilidade do mesmo
amor, tocado pelo ilusório carácter da permanência de tudo o que é humano. Talvez por
isso é que os poemas finais caminham decididamente para o tom sombrio da elegia”
(MORÃO, In AMARAL, 2007, p. XIV). Ana Luísa Amaral traz de volta, portanto, a lírica
não só amorosa, mas também elegíaca, e apresenta-se a nós como portadora e herdeira
da voz dos poetas e das musas.
52
2. ANA CRISTINA CESAR, A POESIA MARGINAL E 26 POETAS HOJE
mas você não é muito da sua geração. sou sim. o que escreve não é.
você é que não vê.
Armando Freitas Filho
(recriação de conversa que teve com Ana C. em 1979)
É de fundamental importância para o desenvolvimento deste trabalho que
situemos Ana Cristina Cesar em sua geração e nos movimentos culturais de sua época,
ainda que alguns críticos, a exemplo de Armando Freitas Filho, afirmem que se trata de
uma poeta que destoa do resto de sua geração:
[A poesia de Ana Cristina Cesar] é, senão inovadora, diferente das outras, ou
da outra que estava em uso naquela quadra do tempo. O que era corrente era
um poema que retomava um viés do modernismo brasileiro: o poema-minuto,
de revelação instantânea como uma foto polaroide, ou o poema-piada, que
tinha forte coloração oswaldiana. De repente, como que andando na
contramão da sua geração, de braço dado com ela em alguns costumes, mas
escrevendo com mão diferente um texto cuja mancha gráfica incorporava
sem cerimônia a prosa, Ana Cristina apareceu – esfinge clara e singular –
sem temer a rejeição, procurando outro leitor e propondo uma nova leitura
em nada complacente, muito pelo contrário, uma leitura desafiada (FREITAS
FILHO, 2013, p. 8).
No entanto, achamos que situar Ana Cristina Cesar em sua geração, como faz
Cacaso, é necessário para este estudo, uma vez que Ana Cristina Cesar está dentro de
sua geração no que diz respeito à tentativa de romper com a poesia rígida, objetiva e
impessoal dos concretistas. Ao negar isso, através da expressão da subjetividade e do
uso da linguagem coloquial, possibilita-se a expressão de uma voz poética pessoalizada.
No caso de Ana Cristina Cesar essa voz poética muitas vezes é em feminino, e importa
compreender de que forma fazer parte de sua geração possibilita a subjetivação no
feminino.
53
Ana Cristina Cesar se destaca no Rio de Janeiro dos anos de 1970, como poeta,
crítica literária e autora de artigos (nos jornais Opinião e Beijo) sobre comportamento e
cultura. Sua voz foi ainda uma das que marcaram presença na antologia 26 poetas hoje,
de 1976, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, e à qual o nome da poeta ficou
atrelado durante os anos de 1970. Ana Cristina Cesar utiliza-se dos mesmos termos e
conceitos de seus professores e contemporâneos 15; encontra-se, portanto, enquanto
crítica e ensaísta, alinhada ao que havia de mais novo em sua própria época, ainda
fortemente marcada pelos estudos estruturalistas. Dentre os críticos atuantes na época,
Cacaso é um dos poucos que analisa a sua obra como pertencente a uma vertente, por
assim dizer, da Poesia Marginal: a “Coleção Capricho”, na qual foram publicados
poetas como Francisco Alvim, Ledusha, Eudoro Augusto e Carlos Saldanha, cada um
com a sua própria expressão, o que para Cacaso constituía-se justamente num
importante traço que sua geração retoma da poesia da vanguarda modernista. Cacaso
afirma que “a partir de 1945 […] se dá a primeira reação antimodernista sistemática na
poesia” (CACASO, 1997, p. 90), o “espírito libertário” e a individualidade do poeta
modernista teriam sido, portanto, progressivamente postos sob controle:
E a lição modernista, salvo raros casos, é arquivada. Que lição é essa? Ora,
na versão modernista as retóricas e formas fixas são dissolvidas na vivência,
o que vai exigir do poeta, se ele for capaz, a formulação de uma síntese nova,
criando a “sua” forma pessoal, realizando a “sua” poesia. Desenvolvendo a
plenitude de sua subjetividade, o poeta torna-se um desgarrado. Mas em
compensação vira gente grande (CACASO, 1997, p. 91).
Cacaso estabelece, portanto, um contraponto entre a poesia marginal e a poesia
que a antecedeu imediatamente, mais especificamente a poesia concreta; logo, a defesa
da individualidade, e de uma explícita singularização identitária, é uma forma de
ruptura, na medida em que rompe com as normas rígidas de uma “escola” que
15
Muito claramente utiliza-se da escrita da própria Heloísa Buarque de Hollanda – muitos dos conceitos
utilizados por Ana Cristina Cesar nos seus ensaios estão no prefácio de 26 poetas hoje – e dos textos
produzidos por Antônio Carlos de Brito, o poeta Cacaso, nos anos de de 1970.
54
estabelece normas que devem ser seguidas. De acordo com essa linha de pensamento, os
poetas dos anos de 1970 (Cacaso entre eles), retomam a poesia do Modernismo de
1922, a dicção e o linguajar coloquial de Mário de Andrade e os poemas-piada de
Oswald de Andrade, traçam um paralelo com a atitude de desprezar as formas fixas,
necessária para a libertação e a liberdade do poeta:
Na visão modernista o poeta é um agente atualizador, um contemporâneo de
si mesmo e do mundo, com direito a todos os temas e técnicas. O risco é
grande: livre de constrangimentos e justificativas escolares, o poeta já pode
dar a sua medida, a dimensão livre de sua força. (CACASO, 1997, p. 91)
Cacaso afirma que se há um traço comum aos poetas dos anos de 1970 é a
ruptura com a poesia rígida, que teve o processo de normatização iniciado com a
Geração de 45 e que culminou com o Movimento Concretista. Pretendemos aqui
explorar essa hipótese formulada por Cacaso para compreender de que maneira Ana
Cristina Cesar está situada em sua geração.
2.1. POESIA MARGINAL, ANTICONCRETISMO E ANTICABRALISMO
Em seu poema “Estilos de época”, presente em Grupo Escolar, de 1974, Cacaso
ironiza o Concretismo e os concretistas, nomeadamente Décio Pignatari, Haroldo e
Augusto de Campos. Note-se que a crítica se faz presente já no título do poema, uma
vez que “de época” indica alguma coisa datada, ultrapassada. O passado é também
marcado no primeiro verso do poema, pela palavra “havia”, palavra carregada de ironia.
Em primeiro lugar, porque o verbo “havia” está na esfera do erudito, do artificial:
lembremo-nos que Drummond usa o “tinha” em “No meio do caminho”, pois “tinha” é
circustancial, mais vivo e menos artificial. A linguagem poética dos irmãos Campos
seria excessivamente construída, isto é, artificial como o uso de “havia”. No uso da
55
forma verbal no pretérito imperfeito, Cacaso, de certa forma, descarta ou ignora a
produção poética concretista de então, como quem diz que “havia, no passado”:
Havia
os irmãos Concretos
H.e A. consanguíneos
e por afinidade D. P.,
um trio bem informado:
dado é a palavra dado
E foi assim que a poesia
deu lugar à tautologia
(e ao elogio à coisa dada)
em sutil lance de dados:
se o triângulo é concreto
já sabemos: tem 3 lados.
(CACASO, 2012, p. 153)
Cacaso brinca com a “alcunha” de Haroldo e Augusto de Campos, conhecidos
como “os irmãos Campos”, chamando-os de “os irmãos Concretos” e ironiza a falta de
subjetividade concretista. A subjetividade, aliás, segundo o Plano-piloto para poesia
concreta, o manifesto concretista, de 1958, deveria ser combatida, assim como a
expressividade:
poesia concreta: uma responsabilidade integral perante a linguagem. realismo
total. contra uma poesia de expressão, subjetiva e hedonística. criar
problemas exatos e resolvê-los em termos de linguagem sensível. uma arte
geral da palavra. o poema-produto: objeto útil (CAMPOS, CAMPOS e
PIGNATARI, 1975, p. 158).
Em seu poema, Cacaso faz piada dos poetas e da poesia concreta, afirma até
mesmo que aquilo não é mais poesia, pois deu lugar a uma espécie de vício de
linguagem: “a poesia deu lugar à tautologia”. Em seus poemas, os concretistas
encontrariam várias maneiras de dizer a mesma coisa: através de redundâncias,
repetições, efeitos sonoros e da própria forma dos poemas (a visualidade e os poemas
visuais são de suma importância para a poesia concreta), ou seja, todos os efeitos
poéticos visariam a repetição do significado das palavras do poema, semantizando todos
os planos de discursivizivação, no qual – obrigatoriamente – o significante remete ao
56
significado. Note-se que Cacaso retoma esse caráter em seu poema através da repetição
da palavra “dado”, que remete ao poema “Antiode”, de João Cabral de Melo Neto, no
qual “flor é a palavra flor” – João Cabral, por sua vez alude a Mallarmé, em “Crise de
Vers”, onde flor é “l’absente de tous bouquets” – Cacaso, como Ana Cristina Cesar,
adota, portanto, uma postura “anticabralina”. A poesia concreta (tautológica, na visão de
Cacaso) torna-se rígida e hermética, fechada em si mesma e não apresenta saídas à sua
própria lógica interna. Do mesmo modo que Cacaso, Heloísa Buarque de Hollanda
observa, no prefácio de 26 poetas hoje, que a poesia produzida naqueles anos de 1970
tem em comum a recusa das correntes experimentalistas:
A subversão dos padrões literários atualmente dominantes é evidente: faz-se
clara a recusa tanto da literatura classicizante quanto das correntes
experimentais de vanguarda que, ortodoxamente, se impuseram de forma
controladora e repressiva no nosso panorama literário (HOLLANDA, 2007, pp.
10-11).
Ana Cristina Cesar afirma que o traço comum presente nos poetas daquela
antologia é o “traço anticabralino” (CESAR, apud FERRAZ, 2013, p. 140), e desenvolve
um pouco mais essa ideia num artigo para o jornal Opinião datado de 25 de junho de
1976, intitulado “Nove bocas da nova musa”, no qual faz uma crítica à edição nº 42/43
da revista Tempo brasileiro. Revista em que havia uma seleção de textos críticos a
respeito da “nova poesia” e uma seleção de poemas novos, mas não necessariamente de
novos poetas. Ana Cristina inicia a sua crítica justamente pelo fato de João Cabral de
Melo Neto integrar a revista:
Basta dizer que a revista abre com meia dúzia de poemas do último livro de
João Cabral (Museu de tudo), que, realmente não pode ser alinhado entre os
representantes da nova poesia, anticabralina por excelência. No mesmo barco
vai o longo poema de G. H. Cavalcanti, cabralíssimo.
É desorientante percorrer os poemas publicados pela revista que, depois desta
entrada cabralina, deságua indevidamente nos anticabralinos novíssimos
(“devidamente” postos no final de tudo?). Fica claro que não há uma reflexão
por parte da revista sobre esta nova poesia, ou seja, uma proposta editorial
que a oriente: o critério para publicação dos poemas foi simplesmente o seu
ineditismo (CESAR, 1999a, p. 161).
57
Ana Cristina Cesar afirma que a falta de unidade da revista e a inconsistência da
maior parte dos textos críticos (à exceção dos textos de José Guilherme Merquior e
Heloísa Buarque de Hollanda – que estava preparando a antologia 26 poetas hoje e
apresenta uma “prévia” da antologia na revista citada) nada esclarecem a respeito da
nova poesia e que a única coisa correta abordada é o fato de que
[a] nova musa não tem nada a ver com os “movimentos vanguardistas”
(concretismo, neo-concretismo, práxis): ao contrário, distancia-se da nãodiscursividade, da quebra com a sintaxe, dos jogos óticos-verbais. Há
consenso neste ponto: a nova musa proclama a falência das vanguardas
(CESAR, 199 a, p. 162).
Ana Cristina Cesar endossa, portanto, o fato de os poetas da sua geração se
oporem à poesia concretista e, se pensarmos que os poetas concretistas consideram (em
seu manifesto) João Cabral de Melo Neto como um de seus precursores, podemos
inferir que se opor ao “traço cabralino” é uma forma também de se opor aos
concretistas. Ressaltamos que o próprio João Cabral negava que fosse um antecessor
dos concretistas, sem, no entanto, negar que havia semelhanças entre seu trabalho
poético e o dos concretistas: “Eu acho que eles fizeram uma coisa inteiramente nova.
Talvez haja essa ideia por causa do rigor, da falta de lirismo, da ausência de imagens
abstratas. Mas insisto que eles fizeram uma obra original estupenda, não devem nada a
mim” (MELO NETO, apud ATHAYDE, 1998, p. 21).
No volume Poesia Marginal, de 2013, organizado por Eucanaã Ferraz, numa
entrevista com Chico Alvim, Chacal, Charles e Heloísa Buarque de Hollanda, vemos –
num momento em que são questionados a respeito de ter havido ou não um “movimento
marginal” – que os poetas (especialmente Charles e Chacal) mantiveram a atitude crítica
e irônica para com o movimento concretista:
EUCANAÃ – Talvez seja essa a última pergunta, pra gente encerrar. Sempre
tem alunos que ficam na dúvida e perguntam se a poesia marginal foi um
movimento ou não. Pode-se usar a palavra movimento?
CHARLES – Acho que foi. A gente se movimentava tanto.
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CHACAL – Eu acho que foi um movimento também, mas não um movimento
tradicional, uma escola literária.
CHARLES – Não foi programado.
HELOISA – Movimento pressupõe um programa, e não foi isso. Foi uma
resposta caudalosa de uma geração ao que estava acontecendo naquela época
e que até hoje está batendo. Mas não vejo movimento, aliás, acho que não
existe mais movimento.
CHACAL – Acho que só a poesia concreta foi um movimento típico.
HELOÍSA – É, tinha um programa.
CHACAL – Tinha mais programa do que poesia.
(FERRAZ, 2013, p. 176)
A ironia com que Charles e Chacal tratam o movimento concretista, alinha-se,
portanto, à de Cacaso, presente tanto em sua poesia quanto em sua crítica. Em seu
ensaio para o jornal Opinião sobre a antologia de Heloísa Buarque de Hollanda, de
junho de 1976, Cacaso começa alfinetando os concretistas:
Começou a circular o boato, de autoria se não me engano dos concretistas de
São Paulo, de que a boa poesia brasileira em falência e sem saída no âmbito
propriamente literário, teria imigrado para o campo da música popular… A
ideia fez o sucesso de praxe e chegou a ser adotada e relançada por outros
críticos, e lá vai o equívoco ganhando notoriedade e fazendo carreira,
refletindo uma mistura em que se combinam, em proporções que variam
segundo o caso, o interesse, a desinformação e a simples confusão (CACASO,
1997, p. 44).
Cacaso sairá publicamente, portanto, em defesa da poesia de sua geração – uma
poesia “nova e bem viva” (CACASO, 1997, p. 45) – reiterando o que Heloísa Buarque de
Hollanda defende no prefácio de sua antologia (na qual ele também está presente como
poeta), isto é, que: “Há uma poesia que desce agora da torre do prestígio literário e
aparece como uma atuação que, restabelecendo o elo entre poesia e vida, restabelece o
nexo entre poesia e público” (HOLLANDA, apud CACASO, 1997, p. 45). É já neste
prefácio que afirma que esta geração faz uma retomada do Modernismo de 1922:
Num recuo estratégico, os novos poetas voltam-se agora para o modernismo
de 22, cujo desdobramento efetivo ainda não fora suficientemente
perseguido. Nesse sentido, merece atenção a retomada da contribuição mais
rica do modernismo brasileiro, ou seja, a incorporação poética do coloquial
como fator de inovação e ruptura com o discurso nobre acadêmico.
(HOLLANDA, 2007, p. 11)
59
A partir do prefácio desta antologia perceberemos que as referências ao
Modernismo de 1922 ultrapassam os poemas-piada oswaldianos, presentes na obra de
muitos poetas da geração dita marginal (especialmente presentes nas obras de Cacaso e
Chico Alvim) e talvez a maior referência seja a “Poética”, de Manuel Bandeira:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
[manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho
[vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com
[cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
(BANDEIRA, 2013, p. 39)
O poema de Bandeira, considerado pelos livros escolares quase como um outro
manifesto modernista – figura em seu livro mais vanguardista, Libertinagem, de 1930 –,
talvez pudesse mesmo ser lido como uma espécie de manifesto retomado pelos
“marginais” dos anos de 1970; e talvez na visão dos jovens poetas os concretistas
fossem os comedidos, bem comportados, cautelosos e seguidores de normas préestabelecidas (como fazem os funcionários públicos), em suma, os “puristas”, que
deveriam ir “abaixo”, ainda que seja para dar lugar ao lirismo dos bêbados e dos loucos,
60
pois o lirismo, combatido por João Cabral e pelos concretistas – para marginais e
modernistas – é libertação. E Manuel Bandeira, como os marginais, exalta o coloquial:
os barbarismos, as sintaxes de exceção, e o verso livre (os ritmos inumeráveis). Flora
Süssekind, em Até segunda ordem não me risque nada, chama a atenção para a presença
dessa retomada da vanguarda modernista na obra poética de Ana Cristina Cesar, desde a
tendência aos poemas-minuto, ainda que raros e fazendo piada com a sua própria
geração:
a lei do grupo
todos os meus amigos
estão fazendo poemas-bobagens
ou poemas minuto
(CESAR, 2013, p. 333)
Até o marcante “impulso de coloquialização” (SÜSSEKIND, 1995, p. 18) seria,
segundo Flora Süssekind, obrigatório na poesia de Ana Cristina Cesar. Curiosamente, a
poeta deixa entre os seus escritos inéditos 16 um poema datado de outubro de 1975,
intitulado “33ª poética”, no qual dialoga quase verso a verso com a “Poética” de Manuel
Bandeira, e a partir da sua leitura talvez fique mais claro de que maneira Ana Cristina
Cesar se opõe à poética cabralina e concretista:
estou farto da materialidade embrulhada do signo
da metalinguagem narcísica dos poetas
do texto de espelho em punho revirando os óculos
modernos
estou farta dessa falta enxuta
dessa ausência de objetos rotundos e contundentes
do conluio entre cifras e cifrantes
da feminil hora quieta da palavra
da lista (política raquítica sifilítica) de supersignos cabais: “duro
ofício”, “espaço branco”, “vocábulo delirante”, “traço infinito”
quero antes
a página atravancada de abajures
16
Poema publicado em 2008, em Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa e republicado em
Poética, de 2013.
61
o zoológico inteiro caindo pelas tabelas
a sedução dos maxilares
o plágio atroz
ratas devorando ninhadas úmidas
multidões mostrando as dentinas
multidões desejantes
diluvianas
bandos ilícitos fartos excessivos pesados e bastardos
a pecar e por cima
os cortinados do pudor
vedando tudo
com goma
de mascar
(CESAR, 2013, p. 325)
Enquanto Manuel Bandeira diz-se farto do lirismo purista, comedido, bem
comportado, “funcionário público” dos parnasianos, Ana Cristina, ao dizer-se “farto” da
“materialidade embrulhada do signo” ataca diretamente o concretismo no que ele tem de
mais marcante: a tentativa de materializar o significante no signo, daí a denominação
“poesia concreta”, já que busca “concretizar” aquilo de que fala, como expresso no já
citado Plano-piloto para poesia concreta:
o poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe
analógica, cria uma área linguística específica – “verbivocovisual” – que
participa das vantagens da comunicação não-verbal sem abdicar das
virtualidades da palavra. com o poema concreto ocorre o fenômeno da
metacomunicação: coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e
não-verbal, com a nota de que se trata de uma comunicação de formas, de
uma estrutura-conteúdo, não da usual comunicação de mensagens. (CAMPOS,
CAMPOS e PIGNATARI, 1975, p.157)
Ana Cristina Cesar, em seu poema, vai de encontro às normas do manifesto
concretista, aos excessivos poemas metalinguisticamente narcísicos, aos poemas que
são um fim em si mesmos, e que não possuem a intenção de comunicar uma mensagem
simples, já que é uma mensagem que não pode ser captada sem valorizar a
metadiscursividade do texto. Aliás, um dos traços mais marcantes da obra poética de
Ana Cristina Cesar é justamente a comunicação – ainda que forjada – de mensagens,
marcante em seus poemas que simulam cartas e diários. Na estrofe seguinte a poeta
62
atacará mais a estética límpida e excessivamente construída da poética cabralina e
alguns conceitos-chave do concretismo – que chama de lista “política, raquítica,
sifilítica” (retomando os adjetivos com que Bandeira se refere à lírica da qual está farto)
“de supersignos cabais”, ou seja, dos jogos de palavras e da hipervalorização da palavra
enquanto signo – alguns dos quais remetem a conceitos arquitetônicos: “duro ofício”,
“espaço branco”, “vocábulo delirante”, “traço infinito”, que João Cabral afirma terem
sido determinantes em sua poesia.
Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com
Le Corbusier. A poesia é uma composição. Quando digo composição, quero
dizer uma coisa construída, planejada – de fora para dentro. (...) Eu só
entendo o poético neste sentido. Vou fazer uma poesia de tal extensão, com
tais elementos, coisas que eu vou colocando como se fossem tijolos. É por
isso que eu posso gastar anos fazendo um poema: porque existe planejamento
(MELO NETO, 1996, p. 21).
Ana Cristina Cesar mostra o desejo de ruptura com essa poética, retomando
novamente o poema “Poética” de Manuel Bandeira, através da expressão “quero antes”
e elenca uma série de imagens provocativas, que vão, uma a uma, se opondo aos
conceitos concretistas do que deveria ser poesia. Em “a página atravancada de
abajures”, por exemplo, a poeta brinca com a página limpa e clara idealizada por João
Cabral de Melo Neto (e levada às últimas consequências pelos concretistas) que jamais
poderia ser atravancada, lotada, cheia de coisas e, ainda que os abajures possam
proporcionar luz, é uma luz indireta, velada, que mascara a realidade. E segue com
versos enigmáticos, metafóricos, sujos, excessivos e quase sem sentido, que poderiam
facilmente ser considerados “inúteis” do ponto de vista dos concretistas. Ana Cristina
Cesar proclama a sua preferência por aqueles que estão às margens: os bandos ilícitos,
os bastardos e os pecadores marginais; mostra-se contrária, portanto, ao purismo, à
limpidez e à leveza concretistas, aderindo, de certo modo, à poética dos marginais.
Note-se ainda que, no início da segunda estrofe, a relação com o poema de Bandeira é
modificada: não é mais “estou farto”, é “estou farta”, ou seja, a poeta retoma a
63
coloquialidade, abrindo espaço para a dicção feminina. E muito provavelmente a
característica mais marcante e indissociável de sua escrita presente nessa “33ª poética” é
o “plágio atroz”, uma vez que a poeta deixa explícitos em seus poemas referências,
versos e mesmo frases inteiras de outros escritores, como faz com Manuel Bandeira
neste poema. Assim, não é uma poética que rompe com a tradição, ao contrário da
poesia concreta, que tinha a pretensão de ser, de acordo com a primeira norma do seu
Plano-piloto, o “produto de uma evolução crítica de formas dando por encerrado o ciclo
histórico do verso” (CAMPOS, CAMPOS e PIGNATARI, 1975, p. 156), a poesia produzida
nos anos de 1970 relia e retomava os modernistas brasileiros e, talvez, se associarmos
este “plágio atroz” com o verso seguinte: “ratas devorando ninhadas úmidas”, possamos
pensar num antropofagismo, ainda que às avessas, já que devora aquilo que gera.
2.2. A TRADIÇÃO MODERNISTA E OS POETAS MARGINAIS
A retomada do Modernismo de 1922, enquanto tradição literária parece ser um
dos fortes pontos de união desta geração, que busca referências não apenas nos poemaspiada de Oswald de Andrade, mas também no uso do coloquial (da “língua errada do
povo”), nos poemas sobre o cotidiano, na falta de formalismo e de rigidez na poesia,
assim como na individualidade lírica dos poetas. É certo que o Concretismo apresenta
alguns pontos em comum com o Movimento Modernista – a começar por
caracterizarem-se como dois movimentos de vanguarda brasileiros no século XX
(ambos atuaram em grupo e com base em manifestos) – e que os concretistas não
abdicaram de todos os preceitos modernistas, mas fizeram um movimento com regras
rígidas incompatíveis com a liberdade pregada pelo Movimento Modernista, que tinha
por regra libertarem-se das normas, das gramáticas, da rima e da métrica. A geração de
64
1970 retoma essa busca de uma poesia mais livre e individual, que não é propriamente
uma inovação, é já uma tradição literária advinda do Modernismo.
E o fato é que nem a poesia desertou de sua tradição literária, nem o livro
perdeu sua função de veículo adequado, havendo mesmo, no presente
momento, em vários pontos do país, um extraordinário surto de poetas e
poesia com o desenvolvimento crescente das pequenas edições
autofinanciadas. Existe uma poesia brasileira nova e bem viva, e que agora
pode ser mais devidamente apreciada graças à antologia 26 poetas hoje
(CACASO, 2007, p. 45).
Essa concepção se opõe fortemente à noção dos poetas concretistas de que a
tradição do verso lírico havia acabado e de que a poesia teria chegado ao auge de sua
evolução com o Concretismo. A escolha por uma poética mais libertária, livre e
libertadora pode ser encarada, portanto, como uma espécie de reação aos tempos de
ditadura e censura, sem deixar de ser uma resposta aos concretistas. E, por ser um
“movimento” que ocorre essencialmente no Rio de Janeiro, enquanto o Concretismo
ocorre em São Paulo, a poesia marginal é vista como um divisor de águas, que distingue
não apenas os poetas da década de 1970 dos que os antecederam, mas que, a partir daí,
distingue a poesia carioca da poesia paulista:
Outro dia, fui perguntado numa entrevista sobre qual o motivo da grande
diferença entre a poesia paulista e carioca de hoje. Respondi que era a
Nuvem Cigana. Enquanto em São Paulo, desde a década de 1950, a
poesia, na sua vertente mais conhecida se centrou numa experiência
radical de linguagem que, em seu limite, formalizava as conquistas
expressivas das vanguardas do começo do século, no Rio de Janeiro a
poesia buscou absorver a palavra cotidiana, com as suas invenções e
desvios. Em outras palavras, em São Paulo a poesia tendeu para a elipse e
a fragmentação, se aproximando principalmente das artes plásticas e da
música erudita moderna, e no Rio de Janeiro, ao contrário, ela se
aproximou da prosa, do teatro e da música popular, absorvendo uma
estrutura mais narrativa e rítmica (COHN, 2007, p. 6).
Interessante como essa distinção entre a poesia concretista e a poesia marginal
reforça os estereótipos de que paulistas são mais rígidos, mais formais, mais eruditos,
enquanto cariocas seriam mais rebeldes, apresentariam comportamento mais desviante,
65
teriam maior ligação com a música popular. É bem provável que o retrato desses jovens
– cuja imagem foi fortemente absorvida por propagandas de vários tipos, como critica
Ana Cristina Cesar ao falar dos “malditos marginais hereges” e mesmo na televisão –
tenha influenciado a visão que o restante do país tenha do que é ser carioca. Ou seja, a
contracultura – ou ao menos uma parte dela, “vendável” – também acabou sendo
absorvida pela cultura de massas.
2.3. O “IMPULSO DE COLOQUIALIZAÇÃO” DE ANA CRISTINA CESAR
Flora Süssekind afirma, em Até segunda ordem não me risque nada, que, apesar
de não serem muitos os poemas-minuto de Ana Cristina Cesar, “o impulso de
coloquialização, por outro lado, é praticamente obrigatório em sua poesia” (SÜSSEKIND,
2997, p. 18), ou seja, afirma que há sim uma forte ligação com a sua geração no que diz
respeito à sua dicção, não apenas poética, mas também como tradutora, pois privilegia
“a diminuição das inversões e intercaladas […], a substituição de expressões mais
nobres por outras correntes” (SÜSSEKIND, 2007, p. 19). Flora Süssekind enumera alguns
poemas nos quais Ana Cristina utiliza-se especialmente de coloquializações; são
poemas que dialogam claramente com outros poetas, fazendo uma espécie de
empréstimo a estes outros poetas:
Não é de estranhar, nesse movimento, que Ana Cristina brinque,
ostensivamente, noutros textos, com a mesma tradição moderna da qual
toma emprestados coloquializações, teatralizações e monólogos dramáticos.
Como faz com Manuel Bandeira em “21 de fevereiro”, de Cenas de Abril,
impondo lâmina a mais aos seus “Belo belo belo, / tenho tudo quanto
quero”, convertidos num “Belo, belo. Tenho tudo que fere”. Como faz com
os desdobramentos do sujeito em Fernando Pessoa, num jogo rápido em
que a heteronímia, transformada em coisa terra-a-terra, sai do terreno da
lírica para o da anatomia: “Quisera dividir o corpo em heterônimos –
medito aqui no chão, imóvel tóxico do tempo”, lê-se em “Final de uma
Ode”. Ou como na mescla quase casual de “One Art”, de Elizabeth Bishop,
ao movimento de passar a limpo que orienta “Travelling”, de A teus pés
(SÜSSEKIND, 2007, p. 20).
66
Julgamos necessário nos estendermos nestes poemas para melhor compreender de
que forma essas coloquializações, teatralizações e monólogos dramáticos se dão e em
que medida abrem espaço para que se desenvolva uma voz feminina, em oposição,
como vimos falando, ao Concretismo, por exemplo. O primeiro poema citado por Flora
Süssekind, “21 de fevereiro”, como muitos dos poemas de Cenas de abril, tem a forma
que nos remete ao diário:
21 de fevereiro
Não quero mais a fúria da verdade. Entro na sapataria popular.
Chove por detrás. Gatos amarelos circulando no fundo.
Abomino Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um
modelo brutal. Fica boazinha, dor; sábia como deve ser, não tão
generosa, não. Recebe o afeto que se encerra no meu peito. Me
calço decidida onde os gatos fazem que me amam, juvenis,
reais. Antes eu era 36, gata borralheira, pé ante pé, pequeno
polegar, pagar na caixa, receber na frente. Minha dor. Me dá a
mão. Vem por aqui, longe deles. Escuta, querida, escuta. A
marcha desta noite. Se debruça sobre os anos nesse pulso. Belo
belo. Tenho tudo que fere. As alemãs marchando que nem
homem. As cenas mais belas do romance o autor não soube
comentar. Não me deixa agora, fera.
(CESAR, 2013, p. 36)
O poema apresenta uma data e, ao nos depararmos com dois dos versos mais
famosos do Hino à bandeira brasileira: “recebe o afeto que se encerra / em nosso peito
juvenil”, ainda que o segundo verso esteja alterado, ou melhor: coloquializado – uma
vez que é um poema em primeira pessoa, não um hino – nos remetemos à data histórica
e ao fato de que no dia 21 de fevereiro de 1945, na Segunda Guerra Mundial, houve a
Tomada do Monte Castelo. Episódio de efetiva participação da Força Expedicionária
Brasileira na Segunda Guerra, numa batalha contra os alemães e italianos que durou três
meses e que teve muitas baixas entre os “pracinhas” brasileiros (alguns inclusive
morreram de frio durante o rigoroso inverno europeu). E, numa espécie de brincadeira
ou jogo de palavras ocultas, a outra grande referência do poema é Bandeira, o poeta de
67
“Belo belo”. A alteração dos famosos versos de Bandeira (de “Belo, belo, belo / tenho
tudo quanto quero” para “Belo, belo. Tenho tudo que fere”) causa um estranhamento,
um certo incômodo, pois apresenta praticamente um sentido contrário ao do poema
original. Ao nos depararmos com os versos de Bandeira voltamos o olhar para o “não
quero” com que Ana Cristina abre o poema: “Não quero mais a fúria da verdade”, uma
vez que no poema de Manuel Bandeira está: “Não quero o êxtase nem os tormentos /
Não quero o que a terra só dá com trabalho”; no entanto, Ana Cristina adota,
entrecortando o poema, o tom prosódico de quem relata a compra de um par de sapatos
num dia de chuva.
Na frase seguinte os desdobramentos desta visita à sapataria se transformam e se
ressignificam: “Abomino Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um modelo
brutal”, abominar e amar no mesmo instante um dos escritores-símbolo do modernismo
parece nos remeter à “angústia da influência” de Harold Bloom 17: ao mesmo tempo em
que ama e tem Baudelaire como modelo, o abomina, pois a procura de um modelo não é
pacífica, faz-se através de sentimentos antagônicos. Ana Cristina faz referências
também aos contos de fada: A Gata Borralheira, O Pequeno Polegar e A Bela e a Fera.
Assim como Chacal, demonstra ter sido criada lendo (e ouvindo) essas histórias e as
coloca no mesmo patamar de Baudelaire ou Manuel Bandeira: todas a influenciam em
sua escrita.
Dessa forma, indo ao encontro de sua geração, Ana Cristina dessacraliza os
poetas eruditos e, mesclando elementos populares e prosódicos aos eruditos, tem o
mérito de poder ser lida tanto pelos acadêmicos quanto pelos jovens de sua geração (e
das seguintes): enquanto alguns leitores percebem as referências eruditas, outros
percebem as referências populares. Em meio a essas referências, faz uma observação
17
Referimo-nos aqui à teoria criada por Harold Bloom em seu livro A angústia da influência: uma teoria
da poesia (vide bibliografia).
68
curiosa: “As cenas mais belas do romance o autor não soube comentar”, que talvez
possa ser lida como uma crítica à crítica literária e às tentativas de “explicar” a
literatura, já que toda explicação, interpretação ou análise sempre será falha, sempre
apresentará lacunas, pois o texto literário – em última instância – resiste à paráfrase.
Já no segundo poema citado por Flora Süssekind, Ana Cristina Cesar referencia
e filia-se à tradição modernista portuguesa, especialmente à poesia de Fernando Pessoa
– lembremo-nos que a poeta afirma num de seus poemas que “a gente sempre acha que
é / Fernando Pessoa” (CESAR, 2013, p. 243). No poema intitulado “Final de uma ode” 18,
o que deveria ser um poema lírico é, no entanto, um poema narrativo e contemplativo:
“tiro as pernas do balcão de onde via um sol de inverno se pondo no Tejo”, remetendo a
um lugar talvez como um bar ou um café em Portugal, que pode ser Portugal físico ou o
lugar da tradição literária.
Final de uma ode
Acontece assim: tiro as pernas do balcão de onde via um sol de
inverno se pondo no Tejo e saio de fininho dolorosamente
dobradas as costas e segurando o queixo e a boca com uma das
mãos. Sacudo a cabeça e o tronco incontrolavelmente, mas de
maneira curta, curta, entendem? Eu estava dando
gargalhadinhas e agora estou sofrendo nosso próximo
falecimento, minhas gargalhadinhas evoluíram para um
sofrimento meio nojento, meio ocasional, sinto um dó extremo
do rato que se fere no porão, ai que outra dor súbita, ai que
estranheza e que lusitano torpor me atira de braços abertos
sobre as ripas do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera
dividir o corpo em heterônimos – medito aqui no chão, imóvel
tóxico do tempo.
(CESAR, 2013, p. 21)
18
O termo “ode” significa canção, como são as canções de Camões, por exemplo. É um poema estrófico,
mas os versos não têm todos a mesma medida, ou melhor, isso não é obrigatório. Para os antigos, era
poema alegre, comemorativo, convivial (de conuiuium, isto é, banquete). Era cantado (Píndaro) em honra
aos atletas que venciam as competições, e era uma espécie de contraponto da guerra (Horácio), isto é,
cantado na hora de descanso, para alívio dos males da guerra. O "poeta" da ode, justamente, bebe vinho,
para se livrar das inquietações, sejam amorosas, sejam da guerra (diferente do poeta elegíaco, que bebe
água, porque seu ofício é sofrer e lamentar o amor não realizado – se beber vinho, vai se curar das
inquietações e deixar de ser elegíaco).
69
Note-se o uso dos diminutivos no poema, que, especialmente no caso da palavra
“gargalhadinhas”, produz uma sensação de estranheza, de uma coisa meio ridícula
talvez, de ironia ou mesmo de deboche: “O uso do diminutivo parece estratégico para a
atmosfera de deboche característica da poesia de Ana C. Sabe-se que o diminutivo
costuma marcar afetividade na fala feminina, mas pode também ser interpretado como
infantilização” (BARBOSA, 1999, pp. 176-177). Há uma alternância de imagens que
sugerem contradições ou dualidades (sempre tão presentes na Literatura Portuguesa),
como na contraposição dessas “gargalhadinhas” e “dolorosamente dobradas as costas”,
mas a frustração por não ser Fernando Pessoa, por não transcender à matéria (“Quisera /
dividir o corpo em heterônimos”), traz o sentimento de “torpor” e paralisia: “medito
aqui no chão, imóvel / tóxico do tempo”.
Já o terceiro poema citado por Flora Süssekind, “Travelling”, seria uma mescla
de dois poemas de Elizabeth Bishop: “Uma arte” (“One art”) e “Questões de viagem”
(“Questions of travel”). Ana Cristina Cesar parece fazer uma composição com as suas
próprias traduções desses dois poemas e a primeira referência aos poemas de Elizabeth
Bishop está logo no título do poema, “Travelling”; além disso, Elizabeth Bishop tornase uma personagem do poema de Ana Cristina Cesar, o que deixa as referências
explícitas.
O poema “Questões de viagem” está no livro de mesmo nome, de 1965 (livro
que tem vários poemas escritos no Brasil), é um poema que nos remete a um road
movie, com o movimento de uma câmera móvel, como se a poeta fosse capaz de andar
dentro do poema, ou da natureza, imagens que Ana Cristina retoma: “A câmara em
rasante viajava. / A voz em off nas montanhas” (CESAR, 2013, p. 114), mostrando que o
olhar não é fixo e a perspectiva muda a cada instante. Há um deslocamento no tempo e
no espaço: uma viagem ao passado, um “corte” no plano-sequência, Elizabeth (Bishop)
70
está cuidando das plantas e escrevendo poemas em Petrópolis. E, a partir da citação
direta a ela – “Perder é mais fácil do que se pensa” – percebe-se que o poema nos
apresenta diversas relações ligadas a perdas. Há uma certa circularidade no poema, um
movimento de ir e voltar, que desconstrói a ideia de viagem como contínua, linear;
assim, a mediação com o cinema e a fotografia é explícita e, como no cinema, não há
necessidade de linearidade. Existem, portanto, no poema, três linguagens, por vezes
antagônicas: a visão mediada pela câmera, pela fotografia, e pela palavra. Identificamos
a voz da poeta, a voz de Elizabeth Bishop, a voz do tradutor, e uma voz em off. Há uma
espécie de disjunção entre voz e câmera, a voz que é “em off” ressoa nela, o corpo seria,
portanto, mais um instrumento de relação com o outro do que uma unidade. Ana
Cristina Cesar escreve, portanto, com mudanças de perspectivas, retomando também a
temática de “Uma arte”:
Travelling
Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”, dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. “É perigoso”,
ria a Carolina perita no papel Kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas três bebi um pouco
sem notar
como quem procura um fio.
Nunca mais te disse
uma palavra, repito, preciso alto,
tarde da noite,
enquanto desalinho
sem luxo
sede
agulhadas
71
os pareceres que ouvi num dia interminável:
sem parecer mais com a luz ofuscante desse mesmo
dia interminável.
(CESAR, 2013, p. 114)
O poema apresenta uma sequência fragmentada de fatos e acontecimentos, já
nos primeiros versos vemos que a casa não é um lugar de proteção, é mutável e
insegura: é preciso confirmar “a solidez dos cadeados”, mas, apesar da solidez dos
cadeados, “perder é mais fácil do que se pensa”. Há uma repetição quase obsessiva
associada à ideia de guardar, mesmo rasgar os papéis pode ter a conotação de guardar
para uma escritora, uma vez que podemos pensar no sentido de não compartilhamento:
ao rasgar os papéis a poeta guarda para si os seus poemas. Os papéis poderiam ser a
própria poesia, ou os poemas, papéis que “sobraram”, que não se encaixam onde
deveriam, podem ser também os papéis da burocracia, do cotidiano, dos “pareceres que
ouvi num dia interminável”.
Em alguns momentos este poema apresenta-se como se fosse só uma parte de
um diálogo, como numa carta, há uma interlocução dual: “nunca mais te disse uma
palavra” (grifo nosso). Essa relação dual está presente em todo o poema, e há uma
interpelação insistente e repetitiva, no desejo de ser ouvida: “Nunca mais te disse uma
palavra, repito”. Além da presença de uma segunda pessoa, há também outras
interlocuções: a voz em off, a voz de Elizabeth, a voz de Carolina, a voz do tradutor,
preciso e simultâneo – preciso na fala, mas suas mãos tremem, inseguro. A instabilidade
e a perda rondam esse poema: “É perigoso”.
72
2.4. ANA CRISTINA CESAR, POESIA MARGINAL E EXPERIÊNCIA URBANA
O Rio de Janeiro dos anos de 1970 foi espaço de grande efervescência cultural,
especialmente poética, uma década marcada pelo endurecimento do regime militar, pelo
surgimento de grande número de poetas e pelo “desbunde” da juventude. Desde então o
Rio de Janeiro caracteriza-se por ser um espaço urbano, vulgar e muitas vezes caótico; a
poesia produzida a partir dessa década tem íntima relação com a cidade e com os
sentimentos contraditórios gerados na “cidade maravilha, purgatório da beleza e do
caos”, como bem sintetizou Fausto Fawcett, na letra da música Rio 40 graus, do início
da década de 1990.
Na escrita de Ana Cristina Cesar nos depararemos com diversos espaços
urbanos, com referência – nominal inclusive – a várias cidades: Rio, São Paulo,
Brasília, Paris, Petrópolis... Mas, mais importante do que nomeá-las é o fato de Ana
Cristina Cesar fazer do espaço urbano matéria e pano de fundo para seus poemas. Num
poema sem título, do livro A teus pés, perceberemos como esse urbano se faz presente
em sua poesia:
é muito claro
amor
bateu
para ficar
nesta varanda descoberta
a anoitecer sobre a cidade
em construção
sobre a pequena constrição
no teu peito
angústia de felicidade
luzes de automóveis
riscando o tempo
canteiros de obras
em repouso
recuo súbito da trama
(CESAR, 2013, p. 103)
73
A cidade (em construção) é indissociável do poema, e “em construção” é
justamente o que traz à tona o traço urbanista, não como projetos, mas como mutação,
como algo que interfere na vida dos indivíduos justamente por ser sempre um processo,
por não ter finitude. De acordo com Giulio Carlo Argan, em História da arte como
história da cidade 19, para quem o campo de atuação do urbanismo seria toda a esfera
social, o existencialismo de Heidegger e de Sartre, assim como o materialismo de Marx,
só existem por causa do ambiente físico concreto, opressivo e repressivo das grandes
cidades, pois o indivíduo passa a ser insignificante perante a grandiosidade desses
espaços. E talvez possamos pensar do mesmo modo: que a poesia marginal surgida
nesse Rio de Janeiro dos anos de 1970 só poderia ter surgido nesse espaço urbano
peculiar, que une o despojamento do balneário à rigidez e ao ritmo das grandes cidades,
num momento de opressão e repressão instituídas pela ditadura militar, ou seja, num
momento em que essa rigidez ultrapassa o ambiente físico e é (i)legalmente constituída.
Nos projetos para as cidades do futuro, a cidade seria infinitamente grande, enquanto o
indivíduo é infinitamente pequeno, e é assim que percebemos o sentimento constrito no
peito – entre as “luzes de automóveis / riscando o tempo” (cidade em movimento
incessante) e os “canteiros de obra / em repouso” (cidade em suspensão) –, como um
sentimento contraído (“recuo súbito da trama”) diante de uma cidade em expansão.
Com as transformações nas cidades, ocorridas após a época industrial, a tecnologia teria
tomado o lugar do mito e a cidade (que havia sido lugar de proteção) torna-se o lugar da
insegurança, do medo, da angústia e do desespero. A cidade se faz presente ao longo de
todo o poema, no primeiro verso: “é muito claro”, a clareza pode ser de um pensamento
19
Argan afirma que urbanismo tem um componente científico (porque efetua análises sobre a condição
demográfica, econômica, produtiva, sanitária e tecnológica), um componente sociológico, um
componente histórico e um componente estético, organizando-os num sistema em que a resultante é um
projeto que tem em vista a mudança de uma situação.
74
ou de uma fala que tenha “amor” por interlocutor, mas pode ser também da claridade da
cidade moderna, na qual não há mais noites escuras (e na qual nem sempre é possível
saber se há lua), afinal está “a anoitecer sobre / a cidade” e neste caso é possível que o
amor seja mesmo o sentimento que “bateu” e que é “para ficar”. Ou seja, há uma
constatação de que se ama, mas é uma constatação consciente de sua pequenez diante
do mundo e mesmo de que o amor não é um sentimento de plenitude, é também um
sentimento pequeno e angustiante: “sobre a pequena constrição / no teu peito / angústia
de felicidade”.
Observemos ainda o espaço da varanda, que, para Gilberto Freyre, no Brasil,
constitui um lugar “entre”, uma espécie de fronteira entre o público e o privado, uma
vez que pertence à casa, mas localiza-se do lado de fora desta; é, possivelmente, um
espaço em que há maior possibilidade de perceber-se pequeno diante do mundo. Há
outro poema com a presença da varanda que parece reportar a este mesmo sentimento:
Minha boca também
está seca
deste ar seco do planalto
bebemos litros d’água
Brasília está tombada
iluminada
como o mundo real
pouso a mão no teu peito
mapa de navegação
desta varanda
hoje sou eu que
estou te livrando
da verdade
(CESAR, 2013, p.100)
Note-se que há a recorrência também de “no teu peito”, assim como no título do
livro, A teus pés, em que Ana Cristina Cesar toma o outro como referencial,
característica essencial de sua escrita, como afirma em depoimento de abril de 1983,
publicado dez anos depois em Escritos no Rio. Adriana Maria de Abreu Barbosa, em
75
ensaio publicado em 1999, refere-se a essa fala “outro-centrada”, ou seja, centrada no
outro, não em si mesma:
Nesse falar mais femininamente do que masculinamente destaca-se na nova
dicção de A teus pés. Uma das principais marcas desta dicção está na questão
da fala outro-centrada feminina, sugerida pelo título, materializada
esteticamente e ideologicamente nos poemas (BARBOSA, 1999, p.181).
Assim, uma das leituras suscitadas pela própria poeta é a de que escreve para um
interlocutor, como se em cartas ou mesmo num diário, em que o outro, ainda que
forjado, é quem norteia o poema: “mapa de navegação” – ainda que este outro faça que
sua fala fique cortada e incompleta, afinal a carta, assim como o diário, constitui apenas
a metade de um diálogo. E agora temos impressões de alguém na Brasília real, que se
opõe à Brasília ideal da qual falávamos, ainda que seja aproximada da realidade por
comparação: “como o mundo real”, é Brasília “tombada” por sua arquitetura ímpar, que
não deve ser modificada aleatoriamente pelos que nela habitam. Mas há nessa cidade
real o incômodo provocado pelo que não é urbano, pelo que não foi pensado ao projetarse a cidade: o ar seco do planalto (apesar de o lago Paranoá ter sido criado devido ao
clima seco de Brasília, sem, no entanto, resolver o problema), a boca seca provocada
por este e a necessidade de hidratar-se, a percepção de uma necessidade profundamente
fisiológica parece que é algo que não deveria existir numa cidade tão ideal quanto
Brasília 20. Aliás, é notável que o fato de Brasília ser habitada provoque tanta estranheza
– Clarice Lispector, na crônica “Nos primeiros começos de Brasília”, que está em seu
livro A Descoberta do Mundo, expõe justamente essa estranheza:
Brasília é construída na linha do horizonte. – Brasília é artificial. Tão
artificial como deveria ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo
foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. [...]
Brasília ainda não tem o homem de Brasília (LISPECTOR, 1999, pp. 292-293).
20
O que faz pensar na decepção relatada por várias pessoas por não ser Brasília uma cidade toda branca,
mas uma cidade com uma terra vermelha que toma conta das roupas, dos prédios e das paredes.
76
Brasília apresenta a dualidade, que segundo Marshall Berman, percorre a
modernidade: enquanto a cidade moderna dá lugar ao progresso, à nova arquitetura e
aos cada vez mais potentes veículos, o homem comum deixa de ter espaço para
caminhar a pé e para encontrar-se com o seu semelhante:
Vista do ar, Brasília parecia dinâmica e fascinante: de fato, a cidade foi feita
de modo a assemelhar-se a um avião a jato tal como aquele do qual eu (e
quase todas as outras pessoas que lá vão) a vemos pela primeira vez. Vista do
nível do chão, porém, do lugar onde as pessoas moram e trabalham é uma das
cidades mais inóspitas do mundo. [...] a sensação geral que se tem –
confirmada por todos os brasileiros que conheci – é a de enormes espaços
vazios em que o indivíduo se sente perdido, tão sozinho quanto um homem
na Lua. Há uma ausência deliberada de espaços públicos em que as pessoas
possam se reunir e conversar, ou simplesmente olhar uma para a outra e
passar o tempo. A grande tradição do urbanismo latino, em que a vida urbana
se organiza em torno de uma grande praça, é rejeitada de modo explícito
(BERMAN, 2008, pp.12-13).
Quando se discute arquitetura e urbanismo moderno, é quase impossível não falar de
Brasília, cidade criada por decreto e que, de certa forma, já nasceu tombada, talvez por
isso haja essa sensação de que a cidade até possa se assemelhar ao mundo real, embora
seja outra coisa: talvez uma cidade lunar.
No primeiro poema de A teus pés encontraremos o sentido maior de que Ana
Cristina Cesar é uma poeta urbana, pois a cidade em detalhes impregna o poema, mas
de maneira muito peculiar, dado que é uma cidade como que “filtrada” por uma
ambientação cênica, a cidade não é apenas o cenário para uma ação, é a própria ação.
Talvez seja mesmo o filme de ação. Em seus primeiros versos teremos uma espécie de
roteiro de filme noir:
Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando
uma informação difícil. agora silêncio; silêncio eletrônico,
produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das
asas batendo freneticamente.
(CESAR, 2013, p. 77)
77
Há uma trilha sonora, não mais uma música ambiente, e essa música é a de um
“piano no bordel”, algo que será sempre imaginado como a frase não dita mais famosa
do cinema: “Play It Again, Sam!”, de Casablanca. Mesmo o silêncio é “eletrônico”, isto
é, o silêncio em oposição a falas ou à música, mas não o silêncio desprovido dos sons –
algo como o som do “sintetizador” ligado, do projetor do cinema ou o som do ar
condicionado, talvez – produzido da mesma maneira artificial que o som ameaçador
“das asas batendo freneticamente”. E a roteirista percebe a necessidade de “Apuro
técnico”, já que são necessários recursos tecnológicos e bons profissionais para que o
filme possa ser rodado de maneira a convencer o espectador das emoções:
Apuro técnico.
Os canais que só existem no mapa.
O aspecto moral da experiência.
Primeiro ato da imaginação.
Suborno no bordel.
(CESAR, 2013, p. 77)
Mas o roteiro transforma-se no fazer poético: “Eu tenho uma ideia. / Uma frase
em cada linha. Um golpe de exercício” (CESAR, 2013, p. 77), afinal uma das poucas
coisas que define, por assim dizer, a poesia hoje é a presença de uma frase em cada
linha, há muito que os versos são livres. E Fernando Pessoa, o do poema
“Autobiografia”, une-se a “Papai Noel e os marcianos”, a “Billy the Kid” e a “Drácula”,
figuras igualmente importantes na formação do imaginário pessoal da poeta. Levar
mitos e personagens da cultura de massas e da televisão para os poemas é uma
característica comum aos poetas dos anos de 1970, a partir daí Drácula ou Billy the Kid
tornam-se “cults”, assim como outros filmes e personagens menosprezados pelos
intelectuais das gerações de 1960 ou 1970, ainda que tenham crescido assistindo a
faroestes. Note-se que, da mesma forma, palavras e expressões em inglês integram o
78
poema, o cinema e a cultura de massas. Ana Cristina Cesar afirma, no ensaio “Nove
bocas da nova musa”, de 1976 – através das palavras de José Guilherme Merquior –,
que a poesia de sua geração caracteriza-se pelo estilo “mesclado”, ou seja, por misturar
referências populares e clássicas, configurando-se assim uma tensão entre erudito e
popular:
Para Merquior a nossa poesia mais recente e mais radical caracteriza-se
primeiramente pelo “estilo mesclado”, ou seja, retoma a lição moderna,
inaugurada por Baudelaire, que abole a distinção rígida de estilos, misturando
a visão poética problematizante com temas e expressões vulgares, criando
assim uma tensão com esse convívio do sério e do coloquial. O tom
estetizante, muito fino e sempre impecável não é mais a marca definidora e
inevitável do verso (CESAR, 1999a, p. 163).
No entanto, Ana Cristina Cesar ressalta que, apesar da falta de compromisso
com uma escrita “solene”, isso não significa necessariamente uma falta de rigor por
parte dos poetas contemporâneos a ela:
O poeta pode representar, fingir descaradamente; não tem mais um
compromisso com uma Verdade, não se propõe simbolizar um inefável e
preexistente sentir ou existir. Com isso fica com mais mobilidade, sai e entra
mais à vontade, ainda mais que se encontra desobrigado de solenizar o seu
verso. Uma das marcas desta nova poesia é o seu não compromisso com o
metafísico, o que não implica desligamento ou falta de rigor (CESAR, 1999a,
p. 165).
Voltando ao poema, há ainda a alternância de emoções e as ideias comuns,
porque presentes no imaginário de todos, são percebidas, mas continuam presentes.
Agora parece que não há mais um roteirista, mas um diretor, que dá ordens:
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu
amor de ontem.
Gertrude: estas são idéias bem comuns.
Apresenta a jazz-band.
Não, toca blues com ela.
79
Esta é a minha vida.
Atravessa a ponte.
É sempre um pouco tarde.
Não presta atenção em mim.
(CESAR, 2013, p. 77)
E o poema todo agora está permeado por cenas da cidade, entrecortadas por
observações de alguém que vive, sente, imagina e pensa a cidade, especialmente através
memória: “Outra cena da minha vida” (CESAR, 2013, p. 77). Assim, a modernidade do
cinema exalta a individualidade (da minha vida) e ao mesmo tempo faz do ser humano
um “condutor de veículos”, que podem ser automóveis, barcos ou táxis, mas podem ser
também o cinema ou a palavra. Palavra que transforma a cidade, pois escrever sobre a
cidade é uma maneira de criar uma nova cidade, é superpô-la a outras cidades. O
cinema tem o caráter emergencial da sociedade moderna, da sociedade do espetáculo,
que é expresso pelas imagens, pelo que não precisa ser dito, pelo que é de compreensão
imediata e de curta duração.
2.5. ANA CRISTINA CESAR: DOS ANOS DE CHUMBO AO SÉCULO XXI
No entanto, apesar das constantes semelhanças que a situam em sua geração,
Ana Cristina Cesar destoa da dicção irreverente que a caracterizou, uma vez que destoa
da dicção irreverente que caracterizou a sua geração, tem um tom mais crítico e irônico,
mas, sem dúvida, podemos perceber que foi uma poeta que pensou essa geração e a
poesia produzida por aquela “geração de poetas”:
A nova poesia aparece aqui marcada pelo cotidiano, ali por brechtiano rigor.
Anticabralina porém, não hesita em introduzir no poema a paixão, a falta de
jeito, a gafe, o descabelo, os arroubos, a mediocridade, as comezinhas perdas e
vitórias, os detalhes sem importância, o embaraço, o prato do dia, a indignação
política, a depressão sem elegância, sem contudo atenuar a sua penetração
80
crítica. Tudo pode ser matéria de poesia. Sem as obrigações iconoclastas do
modernismo, a poesia “pode dizer tudo” (CESAR, 1999a, p. 165).
É notório que Ana Cristina Cesar aproprie-se das suas leituras fazendo
referências ou mesmo citando literalmente: palavras, versos e frases inteiras de outros
autores, sem citar a sua fonte – embora um leitor atento seja capaz de identificar alguns
desses autores, tais como: Manuel Bandeira, Charles Baudelaire, T. S. Eliot, Walt
Whitman, Elisabeth Bishop, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade –,
demonstrando que não é uma “poeta que não lê”. Muitas vezes Ana Cristina Cesar é
vista como uma espécie de gênio, e, para contrapor a erudição de Ana Cristina Cesar,
Maria Lúcia de Barros Camargo utiliza depoimento “anti-intelectual” de Chacal para a
revista Escrita em 1977 21:
Estou nesta luta de poesia desde 71, quando lancei o primeiro livro
mimeografado, Muito Prazer. Antes eu não escrevia não. Inclusive eu lia
pouco, muitos contos de fadas, Monteiro Lobato. Gostava de escrever
redação para a escola, mas hábito assim de escrever a troco de nada não tinha
não. De repente começaram a escrever mais […]. Aí fiz Muito Prazer, as
pessoas em volta começaram a gostar, deram força. Um amigo meu, o
Guilherme Mandaro, que também é poeta do grupo, dava aula num curso de
vestibular e tinha acesso a um mimeógrafo. Foi ele que deu força pra mim e
pro Charles, aí nós publicamos nossas coisas em mimeógrafo. Fizemos cem
exemplares, eu o Muito Prazer e o Charles Travessa Bertalha 11. Saímos
vendendo em porta de teatro, quer dizer, mais distribuindo do que vendendo,
né? Porque essa história de vender em porta de teatro virou lenda, nunca se
vendeu em porta de teatro e cinema. Bem, eu tive uma força muito grande
porque o livro caiu na mão do Waly Sailormoon, qua gostou bastante e botou
na coluna do Torquato, na Última Hora. Depois ele mandou pro Hélio
Oiticica e o Hélio escreveu e saiu publicado (CAMARGO, 2003, p. 30-31).
Observe-se que o depoimento é dado por Chacal aos 26 anos de idade, a respeito
do seu primeiro livro, publicado quando o poeta tinha 20. Chacal, ao que parece, tinha
por referências literárias apenas livros infanto-juvenis, ou seja, Chacal é um contraponto
à “menina prodígio”, escritora precoce, estudante da faculdade de letras da PUC,
envolvida desde cedo com a escrita de crítica literária. Ana Cristina Cesar, porém,
tentará se desvencilhar do “estigma” de gênio, assumindo “a pose antiliterária ostentada
21
Escrita nº 19, São Paulo, abril de 1977.
81
por seus amigos poetas da chamada geração marginal” (LEONE, 2008, p. 32). Em
entrevista de 1978, a Carlos Alberto Messeder Pereira, ela diz:
Eu era assim tipo… eu fui uma “menina prodígio”. Esse gênero, assim, aos
seis anos de idade faz um poema e papai e mamãe acham ótimo (…) A
literatura ficou assim associada a tudo isso, quer dizer, a uma coisa
excepcional, a uma coisa que te dá prestígio, a um artifício para você
conquistar pessoas (…) um dos desbundes, também é perder essa ideia de
que eu era uma escritora (CESAR, apud LEONE, 2008, p. 33).
Ana Cristina Cesar se identificava com aquela juventude, participava dos
eventos promovidos pelos grupos de poetas da sua geração. Faz menção numa de suas
cartas à Cecília Londres (datada de 14 de maio de 1976), por exemplo, a um evento do
Nuvem Cigana, coletivo de poetas que marcou a contracultura carioca:
Hoje vem no jornal que o Almanaque Biotônico, publicação deles (o grupo se
chama Nuvem Cigana, e no carro-chefe vem Charles, Chacal e Bernardo), foi
apreendido por ordem do ministro da justiça. […] Cacaso não abriu a boca,
mas ouvia de olhos bem abertos. É engraçado estar participando ao vivo da
“história literária” (pretensão?). Helô está com medo que a antologia seja
também apreendida (CESAR, 1999 b, p. 98).
Ou seja, Ana Cristina Cesar estava presente aos acontecimentos e nos debates de
seu tempo, tanto que foi uma das poetas presentes na conversa de 1976, publicada
originalmente na revista José, a respeito de 26 poetas hoje, da qual participa (com
presença de Heloísa Buarque de Hollanda, Geraldo Eduardo Carneiro e Eudoro
Augusto, além do conselho editorial da revista: Luiz Costa Lima, Sebastião Uchoa Leite
e Jorge Wanderley), afirmando que a geração tem esse “traço anticabralino” como
ponto em comum; além disso, a poeta sai em defesa da poesia de sua geração:
CRISTINA – Acho que chegamos, no geral, a algo…
HELOÍSA – No mínimo, algo de retrato de geração…
VÁRIOS – O que provocou o aparecimento da antologia.
JORGE – Você tocou também, logo no começo, no problema da qualidade dos
poemas. Realmente na antologia, há algumas coisas boas, algumas muito
boas, e algumas abaixo da crítica.
CRISTINA – Discordo. Não há coisas abaixo da crítica, não.
(FERRAZ, 2013, p. 147)
82
Heloísa Buarque de Hollanda e Cacaso defendem que 26 poetas hoje apresenta o
retrato de uma geração – uma geração com uma enorme profusão de poetas, num
fenômeno que Cacaso chama de “surto de poetas” – e que, apesar das particularidades
de cada um, apresenta uma dicção própria da época, nova em relação ao que vinha
sendo feito no Brasil desde 1945, em diálogo com a poética da primeira geração
modernista. Heloísa Buarque de Hollanda chama a atenção para “a desierarquização do
espaço nobre da poesia – tanto em seus materiais gráficos quanto no plano do discurso”
(HOLLANDA, 2007, p. 10). Obviamente é preciso levar em consideração o delicado
momento histórico brasileiro: a ditadura militar pós-AI-5, que durou mais de uma
década, abarcando praticamente toda a década de 1970, período também conhecido
como “anos de chumbo”.
É impossível contudo abordar a nova poesia sem deixar de levar em conta o
momento de sua produção, a marca de frustração que o momento lhe impõe.
[…] a nova poesia parece prematuramente amadurecida, parece dizer adeus
aos sonhos da juventude, sem com isso deixar-se empedernir nem abdicar
quando necessário de ácido humor. Tudo pode ser dito no poema, mas na
realidade nem tudo pode ser dito (CESAR, 1999a, p. 166).
A ditadura militar brasileira num primeiro momento não atuou tão fortemente
sobre as manifestações culturais, o teatro, o cinema, a música e os artistas. Segundo
Cacaso, tínhamos um regime de direita convivendo com uma cultura de esquerda, mas a
partir de 13 de dezembro de 1968, com a instauração do AI-5, a situação mudou
radicalmente:
O cinema e o teatro eram presenças vivas e atuantes; a música popular veria o
nascimento do tropicalismo; uma legião de jornalistas, intelectuais, artistas,
professores, gente do clero, sociólogos, economistas etc., sustentavam um
nível de participação e combatividade em suas ideias e seus métodos que ia
refletindo e ao mesmo tempo incentivando o radicalismo político que se
alastrava no meio estudantil. Essa cumplicidade da cultura com o movimento
estudantil seria o seu pecado mortal, e em dezembro de 68 veio o castigo.
Nossa vida cultural, cheia de viço e ideais, foi, do dia para a noite, reduzida a
escombros. […] A universidade sofre expurgos; a censura prévia e de outros
tipos atingem a vida e a obra de músicos, encenadores, cineastas, escritores,
pesquisadores, imprensa. Muitos procuram ou são obrigados ao exílio; os que
ficam estão sob cerrada vigilância ou simplesmente preferem o silêncio. O
83
movimento estudantil é destroçado e posto fora da lei, induzindo a melhor
porção da juventude brasileira a uma despolitização gradativa e segura das
paixões e das ambições (CACASO, 1997, pp. 20-21).
E é neste cenário que surgem os “poetas marginais”, usando os mimeógrafos –
também usados pelos militantes dos partidos de esquerda para panfletagem – para
produzir livrinhos que eram vendidos em lugares como bares e portas de cinemas.
[A produção poética] embora surpreendentemente intensa e viva dentro
da situação política atual, tem sido imprimida e distribuída
marginalmente, em reduzidas edições custeadas pelo autor, que passam de
mão em mão ou são vendidas em raras livrarias. […] Quase se pode dizer
que há mais poetas que leitores de poesia. Não há vazio cultural nem falta
de matéria para a criação poética: há sim obstáculos graves à divulgação
em maior escala (CESAR, 1999a, p. 162).
É também neste cenário que muitos jovens desistem da luta armada e dos ideais
políticos e “desbundam”: tornam-se hippies, fazem experiências com drogas, exercem a
liberdade sexual. As mudanças comportamentais iniciadas na década de 1960 estão no
auge quando Ana Cristina Cesar surge como poeta neste Rio de Janeiro da década de
1970; segundo ela, ainda é possível “revolucionar o corpo e o comportamento” (CESAR,
1993, p.125); apesar da censura, da ditadura e da opressão, muitos jovens não querem
combater o inimigo politicamente, simplesmente “caem fora”. E, com esse desejo de
revolucionar o próprio comportamento individualmente, modificam-se muitos
comportamentos das sociedades, a liberdade de atitudes estava presente na juventude de
muitas das grandes cidades do mundo:
um novo grupo de jovens artistas começa a expressar sua inquietação.
Desconfiando dos mitos nacionalistas, do discurso militante de esquerda,
percebendo os impasses do momento cultural brasileiro e recebendo
informações dos movimentos culturais e políticos da juventude que
explodiam nos EUA e na Europa – os hippies, o cinema de Godard, os
Beatles, a canção de Bob Dylan, maio de 68 na França, etc. – esse grupo
passa e desempenhar um papel fundamental não só para a música popular,
mas para toda produção cultural da época, com consequências que vêm até
nossos dias (CESAR, 1999a, p. 214-215).
84
Algumas das consequências observadas por Ana Cristina Cesar permanecem até
os nossos dias, ou seja, as mudanças comportamentais de sua geração ecoam hoje de
forma mais visível do que a da geração do início dos anos de 1960. As mudanças do papel
da mulher acontecem com uma projeção intensa – se as transformações da esquerda
tradicional ficaram datadas e foram rapidamente abandonadas, as transformações
comportamentais ficaram de herança para as gerações seguintes. Segundo Ana Cristina
Cesar, no Brasil, essas mudanças passam a ter maior visibilidade a partir do advento do
Tropicalismo, com suas transformações estéticas que vão da música aos cabelos
compridos dos rapazes. Nas palavras da própria Ana Cristina Cesar sobre os jovens
tropicalistas:
Usando cabelos longos, roupas extravagantes, atitudes inesperadas, a crítica
política dos jovens baianos passa a ter uma dimensão de recusa de padrões de
bom comportamento, seja ela artística ou existencial. Esse dado é uma
novidade importante em relação ao modo de fazer política da esquerda
tradicional, em que a prática revolucionária deixa de lado os aspectos
existenciais e de comportamento, fazendo-se grave, séria, sagrada, conceitual
e deserotizada (CESAR, 1999a, p. 214).
Curiosamente, os pais de Ana Cristina Cesar estiveram ligados aos movimentos
políticos nos anos de 1960 e seria possível imaginar que essa contestação ao modo de
fazer política da esquerda tradicional seja também uma forma de contestar os pais e a
geração imediatamente anterior à sua, que levava a política muito a sério, sacrificava a
vida pessoal em prol de uma causa e ditava normas de conduta. No entanto, Ana
Cristina Cesar não enaltece a sua geração cegamente, é bastante crítica em relação à
integração da estética marginal aos valores econômicos e mercadológicos. Em um artigo
intitulado “Malditos marginais hereges” (publicado em novembro de 1977), a respeito da
85
coletânea de contos “Malditos escritores!”, do primeiro semestre de 1977 e que atingiu
grande número de exemplares vendidos, 25 mil, Ana Cristina problematiza a questão:
Desde a capa, os escritores são adjetivados com garrafal MALDITOS que lhes
anuncia o status marginal. Todos têm o 3x4 datado ali na frente, caras
perigosas como que fichadas na polícia. Chamada repreensiva ecoa a bronca
que todos julgam merecer [...] Os adjetivos de maldição e de marginalidade, os
retratinhos e as feias broncas não foram às bancas para atrair repressão. Mas
para embalar ideologicamente o produto a ser vendido (CESAR, 1999a, p. 205).
A arte teria perdido, portanto, o espírito de inovação e de ruptura, atendendo às
aspirações da elite e aos modismos. A juventude deixou de ser revolucionária e
subversiva e passou a integrar-se nas exigências da produção industrial e da economia.
As mudanças comportamentais da geração de 1970 puderam ter continuidade, pois os
seus valores puderam ser “embalados” pela moda, pela cultura e até mesmo por estilos
de vida – nos cursos de meditação, restaurantes vegetarianos ou lojas de produtos
naturais, por exemplo –; o que seria impossível de acontecer com os ideais da geração
que a antecedeu, afinal de contas, possuíam
ideologia
essencialmente
comunista.
Ironicamente, a própria Ana Cristina Cesar e
sua imagem apresentam-se hoje numa linda
embalagem para a sua poesia: a edição de
Poética, livro com a reunião de seus poemas
lançado no final 2013, traz uma já famosa
fotografia da poeta usando óculos escuros, a
fotografia está colorida em neon e azul,
numa referência à arte pop. O livro chama a
atenção não só por ser um objeto de fetiche,
mas também pelo fato de a própria Ana
Cristina Cesar ter-se tornado objeto de fetiche, geralmente a primeira referência que se
86
tem a ela é o fato de ser uma “poeta suicida”, a primeira frase da apresentação do livro,
aliás, realça a sua morte: “Ana Cristina Cesar morreu há trinta anos” (FREITAS FILHO,
2013, p. 7). Mas não é uma poeta suicida qualquer: poeta, mulher, moderna, linda,
inteligente, lésbica ou bissexual, reconhecida como “a melhor poeta de sua geração”
(ainda que a maioria das pessoas desconheça completamente os
outros poetas dessa geração). No entanto, ainda em 1981, Heloísa Buarque de Hollanda
percebe que essa personagem-poeta-mulher-moderna não era tão plana quanto poderia
parecer à primeira vista:
Trajando knickers amarelo, sandálias chinesas, cabelo punk, com diploma de
Masters os Arts em tradução literária from Essex, e um livro editado em
Londres, acaba de retornar ao Brasil Ana Cristina Cesar. Pelo desempenho
visual não deixa margem à dúvida: trata-se do que se convencionou chamar
de uma mulher moderna, independente, bem-sucedida. No livro, um título
que desconcerta esta imagem: Luvas de pelica (HOLLANDA, 2013, p. 441).
Ana Cristina Cesar, parodoxalmente, é vista também como ícone de
feminilidade; seria, portanto, uma mulher que, por ser moderna, apresentaria um
conflito entre a tradicional feminilidade e as demandas feministas – de um feminismo
de segunda vaga, que lutava pela emancipação da mulher e por direitos: ao corpo, ao
divórcio, ao trabalho, ao aborto, à liberdade sexual – em voga nas décadas de 1970 e
1980. Assim, poderíamos pensar nos conflitos de uma mulher que se via obrigada a agir
como uma mulher moderna, ainda que, secretamente, almejasse a uma feminilidade
quase romântica. E é nessa linha que normalmente lemos o seguinte poema: “sou uma
mulher do século XIX / disfarçada em século XX” (CESAR, 2013, p. 247). Mas pode ser
possível pensar numa leitura que vai na direção contrária e que tenhamos aqui não tanto
uma autocrítica quanto uma crítica à situação da mulher no século XX, no qual talvez as
conquistas das mulheres ainda não sejam suficientes para que possamos deixar de lado a
87
luta por direitos, pois as mulheres ainda são forçadas a lutar por uma igualdade que não
deveria ser sequer questionada. Talvez haja uma crítica aí ao fato de que lutar pelo
direito à não-discriminação pode não ser muito diferente de lutar pelo direito ao voto,
como faziam as sufragistas do final do século XIX.
Numa outra vertente de leitura, Ana Cristina Cesar pode ser considerada, hoje,
um ícone contra a opressão da mulher, sua obra é muitas vezes lida como uma
transgressão feminina à dicção masculina predominante:
Femininamente tem, por obviedade, um “masculinamente” que lhe é opositor
e corrobora para o delinear de um acordo tácito sobre gêneros. Acordo este
que mesmo, ou sobretudo, na transgressão será evocado para ser
desconstruído. É assim que, por oposição, escrever/falar masculinamente
significa fazê-lo sem desvios, com objetividade, centrado na clareza da
mensagem e não no interlocutor. O estilo masculino seria então caracterizado
por mensagens claras e impessoais (BARBOSA, 1999, pp. 173-174).
Para a sua geração os estados de censura são reais, mas a interdição à fala
feminina, ainda que simbólica, antecedia a ditadura. Ana Cristina Cesar afirma ser
necessário “colocar-se como mulher”, pois colocar-se como mulher é uma das questões
centrais do movimento feminista, movimento que encontra maior espaço em sociedades
essencialmente urbanas, que têm a liberdade de expressão, de pensamento e de
comportamento no cerne de sua ideologia. E, apesar da ditadura, da censura e da
opressão, a liberdade de expressão, de pensamento e de comportamento estavam no
cerne da ideologia dos jovens da década de 1970, que acreditavam na necessidade de
expressão individual e buscavam maneiras de fazer isso apesar da impossibilidade real
de poder dizer tudo.
88
3. ANA LUÍSA AMARAL: ESCRITA NUMA LÍNGUA NOVA, EM GRAMÁTICA PRÓPRIA
Ao nos depararmos com a presença da tradição literária na obra de Ana Luísa
Amaral, verificaremos que a autora lida com a questão de uma maneira um tanto
peculiar, pois ao mesmo tempo em que se filia a uma tradição estritamente masculina, a
do “cânone literário”, subverte este cânone, ao criar o seu próprio cânone, no qual
escritoras mulheres têm a mesma importância que escritores do sexo masculino. Neste
sentido, a observação de Elaine Showalter a respeito das teorias da influência literária
numa escrita de mulher nos parece bastante pertinente:
As actuais teorias da influência literária têm também de ser testadas em relação
à escrita da mulher. Se o texto de um homem, como afirmaram Bloom e Said,
pertence a um pai, então, o texto de uma mulher é não só pertença de uma mãe,
mas de uns pais; confronta-se com precursores paternos e maternos e tem de
lidar com os problemas e as vantagens de ambas as linhas das quais é herdeiro.
Em A Room of One`s Own, Woolf afirma que “uma mulher, ao escrever, pensa
o passado através das suas mães”. Mas uma mulher, ao escrever, vai
inevitavelmente pensar o passado através de seus pais também; só os escritores
do sexo masculino conseguem esquecer, ou silenciar, metade do seu
parentesco. (SHOWALTER, 2002, pp. 71-72)
Desse modo, ao mesmo tempo que se remete a Camões, Fernando Pessoa ou
Shakespeare, a autora se remete a Emily Dickinson, Sylvia Plath e Maria Teresa Horta.
Observamos que as críticas mais severas à formação de um “cânone literário”
consideram que o proposto cânone é ditado sempre por aqueles que estão numa posição
privilegiada e que perpetuam essa posição mediante suas escolhas. Por exemplo: as
principais críticas ao cânone estabelecido por Harold Bloom, em O cânone ocidental, de
1994, questionam que a maioria dos autores eleitos sejam homens, europeus, brancos, e
originários das elites. Críticas que Harold Bloom rebate com certa ironia, dizendo que
não se podem ler todas as obras literárias, que algumas devem ser tomadas por
essenciais e que não há propósito em se privilegiar autores “menores” em detrimento de
autores consagrados como clássicos. De acordo com Anna Klobucka, Harold Bloom,
89
pela franqueza ao considerar que sua escolha se deve ao fato de a história da literatura
ocidental ser predominantemente masculina, acaba por contribuir, com a sua teoria da
Angústia da influência, involuntariamente para os estudos literários feministas e “para a
articulação diferencial dos modelos ginocríticos de relacionamento histórico-literário”
(KLOBUCKA, 2009, p. 58).
Pois a história literária do Ocidente é esmagadoramente masculina – ou mais
correctamente, patriarcal – e Bloom analisa e explica este facto, enquanto
outros teóricos não o consideram, precisamente, supomos, porque assumiram
que a literatura tinha que ser masculina. […] Bloom define os processos de
interacção que os seus predecessores não se deram ao trabalho de contemplar
porque, entre outras razões, eles se encontravam tão enredados nesses
processos. (GILBERT e GUBAR apud KLOBUCKA, 2009, p. 58)
As escritoras ficam de fora da teoria bloomiana – freudiana por excelência –,
pois os paradigmas estabelecidos por Bloom, assim como os estabelecidos por Freud,
consideram o masculino como o sujeito, enquanto ao feminino cabe a alteridade. Ana
Luísa Amaral, em sua tese sobre Emily Dickinson, problematiza essa questão:
Na teoria bloomiana da influência poética, o poeta (homem) ganha o direito à
criação autónoma pela presença do poeta "precursor" (masculino),
simultaneamente causador de ansiedade e razão de ser para a conquista
(transacção) da musa — agora posta ao serviço do poeta jovem. Como na
dinâmica do casamento (e Bloom apropria a teoria freudiana do "romance
familiar"), a musa (noiva) é transaccionada entre sujeitos masculinos,
transmitida do mais velho para o mais novo, seu rival, mas também seu
sucessor. Revendo, por sua vez, a teoria bloomiana, Diehl faz notar que o
dilema da influência em Dickinson é, pelo facto de ela ser mulher, ao mesmo
tempo complicado e simplificado, na justaposição de precursor e musa.
(AMARAL, 1995, pp. 380-381)
Para além disso, o cânone estabelecido por Harold Bloom privilegia a literatura
em sua própria língua – a língua inglesa –, postulando que Shakespeare é a figura
central desse cânone, de maneira a subordinar ao dramaturgo inglês e, mesmo, a
determinar, a partir dele, todos os outros escritores seguintes e a leitura anacrônica dos
anteriores. Ou seja, por estar em consonância com uma posição estabelecida de
dominação, o “cânone pessoal” de Harold Bloom, apesar de minimizar a importância de
90
franceses ou de mulheres, pôde ser considerado “universal”, embora reforce a posição
masculina, privilegiada e anglófona, que é a do próprio crítico literário estadunidense.
Interessa-nos aqui pensar como Ana Luísa Amaral estabelece a sua própria
escrita a partir de uma tradição de subjetivação que é predominantemente masculina ou
masculinizada (embora já conte com uma linhagem de mulheres escritoras e poetas que
a antecederam, tanto em Portugal quanto nos países de língua inglesa). Ao lidar com a
tradição de escritoras e escritores, Ana Luísa Amaral, de certa forma, desierarquiza o
cânone. Em seu estudo sobre Emily Dickinson, observa que, para esta autora ter sua
obra poética legitimada em Portugal, Jorge de Sena afirma tratar-se de “um poeta” 22:
Emily Dickinson é por demais um grande poeta para necessitar dos nossos
embelezamentos, dos nossos correctivos, das elucidações da nossa
inteligência. Deixemos tudo isso à crítica norte-americana, tricotando
desesperadamente a sua inane sabedoria retórica de poetas menos viris do que
femininamente o foi a solitária de Amherst (SENA, apud AMARAL, 2010, p.
232, destaques da autora).
Apesar de Ana Luísa Amaral reconhecer o esforço de Jorge de Sena em elevar
Emily Dickinson ao “panteão” dos grandes poetas, não deixa de notar que esse panteão,
ou seja, o cânone literário, é masculino. Desse modo, para reconhecer a qualidade de
uma poeta faz-se necessário masculinizá-la; e, por outro lado, ao desqualificar os
críticos, Jorge de Sena lhes atribui características femininas:
22
Observamos que essa ressalva de Jorge de Sena mantém-se até hoje no Brasil: a contracapa da edição
brasileira dos poemas de Emily Dickinson (Editora Iluminuras, 2012), A branca voz da solidão (tradução
de José Lira), traz destaque para a citação de Jorge de Sena, em que se sugere a oposição entre as palavras
poetisa e poeta: “Uma das mais originais poetisas da literatura universal, tão original e tão grande, que
melhor convém chamar-lhe poeta” (grifos nossos). Reforça-se a ideia de que, mesmo sendo mulher,
Emily Dickinson é uma grande poeta com a citação de Mario Faustino: “Essa mulher, que poucos viram e
pouco viu na vida, ostenta uma sabedoria de percepção ontológica e de expressão verbal raríssima em
qualquer poeta”(grifos nossos). Achamos interessante notar que Ana Cristina Cesar atenta, através da sua
fictícia “especialista em literatura de mulher”, Sylvia Riverrum, para o fato de que sempre que uma
escritora é mulher há algum motivo ou pretexto para destacar essa característica: “raramente se deixava
de aludir ao fato de que tais escritoras eram mulheres: críticos, comentadores, resenhistas, opinadores,
todos tinham um álibi para nomear o sexo – ou gênero – do autor” (CESAR, 1999, p.246), o mesmo não
ocorrendo quando o poeta é homem.
91
É louvável o esforço de Sena, que escrevia isto em 1962, em resgatar a fama
de Emily Dickinson, posicionando-a, e à sua poesia, num panteão de
qualidade. Note-se, contudo, como esse panteão é o masculino e como essa
qualidade é, em última análise, medida pelo masculino. Quando Sena tenta
legitimar o lugar de Emily Dickinson na história literária, sente a necessidade
de usar argumentos da ordem da diferença sexual para provar o seu valor:
Dickinson não podia ser entendida no contexto limitado da poesia escrita por
mulheres. Nem podia continuar a ser ignorada pelos críticos norteamericanos, cujo «tricotar» (uma actividade tradicionalmente associada às
mulheres) impedia que o génio lhe fosse reconhecido. Em surpreendente
inversão dos papéis sociais e sexuais, os críticos são feminizados – ao passo
que, por consequência, Dickinson tem de ser masculinizada através de uma
feminilidade supostamente «viril». Jorge de Sena encontra-se, assim,
encurralado entre os estereótipos que afectam o cânone literário e o seu
desejo de garantir a Dickinson legitimação como poeta. (AMARAL, 2010,
pp. 232, 233)
Ana Luísa Amaral apresenta-nos, portanto, uma leitura bastante crítica dos
recursos utilizados por Jorge de Sena para referir-se a Emily Dickinson, pois, para
enaltecê-la como poeta, desqualifica todas as outras “poetisas”. Anna Klobucka observa
que, seja no Romantismo, na poesia trovadoresca ou na obra pessoana, mantém-se essa
“oposição”, ou seja, há associação entre criatividade intelectual e masculinidade,
enquanto a figura feminina é vista como “o outro”, com atributos que se distanciam da
intelectualidade, estando ligada à natureza, à inconsciência, à fragilidade:
A imagem romântica do poeta incorpora e reforça as associações
tradicionalmente estabelecidas entre as condições de criatividade intelectual e
o funcionamento biossocial dos homens. Embora o paradigma da
subjetividade artística central à estética do Romantismo tenha sido contestado
ou reinterpretado por vários discursos metaliterários posteriores, a
equivalência fundamental entre masculinidade e a capacidade de assumir o
protagonismo poético proporciona uma das garantias principais da
continuidade canónica que se estende tanto ao passado medieval e clássico
como ao presente modernista e pós-modernista. Tal equivalência assenta
sobretudo na codificação no feminino de tudo aquilo que, de acordo com a
perspectiva num dado momento histórico ocupa o lugar do Outro da
consciência produtora do discurso poético. Neste sentido, dentro do contexto
da literatura portuguesa, pode traçar-se uma linha de continuidade desde, por
exemplo, a expressão lírica oral, atribuída às mulheres protagonistas das
cantigas de amigo galaico-portuguesas […] até ao vasto mundo poético
habitado pelos eus e pelos outros de Fernando Pessoa, onde uma das
representações mais vivas e memoráveis de protagonismo feminino se
vincula à figura da “pobre ceifeira”, portadora da “alegre inconsciência” a
derramar-se no canto inarticulado, pólo oposto da torturada consciência autoreflexiva do homem-poeta. (KLOBUCKA, 2009, p. 46) 23
23
Como bem observa Rosa Maria Martelo, a “alegre ceifeira” provém de um poema de Wordsworth,
“The Solitary Reaper”. É um topos retomado por Pessoa da tradição romântica inglesa.
92
O masculino é identificado tradicionalmente, portanto, com a razão, com a
consciência e com a autorreflexividade. Consequência disso é que se estabelece uma
dicotomia, estereotipada, que faz com que a mulher seja identificada – tanto pelo sensocomum, como por intelectuais e teóricos renomados – com qualidades diametralmente
opostas às masculinas: à emotividade, ao irracional e à fragilidade (física, mental e
intelectual), por exemplo. E a partir dessa polarização faz-se necessário justificar a
racionalidade, a consciência ou a autorreflexividade femininas com base em uma
argumentação masculinizante, como faz Jorge de Sena ao demonstrar que Emily
Dickinson merece ter um lugar no cânone literário. Numa leitura crítica feminista mais
acirrada ou militante, seria possível até mesmo inferir que Jorge de Sena insere o nome
de Emily Dickinson entre os grandes poetas apesar de ela ser mulher. A poeta norteamericana, portanto, acaba por subverter o papel da mulher, que de objeto e musa da
poesia passa ao lugar de poeta:
Habitualmente metaforizada como objecto ou encarnação da poesia, a mulher
enfrenta a necessidade de operar uma subversão dramática posicionando-se
no lugar do poeta, transição que por sua vez exige que se articulem as
premissas fundacionais de tal identidade subjetiva experimental.
(KLOBUCKA, 2009, p. 68)
Anna Klobucka afirma, assim, que a crise teórica do autor monolítico e
autoritário da modernidade se constitui paralelamente à necessidade de construção de
uma subjetividade poética feminina, ou seja, enquanto teóricos como Roland Barthes
estão preocupados com a desconstrução do sujeito e com a “morte do autor”, as
mulheres escritoras (assim como a crítica literária feminista) estariam preocupadas com
a constituição de uma escrita feminina. Apresenta-se desse modo uma das questões
centrais da crítica literária feminista, formulada em 1979 por Sandra Gilbert e Susan
Gubar: "Que significa ser uma mulher escritora numa cultura cujas definições
fundamentais da autoridade literária são [...] tanto disfarçadamente como abertamente
93
patriarcais?” (KLOBUCKA, 2009, p. 66) 24. Ana Luísa Amaral, mais que uma militante,
uma estudiosa das teorias feministas, pensa essas questões em relação à sua própria
escrita, não de forma pacífica, mas num constante questionamento:
Escrevo como mulher? A moldar a minha identidade está uma miríade de
identidades: sou humana, sou europeia, sou portuguesa, sou professora, sou
mulher. Como mulher, sou tambem mãe. E sou ainda uma mulher-poeta –
talvez a identidade (ou sub-identidade) mais difícil de definir. Embora eu seja
feminista, não partilho da visão de que somos todas irmãs. E pergunto: o
facto de eu ser do sexo feminino, de ter um nome feminino, de falar às vezes
na minha poesia do espaço da cozinha ou da minha filha, permite que sejam
feitas leituras da minha poesia como “uma poesia feminista” ou “uma poesia
feminina”? Se, quando se trata do autor como entidade abstracta, se distingue
entre autor empírico e autor textual, porque hão-de a autora empírica e a
autora textual ser lidas como coincidentes? E todavia, isto tem sido um traço
relevado por alguns críticos: localizar alguns dos meus poemas num universo
“feminino”, esquecendo que o “feminino” é também uma construção, que a
cozinha não tem necessariamente que ver com mulheres, que a expressão do
abandono não é apanágio da mulher, que a filha para quem eu escrevo tantos
poemas é, nos meus poemas, uma filha, mas que isso talvez aconteça por
acaso, que o tricot como metáfora para a poesia podia bem ser usada por um
homem. No poema “Posteridades”, digo justamente isto: “Escrevo para o
meu filho / que é de nada”. Estas são questões que me interessam […] e o seu
desvio, ou como a construção da identidade nos textos e na vida. (AMARAL,
2010, p. 187-188)
Parece-nos que é preciso tomar cuidado para não cair na armadilha de
simplesmente associar a escrita poética de Ana Luísa Amaral a uma postura feminista
combativa – muito presente nas feministas da segunda vaga, da qual, na literatura, as
Novas cartas portuguesas são o maior símbolo (mundial), sem que isso comprometa sua
qualidade literária – apenas pelo fato de a autora ser declaradamente feminista, ou a
uma “poesia feminina”, que nos parece associada à ideia de Jorge de Sena a respeito do
que seria a escrita de uma “poetisa”, que necessita de “nossos embelezamentos” ou da
ideia que Ana Cristina Cesar faz do que seria a poesia de Cecília Meireles, uma poesia
“limpa, tênue, etérea”. Acreditamos, portanto, que não basta ao leitor de Ana Luísa
24
Todavia, a impessoalidade modernista também abre espaço a uma indistinção entre o masculino e o
feminino, já que a dessubjetivação tende para a abstração (inclusive do gênero). Por isso, algumas
mulheres podiam assinar com um nome masculino sem que isso implicasse escrever no masculino.
94
Amaral 25 ter lido Simone de Beauvoir, Adrienne Rich 26 e Elaine Showalter sem que leia
Luís de Camões, Fernando Pessoa e Sylvia Plath; mas o inverso também nos parece
verdadeiro, ou seja, pensamos que Ana Luísa Amaral filia-se e reconhece-se tanto numa
“linhagem” feminina, de escrita poética e teórica, quanto numa “linhagem” masculina,
fortemente ligada à tradição literária e ao canônico. Por outro lado, armadilha ainda
mais complicada nos parece a da neutralidade, na qual se ignora o fato de que quem
escreve é uma mulher (numa espécie de inversão da teoria do “falso neutro”),
transformando a poeta em um poeta. Como a própria Ana Luísa Amaral afirma, a mão
que escreve nunca é isenta:
A verdade do texto é isso mesmo: a sua verdade, diferente da outra, a da vida,
tal como a identidade do texto e já uma identidade em crise, inevitavelmente
sempre fracturada relativamente ao autor ou ao factual. Mas é uma verdade,
não uma mentira. A verdade do texto é, para mim, todos estes lados. Às
vezes, quase nenhum deles. Mas nessa verdade não é nunca isenta a mão que
a escreve – e, por mais fingimento que exista, dentro da convenção, ela é de
mulher. (AMARAL, 2010, p.190)
Precisamos ser cuidadosos, portanto, para não ler a poesia de Ana Luísa Amaral
como estritamente feminista ou feminina, mas também não devemos apagar o fato de
que estamos lendo a obra de uma escritora, ou seja, pensamos que qualquer
reducionismo comprometeria a compreensão de sua poesia.
25
Embora existam quase tantos trabalhos na área de Estudos Feministas e de Gênero sobre Ana Cristina
Cesar quanto análises estritamente literárias de sua obra, acreditamos que o mesmo se dê em relação à sua
poesia e é por esse motivo que as duas figuram juntas neste estudo.
26
A leitura de Adrienne Rich tanto como feminista quanto como poeta nos parece pertinente para Ana
Luísa Amaral.
95
3.1 AGRAMATICALIDADES: ANA LUÍSA AMARAL E EMILY DICKINSON
As mulheres, em geral, ainda não encontraram uma gramática
própria. Era preciso, e mais uma vez penso em Adrienne Rich, uma
língua comum, que nos pudesse dizer a todos e a todas.
Ana Luísa Amaral
Apesar de haver certa dificuldade, por nossa parte, de definir características da
poesia portuguesa hoje – talvez pelo fato de cada poeta ter uma dicção própria, talvez
por estarmos demasiado próximos temporalmente –, e embora a poesia de Ana Luísa
Amaral apresente algumas singularidades em relação à poesia portuguesa produzida
atualmente, consideramos extremamente precisas as observações feitas por Isabel Pires
de Lima, que enumera diversas características que a poesia de Ana Luísa Amaral teria
em comum com a poesia portuguesa produzida a partir dos anos de 1990:
Sua obra tem sido olhada como congregadora das mais significativas
tendências que esta novíssima poesia manifesta.
Refiro-me 1 – à construção de epifanias do quotidiano, no caso de Ana Luísa
Amaral, um quotidiano tradicionalmente periférico, o quotidiano feminino; 2
– à revisitação intertextual do cânone estético cultural ocidental; 3 – à
contrafactação paródica, mais ou menos lúdica do dito cânone,
nomeadamente do cânone literário modernista, que a poeta em questão
conhece bem; 4 – à vivência de um desconserto existencial que questiona
uma axiologia forte, sem deixar de a reclamar, no caso vertente, no fio do
horizonte; 5 – à interrogação metapoética e densamente auto-reflexiva; 6 – à
discursividade narrativa que não deixa de incorporar o fragmento, ligada quer
à rememorização, quer ao anedótico; 7 – à reivindicação da poesia como
experiência do excesso, quer do excesso excessivo do barroco, quer do
excesso rasurado do limite, experiências que não impedem, em Ana Luísa
Amaral, o recurso por vezes bem rebuscado à elipse. (LIMA, 2001, p. 49)
Talvez seja importante, ao tratar da poesia de Ana Luísa Amaral, nos atermos
ainda à questão da forma. Ana Luísa Amaral, como vimos no começo deste trabalho,
dialoga com as formas fixas; e, simultaneamente, com algumas subversões formais,
essas, ao que parece, provenientes da poesia de Emily Dickinson. Dois pontos nos
chamam atenção aqui: o uso dos travessões, bastante estudado na tese de Ana Luísa
(AMARAL, 1995) sobre a poeta norte-americana, que faz com que algo no poema fique
96
em suspenso (talvez uma ideia, talvez um silêncio), e a agramaticalidade presente em
sua poesia desde a publicação de Minha Senhora de Quê:
[A] agramaticalidade da sintaxe expressiva que vem sendo elaborada desde
Minha Senhora de Quê (1990) ou o cuidado posto nos efeitos rítmicos
sempre constituíram, nesta poesia, formas de presentificação da espessura do
poema e sempre impediram que o figurativismo lírico se tornasse numa
poética de efeito fácil. (MARTELO, 2010, p. 265)
Aliás, notamos que a agramaticalidade se faz presente já no título deste livro,
que muitas vezes é lido como se fosse uma pergunta: “minha senhora de quê?”. É
preciso atenção para evitarmos equívocos neste sentido, pois, embora a sonoridade do
título nos induza a uma pergunta, não há uma interrogação expressa. O título do livro
suscita questionamentos, mas não se resume a uma frase interrogativa, nem tampouco
seria um questionamento – quase uma provocação – à Maria Teresa Horta e ao seu livro
Minha senhora de mim:
o uso do pronome pessoal “mim” no título de Teresa Horta evidencia, logo
à partida, a relação de posse que o discurso vai emitir sobre os seus
próprios juízos – e posse não apenas do discurso, como mais adiante
explicitaremos, mas também do seu próprio corpo. Já o “quê” do título de
Ana Amaral aponta, como pronome interrogativo, para um novo
questionamento sobre o espaço e a função das mulheres, quase como que
numa nova resposta às indagações levantas por Horta praticamente vinte
anos antes. (SILVA, 2013, p. 10, grifos nossos)
Observamos que esta pode ser uma das possibilidades de leitura, mas – graças à
falta do ponto de interrogação, sem o qual não existe pronome interrogativo – não
podemos nos encerrar numa única leitura, num único questionamento, como se este
título estivesse afirmando indagações a respeito da(s) mulher(es), como se estivesse dito
“senhora de quê?”. Notamos que mesmo mantendo o sentido interrogativo no título, há
mais questões aí além do “espaço” e da “função” das mulheres: é possível pensar ainda
nas posses, nos amores, na autoridade ou na autonomia da mulher – afinal, “senhora”
pode ser de alguma coisa ou de alguém, seja no sentido lírico-amoroso, seja no sentido
97
de ser aquela que é chamada de “minha senhora” por alguém em posição subalterna ou
“senhora” pode indicar posse ou domínio, como “dona”: “senhora de suas próprias
vontades”, e a preposição “de”, assim, introduziria o que lhe pertence ou está sob seu
domínio. Outra leitura pode compreender “de que” como “de que tipo/espécie”, com
margem a alguma possibilidade de enquadramento,achamos, portanto, que a leitura não
se fecha, não se encerra, justamente por não haver esse ponto de interrogação, pois não
podemos afirmar o sentido de algo que não está expresso por escrito. Segundo Rosa
Maria Martelo, ter uma escrita que não se compreende totalmente e uma poesia que não
é completamente desvendável é justamente uma das características que Ana Luísa
Amaral herda da poesia Moderna, como afirma em ensaio a respeito do livro A arte de
ser tigre, de 2003, referindo-se aos poemas de Imagens, de Imagias e do próprio A arte
de ser tigre:
[Estes livros e uma parte bastante significativa dos poemas de livros
anteriores] parecem subscrever aquela posição característica da poesia da
Modernidade que Baudelaire terá sido o primeiro a exprimir quando
reconheceu haver «uma certa glória em não ser compreendido».
(MARTELO, 2010, p. 264)
Podemos pensar também nessa agramaticalidade como uma “abertura” de
sentido, de modo que represente um lugar de inserção ou participação do leitor, como
ocorre com o observador de algumas obras de arte, ou o espectador de alguns filmes 27.
Ali, é necessário que o espectador participe de modo bastante ativo na atribuição de
sentidos: a despeito da variedade de leituras sempre possíveis, há de fato a intenção de
uma pluralidade de leituras pensada na própria escrita, por seu caráter lacunar ou por
suas alterações na funcionalidade costumeira de algumas estruturas. É importante notar,
por outro lado, que alguns “desvios” gramaticais são tradicionalmente incorporados pela
escrita como figuras de linguagem. Aqui, no entanto, é como se, de certo modo, se
27
Como os de Antonioni, de acordo com Barthes.
98
procurasse imprimir na linguagem procedimentos menos codificáveis, o que abre o
campo de entendimento para novas interpretações, dúbias ou titubeantes o mais das
vezes, justamente por não serem tão usuais. Mas essa agramaticalidade não é apenas
uma herança do Modernismo, é possível pensar que Ana Luísa Amaral traz para a
poesia em língua portuguesa a herança de uma dicção feminina em língua inglesa: a de
Emily Dickinson. É interessante observar a possibilidade de lermos alguns preceitos e
considerações de Ana Luísa Amaral sobre a poesia de Emily Dickinson como formas de
leitura da poesia da própria Ana Luísa e nos estenderemos aqui a respeito dessa
possibilidade. Em primeiro lugar, a união entre certa rigidez formal e agramaticalidade,
apontadas por Rosa Maria Martelo como características da poesia de Ana Luísa Amaral,
são duas características assinaladas por esta na poesia de Emily Dickinson:
A poesia de Dickinson é marcada, graças a uma aparente rigidez formal, por
uma peculiar agramaticalidade: inserção forçada de plurais, posições
sintácticas invertidas e, muitas vezes, desrespeito pelas categorias de género e
de pessoa ou pelas concordâncias verbais. O resultado é uma linguagem
críptica, compacta, plena de elipses, que se traduz em textos que desafiam a
tradição da poesia enquanto comunicação e oferecem à linguagem literária
um lugar de destaque e autonomia mais próximo da estética que informa a
poesia moderna. (AMARAL, 1995, p. 154)
Observamos que Ana Luísa Amaral atenta para essas características ao traduzir a
poesia de Emily Dickinson, mantendo a linguagem compacta, críptica e sem omitir as
elipses e suspensões – que dificultam a compreensão – presentes em seus poemas.
Vejamos, por exemplo, o poema iniciado pelo verso “I`m Nobody! Who are you?”, para
o qual apresenta uma tradução fiel e, por isso mesmo, pouco palatável também em
língua portuguesa:
99
I’m Nobody! Who are you?
Are you – Nobody – Too?
Then there’s a pair of us?
Don’t tell! they’d advertise – you know!
Não sou Ninguém! Quem és?
És tu – Ninguém – Também?
Há, pois, um par de nós?
Não fales! não vão eles – contar!
How dreary – to be – Somebody!
How public – like a Frog –
To tell one’s name – the livelong June –
To an admiring Bog!
Que horror – o ser – Alguém!
Que vulgar – como Rã –
Passar o Junho todo – a anunciar o nome –
A Charco de pasmar!
(DICKINSON, 2010, pp. 94-95)
Notamos que outros tradutores 28 para a língua portuguesa tornam os poemas de
Emily Dickinson um pouco mais compreensíveis, enquanto a tradução de Ana Luísa
Amaral causa certo estranhamento, tanto por causa das elipses, omissões e palavras
soltas, quanto por causa da alternância entre maiúsculas e minúsculas e pelo uso
agramatical dos travessões. Comparemos, por exemplo, a tradução de Ana Luísa com a
tradução de Jorge de Sena 29:
Não sou Ninguém! Quem és tu?
Também – tu não és – Ninguém?
Somos um par – nada digas!
Banir-nos-iam – não sabes?
Mas que horrível – ser-se – Alguém!
Uma Rã que o dia todo –
Coaxa em público o nome
Para quem a admira – o Lodo.
Embora ambas as traduções se assemelhem em alguns aspectos, percebemos que
a de Jorge de Sena é mais fluida, mais compreensível e menos literal, e que o uso de
travessões obedece mais a uma lógica gramatical (salvo no quinto e no sexto verso, em
que, respectivamente, um verbo é isolado, como no original, e um sujeito é separado de
28
Todas as três traduções apresentadas aqui estão em publicações bilíngues e podemos afirmar que
partem da mesma versão, em inglês, do poema de Emily Dickinson.
29
Tradução publicada na página Ler Jorge de Sena:
http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/antologias/traducao/10-poemas-de-emily-dickinson-traduzidospor-jorge-de-sena/
100
seu verbo), fazendo com que o poema se aproxime de um diálogo (não tanto como na
tradução de Augusto de Campos, que veremos abaixo). Ana Luísa Amaral, em sua
tradução, mantém todas as palavras do poema original – ainda que inverta o penúltimo
verso – todas as maiúsculas e minúsculas utilizadas por Emily Dickinson, assim como
os travessões agramaticais (e, portanto, desprovidos de sentido claro e lógico). Já a
tradução de Augusto de Campos difere bastante dessas duas traduções, não apenas por
tratar-se de uma tradução para o português do Brasil – diferentemente das duas
anteriores, que são feitas para o português de Portugal –, mas também porque
coloquializa e gramaticaliza o poema. Nos dois primeiros versos, por exemplo,
enquanto Jorge de Sena e Ana Luísa Amaral esforçam-se por manter uma dicção
próxima à do poema original, Augusto de Campos opta por manter apenas o sentido,
fazendo com que o texto seja de rápida compreensão, sem os cortes – que causam certo
estranhamento – presentes nas outras duas versões:
Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém – Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste – ser – Alguém!
Que pública – a Fama –
Dizer seu nome – como a Rã –
Para as palmas da Lama!
(CAMPOS, 2008, p. 41)
A tradução de Augusto de Campos soa quase como um diálogo, há um
encadeamento lógico, fazendo com que o poema tenha uma certa narratividade, o que
torna a leitura descomplicada. Na tradução de Ana Luísa Amaral, o poema precisa ser
lido com pausas maiores, pois “a utilização de travessões dispersa a unidade discursiva”
(AMARAL, 1995, p. 122). Tanto Augusto de Campos como Jorge de Sena omitem
parte do penúltimo verso (“the livelong June”), justamente o trecho que apresenta a
temporalidade do poema – que Ana Luísa Amaral traduz por “Passar o Junho todo” – e
101
que pode lhe dar atmosfera, uma vez que o mês de junho no hemisfério norte é o mês de
chegada do verão. Certamente um verão chuvoso, o que favorece o aparecimento das
rãs e do charco, da lama e do lodo. Ana Luísa Amaral afirma que este é o verso-chave
do poema:
"ninguém" (a palavra dita, transformadora de estatutos) surge satirizada na
estrutura dialógica, informal e dialogante, que é, no fundo, questionação do
mecanismo de emissão e recepção, em termos humanos — e em termos
literários. Se a primeira estrofe se empresta desse movimento dialógico, já a
segunda estrofe veicula um tom reflexivo de divagação, de teor não menos
satírico e de mensagem não menos angustiante, na equivalente alternativa,
também ameaçadora, da divulgação consumada. A ausência de resolução
aqui proposta parece remeter para uma circularidade discursiva, em que o
silêncio é, ironicamente, espaço de partilha. O próprio corpo figurativo do
texto vai-se estreitando, afunilando: a comparação ("public like a Frog")
conduz à (elipse na) metáfora do último verso. Em posição intermédia
encontra-se o verso-chave de todo o poema ("To tell one's name - the
livelong June"), que dispõe o nome como força legitimadora do social e a
sua verbalização como expansão reveladora. (AMARAL, 1995, p. 310)
É o trecho-chave do poema mantido pelos outros dois tradutores, mas não deixa
de ser interessante reparar que essa omissão talvez demonstre que, para Jorge de Sena e
Augusto de Campos, o outro trecho deste verso seja desnecessário ou mesmo que
atrapalhe a fruição do poema. Ana Luísa Amaral afirma que é marcado por um caráter
irônico, e até mesmo satírico, este poema de Emily Dickinson – assim como toda a sua
obra, embora nem sempre os críticos apontem essa como uma característica marcante –
e a sua tradução é a que assinala esta ironia, enquanto a tradução de Jorge de Sena nos
parece mais angustiante, especialmente por causa dos dois últimos versos da primeira
estrofe: “Somos um par – nada digas! / Banir-nos-iam – não sabes?”. Em sua introdução
aos poemas de Emily Dickinson, Jorge de Sena afirma que “nenhuma poesia do tempo
se parecia com a sua, tão insólita, tão abrupta, tão tensa e tão concisa” (SENA, 1979, p.
25), e nos parece que aqui – principalmente por causa da escolha lexical – Jorge de Sena
traz certa tensão para o poema: o que nas outras versões parece ser apenas um segredo,
na versão seniana transforma-se em sigilo, necessário para que se evite o banimento. Já
a versão de Augusto de Campos não apresenta a tensão proposta por Jorge de Sena, nem
102
tampouco a acidez da versão de Ana Luísa Amaral; o poeta brasileiro substitui a ironia
pelo senso de humor, dando leveza ao poema, uma leveza ausente nas versões dos
tradutores portugueses aqui apresentadas.
A poesia de Ana Luísa Amaral, de acordo com Rosa Maria Martelo, possui
duplo direcionamento: se, por um lado, apresenta essa enigmática agramaticalidade,
causando estranhamento ao leitor e recusando a “leitura do poema no entendimento
romântico da relação entre a poesia e a experiência pessoal” (MARTELO, 2010, p. 265)
em poemas que seguem uma tradição modernista, por outro lado procura “exactamente
uma leitura de sinal contrário” (MARTELO, 2010, p. 265), desse modo, a sua poesia é
tão intimista e autobiográfica (simulada ou alusivamente) que a cumplicidade com o
leitor é imediata.
Na verdade esse duplo registo é muito característico desta poesia que,
convém esclarecer, não hesita entre ser uma e outra coisa: alternadamente,
entre um livro e outro livro, entre um e outro poema, outras vezes até sem ter
de sair do mesmo texto. (MARTELO, 2010, p. 265)
Ou seja, se, por um lado, a poesia de Ana Luísa Amaral apresenta-se na tradição
Modernista com poemas e versos indecifráveis, com sintaxe expressivamente
agramatical e com efeitos rítmicos próprios, por outro, é uma poesia “construída sobre
coisas quotidianas e sobre memórias ou experiências” (MARTELO, 2010, p. 265),
experiências aparentemente reais e que levam à identificação com o leitor. Ana Luísa
Amaral, em sua tese de doutoramento, nos apresenta a uma interessante hipótese,
elaborada por Cristanne Miller, para a presença dessa agramaticalidade na obra de
Emily Dickinson:
[No] livro de Cristanne Miller Emily Dickinson: A Poet's Grammar, onde se
defende que a linguagem de Dickinson, desviando-se consistentemente das
construções normais, permite construir uma "gramática" própria, foi para
mim particularmente importante, visto a análise de Miller da poesia de
Dickinson insistir na noção de transgressão. Miller detecta vários momentos
de ruptura nas formas linguísticas e poéticas (sintaxe, gramática, tipografia)
utilizadas por Dickinson, lendo essas rupturas como maneiras de a mulher-
103
poeta questionar e criticar os saberes normativos, tradicionalmente
masculinos. (AMARAL, 1995, p. 37)
Ora, se realmente pensarmos na leitura que Ana Luísa Amaral tem de Emily
Dickinson como uma forma de ler a própria obra de Ana Luísa Amaral, podemos pensar
na hipótese de que essa dupla leitura de seus poemas – por um lado, desviando-se das
construções “normais”, da sintaxe e da gramática e, por outro, mantendo-se no
normativo e na tradição da poesia lírica – possa indicar uma dupla genealogia da sua
poesia: a tradição da poesia da “mulher-poeta”, que questiona e critica os saberes
normativos, e a própria tradição dos saberes normativos, isto é, masculinos.
Ana Luísa Amaral fala muitas vezes, em poemas e entrevistas, de uma “língua
nova” e do seu desejo de criar uma “gramática própria”, que, num sentido utópico,
pudesse ser uma língua livre de discriminações: “Uma língua que pudesse dizer tudo.
Essa era a utopia. A literatura em si não discrimina, mas a técnica discrimina, a
gramática discrimina, o pensamento discrimina, a crítica discrimina” (AMARAL, 2013,
p. 50). Obviamente as discriminações vão sempre favorecer o dominante, por isso, ao
falar de uma língua nova, a poeta fala da necessidade de questionar estas convenções,
que, por estarem cristalizadas e não serem problematizadas, colaboram para a
manutenção do status quo:
Acredito que se criássemos uma língua nova era possível mudar o mundo.
Justifica-se que por se escrever Homem com maiúscula se refere a espécie
humana. Então troque-se e ponha-se Mulher. Não dá. São convenções. Pois,
mas as convenções cristalizam as vidas e os hábitos, cristalizam a história e a
cultura. (AMARAL, 2013, p. 51)
Diante da impossibilidade de criar uma língua nova e desvencilhar-se
completamente das convenções, resta à poeta subverter essas convenções e desviar-se
das regras, a exemplo do que fazem as crianças – por não terem assimilado e
104
internalizado todas as regras gramaticais e suas respectivas exceções – durante os
processos de aquisição da linguagem. E é neste sentido que lemos o seguinte poema:
COISAS GRAMATICAIS E OUTRAS
A minha filha fala tantas coisas
em gramática própria tão brilhante:
mais do que sóis, os verbos que ela conjuga mal
são galáxias inteiras. As costumeiras coisas
tornam-se espaços largos de saber,
didácticas de um mundo em construção,
estrelas novas de rota corrigida teimando
em serem novas. São tantas coisas
que a minha filha fala e brilham sempre ainda.
E não fora a gramática das coisas,
não fora o conjugar (mais lógico que o nosso)
a semântica intacta torná-la-ia inteira:
ser humano a crescer em solo ainda intacto.
(AMARAL, 2010a, p. 43)
Ana Luísa Amaral, neste poema, aproxima a linguagem da criança (a filha), em
“gramática própria tão brilhante”, à linguagem poética em que ela desejaria escrever,
isto é, numa linguagem não cristalizada pelas normas, que estivesse aberta a um
“mundo em construção”, onde as coisas pudessem ser ressignificadas: “em solo ainda
intacto”. À poeta, assim como à criança, é permitido o desvio gramatical, a conjugação
errada, guiada pela lógica, não pelos compêndios gramaticais. Assim, a criança, por não
dominar completamente a linguagem, tem a mesma liberdade de uso da língua que a
poeta – esta por dominar a linguagem, as normas e a tradição literária – ambas podem
aproximar-se, utopicamente, numa espécie de uso inaugural da língua.
3.2. MANIFESTO ANTI-POETISA
Questão recorrente quando se fala da escrita de poesia por mulheres é a
necessidade da escolha lexical: poeta ou poetisa? De um modo geral, nos estudos que
105
levam em consideração questões feministas ou estudos de gênero, opta-se por “poeta”,
já os estudiosos que tendem a uma suposta neutralidade – deixando essas questões de
lado – costumam optar pelo normativo, ou seja, utilizam “poetisa”. Há ainda os que
evitam usar qualquer uma das duas palavras, substituindo-a sistematicamente por
“escritora” ou “autora”, já quando a autora faz uma opção expressa é comum que seja a
escolhida: é usual, por exemplo, optar-se por “poetisa” quando se fala de Adília Lopes.
Ana Luísa Amaral geralmente opta por poeta, embora hoje em dia afirme que alterna as
duas formas, pois, como escreve Maria Irene Ramalho de Sousa Santos no artigo “O
sexo dos poetas”, a designação não chegou
a ganhar em português a conotação pejorativa que é hoje impossível dissociar
do termo inglês “poetess”. Em inglês, seria hoje impensável para a maioria
dos críticos, mesmo para os mais reaccionários, falar de H.D. como an
American modernist peotess; ao passo que, em português, a ninguém
repugna ouvir falar da poetisa Florbela Espanca. (SANTOS, 1990, p. 123,
grifos da autora)
Ainda que Maria Irene Ramalho e Ana Luísa Amaral reconheçam que em
português a palavra “poetisa” não tem o sentido pejorativo tão forte como em inglês,
esse sentido pejorativo existe e o percebemos ao observar a possibilidade de se fazer uso
da palavra “poetisa” para diminuir um poeta. Assim como Jorge de Sena (em seu
prefácio acima citado) utilizou a palavra “poeta” para afirmar o valor da poesia de
Emily Dickinson, Teixeira de Pascoaes para diminuir António Nobre afirmou certa vez
que “António Nobre ‘é a nossa maior poetisa’. E, para não deixar dúvidas, sublinhou:
digo poetisa” (SANTOS, 1990, p. 123, grifo da autora). Ou seja, há uma distinção entre
“poeta” e “poetisa” que vai além da distinção sexual ou de gênero, pois essa
diferenciação implica um juízo de valor. Numa diferenciação qualitativa entre a poesia
escrita por “poetas” e a poesia escrita por “poetisas”, poder-se-ia dizer, de uma poesia
escrita por uma poetisa, que é uma poesia que se situa às margens do cânone. Maria
Irene Ramalho atenta para o fato de que a palavra “poeta” é utilizada no feminino já no
106
final do século XIX, pois está presente no dicionário Moraes de 1890. Observemos que
este artigo, datado de 1990, tem por subtítulo “A propósito de uma nova voz na poesia
portuguesa”, e que essa nova voz é a da então desconhecida Ana Luísa Amaral:
Não há muito para dizer dessa voz, que nenhuma totalidade ou síntese
universal ambiciona representar, senão que corajosamente dá testemunho de
si própria no seu contexto histórico. […] Completamente desconhecida nos
nossos meios literários, Ana Luísa Amaral estreou-se no mundo da
publicação com um poema inserto na revista Colóquio / Letras no início
deste ano. (SANTOS, 1990, p. 123)
Posteriormente – em 1998 – Ana Luísa escreve um poema de título bastante
sugestivo – “Manifesto anti-poetisa” – que dialoga com este texto:
MANIFESTO ANTI-POETISA
Para a Maria Irene sobre “o sexo dos poetas”,
e recordando aquela que, engenhosamente,
um dia escreveu “This was a Poet – It is That –”
Mais fácil é “a poet – it is that –”,
que a gramática nossa o não permite
e precisa dois gumes do estilete
– o que implicará sempre mais limite.
Mas, caso a regra for bem aplicada
(invertendo-se os termos da excepção),
porque não ler “poeta”, feminino,
e masculino: ... vide conclusão?
Mas se poeta for quem mais repete
as quadras já ouvidas, recusando-as depois e repetidas, lembrando
utilidade imensa do estilete:
ou seja, a de espetar tais mil palavras
em cima de mil sílabas de mais,
sabendo que depois, uma palavra
é o que sobrará; e que das tais
mil e catorze sílabas só uma
lá caberá (no verso, quero dizer),
que de tanto esforçar e se perder,
acaba por às vezes ser nenhuma.
E se poeta for nem paciente
nem ausente de tal, que a paciência
em demasia: coisa de serpente,
como é do seu contrário a sua ausência.
E se poeta for... inútil mais,
que de ridículo este definir
se perderá por versos mais e tais
107
que o verso às tantas poderá partir.
Mas quando se partir, aí o verso.
E quando se partir, aí o lume:
avançar muito além do definir,
não distinguir essência de perfume.
E na ausência de final dourado,
tal como na ausência de terceto,
a conclusão: nem homem, nem mulher,
ou então: a «poeta» e o «poeto».
(AMARAL, 2008, p. 157-158)
Em primeiro lugar, a palavra “manifesto” sugere ligação com movimentos e
vanguardas que possuem a potencialidade ou o desejo de fundamentar uma nova
estética, uma estética “anti-poetisa”. Poetisa – como esclarece Maria Irene Ramalho, a
quem o poema é dedicado – é uma palavra carregada de sentido negativo, muitas vezes
associada a uma poesia menor. Ainda na dedicatória, Ana Luísa recorda Emily
Dickinson, aquela que – porque a língua inglesa permite, ainda que num ato subversivo,
já que nela existe o gênero neutro, ainda que seja utilizado comumente para coisas e não
para pessoas – utiliza o neutro para denominar “poeta”, enfatizando que nesse aspecto a
nossa língua seria mais limitada e limitante que línguas com a possibilidade de utilizarse o neutro 30. É relevante notar que justamente Emily Dickinson é chamada de “um
poeta” mais de uma vez – por homens – para enfatizar a alta qualidade de sua poesia.
Ana Luísa Amaral observa (a respeito da poesia de Emily Dickinson) que ao subverter
as regras gramaticais, subverte-se o próprio ato discursivo:
Subverter as regras gramaticais, subvertendo também outras regras,
correspondia a violar e a desafiar o próprio acto discursivo e o respectivo
posicionamento social. Essa subversão revela-se ora clara ora implicitamente,
quando, como vimos, Dickinson oferece duas alternativas para um mesmo
poema ("Going to Him - Happy Letter" e "Going to Her - Happy Letter" [P.
494]); ou quando, mais abertamente, subverte padrões de comportamento
sexual ao utilizar explicitamente referentes femininos ("I showed her Heights
30
Muito embora algumas tentativas sejam feitas na escrita, como a utilização de “@”, “x” ou “e” (por
exemplo: @s menin@s, xs alunxs ou es colegues), mas as duas primeiras são rejeitadas, porque
impronunciáveis, e a terceira, porque muito artificial, além do que a letra “e” muitas vezes é indicativa de
gênero masculino (como em “jogadores”, por exemplo). É interessante lembrar que na última eleição
presidencial no Brasil criou-se grande polêmica em torno da eleição de uma mulher que quis ser chamada
de “presidenta”, ao passo que a maioria das pessoas acha que “presidente”, como “estudante”, deve ser
utilizado tanto para homens quanto para mulheres.
108
she never saw" [P. 446], "Her sweet Weight on my Breast one Night" [P.
518]"); ou ainda quando, pura e simplesmente omite diferenciações sexuais,
substituindo-as pelo género neutro. (AMARAL, 1995, p. 141)
E, numa brincadeira (ou seria uma subversão?) com a língua, por ser a letra “a”
marca do gênero feminino, Ana Luísa questiona: “Por que não ler ‘poeta’, feminino, e
masculino ‘poeto’?”. O poema, uma sequência de nove quadras, apresenta ainda
algumas elocubrações a respeito de o que ou de quem é “poeta”, num tom de ironia que
permeia o poema e que traz certa crítica a uma tradição poética que mantém o status
quo. Note-se ainda que Ana Luísa escreve boa parte do poema sem o uso de artigo:
“Mas se poeta for quem mais repete as quadras já ouvidas” (grifos nossos). E, como no
seu “Soneto científico a fingir” – sobre o qual falamos no início deste trabalho – que é
um “soneto coxo” – não é um verso de pé quebrado, mas um “poema de pé quebrado” –
este poema não tem tercetos, nem chave de ouro, mas “herdeira de uma tradição em que
a poesia é ainda, antes de mais nada, auto-expressão e comunicação, Ana Luísa Amaral
[…] conhece, no entanto, demasiado bem os fardos e contradições dessa mesma
tradição” (SANTOS, 1990, p. 124). Ou seja, dialoga com a tradição, da qual está
consciente, e por isso mesmo não a segue à risca, pois não é uma poeta desprovida de
senso crítico. Isso posto, ressaltamos que Ana Luísa Amaral afirma atualmente que
utiliza as duas formas, “poeta” e “poetisa” indistintamente, tanto pelo fato de que em
língua portuguesa a palavra “poetisa” não possui a conotação negativa que possui em
inglês, como por haver atualmente uma reivindicação do uso da palavra
gramaticalmente correta 31.
31
Reivindicação feita publicamente pela professora e membro da Academia Braisleira de Letras Cleonice
Berardinelli (em aulas e palestras), em que resume a questão de maneira bastante simples: “se há uma
palavra em língua portuguesa especialmente para designar uma escritora de poesia, por que não usá-la?”
(anotação pessoal, aula da Professora Doutora Cleonice Berardinelli no primeiro semestre de 2011).
109
3.3 DOMESTICIDADES NA POESIA DE ANA LUÍSA AMARAL
Eu começo a sentir-me incapaz de fazer tudo o que quero fazer. Ser ao
mesmo tempo poeta, mulher do D. Quixote e mãe de cinco filhos.
Sophia de Mello Breyner Andresen, em carta a Jorge de Sena
Uma das características mais notáveis e notadas na poesia de Ana Luísa Amaral
é a articulação entre poesia e cotidiano – como no já citado excerto de Isabel Pires de
Lima –, na “construção de epifanias do quotidiano, […] um quotidiano tradicionalmente
periférico, o quotidiano feminino” (LIMA, 2001, p. 49). Este cotidiano feminino e
doméstico, que não tinha lugar na poesia – assim como a maternidade –, e que parecia
mesmo ser incompatível com a escrita nobre e elevada, por isso periférico, transformase em tema e motivo na poesia de Ana Luísa Amaral. No entanto, devemos observar
que:
a representação da maternidade e da domesticidade na poesia de Ana Luísa
Amaral não se cumpre nem, muito menos, se esgota na exploração temática,
superficial e convencionalmente associada à escrita dita feminina. Trata-se,
pelo contrário, da construção de uma poética complexa e sofisticada que, no
entanto, corajosamente preserva, privilegia e trabalha de maneiras inovadoras
e produtivas no repositório das formas, acções e relações que pertencem a
estes domínios da actividade humana. (KLOBUCKA, 2009, p. 290, grifos da
autora)
Ou seja, Ana Luísa Amaral apropria-se de temáticas ligadas ao cotidiano
feminino para construir a sua própria poética, como no já citado poema “Inspirações”,
em que as atividades cotidianas constituem-se em matéria poética. Ressaltamos que,
mesmo com esses poemas de temática cotidiana – ainda que não dialoguem tão
claramente com o cânone – Ana Luísa Amaral não deixa de se inserir na tradição
literária. O poema “Receita para um soneto não liofilizado”, por exemplo (como outros
110
poemas já citados), refere-se à forma clássica do soneto, sem que seja de fato um
soneto:
RECEITA PARA UM SONETO NÃO LIOFILIZADO
Privar a humidade a um soneto
é deixá-lo sem graça e consequente
em ressequidas quadras, os tercetos
com versos muito enxutos. O soneto
quer-se molhado como o pão-de-ló,
esse de crosta leve como sol,
as gemas a tremer ainda moles
e um exótico cheiro a Jericó.
Assim. Com rima feita e reforçada
a escorrer pela sílaba a escansão,
a emoção bebendo a emoção
(e uns versos, já agora, um pouco mais:
uma espessura acesa como mel
e, da janela húmida de sais,
saída da banheira: Rapunzel,
sem escada, a cabeleira, a lado algum)
(AMARAL, 2010a, p. 377)
O título do poema é bastante irônico, a começar pelo fato de ser uma “receita”,
como num livro de culinária, o que, a princípio, teria a ver com a temática feminina do
cotidiano, sem que, no entanto, deixe de remeter às rígidas normas da tradição literária:
é uma receita para um soneto, afinal. O soneto é um poema que possui rigorosas regras
quanto à forma, número de sílabas, rima e métrica, e Ana Luísa Amaral, ao longo do
poema, mescla as duas receitas – a do soneto e a de pão-de-ló – neste “soneto nãoliofilizado”. Note-se que liofilização é um processo de desidratação de alimentos, no
qual as suas propriedades nutritivas são mantidas; podemos pensar numa analogia entre
o processo culinário e as normas para se escrever um soneto, nas quais tudo o que é
excessivo deve ser eliminado, de modo a caber na forma exata de um soneto feito para
conservar-se.
111
Mas o soneto de Ana Luísa, não liofilizado, tem um dístico que excede os
catorze versos, não é enxuto, tem excessos, é “molhado como o pão-de-ló”. O poema,
“a escorrer pela sílaba a escansão”, é escrito em decassílabos, de acordo com a tradição
camoniana, e apresenta rima, “feita e reforçada”, mas não forçada, já que não segue o
esquema de rimas de um soneto clássico. E, seguindo à risca a sua receita, o poema é
feito sob medida: segue algumas das normas tradicionais, mas não é exatamente um
soneto, pois é úmido, excessivo, “molhado como pão-de-ló, ou seja, desvia destas
mesmas regras, de modo que o poema não sendo exatamente um soneto, não deixa de
ter forma e a métrica de um soneto. Se, na tradução de Emily Dickinson, preservavamse os travessões e, assim, a sintaxe truncada, aqui é a própria estruturação do poema que
abre espaço para a indefinição.
Note-se que no fim do primeiro terceto há uma, por assim dizer, “chave de
ouro”, com dois versos rimados, no que pode ser uma referência ao soneto
shakesperiano. A seguir, sintática e semanticamente, um parêntese, que se inicia por um
verso autorreferencial, a formar, quanto à disposição, um dístico com o verso seguinte,
mas, quanto à rima, uma quadra com os dois primeiros versos do terceto seguinte. O
último verso, que fecha o perêntese, não rima com verso “algum”. Gostaríamos de
chamar atenção para a ambivalência ou intersecção desses elementos e partes do poema:
um parêntese é um acréscimo, destinado a um comentário ou a uma informação
complementar, algo que extrapola o “essencial”, e aqui é disposto após dois versos
rimados (alusão ao fim de um soneto inglês e, ao mesmo tempo, parte do primeiro
terceto); o que, em termos de disposição, seria um dístico isolado, é parte dos parênteses
e, com os dois versos seguintes, compõe uma quadra. A seguir, um verso que
poderíamos associar a um soneto estrambótico, ou com cauda, mas que, no entanto,
112
compõe o último terceto – o acréscimo estrutural estaria nos dois versos entre os dois
tercetos.
Quanto à temática, observamos que no último terceto do poema, surge um
elemento novo e não relacionado aos versos anteriores: a Rapunzel, “da janela húmida
de sais”, mas sem escada que sirva para subir ou descer da sua torre, visto que é
prisioneira, e “a cabeleira, a lado algum” ou seja, é a Rapunzel depois que foi punida –
com um castigo físico: o corte de seus cabelos – por ter recebido o príncipe em seus
aposentos, o que foi descoberto quando sua gravidez ficou evidente – e, posteriormente,
com o degredo, pois é condenada a errar pelo deserto. Ana Luísa Amaral, do mesmo
modo que Ana Cristina Cesar em seu poema “21 de fevereiro”, une referências à
literatura canônica com referências à literatura infantil, isto é, não canônica, como são
os contos populares de origem oral, transformados posteriormente em contos infantis.
Curiosamente, a história de Rapunzel, apesar de compilada pelos irmãos Grimm, tem
origem no conto de fadas “Persinette”, escrito por uma francesa, Charlotte-Rose de
Caumont de La Force, no final do século XVII 32, ou seja, o elemento literário que não
faz parte da tradição canônica é justamente o que tem origem numa história de autoria
feminina, o que poderia nos levar a pensar a respeito das mulheres assumirem a sua
dupla genealogia: materna e paterna, como defende Elaine Showalter. Ressaltamos que a
Literatura Infantil – uma “literatura menor”, não canônica portanto – talvez seja um dos
únicos campos da literatura em que prevalece a atuação de mulheres, não apenas como
autoras, mas também como editoras 33. Na Literatura Infantil assume-se a possibilidade de a
32
Conto que fazia parte do livro Les Contes des Contes, de 1698, os contos de Mademoiselle de La Force
fizeram bastante sucesso no século XVIII.
33
Muitos autores, como Peter Hunt, expressam “preocupação” em relação à predominância de
mulheres no mercado editorial de literatura infantil:
O quadro de profissionais no setor editorial ainda é predominantemente feminino, o que
pode ou não introduzir um problema de gênero. Conforme a famosa observação de John
113
função estética estar relegada a segundo plano, em detrimento da função pedagógica
(implícita ou explícita), de domínio, por excelência, das mulheres. E é justamente esse
caráter pedagógico e, em certa medida, moralizante que faz com que muitos críticos e
escritores desconsiderem a relevância da literatura infantil, a exemplo de Carlos
Drummond de Andrade:
O gênero “literatura infantil” tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá
música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária
eixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se
dirige ao espírito do adulto? Qual o bom livro para crianças, que não seja
lido com interesse pelo homem-feito? Qual o livro de viagens ou aventuras,
destinado a adultos, que não possa ser dado à criança, desde que vazado em
linguagem simples e isento de matéria de escândalo? Observados alguns
cuidados de linguagem e decência, a distinção preconceituosa se desfaz.
(DRUMMOND DE ANDRADE, 2011, p. 183)
Note-se, no entanto, que, ao explicar os motivos pelos quais não deveria haver
uma literatura infantil, Drummond enumera os preceitos desta literatura, cuja
linguagem costuma ser cuidada, assim como a sua temática, para atender a indivíduos
que ainda não atingiram amadurecimento linguístico e psicológico. Ressaltamos ainda
que é a partir da educação sistemática das crianças e da universalização do ensino que
a literatura infantil se desenvolve, pois a criança passa a ter autonomia de leitura e de
interpretação, inexistente quando as histórias eram transmitidas oralmente, já que as
narrativas eram sempre mediadas por adultos. Há, portanto, uma clara divisão entre
uma suposta “Literatura” – com letra maiúscula, verdadeira, canônica, maior, de valor
Goldthwaite [de 1980]: “Existem muitas mulheres trabalhando com livros para criança e
demasiadas ocupando cargos editoriais. Esse desequilíbrio entre sensibilidades
masculinas e femininas pode ter sido admitido em 1919, quando a Macmillan montou o
primeiro departamento juvenil do mundo e, sob a ilusão de que os livros para criança
pertenciam às senhoras, entregou o seu comando a uma delas; mas não há nenhuma
desculpa para isso hoje. Não há nenhuma prova de que as mulheres saibam mais que os
homens o que as crianças necessitam e desejam; e, ainda que houvesse, dificilmente isso
afetaria o veredicto sobre livros que nos foi dado por várias gerações de mulheres
editoras”. (HUNT, 2010, p. 224, grifos nossos)
Coube às mulheres, portanto, na literatura e no mercado editorial dos últimos cem anos, “cuidar” da
literatura infantil. E esta desigualdade – num dos únicos espaços de dominação feminina na literatura –
causa incômodo a homens, incômodo semelhante, ressaltamos, ao que muitas mulheres (feministas ou
não) sentem em relação a todo o resto da literatura.
114
artístico e estético – dominada por homens (autores e editores) e uma literatura dita
menor – de segunda categoria – dominada por mulheres.
Consideramos aqui a ascendência feminina da poesia de Ana Luísa Amaral
pensando na afirmação de Anna Klobucka, de que “a poetização da domesticidade”
(KLOBUCKA, 2009, p. 301) na poesia de Ana Luísa Amaral é uma “prática
autoconscientemente pós-feminista” (KLOBUCKA, 2009, p. 301), no sentido de não
perder a orientação progressista nos seus atos e em suas palavras, numa
prática que se baseia numa aceitação profundamente informada das propostas
da teoria e arte feministas e que, integrando a herança da chamada “segunda
vaga” do feminismo ocidental, reorienta-a através do questionamento e
derivações originais, os quais, não obstante a sua ênfase na negação […]
nunca traem a orientação fundamentalmente progressista que comportam.
(KLOBUCKA, 2009, p. 301)
Em concordância com isso Ana Luísa afirma que: “a segunda vaga do
Feminismo tem razão quando reivindica que o pessoal é o político. Não os posso
separar” (AMARAL, 2013, p. 50). Ressaltamos ainda a importância da poetização do
ambiente doméstico na obra de Ana Luísa Amaral pelo fato de ela ser, de acordo com
Anna Klobucka, pioneira no contexto português. Talvez o poema mais conhecido de
Ana Luísa Amaral seja justamente o primeiro em que, explicitamente, transforma
acontecimentos do cotidiano em matéria poética, “A verdade histórica”, de seu primeiro
livro, Minha senhora de quê, famoso mais precisamente por ser um dos poemas em que
fala da filha, poemas quase sempre com um tom bastante intimista e com um quê de
autobiográficos (ainda que fingidamente autobiográficos, já que, posteriormente, a poeta
afirmará que “minha filha jamais partiu uma tigela”):
A VERDADE HISTÓRICA
A minha filha partiu uma tigela
na cozinha.
115
E eu que me apetecia escrever
sobre o evento,
tive que pôr de lado inspiração e lápis,
pegar numa vassoura e varrer
a cozinha.
A cozinha varrida de tigela
ficou diferente da cozinha
de tigela intacta:
local propício a escavação e estudo,
curto mapa arqueológico
num futuro remoto.
Uma tigela de louça branca
com flores,
restos de cereais tratados
em embalagem estanque
espalhados pelo chão.
Não eram grãos de trigo de Pompeia,
mas eram respeitosos cereais
de qualquer forma.
E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,
mas das Caldas,
daqui a cinco ou dez mil anos
devia ter estatuto admirativo.
Mas a hecatombe
deu-se.
E, escorregada de pequeninas mãos,
ficou esquecida de famas e proveitos,
varrida de vassouras e memórias.
Por mísero e cruel balde de lixo
azul
em plástico moderno
(indestrutível)
(AMARAL, 2010a, pp. 38-39)
O título do poema contém certa dose de ironia, sem dúvida, como sustenta Anna
Klobucka: “A ironia que se desprende do título do poema tem a ver, certamente, com o
jogo de fingimento poético que decorre no intervalo entre o eu empírico e o eu lírico”
(KLOBUCKA, 2009, p. 29), ou seja, entre o momento em que teriam se dado os
acontecimentos e o momento da escrita, da reflexão a respeito desses acontecimentos.
Portanto não há verdade, mas podemos considerar que este título é crítico não apenas
neste sentido, pois também não há “histórica”. Historicamente os acontecimentos banais
116
do dia a dia ou os acontecimentos domésticos são considerados irrelevantes, o que é um
dos motivos por que as mulheres são invisibilizadas na História.
Note-se que a escrita falha enquanto se realiza, as interrupções são a própria
matéria do poema (“E eu que me apetecia escrever / sobre o evento, / tive que pôr de
lado inspiração e lápis”), ou seja, a interrupção é ela própria uma espécie de fingimento,
pois é também motivo da escrita. Ana Luísa Amaral mescla, neste poema, vocabulário
doméstico, de uma ação que se passa na cozinha, com termos historicizantes, tais como
escavação, estudo, mapa arqueológico e Pompeia, essa mescla se dá a partir do ato de
“varrer”, gesto doméstico e também científico, para um arqueólogo. E para um
arqueólogo de um futuro remoto talvez aquela tigela sem valor pudesse ter outro
significado e, quem sabe, o valor de um vaso da dinastia Ming, mas a filha partiu a
tigela e deu-se a “hecatombe”. Há aqui nítida hipérbole: uma tigela de cereais é com
graça comparada a um rito sacrificial, tal hibérbole, que aproxima a tigela e o sacrifício
antigo, mostra também a distância entre ambos, entre um evento doméstico, em um
poema que, pelo assunto e também pela graciosidade, não é “elevado” como aqueles
que costumam referir hecatombes, a exemplo dos poemas homéricos e das tragédias.
Nesta pequena tragédia cotidiana, a tigela partida, como o pote de azeite de Mofina
Mendes, põe fim aos sonhos de um futuro grandioso: “escorregada de pequeninas mãos,
ficou esquecida de famas e proveitos”.
Onze anos após a publicação deste poema, em Imagias, de 2001, Ana Luísa
Amaral o retoma em outro poema, entitulado “Outras verdades”, que tem por epígrafe o
primeiro verso de “A verdade histórica”: “A minha filha partiu uma tigela / na cozinha”.
Neste novo poema, o tempo passou e a filha está crescida, e o fato de a filha – real ou
imaginária – ter crescido, causa inquietação:
117
A minha filha já não parte
tigelas na cozinha.
Nem usa borboletas no cabelo,
nem veste certas roupas de brincar.
E onde vou arranjar agora o verso
Sem tigelas partidas devagar?
(AMARAL, 2010a, p. 355)
Se antes a tigela – que a filha real nunca terá partido – quebrada pela filha “de
pequeninas mãos”, ao interromper a escrita do poema, constituía-se em matéria poética,
agora o não ter mais o mote das tigelas partidas para poder escrever o poema constituise no próprio poema, e escreve-se o verso sem as tigelas partidas devagar. E agora a
tigela, Ming, assim como as narrações, é luxuosa:
Mas tão de luxuosas narrações,
de pequenos papéis feitos de luz,
de descrições pujantes devagar.
Tão rocas de fiar tão finamente.
As tigelas agora definitivamente
De dinastia Ming, elaborada
em mil delicadeza.
(AMARAL, 2010a, p. 356)
A filha já não tem mais idade de partir tigelas, talvez – e agora voltamos mais
uma vez aos Contos de Fadas – esteja na idade da Bela Adormecida, que estava fadada
a furar o dedo na roca de fiar quando completasse quinze anos de idade. Mas aqui não
há fadas nem feitiços, tampouco há príncipe, são apenas a mãe e a filha, que agora “cola
outras tigelas” (AMARAL, 2010a, p. 356). A passagem do tempo, o crescimento da
filha e a impossibilidade de voltar ao passado dão um tom melancólico ao poema:
“tento colar / ainda o tema, / o instante perdido da cozinha” (AMARAL, 2010a, p. 356),
a única maneira de voltar ao passado, recriando-o, é através das palavras, da matéria
poética, com “a ternura da cola a mesma / – sempre”.
118
3.4. O RETORNO DO ÉPICO NA POESIA DE ANA LUÍSA AMARAL
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio
Mário de Sá-Carneiro
Há um outro ponto que consideramos relevante na constituição de uma poética
feminina e que gostaríamos de abordar aqui: o retorno à épica breve, na qual o herói
tradicional, representado pela figura do comandante ou guerreiro, é substituído pelo
indivíduo comum, o que possibilita o protagonismo feminino. Ou seja, na epopeia
breve, a personagem principal deixa de ser o herói idealizado e passa a ser alguém
mediano, não o herói que vence sozinho uma guerra, ou, correlatos da própria virtude,
os barões assinalados que conquistam novas terras. Esse homem, menor, hoje
aproxima-se do homem que a poesia após o Romantismo nos apresenta, em linguagem
também menos solene, mais adequada à temática mediana, pois uma linguagem
elevada aqui pareceria deslocada e artificial, ou seja, seria inadequada ou se prestaria à
ironia.
A conceituação de épica sedimentada nas literaturas de língua portuguesa, quase
sempre elaborada a partir d’Os Lusíadas e das poéticas de Aristóteles e Horácio, ganha
um novo sentido a partir da hipótese de M. S. Lourenço, de que é ao épico breve que
retornamos – ou seja, não ao poema grandioso, de grandes feitos de um grande povo –,
e a viagem, quando adotada como tema, atém-se principalmente a um sentido
espiritual. Para M. S. Lourenço: “‘O Sentimento dum Ocidental’ é um poema épico
breve, no qual a acção heroica é a transformação cognitiva experienciada pelo poeta
enquanto erra pela triste cidade, subindo e descendo, no crepúsculo nebuloso”
(LOURENÇO, 2009, p. 626).
119
Há que se notar ainda que as épicas breves, como sua designação já assinala, são
de pequena extensão, se comparadas com as épicas homéricas ou camoniana, por
exemplo. O retorno do épico, em Portugal, seria, portanto, um retorno não à temática
épica clássica, camoniana, mas a uma linguagem portuguesa, a um “modo de ser em
português”, que traz à tona – com o que está dito e expresso no poema – as palavras
proibidas, oprimidas, censuradas ou sussurradas nas “idas e vindas entreditas das
palavras ditas interditas” (SILVEIRA, 2009). Jorge Fernandes da Silveira reitera esta
hipótese tomando como ponto de partida o poema de Alexandre O’Neill, “Um Adeus
Português”, datado de 1958, cujos versos:
levantam a hipótese [...] de a interlocução entre versos ser lida como a
construção de uma linguagem capaz de, em correspondências, dizer como em
estados de censura, de proibição do livre trânsito da palavra, a poesia aprende
a dizer, soletra, diz, e ensina a dizer, escreve o sentido de falar de liberdade
em tempos de opressão, de fazer poemas como se fossem “notícias do
bloqueio” por meio da troca de versos entre poetas ao mesmo tempo
solitários e solidários com e por imagens. (SILVEIRA, 2009, grifos do autor)
Ou seja, o diálogo entre poetas e com a tradição seriam, através da interlocução
de versos, formas de burlar a censura e de resistir à opressão. Note-se que o épico
breve, ou a epopeia breve, surge ainda no período clássico (a própria palavra épico
deriva de επος, que significa “palavra”, “narrativa”). Era o poema narrativo, escrito em
hexâmetros, como a epopeia, em oposição à ode e à elegia, por exemplo. Quando
chegamos aos poetas alexandrinos, há a noção de que Homero já teria dito tudo que
havia para ser dito, não havendo, depois dele, necessidade de narrar todos os
pormenores da trajetória de um herói; bastará, para os que escrevem sobre esses
heróis, apenas dizer o nome deles, e toda a grandeza épica, por assim dizer, poderá
assim ser evocada. No entanto, por mais que se use desse recurso, os heróis não terão a
mesma magnitude, serão, o mais das vezes, medianos:
120
O género breve do poema épico é, como o nome já sugere, de tamanho menor,
e acima de tudo o tema da viagem, que é o objecto comum a ambos os géneros,
tem de ser compreendido num sentido puramente espiritual: aqui os dois
pontos, o ponto de partida e o ponto de chegada, situam-se na alma do chefe
temporal e espiritual. Na verdade, no género breve de poema épico o chefe
conduz-se apenas a si próprio (LOURENÇO, 2009, p. 626).
É importante ressaltar que os feitos heroicos e as lutas também têm a ver com o
“homem médio” – sobretudo quando não está sozinho ou quando um homem, no
poema, pode dizer todos os homens: quando se trata da poesia portuguesa escrita a
partir da segunda metade do século XX, pode-se dizer que um dos importantes feitos
do homem comum é o combate por direitos e o combate à censura, não há, portanto,
como não falar da escrita em estados de censura e de interdição. Mesmo porque, no
século XX, não faz mais muito sentido falar em um herói grandioso, que simboliza as
conquistas de um povo através de guerras, lutas e batalhas, a exemplo do que ocorre
com Leopold Bloom, em Ulisses, de James Joyce – escrito durante a Primeira Guerra
Mundial –, a grande viagem do herói, não é mais uma travessia que duraria muitos
anos, é uma viagem de um dia, introspectivamente grandiosa. Num outro sentido,
ecoa, na poesia portuguesa, nos anos que se sucederam aos versos de O’Neill, esta
linguagem capaz de falar de liberdade em tempos de opressão, de dizer em estados de
censura, de burlar a censura fazendo poemas como se fossem “notícias de bloqueio” 34.
A censura e a interdição podem ser oficiais – e são durante boa parte do século XX
tanto em Portugal quanto no Brasil –, mas podem ser também referentes a outras
interdições, como são as interdições à fala, aos direitos e às ações das mulheres 35.
Talvez seja apenas no século XX que haja o surgimento, na poesia em língua
portuguesa, de uma “mulher média”, capaz de feitos heroicos, ainda que esteja
34
Notamos a similaridade, num certo sentido, com o que ocorria no Brasil dos anos de 1970, em que a
poesia foi um dos únicos espaços que sobrou para que se pudesse falar de liberdade naqueles tempos de
opressão.
35
Relembremos que as Novas cartas portuguesas e as “Três Marias” são, emblematicamente, o maior
símbolo da luta contra a censura e interdição à fala das mulheres em língua portuguesa.
121
sozinha, e de lutar contra a censura e a opressão. É incontornável aqui referirmo-nos
ao poema épico Dezanove Recantos, de Luiza Neto Jorge 36, “obra que, recordando
uma tradição que parte das epopeias clássicas e passa por Os Lusíadas e pela
Mensagem, revê esta linhagem patriarcal, desviando-a, e conduzindo-a no sentido de
uma ‘epopeia sumária’ que a interpela e desequilibra” (MARTELO, 2006, p. 86).
Na poesia de Ana Luísa Amaral, o retorno à épica breve está presente, na medida
em que seus poemas tratam, com linguagem que se aproxima da linguagem do
cotidiano, de uma temática mediana, aparentemente simples, mas que está em busca de
descrever e expressar inquietações profundamente femininas 37. Podemos tomar como
exemplo os poemas já citados: “Inspirações”, “A verdade histórica” e “Outras
verdades”, em que acontecimentos banais e domésticos suscitam essa viagem
espiritual de que nos fala M. S. Lourenço e em que o ponto de partida e o ponto de
chegada situam-se na alma “do chefe”, ou da heroína, que conduz apenas a si
mesmo(a). Os espaços privilegiados neste retorno ao épico breve, segundo Jorge
Fernandes da Silveira, são os espaços urbanos: os cafés, as praças e as ruas da cidade.
Esses espaços urbanos muitas vezes são inacessíveis à mulher, o que não impede a
viagem, que, por ser espiritual e interior, pode ocorrer num espaço também interno,
doméstico, como, aliás, era o ambiente do poema épico breve Hécale, de Calímaco,
em que é narrada a estada de Teseu na choupana de Hécale, onde o heroi teria se
abrigado de uma tempestade, durante seu retorno após ter dominado o touro de
Maratona. Neste caso, o que seria apenas um episódio torna-se maior e mais
importante que o que supostamente deveria ser o “argumento” do poema. Importa
36
Seria interessante explorar melhor este viés de leitura e os diálogos entre as obras poéticas de Ana
Luísa Amaral e Luiza Neto Jorge, assim como a exploração da mesma temática – relacionada à épica
breve – em relação à obra de Irene Lisboa.
37
Do mesmo modo, Ana Cristina Cesar, dá voz feminina ao discurso urbano, através de poemas que se
aproximam da crônica trazendo à tona questões envolvidas no retorno do épico: com questões do
cotidiano, dos sentimentos vulgares e dos lugares banais.
122
perceber aqui, além da magnitude, que se trata de um ambiente doméstico, e não de
um campo de batalha. Talvez a entrada da epopéia – breve – nesse espaço doméstico
abra espaço para a mulher enquanto protagonista, o que, consequentemente,
ocasionará a possibilidade de haver um discurso feminino na épica breve. Na poesia de
Ana Luísa Amaral, é interessante perceber o tipo de reflexões que o espaço de um
café, por exemplo, numa perspectiva feminina pode suscitar:
LUGARES COMUNS
Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também
e eles até tiveram mais coisas agora
é só a Escócia e um pouco da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mas adiante)
Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda do que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal-intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.
Claro que meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens,
os ingleses nem se metem como os nossos,
e por aí fora…
E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu
Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I`m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber
E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
123
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
como quem diz: That’s it
e olhou-me assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são
(AMARAL, 2010a, pp. 109-111)
O título do poema, uma referência a um recurso retórico antigo, locus comunis 38,
ou tópico, refere-se atualmente a algo normalmente indesejado na literatura: “lugarcomum” tornou-se sinônimo de “clichê”, ou seja, assume o sentido pejorativo para se
dizer que algum recurso ou tema é banal, repetitivo, e que já não surte efeito poético.
No entanto, os sentidos dados ao termo por Ana Luísa Amaral, embora sejam banais
num certo sentido, não o são literariamente, ou seja, seu poema não lida com tópicos
comuns à poesia. O “lugar-comum” aqui assume o sentido, primeiramente, de um
“lugar comum”, um espaço comum, que é o “café manhoso de Londres”, assume
também o sentido de “senso-comum”.
Trata-se de um poema narrativo, como convém a um poema épico, em que não
há herói, há heroína, e a viagem interior, assim como todos os conflitos internos desta
heroína, ocorrem pelo fato de ela ser mulher. Desse modo, observamos que na poesia de
Ana Luísa Amaral o retorno do épico se dá de maneira peculiar, uma vez que a viagem
da alma do “homem comum” sofre modificações, simplesmente porque aqui não há um
“homem comum”, há uma “mulher comum”. Há a necessidade de se confrontar com os
seus “preconceitos todos de mulher”, presentes na hesitação antes de cada passo para
entrar num espaço predominantemente masculino. Preconceitos “de mulher”, que
38
Talvez fosse interessante observar as relações entre este poema e o livro de João Luís Barreto
Guimarães, Lugares Comuns, todo ele passado num café da baixa portuense.
124
reproduzem preconceitos de ordem sociocultural – e que são também lugares-comuns –,
pois uma mulher não deve entrar num café (ou num outro recinto qualquer) onde só há
homens, um café “pior ainda que um nosso bar de praia”. É senso comum: a mulher
deve se proteger da exposição, principalmente se estiver sozinha. Um café “manhoso”,
um bar de praia ou um botequim não são lugares para uma mulher, que deve saber que
estará sujeita aos homens e aos seus olhares, ou a gracejos: ser chamada de “love”, por
exemplo.
A ação no poema não tem a mesma importância da viagem interior da heroína,
feita de sucessivas escolhas, cada uma precedida de numerosas ponderações. O poema
enumera preocupações da “mulher comum” no seu dia a dia: entrar ou não entrar num
café sujo e de aspecto duvidoso, enfrentar ou não enfrentar um lugar onde só há
homens, responder grosseiramente ou relevar um gracejo, pensar sobre se tal gracejo foi
feito com má intenção, perceber que alguns homens são menos grosseiros que os outros
(“os ingleses até nem se metem como os nossos, e por aí fora…”), e por isso, ou por ter
outras preocupações, importar-se menos. E a mulher lembra-se ou é lembrada o tempo
inteiro de que é uma mulher, e por ser uma “mulher comum”, talvez o único espaço em
que ela possa baixar a guarda seja nos espaços em que ela tem o domínio, ou seja, nos
espaços domésticos. É preciso, nos espaços urbanos, pensar sobre como lidar com o
comportamento “entranhado nas culturas” daquele que – em menor ou maior grau –
domina o espaço físico e social: o homem. Faz-se necessário, a todo instante, ter a
consciência do que é ser “o outro”, ou melhor: a outra, e de como se deve falar ou agir a
partir desse lugar – esse “lugar-não-comum”, que não é o lugar do eu, nem o do outro,
como já prenunciava o subtítulo da primeira parte de Minha senhora de mim: “qualquer
125
coisa de intermédio” 39. No entanto, o poema e o café manhoso contam com uma
segunda mulher, que a princípio não é notada, mas que compartilha – ou ao menos
compreende – e compactua com a heroína-narradora do poema, fazendo com que ela se
sinta mais forte, ainda que sem saber por quê. Talvez porque sejam mulheres solitárias
em meio a tantos homens comendo bacon e ovos num ambiente opressor, mas podem
mostrar-se solidárias entre si, por meio da troca de olhares, de modo que – para citarmos
as Novas cartas portuguesas 40 – elas continuem “sós mas menos desamparadas”.
39
Título também de um poema do livro, que tem por epígrafe os versos de Mário de Sá-Carneiro
modificados: “Eu não sou um nem sou o outro: / Sou qualquer coisa de intermédio” (AMARAL, 2010a,
p. 22, grifo nosso), modificado também está o nome do poeta: “M. de Sá Carneiro”, talvez aqui Ana Luísa
já tenha deixado pistas de que sua leitura subverteria o sentido original da tradição – clássica ou moderna
– com a qual dialoga.
40
BARRENO, COSTA e HORTA, 2010, p.304.
126
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não volto às letras, que doem como uma catástrofe.
Não escrevo mais. Não milito mais
Ana Cristina Cesar
Pensa-se, por vezes, que há conquistas irreversíveis. Não há,
infelizmente. Por isso é tão fundamental estarmos disto cientes e lutar
pela dignidade e pela liberdade.
Ana Luísa Amaral, a respeito das restrições ao aborto na Espanha, em
dezembro de 2013
Mas o que pode a literatura?
Ou antes: o que podem as palavras?
Novas Cartas Portuguesas
Buscamos, através deste trabalho, observar de que maneiras Ana Cristina Cesar
e Ana Luísa Amaral estabelecem a subjetivação no feminino a partir da tradição
literária. Ambas as poetas elaboram a dicção em feminino por caminhos diversos:
enquanto Ana Luísa Amaral estabelece uma relação de filiação com as poetas
portuguesas, Ana Cristina Cesar critica a poesia de mulheres feita no Brasil, onde não
haveria uma mulher modernista que reivindicasse esse lugar de mulher poeta e que se
escrevesse como mulher, a exemplo das mulheres modernistas da literatura de língua
inglesa – literatura que tanto Ana Cristina Cesar quanto Ana Luísa Amaral estudam e
traduzem. Seria interessante fazer um estudo mais aprofundado da relação de ambas
com as escritoras de língua inglesa, especialmente com as escritoras que traduziram.
Tratamos de algumas relações intertextuais de Ana Cristina Cesar e Elizabeth Bishop e,
mais detalhadamente, de algumas relações entre a poética de Ana Luísa Amaral e de
Emily Dickinson.
Para além disso, tentamos trazer para este estudo algumas questões relevantes na
construção de uma poética em feminino em ambas as autoras, para a qual é fundamental
127
a relação das duas com os poetas homens que as antecederam – especialmente com
alguns dos grandes escritores do cânone ocidental –, pois, ao lidar com a tradição
literária é preciso referenciar a uma poética e a uma dicção que são essencialmente
masculinas. De que forma acontece o deslocamento entre musa e poeta? Como dar voz
a quem passou séculos muda ou emudecida? Como passar de corpo desejado para corpo
desejante? São algumas questões com as quais nos deparamos durante a escrita deste
trabalho.
Talvez agora, às vésperas dos 40 anos da Revolução dos Cravos e 50 anos
depois do Golpe Militar de 1964 no Brasil, estejam se delineando, de maneira que
jamais imaginaríamos, semelhanças entre os nossos dias – dias aos quais Ana Luísa
Amaral se refere como “presente estragado”, no qual se apagaram os “cheiros e as
cores” dos cravos da revolução:
Queria encontrar uma palavra que falasse de nós, deste nosso tempo feito de
descalabro, das profundas, terríveis desigualdades instaladas, tão mais
chocantes quanto a seu lado se invoca o sacrifício e razões económicas em
cifradas linguagens e em constantes referências às obrigações de dívidas que,
como povo, não fizemos; tão mais chocantes quanto nos passam uma ideia
mentirosa de futuro. Essa palavra havia de falar do futuro que não chega,
nem nunca chegará se o trilho continuar a ser o mesmo, e do presente
estragado, e do passado de há quarenta anos, cheio de cravos e sonhos, do
qual propositadamente se apagaram os cheiros e as cores. Queria falar da
esperança verdadeira que vai sendo destruída pelas falsas esperanças.
(AMARAL, 2013)
– e os dias em que Ana Cristina Cesar escrevia. Tanto no Brasil quanto em Portugal
percebem-se retrocessos: retrocessos nos direitos individuais, nos direitos democráticos
e na liberdade de expressão. Por isso gostaríamos de nos estender um pouco mais em
questões abordadas tanto por Cacaso para falar da poesia dos anos de 1970 no Brasil
quanto por Jorge Fernandes da Silveira ao abordar o retorno do épico: na poesia reside a
possibilidade de falar de liberdade em tempos de opressão. E por isso a subversão do
discurso constitui um contra-poder, uma vez que a linguagem não pode mais ser vista
como neutra a partir do momento em que é assumidamente política e politizada
128
(independente disto, como expusemos aqui, acreditamos que não existe neutralidade do
discurso). Segundo Rosa Maria Martelo 41, a língua pode transportar posicionamentos
éticos, estéticos e políticos e, ao mesmo tempo, uma realidade que segue regras
próprias, pois a “língua em acto”, ou seja, o discurso, é capaz de subverter a gramática
e, assim, deslocar os significados. Mas em que reside a importância de estudarmos a
escrita de mulheres a partir da tradição literária neste contexto?
Talvez seja importante relembrar a história das Novas Cartas Portuguesas –
símbolo da luta conta a opressão do governo de Marcelo Caetano, que mostrou-se uma
continuação do regime salazarista, e da denúncia à opressão às mulheres – que após o
25 de abril ficaram “esquecidas” em Portugal por quase trinta anos. Um dos motivos
porque isto ocorreu foi pelo fato de o livro ter sido considerado “datado”, uma vez que o
regime que as Três Marias denunciavam e contra o qual se opunham havia acabado;
outro motivo é o fato de, com a abertura do regime democrático, ter-se tornado mais
urgente consolidar a democracia do que combater a opressão contra a mulher, que não
deixou de existir graças à democracia. Ana Luísa Amaral chama a atenção para o fato
de que há – embora deva ser combatida e repudiada – uma “hierarquização da
violência”. A violência, e a opressão, contra a mulher é vista como se fosse menor que a
violência de um regime ditatorial – como se fossem apenas problemas pessoais e
particulares –, e também neste sentido podemos voltar à afirmação das feministas da
segunda vaga: “o pessoal é político”, ou seja, a violência perpetrada pelo desejo do
controle do corpo e da sexualidade, praticada contra a mulher, não diz respeito apenas à
esfera privada.
No entanto, ao contrário do que poderiam imaginar as feministas dos anos de
1960 ou 1970, neste momento de retrocesso em que vivemos, o desejo do controle do
41
II Congresso Internacional da Faculdade de Letras/ UFRJ, setembro de 2013, anotações pessoais
129
corpo e da sexualidade extrapolam a esfera privada e torna-se uma questão política. Ana
Luísa Amaral revela a sua perplexidade e indignação com a reivindicação de referendos
a respeito do aborto e da adoção de crianças por casais homossexuais em Portugal, em
pleno século XXI:
Ambas as questões que o PSD [Partido Social Democrata] considerou
fracturantes na sociedade [o aborto e a co-adopção de crianças por
homossexuais] e para as quais reivindicou referendos têm a ver com o corpo
e com uma única coisa: o controle daquilo que nos é mais intrínseco e
privado, que é a sexualidade e a livre expressão dos afectos. (AMARAL,
2014)
A adoção de crianças por casais do mesmo sexo foi vetada no parlamento
português no último dia 14 de março e o aborto, legal em Portugal desde referendo
datado de 2007, sofreu sérias restrições na Espanha – país vizinho a Portugal e que
também sofre as duras consequências da crise econômica europeia dos últimos anos.
Mulheres portuguesas manifestaram sua solidariedade para com as espanholas em
manifestações que ocorreram em Lisboa, no Porto e em Coimbra, no último dia 8 de
fevereiro; a campanha pelo aborto legal e seguro tem por símbolo um cabide de arame
com a inscrição “nunca más!” 42, em referência às práticas de aborto caseiras e
clandestinas, denunciadas ainda em 1972 nas Novas Cartas Portuguesas 43:
E morreu, por fazer um aborto com um pé de salsa, morreu de septcemia
[…]. E contou-me, há anos, uma amiga minha, médica, que no banco do
hospital eram tratadas com desprezo as mulheres que entravam com seus
úteros furados, rotos, escangalhados por tentativas de abortos caseiros, com
agulhas de tricot, paus, talos de couve, tudo o que de penetrante e
contundente estivesse à mão, e que lhes eram feitas raspagens do útero a frio,
sem anestesia e com gosto sádico, “para elas aprenderem”. (BARRENO;
COSTA e HORTA, 2010, p. 205)
42
Colocamos a reprodução do cartaz da manifestação em anexo.
No Brasil, apesar de ocorrerem cerca de 800 mil abortos clandestinos por ano – em clínicas
clandestinas, quando a mulher tem condições de pagar, ou através de métodos semelhantes aos descritos
nas Novas Cartas Portuguesas – cogita-se (através de vários projetos de lei) proibir o aborto legal em
casos de estupro, um dos únicos casos em que o aborto é permitido no país.
43
130
Assim, queremos chamar a atenção para o fato de que, como alerta Ana Luísa Amaral,
não existem conquistas irreversíveis, e que por isso precisamos estar atentos à
possibilidade de existirem retrocessos políticos e de direitos, atrelados a uma
significativa
repressão
ao
corpo
e
à
liberdade
individual,
que
implicam,
necessariamente, maior repressão à mulher. E a poesia continua a ser – talvez porque
seja, como afirma Rosa Maria Martelo, ainda hoje (como era nos anos de 1970), muito
pouco rentável 44 –, um espaço de resistência.
44
Na poesia produzida hoje a singularização seria, portanto, de acordo com Rosa Maria Martelo, uma
forma de resistência à massificação, por isso a questão da expressividade torna-se tão importante num
mundo que utiliza a linguagem para fazer mudanças muito cruéis, já que no mundo neo-liberal cria-se
uma nova língua, na qual, massificados, passamos todos a ser clientes e consumidores.
131
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Florença.
2. Vênus de Milo, autor desconhecido, mármore, cerca do século II a.C., Museu do
Louvre, Paris.
140
3. O nascimento de Vênus (La Naissance de Vénus), William Bougereau, 1879,
óleo sobre tela, Musée d`Orsay, Paris.
4. A Origem do Mundo (L'Origine du monde), Gustave Courbet 1866, Musée
d`Orsay, Paris
141
5. Cartaz das manifestações em solidariedade às mulheres espanholas e a favor do
direito ao aborto legal e seguro, ocorridas simultaneamente em Lisboa, no Porto
e em Coimbra no dia 8 de fevereiro de 2014.
142