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PORTUGAL
MANUEL ALEGRE O candidato presidencial ganhou em Portugal a medalha de ouro no tiro aos pratos
Caçador
PORTUGAL
Conquistou
o canto e o apoio
dos desencantados
e desalinhados dos
aparelhos. Faltam-lhe
as armas partidárias.
O candidato Manuel
Alegre diz que tem
«biografia a mais»:
«Estive em todas as
batalhas, nunca tive
falta de comparência.»
No ano em que
a «voz da liberdade»
se tornou na voz
da incomodidade
ANA MARGARIDA DE CARVALHO
A
s rosas haveriam de se rir
a pétalas despregadas.
Nunca fiando, as rosas são
traiçoeiras. Seduzem, mas
têm espinhos. Vacilam, mas
resistem a murchar. Iludem
até reis, mas, com alguma boa vontade, podem ser comestíveis. São rosas, senhor Manuel Alegre. Sempre
presentes na vida do deputado poeta.
Depois do 25 de Abril, na iconografia
partidária. Desde que ele se lembra,
na sua própria efeméride familiar.
Dizem que Maio é o mês das rosas.
A mãe, Manuela Alegre, tinha o hábito – vindo sabe-se lá de onde – de,
todos os anos, no dia do aniversário
do filho, a 12 de Maio, lhe oferecer
GONÇALO ROSA DA SILVA
solitário
PORTUGAL
FOTOS: D.R.
ÁLBUM Com a mãe, em
Argel; com a irmã Teresa,
aos 12 anos; com a avó
Margarida (à esq.), o
cunhado, o já falecido
guitarrista António
Portugal, e a irmã, nos
tempos de Coimbra; com a
mulher, Mafalda, e o filho
mais velho, Francisco,
nascido durante o exílio
4Caçador
Solitário
um ramo de rosas vermelhas, colhidas na roseira do quintal de Águeda.
Era um presente sem palavras, «só as
suas mãos compondo as rosas».
Em Maio de 1963, Manuel Alegre
estava preso em Angola. Sozinho,
apesar das pancadas do morse solidário das celas contíguas. A mãe já não
lhe podia mais aquietar os pesadelos
infantis. «Acordar era ter a certeza de
que a realidade não desmentiria o pesadelo.» Os fantasmas eram «donos
do país». Sozinho, naquele quadrado
de sete por sete passos, «nessa realidade branca e gelada, toda feita de
paredes, grades, perguntas, gritos».
Altura de, continua, num poema em
prosa publicado há 40 anos (em Praça
da Canção), «saber se as traves mestras de um homem resistirão». «Era
terrível acordar no mês de Maio, com
a certeza de que, no dia 12, a minha
mãe não entraria pelo meu quarto,
deixando-me na fronte um beijo, e
rosas vermelhas sobre os meus 27
anos.» Maio não era o mês das rosas, na cadeia colonial de S. Paulo.
E, no entanto, o milagre aconteceu.
O carcereiro entrega-lhe uma carta
da mãe, num sobrescrito já violado,
e, ao desdobrar as folhas, pétalas
de rosa caem no chão da cela. As
traves mestras resistiram. O prisioneiro posiciona-se no seu quadrado
de Atoleiros. Manuel Alegre estava
no seu posto.
Em Outubro de 2005, o deputado
está novamente dentro do quadrado.
No que simboliza o seu reduto de re42
VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005
sistência solitária. No gabinete da
Assembleia da República que é um
quase quadrado, espaçoso. O candidato presidencial, abandonado pelos próprios camaradas submetidos à
disciplina partidária do PS, sustenta
uma dignidade teatral, interrompe
as perguntas, quebra, de súbito, os
silêncios, esgrime o admirável talento
para produzir frases perfeitas, projecta as palavras na profundidade do
seu timbre. Por vezes, impacienta-se,
parece ausentar-se, num (aparente?)
desinteresse, algo que pode ser confundido com altivez ou narcisismo.
«É sobretudo reserva, timidez e uma
incapacidade de praticar uma certa
forma portuguesa de hipocrisia e
compadrio. Ou talvez um tique que
herdei de família: levantar a cabeça,
olhar a direito.»
Trazem palavras de apoio, garantem-lhe que «há muita gente dentro do
seu quadrado».
Manuel Alegre, de vez em quando,
vai circum-navegando o olhar pelo gabinete de vice-presidente da Assembleia. Atrás da secretária, uma foto
ampliada, de Eduardo Gageiro, mostra Salgueiro Maia e outros soldados já
triunfantes ao lado de uma Chaimite
– «parece que é a única foto do 25 de
Abril existente aqui na Assembleia»,
diz. Numa mesa central, duas molduras, uma de Sampaio, outra, com
maior destaque, de Mário Soares, em
vestes presidenciais. Manuel Alegre
não quer falar mais «daqueles incidentes desagradáveis». Prefere contar
a história de Churchill que uma vez
explicava a um miúdo como se distribuíam os lugares dos parlamentares.
Os inimigos sentam-se ali? Não,
responde Churchill, sentam-se aqui
Não são pétalas, desta vez, que lhe
dão o ânimo e que lhe sustentam
as paredes mestras. Mas folhas. Às
centenas, distribuídas por dois maços de papel impresso, com mails
que chegaram à sua caixa de correio
electrónico, sobretudo depois de ter
publicado o conto O Quadrado («Um
homem não se rende. Talvez seja por
isso que estou aqui, não sei ao certo
onde nem desde quando, talvez desde
sempre, no meio de um quadrado,
cercado e sozinho, mas não vencido»),
no Expresso, em finais de Setembro.
«E ali sentam-se os vossos inimigos?»,
perguntou a criança, apontando a
bancada oposta. «Não», respondeu
Churchill, «ali sentam-se os adversários. Os inimigos sentam-se aqui.»
Em nome da rosa
«Eu venho incomodar. / Trago
palavras como bofetadas / e é inútil
mandarem-me calar.» Nos tempos
que, hoje, nos parecem desfocados e
estrangeiros, em que «os fantasmas
eram donos do país», o canto de «verdades mais fortes que as algemas»,
PORTUGAL
JOSÉ MIGUEL TELES
»ÁGUEDA
ÁGUEDA Silva Pinto, amigo de infância, e o novo presidente da
Câmara, Gil Nadais, frente à casa de família do deputado
Viagem ao centro da terra
Na terra, a sua, onde anunciou a candidatura presidencial, Manuel Alegre é ainda
um animal de hábitos. O restaurante Ribeirinho fica a
dois passos da sua casa com
traços de Raul Lino. E ele continua cliente assíduo, contra
ventos e marés. Explique-se:
os patrões, o senhor Óscar e a
dona Ester, são ferrenhos militantes do PSD e já ouviram
das boas dos seus compinchas
de partido por se embeiçarem
com o poeta. Este também já
várias vezes ouviu dizer que
militantes socialistas gostam
pouco das cumplicidades com
a malta do Ribeirinho. «É não o
conhecerem. Ele tem tomates,
muita coragem», diz a dona Ester. Alegre gosta da mesinha
do canto, mesmo por debaixo
do azulejo alusivo à Pateira de
Fermentelos. É cliente do frango no churrasco e dos rojões.
O vinho, esse, é de lavrador.
Leva algum para Lisboa. Nas
paredes repousam pequenos
poemas de Alegre rabiscados
na toalha de mesa, dedicados
a quem tão bem o trata. Que
o assunto seja motivo de co-
chichos e inimizades, ao poeta
pouco lhe importa. E aos donos
do Ribeirinho muito menos.
A firmeza de carácter é à prova de água. Aquando de uma
das mais violentas cheias em
Águeda, amigos foram a casa
de Alegre buscar o cão e a filha. A água trepava, mas ele
quis ficar. «O comandante é
sempre o último a abandonar
o barco», terá dito, no tom que
se imagina. Teimoso ou aferrado a princípios, conforme
a perspectiva, os amigos admiram-lhe o estilo, a postura:
«Já viu bem aquela pose? Ele
diz que é da natação, mas não
é. Ele é um bocado marquês,
também», graceja Silva Pinto,
médico reformado, amigo dos
tempos de Coimbra, agora
eleito para a assembleia municipal de Águeda. Gil Nadais,
o novo presidente da Câmara,
reconhece que «a presença de
Alegre na campanha autárquica arrastou uma mediatização
que empurrou o PS para a vitória» num concelho onde nunca
havia ganho. É caso para dizer
que santos da casa fazem mesmo milagres. Miguel Carvalho
PORTUGAL
MAIO DE 74 Recepção em Águeda, ao fim de dez anos de exílio
4Caçador
Solitário
foi referenciado; quis denunciar a «pátria vestida de viúva», foi perseguido;
inflamou assembleias estudantis de
Coimbra, foi mobilizado; revoltou-se, na guerra; foi preso; continuou
a «incomodar»; teve de se exilar por
dez anos, em Argel… Desligou-se do
seu partido, o PCP, desiludido com a
invasão da Checoslováquia, tornou-se
numa figura quase lendária: o principal «locutor» da Voz da Liberdade,
transmitida na frequência da Rádio
Nacional da Argélia, escutada «clandestinamente» em Portugal.
Era ele a «voz da liberdade». E a voz
individual fez-se polifonia. O 25 de
Abril veio cortar-lhe a vida em duas
metades. Em 1974, já estava nos palanques, no primeiro congresso do PS,
na Aula Magna. «É um militante revolucionário que vos fala», dirigiu-se
assim aos congressistas e fez o discurso
– «memorável», na opinião de Mário
Soares –, que mudou os destinos daquele partido (jogava-se ali uma inversão esquerdista), contra «o complexo
de não parecer de esquerda». Mário
Soares chamou-lhe um «tribuno temível». Quando visitaram Mitterrand,
em 1981, depois de este vencer as presidenciais francesas, Soares apresentou Alegre a son ami como «o melhor
orador português». Haviam-se conhecido em 1964, estava Mário Soares de
cama, com gripe, num hotel de Paris.
Um amigo em comum profetizou: «Vocês foram feitos para se entenderem.»
Acertou. Até ontem.
Alegre acompanhou o amigo nas alturas difíceis, quando este se afastou
do PS, por não querer apoiar Eanes.
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«Fui dos poucos que apoiou Soares.
Alguns dos principais agentes dessa
ruptura estão hoje do lado dele.» Ou
quando este travou batalhas contra
o PCP. Uma vez, Manuel Alegre garantiu: «Eu seja ceguinho se alguma
vez o PS vai fazer alianças.» Ficou conhecido nos meios comunistas como
o «Manuel Ceguinho». Mesmo assim,
não gosta que lhe chamem soarista:
«Nunca fiz parte da corte de Mário
Soares. Quando tinha alguma coisa a
dizer, dizia-lhe. Sempre fui uma pessoa autónoma, já existia antes de o
conhecer. Política e culturalmente.»
Sempre se recusou a ser ministro
ou deputado europeu, depois de ter
sido secretário de Estado no I Governo Constitucional, experiência que
não lhe agradou. Desconfia daqueles
COM TORGA E PAULO QUINTELA
O segundo ensinou-o a silabar e a
colocar a voz, nos palcos de Coimbra
à Revolução de Abril: «Trinta anos
depois querem tirar o R / se puderem
vai a cedilha e vai o til…»
Em 2000, defrontou-se com o
então ministro do Ambiente, José
Sócrates, que queria instalar uma
central de co-incineração em Souselas, no distrito de Coimbra, pelo qual
o deputado era eleito. Na altura, denunciou «a mentalidade neo-estalinista dentro do PS». As relações com
Sócrates só voltariam a descongelar
depois do XIV Congresso, em 2004.
«Quando se travam combates directos, as relações entre as pessoas ficam
mais transparentes, mais afáveis e
cordiais», afirma. Sócrates venceu
(80%), João Soares não passou dos
quatro pontos percentuais e Alegre
dos 16% – quando esperava 25 por
«Nunca fiz parte da corte de Soares.
Tenho uma existência autónoma»
que «passam a vida enfronhados nos
dossiês e que da vida sabem pouco ou
nada». Foi membro do Conselho de
Estado, bateu-se por Timor. Em 1994,
insurgiu-se contra a lavagem mediática de um inspector da PIDE: «Não
podemos permitir que os mortos
sejam mortos outra vez.» Em 1996,
escreveu uma carta aberta a António
Guterres: «Permaneço fiel a uma certa
tradição e cultura de esquerda. Não
me converti ao pensamento único,
nem acredito que o capitalismo seja
a versão última da história. Acredito
que as grandes reformas ou serão socialistas ou não serão.» Leu versos na
Assembleia quando suprimiram o R
cento. Ao seu lado tinha nomes sonantes: entre outros, Alberto Martins,
João Cravinho, Maria de Belém, Vera
Jardim… Que não o acompanhariam
na aventura presidencial. Foi o caso
de António Brotas: «Não penso que
Manuel Alegre tenha possibilidades,
nem que isso seja desejável. Para o
País é necessário que o próximo presidente seja Mário Soares. Se não, que
seja Cavaco.»
Afinal, o que faz correr Alegre? Reponde José Lello: «O narcisismo, a
necessidade de se afirmar na História.
Mário Soares passou 20 anos a dizer
que Manuel Alegre era o maior poeta
vivo e Manuel Alegre passou os mes-
PORTUGAL
4Caçador
Solitário
mos 20 anos a dizer que Mário Soares
era o maior estadista vivo e depois
chegam a este ponto de ruptura?»
Como se não bastassem todos estes sobressaltos políticos, o deputado
sofreu dois sobressaltos coronários.
«Aguentem-me aí que eu quero acabar o livro [Alma]», disse aos médicos que lhe faziam uma angioplastia.
Escreveu. Escreveu profusamente.
Prosa e poesia. Desdenhado nos
meios políticos por ser poeta, e nos
e poeta Teresa Rita Lopes: «Desde
sempre que o Manuel Alegre é um
poeta em que a palavra se transforma
em acção, impulso e apelo. Ele nunca
foi um poeta do seu umbigo. Esta candidatura terá uma grande importância no erguer da baixa auto-estima
portuguesa. Por isso, esta sua atitude
maior parte, não?»; «Porque é que
o melhor aluno, filho de operário,
nunca foi para a faculdade?» Ninguém lhe respondia. «Porque ainda
sinto o frio da escola, o cheiro a pobreza, o pouco. Foi sobretudo isso
que aprendi, além da gramática, das
contas, da História Pátria, dos rios
«Ele nunca foi um poeta do umbigo,
mas da palavra que se torna acção »
é também um acto poético.
A poesia e a cultura são o único
antídoto para este mundo robotizado e para essas lógicas
dos números e das finanças
que nos esmagam.» E remata: «Este candidato esteve sempre na política mas
com um ideal. É isso que faz
D.R.
GERO
INÁCIO LUD
e das linhas de caminho-de-ferro»
(Alma, 1995).
Paulo Sucena lembra um miúdo introvertido, sisudo, muito concentrado.
Nas emboscadas aos pássaros, pelos
campos de Águeda, impressionava
mais pela pontaria do que pelas raras
palavras. E também pela pancadaria.
Era um miúdo «fácil na estalada».
«Eu fui um filho de
famílias tradicionais, mas também
um menino de rua»,
assume Manuel Alegre. «Ele gostava de
ir para o meio do
milho espreitar a
coxa branca das lavadeiras», recorda
Silva Pinto, médico e
amigo de infância.
A irmã, a deputada Teresa Alegre
EX-AMIGOS Depois de Zenha é a vez de Alegre enfrentar Mário Soares. Em comum, um passado de resistência
Portugal, três anos
mais nova, cedo se
literários por ser político, Manuel falta às pessoas – um ideal. Ele é um apercebeu do caçador de palavras que
Alegre é o mais recitado e cantado político e um poeta. Para o terceiro já havia no caçador de pássaros: «Esescritor português (Praça da Canção P só lhe falta ser Presidente.»
tava sempre a ler e a escrever, em qualcontinua a ser o livro de poesia mais
quer circunstância. Subia às cadeiras
vendido). Ganhou o Prémio Pessoa, Alguém que diz não
e recitava a Barca Bela. A ligação às
em 1999. Os seus versos, em ritmo
Manuel Alegre nasceu em 1936 palavras é uma coisa de sempre.»
cantabile, tornaram-se hinos à liber- numa terra de cheias sacramentais.
Do pai, Francisco de Melo Duarte,
dade. Moveram e comoveram resis- O Águeda é um rio temperamental. chefe de conservação de estradas, caçatentes. «Alguns dos seus poemas, das Invernos havia em que invadia a dor exímio e atleta de alta competição
suas estrofes e dos seus versos deixa- casa de família, na Rua de Baixo, (foi recordista de salto à vara e grande
ram de lhe pertencer e passaram a 1,80 metros aquáticos no primeiro concorrente de Manoel de Oliveira),
ser património do povo português» andar e a ida para a escola fazia-se o jovem Alegre recebe uma educação
(palavras do amigo de infância e es- de barco. Quando não subia o rio, desportista, à inglesa. O desporto já vitudioso da sua obra, Paulo Sucena, o subia a humidade que enchia de nha, aliás, da geração anterior – o avô
secretário-geral da FENPROF).
frieiras os pés descalços dos colegas paterno, Mário Duarte, «um grande
Não admira que tenha escolhido de carteira. Foi na infância, «nessa atirador que ganhava aos pombos ao
para porta-voz a escritora jornalista idade de não ter idade», que Manuel Rei D. Carlos», chegou a ser eleito «o
Inês Pedrosa e para mandatária se tornou «incómodo»: «Porque é desportista mais completo de Portunacional a professora universitária que uns usavam sapatos e outros, a gal» e deu nome ao estádio de Aveiro.
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VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005
PORTUGAL
4Caçador
Solitário
Manuel treina numa piscina fluvial do
Águeda, mesmo nos dias pós-tempestade, em que o rio passava turvo e barrento. Torna-se campeão nacional de
natação na Académica. «No desporto
não há batota, quem chega em primeiro, fica. O espírito desportivo faz
parte do meu carácter. É uma grande
escola de camaradagem e igualdade.
Os desportistas são competitivos, mas
não traem», comenta hoje.
Por estes dias, a espingarda do poeta continua a tiracolo «carregada de
de Portugal, em veteranos. «Dá-se
bem com toda a gente, conta piadas, é
muito mais divertido do que parece na
política. Nos tiros mostra muita garra.
Não desiste nem por nada», observa o
treinador Paulo Cleto.
Da família da mãe veio-lhe talvez
a consciência política, a tradição liberal e democrática, o espírito anti-salazarista. O avô, Manuel Alegre,
guitarrista relembrado na boémia
coimbrã, lutou pela República, com
risco da própria vida, nas fileiras da
Carbonária. Foi deputado e governador civil. A filha, Manuela Alegre,
tava já no exílio, a PIDE entrou lá em
casa à procura dos exemplares clandestinos da Praça da Canção. «A mãe
escondera-os por baixo do colchão
do berço da minha filha que dormia.
Enfrentou aquelas figuras sinistras
com tal firmeza que eles ficaram esmagados. A nossa mãe era pequena,
chegava-nos pelo peito, mas naquelas
ocasiões parecia que crescia», conta
Teresa. Ouvir A Voz da Liberdade que
chegava da Argélia era um ritual comovente de família, que matava saudades sonoras de um filho que haveria
de ficar dez anos longe. «Acho que ela
nunca perdeu uma emissão.»
GONÇALO ROSA DA SILVA
Outono do patriarca
DENTRO DO QUADRADO Os seus poemas são escritos a azul, sempre em papel quadriculado
poemas», mas também de chumbo.
Dedica-se à caça às perdizes e tordos.
E também à pesca – não à pesca de
minhoca, mas à dos grandes robalos
no mar batido da Foz do Arelho, ele
metido nas ondas com um fato de borracha, horas a fio, e José Niza, amigo
das canções, da política e das pescarias,
a tiritar de frio: «Foi com essa perseverança que pescou robalos de seis quilos,
nunca vi tão grandes. Em tudo o que se
mete é para levar a sério. Em tudo deixa
marca, seja na literatura, na política,
na pesca ou na caça.»
Há cinco anos, o filho do meio, Afonso,
pegou-lhe um vício: o do tiro aos pratos.
Treina uma a duas vezes por semana
no campo de tiro do Casal Alentejano,
em Sintra, e ganhou este ano a Taça
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VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005
cantava o fado lá em casa. Era repentista, fazia sextilhas como quem
bebe um copo de água. Nunca os seus
filhos a ouviriam fazer advertências,
A avó Margarida, mãe da mãe, fazia parte do grupo de mulheres que
pastorearam a infância de Manuel
Alegre. Era a sua cúmplice e maior
admiradora, «vivia em função daquele neto», conta Paulo Sucena. Fazia-lhe todas as vontades, abria-lhe
caminhos, tratava-o como se ele fosse
um predestinado, um continuador
dos destinos heróicos do avô republicano. O bater da sua bengala soava no
tecto, a anunciar que a algazarra dos
adolescentes, no andar de baixo, fora
longe demais. Nesta altura, já Manuel
Alegre e a poesia eram inseparáveis.
Paulo Sucena lembra-se da fase de
gestação de poemas. Dos versos virtuais que repousavam na cabeça e
que, depois, eram escritos, de rajada,
a azul, sempre em blocos de papel
quadriculado, comprados na Rua de
Cima. «Alguns poemas conheci-os
no acto do nascimento. Foram momentos irrepetíveis. Agora, ainda me
chegam por via telefónica, o Manel
«Em tudo o que se mete deixa marca,
seja pesca, poesia ou política»
do género tenham cuidado, vejam lá
no que se metem... «Pelo contrário»,
diz Teresa Alegre, «ela incentivavanos. Quando havia qualquer iniciativa anti-salazarista perguntava,
'então, não vão?' Era uma mulher
sem medo. Penso que o meu irmão
herdou esse lado temerário dela».
Uma vez, quando Manuel Alegre es-
lê-me versos que acabou de escrever»,
conta o presidente da FENPROF, que
mantém com o poeta «uma amizade
à prova de bala». E de divergências
políticas.
Depois daquele «tempo mágico»
em Águeda, Manuel Alegre continua
estudos em Lisboa, no Liceu Passos
Manuel («o meu primeiro exílio»).
PORTUGAL
Solitário
Falta-lhe o rio e os campos.
Anda aos pássaros no Parque Eduardo VII, com uma
espingarda de pressão de
ar… Depois, os pais matriculam-no num colégio interno
do Porto («a minha primeira
prisão»). Avizinham-se novos «tempos mágicos», em
Coimbra. Manuel Alegre
protagoniza empolgantes
discursos nas Assembleias
Magnas, faz teatro no CIDAC e no TEUC, é o Diabo
nos Autos das Barcas (José
Carlos de Vasconcelos vai
de Fidalgo), o professor e
encenador Paulo Quintela
ensina-o a silabar e a colocar
a voz. A sua casa é a «capital
do mundo». Tudo se mistura.
Enquanto Fernando Assis
Pacheco, José Carlos de Vas- UM CONTRA TODOS «Eu nunca pude suportar a sujeição»
concelos (editaram os seus
primeiros livros ao mesmo tempo), a irmã Teresa. Mafalda participará
Herberto Helder dizem poemas, Zeca na campanha do marido, também
Afonso e Adriano Correia de Oliveira lhe apoiou a opção. «Foi uma decantam e Alegre faz um discurso po- cisão solitária, apesar do acompalítico. A noite acaba com uma partida nhamento familiar. Pareceu-me uma
de matraquilhos. Alegre ganha, quase atitude muito nobre. Não se decidiu
«O que o faz correr é o narcisismo, a
necessidade de se afirmar na História»
sempre. Com a mobilização e o exílio,
o curso de Direito fica encalhado no
3º ano. Foram tempos de inquietação
e de desassossego. Da «incomodidade
necessária». Que ainda dura.
À mulher, Mafalda Durão Ferreira,
57 anos, directora-geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, conheceu-a já exilado,
numa passagem por Paris. Têm três
filhos: Francisco, 32 anos diplomata
na ONU, em Nova Iorque; Afonso,
29, advogado, e Joana, 20, estudante.
E dois netos gémeos bebés, filhos de
Francisco.
Manuel Alegre é um homem de
família, gosta de estar em casa, de
caçar com os filhos, de nadar com a
filha, «é um patriarca», acrescenta
50
VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005
pela negativa. Nem se amargurou
com algumas hostilidades. Não é
pessoa de amarguras mas de indignações.» O filho Francisco, que fala
de um «pai caloroso e cúmplice, um
'Duarte', fanático do desporto, que
não gosta de perder com os filhos
nem ao pinguepongue», comenta:
«Claro que para toda a família era
mais cómodo se ele ficasse a escrever,
a cuidar dos netos, mas trata-se de
um combate pela república e pela
cidadania.»
O seu cardiologista e amigo dos
tempos coimbrãos, António Nunes
Diogo, foi um dos que o incitaram à
corrida presidencial. «Ele é um congregador de afectos, politicamente
incorrecto, não finge, não usa máscaras, mostra-se tal como é. Patriota,
sendo de esquerda, pode trazer
à política portuguesa o patriotismo que nós precisamos para
voltar a acreditar no País. Precisamos de um presidente que
nos dê ânimo. Não podemos
esperar muito mais tempo.»
Foi a pensar em tudo isto
que Manuel Alegre, passeando
à beira do seu velho rio de infância, tomou a decisão, anunciada durante um comício do
PS de Águeda, nas autárquicas.
Para trás ficara um discurso
propositadamente ambíguo,
com um final alterado à última
hora. «A democracia precisa de
renovação. E a história é feita
de riscos e de rupturas. O que
me fizeram não foi bonito, mas
não é isso que me determina.
Tenho uma grande experiência
política, história e perfil para
ser Presidente da República.
E tenho ainda o direito constitucional que ninguém me pode
retirar», pensou.
Lembrou-se então do episódio a que
assistiu, em Paris, em pleno Maio de
68, no Quartier Latin. A polícia lançava granadas de gás lacrimogéneo,
os estudantes repeliam-na com palavras de ordem. No meio disto tudo,
um cidadão, que não tinha nada a
ver com aquilo, dirige-se para o seu
automóvel. Os polícias mandam-no afastar, mas o homem faz-lhes
frente sozinho, apesar da ameaça
dos bastões. Ensaguentado, gritava-lhes: «Mais, c' est mon droit!» «É o
meu direito!», repete Manuel Alegre.
«Nunca mais esqueci esta lição de
cidadania. Às vezes dizem-me 'foi
preciso coragem'. Eu respondo-lhes
'a minha grande resistência foi ter
chegado até aqui'. Travei batalhas
complicadas, mas consegui resistir
às sistemáticas campanhas dentro
do PS para me diminuírem politicamente, sendo eu uma das referências do seu eleitorado.» Manuel
Alegre sabe que os tempos são outros.
A poesia já não está na rua (como
dizia Sophia), nem esta é a altura
em que «as pessoas não se empurravam umas às outras». Bem-vindo ao
tempo do empurrão. ■
GONÇALO ROSA DA SILVA
4Caçador
*Com Inês Rapazote
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