Esta página foi deixada propositadamente em branco PORTUGAL MANUEL ALEGRE O candidato presidencial ganhou em Portugal a medalha de ouro no tiro aos pratos Caçador PORTUGAL Conquistou o canto e o apoio dos desencantados e desalinhados dos aparelhos. Faltam-lhe as armas partidárias. O candidato Manuel Alegre diz que tem «biografia a mais»: «Estive em todas as batalhas, nunca tive falta de comparência.» No ano em que a «voz da liberdade» se tornou na voz da incomodidade ANA MARGARIDA DE CARVALHO A s rosas haveriam de se rir a pétalas despregadas. Nunca fiando, as rosas são traiçoeiras. Seduzem, mas têm espinhos. Vacilam, mas resistem a murchar. Iludem até reis, mas, com alguma boa vontade, podem ser comestíveis. São rosas, senhor Manuel Alegre. Sempre presentes na vida do deputado poeta. Depois do 25 de Abril, na iconografia partidária. Desde que ele se lembra, na sua própria efeméride familiar. Dizem que Maio é o mês das rosas. A mãe, Manuela Alegre, tinha o hábito – vindo sabe-se lá de onde – de, todos os anos, no dia do aniversário do filho, a 12 de Maio, lhe oferecer GONÇALO ROSA DA SILVA solitário PORTUGAL FOTOS: D.R. ÁLBUM Com a mãe, em Argel; com a irmã Teresa, aos 12 anos; com a avó Margarida (à esq.), o cunhado, o já falecido guitarrista António Portugal, e a irmã, nos tempos de Coimbra; com a mulher, Mafalda, e o filho mais velho, Francisco, nascido durante o exílio 4Caçador Solitário um ramo de rosas vermelhas, colhidas na roseira do quintal de Águeda. Era um presente sem palavras, «só as suas mãos compondo as rosas». Em Maio de 1963, Manuel Alegre estava preso em Angola. Sozinho, apesar das pancadas do morse solidário das celas contíguas. A mãe já não lhe podia mais aquietar os pesadelos infantis. «Acordar era ter a certeza de que a realidade não desmentiria o pesadelo.» Os fantasmas eram «donos do país». Sozinho, naquele quadrado de sete por sete passos, «nessa realidade branca e gelada, toda feita de paredes, grades, perguntas, gritos». Altura de, continua, num poema em prosa publicado há 40 anos (em Praça da Canção), «saber se as traves mestras de um homem resistirão». «Era terrível acordar no mês de Maio, com a certeza de que, no dia 12, a minha mãe não entraria pelo meu quarto, deixando-me na fronte um beijo, e rosas vermelhas sobre os meus 27 anos.» Maio não era o mês das rosas, na cadeia colonial de S. Paulo. E, no entanto, o milagre aconteceu. O carcereiro entrega-lhe uma carta da mãe, num sobrescrito já violado, e, ao desdobrar as folhas, pétalas de rosa caem no chão da cela. As traves mestras resistiram. O prisioneiro posiciona-se no seu quadrado de Atoleiros. Manuel Alegre estava no seu posto. Em Outubro de 2005, o deputado está novamente dentro do quadrado. No que simboliza o seu reduto de re42 VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005 sistência solitária. No gabinete da Assembleia da República que é um quase quadrado, espaçoso. O candidato presidencial, abandonado pelos próprios camaradas submetidos à disciplina partidária do PS, sustenta uma dignidade teatral, interrompe as perguntas, quebra, de súbito, os silêncios, esgrime o admirável talento para produzir frases perfeitas, projecta as palavras na profundidade do seu timbre. Por vezes, impacienta-se, parece ausentar-se, num (aparente?) desinteresse, algo que pode ser confundido com altivez ou narcisismo. «É sobretudo reserva, timidez e uma incapacidade de praticar uma certa forma portuguesa de hipocrisia e compadrio. Ou talvez um tique que herdei de família: levantar a cabeça, olhar a direito.» Trazem palavras de apoio, garantem-lhe que «há muita gente dentro do seu quadrado». Manuel Alegre, de vez em quando, vai circum-navegando o olhar pelo gabinete de vice-presidente da Assembleia. Atrás da secretária, uma foto ampliada, de Eduardo Gageiro, mostra Salgueiro Maia e outros soldados já triunfantes ao lado de uma Chaimite – «parece que é a única foto do 25 de Abril existente aqui na Assembleia», diz. Numa mesa central, duas molduras, uma de Sampaio, outra, com maior destaque, de Mário Soares, em vestes presidenciais. Manuel Alegre não quer falar mais «daqueles incidentes desagradáveis». Prefere contar a história de Churchill que uma vez explicava a um miúdo como se distribuíam os lugares dos parlamentares. Os inimigos sentam-se ali? Não, responde Churchill, sentam-se aqui Não são pétalas, desta vez, que lhe dão o ânimo e que lhe sustentam as paredes mestras. Mas folhas. Às centenas, distribuídas por dois maços de papel impresso, com mails que chegaram à sua caixa de correio electrónico, sobretudo depois de ter publicado o conto O Quadrado («Um homem não se rende. Talvez seja por isso que estou aqui, não sei ao certo onde nem desde quando, talvez desde sempre, no meio de um quadrado, cercado e sozinho, mas não vencido»), no Expresso, em finais de Setembro. «E ali sentam-se os vossos inimigos?», perguntou a criança, apontando a bancada oposta. «Não», respondeu Churchill, «ali sentam-se os adversários. Os inimigos sentam-se aqui.» Em nome da rosa «Eu venho incomodar. / Trago palavras como bofetadas / e é inútil mandarem-me calar.» Nos tempos que, hoje, nos parecem desfocados e estrangeiros, em que «os fantasmas eram donos do país», o canto de «verdades mais fortes que as algemas», PORTUGAL JOSÉ MIGUEL TELES »ÁGUEDA ÁGUEDA Silva Pinto, amigo de infância, e o novo presidente da Câmara, Gil Nadais, frente à casa de família do deputado Viagem ao centro da terra Na terra, a sua, onde anunciou a candidatura presidencial, Manuel Alegre é ainda um animal de hábitos. O restaurante Ribeirinho fica a dois passos da sua casa com traços de Raul Lino. E ele continua cliente assíduo, contra ventos e marés. Explique-se: os patrões, o senhor Óscar e a dona Ester, são ferrenhos militantes do PSD e já ouviram das boas dos seus compinchas de partido por se embeiçarem com o poeta. Este também já várias vezes ouviu dizer que militantes socialistas gostam pouco das cumplicidades com a malta do Ribeirinho. «É não o conhecerem. Ele tem tomates, muita coragem», diz a dona Ester. Alegre gosta da mesinha do canto, mesmo por debaixo do azulejo alusivo à Pateira de Fermentelos. É cliente do frango no churrasco e dos rojões. O vinho, esse, é de lavrador. Leva algum para Lisboa. Nas paredes repousam pequenos poemas de Alegre rabiscados na toalha de mesa, dedicados a quem tão bem o trata. Que o assunto seja motivo de co- chichos e inimizades, ao poeta pouco lhe importa. E aos donos do Ribeirinho muito menos. A firmeza de carácter é à prova de água. Aquando de uma das mais violentas cheias em Águeda, amigos foram a casa de Alegre buscar o cão e a filha. A água trepava, mas ele quis ficar. «O comandante é sempre o último a abandonar o barco», terá dito, no tom que se imagina. Teimoso ou aferrado a princípios, conforme a perspectiva, os amigos admiram-lhe o estilo, a postura: «Já viu bem aquela pose? Ele diz que é da natação, mas não é. Ele é um bocado marquês, também», graceja Silva Pinto, médico reformado, amigo dos tempos de Coimbra, agora eleito para a assembleia municipal de Águeda. Gil Nadais, o novo presidente da Câmara, reconhece que «a presença de Alegre na campanha autárquica arrastou uma mediatização que empurrou o PS para a vitória» num concelho onde nunca havia ganho. É caso para dizer que santos da casa fazem mesmo milagres. Miguel Carvalho PORTUGAL MAIO DE 74 Recepção em Águeda, ao fim de dez anos de exílio 4Caçador Solitário foi referenciado; quis denunciar a «pátria vestida de viúva», foi perseguido; inflamou assembleias estudantis de Coimbra, foi mobilizado; revoltou-se, na guerra; foi preso; continuou a «incomodar»; teve de se exilar por dez anos, em Argel… Desligou-se do seu partido, o PCP, desiludido com a invasão da Checoslováquia, tornou-se numa figura quase lendária: o principal «locutor» da Voz da Liberdade, transmitida na frequência da Rádio Nacional da Argélia, escutada «clandestinamente» em Portugal. Era ele a «voz da liberdade». E a voz individual fez-se polifonia. O 25 de Abril veio cortar-lhe a vida em duas metades. Em 1974, já estava nos palanques, no primeiro congresso do PS, na Aula Magna. «É um militante revolucionário que vos fala», dirigiu-se assim aos congressistas e fez o discurso – «memorável», na opinião de Mário Soares –, que mudou os destinos daquele partido (jogava-se ali uma inversão esquerdista), contra «o complexo de não parecer de esquerda». Mário Soares chamou-lhe um «tribuno temível». Quando visitaram Mitterrand, em 1981, depois de este vencer as presidenciais francesas, Soares apresentou Alegre a son ami como «o melhor orador português». Haviam-se conhecido em 1964, estava Mário Soares de cama, com gripe, num hotel de Paris. Um amigo em comum profetizou: «Vocês foram feitos para se entenderem.» Acertou. Até ontem. Alegre acompanhou o amigo nas alturas difíceis, quando este se afastou do PS, por não querer apoiar Eanes. 44 VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005 «Fui dos poucos que apoiou Soares. Alguns dos principais agentes dessa ruptura estão hoje do lado dele.» Ou quando este travou batalhas contra o PCP. Uma vez, Manuel Alegre garantiu: «Eu seja ceguinho se alguma vez o PS vai fazer alianças.» Ficou conhecido nos meios comunistas como o «Manuel Ceguinho». Mesmo assim, não gosta que lhe chamem soarista: «Nunca fiz parte da corte de Mário Soares. Quando tinha alguma coisa a dizer, dizia-lhe. Sempre fui uma pessoa autónoma, já existia antes de o conhecer. Política e culturalmente.» Sempre se recusou a ser ministro ou deputado europeu, depois de ter sido secretário de Estado no I Governo Constitucional, experiência que não lhe agradou. Desconfia daqueles COM TORGA E PAULO QUINTELA O segundo ensinou-o a silabar e a colocar a voz, nos palcos de Coimbra à Revolução de Abril: «Trinta anos depois querem tirar o R / se puderem vai a cedilha e vai o til…» Em 2000, defrontou-se com o então ministro do Ambiente, José Sócrates, que queria instalar uma central de co-incineração em Souselas, no distrito de Coimbra, pelo qual o deputado era eleito. Na altura, denunciou «a mentalidade neo-estalinista dentro do PS». As relações com Sócrates só voltariam a descongelar depois do XIV Congresso, em 2004. «Quando se travam combates directos, as relações entre as pessoas ficam mais transparentes, mais afáveis e cordiais», afirma. Sócrates venceu (80%), João Soares não passou dos quatro pontos percentuais e Alegre dos 16% – quando esperava 25 por «Nunca fiz parte da corte de Soares. Tenho uma existência autónoma» que «passam a vida enfronhados nos dossiês e que da vida sabem pouco ou nada». Foi membro do Conselho de Estado, bateu-se por Timor. Em 1994, insurgiu-se contra a lavagem mediática de um inspector da PIDE: «Não podemos permitir que os mortos sejam mortos outra vez.» Em 1996, escreveu uma carta aberta a António Guterres: «Permaneço fiel a uma certa tradição e cultura de esquerda. Não me converti ao pensamento único, nem acredito que o capitalismo seja a versão última da história. Acredito que as grandes reformas ou serão socialistas ou não serão.» Leu versos na Assembleia quando suprimiram o R cento. Ao seu lado tinha nomes sonantes: entre outros, Alberto Martins, João Cravinho, Maria de Belém, Vera Jardim… Que não o acompanhariam na aventura presidencial. Foi o caso de António Brotas: «Não penso que Manuel Alegre tenha possibilidades, nem que isso seja desejável. Para o País é necessário que o próximo presidente seja Mário Soares. Se não, que seja Cavaco.» Afinal, o que faz correr Alegre? Reponde José Lello: «O narcisismo, a necessidade de se afirmar na História. Mário Soares passou 20 anos a dizer que Manuel Alegre era o maior poeta vivo e Manuel Alegre passou os mes- PORTUGAL 4Caçador Solitário mos 20 anos a dizer que Mário Soares era o maior estadista vivo e depois chegam a este ponto de ruptura?» Como se não bastassem todos estes sobressaltos políticos, o deputado sofreu dois sobressaltos coronários. «Aguentem-me aí que eu quero acabar o livro [Alma]», disse aos médicos que lhe faziam uma angioplastia. Escreveu. Escreveu profusamente. Prosa e poesia. Desdenhado nos meios políticos por ser poeta, e nos e poeta Teresa Rita Lopes: «Desde sempre que o Manuel Alegre é um poeta em que a palavra se transforma em acção, impulso e apelo. Ele nunca foi um poeta do seu umbigo. Esta candidatura terá uma grande importância no erguer da baixa auto-estima portuguesa. Por isso, esta sua atitude maior parte, não?»; «Porque é que o melhor aluno, filho de operário, nunca foi para a faculdade?» Ninguém lhe respondia. «Porque ainda sinto o frio da escola, o cheiro a pobreza, o pouco. Foi sobretudo isso que aprendi, além da gramática, das contas, da História Pátria, dos rios «Ele nunca foi um poeta do umbigo, mas da palavra que se torna acção » é também um acto poético. A poesia e a cultura são o único antídoto para este mundo robotizado e para essas lógicas dos números e das finanças que nos esmagam.» E remata: «Este candidato esteve sempre na política mas com um ideal. É isso que faz D.R. GERO INÁCIO LUD e das linhas de caminho-de-ferro» (Alma, 1995). Paulo Sucena lembra um miúdo introvertido, sisudo, muito concentrado. Nas emboscadas aos pássaros, pelos campos de Águeda, impressionava mais pela pontaria do que pelas raras palavras. E também pela pancadaria. Era um miúdo «fácil na estalada». «Eu fui um filho de famílias tradicionais, mas também um menino de rua», assume Manuel Alegre. «Ele gostava de ir para o meio do milho espreitar a coxa branca das lavadeiras», recorda Silva Pinto, médico e amigo de infância. A irmã, a deputada Teresa Alegre EX-AMIGOS Depois de Zenha é a vez de Alegre enfrentar Mário Soares. Em comum, um passado de resistência Portugal, três anos mais nova, cedo se literários por ser político, Manuel falta às pessoas – um ideal. Ele é um apercebeu do caçador de palavras que Alegre é o mais recitado e cantado político e um poeta. Para o terceiro já havia no caçador de pássaros: «Esescritor português (Praça da Canção P só lhe falta ser Presidente.» tava sempre a ler e a escrever, em qualcontinua a ser o livro de poesia mais quer circunstância. Subia às cadeiras vendido). Ganhou o Prémio Pessoa, Alguém que diz não e recitava a Barca Bela. A ligação às em 1999. Os seus versos, em ritmo Manuel Alegre nasceu em 1936 palavras é uma coisa de sempre.» cantabile, tornaram-se hinos à liber- numa terra de cheias sacramentais. Do pai, Francisco de Melo Duarte, dade. Moveram e comoveram resis- O Águeda é um rio temperamental. chefe de conservação de estradas, caçatentes. «Alguns dos seus poemas, das Invernos havia em que invadia a dor exímio e atleta de alta competição suas estrofes e dos seus versos deixa- casa de família, na Rua de Baixo, (foi recordista de salto à vara e grande ram de lhe pertencer e passaram a 1,80 metros aquáticos no primeiro concorrente de Manoel de Oliveira), ser património do povo português» andar e a ida para a escola fazia-se o jovem Alegre recebe uma educação (palavras do amigo de infância e es- de barco. Quando não subia o rio, desportista, à inglesa. O desporto já vitudioso da sua obra, Paulo Sucena, o subia a humidade que enchia de nha, aliás, da geração anterior – o avô secretário-geral da FENPROF). frieiras os pés descalços dos colegas paterno, Mário Duarte, «um grande Não admira que tenha escolhido de carteira. Foi na infância, «nessa atirador que ganhava aos pombos ao para porta-voz a escritora jornalista idade de não ter idade», que Manuel Rei D. Carlos», chegou a ser eleito «o Inês Pedrosa e para mandatária se tornou «incómodo»: «Porque é desportista mais completo de Portunacional a professora universitária que uns usavam sapatos e outros, a gal» e deu nome ao estádio de Aveiro. 46 VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005 PORTUGAL 4Caçador Solitário Manuel treina numa piscina fluvial do Águeda, mesmo nos dias pós-tempestade, em que o rio passava turvo e barrento. Torna-se campeão nacional de natação na Académica. «No desporto não há batota, quem chega em primeiro, fica. O espírito desportivo faz parte do meu carácter. É uma grande escola de camaradagem e igualdade. Os desportistas são competitivos, mas não traem», comenta hoje. Por estes dias, a espingarda do poeta continua a tiracolo «carregada de de Portugal, em veteranos. «Dá-se bem com toda a gente, conta piadas, é muito mais divertido do que parece na política. Nos tiros mostra muita garra. Não desiste nem por nada», observa o treinador Paulo Cleto. Da família da mãe veio-lhe talvez a consciência política, a tradição liberal e democrática, o espírito anti-salazarista. O avô, Manuel Alegre, guitarrista relembrado na boémia coimbrã, lutou pela República, com risco da própria vida, nas fileiras da Carbonária. Foi deputado e governador civil. A filha, Manuela Alegre, tava já no exílio, a PIDE entrou lá em casa à procura dos exemplares clandestinos da Praça da Canção. «A mãe escondera-os por baixo do colchão do berço da minha filha que dormia. Enfrentou aquelas figuras sinistras com tal firmeza que eles ficaram esmagados. A nossa mãe era pequena, chegava-nos pelo peito, mas naquelas ocasiões parecia que crescia», conta Teresa. Ouvir A Voz da Liberdade que chegava da Argélia era um ritual comovente de família, que matava saudades sonoras de um filho que haveria de ficar dez anos longe. «Acho que ela nunca perdeu uma emissão.» GONÇALO ROSA DA SILVA Outono do patriarca DENTRO DO QUADRADO Os seus poemas são escritos a azul, sempre em papel quadriculado poemas», mas também de chumbo. Dedica-se à caça às perdizes e tordos. E também à pesca – não à pesca de minhoca, mas à dos grandes robalos no mar batido da Foz do Arelho, ele metido nas ondas com um fato de borracha, horas a fio, e José Niza, amigo das canções, da política e das pescarias, a tiritar de frio: «Foi com essa perseverança que pescou robalos de seis quilos, nunca vi tão grandes. Em tudo o que se mete é para levar a sério. Em tudo deixa marca, seja na literatura, na política, na pesca ou na caça.» Há cinco anos, o filho do meio, Afonso, pegou-lhe um vício: o do tiro aos pratos. Treina uma a duas vezes por semana no campo de tiro do Casal Alentejano, em Sintra, e ganhou este ano a Taça 48 VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005 cantava o fado lá em casa. Era repentista, fazia sextilhas como quem bebe um copo de água. Nunca os seus filhos a ouviriam fazer advertências, A avó Margarida, mãe da mãe, fazia parte do grupo de mulheres que pastorearam a infância de Manuel Alegre. Era a sua cúmplice e maior admiradora, «vivia em função daquele neto», conta Paulo Sucena. Fazia-lhe todas as vontades, abria-lhe caminhos, tratava-o como se ele fosse um predestinado, um continuador dos destinos heróicos do avô republicano. O bater da sua bengala soava no tecto, a anunciar que a algazarra dos adolescentes, no andar de baixo, fora longe demais. Nesta altura, já Manuel Alegre e a poesia eram inseparáveis. Paulo Sucena lembra-se da fase de gestação de poemas. Dos versos virtuais que repousavam na cabeça e que, depois, eram escritos, de rajada, a azul, sempre em blocos de papel quadriculado, comprados na Rua de Cima. «Alguns poemas conheci-os no acto do nascimento. Foram momentos irrepetíveis. Agora, ainda me chegam por via telefónica, o Manel «Em tudo o que se mete deixa marca, seja pesca, poesia ou política» do género tenham cuidado, vejam lá no que se metem... «Pelo contrário», diz Teresa Alegre, «ela incentivavanos. Quando havia qualquer iniciativa anti-salazarista perguntava, 'então, não vão?' Era uma mulher sem medo. Penso que o meu irmão herdou esse lado temerário dela». Uma vez, quando Manuel Alegre es- lê-me versos que acabou de escrever», conta o presidente da FENPROF, que mantém com o poeta «uma amizade à prova de bala». E de divergências políticas. Depois daquele «tempo mágico» em Águeda, Manuel Alegre continua estudos em Lisboa, no Liceu Passos Manuel («o meu primeiro exílio»). PORTUGAL Solitário Falta-lhe o rio e os campos. Anda aos pássaros no Parque Eduardo VII, com uma espingarda de pressão de ar… Depois, os pais matriculam-no num colégio interno do Porto («a minha primeira prisão»). Avizinham-se novos «tempos mágicos», em Coimbra. Manuel Alegre protagoniza empolgantes discursos nas Assembleias Magnas, faz teatro no CIDAC e no TEUC, é o Diabo nos Autos das Barcas (José Carlos de Vasconcelos vai de Fidalgo), o professor e encenador Paulo Quintela ensina-o a silabar e a colocar a voz. A sua casa é a «capital do mundo». Tudo se mistura. Enquanto Fernando Assis Pacheco, José Carlos de Vas- UM CONTRA TODOS «Eu nunca pude suportar a sujeição» concelos (editaram os seus primeiros livros ao mesmo tempo), a irmã Teresa. Mafalda participará Herberto Helder dizem poemas, Zeca na campanha do marido, também Afonso e Adriano Correia de Oliveira lhe apoiou a opção. «Foi uma decantam e Alegre faz um discurso po- cisão solitária, apesar do acompalítico. A noite acaba com uma partida nhamento familiar. Pareceu-me uma de matraquilhos. Alegre ganha, quase atitude muito nobre. Não se decidiu «O que o faz correr é o narcisismo, a necessidade de se afirmar na História» sempre. Com a mobilização e o exílio, o curso de Direito fica encalhado no 3º ano. Foram tempos de inquietação e de desassossego. Da «incomodidade necessária». Que ainda dura. À mulher, Mafalda Durão Ferreira, 57 anos, directora-geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, conheceu-a já exilado, numa passagem por Paris. Têm três filhos: Francisco, 32 anos diplomata na ONU, em Nova Iorque; Afonso, 29, advogado, e Joana, 20, estudante. E dois netos gémeos bebés, filhos de Francisco. Manuel Alegre é um homem de família, gosta de estar em casa, de caçar com os filhos, de nadar com a filha, «é um patriarca», acrescenta 50 VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005 pela negativa. Nem se amargurou com algumas hostilidades. Não é pessoa de amarguras mas de indignações.» O filho Francisco, que fala de um «pai caloroso e cúmplice, um 'Duarte', fanático do desporto, que não gosta de perder com os filhos nem ao pinguepongue», comenta: «Claro que para toda a família era mais cómodo se ele ficasse a escrever, a cuidar dos netos, mas trata-se de um combate pela república e pela cidadania.» O seu cardiologista e amigo dos tempos coimbrãos, António Nunes Diogo, foi um dos que o incitaram à corrida presidencial. «Ele é um congregador de afectos, politicamente incorrecto, não finge, não usa máscaras, mostra-se tal como é. Patriota, sendo de esquerda, pode trazer à política portuguesa o patriotismo que nós precisamos para voltar a acreditar no País. Precisamos de um presidente que nos dê ânimo. Não podemos esperar muito mais tempo.» Foi a pensar em tudo isto que Manuel Alegre, passeando à beira do seu velho rio de infância, tomou a decisão, anunciada durante um comício do PS de Águeda, nas autárquicas. Para trás ficara um discurso propositadamente ambíguo, com um final alterado à última hora. «A democracia precisa de renovação. E a história é feita de riscos e de rupturas. O que me fizeram não foi bonito, mas não é isso que me determina. Tenho uma grande experiência política, história e perfil para ser Presidente da República. E tenho ainda o direito constitucional que ninguém me pode retirar», pensou. Lembrou-se então do episódio a que assistiu, em Paris, em pleno Maio de 68, no Quartier Latin. A polícia lançava granadas de gás lacrimogéneo, os estudantes repeliam-na com palavras de ordem. No meio disto tudo, um cidadão, que não tinha nada a ver com aquilo, dirige-se para o seu automóvel. Os polícias mandam-no afastar, mas o homem faz-lhes frente sozinho, apesar da ameaça dos bastões. Ensaguentado, gritava-lhes: «Mais, c' est mon droit!» «É o meu direito!», repete Manuel Alegre. «Nunca mais esqueci esta lição de cidadania. Às vezes dizem-me 'foi preciso coragem'. Eu respondo-lhes 'a minha grande resistência foi ter chegado até aqui'. Travei batalhas complicadas, mas consegui resistir às sistemáticas campanhas dentro do PS para me diminuírem politicamente, sendo eu uma das referências do seu eleitorado.» Manuel Alegre sabe que os tempos são outros. A poesia já não está na rua (como dizia Sophia), nem esta é a altura em que «as pessoas não se empurravam umas às outras». Bem-vindo ao tempo do empurrão. ■ GONÇALO ROSA DA SILVA 4Caçador *Com Inês Rapazote