18 * HISTÓRIA Número 9 - 2ª série O que Uanhenga Xitu falou E u sou, na minha terra, um “mais velho”, pessoa a quem a idade permite, independentemente o saber das escolas, conhecer a vida por a ter vivido, e conhecer a vida por ter escutado de outros mais velhos o relato das suas experiências. Cada um de nós, “os mais velhos” que na nossa terra existem, resume em si a memória de centenas de anos. Cada dia mais rica, porque vivemos hoje mais tempo do que viviam os nossos avós. Cada dia mais rica, porque vivemos tempos mais movimentados e de maior experiência. Cada dia mais rica, porque temos ao nosso dispôr as técnicas que nos enriquecem com a experiência sem fronteiras de outros povos. Cada um de nós, os “mais velhos” que na nossa terra existem, vão vendo definhar a importância da sua experiência. Se somos mais ricos, estam os cada dia mais pobres, porque a juventude não aprende já pela nossa boca. Se ficámos mais ricos, estamos cada vez mais pobres, porque a juventude de tanto outro saber que parece acumular, tem com o velho que fala o ar condescendente de quem ouve inutilidades, de quem não precisa, de quem já sabe para lá do que lhe dizemos. Os “mais velhos” da nossa terra, vão morrendo na importância. À medida que nos urbanizamos, que a memória dos avós vai perdendo o interesse para os mais novos, que a juventude deixa as nossas tradições para se apropriar da moda do seu tempo e que não deixa de ser, de certo modo, a tradição de outros povos. Não como a nossa, que era uma tradiçâo para passar de pais para filhos, sem custos nem interesses. Mas com as regras que o mercado impõe neste comércio de aliciamento em que a juventude se afoga. Perguntem a um dos vossos jovens o que foi o vinte e cinco de Abril; o que terão sido os “turras”; contem-lhe dos sofrimentos da guerra, dos outros tempos de medo e desconfiança e eles não entenderão, porque acham estas histórias sem piada, sem interesse e até são capazes de pensar que nunca aconteceram. E escrevem-na com É e sem Agá. | Ano 2 - Fevereiro / Março 2014 Porque me disseram que agora quando a história é história aconteci da leva Agá, quando é assim só coisa de invenção escreve-se com É. Quando eu era menino e aprendi a ler e a escrever, as história tinham sempre Agá. Fossem elas história verdadeiras ou inventadas ... Já me tentaram explicar porque é que a história pode ter ou não Agá. O Luandino Vieira bem me explicou, e eu não aprendi. Veio este e aquele - explicaram-me e eu continuei na mesma, sem aprender. Porque, ou é essa coisa que vocês dizem aqui em Portugal que burro velho não aprende línguas, ou é mesmo que todas as minhas estórias se escrevem com Agá. Porque, verdadeiramente, eu só escrevo histórias com Agá. Quando eu estava lá nas minhas cadeias, naquelas noites e dias que pareciam ter comprimento de anos, eu começava a pensar nos tempos da minha terra. Naquilo que eu tinha vivido e naquilo que eu tinha escutado da boca dos meus “mais velhos”. Às vezes, conversando com os meus companheiros, contava as minhas histórias. Todas verdadeiras e com Agá, mas acrescentadas de uma coisinha aqui, acrescentadas de qualquer facto que tinha acontecido noutra história, misturadas com esta ou aquela figura que não vivera nela, mais valia a pena recuperar. Assim, eu contava aos meus colegas de cativeiro, porque contar aos outros é um dever que a tradição obriga a qualquer”mais velho”. Mas contar aos outros dentro de uma prisão limita: uns ficam fartos de ouvir, outros estão mal dispostos e não nos querem escutar, nós mesmos, muitas vezes, nos sentimos sem apetite para falar, muito embora as histórias circulem dentro da nossa cabeça no fogo sempre aceso da memória. Há alturas em que o desespero da solidão é tão grande que só nos apetece estar sós: a palavra dos outros, o barulho dos outros, o próprio interesse dos outros, a solidariedade de cada um é como se fosse u~a afronta ao peso da nossa vida. Foi então que resolvi, animado por alguns dos meus companheiros, escrever. Escrever é de certo modo uma forma de estar só comigo mesmo. Quando o desespero te aperta, foge dos outros e escreve para todos. Foi assim, que do Mendes de Carvalho que eu sou, nasceu o escritor Uanhenga Xitu que vos fala agora. É por isso que eu vos digo e afirmo que todas as minhas histórias se escreveram todas com Agá. É possível que haja escritores que arranquem tudo da imaginação. São como Deus que do nada fez tudo quanto existe. Eu não sei escrever assim. Sou como o homem da terra que trabal as reita o fruto velho para fazer crescer a sementeira nova. As has hi órías ê a vida verdadeira daquilo que aconteceu. Eu sou, minhas senhoras e meus senhores, um contador de histórias utilizando uma técnica nova - a escrita da a1avra. Eu sou um “mais velho” que sabe coisas e as transmite. Reconhecendo que o que se ganha em memória, se perde em naturalidade. Falta a palavra inventada no momento, quando se usa a palavra pensada. Falta o gesto, o das mãos e o dos olhos. Porque os olhos também fazem gestos, quando se abrem ou fecham, quando as sobrancelhas se unem, quando a testa enruga ou a tristeza os faz lagrimar. Falta a entoação da voz, a imitação dos animais e das pessoas, a suspensão da narrativa quando se quer alimentar o interesse de ouvir. Falta o canto que por vezes aparece, falta a pergunta que eu posso também fazer quando escrevo, mas que não tem para me animar, os olhos dos ouvintes que me ouvem, me respondem, ou não me dizem nada e me aguardam. Falta, enfim, contar à boa maneira africana, com o adorno de tudo quanto atrás ficou dito e o calor e o sentimento e o interesse de uma comunidade inteira. Falta, minhas senhoras e meus senhores, contar (tal como escrevo) a minha história com Agá para que cada um a oiça e nela se reconheça, para que cada um a escute e nela ganhe e encontre o desejo de a contar um dia quando a idade se adiantar, os cabelos se embranquecerem e o coração vier impor o dever de contar aos ais novos os passos passados de uma outra vida. Uanhenga Xitu Depoimento do escritor ao JL - Jornal de Letras Artes e Ideias em Lisboa aos12 de Agosto de 1998, sob o título: Histórias de mais velho.