UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL
PPGCOM – Programa de Pós-Graduação em Comunicação
ALEXANDRE SILVA GUERREIRO
A CARNAVALIZAÇÃO E O GROTESCO
PELO PRISMA DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Niterói, RJ
2007
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL
PPGCOM – Programa de Pós-Graduação em Comunicação
ALEXANDRE SILVA GUERREIRO
A CARNAVALIZAÇÃO E O GROTESCO
PELO PRISMA DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
DISSERTAÇÃO APRESENTADA
AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE
FEDERAL FLUMINENSE COMO
REQUISITO PARA A OBTENÇÃO
DO TÍTULO DE MESTRE
LINHA DE PESQUISA
ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM
ORIENTADOR
PROF.DR.ANTONIO CARLOS AMANCIO DA SILVA
Niterói, RJ
Abril de 2007
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
G934 Guerreiro, Alexandre Silva.
A carnavalização e o grotesco pelo prisma do cinema brasileiro
contemporâneo / Alexandre Silva Guerreiro. – 2007.
152 f. ; il.
Orientador: Antônio Carlos Amâncio da Silva.
Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Artes de Comunicação
Social, 2007.
Bibliografia: f. 138-140.
1. Cinema brasileiro. 2. Carnavalização. 3. Bakhtin, M.M.
(Mikhail Mikhailovitch) 1895-1975. I. Silva, Antônio Carlos
Amâncio da. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de
Artes e Comunicação Social. III. Título.
CDD 791.430981
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
08
I – DO CARNAVAL AO CINEMA
14
1.1 – Dialogismo e Intertextualidade
1.2 – Dialogismo e Polifonia
1.3 – Sátira e Diálogo
1.4 – Estilização e Paródia
1.5 – Cultura Popular e Carnaval
1.6 – A Cosmovisão Carnavalesca
1.7 – Inversões Carnavalescas
1.8 – Grande Angular Carnavalesca
II – DO GROTESCO AO CINEMA
2.1 – O Grotesco Romântico
2.2 – Um Grotesco “de Câmara”?
2.3 – O Grotesco Realista
2.4 – O Grotesco no Brasil
2.5 – Rebaixamentos Grotescos
2.6 – Grande Angular Grotesca
III – O GROTESCO-CARNAVALIZADO
NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
3.1 – O Grotesco-carnavalizado
3.2 – A Tradição Grotesco-carnavalizada
em Vereda Tropical
16
19
22
24
27
34
36
39
51
53
58
62
65
69
73
83
85
89
3.3 – Breve Apresentação dos Três Filmes
3.4 – Mésalliances
3.5 – Bocas e Narizes
3.6 – Animalização
3.7 – Do Diabo
3.8 – A Comida e o Sexo
3.9 – Inversão e Rebaixamento
3.10 – O Exagero
3.11 – O Linguajar Comum
95
100
106
108
110
112
117
126
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
133
BIBLIOGRAFIA
137
ANEXOS
141
RESUMO
O presente trabalho propõe uma reflexão acerca do cinema brasileiro
contemporâneo sob o prisma do repertório teórico do russo Mikhail
Bakhtin focando em dois conceitos-chave: a carnavalização e o grotesco.
A partir de uma (re)leitura do universo de Bakhtin, pretendemos aproximar
esses dois conceitos para, em seguida, experimentar sua aplicabilidade no
panorama do cinema brasileiro e mundial, no curta-metragem Vereda
Tropical, de Joaquim Pedro de Andrade, e em três longas-metragens: A
Marvada Carne, de André Klotzel, Carlota Joaquina, princesa do Brasil,
de Carla Camurati, e Amélia, de Ana Carolina.
PALAVRAS-CHAVE
Bakhtin – Carnavalização – Grotesco – Cinema Brasileiro
ABSTRACT
The present work is a reflection concerning the contemporary
Brazilian cinema under the prism of the theoretical repertoire of the russian
Mikhail Bakhtin with an especial focus in two concept-key:
carnivalization and the grotesque.
the
We intend to approach these two
concepts and to try its applicability in the panorama of the Brazilian and
international cinema, and more deeply in a shortfilm, Vereda Tropical, de
Joaquim Pedro de Andrade, and in three features: A Marvada Carne,
directed by André Klotzel, Carlota Joaquina, princesa do Brasil, directed
by Carla Camurati, and Amelia, directed by Ana Carolina.
KEYWORDS
Bakhtin – Carnivalization – Grotesque – Brazilian Cinema
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Francisco e Solange, por terem indicado o caminho.
Aos meus irmãos, Francisco e Luciana, pelo companheirismo de sempre.
A Renato Reis, pelo estímulo e apoio na reta final.
A Maurício de Bragança e Pedro Lapera, pelo encorajamento na faixa de
largada.
A Ana Paula Nunes e Andreson Carvalho, pela crença em nossas
capacidades.
A Luciana Biazzi e Luelane Corrêa, pelo carinho ao longo dessa jornada.
A Sílvia Campos, pelo auxílio e simpatia constantes.
A João Luiz Vieira e Rubens Machado, pela participação nas etapas finais
desse processo.
A Ana Lucia Enne, pela leitura atenta e pelas dicas preciosas.
Ao meu orientador, Tunico Amâncio, pelos anos de amizade e trabalho.
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
O cinema é uma arte coletiva; pressupõe contribuições diversas, já que muitas vozes
são consideradas na confecção de um filme. Esse é apenas um primeiro passo para se
pensar o poder da obra de Mikhail Bakhtin se tomada como referencial teórico para a
análise fílmica. Naturalmente, a questão das vozes é muito maior do que a escuta direta dos
envolvidos em uma obra cinematográfica. Isso porque qualquer discurso está infiltrado de
vozes outras, anteriores e posteriores, o que nos levaria a uma genealogia sem fim. Mas é
inegável que o cinema parte de uma complexidade inerente à confluência de universos para
um mesmo set, a cada filme realizado.
Assim, é interessante constatar que o cinema se origina numa peça literária, o
roteiro, passando pela contribuição de artistas das mais diversas formações, fotógrafos,
montadores, figurinistas, atores, e seus universos particulares, até chegar à figura de um
diretor ou produtor que também pode tudo como resultado do processo de realização de um
filme, menos assumir um discurso monológico sobre ele. Não é à toa que sindicatos no
seio da indústria de cinema estadunidense já pleitearam o fim do uso da expressão “um
filme de” vinculada ao nome do diretor nos créditos, repercussão na prática do que
pensamos se aplicar, na teoria, ao cinema.
Por essas e outras razões, o cinema parece ser um espaço privilegiado para que nos
movimentemos rumo às possibilidades de diálogo entre os diversos elementos que o
formam. Nossa intenção é caminhar pelo repertório conceitual bakhtiniano para chegar no
9
que consideramos ser a peça fundamental desse trabalho, a carnavalização, atrelando a esse
conceito a idéia de grotesco como decorrente de um desenvolvimento no pensamento de
Bakhtin, a partir do que se pode lançar um novo olhar sobre o cinema.
A profunda ligação das análises tecidas por Bakhtin com a História fez crescer
nosso interesse por ele. Costuma-se exaltar os conceitos e áreas do conhecimento pelas
quais os textos de Bakhtin circularam, lingüística, psicologia, filosofia, mas é preciso
salientar que a matéria-prima em suas abordagens é a História.
A intenção desse trabalho é, antes de tudo, aplicar os conceitos bakhtinianos ao
cinema brasileiro contemporâneo, não apenas como exercício de análise dos filmes aqui
trabalhados, mas também como investigação acerca da permanência do grotesco e do
carnavalizado no nosso cinema. Para isso, os filmes que foram escolhidos dialogam com
outros momentos da nossa história, outros textos.
Partiremos de uma preocupação em separar, no corpo do trabalho, a categoria de
grotesco, anterior a Bakhtin e desenvolvida por alguns importantes autores, da de
carnavalização, conceito que nasce do repertório bakhtiniano.
A metodologia aqui
utilizada, partindo dessa separação, pode causar estranheza num primeiro momento, mas
isso se fez necessário pela dificuldade em se encontrar textos que deliberem concretamente
sobre as ligações entre tais conceitos no que tange ao cinema. Isso porque é comum que
autores evoquem um desses conceitos ignorando completamente o outro. No caminho
inverso, discorreremos sobre eles separadamente, para melhor amarrá-los em seguida,
através do que chamaremos de grotesco-carnavalizado.
Assim, no campo teórico, há uma preocupação em trabalhar isoladamente os
conceitos-chave para depois buscar o momento exato da aproximação, descortinando o
vínculo que há entre os dois. E ainda que nos vinculemos a Bakhtin, dada sua importância
10
neste trabalho, isso será feito sem que se lance sobre sua obra um olhar sacralizador. Para
evitar esse risco, diversos autores atuais, brasileiros e estrangeiros, que manuseiam e/ou
atualizam os conceitos aqui utilizados, serão apresentados nos momentos necessários.
É perfeitamente factível refletir sobre o grotesco sem vinculá-lo necessariamente ao
carnavalizado. A categoria do grotesco é anterior a do carnaval como instrumento de
análise literária. Mas como é possível que se fale em carnavalização sem que se evoque o
grotesco? Nosso esforço será feito no sentido de melhor entender os limites desses
conceitos para, em seguida, aplicá-los com mais propriedade aos filmes escolhidos, sem
perder de vista a necessidade de se salientar qual forma de grotesco se enquadra à idéia de
carnavalização.
Optamos por trabalhar com o cinema brasileiro produzido nos últimos vinte anos, ao
contrário do que pensamos no projeto inicial, pelo qual este estudo abarcaria meio século
de cinema, recorte ambicioso e pouco recomendável que deixamos de lado. Procuramos
escolher filmes significativos não só por servirem ao nosso universo conceitual, mas
também por se destacarem como fundamentais no panorama do cinema brasileiro
contemporâneo. O resultado foi o a escolha de filmes que atravessaram esses vinte anos de
maneira muito particular. Isso porque assumimos o cinema da retomada como referência
da contemporaneidade no nosso cinema para que se estabelecesse que filmes seriam
escolhidos.
Como marco maior da retomada, um dos filmes analisados será Carlota
Joaquina, Princesa do Brasil, de Carla Camurati, que já suscitou textos sobre
carnavalização no cinema, como indicaremos futuramente.
Carlota será, então, o divisor de águas do cinema brasileiro contemporâneo. Alguns
anos antes do filme de Camurati, foi realizado outro importante filme que será também
objeto de análise, a saber, A Marvada Carne, de André Klotzel, e alguns anos depois de
11
Carlota, mais recentemente, foi a vez de Amélia, de Ana Carolina. Esses três títulos dão
conta de reter na tela uma certa tendência do cinema brasileiro provocadora do riso,
partindo de estratégias próprias aos mecanismos da carnavalização e do grotesco.
Tentaremos provar que os conceitos do grotesco e do carnavalizado servem para
fomentar uma discussão acerca dos filmes escolhidos, em particular, e do cinema brasileiro
contemporâneo, de uma maneira geral, a ponto de inscrever uma corrente do nosso cinema
permanentemente numa tradição de um cinema grotesco-carnavalizado. Essa tradição se
fará presente numa abordagem panorâmica que elaboraremos no final do primeiro e do
segundo capítulo, mas também numa aproximação mais acurada que será feita, no terceiro
capítulo, do curta-metragem Vereda Tropical, tomado aqui como ícone maior da tradição
do grotesco-carnavalizado no cinema brasileiro.
No primeiro capítulo, desenvolveremos uma abordagem sobre os principais
conceitos que giram em torno da cosmovisão carnavalesca e do universo bakhtiniano,
atentando para uma importante separação entre conceitos afins, mas não congruentes. Em
seguida, discorreremos sobre a aplicação da carnavalização ao cinema, observando o
cinema nacional e estrangeiro, buscando comprovar a existência de um cinema
recorrentemente carnavalizado.
No segundo capítulo, buscaremos traçar uma rápida visão sobre a evolução do
grotesco até a sua aplicação ao cinema. Para isso, consideraremos as contribuições de
alguns importantes autores que discorreram sobre o grotesco, desde Victor Hugo até o
brasileiro Muniz Sodré para, num segundo momento, analisarmos o grotesco
cinematográfico, em que filmes nacionais e estrangeiros serão considerados.
No terceiro capítulo, finalmente, faremos convergir os dois conceitos isolados de
modo operativo nos capítulos anteriores. Em seguida, aplicaremos esses conceitos na
12
análise do filme Vereda Tropical. E depois de demonstrarmos as raízes do grotescocarnavalizado no cinema brasileiro, desenvolvermos a nossa análise principal, tomando os
filmes A Marvada Carne, Carlota Joaquina, Princesa do Brasil e Amélia como
representantes do grotesco-carnavalizado no cinema contemporâneo.
Os filmes escolhidos apresentam situações que nos autorizam a vinculá-los a uma
tradição do grotesco-carnavalizado no cinema brasileiro sem, contudo, apresentarem o
carnaval enquanto festa popular. Interessa-nos, sobretudo, que os filmes aqui analisados
sejam representantes de uma visão carnavalizada do mundo. A questão principal que nos
chega através de Bakhtin é que o carnaval, festa popular, acabou criando uma mentalidade,
uma visão de mundo, que pode ser percebida em diversos segmentos, inclusive, na
produção cultural. Por isso, nos esforçamos na seleção de filmes que não utilizam o
carnaval enquanto festa para que salte aos olhos do leitor com mais clareza que estamos
discutindo, aqui, a mentalidade que essa festa milenar suscitou.
Em tempo, gostaríamos de registrar que o grotesco ocupa nesse trabalho um lugar
propositadamente destacado. Isso porque, ao contrário do que acontece com outros termos
próximos ao carnavalizado, como paródia, sátira, polifonia, dialogismo, o grotesco carece
de definição no sentido de se estabelecer de que grotesco se fala, afastando-o do que o
senso comum digere como grotesco, e salientando quais ligações o mesmo estabelece com
o conceito bakhtiniano de carnaval tornando-os indissolúveis, o que nem sempre é feito.
É importante salientar que, no fluxo dos estudos sobre o cinema contemporâneo, o
grotesco e o carnavalizado tendem a ter cada vez mais destaque na medida em que uma
releitura dessacralizadora da obra de Bakhtin passa a ser feita em outras áreas. O cinema,
em sua essência polifônica, permanece oferecendo tantos sons e imagens quantas são as
leituras capazes de analisá-los.
13
I
DO CARNAVAL AO CINEMA
I
DO CARNAVAL AO CINEMA
Ao criar o conceito de cosmovisão carnavalesca, Bakhtin desenvolveu também uma
série de outros conceitos que fundamentam seu trabalho, e que ajudam a melhor
compreender a aplicabilidade do carnaval como instrumento de análise. De um lado, há os
elementos que compõem diretamente o carnavalizado, como a paródia e a sátira menipéia.
De outro, os conceitos de polifonia, dialogismo e intertextualidade. Antes de iniciarmos
uma explanação sobre o cinema carnavalizado, queremos registrar de que forma esses
outros conceitos movimentam-se em torno do tema aqui tratado, promovendo uma
atualização dos mesmos a partir de autores que sobre eles discorreram mais recentemente.
A quantidade de leituras da obra bakhtiniana, de onde apreendemos a necessidade
de constantemente passar a limpo as interpretações de seus conceitos, está expressa em
Robert Stam.
Cada país e cada escola, porém, parecem ter seu próprio
“Bakhtin”, e não raro se observa a existência de Bakhtins
diversos no mesmo país.
Assim, encontramos Bakhtin, o
formalista, Bakhtin, o antiformalista, e lado a lado com
Bakhtin, o fenomenologista, Bakhtin, o marxista, e Bakhtin, o
pós-estruturalista (STAM, 1992: 9).
15
1.1 - Dialogismo e Intertextualidade
É importante salientar que, dependendo do enfoque dado ao instrumental teórico
criado por Bakhtin, alguns conceitos podem figurar em primeiro plano enquanto outros
passam a ocupar o fundo do quadro ou mesmo o espaço fora da tela dentro da análise.
Mas é inevitável notar sua existência e refletir sobre eles. Para Diana Luz Pessoa de
Barros, o fundamental na obra de Bakhtin é a idéia de dialogismo, já que
o princípio dialógico permeia a concepção de Bakhtin de
linguagem e (...) de mundo, de vida (BARROS, 2003: 2).
Beth Brait afirma que
A natureza dialógica da linguagem é um conceito que
desempenha papel fundamental no conjunto das obras de
Mikhail Bakhtin, funcionando como célula geradora dos
diversos aspectos que singularizam e mantém vivo o
pensamento desse produtivo teórico (BRAIT, 2003: 11).
De fato, o princípio do dialogismo amplia as possibilidades de crítica da obra de
arte, em especial, e da leitura de mundo, de uma forma geral. Nesse sentido, a contribuição
desse conceito provocou uma verdadeira revolução no campo da produção intelectual.
Bakhtin critica a fetichização da arte bem como o enfoque concentrado no ponto de vista do
observador que analisa a obra. Segundo ele, é preciso um entendimento em todos os
sentidos para que se possa superar tanto o formalismo quanto o ideologismo. Essa idéia
está imbuída do sentido maior que é o dialogismo, pelo qual nenhuma análise deve estar
16
fechada em si, o que pressupõe o diálogo entre as mais diversas correntes. Um discurso
traz, em seu seio, inúmeros outros discursos que o formam.
A presença do discurso do “outro” no “eu” é exemplificada por Bakhtin através de
uma reflexão sobre a aprendizagem da fala por uma criança, que constrói seu discurso
totalmente baseado no discurso do outro, pai, mãe, professor etc. Para Robert Stam,
Toda a obra de Bakhtin gira em torno desse eixo do eu e do
outro, e da concepção de que a vida é vivida nas fronteiras
entre a particularidade de nossa experiência individual e a
auto-experiência de outros (STAM, 1992: 18).
Há que se fazer, no entanto, uma distinção entre dialogismo e intertextualidade,
muitas vezes usados como sinônimos.
Segundo José Luiz Fiorin, o termo intertextualidade foi desenvolvido por Julia
Kristeva, no ambiente do estruturalismo francês. Esse termo foi empobrecido, afastando-se
da multifacetada concepção do dialogismo bakhtiniano (FIORIN, 2003: 29).
Todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo
texto é absorção de um outro texto. Assim, em lugar da
noção
de
intersubjetividade,
instaura-se
a
de
intertextualidade (KRISTEVA, 1974: 64).
Quando Kristeva discorreu sobre a intertextualidade, o termo dialogismo já havia
sido cunhado por Bakhtin, marcando seu afastamento tanto do formalismo quanto do
ideologismo. Assim, através de um princípio admirável, ele nega uma análise que corte as
relações do texto com a sociedade, mas também recusa uma abordagem que seja míope à
estrutura própria do texto, não integrando a organização lingüística à realidade social
(BARROS, 2003: 9).
17
Robert Stam chama atenção para uma solta tradução do dialogismo bakhtiniano por
Julia Kristeva, pois considera que
Sua
tradução
do
dialogismo
de
Bakhtin
como
intertextualidade provocou uma proliferação de estudos sobre
intertextualidade, muitos dos quais mantinham apenas uma
tênue conexão com o pensamento de Bakhtin (STAM, 1992:
10).
Seria um erro, portanto, tomarmos esses dois conceitos como sinônimos, ainda que
eles sejam tão próximos.
Para Fiorin, o dialogismo de Bakhtin se define mais
concretamente na idéia de que
o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas se elabora em
vista do outro.
Em outras palavras, o outro perpassa,
atravessa, condiciona o discurso do eu (FIORIN, 2003: 29).
Em contrapartida, a intertextualidade concerne ao processo de construção,
reprodução ou transformação do sentido. A distinção entre dialogismo e intertextualidade
pode ser intuída, a partir de Fiorin, contrastando também a noção de texto e de discurso.
Teríamos, então, interdiscursividade como sinônimo de dialogismo, e intertextualidade
como um conceito correlato, próximo à formulação bakhtiniana, mas sem se confundir com
esta. A intertextualidade seria, então, a prática de incorporação de um texto em outro, o
que pode ocorrer através da citação, da alusão e da estilização.
O dialogismo ou
interdiscursividade seria o processo de incorporação de temas ou figuras do discurso do
outro. (FIORIN, 2003: 30-33).
18
No entanto, diversos autores não fazem distinção entre intertextualidade e
dialogismo. Em texto recente, Diana Luz Pessoa de Barros usa esses conceitos com
proximidade, apontando a intertextualidade como um caso específico de dialogismo.
Outro aspecto do dialogismo a ser considerado é o do
diálogo entre os muitos textos da cultura, que se instala no
interior de cada texto e o define. Esse sentido de dialogismo
é mais explorado e conhecido e até mesmo apontado como o
princípio que costura o conjunto das investigações de Bakhtin
(BARROS, 2003: 4).
Seja como for, a distinção entre dialogismo e intertextualidade é importante, ainda
que eles naturalmente se misturem, se agreguem, não sejam excludentes. Não é outro o
movimento que fazemos nesse trabalho ao separar estrategicamente o grotesco e a
carnavalização, ainda que tenhamos em vista o cruzamento definitivo desses conceitos mais
adiante.
1.2 - Dialogismo e Polifonia
Em seu estudo da obra de Dostoiévski, Bakhtin chama atenção para a existência de
várias vozes em seus romances, o que não tinha sido percebido pela crítica literária até
então.
A obra de Dostoiévski passa a ser associada à idéia de romance polifônico,
contrapondo-se ao romance monofônico.
O princípio da polifonia implica na afirmação do “eu” do outro não como objeto,
mas como sujeito.
O mundo monológico da consciência do autor dá lugar à
19
autoconsciência dos personagens. A visão de mundo do autor, então, passa a ser apenas
uma das visões de mundo presentes no texto, o que torna a obra aberta, incompleta, já que
não cabe mais ao autor explicar, através de uma visão monológica, o lugar do outro
(BAKHTIN, 1982: 6; 36).
Isso tem uma implicação direta na questão ideológica contida no texto, já que a
existência do outro enquanto sujeito acaba por promover a confluência de vozes de
discursos diferentes, ou mesmo contraditórios, dentro de um mesmo universo. A polifonia,
então, tem um caráter ideológico que precisa ser percebido, e que vem ao encontro do
ideário bakhtiniano de não exclusão, ao considerar as inúmeras vozes que estão presentes
em cada discurso, vozes essas que podem ser heterogêneas e contraditórias.
Portanto, a
polifonia permite que essas vozes permaneçam como sujeitos, audíveis, ao invés de serem
filtradas ou alteradas, enquadradas na voz do autor, o que tornaria o texto monofônico. É
preciso saber
“representar a idéia do outro”, conservando-lhe toda a
plenivalência enquanto idéia, mas mantendo simultaneamente
a distância, sem afirmá-la, nem fundi-la com sua própria
ideologia representada. (BAKHTIN, 1981: 71)
Os
termos
polifonia
e
dialogismo
também
já
foram
empregados
indiscriminadamente. Contra a prática de misturar tais conceitos, Diana Luz Pessoa de
Barros define que
emprega-se o termo polifonia para caracterizar um certo tipo
de texto, aquele em que se deixam entrever muitas vozes
(BARROS, 2003: 2).
20
Em contrapartida, o termo dialogismo seria empregado como princípio constitutivo
da linguagem e de todo o discurso (BARROS, 2003: 2).
A partir da separação que os autores fazem entre dialogismo, intertextualidade e
polifonia, poderíamos realmente aceitar que dialogismo fosse um termo maior no repertório
bakhtiniano e que intertextualidade e polifonia seriam variações desse conceito principal.
No entanto, em certas ocasiões, essas distinções se tornam rasas, sendo necessário manter
um conceito sem misturá-lo aos demais, sem esquecer, porém, que pela própria essência do
tema aqui tratado, todos eles são arejados, infiltrados, contaminados por idéias anteriores
ou paralelas que atuam intertextualmente, dialogicamente, polifonicamente, na sua
significação. Diana Luz Pessoa de Barros, citando Joseph Frank, afirma que
A complexidade do pensamento bakhtiniano, que rejeita a
dominância de leituras excludentes, configura uma filosofia
da linguagem que, concebendo o eu e o outro como
inseparavelmente ligados e tendo como elemento articulador
a linguagem, pode espelhar, por um certo prisma e de
maneira ideal, o diálogo entre Deus e o homem (BARROS,
2003: 12).
Assim, uma das principais contribuições do ideário bakhtiniano reside no fato de
que o outro existe como sujeito. Esse é o princípio elementar da polifonia. É a concepção,
a aceitação do outro como sujeito, que permite um efeito polifônico ao texto. A partir
disso, Bakhtin instaura uma abordagem tolerante com as diferenças, absolutamente aberta
às mais diversas influências dos pensamentos, ideologias, correntes que a precederam. O
pensamento e suas manifestações culturais passam a fazer parte de uma tradição humana e
do acúmulo de sua experiência.
21
1.3 - Sátira e Diálogo
As raízes da cosmovisão carnavalesca foram localizadas por Bakhtin na sátira
menipéia e no diálogo socrático. Essas duas variações desenvolveram-se ainda no período
da Antigüidade Clássica, sendo que a sátira menipéia seria uma derivação do diálogo
socrático. A estrutura do diálogo socrático, que pressupunha a voz do outro e não só a do
autor, fomenta a discussão das origens da polifonia.
Bakhtin define o “diálogo socrático” como um gênero
cômico-sério saído do carnaval.
Se, como afirma
insistentemente, o carnaval é ambivalência profunda e recusa
de soluções, se a mentalidade carnavalesca é inimiga das
convenções,
então
a
recusa
de
uma
decisão
e
o
questionamento das idéias recebidas, duas táticas fundadas
na maneira pela qual Sócrates concebe a natureza própria da
verdade, sugerem com efeito o clima ou o modo carnavalesco
(HAYMAN, 1980: 33).
Ao buscar o princípio polifônico nas origens do gênero cômico, Bakhtin localiza a
nascente da sátira. Leonor Lopes Fávero afirma que a sátira menipéia
deve seu nome ao filósofo Ménippe, de Godare (séc. III a.C.),
que lhe deu a forma clássica, tendo sido Varrão (séc. I. a.C.)
o primeiro a empregar o termo para designar um gênero
22
particular,
intitulando
sua
obra
Saturae
Menippeae
(FÁVERO, 2003: 52).
Bakhtin elenca diversas particularidades da sátira menipéia, num total de catorze1,
dentre as quais podemos citar a presença constante do elemento cômico, a libertação das
limitações históricas e a total liberdade de invenção filosófica e temática, a síncrese, a
infração às regras do bom-tom, o uso de contrastes violentos, a representação de estados
psíquicos anormais, a opção pelos problemas sociopolíticos contemporâneos. A sátira
menipéia está no cerne da questão da carnavalização do mundo, funcionando a partir do
princípio polifônico na arte (STAM, 1992: 38-39).
Um dos recursos básicos da sátira menipéia enquanto gênero é a capacidade de
infiltrar-se em outros gêneros. Isso, certamente, garante sua permanência, através de suas
características mais básicas, tais como o uso de contrastes agudos, sendo ainda comuns
escândalos, comportamentos excêntricos, violações das normas comportamentais
(BAKHTIN, 1982: 101).
Sendo assim, a menipéia, pelas suas características mais corriqueiras, é fundamental
para o desenvolvimento da noção de carnavalização. Para Bakhtin, não há como separar
sátira menipéia e paródia dentro do conceito maior de carnavalização.
Ao colocar a
questão da cosmovisão carnavalesca em foco no seu repertório teórico, ele acabou por
valorizar gêneros considerados secundários.
1
Segundo Robert Stam, Suzana Camargo aplica as catorze “particularidades fundamentais” enumeradas por
Bakhtin ao livro de Mário de Andrade, em Macunaíma: ruptura e tradição (São Paulo: João Farkas/Massao
Ohno, 1977).
23
1.4 - Paródia e Estilização
Etimologicamente, paródia significa canto paralelo, o que pressupõe a idéia de
vozes se sobrepondo, funcionando como “contracanto” em relação à outra voz que lhe é
anterior.
Foi Aristóteles quem categorizou a paródia como arte, a partir de Hegemon de
Tarso, que usou pela primeira vez, no séc V a.C., esse gênero infiltrado no gênero épico, ao
colocar os homens como seres comuns, inseridos na vida cotidiana e não como seres
superiores (FÁVERO, 2003: 49).
Os conceitos de sátira e paródia são elementos fundamentais na elaboração da
cosmovisão carnavalesca. A paródia atua dentro da sátira menipéia e apresenta-se como
essencialmente intertextual e polifônica, já que seu texto pressupõe textos anteriores que
são por ela negados, relativizados, transformados.
Na paródia a fusão de vozes é impossível, pois elas provêm de
mundos diferentes; elas se fazem ouvir numa leitura
polifônica – a polifonia é uma de suas características
(FÁVERO, 2003: 55).
Em tempo, é preciso considerar as colocações de Flávio R. Kothe acerca da paródia,
o que representa um certo pensamento desabonador sobre a mesma. Sua abordagem atribui
à paródia um lugar inferior, a partir de uma separação entre paródia e estilização.
A paródia procura rebaixar um texto, um estilo, uma escola;
a estilização, que, como a paródia, também tem alguma outra
24
obra ou tendência anterior como referência, diferencia-se
porque procura criar uma obra que seja de nível mais
elevado e que não viva mais apenas para negar algo anterior
(KOTHE, 1980: 99).
Seguindo essa lógica, ele atribui à paródia apenas o que considera destituído de
qualidade, cabendo à estilização todos os méritos de obras ditas maiores.
A estilização é uma paródia que conseguiu ser uma grande
obra de arte, enquanto que a paródia é uma estilização que
artisticamente não deu certo e se situa, portanto, na parte
baixa da pirâmide (KOTHE, 1980: 102).
Tais considerações partem de um princípio que considera pejorativamente o
rebaixamento promovido pela paródia. Não se trata, através desse rebaixamento, de tecer
considerações acerca do que tem ou não qualidade. Antes, é preciso descobrir que a
premissa bakhtiniana é a de valorização do que até então, mesmo na literatura, permanecia
no domínio do extra-oficial e do popular.
Ao discorrer sobre esse assunto, Bakhtin contribui para a diferenciação e
valorização tanto da paródia quanto da estilização, ao afirmar em relação à paródia que
Nesta, como na estilização, o autor fala a linguagem do
outro, porém, diferentemente da estilização, reveste essa
linguagem de orientação significativa diametralmente oposta
à orientação do outro. (...) O discurso se converte em palco
de luta entre duas vozes. Por isto é impossível a fusão de
vozes na paródia, como o é possível na estilização.
(BAKHTIN, 1981: 168).
25
Afonso Romano de Sant’Anna, na contramão do que afirma Kothe, expõe dois
textos precisos de Tynianov e Bakhtin nos quais fica claro que a separação entre paródia e
estilização nada tem a ver com qualidade, e sim com o sentido tomado pela leitura do texto
original. Assim, a paródia pode seguir vários caminhos, porém todos eles inversos ao da
obra que suscitou a paródia. E ainda que geralmente esteja vinculada ao riso, Tynianov
afirma que a paródia de uma comédia pode ser uma tragédia. Ao contrário, a estilização
deve seguir um único caminho, o mesmo seguido pelo autor da obra original
(SANT’ANNA, 1985: 13-15).
É o próprio Afonso Romano de Sant’Anna quem atualiza esses conceitos, propondo
modelos ternários e quaternários, incorporando à estilização e à paródia novos elementos,
como a paráfrase e a apropriação. Para Sant’Anna, rompe-se assim com o dualismo que
opõe a paródia ora à estilização, ora à paráfrase. Complexos e flexíveis, os modelos
permitem uma atualização dos conceitos e uma ampliação da idéia de estilização, que passa
a sustentar termos como estilização negativa, estilização positiva, contra-estilo etc.
Para Bakhtin, a estilização pressupõe o estilo, assumindo a mesma direção do texto
a ser estilizado.
O estilizador usa o discurso de um outro como discurso de
um outro e assim lança uma leve sombra objetiva sobre esse
discurso. (...) Afinal de contas, o importante para o
estilizador é o conjunto de procedimentos do discurso de uma
outra pessoa precisamente como expressão de um ponto de
vista específico. (BAKHTIN, 1981: 164).
26
1.5 – Cultura Popular e Carnaval
A acepção do “carnaval” como sendo uma mentalidade que fundou uma visão de
mundo diferenciada do mundo oficial passa pela idéia de “cultura popular”. Para Bakhtin,
a seriedade e a austeridade desse mundo oficial se contrapõem ao extra-oficial, risonho,
excêntrico universo do carnaval, tomado como modelo de todas as manifestações que se
inserem na tradição das festas populares.
No entanto, o termo “cultura popular” sofreu uma teorização tardia. Sua origem nos
remete ao conceito de “cultura primitiva”, termo originário da antropologia cultural, que
marcou uma distância entre a visão colonialista do passado e que via as camadas populares
e sua produção cultural como “camadas inferiores dos povos civilizados”, e uma
abordagem que finalmente reconhecesse nesses povos a existência de uma “cultura”.
(GINZBERG, 1995: 17).
O avanço teórico nesse setor pode ser percebido na passagem abaixo, que salienta a
ambigüidade conceitual e a importância do tratado bakhtiniano sobre a obra de Rabelais
para a conceituação de “cultura popular”.
Às classes subalternas das sociedades pré-industriais é
atribuída ora uma passiva adequação aos subprodutos
culturais distribuídos com generosidade pelas classes
dominantes (...), ora uma tácita proposta de valores, ao
menos em parte autônomos em relação à cultura destas
classes (...), ora um estranhamento absoluto que se coloca até
27
mesmo para além, ou melhor, para aquém da “cultura” (...).
É bem mais frutífera a hipótese formulada por Bakhtin de
uma influência recíproca entre a cultura das classes
subalternas e a cultura dominante. (GINZBURG, 1995: 24).
Bakhtin nos brinda com a idéia de circularidade, pela qual as culturas das camadas
mais elevadas, eruditas, se contrapõem e alimentam as das camadas populares, e estas, por
sua vez, se espelham e reinventam, a seu modo, a cultura erudita, influenciando-a e
completando o quadro da circularidade bakhtiniana.
Fica claro, em sua descrição do
carnaval, que este se utiliza do mundo oficial para se inventar. O universo risonho e livre
das festas populares contrasta, assim, com o mundo hierárquico, sério, erudito.
Outros pensadores apontam para a dificuldade que existe na conceituação de
“cultura”. Para Peter Burke, houve uma transformação no uso do termo a partir do séc.
XVIII, o que resultou na ampliação do conceito.
seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e
outros usam o termo “cultura” muito mais amplamente, para
referir-se a quase tudo que pode ser apreendido em uma dada
sociedade (BURKE, 1989: 25).
Essa transformação conceitual foi acompanhada e fomentada pela formação dos
Estados Nacionais, na qual a cultura popular desempenhou um papel fundamental no
sentido de criar uma identidade nacional e unificar ideologicamente em torno de um mesmo
território uma população sobre a “ilusão” do pertencimento.
A unidade nacional foi,
portanto, um dos benefícios da ampliação do conceito de cultura popular.
Por outro lado, essa mesma cultura popular pode ser percebida como uma forma de
resistência cultural, contra-hegemônica, dificultando, assim, o aspecto da coesão nacional,
28
o que nos dá a dimensão da ambigüidade que paira sobre a conceituação do termo aqui
tratado.
Seja como for, Nestor Garcia Canclini aponta para o perigo de uma definição frouxa
ou pouco precisa do termo “cultura”, propondo que seu uso seja mais restrito. Segundo sua
concepção, a cultura seria responsável por
fenômenos que contribuem, mediante a representação ou
reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a
compreensão, reprodução ou transformação do sistema
social (CANCLINI, 1983: 29).
Canclini também chama atenção para o caráter de resistência cultural das regiões
periféricas e contra-hegemônicas, o que, no processo de globalização das últimas décadas,
cumpre um papel fundamental no sentido de preservar o regional. Ecoa, aqui, o conceito da
circularidade bakhtiniana, as culturas dominantes influenciando, mas sendo também
influenciadas pelas culturas de regiões periféricas no âmbito das trocas culturais.
A
resistência dada pela cultura popular, então, passa a ser responsável tanto pela
sobrevivência das culturas periféricas, quanto pela manutenção e equilíbrio da circularidade
entre as culturas.
Manuseando o conceito de cultura popular, Bakhtin discorre sobre as festas
populares medievais, em especial o carnaval, como sendo um segundo mundo vivido pelo
povo, que degenera e subverte o mundo oficial. Esse carnaval serve de base para que se
formule a idéia da cosmovisão carnavalesca, o que não significa, segundo o próprio
Bakhtin, “traduzir” o carnaval como instrumento de análise.
Aqui, fica claro que o
conceito não está fundamentado na idéia de uma tradução, mas de uma transposição que
29
amplia significativamente as possibilidades de análise da obra de arte. O carnaval, segundo
Bakthin,
É uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual,
muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral,
apresenta diversos matizes e variações dependendo da
diferença de épocas, povos e festejos particulares.
O
carnaval criou toda uma linguagem de formas concretosensoriais simbólicas, entre grandes e complexas ações de
massas e gestos carnavalescos. Essa linguagem exprime de
maneira diversificada e, pode-se dizer, bem articulada (como
toda linguagem) uma cosmovisão carnavalesca una (porém
complexa), que lhe penetra todas as formas. Tal linguagem
não pode ser traduzida com o menor grau de plenitude e
adequação para a linguagem verbal, especialmente para a
linguagem dos conceitos abstratos, no entanto é suscetível de
certa transposição para a linguagem cognata, por caráter
concretamente sensorial, das imagens artísticas (BAKHTIN,
1982: 105).
A concepção bakhtiniana do carnaval passa pela definição de três grandes
categorias. Bakhtin estabelece que a idéia maior do “carnaval” ultrapassa a materialidade
das festas populares, que constituem a primeira categoria, a saber, as formas dos ritos e
espetáculos, desembocando em outras duas categorias, a das obras cômicas verbais e a das
diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro. É essa visão amplificada
30
do fenômeno do carnaval que permitiu a formulação do conceito de carnavalização e outros
conceitos correlatos.
As formas dos ritos e espetáculos traduzem-se como o carnaval concreto, das
festividades carnavalescas que rompiam com as tradições religiosas e oficiais, e
instauravam outra tradição, a do cômico-popular, do riso, do extra-oficial.
Segundo
Bakhtin, os que participavam dessas festividades
pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, “um
segundo mundo” e “uma segunda vida” (...). Isso criava
uma espécie de “dualidade do mundo” (BAKHTIN, 1993:
5).
As obras cômicas verbais, segundo Bakhtin, poderiam vir tanto do folclore e de
uma tradição oral, quanto da literatura, através de uma absorção das manifestações de
ordem carnavalesca. Assim, tanto o linguajar quanto o riso festivo próprio do carnaval
eram usados, formulando essa literatura cômica própria da Idade Média, e que teve no
Renascimento seu apogeu.
As diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro foram apontadas
por Bakhtin como essenciais para se entender o carnaval como um todo. Esse vocabulário
específico está presente tanto nas festividades populares como na literatura cômica que se
formulou no período. Era uma forma nova de se comunicar, imbuída do espírito do
carnaval, que se desdobrava no uso freqüente de grosserias.
O uso desse linguajar
específico se dá graças à convivência familiar entre os homens que o carnaval suscita.
Antes de abordarmos a carnavalização propriamente dita, cabe fazermos, ainda,
algumas considerações sobre a festa que originou tal conceito. Segundo Roberto Da Matta,
o carnaval seria
31
o sumário perfeito desta visão anticotidiana da vida
brasileira. Um ritual que, ao romper com o continuum da
vida diária, aponta gritantemente para alguns pontos básicos
da nossa ordem social (MATTA, 1977: 22).
É importante distinguir de que carnaval nos fala Bakhtin ao propor essa
transposição. O carnaval é uma festa popular que atravessou a História, sendo dentre todas
as manifestações da cultura popular, a mais consistente e tradicional para servir de base à
transposição bakhtiniana.
Assim, ele nos fala do carnaval como símbolo das festas
populares.
O carnaval revela-nos o elemento mais antigo da festa
popular, e pode-se afirmar sem risco de erro que é o
fragmento mais bem conservado desse mundo tão imenso
quanto rico.
Isso autoriza-nos a utilizar o adjetivo
“carnavalesco” numa acepção ampliada, designando não
apenas as formas do carnaval no sentido estrito e preciso do
termo, mas ainda toda a vida rica e variada da festa popular
no decurso dos séculos e durante a Renascença, através de
seus caracteres específicos representados pelo carnaval nos
séculos seguintes, quando a maior parte das outras formas
ou havia desaparecido, ou degenerado (BAKHTIN, 1993:
189-90).
Hiram Araújo aponta quatro centros de excelência do carnaval. O primeiro seria o
Egito de 4000 a.C. O segundo, figuraria na Grécia e Roma da Antigüidade Clássica, pelos
deuses Saturno, Dionísio e Baco, celebrando os instintos, o sexo e a bebida. O terceiro
32
centro seria a Veneza renascentista, onde se agregaram os componentes estéticos, fantasia e
alegoria. O quarto ponto de excelência seria, naturalmente, o Rio de Janeiro do século XX.
Isso leva à divisão nos seguintes períodos: o ORIGINÁRIO – 4000 a.C., o PAGÃO – séc.
VII a.C. ao séc. VI d.C., o CRISTÃO – séc VI d.C. ao séc. XVIII d.C. – e o
CONTEMPORÂNEO – séc. XVIII d.C. ao séc. XX. (ARAÚJO, 2000: 2;8;18;44).
O carnaval originário teria como marco inicial a criação dos cultos agrários e, como
ponto final, a oficialização das festas a Dionísio, durante o reinado de Pisístrato, na Grécia,
de 605 a 527 a.C., quando teria início o carnaval pagão. Este terminaria quando a Igreja
adotou, oficialmente, o carnaval, em 590 d.C., tendo início o carnaval cristão. O carnaval
contemporâneo seria marcado, então, pela espetacularização radical dessa festa popular,
que guarda em relação às suas origens uma vinculação apenas vaga.
O carnaval de que nos fala Bakhtin é muito diferente de uma definição apontada
pelo senso comum acerca do carnaval. O que se chama de carnaval, então, vai além da
própria definição cristã do período que antecede os jejuns quaresmais.
Temos que
ultrapassar as fronteiras de nossa tradição cristã, bem como da espetacularização atual
desse fenômeno popular, para entender a amplitude do carnaval bakhtiniano.
É importante notar que, ao se referir ao carnaval, Bakhtin não evoca as
manifestações carnavalescas de sua época. Para entender o conceito de carnavalização
proposto por Bakhtin, é preciso fazer uma viagem no tempo e entender as diferenças que
ocorreram no carnaval.
É necessário deixar de lado, ainda, a estreita concepção
espetaculoso-teatral do carnaval, bastante característica dos
tempos modernos.
33
Para interpretar corretamente o carnaval é necessário tomálo nas suas origens e no seu apogeu, ou seja, na Antigüidade,
na Idade Média e, por último, no Renascimento. (BAKHTIN,
1982: 138).
Pela cronologia criada por Hiram Araújo, o período que recebe mais atenção na
análise de Bakhtin, a saber, a Idade Média e, principalmente, o Renascimento, está contido
no período Cristão, entre os séculos VI e XVIII d.C. Na verdade, Bakhtin exclui de sua
análise apenas o carnaval contemporâneo, que assumiu um caráter espetacular muito
diverso dos carnavais dos demais períodos.
1.6 – A Cosmovisão Carnavalesca
Uma tradição secular de festas populares de cunho carnavalesco foi responsável
pelo desenvolvimento de uma visão de mundo avessa ao mundo oficial, diário. A idéia de
subversão está no cerne da questão da cosmovisão carnavalesca. Durante séculos, os
homens conviveram com e no carnaval, e é natural que tenham se contaminado pela visão
de mundo própria do universo de inversões e rupturas dos festivos carnavalescos.
Essa contaminação nos autoriza supor que determinadas obras não se enquadrem
nos cânones clássicos da literatura e da arte em geral.
O conceito de cosmovisão
carnavalesca vem preencher essa lacuna, batizar uma prática de leitura do mundo
contaminada pela essência do carnaval.
A carnavalização encontra sua melhor definição nas palavras de seu formulador.
34
Chamaremos literatura carnavalizada à literatura que, direta
ou indiretamente, através de diversos elos mediadores, sofreu
a
influência
de
diferentes
modalidades
de
folclore
carnavalesco (antigo ou medieval). Todo o campo do cômicosério constitui o primeiro exemplo desse tipo de literatura.
Para nós, o problema da carnavalização na literatura é uma
das
importantíssimas
questões
de
poética
histórica,
predominante de poética dos gêneros (BAKHTIN, 1982: 92).
Ao aproximar o homem do mundo, o homem do homem, o conceito de
carnavalização promove uma transformação que nada tem a ver com o questionamento da
qualidade artística da obra, mas ressalta o tratamento que temas que não são notadamente
“nobres” podem receber. Isso porque a carnavalização descortina uma pluralidade de
estilos e de vozes na corrente do gênero cômico.
Na medida em que promove a inversão ou libertação do mundo oficial, a
carnavalização permite o surgimento do “humano”, mesmo dentro da história oficial. A
partir de um tratamento carnavalizador, até os reis tendem a ser percebidos como homens,
através de estratégias de coroação-destronamento, próprias da cosmovisão carnavalesca.
Assim, a obra carnavalizada
opõe-se somente à seriedade oficial unilateral e sombria,
gerada pelo medo, dogmática, hostil aos processos de
formação e à mudança, tendente a absolutizar um dado
estado da existência e do sistema social (BAKHTIN, 1982:
138).
35
Segundo Diana Luz Pessoa de Barros, os textos carnavalizados
diferenciam-se, portanto, dos discursos autoritários, graças à
polêmica narrativa, à polifonia, (...) recursos pelos quais se
obtém a visão do direito e do avesso do mundo e se mantém a
polifonia interna das vozes que dialogam no texto (BARROS,
2003: 8).
Leonor Lopes Fávero coloca ainda o carnaval como sendo a fonte cultural de onde
provêm os gêneros cômico-sério-crítico, como a sátira, calcada na paródia, e o diálogo.
Para isso, usa a expressão “gêneros carnavalescos”, que nos serve para afirmar a
importância dos conceitos anteriormente apresentados. A carnavalização é o termo que
abarca todos os demais, dentro do instrumental teórico bakhtiniano, promovendo uma
dança sempre contemporânea entre paródia, sátira, dialogismo, intertextualidade, polifonia
e também da categoria do grotesco, da qual nos furtaremos de falar neste capítulo, mas que
receberá um tratamento especial no capítulo seguinte.
Seguindo o mesmo movimento dos festejos carnavalescos, ao formular o conceito
de carnavalização, Bakhtin promoveu uma profunda transformação na produção intelectual
do século XX.
1.7 – Inversões Carnavalescas
Dentre as muitas características que podem ser ressaltadas quando enfocamos a
carnavalização, a idéia de inversão, sem dúvida, assume destaque pois está no cerne da
própria abordagem do carnaval feita por Bakhtin.
36
A inversão que o carnaval promove na vida cotidiana foi responsável pela
sedimentação de uma visão de mundo carnavalizada, mas é importante notar de que
maneira essa inversão se manifesta.
Um dos pontos fundamentais é a idéia de que o carnaval é responsável pela
aproximação entre os homens, que na vida cotidiana permanecem afastados social e
hierarquicamente. Essa aproximação específica promovida pelo carnaval transforma-se,
então, no livre contato familiar entre os homens. Instaura-se um novo modo de relações
interpessoais, a partir da formulação do contato livre e familiar.
A esse conceito, Bakhtin atrela outra característica importante do mundo
carnavalizado, a saber, a excentricidade. Para ele,
A “excentricidade” é uma categoria específica da cosmovisão
carnavalesca, organicamente relacionada com a categoria do
contato familiar; ela permite que se revelem e se expressem –
em forma concreto-sensorial – os aspectos ocultos da
natureza humana. (BAKHTIN, 1981: 106).
Além disso, uma das mais fortes características do carnavalizado é o uso de
contrastes agudos, as mésalliances, através do confronto entre sagrado e profano, alto e
baixo. Assim, através de categorias dicotômicas, o carnaval promove a aproximação dos
elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos
outros pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca.
(BAKHTIN, 1981: 106).
A profanação é outra marca própria da carnavalização, ligada ao poder do carnaval
de transformar o que é sagrado, intocado, oficial, instituindo-se, aqui, os “sacrilégios
carnavalescos”. Essa e as categorias citadas anteriormente se manifestam no carnaval
37
através das ações carnavalescas, dentre as quais se destaca a prática da coroaçãodestronamento, constante em festejos os mais variados.
A cerimônia de destronamento é como se encerrasse a
coroação, da qual é inseparável (...).
Através dela
transparece uma nova coroação. O carnaval triunfa sobre a
mudança, sobre o processo propriamente dito de mudança e
não precisamente sobre aquilo que muda
(...)
era
precisamente no ritual do destronamento que se manifestava
com nitidez especial a ênfase carnavalesca das mudanças e
renovações (BAKHTIN, 1981: 107-8).
A primeira característica da carnavalização apontada por Bakhtin, o contato livre e
familiar entre os homens, tem implicação direta numa outra característica tomada por ele
como uma das três manifestações do carnaval. Trata-se do linguajar comum, já citado
anteriormente quando mencionamos as diversas formas e gêneros do vocabulário familiar
e grosseiro. É essa nova convivência e contato entre os homens suscitados pelo carnaval
que origina um novo linguajar, despojado, provocador de um riso festivo.
O novo tipo de relações familiares estabelecidas durante o
carnaval reflete-se, portanto, em uma série de fenômenos
lingüísticos (BAKHTIN, 1993: 14).
Nas ações carnavalescas, podemos perceber a presença de todas as categorias
enumeradas anteriormente. Assim, a ação da coroação-destronamento se caracteriza pelo
princípio das mésalliances, pela profanação, pelo contato livre e familiar. O uso de um
linguajar comum próprio de uma concepção carnavalesca do mundo surge graças ao
38
contato livre e familiar que o carnaval promove. Essa é a coerência interna do arsenal
teórico bakhtiniano.
Os conceitos e categorias até aqui comentados atuam ativamente na composição da
cosmovisão carnavalesca. Através deles, Bakhtin plantou novas possibilidades de análise
em diversos textos: música, teatro, literatura, cinema. É como se os sons que nos chegam
agora não chegassem mais como nos primórdios do cinema sonoro. Agora, o som não vem
apenas de um ponto localizado atrás da tela, ou mesmo do solitário piano na frente desta.
Os profundos avanços tecnológicos permitem uma ampliação do som na sala de cinema,
caixas de som espalhadas pela sala, ampliando o efeito de tridimensionalidade do som. A
contribuição bakhtiniana convida os que manuseiam seus conceitos a estarem atentos a
todos os sons, vozes, influências, possibilidades, focando uma análise mais profunda. A
partir de Bakhtin, estaremos sempre sentados numa sala de cinema cercados de vozes, e não
apenas as que nos chegam diretamente do filme.
1.8 - Grande Angular Carnavalesca
A carnavalização pode ser notada, em maior ou menor grau, no cinema brasileiro e
estrangeiro. Pretendemos, aqui, fazer uma breve explanação sobre a carnavalização no
cinema, não sendo nossa intenção, no entanto, esgotar o assunto. Sabemos das brechas que
as linhas seguintes poderão deixar. No entanto, nossa proposta nesse momento é promover
uma análise panorâmica da produção cinematográfica de raízes carnavalescas. O efeito
dessa análise poderá ser o de uma lente grande angular, que distorce o que vê para ver mais
39
coisas dentro do quadro. Eis o nosso recurso para apenas pincelar, em um século de
cinema, os conceitos até então expostos.
O cinema demorou a edificar uma tradição carnavalesca. Algumas situações que
encontramos nos anos 60 são impensáveis nos filmes realizados no início do século.
Assim, precisaremos esperar décadas para que recursos próprios da carnavalização tenham
efetivo espaço. Os épicos religiosos hollywoodianos do início do século XX se esmeravam
em produções cada vez mais elaboradas, e nem o público, nem o cinema pareciam muito
interessados na carnavalização propriamente dita, lançando mão apenas mais tarde, como
veremos, de recursos tais como a profanação e outras inversões carnavalescas. O cinema
clássico-narrativo imperou e fez escola na primeira metade do século XX, mas a segunda
metade do século viu o cinema experimentar reviravoltas no campo da linguagem e da
ideologia que perpassavam os filmes. As cinematografias nacionais se insurgiram com
força contra o cinema hegemônico, buscando espaço onde pudessem respirar livremente, o
que ocasionou mais freqüentemente o uso da carnavalização no cinema.
No entanto, não sem algum esforço, poderemos encontrar, já nas primeiras décadas
do cinema, alguns filmes que utilizaram, ainda que de maneira incipiente, elementos da
carnavalização cinematográfica. Nos anos 30, localizamos em Pigmaleão2 uma dupla
utilização de características da carnavalização.
Trata-se da clássica história de Eliza
Dollitle, uma paupérrima vendedora de flores que é transformada em dama pelo professor
de fonética Henri Higgins. Durante esse processo, fica claro a presença do espírito das
mésalliances, enquanto acompanhamos a aprendiz Eliza Dollitle se deslocar da condição de
mendiga a de uma grande dama da sociedade. Além disso, a questão do linguajar comum é
2
Dirigido por Anthony Asquith e pelo ator Leslie Howard, que também protagoniza o filme. Pygmalion foi
inspirado na peça escrita por George Bernard Shaw.
40
extremamente explorada no filme. O desafio do professor é fazer com que Eliza fale
“corretamente”. O popular aparece, assim, através do linguajar comum de Eliza e seu
sotaque que denota sua origem social. Mais tarde, nos anos 60, essa mesma história será
transformada num grande musical, dirigida por George Cukor3, mantendo o aspecto
carnavalesco que, aqui, é apenas de ordem temática.
Os anos 30 ainda nos apresentaram filmes como Jezebel4, em que a personagemtítulo desafia a sociedade com seus hábitos pouco convencionais, invertendo os valores de
sua época. A seqüência em que ela aparece numa festa com um vestido vermelho tornou-se
instantaneamente antológica, e não deixou o black-and-white atrapalhar o efeito pretendido.
Jezebel faz referência à personagem bíblica de mesmo nome, e termina por sucumbir aos
valores que tão veementemente tenta subverter. Mas antes de sucumbir, ela busca virar o
seu mundo de cabeça para baixo, movimento próprio da concepção carnavalesca, algo que
se repete no contemporâneo A Época da Inocência5, em que a Condessa Olenska, recémchegada da Europa, promove uma verdadeira revolução nos costumes da sociedade
provinciana dos EUA do séc.XIX.
É preciso salientar que esses filmes não se deixaram influenciar esteticamente pela
cosmovisão carnavalesca, mas o desenvolvimento de suas histórias nos permite fazer
conexões para pincelarmos o início do século com as cores da carnavalização. Na medida
em que avançamos no tempo, essas cores ficarão mais fortes, como é o caso do cinema
musical que atingiu seu auge nos anos 30 e 40.
3
Trata-se do filme Minha Bela Dama, de 1964.
Dirigido por William Wyler em 1938.
5
Dirigido por Martin Scorsese em 1993.
4
41
Talvez o mais emblemático musical que serve a nossa análise seja Entre a Loura e a
Morena6, filme que conta com a presença de Carmem Miranda, cuja sexualidade era
colocada em evidência em suas participações sempre marcantes em Hollywood. Carmem
encarnou a latina liberal e ajudou a montar um estereótipo exuberante da mulher
latinoamericana, o que pode ser também atribuído a carreiras similares, como a da
portoriquenha Rita Moreno. Em todo caso, Carmem tem alguns números musicais no filme
em questão, e um deles em particular chama nossa atenção. Trata-se da música The lady in
the tutti-frutti hat, que Carmem canta entre bananas gigantes e jovens latinas que formam
os caleidoscópios humanos tão representativos da obra de Berkeley. A carnavalização
evidente se dá pela exuberância, pelo exagero e, como veremos no capítulo seguinte, pela
acentuação da questão sexual.
Americanos tell me that my hat is high
Because I will not take it off to kiss a guy
But if I ever start to take it off, ay ay…
I do that once for Johnny Smith
And he is very happy with
The lady in the tutti-frutti hat7.
O chapéu gigante do título da canção tornou-se uma imagem-símbolo de Carmem
em sua passagem pelos EUA.
O exagero está nas formas acentuadas e na própria
construção do estereótipo para o que Carmem contribuiu. Mas o gênero musical é muito
rico e complexo. Podemos perceber variáveis que recolocam cada filme em gêneros mais
gerais, podendo um musical oscilar do drama extremo à absoluta comédia. Seja como for,
6
7
Dirigido por Busby Berkeley em 1943.
Música composta por Leo Robin e Harry Warren.
42
esse é um gênero dado ao exagero e à exuberância tão marcantes em Carmem Miranda. De
Entre a Loura e a Morena até Moulin Rouge8, um universo de filmes pode ser citado, mas
via de regra, o exagero é uma marca do gênero.
Nos anos 50, um dos musicais mais aclamados de todos os tempos será todo
construído sobre situações baseadas na parodização do próprio cinema.
Trata-se de
Cantando na Chuva9, que aborda com muito humor e irreverência a revolução sonora que
mudou os rumos do cinema em 1927. A paródia, aqui, não toma apenas um texto, um
filme, como objeto original. É a práxis do cinema que recebe um tratamento paródico,
numa representação do esforço técnico no ajuste necessário implantado pelo advento do
som, o que está na origem do cinema de gênero musical. Cantando na Chuva põe em
xeque a própria questão do star system, através da tentativa de manutenção da fictícia
estrela do cinema mudo, Lina Lamont, no elenco de um filme que passa, instantaneamente,
para a condição de filme falado. Sua voz aguda causa um desconforto na platéia, que reage
com um riso histérico à performance da estrela de outrora. Sua salvação será Kathy, uma
dubladora, até que Lina seja desmascarada no final. O antagonismo entre as estrelas e,
mais uma vez, o exagero característico do cinema musical, nos autorizam a pensar aqui na
presença de elementos da carnavalização. No entanto, em todos os exemplos até então
citados, essa carnavalização é incipiente e temática. Será preciso esperar os anos 60 para
que a carnavalização comece a se dar de maneira mais efetiva na sétima arte.
O Incrível Exército de Brancaleone10 é o primeiro grande filme carnavalizado de
nossa análise panorâmica. Trata-se de uma paródia a Dom Quixote, de Cervantes, que
serve como trampolim para uma abordagem até então inédita da História. Virada de
8
Dirigido por Baz Luhman em 2001.
Dirigido por Gene Kelly e Stanley Donen em 1952.
10
Dirigido por Mário Monicelli em 1965.
9
43
cabeça para baixo, desglamourizada, a História enfocada é a da Baixa Idade Média,
período marcado pela desgraça humana causada pela fome, pela peste negra e pela guerra.
Essa trilogia de caráter trágico, no entanto, não impede que o filme promova uma
verdadeira reviravolta histórica calcada no espírito carnavalesco do riso.
Aqui, a
profanação está presente já no argumento, através do enfoque dos cruzados que tentam
expandir o alcance do cristianismo, mas que para isso vão acumulando gags pelo caminho.
Ao contrário dos filmes épicos hollywoodianos, Brancaleone capta a essência da época na
simplicidade, na sujeira, na ausência de austeridade, e termina por ser um dos melhores
estudos sobre o período medieval, sendo ainda hoje uma referência interessante sobre o
assunto.
Um dos mais exemplares filmes em que podemos localizar a carnavalização no
cinema é, sem dúvida, A Vida de Brian11, do grupo Monty Python, realizado no final dos
anos 70. A partir de situações cômicas, alguns tabus religiosos vão sendo ridicularizados,
no sentido carnavalesco da palavra, e as passagens do novo testamento são, uma a uma,
profanadas pelo viés da carnavalização. Para começar, os três reis magos entram em uma
manjedoura onde uma criança acabara de nascer. Naturalmente, era a manjedoura errada, e
Brian, a criança, passará o resto de sua vida tendo que enfrentar a concorrência do outro
“cara da Galiléia”. O sermão da montanha também é devidamente profanado, e a câmera
se situa afastada da montanha para registrar o conflito entre os ouvintes que, na verdade,
nada conseguem ouvir do que está sendo dito. O filme brinca com as imagens dos épicos
religiosos, tão comuns na Hollywood de décadas anteriores.
11
Dirigido por Terry Jones em 1979.
44
Os anos 80 têm um dos melhores exemplos da cosmovisão carnavalesca no cinema
no filme O Prisioneiro do Rio12. O lendário Ronald Biggs, perseguido no Brasil pelo
histórico golpe que aplicara na Inglaterra, e que o fez milionário, refugia-se no “carnaval”
carioca, o que não impede que a polícia inglesa mande um detetive para descobrir seu
paradeiro. No final apoteótico, após ter cruzado com bandidos e travestis, o detetive inglês
se vê no meio do desfile de uma escola de samba na Marquês de Sapucaí, onde se depara
com o figurante Biggs. A fotografia, nesse instante, parece demonstrar a erudição do
realizador do filme. Isso porque, lentamente, a câmera vira de cabeça para baixo, a tela
subverte o mundo real, oficial, assim como faz o carnaval, e num instante de euforia tudo
fica invertido, o mundo vira de ponta-cabeça. Majewski parece estar familiarizado com o
universo teórico de Bakhtin, promovendo um plano que, de certa forma, traduz a idéia da
inversão carnavalesca, numa metáfora visual para explicar o bandido que se encontra no
paraíso, através da carnavalizacão bakhtiniana e a inversão que esta promove13.
A inversão aqui se dá também no contexto, já que aquele que ocupa o lugar do
bandido, e que, por definição, deveria buscar a sombra, ao contrário, se deixa filmar, feliz,
fantasiado, apoteótico14. Um mendigo vestido de rei. Rompe-se no contexto (e no texto) as
amarras do mundo oficial, tudo passa a ser permitido num mundo invertido. E não há lugar
melhor para essa inversão, espetacularizada, do que a passarela do samba do Rio de
Janeiro.
No Brasil, não é raro encontrar o carnaval no cinema. Como centro de excelência
do carnaval, o Rio de Janeiro, ao se transformar no principal pólo de produção
12
Dirigido por Lech Majewski para a TV em 1988.
A esse respeito, Cf. O Brasil dos Gringos, imagens no cinema, em que Tunico Amâncio faz uma análise
plano a plano da seqüência final do filme de Majewski.
14
O próprio Ronald Biggs aparece nessa seqüência como figurante.
13
45
cinematográfica ao longo do século XX, imprimiu constantemente o carnaval em película,
o que se deu de diversas maneiras.
O carnaval aparece de forma concreta em diversos títulos. Alguns exemplos são
Quando o carnaval chegar15, Amor, Carnaval e Sonhos16, Carnaval Atlântida17, ou mesmo
no francês Orfeu do Carnaval18 e no recente Banda de Ipanema19, dentre muitos outros.
Este carnaval, a festa em si, não detém o monopólio da carnavalização na tela. Seguindo o
que afirma Bakhtin, esta é apenas uma das três formas de carnavalização, como já vimos
anteriormente, e que constituem a mentalidade que surge de uma tradição carnavalesca.
Nesse sentido, Xica da Silva20, de Cacá Diegues, tem tantas ou mais ligações com os
gêneros carnavalescos do que seu Orfeu21, no qual a Unidos do Viradouro, então sob o
comando de Joãosinho Trinta, se afirma como a melhor marca da espetacularização do
carnaval carioca já registrada em nossas telas.
Os filmes brasileiros que analisaremos mais cuidadosamente no terceiro capítulo,
propositadamente, não têm nenhuma imagem de carnaval enquanto festa, nenhum registro
material de festas populares, escolha intencional para avançarmos na aplicação do conceito
de carnavalização. Achamos que isso nos ajuda a desviar a atenção dos que vêem apenas as
festas populares como objeto da carnavalização, ou que usam indiscriminadamente os
conceitos de carnavalização e de carnaval.
Assim, ao encontrarmos ecos do gênero
carnavalesco nesses filmes, mas não das festas, contribuiremos sobremaneira para uma
discussão mais profunda da carnavalização no cinema.
15
Dirigido por Cacá Diegues em 1972.
Dirigido por Paulo César Saraceni em 1972.
17
Dirigido por José Carlos Burle em 1952.
18
Dirigido por Marcel Camus em 1959.
19
Dirigido por Paulo César Saraceni em 2003.
20
Produzido em 1976.
21
Dirigido por Cacá Diegues em 1999.
16
46
Nos anos 40 e 50, o cinema da chanchada arejou nossa cinematografia com ricos
exemplos de parodização. O diálogo estabelecido entre o cinema brasileiro e o cinema de
Hollywood estava já nos títulos, Nem Sansão, Nem Dalila22, Matar ou Correr23, mas
também na estilização dos musicais, gênero autóctone da indústria cinematográfica norteamericana, que nasce já com o primeiro filme sonoro, a saber, O Cantor de Jazz24, um
híbrido da linguagem do cinema mudo com o cinema sonoro que surgia nas canções
interpretadas por Al Jolson e na máxima do filme: You ain`t hear nothing yet!
Filmes de grande bilheteria, paródias ao cinema norte-americano, obras que
absorviam diretamente os cantores do rádio, herança das décadas anteriores, marcaram o
tempo de existência do estúdio fundado por Moacir Fenelon e José Carlos Burle. Carnaval
Atlântida, dirigido por Burle, é um dos mais expressivos filmes do período, e pode ser
tomado como referência no estudo da carnavalização explícita promovida pelas chanchadas
cariocas.
Contextualmente, os governos do período da redemocratização do Brasil pósEstado Novo, entre 1946 e 1964, foram o pano de fundo na confecção das chanchadas dos
anos 50. Em certo sentido, podemos notar uma sintonia entre o clima de humor e leveza
dessa vertente cinematográfica em consonância com o panorama político que se montou
naquela década, desde o Governo Dutra, com a constituição de 1946, que abolia os traços
de autoritarismo do período anterior, até a política desenvolvimentista de JK, injetando um
ânimo inédito na economia brasileira.
Não que as chanchadas deixassem de colocar em pauta diversas críticas políticas e
sociais, mas o tom dessa crítica era bem diferente do que foi feito a seguir, nos anos 60.
22
Dirigido por Carlos Manga em 1954.
Dirigido por Carlos Manga em 1954.
24
Dirigido por Alan Crosland em 1927.
23
47
Assim, o cinema parece dialogar diretamente com a realidade em que se insere, já que em
momentos ditos democráticos os filmes mais críticos conseguiam destilar seus protestos de
maneira mais palatável para o gosto dos políticos da situação, enquanto nos períodos
politicamente mais conturbados, a própria forma de se realizar os filmes, e também os
discursos dos mesmos, inauguravam um diálogo muito mais pesado com o contexto
político, como no Cinema Novo, até redescobrir o deboche que marcará o Tropicalismo e o
Cinema Marginal na virada dos anos 70.
Ainda atentando para o contexto, vale lembrar as considerações feitas por João Luiz
Vieira sobre o caráter comercial das paródias no âmbito da produção de chanchadas e do
cinema brasileiro em geral (VIEIRA, 1983: 25). Em termos econômicos, tratava-se de
“pegar carona” em grandes sucessos de bilheteria do cinema hollywoodiano. Algumas
vezes, a parodização não ia muito além dos próprios títulos na ligação que tinham com o
texto original. Manter-se atrelado a determinado filme norte-americano, pelo título, forma
ou conteúdo, sendo o equivalente carnavalizado do mesmo, poderia ser suficiente para
garantir uma certa visibilidade para o produto nacional que jogava, então, com todas as
armas de que dispunha.
Após a experiência do Cinema Novo, o cinema brasileiro dessa corrente estará
intertextualmente presente em outros dois movimentos, o Cinema Marginal e o
Tropicalismo.
O Bandido da Luz Vermelha25 e Macunaíma26 permanecem como os
melhores exemplos não só dessas vertentes, como também da transformação na maneira
como a carnavalização vai se manifestar no cinema após o Cinema Novo. Ao contrário
deste, esses movimentos de grupo fizeram parte do período mais violento da ditadura
25
26
Dirigido por Rogério Sganzerla em 1968.
Dirigido por Joaquim Pedro de Andrade em 1969.
48
militar, ficando numa posição diametralmente oposta ao cinema dos anos 50, quando o
carnaval explícito fazia parte do menu do cinema brasileiro. ... o tropicalismo retomou
contato com o carnaval e a paródia e “O bandido da luz vermelha” (...) dá mostras de uma
abertura antropofágica a todas as influências intertextuais são citações que apontam para o
diálogo entre este cinema e o produzido anteriormente na Atlântida (STAM, 1992: 55).
A exacerbação do riso nos anos 5027 e a asfixia da virada da década de 70
propiciaram um pano de fundo interessante para se pensar as diferenças perceptíveis na
carnavalização presente no cinema de cada período. Bakhtin nos fornece o instrumental
necessário para uma visão diferenciada da história do cinema brasileiro, não mais dividida
em blocos, mas aceita como um todo orgânico, seja pela negação, seja pela citação.
Não obstante, compreendemos que a Chanchada promoveu uma carnavalização
explícita em seus filmes, fruto de sua vinculação com a música e a comédia, enquanto o
Cinema Marginal apresentou formas menos diretas de carnavalização. A marca dos filmes
marginais será o deboche, a “avacalhação” apregoada pelo bandido do filme do Sganzerla.
Por fim, vale registrar a resistência de Robert Stam em incorporar o que ele chama
de “cinema erótico comercial” no âmbito da carnavalização bakhtiniana. É preciso notar a
quantidade de títulos que parodiam o cinema “sério”, igualmente comercial, e o caráter
comercial desse cinema sério não é usado como critério para o diagnóstico de um cinema
carnavalizado ou não. Surge aqui uma separação instituída a partir de uma abordagem
desabonadora do cinema erótico comercial e, notadamente, das pornochanchadas nacionais
que perpassaram os anos 70. Alguns filmes desse cinema, bem como diversas paródias,
fazem menção a filmes ditos sérios promovendo uma inversão no sentido do objeto
27
Para um estudo sobre o riso no Brasil dos anos 50, Cf. Cantinflas e Mazzaropi: riso popular e
modernização no Brasil e no México, de Maurício de Bragança. (UFF, 2003).
49
original, e são dignos de nota. Para citar algumas produções recentes do “cinema erótico
comercial” que parodiam títulos de filmes, podemos pensar em A Bela e o Prisioneiro28
(Lisbela e o Prisioneiro) e Onze Mulheres e Nenhum Segredo29 (Onze homens e um
segredo).
Seja como for, uma análise do cinema brasileiro e estrangeiro pelo prisma da
carnavalização, fazendo evoluirem juntos os conceitos que lhe são correlatos, nos traz
resultados muito estimulantes.
No próximo capítulo, buscaremos desenvolver uma
abordagem sobre o grotesco, para em seguida vinculá-lo à carnavalização bakhtiniana.
28
29
Dirigido por J.Gaspar em 2004.
Dirigido por J.Gaspar em 2005.
50
II
DO GROTESCO AO CINEMA
II
DO GROTESCO AO CINEMA
Trabalhar a conceituação do grotesco, ou mesmo promover uma primeira
aproximação com o tema através de seus principais textos, cumpre uma função
fundamental: alguns autores que pensaram o grotesco30, ao discorrerem sobre o assunto,
acabaram tangenciando o carnaval sem lhe darem a devida importância ou, ainda, sem
definirem exatamente qual grotesco serve ao princípio da carnavalização. Faremos um
esforço no sentido de decantar grotesco e carnaval, não citando este enquanto discorremos
sobre aquele. Ao contrário do movimento feito no capítulo anterior, imaginemos agora o
grotesco dentro do quadro e o carnaval presente apenas no espaço fora da tela.
Nossa abordagem se dividirá em dois momentos: de início, procuraremos mapear
algumas categorias relevantes do grotesco a partir de seus “pensadores”; em seguida,
tentaremos fazer uma aproximação entre o grotesco e o cinema, sem perder de vista as
considerações feitas por Muniz Sodré, pioneiro no Brasil no tratamento desse conceito e de
sua aplicação no cinema brasileiro e estrangeiro.
A origem do termo grotesco pode ser apreendida através de Bakhtin quando ele nos
fala de seu surgimento, no final do séc. XV, quando
30
Nossa atenção estará voltada para os autores que pensaram o grotesco com maior afinco, direcionando seus
esforços mais diretamente para tratar desse conceito, e não a todos que utilizaram-se do grotesco, seja
superficialmente, seja atribuindo ao mesmo outro nome. Interessa-nos, sobretudo, os autores que tentaram
criar uma taxonomia para o conceito de grotesco, ou que simplesmente tentaram melhor definir ou ampliar
esse conceito.
52
Escavações feitas em Roma nos subterrâneos das Termas de
Tito trazem à luz um tipo de pintura ornamental até então
desconhecida.
Foi chamada de “grottesca”, derivado do
substantivo italiano “grotta” (gruta). Um pouco mais tarde,
decorações semelhantes foram descobertas em outros lugares
da Itália (BAKHTIN, 1993: 28).
Victor
Hugo,
Wolfgang
Kayser,
Mikhail
Bakhtin
e,
no
Brasil,
mais
expressivamente, Muniz Sodré, são os autores sobre os quais nos debruçaremos com mais
atenção. Naturalmente, o grotesco aparece muito antes, desde a Antigüidade, sem ter sido,
no entanto, devidamente teorizado.
Nesses autores, observamos uma preocupação em
articular uma conceituação acerca do grotesco, o que nos levou à presente associação que
este capítulo promove. Vamos, aqui, delinear as transformações pelas quais o conceito vem
passando através dos tempos, apontando as considerações de cada autor acerca do grotesco.
Nossa intenção é dar igual peso à conceituação em si e à contribuição individual de cada
um desses autores. E para tornar nossa abordagem mais objetiva, dividiremos o grotesco
em pelo menos dois grandes blocos, o grotesco romântico e o grotesco realista.
2.1 - O Grotesco Romântico
Victor Hugo teorizou sobre o grotesco ainda no século XIX, mais precisamente em
1827, ao escrever o prefácio de uma peça teatral, a saber, Cromwell. Ao discorrer sobre a
modernidade do drama, Victor Hugo deixou registrado um verdadeiro tratado acerca “do
grotesco e do sublime”. Ainda que esse prefácio contenha uma duvidosa divisão da história
53
da humanidade, pouco aceita, que reduz a experiência humana a três tempos vinculados à
poesia, que também se manifestaria em três idades31, foi mesmo na sua explanação sobre o
grotesco que figurou o maior interesse sobre a sua obra.
O grotesco romântico é característico do drama moderno, e busca incessantemente
minar a estética clássica. A tradição do classicismo é minada, inclusive, pelo cristianismo
profundamente presente em Hugo. Nas palavras do autor:
não há nada de tão material como a teogonia antiga. Longe
dela ter pensado, como o cristianismo, em separar do corpo o
espírito;
ela dá forma e fisionomia a tudo, ainda às
essências, ainda às inteligências.
Tudo nela é visível,
palpável, carnal. (HUGO, 1988: 21-22).
Como se pode perceber, Hugo preocupa-se em valorizar categorias dicotômicas,
cristianismo e classicismo, corpo e espírito. Podemos notar o dualismo que servirá de base
para os conceitos de sublime e de grotesco, colocados em posição de antagonismo por
Hugo.
a musa moderna verá as coisas com um olhar mais elevado e
mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente
belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do
gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem,
a sombra com a luz (HUGO, 1988: 25).
Em seu tratado, Hugo se esforça, portanto, em distinguir a arte antiga da arte
moderna, “inaugurando” a literatura romântica em detrimento da literatura clássica. O
31
A divisão apontada por Victor Hugo seria a seguinte: a poesia teria figurado nos tempos primitivos com o
lirismo, nos tempos antigos, com a epopéia, e nos tempos modernos, com o drama.
54
tempo moderno seria marcado pela união do grotesco e do sublime, e caracterizado por
uma complexidade, em sua opinião, ausente na Antigüidade.
Não obstante, ele aponta a
presença do grotesco nos textos de Homero, salientando que se tratava da infância do
grotesco, já que sobre ele pesava o predomínio da epopéia.
nada vem sem raiz; a segunda época está sempre em germe
na primeira (HUGO, 1988: 27).
Para Hugo, a marca da modernidade é o drama, e a presença do grotesco ao lado do
sublime, uma prova da evolução da arte. A Antigüidade não teria feito “A Bela e a Fera”,
afirma Hugo. É bom lembrar que, da mesma forma, somente o espírito moderno permitiu
que o próprio Hugo desenhasse na literatura o corcunda Quasímodo, encerrado na torre da
Catedral de Notre-Dame, servindo como ícone da sublimação do grotesco promovida pelo
seu criador.
Ainda que Hugo se coloque constante e ferozmente contra a estética clássica, é
interessante registrar que, em mais de um momento, ele entende que a união do sublime e
do grotesco existe a partir de uma “evolução” da arte, e considera o passado como elemento
fundamental para que a poesia tenha chegado no nível de sua época, a da modernidade.
Sobre Hugo, Muniz Sodré e Raquel Paiva afirmam que ele partiu de algo que já
estava no ar, no espírito de seu tempo (SODRÉ; PAIVA, 2002: 46), mas deve se levar em
conta que, ainda que o espírito do romantismo estivesse imbuído das idéias que Hugo
considerou, ou mesmo que o grotesco tenha, em estado embrionário, aparecido já na
Antigüidade, e de maneira diferenciada na Idade Média, foi o prefácio em questão o
primeiro momento em que a categoria do grotesco encontrou uma tentativa sistemática de
teorização.
55
A propósito do grotesco romântico, é preciso salientar que não se trata de um
grotesco provocador do riso, regenerador, alegre. O grotesco romântico está impregnado
de horror, espanto e melancolia. Para melhor se entender o que representa o grotesco
romântico, é interessante ter em mente, mais uma vez, o corcunda Quasímodo, que em sua
“quase forma” ostenta a deformidade própria dessa categoria do grotesco, e em sua essência
grotesca, sublima esse horror. Boa parte do esforço de Hugo na definição do grotesco se
assenta na categoria do sublime, permanecendo em primeiro plano o caráter dicotômico de
sua abordagem.
Assim, toda a elaboração conceitual de Hugo acerca do grotesco é feita a partir
desse contraponto com o “sublime”. Este, por sua vez, nos remete à idéia de “belo” que,
desde a Grécia Antiga, passou por muitas transformações, que fogem às possibilidades de
alcance desse trabalho. Porém, não podemos nos furtar de registrar ao menos que é a partir
de Kant que o “belo” se torna uma categoria estética, enquanto objeto de uma satisfação
livre de qualquer interesse32.
Será a partir de 1756, através de Edmund Burke, que a idéia de sublime irá
transcender a definição clássica do “belo”. Para Burke, há uma separação entre o prazer
suscitado pelo “belo” e o êxtase provocado pelo “sublime”.
De fato, o sublime não é uma qualidade dos seres naturais,
porquanto ultrapassa toda e qualquer forma sensível, e tem
sua fonte, na verdade, no supra-sensível que há em nós. O
sublime “diz respeito apenas às Idéias da razão, as quais,
32
Naturalmente, isso deveria ser aprofundado se o belo fosse nosso objeto de estudo, já que em Kant o belo
foi analisado e conceituado a partir da qualidade do julgamento do gosto, da quantidade, de sua relação com
um fim e da modalidade desse julgamento, desembocando na idéia do belo como categoria estética,
desvinculada das outras formulações que o belo recebia na Antigüidade.
56
embora não possam ser apresentadas de maneira adequada,
são, não obstante, recordadas no espírito e reavivadas por
essa mesma inadequação, cuja apresentação sensível é
possível”. (LACOSTE, 1986: 31)
Não obstante, é preciso reafirmar que, além das considerações que colocam o
sublime acima da idéia do belo, já que o sublime alcança um lugar inatingível para a razão
humana, é na comparação com o grotesco que o sublime ganhará uma funcionalidade
dentro do pensamento de Hugo.
O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste,
e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo.
Parece, ao contrário, que o grotesco é um tempo de parada,
um termo de comparação, um ponto de partida (HUGO,
1988: 33).
Por fim, vale lembrar o que afirmam Sodré e Paiva sobre o tratamento que o
grotesco recebe por Hugo.
A exemplo do discurso estético hegemônico (o neoclássico),
Hugo procede sempre com argumentos de autoridade: o
grotesco simplesmente “é”, assim como ele o descreve, ora
conceito, ora imagem. E se estende até onde ele bem entende,
para impor seu programa teórico contra-hegemônico
(SODRÉ; PAIVA, 2002: 44).
57
2.2 - Um Grotesco “de Câmara”?
Seguiremos enumerando algumas categorias do grotesco e tomaremos o grotesco de
câmara como sendo próprio do conjunto de observações feitas por Wolfgang Kayser acerca
desse conceito.
O grotesco de câmara pode ser confundido com o grotesco romântico? É o próprio
Bakhtin quem faz essa correlação.
o grotesco romântico é um grotesco de câmara, uma espécie
de carnaval que o indivíduo representa na solidão, com a
consciência aguda de seu isolamento (BAKHTIN, 1993: 33).
Na verdade, Bakhtin utiliza o grotesco romântico em oposição à categoria do
realismo grotesco33. Assim, ele deixa de registrar que toda a explanação de Kayser, que
engloba o grotesco romântico e, também, o grotesco realista, que serve ao próprio Bakhtin,
está incluída no que se pode chamar de um “grotesco de câmara”.
Kayser toma o
referencial do grotesco na arte, notadamente na pintura, e é isso que faz com que sua
explanação seja assim considerada, o que não foi observado por Bakhtin.
Não se trata, portanto, de tomar o grotesco romântico como sendo um grotesco de
câmara, como afirma Bakhtin. Em Kayser, as diversas categorizações do grotesco se
33
Cabe salientar que Bakhtin faz uma distinção entre o realismo grotesco, próprio da Idade Média e do
Renascimento, e o grotesco realista, que teria surgido já no século XX.
Este assumiria as mesmas
características daquele. Como a distinção apontada por Bakhtin é meramente temporal, adotaremos apenas o
grotesco realista como categoria.
58
inserem dentro de uma mesma abordagem da arte, o que nos faz associar o grotesco
analisado por Kayser como sendo “o” grotesco de câmara, seja o romântico, o realista etc.
Entre Hugo e Kayser, mais de um século se passou. Outros autores, nesse intervalo,
tangenciaram o tema34. Não nos deteremos sobre os outros nomes já que nossa intenção é
privilegiar os autores que se preocuparam em estabelecer uma nomenclatura para o
grotesco. Assim, é na década de 50 do século XX que surge o trabalho de Kayser que nos
interessa nesse momento.
Em 1957, Kayser tenta preencher essa lacuna de um século na qual a conceituação
do grotesco havia ficado em suspenso.
Seu livro O Grotesco surge da sua inquietação
diante da pintura, mais especificamente quando da sua primeira visita ao Museu do Prado,
quinze anos antes do lançamento do livro.
De maneira esquemática, Kayser busca
responder diversas questões, desde a conceituação do grotesco até a ampliação do conceito
e sua definição dentro do romantismo do séc XIX e da época moderna.
Kayser promove um avanço em relação às especulações de Hugo. Sua pesquisa
tenta detectar, no seio da tradição cultural ocidental, uma categoria estética não
reconhecida. Assumindo uma perspectiva histórica, Kayser salienta que o fenômeno do
grotesco é mais antigo que seu nome, observando que
Uma história completa do grotesco deveria compreender a
arte chinesa, etrusca, asteca, germânica antiga e outras mais,
do mesmo modo que a literatura grega (Aristófanes!) e outras
manifestações poéticas (KAYSER, 1986: 17).
No entanto, Bakhtin faz uma severa crítica ao arsenal teórico de Kayser por julgar
insuficientes as observações deste sobre a essência do grotesco.
34
Bakhtin aponta, entre outros, Nietzsche, Baudelaire, Gautier e Schlegel, esse último antes de Hugo.
59
Kayser propôs-se a escrever uma teoria geral do grotesco, a
revelar a própria essência do fenômeno (...) razão pela qual
ele o compreende e aprecia de uma forma um pouco
desvirtuada. (BAKHTIN, 1993: 41).
Sobre Kayser, Sodré e Paiva afirmam que ele partiu
de uma intuição quanto à existência de uma categoria estética
não legitimada pela teoria hegemônica da arte e serve-se de
uma noção do passado (...) como guia de sua pesquisa. Todo
esse trabalho deixou evidentemente os seus traços, mas estes
lhe parecem insuficientes para apreender o fenômeno do
grotesco em toda a sua amplitude (SODRÉ; PAIVA, 2002:
54).
Preocupado em promover uma ampliação do termo em questão, e sua conseqüente
aplicação na arte, Kayser afirma, ainda em seu prefácio, que abriu mão com pesar de um
estudo sobre o grotesco na música, no qual abordaria, por exemplo, a ópera Carmina
Burana, de Orff. Mas no desenrolar de seu estudo, a arte pictórica é privilegiada em
detrimento das demais.
Pinturas de Rafael e Goya, entre outros, perpassam o texto
direcionando o foco e passando ao largo da tradição popular. No entanto, autores como
Shakespeare e Goethe surgem em suas considerações, como também o teórico Hugo.
Victor Hugo converteu o grotesco em característica essencial
e diferenciadora de toda arte pós-antiga (portanto, com
inclusão da arte medieval) (...) e deu à noção um acento e
uma dimensão que jamais recebera antes (KAYSER, 1986:
59).
60
É preciso notar a preocupação dos teóricos do grotesco em se referirem às
transformações pelas quais passou esse conceito, a partir do tratamento que recebeu de
pensadores que os precederam, dando ao objeto em questão uma fundamentação histórica
que explique sua face atual a partir de uma “evolução” consolidada pela contribuição de
cada teórico. Isso é uma constante nos autores que pensaram o grotesco. Todos eles, na
tentativa de melhor definir o termo pouco explorado, passam a limpo a história do grotesco,
dialogando acerca das considerações já feitas anteriormente.
O grotesco de câmara, como afirmamos acima, não pode ser usado como sinônimo
do grotesco romântico já que a abordagem de Kayser privilegia também outras
manifestações do conceito. Em sua análise, Kayser cria uma taxonomia do grotesco a partir
da própria divisão dos capítulos. Assim, discorre sobre o grotesco romântico, o grotesco
realista, o grotesco fantástico, o grotesco da linguagem, até chegar aos surrealistas. Aliás,
para Kayser, a arte gráfica é a forma mais apropriada para a representação do grotesco. No
entanto, ao final de seu intenso estudo, ele admite que o grotesco não se esgota ali, e que
Tais
estudos
poderiam
ser
encontrariam material novo.
prosseguidos
e
sempre
Aqui só quisemos fazer a
tentativa de focalizar o fenômeno como tal e seguir algumas
sendas mais ricas em perspectivas (KAYSER, 1986: 162).
Se durante a Idade Média e o Renascimento, como veremos a seguir, o grotesco era
provocador do riso, regenerador, alegre, o romantismo fundou um grotesco baseado no que
é terrível, espantoso, deformado. A contribuição de Kayser foi instaurar uma análise do
grotesco na arte e na literatura, por isso chamado de “grotesco de câmara”. Vale salientar
sua importância, sobretudo para tentar relativizar o papel de Bakhtin na categorização do
grotesco. Isso porque, se este trabalha a noção de grotesco, é fato que utiliza as demais
61
categorizações como suporte para sua definição que atrela grotesco e realismo. Seja como
for, o grotesco de câmara de Kayser investiga a existência de ambos na arte, tanto o
grotesco realista quanto o romântico, daí a sua importância e classificação.
2.3 - O Grotesco Realista
Ao promover uma valorização do gênio de Rabelais, Bakhtin redefine o conceito de
grotesco se comparado com o pensamento de Kayser. Isso porque se este fundamentou sua
análise sobre a categoria do grotesco a partir da arte, notadamente a pintura, o que nos
autoriza a falar de um “grotesco de câmara” ao analisarmos este conceito segundo Kayser,
o grotesco bakhtiniano está intrinsecamente ligado à cultura popular.
O livro de Bakhtin que aborda o grotesco é o único dentre os livros dos autores até
aqui citados que não usa a palavra “grotesco” no título: trata-se de A Cultura Popular na
Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François Rabelais. Segundo Muniz Sodré
e Raquel Paiva, o livro de Bakhtin foi escrito antes do de Kayser, ainda que só tenha sido
publicado posteriormente, em 1965 na União Soviética e em 1970 na França (SODRÉ;
PAIVA, 2003: 54)35. Porém, é preciso notar que Kayser é citado por Bakhtin neste livro, o
que demonstra que o conhecimento reunido por Kayser serviu a Bakhtin de alguma forma.
Para Bakhtin, as “imagens” de Rabelais funcionam como herança da cultura cômica
popular e servem como distinção das culturas dos séculos precedentes. Essa concepção que
segue o princípio material e corporal é batizada por Bakhtin de realismo grotesco.
35
O livro em questão se originou da tese de doutorado de Bakhtin. Ironicamente, o título de doutorado lhe foi
negado, ainda que esse estudo tenha se tornado tão vigorosamente influente.
62
No realismo grotesco (isto é, no sistema de imagens da cultura
cômica popular), o princípio material e corporal aparece sob a
forma universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal
estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É
um conjunto alegre e benfazejo (BAKHTIN, 1993: 17).
O mais importante na concepção do realismo grotesco bakhtiniano é a idéia de
“rebaixamento”, que consiste em trazer para o plano material e corporal, para a terra, aquilo
que é considerado como elevado, espiritual. Esse valor topográfico perpassa as abordagens
que Bakhtin tece sobre a obra de Rabelais.
O alto e o baixo são, assim, relativos
respectivamente ao céu e à terra, e também à cabeça e aos órgãos genitais.
Bakhtin aponta que, para se compreender as concepções de mundo renascentistas, é
preciso usar como instrumento o realismo grotesco.
O corpo grotesco é incompleto, representado pela gravidez, pelo parto, pelo comer e
beber e pela satisfação das necessidades naturais, e é também um corpo aberto para o
mundo, através dos órgãos genitais, da boca aberta, do falo e do nariz.
Bakhtin difere, ainda, o grotesco romântico, que buscava “aterrorizar”, do grotesco
realista, integrado à cultura popular,
que faz o mundo aproximar-se do homem, corporifica-o,
reintegra-o por meio do corpo à vida (BAKHTIN, 1993: 34).
Esse realismo grotesco teve seu florescimento na Idade Média, e no Renascimento,
seu apogeu.
Além de passar a limpo essa tradição do grotesco, apontando textos e pensadores
que discorreram sobre o tema, Bakhtin chama atenção ainda para a proximidade entre
homem e animal, e para a mudança capital na história do riso, sendo o Renascimento o nó
63
que marca o ápice dessa mudança, pois se até então o riso tinha um papel fundamental na
quebra da austeridade social cotidiana, a partir do século XVII o riso não pode ser mais
uma forma universal de concepção do mundo, ele pode
referir-se apenas a certos fenômenos parciais e parcialmente
típicos da vida social (BAKHTIN, 1993: 57).
Bakhtin critica Hugo que formula o grotesco em oposição ao sublime. Apesar deste
ser responsável por uma abordagem pioneira do grotesco, e de ter apontado a existência do
grotesco já na Antigüidade, para Bakhtin,
Hugo
enfraquece
o
valor
autônomo
do
grotesco,
considerando-o como meio de contraste para a exaltação do
sublime (BAKHTIN, 1993: 38).
Porém, dentre todos os autores que cita, é mesmo Kayser o que sofre a maior e mais
severa crítica.
A teoria de Kayser é absolutamente inaplicável aos milênios
de evolução anteriores ao Romantismo. (...) O autor nem
sequer investiga essas manifestações (...)
Tampouco
compreende a verdadeira natureza do grotesco (BAKHTIN,
1993: 41).
Assim, Bakhtin passa a limpo a formulação do grotesco enquanto categoria, mas
deixa em evidência o grotesco realista que ele aponta como característico de uma tradição
da cultura cômica popular. Sobre Bakhtin e suas considerações acerca do grotesco, Muniz
e Paiva afirmam que
A partir da modelagem carnavalesca, entende-se por que o
grotesco subverte as hierarquias, as convenções e as
64
verdades socialmente estabelecidas. Subverte igualmente as
figurações clássicas do corpo, passando a valorizar as
vinculações corporais com o universo material, assim como
seus orifícios, protuberâncias e partes baixas (SODRÉ;
PAIVA, 2002: 59).
2.4 – O Grotesco no Brasil
Depois de Bakhtin e Kayser, alguns livros e artigos podem ser encontrados a
propósito do grotesco. No Brasil, em 1972, no livro A Comunicação do Grotesco, Muniz
Sodré faz suas primeiras considerações acerca do grotesco, usando-o como instrumento de
análise na sua abordagem da mídia televisiva. Já naquele momento, Sodré apontava a
programação de televisão como grotesca, partindo dos exemplos dos programas de
auditório que se utilizavam dessa estratégia. Jota Silvestre, Chacrinha, Flávio Cavalcanti,
Dercy Gonçalves, Sílvio Santos e Hebe Camargo, segundo Muniz, reencenavam as
curiosidades chocantes da feira de outrora e, em alguns casos, chegavam a mostrar
aberrações na busca de maior audiência.
Em 2002, Muniz Sodré lança com Raquel Paiva O Império do Grotesco, que
permite não só uma ampliação do conceito trabalhado por ele 30 anos antes, mas também
novas abordagens, na medida em que os autores não se restringem à televisão (ainda que
esta receba maior atenção na análise), mas atingem a literatura e o cinema.
Como seus predecessores, Sodré e Paiva passam a limpo a história do grotesco, de
Hugo a Bakhtin, passando por Kayser, salientando a forma como o conceito de grotesco se
65
desenvolveu no último século, deixando claro o julgamento dos autores quanto às
contribuições de seus antecessores e de que forma seus trabalhos ecoaram no Brasil através
deles.
Percebemos uma visão positiva do grotesco nos três autores, no que diz respeito aos
efeitos que podem ser conseguidos no sentido de quebra e desarticulação dos cânones da
tradição neoclássica. Esse caráter positivo pode ser encontrado nas abordagens de Sodré e
Paiva sobre o grotesco na literatura e no cinema, mas não na televisão, o que comentaremos
a seguir.
Vale salientar o esforço de Sodré e Paiva na produção de uma nova taxonomia do
grotesco, que pode ser, quanto ao gênero, representado ou atuado, e quanto à espécie,
escatológico, teratológico, chocante ou crítico. Não que o grotesco necessite de mais
subcategorizações. Na verdade, achamos que o grotesco romântico e o grotesco realista
são suficientes para estabelecer as diferenças essenciais que ocorrem dentro do conceito
geral de grotesco, ambas se opondo aos cânones clássicos.
A criação de uma nova
nomenclatura, a cada trabalho, mais atrapalha e confunde do que aprofunda a conceituação
do grotesco.
A articulação dos autores segue o mesmo fluxo ao aplicar o grotesco na literatura,
no cinema e na televisão. Começam discorrendo sobre o aparecimento do grotesco fora e
dentro do Brasil.
No entanto, gostaríamos de chamar a atenção para um ponto de
dissonância nessa obra. A literatura e o cinema recebem um tratamento diferenciado em
relação a TV. O grotesco, nesses casos, não surge de um modo pejorativo. Há exemplos,
tanto na literatura quanto no cinema, de importantes artistas, escritores e cineastas, que
utilizaram o grotesco em suas obras. Em contrapartida, a televisão é o lugar em que o
66
grotesco está vinculado à falta de qualidade como “rebaixamento”, a partir de uma análise
pouco generosa e parcial.
Discordamos do ponto de vista de Sodré e Paiva quanto à abordagem da estética
televisiva. Não que sua análise seja totalmente sem fundamento, mas o enfoque se torna
parcial já que nenhum programa televisivo parece pertencer à estética do grotesco sem estar
atrelado à falta de qualidade.
Os autores não se preocuparam em citar, por exemplo, a novela de Dias Gomes,
Saramandaia (Rede Globo, 1976), em que o grotesco imperava de maneira visceral e com
um tratamento artístico ausente nos programas de auditório. Em Saramandaia, o grotesco
realista está presente no desfile de personagens, como a obesa Dona Redonda que,
literalmente, explode no último capítulo, ou mesmo o personagem que, semanalmente,
colocava o coração pela boca. Outras obras de Dias Gomes poderiam reforçar esses
exemplos. É o caso de O Bem-Amado (Rede Globo, 1973), outro marco do grotesco
realista na televisão brasileira. Telenovelas mais recentes poderiam seguir essa trilha, mas
permaneceram ausentes na abordagem de Sodré e Paiva.
A chamada baixa produção televisiva, representada pelos programas de auditório é,
assim, criticada pelos autores, relegando a esta um lugar inferior e uma utilização do
grotesco como necessariamente negativo, o que é questionável. De modo maniqueísta,
sonegam exemplos importantes do grotesco na mídia televisiva e separam de maneira muito
clara uma suposta falta de qualidade no grotesco dos programas de TV e uma abordagem
positiva no grotesco encontrado no cinema e na literatura.
Para os autores, o cinema é o lugar em que o grotesco está a serviço da arte. Sodré e
Paiva citam apenas grandes cineastas, donos de uma capacidade artística incontestável.
Além do exemplo mais evidente, e talvez a maior representação do grotesco romântico no
67
cinema, O Homem Elefante36, de David Lynch, e de O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e
o Amante37, de Peter Greenaway, outros diretores de igual tarimba, tais como Mario
Monicelli, David Cronenberg ou mesmo Fellini, formam um painel bem diverso da TV, em
que apenas os programas de auditório e os reality shows são enfocados. E por que não citar
o cinema erótico como exemplo do grotesco no cinema?
A resistência de Robert Stam à idéia de abordagem do cinema pornográfico
comercial a partir do carnaval se repete quanto ao grotesco. Stam insiste em afirmar que
não há traços do grotesco (ou do carnaval) no cinema pornográfico. Para ele,
Uma
defesa
bakhtiniana
da
pornografia
seria
verdadeiramente grotesca, e não no sentido positivo que
Bakhtin usa essa palavra.
Enquanto o pornô nivela os
personagens ao seu denominador comum sexual, esse
nivelamento é de modo nenhum equivalente a uma
reviravolta carnavalesca (STAM, 1992: 80).
O mesmo movimento dado por Sodré e Paiva ao cinema já havia se apresentado na
literatura, a partir dos nomes de Machado de Assis e Monteiro Lobato. Mas não se torna
tão grave quanto no caso do cinema. Parece haver uma predisposição a desabonar o
grotesco televisivo, mas não o grotesco cinematográfico. A querela entre TV e Cinema é
antiga, e os teóricos costumam resguardar este em detrimento daquela. Os autores
reproduzem essa tendência, ignorando os ventos atuais que arejam a TV de abordagens
despidas do preconceito usual, ainda que a maioria dos pensadores mantenha um discurso
desfavorável em relação à TV.
36
37
Produzido em 1980.
Produzido em 1989.
68
Seja como for, Sodré e Paiva reavivam o tema do grotesco, conceituando-o
enquanto categoria estética e aplicando-o em sua análise da literatura, do cinema e da
televisão, a despeito de qualquer discordância, de maneira panorâmica e ligeira. O grotesco
permanece no mundo e em suas representações artísticas, mais do que nos estudos e livros,
a espera de novas contribuições.
2.5 – Rebaixamentos Grotescos
Podemos elencar, aqui, inúmeras formas de representação do universo grotesco, mas
é preciso iniciar pela mais elementar de todas, a que está no cerne da questão do grotesco
realista que nos interessa. Trata-se do rebaixamento. É esse o princípio que rege a
formulação da própria imagem grotesca.
o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e
corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade,
de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato.
(BAKHTIN, 1993: 17).
É importante salientar que rebaixar não significa desabonar ou depreciar, mas antes,
assumindo um sentido topográfico, colocar em contato com o baixo, com a terra, com os
órgãos genitais e o ventre. Da mesma forma, as degradações abandonam qualquer sentido
pejorativo. Degradar significa
entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a
do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o
coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de
69
alimentos e a satisfação das necessidades naturais.
(BAKHTIN, 1993: 19).
Assim, a imagem grotesca está em eterna transformação, ela é indefinida, ao
contrário do que ditam os cânones clássicos.
O corpo é incompleto, sempre em
transformação. A vida e a morte são estágios de uma mesma evolução, pela qual o
nascimento e o crescimento funcionam como traços do grotesco, ambivalente, o antigo e o
novo.
o corpo grotesco não está separado do resto do mundo, não
está isolado, acabado nem perfeito, mas ultrapassa-se a si
mesmo, franqueia seus próprios limites. Coloca-se ênfase nas
partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior, isto é,
onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para
o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e
excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais,
seios, falo, barriga e nariz. (BAKHTIN, 1993: 23).
O rebaixamento grotesco está ligado ao princípio da vida material e corporal. É
importante perceber que não se trata do corpo isolado do mundo. O material e corporal
assumem um sentido cósmico. Bakhtin salienta que esses elementos não estão ainda
singularizados como hoje. Mas é preciso perceber ainda que o princípio da vida material e
corporal está ligado ao riso, e não deixa de ser inovador, regenerando a própria vida.
Essa é a qualidade essencial desse realismo, que o separa das
demais formas “nobres” da literatura e da arte medieval. O
riso popular que organiza todas as formas do realismo
70
grotesco, foi sempre ligado ao baixo material e corporal. O
riso degrada e materializa (BAKHTIN, 2003: 18).
Fica claro que, a partir do princípio elementar do rebaixamento, o corpo grotesco é
um corpo aberto, incompleto, e os orifícios do corpo ganham destaque significativo. Na
cabeça, apenas a boca e o nariz têm importância no desenho do corpo grotesco. São
orifícios que ligam o corpo ao mundo. Bakhtin se refere diretamente à importância do nariz
e da boca ao discorrer sobre o corpo grotesco.
Dentre todos os traços do “rosto” humano, apenas “a boca e
o nariz” (esse último como substituto do falo) desempenham
um papel importante na imagem grotesca do corpo
(BAKHTIN, 1993: 276).
Outro traço característico da imagem grotesca é a animalização. Ao se misturar
com o mundo, o corpo grotesco se mistura também com os animais e as coisas.
A
animalização passa a ser, assim, um traço importante dentro do universo grotesco.
A mistura de traços humanos e animais é uma das mais
antigas formas do grotesco (BAKHTIN, 1993: 276).
É importante salientar, ainda, a recorrência da imagem do diabo. Como afirma
Bakhtin,
o diabo do mistério não é apenas uma figura extra-oficial, ele
é também uma personagem ambivalente e assemelha-se,
nesse aspecto, ao tolo e ao bufão. Ele representa a força do
“baixo” material e corporal que dá a morte e regenera. Nas
diabruras, as personagens dos diabos tinham aspectos
carnavalescos (...) As características especiais do diabo (...)
71
explicam muito bem porque ele se tornou uma figura do
cômico popular. (BAKHTIN, 1993: 232-33).
Além disso, a comida e o sexo representam uma particularidade da imagem grotesca
do corpo, que deglute e vomita. A prática do coito, a absorção de alimentos, a satisfação de
necessidades naturais pertencem ainda ao universo de degradações próprias de uma visão
grotesca do mundo.
O encontro do homem com o mundo que se opera na grande
boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos assuntos mais
antigos e mais marcantes do pensamento humano. O homem
degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz no seu
corpo, faz dele uma parte de si (BAKHTIN, 1993: 245).
As características da imagem grotesca aqui elencadas nos permitem vislumbrar com
maior nitidez os traços marcantes do grotesco realista que mais interessa à nossa análise.
A categoria do grotesco contém, para o bem e para o mal, inúmeras subcategorias que por
vezes são até contraditórias. Do Romantismo ao Realismo, o grotesco se deixou infiltrar
por tratamentos diversos que partiram sempre de uma mesma essência, de uma premissa,
que é o caráter estranho e não-canônico da imagem grotesca. Mas a partir da especificidade
do grotesco realista se abre um universo de possibilidades de interpretações que localizam
esse grotesco nos mais diversos textos.
Se quisermos focar nossa visão nessas
características, o grotesco surgirá mais vivo diante de nossos olhos do que poderíamos
supor.
72
2.6 - Grande Angular Grotesca
Em 2005, foi lançada no cinema uma refilmagem de um novo velho monstro da
sétima arte. O midas de O Senhor dos Anéis, o diretor Peter Jackson, resgatou um dos
maiores sucessos do cinema, agora de roupagem nova. Trata-se de King Kong38, que
radicaliza a obra de Marie de Beaumont39, em que uma fera gigantesca se apaixona por uma
bela mulher. E se o assunto é monstros, a trilogia citada é um prato cheio para uma análise
do grotesco no cinema de Jackson e na literatura de Tolkien40.
Tentaremos, aqui, pincelar o grotesco cinematográfico indo além dos exemplos
expostos por Sodré e Paiva. Nossos esforços serão feitos no sentido de elencar alguns
filmes relevantes, sem a intenção de esgotar o assunto, visto que a proposta é a de uma
visão panorâmica, com todas as distorções e abrangências que uma lente grande angular
permite, à imagem do que já foi feito no capítulo anterior com a grande angular
carnavalesca.
Em sua abordagem do grotesco no cinema, Sodré e Paiva partem do geral para o
particular, discorrendo inicialmente sobre grandes sucessos internacionais, sobretudo o
mais óbvio exemplo do grotesco cinematográfico, O Homem Elefante, que tem em Freaks41
38
A versão cinematográfica original de King Kong é de 1933, dirigida por Merian C. Cooper, com uma
primeira refilmagem em 1976, dirigida por John Guillermin.
39
Em 1756, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont escreveu o conto A Bela e a Fera, adaptado para o cinema
no ano de 1946, dirigido por Jean Cocteau, e sendo posteriormente transformado em desenho animado pelos
Estúdios Disney, em 1991.
40
JRR Tolkien é autor da trilogia de sucesso adaptada para o cinema por Peter Jackson, O Senhor dos Anéis
(A Sociedade do Anel, de 2001, As Duas Torres, de 2002, e O Retorno do Rei, de 2003)
41
Dirigido por Tod Browning em 1932, o filme mostra “atores” com deformidades reais.
73
um desconcertante predecessor. No que concerne ao cinema brasileiro, os filmes citados
vão de Carnaval Atlântida ao tropicalista Macunaíma.
O universo almodovariano também é objeto de comentário. O rebaixamento em
Almodóvar daria um trabalho à parte42, para além de todos os comentários já feitos aqui. A
aquarela kitsch do cineasta sempre coloriu a tela do cinema com a subversão dos bons
costumes. Muito antes de Almodóvar, o gênio de Chaplin já levava o grotesco para as
telas, segundo Sodré e Paiva. Com seu personagem Carlitos, Chaplin teria inaugurado o
grotesco crítico no cinema através da figura do Palhaço.
Em O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante o grotesco está intensamente
presente. E é na figura do ladrão do título que o grotesco se manifesta. Ele é o marido
traído, bruto, faminto. No restaurante, ele come e vomita, e persegue o amante de sua
mulher, referencial da pureza e da beleza clássica destruídas pelo grotesco marido, que
mata o amante, mas que, na triunfal vingança da mulher, é obrigado a degustá-lo no
banquete final. A mulher, então, abandona seu pedestal neoclássico para enfrentar o
marido, seguida de seu séquito, com as mesmas armas que o “monstro” sempre usara, numa
espécie de avesso da sublimação do grotesco. Aqui, é a referência clássica da mulher que
se torna grotesca na seqüência final.
Ao lado de O Homem Elefante, O Cozinheiro... é um excelente exemplo do grotesco
cinematográfico. Mas de que grotesco estamos falando? Tecemos os três parágrafos acima
com a intenção de promover a mesma confusão que a abordagem de Sodré e Paiva parece
fazer. Sem uma definição precisa da aplicação do grotesco a cada filme, e tendo sido esse
conceito dividido em subcategorias de matizes tão diversas, é extremamente necessário
42
Sobre esse assunto, cf. O Espetáculo Grotesco nos Filmes de Pedro Almodóvar, de Gabriela Borges da
Silva Martins (PUC-SP, 1997).
74
apontar de que grotesco estamos falando, e a quais variações desse conceito nos remetemos
ao aplicá-lo ao cinema. No filme de David Lynch, o grotesco é concreto e romântico. A
deformidade do personagem-título faz com que sua monstruosidade seja motivo de espanto
e curiosidade. Aprisionado, o homem elefante chega a ser atração de feiras populares, mas
isso não o vincula, de modo algum, ao grotesco realista bakhtiniano. O grotesco em O
Homem Elefante, então, se enquadra na perspectiva do romantismo. O filme trata da
sublimação do grotesco. No personagem-título, coexistem o monstro, na forma, e o poeta,
no conteúdo, como no Quasímodo de Victor Hugo, também adaptado inúmeras vezes para
o cinema43. É um dos filmes mais conservadores de David Lynch, antes da construção
definitiva de seu universo onírico, marca de seus filmes mais recentes. O Homem Elefante
não se filia ao grotesco bakhtiniano.
O mesmo grotesco encontrado no filme de David Lynch já está presente nos anos
30, em filmes como O Médico e o Monstro44, inspirado no livro de Robert Louis
Stevenson, que originou uma série de adaptações cinematográficas45. Trata-se da história
do médico Dr.Jekyll que se transforma em Mr.Hyde. Este tem uma personalidade maligna
e passa a ser suspeito de uma série de crimes. O médico, então, tem que tomar uma
fórmula para permanecer no seu estado original, para que Mr.Hyde não tome conta de sua
personalidade. O embate entre o bem e o mal nos remete diretamente à obra de Hugo, na
deformidade moral do monstro e na retidão do médico, ambos habitando o mesmo corpo, o
sublime vivendo no grotesco, bem como dita a regra do grotesco romântico.
43
Dentre as adaptações cinematográficas de O Corcunda de Notre Dame, se destacam a de 1939, dirigida por
William Dieterle, a de 1982, dirigida por Michael Tuchner, e a animação dos Estúdios Disney de 1996,
dirigida por Gary Trousdale.
44
Dirigido por Rouben Mamoulian em 1931.
45
O livro suscitou diversas adaptações, sendo as mais expressivas, além da já citada, a de 1941, dirigida por
Victor Fleming, e a de 1996, dirigida por Stephen Frears com o título Mary Reilly.
75
Nos anos 40, outra adaptação literária promove mais um importante exemplar do
grotesco romântico no cinema. Inspirado na obra de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian
Gray46 tece um embate entre a beleza sublime de Dorian e a perversão moral que faz com
que sua imagem reproduzida no quadro, que fora trocado pela sua juventude eterna, se
torne cada vez mais monstruosa. Mais uma vez, a dualidade do sublime e do grotesco está
presente, reverberando no cinema os ideais do grotesco romântico que Hugo conceituou.
Ao contrário dos exemplos acima, o grotesco bakhtiniano poderá ser encontrado,
por exemplo, a partir dos anos 50, no musical já citado no capítulo anterior, Entre a Loura e
a Morena. O exagero das bananas gigantes, fálicas, do antológico número musical pelo
qual o filme ficou conhecido, o rebaixamento da personagem vivida por Carmem Miranda,
sempre com um apetite sexual exagerado, tudo parece indicar que o grotesco realista se
instaurou de forma elementar já nos filmes hollywoodianos.
Mas foi nos cinemas
nacionais, em obras de cineastas de renome como Federico Fellini e Píer Paolo Pasolini,
que o grotesco realista chegou ao close. Surgidos no seio do movimento neo-realista ainda
como roteiristas, Fellini e Pasolini acabaram dirigindo, posteriormente, obras maiores
como, Noites de Cabíria47 e Mamma Roma48, respectivamente, e levaram seu cinema para
outro campo, o do grotesco, presente com maior ou menor intensidade em várias de suas
obras.
A menção que Sodré e Paiva fazem ao cinema de Pasolini se restringe a Saló, os
120 dias de Sodoma49, mas poderia ser acompanhada de outros títulos do mesmo diretor,
afinal, Pasolini utilizou intensamente o grotesco cinematográfico, sobretudo o escatológico
46
Dirigido por Albert Lewin em 1945.
Produzido em 1957.
48
Produzido em 1962.
49
Produzido em 1975.
47
76
e o crítico, se formos seguir a taxonomia proposta por esses autores. Em Saló, o grotesco
está presente na premissa do filme, e na obra que o originou50. Um grupo de homens se
isola num castelo onde serão experimentados de forma exacerbada os prazeres do corpo.
Para isso, raptam jovens que lhes servirão de objetos sexuais, estupram, matam, e chegam
aos limites do rebaixamento grotesco ao servirem um banquete de fezes aos prisioneiros
sexuais. Um dos filmes mais escatológicos da história do cinema, Saló afirma a tendência
grotesca de Pasolini, o que é ratificado em outros filmes.
Um dos melhores momentos do grotesco realista em Pasolini pode ser encontrado
no filme em episódios RoGoPaG51. No trecho dirigido pelo cineasta, atores encenam a
Paixão de Cristo. Equipe e elenco, em volta da cruz, reclamam sem parar, riem, têm
vontade de urinar. Pasolini desconstrói e profana o sagrado, colocando o rebaixamento
grotesco em primeiríssimo plano, subversão que chega ao extremo na “trilogia da vida”,
formada por Decameron52, Contos de Canterbury53 e As Mil e Uma Noites54.
Decameron abre os anos 70 com a antológica história de um rapaz mudo que é
levado a conviver com inúmeras freiras em um convento. Em pouco tempo, ele passa a
servir-se sexualmente das freiras, o que é mostrado de maneira irreverente e debochada.
Posteriormente, descobrimos que a mudez era apenas um artifício, um engodo para rebaixar
e profanar a ordem estabelecida pelo convento.
Em Pasolini, até mesmo o tom
realista/naturalista das interpretações parece compactuar para a afirmação do grotesco
realista em sua obra.
50
Saló é inspirado num livro do Marquês de Sade.
Os outros epidódios foram dirigidos por Rossellini, Godard e Ugo Gregoretti, daí o título RoGoPaG, que
são as iniciais dos diretores dos episódios. Produzido em 1962.
52
Produzido em 1970.
53
Produzido em 1971.
54
Produzido em 1974.
51
77
Sodré e Paiva citam Roma55 e E La Nave Va56, de Fellini, indicados como
representantes do grotesco cinematográfico, mas deixam de fora o mais grotesco de seus
filmes, Satyricon57. Por isso, é difícil entender os critérios usados pelos autores. Este e
outros filmes fundamentais para se compreender o grotesco felliniano, especificamente, e o
grotesco cinematográfico, em geral, permanecem ausentes da análise de Sodré e Paiva. Em
Fellini, a profanação está sempre presente, em maior ou menor grau, mas em filmes como
Roma e Satyricon, o mestre conseguiu destilar de forma mais aguda o rebaixamento
grotesco com que habitualmente trabalha.
Na verdade, o rebaixamento grotesco sempre esteve na ordem do dia para Fellini.
Em Amarcord58, o patriarca da família faz exercícios em torno da mesa de jantar, flexiona
os joelhos e solta sonoros gases perante a família. Mas a seqüência tem uma leveza pueril,
marca de muitos de seus filmes. Ainda em Amarcord, é preciso lembrar do antológico
encontro entre o jovem Titta e a obesa dona do armazém, em que Titta é assediado por ela e
se vê afogado em seus exagerados seios. O tom de humor se afasta consideravelmente da
irreverência agressiva de Pasolini, mas ambos seguem de perto o princípio do material e
corporal, colocando o rebaixamento grotesco em lugar privilegiado.
Ainda nos anos 70, um dos mais polêmicos filmes dentro do registro do
rebaixamento grotesco foi realizado. Trata-se de A Comilança59, no qual quatro homens
decidem ir para uma mansão na qual pretendem comer até morrer. O exagero dessa
premissa já seria o suficiente para enquadrá-lo dentro dos parâmetros do grotesco realista.
O mais impressionante é que eles levam ao limite essa proposta inicial, fartando-se de
55
Produzido em 1972.
Produzido em 1983.
57
Produzido em 1969.
58
Produzido em 1974.
59
Dirigido por Marco Ferreri em 1973.
56
78
comida e sexo até a morte. Aqui, a comida e o sexo são colocados no mesmo plano.
Princípio do grotesco realista, tudo isso é tratado como uma coisa só, o rebaixamento
promovido liga o homem à terra, a vida à morte, a comida ao sexo. A Comilança tem um
ponto de partida parecido com o de Saló, de Pasolini, mas as estratégias de cada diretor
diferem, cada um imprimindo sua marca ao grotesco realista no cinema.
Para continuar localizando o grotesco cinematográfico, é necessário chegar, ainda,
aos filmes do grupo Monty Python. Em O Sentido da Vida60, filme dividido em esquetes,
um homem artificialmente gordo está à mesa de um restaurante e faz seu pedido ao garçom.
Com baldes ao seu lado, ele vomita para poder comer mais. A radicalização da gula leva o
homem a explodir no final do esquete, restando um improvável esqueleto gigante à mesa.
Voltando ao grotesco romântico, será nos anos 80 que David Cronenberg construirá
seu universo fílmico utilizando-se dessa categoria estética. Seu cinema, como apontam
Sodré e Paiva, transita entre a fantasia científica, o terror e o grotesco. No entanto, os
filmes citados são os mais imediatos:
Crash63.
A Mosca61, Gêmeos, Mórbida Semelhança62,
Porém, talvez o mais grotesco em Cronenberg seja Mistérios e Paixões64.
Delírios, drogas e monstros num filme tão sombrio quanto enigmático, fruto da difícil
adaptação do conto no qual se origina65.
Videodrome66, outro filme de Cronenberg,
também segue a linha dos títulos acima, e tem sempre a intenção de horrorizar.
Assim, entre filiações ao grotesco romântico e ao grotesco realista, o cinema
construiu uma tradição considerável de filmes que se ligam a essas categorias. Vale a pena,
60
Dirigido por Terry Gilliam em 1983.
Produzido em 1986.
62
Produzido em 1988.
63
Produzido em 1996.
64
Produzido em 1991.
65
O filme é adaptado do livro The Naked Lunch, de William S. Burroughs.
66
Produzido em 1982.
61
79
ainda, elencar alguns filmes brasileiros importantes para uma reflexão sobre o grotesco
cinematográfico. Mais recentemente, o melhor exemplo talvez seja Bocage, o triunfo do
amor67. Nele, o rebaixamento material e corporal se funde com a narrativa poética sobre o
grande nome da literatura lusa. A questão do sexo é colocada em primeiro plano e o filme
segue esteticamente essa premissa. O corpo nu do personagem principal, a poesia de
Bocage, tudo comunga para que o grotesco realista seja mais uma vez salientado na tela.
Na década anterior, podemos destacar A Marvada Carne, sobre o qual nos
debruçaremos mais detalhadamente no terceiro capítulo.
A propósito do que Bakhtin
relata sobre a importância do “nariz” como uma imagem grotesca, é relevante destacar a
seqüência em que um dos personagens corta acidentalmente o nariz do outro e, como
solução para encontrar o nariz cortado, espalham um pó que provoca espirros,
possibilitando a localização da parte do corpo perdida. No chão, o nariz espirra sem parar.
Na seqüência seguinte, o nariz é recolocado no seu lugar, só que na posição invertida.
Outros “causos” em A Marvada Carne irão ilustrar nossa análise. O filme é rico em
exemplos.
Ainda no cinema brasileiro, é preciso lembrar de Macunaíma, já citado no capítulo
anterior. O filme é um marco do cinema brasileiro e utiliza-se soberbamente dos princípios
do grotesco realista. É a própria imagem de herói que é rebaixada. Macunaíma, o herói
sem nenhum caráter, parte em sua jornada, conectado à terra e aos homens através do
princípio do material e corporal. Joaquim Pedro, do qual analisaremos no terceiro capítulo
o curta-metragem Vereda Tropical, foi sem dúvida um dos diretores brasileiros que mais
contribuíram para a construção de uma tradição do cinema infiltrado do grotesco no Brasil.
67
Dirigido por Djalma Limonje Batista, 1997.
80
Mas o leque de filmes brasileiros que se utilizam de recursos próprios do grotesco
realista vai muito além. As irmãs mineiras de Amélia, os pelos no rosto de Carlota
Joaquina, ou mesmo o já comentado exotismo de Carmem Miranda, que em sua incursão
hollywoodiana aparecia sempre encarnando a personagem mais liberada em termos sexuais,
promovendo uma verdadeira revolução nas “partes baixas”, montam um painel do grotesco
cinematográfico que, de certa forma, escapa à abordagem contida em O Império do
Grotesco, de Sodré e Paiva.
Como considerações finais, gostaríamos de apontar a relevância do cinema erótico
como representativo do grotesco cinematográfico.
Antes, vale citar o filme Boogie
Nights68, que descreve a ascensão e apogeu da indústria pornô nos EUA. No filme, um
jovem com o membro avantajado se torna astro pornô, e a partir de sua trajetória podemos
acompanhar as transformações dentro dessa indústria milionária. O filme não segue a
estética do grotesco, a não ser por essa proposição temática, pela qual o coito é colocado
em primeiro plano, mas nos dá uma visão panorâmica das transformações sofridas pela
indústria do filme pornô nos últimos 30 anos.
Na cinematografia brasileira, após uma larga tradição de pornochanchadas, o
cinema erótico aparece na década de 90, sobretudo nas produções de Custódio Gomes, em
filmes como As Aventuras Eróticas de Dick Traça e Alucinações Sexuais de um Macaco,
ambos de 1991. No entanto, esse cinema vai sendo paulatinamente, ao longo da década de
90, convertido para o mercado de vídeo. Mas o cinema erótico brasileiro conhece também
uma outra vertente, na qual podemos destacar, por exemplo, Dona Flor e Seus Dois
Maridos69, em que a relevância da comida e do sexo pode ser tomada como o norte do
68
69
Dirigido por Paul Thomas Anderson em 1997.
Dirigido por Bruno Barreto em 1976.
81
filme. Dona Flor se entrega ao fantasma de seu falecido marido com o mesmo apetite com
que ensina receitas típicas da cozinha baiana, unindo os prazeres do sexo e da comida.
Seja como for, o grotesco cinematográfico está presente, em maior ou menor grau,
em diversos gêneros e vertentes do cinema nacional e estrangeiro.
Semanalmente, o
grotesco explode nas telas, até mesmo nas comédias juvenis, em que o sexo é colocado em
primeiro plano, como em Quem Vai Ficar com Mary?70, que apresenta, por exemplo, um
personagem tão obcecado pela personagem do título a ponto de ter reações alérgicas, ou
mesmo a seqüência em que Mary usa acidentalmente o esperma de um dos admiradores
como gel de cabelo. Atualmente, são essas comédias dirigidas ao público adolescente que
fornecem de uma maneira mais sistemática exemplos da permanência do grotesco
cinematográfico.
American Pie71, Borat72, e as comédias baseadas em efeitos de
maquiagem estreladas por Eddie Murphy73 são alguns exemplos relevantes.
O que interessa aqui é afirmar que, para além do esforço em listar filmes de diversas
nacionalidades, nem sempre a indicação do conceito do grotesco no cinema, e nas outras
artes, sustenta a ausência de uma taxonomia mais precisa. Como exemplo, O Homem
Elefante segue os cânones do grotesco romântico e não tem nada de grotesco realista,
categoria trabalhada por Bakhtin. É preciso que os teóricos que pretendem apresentar um
leque tão grande de filmes como faz Sodré e Paiva definam, também, qual grotesco eles
estão aplicando a cada filme, sob pena de construírem uma argumentação que não ajuda no
avanço da conceituação do grotesco.
70
Dirigido por Bobby Farrelly e Peter Farrelly em 1998.
Dirigido por Paul Weitz em 1999.
72
Dirigido por Larry Charles em 2006.
73
Referimo-nos a comédias como O Professor Aloprado, dirigida por Tom Shadyac em 1996, e o recente
Norbit, dirigido por Brian Roberts em 2007.
71
82
III
O GROTESCO-CARNAVALIZADO
NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
III
O GROTESCO-CARNAVALIZADO
NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
A contribuição do repertório teórico bakhtiniano se fez, sobretudo, na segunda
metade do século XX. A partir de novas metodologias, e inserindo-se nos estudos culturais
expressos pelo multiculturalismo, o universo conceitual pelo qual transitamos aqui pode ser
entendido como mais tolerante do que qualquer outro já formulado no passado.
Sua
aplicação ao cinema e às diversas manifestações artísticas é capaz de ampliar o alcance das
análises e leituras e impedir exclusões empobrecedoras. Uma abordagem que assume,
como referencial, conceitos tais como dialogismo, intertextualidade, polifonia, tende a
vislumbrar sentido onde uma visão mais oblíqua não conseguiria ver solo fértil para
qualquer análise. Passa a ser fundamental, então, o cruzamento de correntes, tendências,
abordagens, fazendo confluir as contribuições de autores, obras, textos os mais diversos.
Como afirma Feyerabend em seu Contra o Método, no qual critica o modelo cartesiano,
“tudo é bom” quando percebemos as contribuições dos que nos antecederam.
Essa é, fundamentalmente, a base da metodologia bakhtiniana Erram, portanto, os
que julgam que Bakhtin renegou o formalismo ou o ideologismo.
Na verdade, seu
pensamento tornou a coexistência entre essas e outras correntes possível. Os conceitos
desenvolvidos por Bakhtin sofrem, eventualmente, como mostramos no primeiro e segundo
capítulos, algumas leituras equivocadas. A principal delas, em nossa opinião, é a que mais
84
interessa para a nossa análise, e gira em torno do modo como são alinhavados os conceitos
da carnavalização e do grotesco.
3.1 – O Grotesco-Carnavalizado
Em Problemas da Poética de Dostoievski, Bakhtin inicia sua conceituação da
carnavalização da literatura, o que será retomado em sua tese de doutorado que originou,
alguns anos mais tarde, o livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento - o
contexto de François Rabelais.
Ao leitor atento da obra de Bakhtin, fica claro um
desenvolvimento, para não dizer evolução, de seu pensamento entre esses dois livros. A
conceituação e aplicação do carnaval como instrumento de análise ganha, nesse ínterim, um
poderoso aliado, comumente esquecido quando se fala de carnavalização. Trata-se da
noção de grotesco que Bakhtin desenvolve quando aborda a obra de Rabelais.
Segundo Bakhtin, esses conceitos não são isolados. Assim como paródia, sátira e
tantos outros conceitos por ele desenvolvidos, são correlatos. No entanto, é comum se
atribuir à carnavalização características que só chegam a esse conceito passando,
necessariamente, pelo grotesco.
Aqui, cabe reafirmar a definição do grotesco que nos interessa. Fica muito claro
que não se trata do grotesco romântico ou qualquer outra forma de manifestação desse
fenômeno na arte. O repertório teórico bakhtiniano toma o grotesco realista como único
capaz de dialogar com a cosmovisão carnavalesca. Trata-se de amplificar as condições em
que se dá a carnavalização, que tem o riso como fundamento, inscrevendo-se numa tradição
cômica popular que atravessou a Idade Média e o Renascimento.
85
O grotesco realista é o suporte no qual são construídas as imagens ligadas ao
princípio da vida material e corporal.
imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de
necessidades naturais, e da vida sexual (BAKHTIN, 1993:
18).
Isso nos leva a uma confusão usual que atribui apenas à carnavalização uma
característica própria do grotesco realista, e que serve de argumento para a junção definitiva
desses dois conceitos – o rebaixamento.
Assim, a soma da inversão carnavalesca e do rebaixamento grotesco leva a um
conceito uno e indivisível que chamaremos de grotesco-carnavalizado. Bakhtin afirma dar
à categoria do rebaixamento o nome convencional de realismo grotesco (BAKHTIN, 1993:
17), o que cria uma dificuldade inicial que é a filiação desse grotesco à escola realista.
Acreditamos que essa filiação causa mais confusão do que se pode notar num primeiro
momento, o que pode ser percebido na proliferação de erros nos tratamentos que o grotesco
tem recebido. O próprio Bakhtin se questiona sobre a pertinência do termo, explicando que
assim o define em oposição à escola modernista/romântica.
Mas até que ponto se justifica nossa denominação de
“realismo grotesco”? (...)
As características que diferenciam de maneira tão marcante o
grotesco medieval e renascentista do grotesco romântico e
modernista
–
principalmente
a
compreensão
espontaneamente materialista e dialética da existência –
podem ser definidas da maneira mais adequada como
“realistas” (BAKHTIN, 1993: 45).
86
Alguns estudos se privam de definir qual grotesco serve ao conceito de
carnavalização, outros, mesmo definindo, aplicam indiscriminadamente o grotesco na
leitura de obras de arte. Acreditamos que a equação grotesco + carnaval é fundamental
para evitar confusões, ou mesmo omissões, que perpetuem interpretações e abordagens
incompletas desses conceitos, ao que nos serve particularmente o termo grotescocarnavalizado. Vale salientar que, ao mesmo tempo em que opta pelo termo grotesco
realista, Bakhtin usa eventualmente a expressão grotesco carnavalesco.
Em seguida, à luz do repertório teórico bakhtiniano e dos conceitos trabalhados nos
capítulos anteriores, faremos um estudo de três longas-metragens brasileiros nos quais o
grotesco-carnavalizado ganha uma coloração especial. Como afirmamos no início deste
trabalho, a escolha foi pautada pela nossa vontade de aproximar obras separadas no tempo,
num espaço de vinte anos, mas a partir de pontos que permitam o diálogo entre esses
filmes, e também desses filmes com a nossa história.
Para completar a ponte com a História do Cinema Brasileiro, enriqueceremos o
capítulo com a análise de um curta-metragem, ou melhor, um episódio de outro longa
brasileiro, mais antigo e, por que não dizer, clássico da nossa cinematografia. Decidimos
fazer essa análise já que em nossa abordagem através da lente grande angular não foi
possível o aprofundamento num filme que se filiasse a uma tradição do grotescocarnavalizado no cinema brasileiro, dada a natureza panorâmica daquela abordagem.
Assim, o curta-metragem funcionará como pequena introdução às análises dos três longas
que se seguem, e também como uma forma de conectarmos esses longas de maneira mais
concreta a uma tradição do grotesco-carnavalizado representada aqui pelo curta-metragem
Vereda Tropical, de um modo mais acurado, e também pelos filmes citados nas análises
através da lente grande angular, de forma mais panorâmica.
87
O diálogo entre os três longas-metragens é ainda maior se pensarmos nas
semelhanças para além das estratégias provocadoras do riso.
Referimo-nos às
coincidências intertextuais que giram em torno da presença de “viagens transformadoras”
nos três filmes. Estes partem, portanto, de uma premissa romântica. Interessa-nos, aqui,
para além dessa característica romântica, o modo como os filmes convergem, através das
viagens de seus personagens, para um mesmo ponto, o da inversão de seus universos
originais. Isso porque se o sonho do personagem central de A Marvada Carne, Nhô Quim,
acaba levando-o a uma viagem do campo para a cidade, em Carlota Joaquina, esse
movimento é feito de um grande centro - a metrópole - para a periferia - a colônia. E
curiosamente, Amélia parece promover uma comunhão desses movimentos, já que se trata
do embate de uma personagem que sai da Europa, mais uma vez o grande centro, para a
periferia tropical, assim como faz Carlota, enquanto as irmãs mineiras de Amélia repetem o
percurso de Nhô Quim e sua família, migrando do interior para o centro urbano. Amélia
parece concatenar as experiências dos personagens dos outros filmes analisados. E a esse
movimento romântico se une o conceito de grotesco-carnavalizado. As viagens acabam por
nos servir de metáfora da transgressão carnavalesca, já que com elas o mundo dos
personagens em questão sempre vira de ponta-cabeça.
Para além dessas coincidências intertextuais, acreditamos que os títulos escolhidos
servem duplamente ao nosso propósito pois, além de pertencerem ao universo do grotescocarnavalizado, apresentam um fundamento pouco óbvio para a aplicação dos conceitos aqui
discutidos, o que nos interessa particularmente. Assim, inexiste o carnaval enquanto festa
popular, e na maioria das vezes, inexiste também um exagero desmesurado que qualifique
esses filmes imediatamente como grotescos e carnavalizados. É preciso um olhar mais
atento para extrair deles as raízes dos referenciais teóricos que nos dispomos a usar.
88
3.2 –a tradição grotesco-carnavalizada em Vereda Tropical
Contos Eróticos74 é um filme dividido em quatro episódios. O roteiro é baseado em
contos, selecionados e premiados, da revista Status. O conto que nos interessa aqui é o que
originou o último episódio do filme, o curta-metragem Vereda Tropical, escrito e dirigido
por Joaquim Pedro de Andrade. Os demais episódios são Arroz e Feijão, dirigido por
Roberto Santos, As 3 Virgens, dirigido por Roberto Palmari e O Arremate, dirigido por
Eduardo Escorel. Mas a força do filme está mesmo no episódio de Joaquim Pedro de
Andrade, um verdadeiro marco no uso do grotesco-carnavalizado no cinema brasileiro.
Vereda Tropical foi escrito por Pedro M. Soares, e narra a irreverente história do
professor universitário que tem compulsão por melancias.
As seqüências em que o
personagem, vivido por Cláudio Cavalcanti, se relaciona sexualmente com as melancias são
absolutamente impagáveis e singulares, tomando como referência a cinematografia
nacional ou internacional.
A primeira inversão carnavalesca é a da própria figura do professor. Inteligente e
bonito, ele tem trejeitos e hábitos pouco convencionais. Ao discutir com uma aluna sobre
sua tese, a inversão e o abandono da austeridade própria do seu lugar ficam claros através
do diálogo que segue, quando relata sua sensação depois de “transar e matar” uma
melancia.
Pra mim, escrever a tese é um negócio repousante, feito
música depois do crime. O parentesco colateral entre os
74
Realizado em 1977.
89
nordestinos imigrados na construção civil do Rio de
Janeiro....
Sua amiga e confidente complementa, contribuindo para a inversão do espaço
acadêmico e para o rebaixamento do lugar ocupado pelo professor catedrático.
Assim essa sua tese vai ficar chatíssima. Você tem que dar
um jeito de encaixar a melancia aí na construção civil. Põe
um apêndice no final comparando o uso da melancia pelos
operários e pelos solitários de classe média. Ficava uma tese
política e de sacanagem!
O filme começa com a chegada do professor em casa, carregando uma melancia.
Durante essa primeira seqüência, perceberemos de saída a amplitude do rebaixamento que
o filme promove, e de que maneira o princípio do material e do corporal compõe a
gramatura do filme. O professor, sempre abraçado com a melancia, tira a camisa, depois a
calça, molha a melancia na pia. De cueca, ele entra no chuveiro, pega um sabonete,
ensaboa com carinho a melancia.
A música Vereda Tropical75 aumenta o tom de
irreverência. O professor carrega a melancia até uma mesa, passa talco e, finalmente, abre
um orifício pelo qual penetrará a melancia.
Só uma casquinha... Não vai doer nada, nada!
As regras utilizadas pelo professor para dar vida à cena erótica começam a ficar
mais nítidas. Ele passa a falar com a melancia, e pelo seu monólogo, podemos intuir o que
ele ouve.
Fica quieta! Não foge de mim...
75
Composta por Gonzalo Curiel.
90
A essa altura, a melancia “foge” do professor para evitar o pretendido sexo oral que,
então, à força, ele consegue fazer. Excitado, o professor penetra a melancia, mas logo pára
e senta esgotado, lamentando-se:
Ejaculação prematura!
Nessa primeira seqüência, muito poderia se dizer sobre o filme, inserido num
universo contextual das pornochanchadas.
O filme parece falar sobre os limites da
perversão sexual. Mas nas seqüências seguintes, através das conversas entre o professor e
sua confidente, é cada vez mais pulsante o tema da liberdade, seja ela sexual ou política, o
que se torna mais evidente ao lembrarmos que o filme foi feito durante a ditadura militar, e
dirigido por um cineasta da altura de Joaquim Pedro de Andrade. O grotesco-carnavalizado
se faz presente através das inversões e rebaixamentos que o filme promove, permitindo a
confecção de uma obra tão irreverente quanto singular, autorizando seu autor a falar, e
mostrar, o que na época não poderia ser exibido de maneira concreta.
O filme terminou por ser censurado, mas sem um motivo político aparente. Era
apenas o tema da perversão que incomodava. A história do professor que transa com
melancias parecia, para os censores, abaixo da crítica, da moral e dos bons costumes, o que
não poderia ser diferente em se tratando de um filme que rompe totalmente com o
estabelecido, o oficial, o que o senso comum considera ser apropriado e de “bom tom”.
Não é outro o movimento grotesco-carnavalizado que o filme promove, o da inversão e
rebaixamento explíticos.
Em seu passeio de barca com sua confidente, o professor explica o teor grotescocarnavalizado, provocador do riso e irreverente de sua atitude.
Claro que tem um lado ridículo, até engraçado se você
quiser!
91
(...) To escrevendo minha tese, to dando aula pra quatro
turmas.
O dinheirinho que me resta é só pra sobreviver
mesmo, e pra comprar uma melanciazinha de vez em quando!
A inclinação cômica do filme vai além do próprio exotismo da situação. Ela se dá
nos diálogos magistralmente escritos por Joaquim Pedro de Andrade. Vale ressaltar que o
filme, censurado pelo seu teor erótico, chocante e apelativo, não mostra absolutamente
nada. Não há mulheres nuas, tão constantes nas pornochanchadas, que exploravam de
forma intensa o corpo feminino, e mesmo o professor mantém-se, dentro do quadro, sempre
de cueca. No entanto, o filme é, talvez, o mais explícito já feito no cinema brasileiro.
Basta que lembremos do incrível plano subjetivo, através do qual vemos a penetração em
si. Até então, nenhum filme de sexo explícito, nenhuma pornochanchada foi tão longe. A
tela fica toda vermelha e vemos, rapidamente, a penetração, o pênis avançando no interior
da melancia. O modo como a penetração foi representada convence e é ajudado pela
sonoplastia. Em seguida, outro plano inverte o “ponto de vista”, agora assumido como
sendo o do pênis, o que faz com que a câmera avance no interior da melancia-vagina. A
ligação do homem com a terra, princípio do material e corporal, nunca foi tão ferozmente
alegorizada no cinema. Ainda na barca, o professor assume as dificuldades que tem para
encontrar melancias durante certo período do ano, e se liga de vez à terra através de outras
frutas e legumes.
Mas fruta tem problema de estação. No verão, tudo bem.
Agora, já teve inverno de eu ter de apelar pra berinjela,
abacate, abóbora... Abóbora quase me mata! É duro que
você nem imagina. Só cozinhando! Eu cozinhei, mas aí ficou
92
mole demais, sabe, tipo ensopado, gruda, é mole, cola, não dá
ponto, sabe como é? Não dá ponto!
(...)
É uma questão de relacionamento pessoal. Eu me dou bem
mesmo é com melancia.
Se pudesse fazer estoque na
entressafra era uma boa, né? Também ia ter que comprar um
frigorífico porque não tem geladeira que comporte aquele
tamanho!
O encontro entre o professor e sua confidente não faz com que eles deixem de lado
o potencial lúdico e grotesco-carnavalizado da transa com as frutas e legumes. A feira, no
final, mostra o casal escolhendo os produtos que vão ser sexualmente consumidos depois,
no espaço fora da tela, e do filme, pelos dois. Voltando para casa de bicicleta, uma
melancia na garupa do professor e diversas frutas e legumes fálicos na cestinha da
confidente, eles chegam a um denominador comum através da especulação de combinações
sexuais possíveis, quando o professor dá a solução final.
- A mulher com dois legumes e o homem com uma fruta e um
legume. (...) Mas você acha que tem que ser solitário mesmo?
(...)
- Não, nada disso! Acho que o negócio é eu, você e os
hortifrutigranjeiros!
Com a ambiência grotesco-carnavalizada, contrasta a música de Carlos Galhardo, no
insólito final que mostra uma representação teatral, o cantor e várias mulheres com um
cenário romântico ao fundo. A ilha de Paquetá, onde mora o professor, é onde se desenrola
a ação. O filme coloca o apetite sexual e a satisfação das necessidades básicas no mesmo
93
ponto. A melancia passa a ser digerida de duas formas possíveis, tomadas como um
mesmo momento de prazer.
Após transar com uma melancia “macho”, o professor
esfaqueia e come a melancia, misturada com seu sêmen, da transa que acabara de ocorrer.
A fome sexual e a fome física saciadas no mesmo instante. São os limites do rebaixamento
e inversão que Vereda Tropical promove, elevando a máxima potência o referencial
grotesco-carnavalizado do filme.
Eu bebo seu sangue! Como sua carne!
O filme nos dá pistas concretas da dimensão de uma tradição do grotescocarnavalizado no cinema brasileiro.
Aqui, o sexo é mostrado de uma forma lúdica,
provocadora do riso, ao mesmo tempo em que fundamenta um universo sexual atípico, fora
do comum, extra-oficial. A inversão carnavalesca e o rebaixamento grotesco estão, assim,
definitivamente atrelados. O grotesco-carnavalizado cinematográfico encontra na história
do professor universitário que transa com melancias o seu mais irreverente representante.
Em seguida, partiremos para a análise dos longas-metragens contemporâneos, nos
quais os ecos do grotesco-carnavalizado serão escutados. Organizamos nossa análise por
blocos temáticos que nos permitam visualizar mais nitidamente os diálogos entre os filmes
em questão e as ligações à tradição do grotesco-carnavalizado no cinema brasileiro, que
buscamos ilustrar através do curta-metragem que acabamos de analisar.
94
3.3 – Breve apresentação dos três filmes
1.
A Marvada Carne é uma produção de 1985, dirigida por André Klotzel76, sendo seu
filme de estréia como diretor de longas77. O filme é uma livre adaptação de Na Carreira do
Divino, peça de Carlos Alberto Soffredini que, por sua vez, inspirou-se no trabalho
sociológico Os Parceiros do Rio Bonito, de Antônio Cândido.
Essas camadas de
adaptações já dariam um bom trabalho de análise intertextual. Porém, não é nossa intenção
trabalhar com o universo de adaptações literárias e transposições cinematográficas.
Adilson de Barros, que encarna Nhô Quim, repete no cinema o papel que já vivera
nos palcos. Mas uma das participações mais instigantes no filme é a da atriz Geny Prado.
Presença constante nos filmes de Mazzaropi, sua participação filia A Marvada Carne a uma
tradição de cinema cômico e extremamente popular, calcada no repertório de hábitos e
linguagens de uma cultura popular interiorana.
Jayme de Almeida aponta o caráter
intertextual de alguns recursos desta obra.
O filme começa e você tem a impressão de que algo lhe é
familiar. Logo mais, quando Nhô Quim sentar-se e acender o
cigarro de palha, a impressão se confirmará:
estamos
viajando pelo interior de um quadro a óleo de Almeida
Júnior, “Caipira picando fumo”. Aliás, prepare o seu olhar,
pois a fotografia do filme pediu emprestado aos pintores
76
77
Outros filmes do diretor são Capitalismo Selvagem (1994) e Memórias Póstumas (1999).
Entre 1975 e 1980, Klotzel realizou três curtas, a saber, Eva, Dr. Kaneta e Gaviões.
95
brasileiros do fim do séc. XIX a paleta de cores, os estudos de
luz e sombra, as paisagens e as cenas de gênero (ALMEIDA,
2001: 195).
2.
Carlota Joaquina, Princesa do Brasil é um marco do cinema brasileiro. Realizado
após o desmanche das estruturas de produção cinematográfica do início do governo Collor,
Carlota tem o mérito indiscutível de dar o primeiro passo para mudar essa história, ao levar
aos cinemas um público muito superior ao que o cinema brasileiro conseguia levar naquela
época. Cerca de 1,5 milhão de espectadores assistiram ao filme de estréia em longametragem de Carla Camurati78.
O filme se estrutura a partir de dois fluxos narrativos: de um lado, um narrador
escocês que conta a história de Carlota para a jovem Yolanda, de outro, a história
carnavalizada, pela imaginação da espectadora Yolanda. A estratégia de optar pela mesma
atriz para fazer Yolanda e a jovem Carlota parece apontar nesse sentido, já que fica
evidente a identificação de Yolanda com a história da princesa que tinha a sua idade
quando casou com o herdeiro do trono português. No entanto, não há na direção de
Camurati qualquer vinculação obrigatória a essa leitura.
A opção por localizar o narrador fora do Brasil (e também da Espanha e de
Portugal) pode ser entendida como a tentativa de se encontrar um lugar neutro (?), ou pelo
menos, que mantenha com o universo latino o devido contraste. Os filtros que deixam as
imagens do narrador e de Yolanda azuladas se opõem definitivamente ao vermelho
78
Antes de ingressar na produção de longas-metragens, Camurati, além de atuar em TV e cinema, dirigiu os
curtas A mulher fatal encontra o homem ideal, de 1987, e Bastidores, de 1990.
96
espanhol, às cores mais escuras de Portugal e, certamente, ao colorido tropical. O frio que
sentem o narrador e Yolanda faz com que seja ainda mais quente o universo da História que
é contada. As borboletas gigantes que o narrador menciona, numa brincadeira, à jovem
Yolanda, tornam-se ainda mais gigantes, poluindo o imaginário europeu sobre o exotismo
latino-americano. Nesse sentido, a narração do filme mantém com a História narrada uma
relação de contraste.
Os créditos iniciais são veiculados sobre a imagem do mar, com uma quase
indecifrável voz em off, que fala fragmentos de um texto em espanhol. Eduardo Peñuela
Cañizal aponta a presença de diversas vozes narrativas no filme: esse relato em espanhol, a
voz do narrador escocês, as vozes/gestos dos personagens da História.
Em “Carlota Joaquina”, a carnavalização não é camuflada.
Ela está presente em quase todas as passagens do filme de
Carla Camurati.
Mas, mesmo assim, a reiteração e a
sobreposição de atos carnavalescos e paródicos terminam
por estruturar uma expressão densa (...) Todos esses
elementos são, creio, indícios de que o filme se estrutura à
maneira de um retrato coletivo (CAÑIZAL, 2005: 35).
Vale dizer que dos filmes analisados neste trabalho, Carlota é o de classificação
mais evidente dentro dos parâmetros do grotesco-carnavalizado. Isso porque figurinos,
direção, interpretações, tudo compactua para essa classificação, o que buscaremos ressaltar,
chamando atenção também para o que já foi escrito sobre Carlota nesse sentido.
Resta lembrar que, contextualmente, Camurati afirmou diversas vezes ter partido da
premissa de fazer um filme histórico de baixo custo (cerca de 650 mil reais), o que
determinou a escritura do roteiro, e acabou gerando um filme que nos fornece diversos
97
elementos para que o classifiquemos como grotesco-carnavalizado, o que vai da comilança
de D. João VI até o ilimitado apetite sexual de Carlota.
3.
Amélia é o quinto longa-metragem de Ana Carolina, que deu seus primeiros passos
no cinema atrelando-se à realidade político-social do Brasil79. Lançado em 2000, o filme
se insere no panorama da produção iniciada por Carlota Joaquina, chamada de cinema da
retomada em oposição à profunda crise da produção cinematográfica nacional dos anos
anteriores.
O filme de Ana Carolina é o de mais difícil classificação no corpo de nossa análise,
já que abriga, ao mesmo tempo, alguns elementos característicos do grotescocarnavalizado, mas também o clássico, na figura da lendária Sarah Bernhardt e do universo
que ela evoca. Observamos em Carlota a carnavalização ostensiva de fatos históricos, e em
Marvada, a costura de episódios grotescos assimilados à tradição cômico-popular. Em
Amélia, percebemos a confluência desses movimentos num filme que mistura dois
universos e oferece múltiplas possibilidades de análise. O certo é que a oposição do velho
e do novo inscreve Amélia numa das estratégias particulares do grotesco-carnavalizado,
dentro do espírito das mésalliances, como veremos a seguir. Amélia, personagem, é a
expressão inequívoca de uma sublimação do grotesco. A personagem-título só aparece em
um número reduzido de flash-back, mas através deste podemos perceber que a terra é a
única coisa que ainda a prende ao universo de Cambuquira, da qual ela quer se desfazer,
criando um dilema para as irmãs, precipitando-as numa viagem sem volta. Como nos
79
Antes da trilogia formada pelos filmes Mar de Rosas (1977), Das Tripas Coração (1982) e Sonho de Valsa
(1987), Ana Carolina dirigiu os curtas Guerra do Paraguai (1970) e Nélson Pereira dos Santos saúda o povo
e pede passagem (1970), e o longa Getúlio Vargas (1974).
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outros longas aqui analisados, há uma viagem transformadora para os que dela participam,
assumindo, de um lado, seu ideal romântico, mas, de outro, reforçando um caráter
carnavalesco desses filmes na medida em que inverte a realidade e o mundo dos
“viajantes”. Antes, essa viagem sem volta fora feita por Amélia, que se deixou transformar
pela cultura dominante, mas sem abandonar algo de sua origem, abrindo espaço para uma
adaptação da circularidade bakhtiniana. Num flash-back, ela aparece recitando a Canção
do Exílio, de Gonçalves Dias, para Sarah.
A questão da relação entre dominados e
dominantes está colocada, evocando uma inversão carnavalesca. O princípio que, por
exemplo, permitiu ao cristinianismo, dominado, invadir subrepticiamente o mundo romano,
dominante, é o mesmo que faz com que Amélia carregue consigo a poética de Gonçalves
Dias, ou que Sarah incorpore o elemento tropical, atores e texto, em seu espetáculo que
fecha o filme.
No entanto, essa inversão do papel do dominado nem sempre é consciente. A
própria Amélia, na carta que escreve às irmãs, deixa claro seu repúdio a suas origens, sem
perceber que carrega essas raízes consigo. Mas a negação do passado não faz parte do
discurso do filme, e sim da personagem, que se constitui em uma das muitas vozes da obra.
Já que ocês não tão entendendo nada mesmo, aproveito pra
dizer que apesar de ter nascido aí nos cafundó de Minas,
senti desde muito cedo repugnância por tudo o que me
rodiava (fragmento da carta de Amélia lido por Osvalda)
Além disso, podemos perceber reverberações polifônicas no filme.
O Rio de
Janeiro acaba por ser o palco para o qual confluem os atores, mas não há em Amélia
nenhum movimento que assuma o referencial de uma ou outra personagem. O cuidado em
retirar tanto as irmãs quanto a atriz de seu “lugar” as coloca em igualdade de condições. O
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estranhamento que as três cambuquirenses sentem ao chegar na cidade é proporcional ao
repúdio que a atriz manifesta pelo exotismo brasileiro. O mesmo Rio que funciona como
centro para as irmãs é experimentado como periferia para a atriz. Como afirmou Ana
Carolina, o filme registra esses universos “de cá para lá e de lá para cá”, num movimento
pendular destituído de preferência, cuja natureza polifônica confere humanidade a todas as
personagens.
Não que se ignore o caráter imperialista da atriz, mas não há julgamento ou
imposição da voz da autora sobre as vozes das personagens.
Seus universos são
respeitados, e a assimilação de um por outro não deixa de registrar a natureza polifônica e
dialógica desse processo. No antológico final, Sarah recita Gonçalves Dias num teatro
parisiense. As irmãs, fagocitadas, estereotipadas como índios, não deixam de conviver, e
até de se impor, ao universo clássico. A coexistência desses universos diferentes, e até
divergentes, respeita o princípio bakhtiniano da polifonia, nas muitas vozes que se fazem
ouvir a partir do filme.
Em seguida, vamos elencar algumas das principais características do grotescocarnavalizado, aplicando-as aos filmes acima apresentados. Nossa intenção não é esgotar o
leque de características, mas antes, examinar com que intensidade os filmes aqui escolhidos
se filiam a uma tradição do grotesco-carnavalizado dentro do cinema brasileiro.
3.4 – Mésalliances
Neste item, um dos filmes analisados ganha contornos mais fortes.
Amélia é
construído quase inteiramente dentro do universo das mésalliances. Assim, após uma
100
rápida pincelada nos outros títulos trabalhados, nos deteremos especialmente no filme de
Ana Carolina.
Em Carlota Joaquina, por exemplo, podemos encontrar a presença do grotescocarnavalizado na feiúra da personagem-título.
No espírito das mésalliances, Carlota
Joaquina fica obcecada pelo quadro da “infanta Margarita”, e quer ser retratada como ela,
só que num vestido vermelho. Mas quer inverter sua feiúra, e ficar mais bonita do que a
infanta no seu quadro.
Em A Marvada Carne, Nhô Quim entra na casa de Nhô Totó, pai de Carula, para
devolver a estátua de Santo Antônio e selar seu destino ao lado da devota rebelde, graças às
artimanhas desta. Ali, Nhô Quim vai descobrir que chegara no Arraiá da Véia Torta,
imagem grotesca, velho como oposto de novo, torto como contrário de reto, direito,
harmônico, seguindo a regra das mésalliance, própria do universo carnavalesco.
Já Ana Carolina opta por usar sistematicamente o contraste, o que está
fundamentado no princípio de mésalliances. O filme começa com uma ovação a Sarah
Bernhardt durante sua turnê. Uma chuva de rosas, a atriz em traje clássico.
Seu
esgotamento é visível. O pano cai e a diva, exausta, é ajudada por Amélia até o camarim.
Um corte seco nos leva bruscamente do interior do teatro ao exterior de uma fazenda
mineira, no Brasil. A cortina de veludo se fecha no teatro enquanto o portão de madeira se
abre num quintal em Cambuquira. A música grandiloqüente da ópera é substituída pelo
forte som ambiente do campo. Francisca caminha pelo quintal, por entre os animais, até
chegar na casa em que vive com sua irmã, Osvalda, e uma agregada, Maria Luiza.
Mantendo uma distância própria ao espírito das mésalliances, a presença de Amélia
atravessa o filme, como um fantasma carnavalizado na memória das irmãs e da diva.
101
As mésalliances carnavalescas combinam o sagrado e o profano, o elevado e o
baixo, o grande e o insigificante.
Em Amélia, esses contrastes são apresentados,
confrontados, problematizados, sem que um dos lados assuma o discurso da autora. Nesse
sentido, o “eu” do “outro” é respeitado como sujeito, traço marcante do caráter polifônico
do filme. O uso de vários idiomas levanta duas questões que servem para nossa análise do
grotesco-carnavalizado. O contraste imposto nos diálogos entre as cambuquirenses e a diva
européia é um primeiro traço das mésalliances presentes no filme.
A língua culta,
articulada, impostada de Sarah se opõe ao português carregado pelo sotaque mineiro,
utilizado como efeito cômico, marca do linguajar comum que veremos mais à frente. O
contraste é audível e se estende às outras línguas usadas no filme, o espanhol incorreto de
Vicentine, misturado ao seu francês perfeito, o sotaque lusitano de Lano. Mas é no tour-deforce entre as irmãs mineiras e a atriz francesa que o contraste assume contornos mais
fortes.
Há uma sutil mescla dos universos díspares retratados. Num relance, vemos Sarah
conduzir ao seu leito um belo rapaz negro, quando finalmente ela se deixa penetrar pelo
exotismo tropical. No outro extremo, Maria Luíza, após o banho, veste-se de Julieta,
figurino com o qual passa a desfilar sem se dar conta, sem mudar sua natureza grotesca.
Maria Luíza fantasia-se de Julieta enquanto Sarah rasga o vestido da Ópera durante a prova
de roupa. O figurino é um elemento fundamental no contraste durante o filme. As roupas
elegantes de Sarah, com veludos e penas raras, se opõem às roupas simples e sujas das
cambuquirenses. Vale salientar o caráter intertextual dos figurinos, já que uma fotografia
do início do século feita por Marc Ferrez inspirou o vestuário usado pelas três mineiras,
enquanto as roupas de Sarah Bernhardt foram inspiradas em fotos do francês Nadar, e em
imagens que fazem parte da biografia A Divina.
102
A rivalidade e o contraste que emergem entre Sarah e as cambuquirenses se dá em
diversos campos. Um simples banho se transforma em símbolo da diferença entre os
universos retratados. As irmãs grotescas são levadas a tomarem banho em tinas rústicas
enquanto a atriz aparece numa suntuosa banheira de ágata. Assim, figurino e direção de
arte se aliam na confecção das mésalliances proposta pela diretora.
O contraste que atravessa o filme não se dá apenas entre personagens.
É
interessante notar as contradições dentro de cada personagem. Francisca revela à irmã um
pouco dessa contradição. Enquanto trabalham nas minas d’água, ela conta sua reza para
Osvalda e Maria Luíza.
-
FRANCISCA - Peço pra Deus pra não mudar nada aqui...
pra que Amélia não me tire daqui. Rezo pra que alguma
desgraça aconteça pra Amélia. Depois vai indo, vai indo,
e eu acabo por rezar agradecendo a Amélia por me tirar
daqui. Eu nunca tinha percebido que tinha essa vontade
de sair daqui.
-
OSVALDA - Isso é uma confissão? Você ta dizendo que
tá com vontade de abandonar as terra de Cambuquira, de
abandonar as suas terra?
-
FRANCISCA - É, acho que tô.
Ao partirem da fazenda, elas recebem de um personagem tipicamente mineiro80,
estereótipo das gentes de Minas, um porco que ele envia de presente a um cumpádi. Mas o
destino do porco será outro – os braços da diva Sarah Bernhardt. Aqui, o uso do som
80
O personagem em questão é vivido pelo ator Pedro Bismark, que criou o Nérson da Capitinga. Sua
aparição no filme segue a mesma caracterização desse personagem que ele desenvolveu em programas
humorísticos de TV.
103
também assume um caráter polifônico. Uma música afro evoca a brasilidade das três
mulheres que partem.
O novo mundo, como afirmamos, é “novo” para as cambuquirenses e, também, para
Sarah. Nos dois casos, o lugar de onde saíram, suas origens, permanece como referência.
O embate com o novo gera uma cadeia de conflitos. Mas para as irmãs mineiras, o Rio é o
centro, enquanto para Sarah, trata-se da periferia, em sua visão eurocêntrica de mundo. Ao
chegarem ao hotel, as três mineiras entram causando balbúrdia. Uma mulher bem vestida
se espreme na entrada por causa do alvoroço provocado pelas três. Sobem as escadas,
passam por uma estátua de contornos clássicos. Francisca torce o nariz, Osvalda mexe no
seio da estátua. Entram no quarto impecável, carregando suas tralhas e o porco que
receberam ao partir.
No quarto, elas correm atrás do porco que escorrega no chão encerado, comem com
a mão, queimam a mesa ao esquentarem a comida, pitam um cigarro, jogam casca de
banana e restos de comida pelo chão. Uma vez instaurada a desordem, a sujeira, o caos,
opondo-se ao luxo inicial, surge a grande Sarah para dar as condolências pela morte de
Amélia. Ela aparece vestida de negro, e imediatamente o porco é jogado em seus braços
por Osvalda. Sem entender muito bem, ela dá seguimento ao seu discurso, competindo
com os grunhidos exagerados do porco. Ana Carolina brinca, assim, com a imagem
clássica de Sarah, e de imediato mancha sua roupa com a tinta grotesca do universo das
irmãs. Na varanda, ela solta o porco e tenta se limpar.
Numa concretização do conflito estabelecido entre as três mineiras e a atriz
francesa, Francisca é levada a exercitar a arte da esgrima com Sarah.
Durante o
enfrentamento, Francisca apenas se defende, perguntando como se desliga a atriz. O efeito
cômico de suas tiradas imprime leveza a essa passagem, em oposição à força imperialista
104
de Sarah. Aqui, o princípio das mesálliances é concretizado pelo embate físico, que será
transformado em embate poético no final do filme. A força e a poesia transformam os
universos em questão, até que o desfecho nos revela um universo transmutado.
A seqüência final indica uma passagem de tempo, situa o espectador no ano de
1915, dez anos depois da ação do filme, que se passa em 1905, quando a atriz Sarah esteve,
de fato, no Brasil, o que serve de inspiração para a autora imaginar o encontro fictício entre
Sarah e as três mineiras. Após o obscuro e verídico acidente sofrido por Sarah no Brasil,
elemento que funde fato e imaginação, atribuindo às mulheres fictícias a culpa pelo
acidente real, a amputação inevitável inscreve a atriz em outro universo, a perna ausente
como formadora de um corpo grotesco, transformado, após o embate carnavalesco dos
universos em questão.
Não obstante, as três mineiras, caracterizadas como improváveis índias, sublimamse. Finalmente, atuam. O grotesco realista tão presente em Amélia abre uma brecha para o
aparecimento de uma característica do grotesco romântico. Elas abandonam seu lugar
original, aderem à ribalta. Segundo Bakhtin, o carnaval ignora a arena cênica e a ribalta.
Mas aqui, é a sublimação do grotesco que se torna espetáculo, a inversão carnavalesca e o
rebaixamento grotesco expulsando Sarah de seu lugar original, a arena cênica inscrevendo a
atuação das três mineiras no universo do sublime.
A poesia de Gonçalves Dias, traduzida para o francês, funciona como espelho da
sublime interpretação da grotesca Francisca na seqüência anterior.
privilegia nenhum universo.
Ana Carolina não
As vozes das personagens rivais se fazem ouvir
reciprocamente. Os universos canônico e carnavalizado, sublime e grotesco, se tocam, no
filme, através da poesia. Gonçalves Dias como um elemento do grotesco sublimado,
através de sua obra que eleva o índio, selvagem, a sujeito. Canção de Exílio e I-Juca
105
Pirama traduzem a essência da personagem-título, Amélia, e sua interseção entre dois
universos. Assim, a paleta de cores do grotesco-carnavalizado deixa sua marca em todos os
cantos do filme, sobretudo através do espírito das mésalliances.
3.5 – Bocas e Narizes
Em A Marvada Carne, um importante episódio que ilustra os conceitos
fundamentais do grotesco-carnavalizado é o do nariz do compadre, brevemente comentado
no capítulo anterior. Durante uma caçada, Nhô Quim decepa, acidentalmente, o nariz do
compadre Serafim. A imagem grotesco-carnavalizada que se segue é uma das mais fortes
do filme. O nariz decepado espirra sozinho no chão.
-
Ói o que ce fez, cumpadi!
-
Calma, calma, não foi nada, coisica à toa!
-
Coisica à toa? Acertou meu nariz no meio. To ofendido,
to muito defeituoso. Não ande, não ande que cê pisa no
meu nariz. Meu narizico de estimação. Ai meu Deus do
céu! Cuidado, procura com cuidado que cê pode pisar!
-
Que que cês tão campeando aí ?
-
Olha o cumpadre. Veja o nariz dele como ficou. Tamo
campeando pra mó de ponhá no lugar enquanto tá quente.
-
Vocês não sabe campear nariz. Deixa! (soprando rapé)
-
Ai, não güento, meu Deus, não güento!
106
-
Calma, agora teje quieto. Calma pra escutar. (o nariz
começa a espirrar no chão).
-
Olha o cachorro, segura o cachorro! Ta aqui o tar!
-
Ai, meu narizinho! Vai pegar! Que judiação!
Depois dessa seqüência grotesco-carnavalizada, outra se segue.
Na casa do
compadre Serafim, no momento de tirar o curativo, todos aguardam pra ver se o nariz
“pegou”. A surpresa é grande quando todos notam que o nariz pegou, só que foi colado
invertido, de ponta-cabeça. Na seqüência seguinte, Nhô Quim comenta:
Eu ficava admirando aquilo. O nariz do Serafim que tava
bonito, por ser fora dos outros!
Aqui, a definitiva inversão do belo e a valorização da imagem grotesca. Ao analisar
a obra de Rabelais, Bakhtin nos fala sobre esse despedaçamento do corpo.
Na base dessa dissecação carnavalesca e culinária, encontrase a “imagem grotesca do corpo despedaçado” (BAKHTIN,
1993: 168).
Em Carlota Joaquina, o personagem de D.João é caracterizado como grotescamente
feio, o que comprova a exclamação de Carlota para sua acompanhante, em prantos, ao vê-lo
pela primeira vez:
Carlota: Francisca, o infante é completamente diferente. Que
narigão!
Já em relação à personagem-título, isso vai aparecer de maneira concreta no
momento em que ela se olha no espelho e descobre ter a face coberta por pelos. A partir
dali, ela terá que conviver com o grotesco evidente. A ausência do amante, e do sexo, tira
de Carlota seu elemento fundamental, traço principal de sua personagem.
107
Em Amélia, para além de bocas e narizes, a própria beleza física da atriz que
interpreta Sarah, Béatrice Agenin, ressalta a aparência grotesca das três mineiras, Myriam
Muniz, Camila Amado e Alice Borges, todas de traços fortes, narizes e bocas acentuados
em concordância com a imagem grotesco-carnavalizada do corpo.
A soma do grotesco-carnavalizado de cada uma dessas personagens promove
momentos hilários, como quando Carlota resiste à investida de João na noite de núpcias.
Ela arranca um pedaço da orelha de João com os dentes. A imagem mostra a imensa boca
aberta de Carlota, boca grotesca, aberta para o mundo, devoradora.
3.6 – Animalização
Em A Marvada Carne, na seqüência seguinte àquela em que Nhô Quim e Carula
semeiam a terra, eles fazem uma dupla colheita: a do milho e a dos filhos que haviam
plantado, enquanto Nhô Quim fala da lei da vida, plantar e colher, nascer e morrer,
princípio do material e corporal, do grotesco-carnavalizado, também presente na
animalização dos filhos.
Passou um ano e nasceu nossos dois filhos gêmeos. Uma
fêmea pra mandar na casa e um macho pra mandar no
mundo.
Nessa importante passagem, a analogia que Nhô Quim faz entre seus filhos gêmeos
e o mundo animal acrescenta uma característica do grotesco-carnavalizado – a
animalização.
108
Quando Carlota arranca um pedaço da orelha de D. João, um close de Carlota, no
momento do ataque, é acrescido do som de um animal. A princesa é, então, animalizada.
A animalização de Carlota acontece mais de uma vez no filme, como na seqüência
em que, já na colônia, recebe seu ex-amante Fernando em seu quarto. A esposa deste o
segue e invade o quarto da rainha. Carlota, então, começa a se movimentar como um touro,
arrastando o pé no chão, enquanto o som de um animal e a música, somada a gritos de
“olé”, compõem o quadro. A animalização amplia o enfoque grotesco-carnavalizado do
filme.
D.João também tem seu momento de animalização. Após terem sua casa confiscada
em benefício da corte de D.João, Custódia e o pai têm que se contentar com uma casa em
ruínas onde deverão se acomodar. Logo encontram porcos num canto da casa, e o pai, ao
comentar que se trata do segundo “ponha-se na rua do dia”, passa a chamar o porco pelo
nome do rei: Ô, D. João! Fica à vontade! A casa é sua!
Em outro momento de A Marvada Carne, numa rixa entre Carula e sua estátua de
Santo Antônio, um detalhe da estátua mostra o santo com a sobrancelha levantada, como
que comentando as variações de humor da donzela. Ainda sobre a imagem do santo, entra
o som de um porco sendo abatido, antecipado da seqüência seguinte, o que faz a
profanação, que se desenrolou durante as seqüências anteriores, chegar nas raias da
animalização.
E também em Amélia, quando a clássica Sarah se apresenta para dar condolências às
irmãs cambuquirenses, um porco é colocado em seus braços. Seu discurso de condolências
se confunde com os grunhidos do animal, o que, se não trata de animalizar Sarah, a destitui
de seu lugar para inseri-la no universo do grotesco-carnavalizado, e manchar sua fala com o
som do animal sujo sobre seu ventre.
109
3.7 –Do Diabo
Em A Marvada Carne, Carula faz Nhô Quim beber água de um copo para que ela
possa, depois, beber desse mesmo copo e descobrir os segredos dele. Nhô Quim confirma.
Hoje em dia, num sei, né? Porque hoje em dia as coisa anda
tudo muito diferente. Mas naquele tempo, eu posso garantir
que quem bebesse no mesmo copo de um estrupício qualquer
descubria o segredo dele. Ah, descubria mesmo.
Depois, Carula toma banho no rio, nua, afastando os peixes, continuando o desfile
de crendices que marcam a presença do universo popular no filme. Rio que moça donzela
toma banho pelada nunca mais dá peixe, diz Nhô Quim (para seu cachorro...).
O povo do arraial aparece na construção da casa de pau-a-pique de Nhô Quim, ou
mesmo na festa da qual participam Tonico & Tinoco. Há uma valorização desse universo,
tudo mostrado com uma beleza ingênua e natural. Pés no chão, palmas, dança.
Como um desdobramento das crendices e do registro do universo popular que A
Marvada Carne promove, surge a figura do diabo e de sua “parentáia”. O primeiro deste
leque é o Curupira. Nhô Quim está dormindo quando chega o Curupira e lhe pede fumo.
Saci, lobisomem, mãe d´água, curupira e toda a parentaia do
satanás gosta de fumo. A gente grada eles dando fumo, um
cigarro preles pitá ou mascá. E eu tava sem fumo...
Aqui, manifesta-se o princípio cômico do filme, quando Nhô Quim engana o
Curupira oferecendo fumo do seu cachimbo/espingarda. Após atirar na boca do Curupira,
110
grotescamente caracterizado, este diz que o fuminho é fraco, mas inté que é bom de gosto.
Essa passagem inscreve o filme no território do cômico-popular.
Ao chegar à casa de Nhá Tomaza, quando esta abre a porta, Nhô Quim vê um gato
preto passar. A presença do diabólico continua, mas toda a parentáia do satanás que Nhô
Quim menciona no episódio do Curupira se apresenta sempre num tom alegre.
O episódio derradeiro é a aparição do próprio diabo. Ainda que toda a parentáia do
satanás já tivesse surgido antes, do Curupira ao gato preto, aqui é ele quem aparece, em
pessoa.
Nhô Quim parte, deliberadamente, para um encontro com o diabo a fim de
negociar uma galinha preta e conseguir um dinheiro para viajar e realizar o sonho de comer
carne de boi. Nhá Tomaza lhe explica o que deve ser feito.
Tome tenção no que vou lhe dizê que é pra não errar e fazê
tar quizame. Sexta-feira proxi, meia-noite, sem fartá, nem
sobrá, ocê pega uma galinha preta e leve lá na encruzilhada
das cruz do mato dentro. Conhece quár qui é? Ocê teje
sereno, sem medo de nenhuma qualidade.
Seguindo as orientações de Nhá Tomaza, Nhô Quim espera pelo diabo, mas é
abordado por uma moça que lhe pede a galinha para matar a própria fome. A moça,
naturalmente, é o diabo disfarçado. A própria argumentação do diabo, como estratégia de
convencimento, se dá pela necessidade de comida. Mas a fome de Nhô Quim é mais forte,
e ele termina por descobrir o embuste. A caracterização do diabo é extremamente cômica:
os dentes falsos, a distorção da voz, o rabo artificial – o diabo que ao invés de colocar
medo, provoca o riso. Não é outro o diabo próprio ao grotesco-carnavalizado.
Quando Carlota é animalizada em sua noite de núpcias com D.João, o padre
exclama sonoramente: Essa menina é o demônio! A comparação nos remete a tradicional
111
relação que o demônio estabelece com o sexo feminino. Luiz Mott nos lembra, em sua
abordagem da demonologia, que, tradicionalmente, a mulher é um instrumento do demônio
(MOTT, 1988: 123). A demonização de Carlota segue um princípio básico que atrela o
sexo feminino à imagem do capeta. Esta seqüência de Carlota, assim como as citadas da
Marvada, são provocadoras do riso e apresentam a figura do diabo própria do grotescocarnavalizado.
3.8 – A Comida e o Sexo
Em A Marvada Carne, a terra é muito presente. Na seqüência em que Nhô Quim e
Carula semeiam a terra, o sexo está também representado. Nhô Quim faz um buraco no
solo, Carula joga a semente e fecha o buraco com os pés.
A premissa da história, aquilo que move Nhô Quim a sair do seu lugar por duas
vezes, já promove sua inserção no princípio do material e corporal. Num breve prólogo,
antes da apresentação, vemos o dia-a-dia de Nhô Quim. Ele acorda numa cama de palha ao
lado do cachorro, acende o fogo, toma café, trabalha a terra, come com a mão, anda entre as
galinhas. Enquanto isso, sua voz, em off, anuncia a proposição inicial.
E foi por esse tempo que arresorvi ir simbora daqueles ermo,
na batida certa de duas coisas: uma muié que cuidasse de
mim e cumê carne de boi!
O sexo e a comida motivam a viagem de Nhô Quim em busca de seu sonho
grotesco-carnavalizado.
112
Há em A Marvada Carne um registro cuidadoso de uma realidade agonizante. O
próprio linguajar, uma das estratégias provocadoras do riso no filme, tende a ser atenuado
nas diferenças que mantém com outras regiões, dada a presença massiva da televisão e de
outros suportes globalizantes, mas ausentes no filme, como se o universo dos personagens
se mantivesse isolado até o êxodo final que os leva para a cidade. Questões como essa
parecem estar numa das camadas possíveis de leitura do filme. A crítica se faz pelo riso da
situação, até mesmo na motivação principal de Nhô Quim, que move céus e terra, mas
também o inferno, para ter acesso ao que é tão comum em regiões mais desenvolvidas do
Brasil, a carne de boi. O desejo pela comida e a obstinação de Nhô Quim nos remetem ao
grotesco-carnavalizado.
No entanto, Nhô Quim descobre que seu sonho não seria tão facilmente realizado.
Mas uma coisa que fiquei sabendo naquele dia mesmo é que
no bairro da Véia Torta também era muito difícil de se ter
carne de boi pra comer...
A questão da comida (ou falta de) é mostrada com muito humor. Os personagens
são motivados pela atração que sentem pela carne. Ao ouvir o berro do porco que Nhô
Totó vai matar, Nhá Tomaza corre para garantir um pouco da carne.
Tará bom de gosto como tá bom de berro?
Em sua casa, Nhô Totó divide o queijo que antes escondera de Nhô Quim. A
comida sempre em primeiro plano, denotando a presença do grotesco-carnavalizado.
Durante as provas que Nhô Totó inventa para permitir o casamento de Nhô Quim com
Carula, uma das questões colocadas aponta mais uma vez para a presença desse universo.
- A derradeira questão: quantas pena é que tem esse bicho, a
galinha?
113
-
Ara, é tanta pena e peninha. Eu mesmo nunca contei.
-
As mesma pena do homi: a morte, a sede e a fome.
Sem conseguir se livrar das provas, Nhô Quim e Carula decidem fugir para se
casarem. No caminho, comem rapadura com farinha. Casam-se. As impressões digitais
substituem as assinaturas no contrato de casamento. No retorno ao Arraiá da Véia Torta, é
pela comida que se dá o reencontro do casal com Nhô Totó e Nhá Policena. Enquanto
comem, Nhô Quim entende que o boi era uma mentira, ou melhor, conforme explica a
família de Carula e os moradores do arraial, numa linguagem de documentário que provoca
um efeito cômico, tratava-se do Boi Barroso, que não queria ser comido, uma lenda local.
É curioso notar que o próprio título evoca um referencial do grotesco-carnavalizado,
a carne. Em sua origem etimológica, o carnaval pode se originar do termo carne vale
(adeus carne!) ou de carne levamen (supressão da carne)81. A carne situa-se em lugar
privilegiado dentro do rebaixamento grotesco. Os elementos do grotesco-carnavalizado
estão presentes, aqui, de maneira visível.
Basta para isso estarmos cientes das
características desse grotesco-carnavalizado, inversões, mésalliances, rebaixamento,
diabos, partes do corpo, imagens grotescas, para vermos A Marvada Carne pelo prisma dos
conceitos bakhtinianos, um dos melhores exemplos dessa tradição no cinema brasileiro.
Na cidade grande, Nhô Quim enfrentará mais uma vez a fome, assistirá pela
televisão imagens de um boi zebu82, ficará a espreita de um carregamento de carne que
81
Eis a referência à origem do termo “carnaval” que consta da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultural:
Alguns fazem derivar C. de “carne vale” (adeus carne!) ou de “carne levamen” (supressão da carne),
expressão originada no título dado por S. Gregório Magno (Séc VI) ao domingo anterior à quaresma
“dominica ad carnes levandas”. Assim, da abstinência da carne, característica durante séculos do tempo
quaresmal, originou-se, segundo alguns, o termo que designa as divisões que o antecedem. (p.1122).
82
Segundo o dicionário online wikipédia, o boi zebu é um bovino da subespécie Bos taurus indicus,
apelidado por sua característica marcante de boi de corcova. A "corcova" é também chamada giba ou cupim
(www.wikipedia.org).
114
chega num açougue, sofrerá um golpe do malandro que lhe promete um boi “picadinho” e
some com o dinheiro. Depois, num saque a um supermercado, Nhô Quim conseguirá fugir
com uma peça de carne, correndo pela cidade, por entre os carros.
No final, a concretização do sonho de Nhô Quim. A família, Carula e os filhos já
crescidos, em meio a uma população de baixa renda, num bairro favelizado da grande São
Paulo, saboreiam, ao lado de Nhô Quim, um idealizado churrasco. A celebração e união
acabam por se dar pela comida, pela carne tão sonhada durante toda a jornada de Nhô
Quim. Chega ao fim o período do jejum quaresmal.
Em Amélia, o sexo e a comida predominam em diversos momentos, sempre
dialogando com o referencial clássico imposto pela figura de Sarah. No teatro, a atriz
chama as cambuquirenses para comer. O prato principal é o porco que fora dado de
presente. A imagem do banquete carnavalesco se torna insuportável para Sarah. As três
mineiras comem avidamente com as mãos, e se irritam com Sarah que insiste no uso de
garfo e faca, sinal de civilidade. O banquete acaba em discussão e gritaria. No final,
Francisca solta um sonoro arroto.
O exagerado apetite sexual de Carlota e de sua mãe segue o princípio do baixo
material e corporal.
O rebaixamento se dá na medida em que as personagens são
“definidas” a partir de sua sexualidade. O narrador enfatiza do que Carlota é capaz:
Carlota era um dragão, sexualmente falando. Ela teve muitos
amantes, muitos mesmo. Ela podia devorar todos como um
monstro louco.
As mulheres passam as mãos no colo ostentando o desejo pulsante. É assim que
vemos, pela primeira vez, a mãe de Carlota. Sua expressão é de prazer intenso, seu gestual
é lânguido, como se estivesse prestes a praticar sexo com alguém. O mesmo acontece com
115
Carlota. Quando Custódia, que se torna ajudante de Carlota na colônia, avisa a rainha sobre
o significado de receber rosas vermelhas, Carlota leva a mão ao seio e passa a acariciá-lo
por um momento. E quando se prepara para embarcar para o Brasil, ela queima vários
pertences, mas salva um utensílio dourado em forma de pênis, abraçando-se a este. O tom
das interpretações é anti-naturalista.
Na apresentação dos personagens, o narrador registra os traços do grotescocarnavalizado. A apresentação da mãe de Carlota salienta o apetite sexual, herdado pela
princesa.
E a mãe dela era incrível. Maria Luisa de Parma, sangue
italiano e um imenso apetite sexual que invadiu a corte do rei
Carlos III de Espanha.
Aliás, essa paixão resulta em alguns momentos importantes em nossa análise. Além
da já comentada seqüência da animalização de Carlota diante da esposa de Fernando, há
também o encontro dos amantes no velório de D. Maria. O apetite sexual de Carlota é
maior que a morte. Enquanto caminha até Fernando, durante o velório e na frente de todos,
ouvimos uma música espanhola típica de tourada. Quando ela conhece Fernando, a música
usada é Tico-tico no fubá, que traz o Brasil, junto ao negro viril, “para dentro” de Carlota.
São raras as vezes em que D.João aparece sem estar comendo. Em alguns dos
momentos mais importantes, ele saca uma coxa de galinha e a devora avidamente, inclusive
quando decide o que fazer em relação a Napoleão. Essa caracterização se estende a toda
corte portuguesa. Quando Carlota chega a Portugal, um banquete, imagem própria do
universo grotesco-carnavalizado, é servido.
Em torno da mesa, nobres famigerados
devoram a comida, pegam a comida com as mãos, arrotam e peidam. Assim é D.João,
faminto, eventualmente doente, e considerado feio por Carlota.
116
Mas é preciso notar que as características grotesco-carnavalizadas de D.João VI e
Carlota Joaquina são provocadoras do riso. Nelas se apóia boa parte da comicidade do
filme. Feiúra, comilança, sexualidade não são enfocados como elementos desabonadores.
Antes, eles humanizam alegremente a figura dos reis, promovendo uma inversão grotescocarnavalizada.
Nesse sentido, o substrato material e corporal da imagem
grotesca (alimento, vinho, virilidade e órgãos do corpo)
adquire caráter profundamente positivo.
O princípio
material e corporal triunfa assim através da exuberância
(BAKHTIN, 1993: 54).
3.9 – Inversão e Rebaixamento
A História, em Carlota Joaquina, participa ativamente na construção de um mundo
às avessas. Naturalmente, os elementos que compõem a trama do filme foram extraídos de
fatos históricos e devidamente dramatizados e carnavalizados. No entanto, devemos notar
que esse capítulo da nossa história, transcrito para a tela, serve como primeiro símbolo de
uma cosmovisão carnavalesca.
O que vemos é a história de um rei que abandona a
metrópole para se assentar na colônia, no exótico tropical que o Atlântico escondia. Ao
desrespeitar o bloqueio continental que Napoleão havia imposto à Europa com a finalidade
de enfraquecer a Inglaterra, Portugal escreve a história de sua colônia da América de
maneira ímpar, “destronando seu Momo”, tirando-o de seu lugar com a sua vinda para a
colônia.
117
Vale dizer que, no texto e no contexto, a colônia portuguesa na América inicia uma
nova fase. Elevada à condição de Reino e em seguida tornando-se Império, é certo que a
vinda da corte para o Brasil simboliza o fim do antigo e o início do novo, elemento do
grotesco-carnavalizado.
O filme de Camurati recebeu diversas críticas por rebaixar, inverter, carnavalizar a
História do Brasil. Se comparado com o famoso filme de Carlos Coimbra, que começa
mais ou menos onde termina Carlota, as diferenças se tornam gigantescas. Independência
ou Morte83 foi realizado com o intuito de satisfazer o afã mais nacionalista, reproduzindo
uma certa imagem da independência, épica, limpa, heróica. A reprodução do quadro de
Pedro Américo na seqüência da Proclamação da Independência, vinculação intertextual que
merece um estudo específico, e sua inserção no ambiente ufanista do regime militar,
colocam Independência ou Morte em posição diametralmente oposta a de Carlota
Joaquina. A crítica negativa que se fez a Carlota pode ser percebida na passagem abaixo,
escrita por Ronaldo Vainfas, professor de História da UFF.
Conta-se uma história com erros de todo tipo, deturpações,
imprecisões, invenções - coisa que se agrava ainda mais por
ter a diretora muitas vezes reiterado, em entrevistas, que fez
pesquisas exaustivas sobre Carlota e seu tempo para embasar
o roteiro. (...)
A Carlota Joaquina, bem como a própria história do Brasil
retratada no filme, não passa de caricatura, a meu ver, de
mau gosto (VAINFAS, 2001: 230; 235).
83
Produzido em 1972.
118
Conforme apontam Sodré e Paiva, o belo e o feio são peças fundamentais na
definição geral do termo mau gosto. Trata-se de observar a desarmonia, a ausência do belo,
a atração pela imagem invertida, no sentido carnavalesco, e pelo rebaixamento, no caso, da
imponência histórica presente em filmes, como o de Coimbra, e em diversos livros
didáticos. A seguinte observação feita por Sodré e Paiva nos permite pensar que o mau
gosto mencionado por Vainfas pode inscrever Carlota no âmbito do grotescocarnavalizado.
com referência freqüente a deslocamentos escandalosos de
sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do
corpo, fezes e dejetos – por isso, tida como fenômeno de
“desarmonia do gosto” ou “disgusto”, como preferem estetas
italianos – que atravessa as épocas e as diversas
conformações culturais (SODRÉ; PAIVA, 2002: 17).
Vainfas se referia a declarações de Camurati, como a que encontramos no livro de
Lúcia Nagib sobre o “cinema da retomada”, que reúne entrevistas de cineastas que atuaram
nos anos 90. Camurati afirma:
Para fazer “Carlota Joaquina”, formei uma biblioteca
enorme sobre o período. Li livros portugueses, livros com
características do Rio de Janeiro e autores que enfocaram só
Carlota (...).
O levantamento durou um ano até que eu
começasse a escrever (NAGIB, 2002: 146).
A crítica desabonadora de filmes carnavalizados como Carlota é muito comum aos
que exigem do filme histórico um caráter de “verdade” impossível de se conseguir, e a
nosso ver, desinteressante de se buscar. Isso porque, mesmo o maior dos épicos, o filme
119
histórico de mais acurada pesquisa, permanece como a visão de alguém sobre um
determinado assunto ou período. Parece que a análise do filme histórico precisa avançar o
que, no campo teórico, o documentário vem avançando nas últimas décadas. Assim como
hoje é difundida a idéia de que o documentário é um discurso, pressupõe a visão de mundo
de seu autor, e que a estratégia de se fechar o documentário como suporte de uma verdade
única pode ser questionável, o filme histórico carece de uma teoria que o liberte
irremediavelmente do jugo da verdade e da reconstituição de época. Carlota Joaquina é,
sim, baseado em fatos históricos. O que incomoda os observadores que tomam como seu
lugar a História é, na verdade, a comicidade, a inversão carnavalesca, o rebaixamento
grotesco presentes no filme, até porque muitos desses filmes se apóiam numa pesquisa
acurada, como o próprio Carlota. Randal Johnson percebe nos críticos de Xica da Silva
essa mesma determinação em apontar ausência de pesquisa histórica sem se considerar a
existência de fontes, revelando que o que há, na verdade, é uma resistência ao tom
grotesco-carnavalizado da obra.
Finally, Diegues is accused of not being historically accurate,
a strange accusation considering the dearth of historical
material concerning his subject (JOHNSON, 1995: 221-22).
Um dos mais importantes episódios de A Marvada Carne na caracterização do
grotesco-carnavalizado é o da relação entre a principal personagem feminina, Carula, e sua
estátua de Santo Antônio. Aqui, é explicitado o princípio do rebaixamento, dado no
tratamento de Carula à estátua com a qual ela entra, constantemente, em conflito. A música
amplifica esse rebaixamento84. Eis a transcrição das três estrofes contidas no filme:
Santo Antônho venerado
84
Trata-se da música Apuros de um santo casamenteiro, de Wanderley Martins e C. A. Soffredini.
120
Meu Santinho namorado
Me ajuda no que ta perdido
Me ajuda a encontra um marido.
...
Eu fui no mato corta lenha
Santo Antônho me chamou
Se santo que é santo chama
Que fará um pecador?
...
Santo Antônho me piscou
De cima do seu altar
Mas óia o maroto do santo
Querendo me namorar
Cada uma das estrofes humaniza o santo atribuindo-lhe ações ligadas ao sexo, ao
coito. Meu santinho namorado, Santo Antônho me chamou (que fará um pecador?), Santo
Antônho me piscou, o maroto do santo querendo me namorar...
profanação carnavalesca de que nos fala Bakhtin.
Está completa a
O santo, através da música, fica
definitivamente atrelado à prática sexual. Além disso, o tratamento que lhe dá Carula é
igualmente profanador. No primeiro plano da seqüência, ela está agarrada ao tronco de
uma árvore pegando flores para Santo Antônio. Ao descer da árvore e mostrar as flores
para a estátua, começa sua estratégia de convencimento, que chegará à tortura logo em
seguida.
Ai, aqui meu santinho, num é uma lindura? Fala a verdade!
121
Óia, ocê bem que viu a jurema que deu pra apanhar, num
viu? Entonce...
Agora, não está também na hora do senhor cumprir com sua
obrigação de santo ?
Enquanto Carula fala, um detalhe da estátua nos faz entender que o santo vê e ouve.
Vemos Santo Antônio com aspecto sério, ouvindo atentamente. No plano seguinte, Carula
está na beira do poço pegando água, e seu fiel companheiro, a estátua do santo, está na
borda. Ela continua sua conversa e sua estratégia de convencimento.
Afinal de contas, meu santinho, que ocê ta esperando, meu
santo? Está esperando que eu fique feia, veia que nem um
urutau, pa mó de nenhum perário di atoa querê ponha os óio
por riba deu? É? É, santinho? Ara!
O tratamento dado é propositadamente coloquial. O uso do “você” passa a ser
constante. O santo é possuidor de vontade própria, mais uma vez humanizado. Afinal, o
que ele está esperando? O balde, que Carula apoiara na borda do poço, cai e ela entende
imediatamente que se trata de uma resposta malcriada do santo. O público também, já que
um detalhe da estátua revela o rosto do santo, transformado, sorrindo. Em seguida, na beira
do riacho, onde Carula está lavando roupa, ela acaba partindo para a agressão.
Eu não vou mais lhe trata com essa melúria toda não, viu
santinho! De hoje em diante, ocê vai sabê bem quem é essa
fia de meu pai. Qué vê?
Carula passa a executar um mecanismo comum de tortura, o afogamento. A câmera
mostra o santo submerso e, concretização das estratégias de humanização do santo, a
estátua solta borbulhas. O santo respira. Não é apenas o tratamento que Carula lhe dá que
122
o humaniza, mas a proposta mesma do filme, que o insere no universo do grotescocarnavalizado, em que a profanação, a humanização, a inversão e o rebaixamento passam a
figurar em primeiro plano.
Quando Carula rompe definitivamente com o santo, no oratório que fizera para ele
em seu quarto, as estratégias de tortura continuam. Ela lhe tira as flores, as velas, e termina
por atirar o santo pela janela.
Olha aqui, o que eu chego a lhe dizê, num tem voltinha na
ponta não, viu? Vai e fica! Eu já tô meu santo, pras turina
com você, tá entendendo? Eu já tô pras turina com esse seu
ar de tolo, com esses seus óio granado aí, e marido que é bão,
meu santo, neca!
Ocê qué sabe do que mai? Ocê qué sabê? Ói aqui, meu
santinho! Santinho! Abasta da sua luzinha aqui, ó! Abasta de
toda essa luzinha que eu venho lhe acendendo por esses dois
ano, viu, meu santo? Abasta das sua florzinha, viu? Chega!
Ai, meu Deus, me segura!
E abasta de Santo Agostinho tumbém, viu?
Mas a estátua de Santo Antônio que Carula atira pela janela cai na cabeça do
“vindouro”, futuro marido de Carula, o que recoloca o santo no seu devido lugar.
É interessante notar que a própria postura da personagem feminina, Carula, já é por
si uma inversão. Ela parte para o ataque e passa a abordar Nhô Quim. Sem sucesso, volta a
agredir o santo.
123
A culpa é sua, viu? Me arranja o dito cujo e já cuida de tá
mai mió de bão, né? E eu que me arranje suzinha a mó de
laçá o guarampa.
Voltando a Carlota Joaquina, a inversão que podemos notar é a da própria
dessacralização da história oficial. O modo como vemos os personagens, feios, sujos e
malvados, como aponta abaixo Amir Labaki, serve para nos dar a chave da leitura do filme
de Camurati. Carlota Joaquina dessacraliza a história ao carnavalizá-la.
Todos os estereótipos negativos sobre a presença da família
real portuguesa se concentram em tom de comédia-bufa no
filme. São todos feios, sujos e malvados, a começar de D.
João, um glutão omisso, e sua esposa, Carlota Joaquina, uma
bruxa adúltera que, ao partir, sequer o pó do Brasil quer
levar nos sapatos (LABAKI, 1996)85.
Para além dessa observação, a instauração do grotesco-carnavalizado se dá, de fato,
na História, pelas estratégias de inversão e rebaixamento.
O filme é rico em exemplos da presença do grotesco-carnavalizado. Quando a corte
atravessa o Atlântico, a câmera não se furta a registrar o vômito dos reis. A chegada ao
Brasil é a inversão do que se pode atribuir como sendo o imaginário do encontro. Os reis
estão desgastados, um turbante improvisado esconde os piolhos de Carlota, o que será
traduzido como moda por Custódia, personagem que parodia a rainha. D. João parece
esvair-se. Carlota demonstra um nojo dos nativos que só será revertido quando de sua
paixão pelo negro Fernando.
85
O fragmento do texto citado foi publicado na Revista Teoria & Debate, nº 31 - abril/maio/junho de 1996, e
está disponível no site: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=2107
124
Cabe, ainda, ressaltar o caráter bufão de D.João VI. Ao bater com ossos de galinha
nos instrumentos e buscar entoar a sonoridade encontrada, ao interromper um passeio para
“obrar”, quando conversa normalmente, entre fezes e peidos, com sua filha, ao devorar sem
parar as coxas de galinha que lhe servem, o rei é constantemente destronado, rebaixado de
seu lugar de soberano. O medo que lhe assola quando dele se aproxima o trono promove
uma inversão de sua imagem de rei. Na cama, ele se debate de medo, com uma alegórica
coroa ao seu lado. A coroa traz para o quadro todo o universo real, enquanto João titubeia
da maneira mais infantil e humana. Assim, o rei como bufão, aliado ao processo de
coroação-destronamento, inscrevem o filme definitivamente na ordem do grotescocarnavalizado, na medida em que são
... atos simbólicos dirigidos contra a “autoridade suprema”,
contra o “rei”. Estamos falando do sistema das imagens da
festa popular, representado da maneira mais perfeita pelo
“carnaval” (...).
Nesse sistema, “o rei é o bufão”
(BAKHTIN, 1993: 171-72).
Outro personagem importante é Pedro, futuro imperador do Brasil. Suas roupas são
despojadas. Normalmente, o peito nu está à mostra. Como o pai, Pedro é doente, epilético,
e como a mãe, tem um enorme apetite sexual. Suas crises o jogam no chão, debatendo-se
como D.João em seus momentos de medo.
Parece uma opção deliberada que o
rebaixamento grotesco recaia sobre os principais personagens históricos. Os demais irmãos
de Pedro não recebem nenhum tratamento especial nesse sentido, mas Carlota, João, Pedro
e D. Maria, os mais importantes personagens desse período, são propositadamente
carnavalizados. As características que os definem são o sexo, a comida, a doença e a
loucura. Não obstante, devemos lembrar que, como o narrador indica no final, Carlota
125
morre bebendo e D.João morre comendo, ambos ingerindo, supostamente, veneno. Assim,
esses personagens são fundamentais na localização do grotesco-carnavalizado no filme.
Aqui, vale relembrar o que Bakhtin nos diz sobre o princípio do baixo material e
corporal.
O “alto” é o céu; o “baixo” é a terra; a terra é o princípio
da absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de
nascimento e ressurreição (o seio materno) (...) Rebaixar
consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a
terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo
tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e
semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em
seguida, mais e melhor (BAKHTIN, 1993: 18-19).
3.10 – O Exagero
Reiterando o que diz Cañizal, o exagero se dá em todos os setores de Carlota
Joaquina.. E o exagero é uma categoria fundamental para Bakhtin.
Esse exagero pode ser muito facilmente percebido nos figurinos e adereços.
Quando a jovem Carlota dança para a corte espanhola, uma peruca desproporcionalmente
grande é, ainda por cima, ornamentada com uma inusitada caravela, que balança durante a
dança da infanta. Colares, perucas, leques, figurinos, tudo é aumentado pela lente grotescocarnavalizada do filme. Igualmente exagerada é a reação da corte à erudição de Carlota
126
que, ao ser inquirida, discorre sobre o gênio de Velásquez. O narrador informa que Carlota
sabia também sobre Cervantes, e a Bíblia “de trás pra frente”.
A caracterização de Carlota, com os dentes podres, mais podres do que os dos
demais personagens, as espinhas na testa da jovem Carlota, a imperfeição no andar da
Carlota adulta, em decorrência de um tombo, somados ao apetite sexual da princesa,
compõem uma personagem completamente dentro dos parâmetros do grotescocarnavalizado.
Nesse sentido, a personagem de D. João VI é complementar à de Carlota. A fome e
a doença o cercam, humano em demasia. Como já mencionamos, D. João se debate de
medo no colchão quando os acontecimentos o levam ao trono. Até mesmo esse medo é
exagerado. Ao deixar Portugal, ele precisa ter os olhos vendados, caso contrário o medo lhe
impediria de chegar à embarcação. Antes mesmo de aparecer, o avô de Carlota pergunta ao
marquês português sobre a saúde do então jovem João.
-
E a saúde do infante, como está? Melhorou do sarampo?
-
Melhorou, vossa alteza, melhorou!
Mas piorou
novamente...
-
Me parece, marquês, que a saúde do infante não é muito
boa.
Por fim, vale ressaltar que Carlota se apóia num desfile de estereótipos. Um
momento do filme é particularmente interessante para se pensar essa questão. A visão
exagerada e exótica da América se insere na própria História contada, e não apenas no
imaginário dos narradores ao brincarem sobre a existência de borboletas gigantes no Brasil,
quando D. Maria invade uma reunião com desenhos dos animais que, segundo ela, circulam
pelas ruas do Brasil, afirmando com veemência: Pro Brasil eu não vou! Não vou! Carlota
127
se junta a ela e cospe quando fala da colônia portuguesa, cospe no inglês que está a seu
lado, Lord Strangford. Mesmo os ingleses, quando discutem sobre o risco de Portugal trair
a Inglaterra, são vistos em penumbra, com cachimbos na mão, como se fossem saídos da
Scotland Yard. Nesse sentido, o estereótipo no filme sofre também uma inversão, na
medida em que perde seu anonimato. O estereótipo desvendado passa a ter um uso cômico.
Muito se poderia dizer sobre os estereótipos em Carlota Joaquina. A crítica mais
ácida apontou constantemente a presença desses estereótipos, como se eles não fossem
evidentes, como se precisassem de alguém que lhes revelasse. Talvez a melhor maneira de
se questionar um estereótipo seja como Camurati fez, descortinando o mesmo. Através do
riso, da carnavalização da História, da caracterização grotesca dos seus atores, os
estereótipos ficam evidentes a olho nu, o que engrandece a discussão da própria História e
das identidades compostas por esses estereótipos. Nesse e em outros assuntos, Camurati
parece ter seguido um princípio básico da carnavalização.
A carnavalização não é um esquema externo e estático que se
sobrepõe a um conteúdo acabado, mas uma forma
insolitamente flexível de visão artística (BAKHTIN, 1982:
144).
3.11 – O Linguajar Comum
Na última aparição da jovem Carlota, a profanação, estratégia carnavalesca e
recorrente no filme, é um dos elementos na fala da personagem. Dançando para acalmar D.
128
Maria, Carlota é interrompida pelo padre que retira a rainha dali. Injuriada, Carlota afirma
com veemência:
dane-se a hóstia, Francisca, mas nós vamos terminar a
música, porque boa música não se interrompe.
Em outro momento, ela grita:
La hóstia que los parió!
Os palavrões e o “dane-se a hóstia” são comumente proferidos por Carlota. Esse
linguajar familiar é outro elemento da carnavalização que o filme promove, sobretudo
através da pergonagem-título:
Me cago, me cago, me cago en los franceses! Me cago en
Napoleón!
Em Amélia, antes da primeira aparição de Sarah, Vicentine e Lano abordam as
cambuquirenses. A “comédia de erros” se instala já no primeiro diálogo entre Vicentine e
as irmãs. Batizada pelas mineiras como Dona Vicentinha, marca do rebaixamento que a
falha de comunicação processará a partir daí, Vicentine tenta informar sobre a morte de
Amélia, repete várias vezes o texto em francês antes de decidir-se pelo espanhol.
-
Vicentine: Ella murió!
-
Osvalda: Ela foi pra Muriaé?
Lano comenta a imagem grotesca em que se transformou rapidamente o quarto.
Valha-me, meu bom Jesus de Braga... Que cagada!
Que
cagada! Isso aqui tá muito sujo, hein? Uma nojeira!
O linguajar é outro elemento forte do contraste que se estabelece. Sarah esbraveja,
grita, mas de uma maneira essencialmente teatral, como se fora uma personagem de uma
tragédia grega. Chega a recitar Macbeth, com a qual compartilha uma certa loucura,
129
traduzida por uma profunda crise profissional, mas sem nunca rebaixar o linguajar até o
grosseiro e corriqueiro que marcam as expressões das cambuquirenses.
Ainda em
Cambuquira, Francisca grita a Osvalda, referindo-se à carta de Amélia – abre aí, cagona!
Maria Luiza, na mina d’água, afirma sem pudores que vai ficar lavando a bunda. Ao
assistirem à Tosca, Francisca exclama: Que merda essa coisa de teatro, hein? Inumeráveis
berros e gritos, durante o conflito com Sarah, podem ser ouvidos.
No entanto, o
esbravejamento da atriz é de outra ordem, teatral, clássico, limpo. Às cambuquirenses cabe
um amplo leque de expressões verbais extra-oficiais, grosseiras, mas transgressoras.
Conforme nos aponta Bakhtin,
Graças a essa transformação, os palavrões contribuíram
para a criação de uma atmosfera de liberdade, e do aspecto
cômico secundário do mundo (...) A linguagem familiar
converteu-se, de certa forma, em um reservatório onde se
acumularam as expressões verbais proibidas e eliminadas da
comunicação oficial (...)
Essas
palavras assimilaram a
concepção carnavalesca de mundo (BAKHTIN, 1993: 15).
Numa seqüência impagável, Sarah convida Maria Luiza, vestida de Julieta, a lhe
contar histórias de amor. O problema do idioma não é empecilho para que as duas se
recolham ao balcão do teatro, onde Maria Luiza conta uma de suas primeiras experiências,
na mina d’água, em Cambuquira.
A história da cambuquirense segue estratégias
provocadoras do riso. Enquanto tenta traduzir visualmente para a francesa o assédio que
resultou em ato sexual, Maria Luiza abusa do efeito cômico de seu sotaque, o que acaba por
irritar a atriz. A relação ambígua que Sarah estabelece com Amélia, carícias, beijos no
pescoço, amor platônico, perfeito, não é possível na caracterização grotesca de Maria
130
Luíza, que segue o princípio do material e corporal.
Na mina d’água, ela enfrenta
muriçocas enquanto “ele” desliza a mão pelos seus seios, seu corpo. A imagem grotesca,
cômica, irrita Sarah, ávida por uma história de amor e sexo, mas longe do rebaixamento
próprio ao universo de Maria Luíza. Aqui, a brasilidade está mais uma vez presente através
da música afro-brasileira, o mito da sexualidade do negro invadindo os universos grotesco
e canônico. Várias camadas de leitura oferecidas por Ana Carolina.
-
MARIA LUÍZA - Vocês vão embora mas eu vou ter que
ficar aqui molhando a bunda.
-
FRANCISCA: Olha os palavrão! Olha os modo! Pega
essa pedra aí... Merda de mina!
Procuramos, ao longo deste capítulo, demonstrar como os três longas-metragens
escolhidos são ricos em características do grotesco-carnavalizado.
Nosso esforço em
elencar as passagens aqui citadas cumpre uma função fundamental: aplicar de forma mais
sistemática o conceito de grotesco-carnavalizado que buscamos criar, a partir da junção
irremediável e necessária do grotesco e do carnaval.
Nos capítulos anteriores, a dificuldade em discorrer sobre o carnaval e o grotesco
separadamente foi um desafio necessário para que chegássemos à análise principal deste
capítulo com esses conceitos unidos de forma sólida, como forças que se atraem
naturalmente. O desenvolvimento dos conceitos feitos até aqui apontou sempre para o
enriquecimento de nossa matéria-prima, que é da ordem da inversão carnavalesca e do
rebaixamento grotesco.
O cinema, brasileiro e estrangeiro, demonstrou ser solo fértil para a aplicação dos
conceitos bakhtinianos aqui trabalhos. A análise do curta-metragem Vereda Tropical nos
131
serviu para trazer à tona um dos mais significativos exemplares do grotesco-carnavalizado
em nosso cinema. A localização das características desse conceito nos filmes A Marvada
Carne, Carlota Joaquina, princesa do Brasil e Amélia, permitiu que ampliássemos nossa
visão sobre o alcance das raízes do grotesco-carnavalizado no cinema brasileiro.
Entendemos que este estudo não se esgota aqui, uma vez que o grotescocarnavalizado continua a espera de novas incursões desbravadoras. Faz-se necessário,
sempre, um novo mergulho, que busque localizar em nossa cinematografia o solo firme do
grotesco-carnavalizado, no sentido de fazer emergir produtos culturais de natureza diversa,
comprovando a existência e a permanência desse conceito em nossa vida cotidiana, em
nossa cultura.
132
CONSIDERAÇÕES FINAIS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para quem analisar as teorias contemporâneas do cinema, ficará claro que estamos
cada vez mais distantes das abordagens monológicas, unilaterias, fechadas em si, de um
passado muitas vezes recente. No campo dos estudos culturais, a multiplicação de leituras
e as possibilidades de análise fazem com que reflexões as mais diversas ganhem colorações
vivas e se aprofundem a partir da herança de correntes e teorias do passado, que não
deixam de existir, mas que encontram no panorama do multiculturalismo uma coexistência
enriquecedora com outras teorias antes conflitantes.
Acreditamos que o repertório
conceitual trabalhado por Bakhtin contribui significativamente nesse sentido.
Como
procuramos demonstrar, conceitos como dialogismo, intertextualidade e polifonia atuam
fortemente nos modelos analíticos mais contemporâneos, incidental ou ostensivamente.
Buscamos desenvolver de forma mais acurada os conceitos que nos interessavam
primordialmente. A carnavalização e o grotesco servem para dar uma nova leitura à obra
de arte.
O grotesco-carnavalizado que propusemos tenta, literalmente, atrelar dois
conceitos fundamentais do universo analítico bakhtiniano para garantir um melhor uso do
mesmo, sem omissões ou incorreções tão constantemente notadas.
A partir do uso do grotesco-carnavalizado, procuramos identificar, nos filmes
analisados, passagens e situações que nos permitissem classificar tais filmes como
pertencentes a uma tradição dentro do cinema brasileiro, tradição provocadora do riso,
através da inversão carnavalesca e do rebaixamento grotesco. Esses filmes podem ser
134
pensados a partir de uma filiação à tradição do grotesco-carnavalizado no Brasil. Como
sinalizamos, essa tradição é responsável por uma produção constante e significativamente
marcante da presença do humor e da irreverência no cinema brasileiro.
Naturalmente, a abordagem proposta não se conclui, princípio que deve reger
qualquer análise calcada no repertório conceitual aqui trabalhado. Que ela sirva, pelo
menos, como estratégia para repensar nosso cinema e reafirmar nosso respeito e admiração
pelas obras citadas. Vereda Tropical é um exemplar da criatividade e talento que marcam
nosso cinema, e é prova inconteste de uma tradição de filmes que se apóiam nos conceitos
aqui trabalhados. A Marvada Carne é um filme a ser redescoberto pelas novas gerações.
Sua comunicação e força são inegáveis. É uma obra de uma simplicidade desconcertante,
de um encantamento incrível. Carlota Joaquina é um marco histórico no nosso cinema,
queiram ou não seus detratores. Um filme esteticamente corajoso, se considerarmos que
segue tão de perto os fatos históricos. Uma obra que atesta o fôlego do nosso cinema nos
momentos mais difíceis; aliás, historicamente, sabemos que momentos difíceis nos
renderam peças geniais. Amélia é o desdobramento natural do talento de Ana Carolina,
uma das cineastas mais vivas do nosso cinema. O cinema brasileiro tornou-se mais rico
depois de cada um desses filmes.
Além disso, podemos ouvir ecos de outros momentos do cinema brasileiro nos
filmes analisados. Como afirmamos durante o trabalho, o D.Pedro desenhado por Carla
Camurati dialoga com o D. Pedro retratado por Carlos Coimbra. Nhô Quim, o herói às
avessas do filme de André Klotzel revive a essência jeca de Mazzaropi, e o encontro das
irmãs grotescas com a artista sublime do filme de Ana Carolina projeta toda uma gama de
personagens e tendências do cinema brasileiro, inclusive o espanto europeu de Carlota e a
atitude jeca dos personagens da Marvada.
135
Para Bakthin, tudo o que é expresso por um falante não pertence só a ele. Em todo
discurso/texto/filme é possível ouvir vozes, quase inaudíveis, além da voz do autor, além
das vozes dos personagens.
Essas vozes, anônimas, impessoais, são vozes da nossa
História, que através de oceanos de experiências, nos chegam e nos transformam no que
somos hoje; nossa arte, nossa vida, nossa cultura, nosso cinema.
O enriquecimento que os conceitos aqui trabalhados oferecem à análise da obra de
arte, como um todo, e do cinema, em especial, é diretamente proporcional à complexidade
das camadas de leituras que se abrem a partir deles. A atualidade da obra de Bakhtin reside
justamente nisso. E a possibilidade de ver o cinema brasileiro espelhado em cada novo
filme, mantendo viva a sua própria tradição, e não mais dividido em blocos que se negam
mutuamente, nos motiva agora, e sempre.
136
BIBLIOGRAFIA
BIBLIOGRAFIA
- ALMEIDA, Jayme de. Marvada carne: uma comédia caipira. In: SOARES, Mariza de
Carvalho e FERREIRA, Jorge. A História vai ao cinema: vinte filmes comentados por
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- ARAÚJO, Hiram. Carnaval: seis milênios de história. Rio de Janeiro: Editora Gryphus,
2000.
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Brasília, 1993.
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Paulo: EDUSP, 2003.
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- GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro
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Paródia. In: Revista Tempo Brasileiro, RJ, n.62, jul/set, 1980
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Paulo: Editora Perspectiva, 1988.
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1995.
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139
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- MATTA, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema
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- MOTT, Luiz. Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. São Paulo: Ícone, 1988.
- NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São
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- SANTANA, Afonso Romano de. Paródia, Paráfrase e Cia. São Paulo: Ática, 2000.
- SODRÉ, Muniz e PAIVA, Raquel. O Império do Grotesco. Rio de Janeiro: Mauad,
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- VIEIRA, João Luiz. Este é meu, é seu, é nosso. Introdução à paródia no cinema
brasileiro. Revista Filme Cultura, n.41, 42, 1983.
140
ANEXOS
142
A MARVADA CARNE
FICHA TÉCNICA
Título Original: A Marvada Carne
Gênero: Comédia
Tempo de Duração: 77 min.
Ano de Lançamento (Brasil): 1985
Distribuição: Embrafilme
Direção: André Klotzel
Roteiro: André Klotzel e Carlos Alberto Soffredini
Produção: Cláudio Kahns, Tatu Filmes
Música: Rogário Duprat
Fotografia: Pedro Farkas
Direção de Arte: Adrian Cooper
Figurino: Maísa Guimarães
Edição: Alain Fresnot
(http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/marvada-carne/marvada-carne.asp)
143
ELENCO
Dionísio Azevedo (Nhô Totó)
Adilson Barros (Nhô Quim)
Fernanda Torres (Carula)
Nelson Triunfo (Curupira)
Regina Case (Mulher Diaba)
Henrique Lisboa (Priest)
Lucélia Maquiavelli (Nhá Tomaza)
Geny Prado (Nhá Policena)
Paco Sanches (Serafim)
Chiquinho Brandão
Tio Celso
Tonico & Tinoco
http://www.webcine.com.br/filmessi/marvcarn.htm
SINOPSE
É um filme divertido sobre a cultura caipira, por onde passam várias figuras de
mitologia
brasileira
como
o
Saci,
o
Tinhoso,
a
Corrupira.
Nhô Quim chega à casa de Sá Carula, seguindo seu desejo de comer carne de boi. A
moçoila, vendo atendidos seus pedidos a Santo Antônio, faz de tudo para convencê-lo a
se casar com ela. Depois de muitas provas, e na esperança de que haveria carne de boi
na festa de casamento, Nhô Quim aceita. Depois de consumarem o fato, ele descobre
que o boi era uma lenda. Então faz um trato com o diabo para conseguir dinheiro para ir
144
para a cidade, onde depois de algumas peripécias, consegue realizar seu sonho.
Usos: para a produção do filme foram feitas extensas pesquisas sobre a vida e a cultura
da roça, incluindo as técnicas construtivas (pau-a-pique), as crendices, as tradições
religiosas e as expressões lingüísticas, que tornam o filme excelente para a discussão
tanto sobre valores culturais e cultura popular quanto para fazer a comparação entre a
cultura regional e a globalizada.
(http://www.moderna.com.br/didaticos/em/filosofia/temas/filme31)
145
CARLOTA JOAQUINA, PRINCESA DO BRASIL
FICHA TÉCNICA
Título Original: Carlota Joaquina, Princesa do Brasil
Gênero: Comédia
Tempo de Duração: 100 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 1995
Estúdio: Elimar Produções Artísticas
Distribuição: Elimar Produções
Direção: Carla Camurati
Roteiro: Carla Camurati e Melanie Dimantas
Produção: Bianca de Felippes e Carla Camurati
Música: André Abujamra e Armando Souza
Fotografia: Breno Silveira
Direção de Arte: Tadeu Burgos e Emília Duncan
Figurino: Tadeu Burgos, Marcelo Pires e Emília Duncan
Edição: Cézar Migliorin e Marta Luz
146
ELENCO
Marco Nanini (D. João VI)
Marieta Severo (Carlota Joaquina)
Ludmila Dayer (Yolanda / Jovem Carlota Joaquina)
Antônio Abujamra (Conde de Mata-Porcos)
Maria Fernanda (Rainha Maria I)
Eliana Fonseca (Custódia)
Beth Goulart (Princesa Maria Teresa)
Thales Pan Chacon (Médico)
Vera Holtz (Maria Luísa de Parma)
Bel Kutner (Francisca)
Ney Latorraca (Jean-Baptiste Debret)
Aldo Leite (Lobato)
Norton Nascimento (Fernando Leão)
Marcos Palmeira (D. Pedro I)
Chris Hieatt (Lorde Strangford)
Carla Camurati
SINOPSE
Um painel da vida de Carlota Joaquina (Marieta Severo), a infanta espanhola que
conheceu o príncipe de Portugal (Marco Nanini) com apenas dez anos e se decepcionou
com o futuro marido. Sempre mostrou disposição para seus amantes e pelo poder e se
147
sentiu tremendamente contrariada quando a corte portuguesa veio para o Brasil, tendo
uma grande sensação de alívio quando foi embora.
(http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/carlota-joaquina/carlota-joaquina.htm)
148
AMÉLIA
FICHA TÉCNICA
Título Original: Amélia
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 140 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2000
Distribuição: Riofilme
Direção: Ana Carolina Soares
Roteiro: Ana Carolina Soares
Produção: Tuinho Schwartz
Música: Paulo Herculano e Nelson Ayres
Direção de Fotografia: Rodolfo Sanchez
Desenho de Produção: Renné Bittencourt
Figurino: Kalma Murtinho
Edição: Ademir Francisco
149
ELENCO
Beatrice Agenin (Sarah Bernhardt)
Marília Pêra (Amélia)
Míriam Muniz (Francisca)
Camila Amado (Osvalda)
Alice Borges (Maria Luíza)
Betty Goffman (Vicentine)
Duda Mamberti (Lano)
Pedro Paulo Rangel
Cristina Pereira
Marcela Cartaxo
Pedro Bismarck
Xuxa Lopes
SINOPSE
Filme de ficção inspirado na visita da atriz francesa Sarah Bernhardt ao Brasil, em 1905.
A atriz (Beatrice Agenin), em crise profissional e pessoal, é induzida por sua camareira
brasileira, Amélia (Marília Pêra), a apresentar-se no Rio de Janeiro. Entretanto, a partir
do desembarque a atriz é obrigada a conviver com as exóticas irmãs de sua auxiliar.
(http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/amelia/amelia.asp)
150
VEREDA TROPICAL
FICHA TÉCNICA
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, adaptado do conto “Vereda Tropical”, de Pedro
Maia Soares
Argumento: Pedro Maia Soares
Produção: Lynxfilm S.A.
Produtora associada: Editora Três
Produtor: César Mêmolo Júnior
Direção de produção: Jeremias M Silva; Yara Nesti; Antônio Cristiano; Sérgio
Mesquita
Direção de fotografia: Kimihiko Kato
Montagem: Eduardo Escorel
Figurinos/ Cenografia: Pedro Nanni
151
ELENCO:
Cláudio Cavalcanti
Cristina Ache
Carlos Galhardo
SINOPSE
Crônica de uma tara gentil, encontro lírico nas veredas escapistas de Paquetá, imagética
verbalização e exposição vergonhosamente impudica das fantasias eróticas, Vereda
Tropical contém a denúncia da vocação genital dos legumes, a inteligência das
mocinhas em flor, o gosto da vida e a suma poética de Carlos Galhardo. Educativo e
libertário (Joaquim Pedro de Andrade).
(http://www.festivaldecinema.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=9)
152
Índice de fotos
- Introdução – Cláudio Cavalcanti em Vereda Tropical
- Capítulo I – Marieta Severo em Carlota Joaquina, princesa do Brasil
- Capítulo II – Fernanda Torres e Adilson Barros em A Marvada Carne
- Capítulo III – Alice Borges, Miriam Muniz e Camila Amado em Amélia
- Considerações Finais – Cláudio Cavalcanti em Vereda Tropical
- Bibliografia – Ludmila Dayer em Carlota Joaquina, princesa do Brasil
- Anexos - Fernanda Torres em A Marvada Carne
153
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