Revista Trimestral de Jurisprudência
volume 208 – número 2
abril a junho de 2009
páginas 449 a 902
Diretoria-Geral
Alcides Diniz da Silva
Secretaria de Documentação
Janeth Aparecida Dias de Melo
Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência
Leide Maria Soares Corrêa Cesar
Seção de Preparo de Publicações
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Seção de Padronização e Revisão
Rochelle Quito
Seção de Distribuição de Edições
Maria Cristina Hilário da Silva
Diagramação: Luiza Superti Pantoja e Rodrigo Melo Cardoso
Capa: Núcleo de Programação Visual
(Supremo Tribunal Federal — Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)
Revista trimestral de jurisprudência / Supremo
Tribunal Federal, Coordenadoria de Divulgação
de Jurisprudência. – Ano 1, n. 1 (abr./jun. 1957)- . – Brasília: Imprensa Nacional, 1957-.
v. 208-2; 22 cm.
Três números a cada trimestre.
Editores: Editora Brasília Jurídica, 2002-2006; Supremo
Tribunal Federal, 2007- .
ISSN 0035-0540
1. Direito - Jurisprudência - Brasil. I. Brasil. Supremo
Tribunal Federal (STF).
CDD 340.6
Solicita-se permuta.
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STF/CDJU
Anexo II, Cobertura
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70175-900 – Brasília-DF
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Fone: (0xx61) 3217-4766
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002), Presidente
Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003), Vice-Presidente
Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989)
Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990)
Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000)
Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25-6-2003)
Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003)
Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004)
Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16-3-2006)
Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006)
Ministro Carlos Alberto MENEZES DIREITO (5-9-2007)
COMPOSIÇÃO DAS TURMAS
Primeira Turma
Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO, Presidente
Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello
Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI
Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha
Ministro Carlos Alberto MENEZES DIREITO
Segunda Turma
Ministra ELLEN GRACIE Northfleet, Presidente
Ministro José CELSO DE MELLO Filho
Ministro Antonio CEZAR PELUSO
Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes
Ministro EROS Roberto GRAU
PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Doutor ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA
COMPOSIÇÃO DAS COMISSÕES
COMISSÃO DE REGIMENTO
Ministro MARCO AURÉLIO
Ministra CÁRMEN LÚCIA
Ministro CEZAR PELUSO
Ministro MENEZES DIREITO – Suplente
COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Ministra ELLEN GRACIE
Ministro JOAQUIM BARBOSA
Ministro RICARDO LEWANDOWSKI
COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO
Ministro CEZAR PELUSO
Ministro CARLOS BRITTO
Ministro EROS GRAU
COMISSÃO DE COORDENAÇÃO
Ministro CELSO DE MELLO
Ministro EROS GRAU
Ministro MENEZES DIREITO
SUMÁRIO
Pág.
ACÓRDÃOS ................................................................................................... 457
ÍNDICE ALFABÉTICO ............................................................................... 881
ÍNDICE NUMÉRICO .................................................................................. 899
ACÓRDÃOS
AÇÃO ORIGINÁRIA 1.517 — MT
Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie
Excipiente: Antônio Alexandre da Silva — Exceptos: Licínio Carpinelli
Stefani, Rubens de O. Santos Filho, Ernani Vieira de Souza, Shelma L. de Kato,
Marcio Vidal, Juracy Perciani, Paulo da Cunha, José Tadeu Cury, Jurandir F.
de Castilho, José Jurandir de Lima, José Silvério Gomes, José Ferreira Leite,
Paulo Inácio Dias Lessa, Leonidas Duarte Monteiro, Mariano Alonso Ribeiro
Travassos e Munir Feguri
Exceções de suspeição opostas em face da maioria dos
desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de Mato
Grosso. Ação penal originária. Ação civil pública. Alegação
de impedimento ou suspeição de magistrados que participaram de julgamento posteriormente anulado pelo Superior
Tribunal de Justiça. Novo julgamento da ação penal originária.
Magistrados que se opõem às argüições de suspeição e impedimento. Necessidade de julgamento das exceções pelo Supremo
Tribunal Federal. Inexistência de parcialidade dos exceptos.
Rejeição das exceções opostas.
1. A competência prevista no art. 102, I, n, da Constituição
Federal se firma, apenas e tão-somente, quando os impedimentos
ou as suspeições dos membros do Tribunal de origem tenham
sido reconhecidos, expressamente, nas exceções correspondentes, pelos próprios magistrados em relação aos quais são invocados; ou quando o Supremo Tribunal Federal, ao julgar as
exceções, após esses magistrados as terem rejeitado, reconhecer
situação configuradora de impedimento ou de suspeição, hipótese em que competirá à Suprema Corte julgar, originariamente,
o processo principal.
460
R.T.J. — 208
2. Alegação de impedimento e suspeição dos magistrados
que participaram do julgamento anulado pelo STJ.
3. Não se pode afirmar que há interesse dos magistrados no
novo julgamento e que eles já possuam convicção formada em relação ao que é imputado ao excipiente pelo simples fato de terem
participado do primeiro julgamento, posteriormente anulado
pelo Superior Tribunal de Justiça.
4. Impossibilidade de inferir-se a parcialidade de magistrados somente porque proferiram decisões em desfavor do excipiente.
5. A prática de atos judiciais, tal como retratados, insere-se
nos poderes do magistrado quanto à condução regular e normal
do processo.
6. A imparcialidade e a isenção da conduta funcional de
magistrados não se alteram em razão de julgamento proferido.
7. Inocorrência de impedimento e de suspeição dos de­
sembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso.
8. Exceções de suspeição rejeitadas.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata do julgamento e
das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, rejeitar a exceção e determinar a baixa dos autos ao Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, nos
termos do voto da Relatora.
Brasília, 8 de outubro de 2008 — Ellen Gracie, Relatora.
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Ellen Gracie: 1. O Ministério Público do Estado de Mato
Grosso denunciou, em 23-7-98, o Promotor de Justiça Antônio Alexandre da
Silva, ao fundamento de que ele teria ofertado vantagem ilícita a um Procurador
da República com o objetivo de convencê-lo a emitir parecer favorável à liberação de TDAs (Ação Penal Originária 44/98, fls. 741-744).
O Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, em 25-8-05, condenou-o
à pena privativa de liberdade de dois anos e três meses, nos termos do art. 333
do Código Penal (fls. 764-786).
Em 7-3-06, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou o mencionado julgamento e determinou a realização de um novo, tendo em vista a
ausência, após a renúncia do defensor do Réu, de sua intimação para constituir
R.T.J. — 208
461
outro advogado ou de indicação de defensor público ou dativo, caso o Réu não
se manifestasse (HC 47.965/MT, fls. 44-51).
Antônio Alexandre da Silva opôs, em 25-4-06, exceções de suspeição nos
autos da Ação Penal Originária 44/98 em face de dezesseis desembargadores do
TJMT, quais sejam, Licínio Carpinelli Stefani, Relator (ES 30.550/06, fls. 286301), Rubens de O. Santos Filho (ES 30.549/06, fls. 272-284), Ernani Vieira de
Souza (ES 30.551/06, fls. 303-312), Shelma Lombardi de Kato (ES 30.552/06,
fls. 314-325), Márcio Vidal (ES 30.553/06, fls. 327-338), Juracy Perciani (ES
30.554/06, fls. 341-352), Paulo da Cunha (ES 30.555/06, fls. 356-367), José Tadeu
Cury (ES 30.556/06, fls. 369-381), Jurandir Florêncio de Castilho (ES 30.558/06,
fls. 383-394), José Jurandir de Lima (ES 30.559/06, fls. 396-407), José Silvério
Gomes (ES 30.560/06, fls. 409-420), José Ferreira Leite (ES 30.561/06, fls. 422436), Paulo Inácio Dias Lessa (ES 30.562/06, fls. 438-450), Leônidas Duarte
Monteiro (ES 30.563/06, fls. 452-465), Mariano Alonso Ribeiro Travassos (ES
30.564/06, fls. 467-477) e Munir Feguri (ES 30.565/06, fls. 479-491).
O Desembargador Licínio Carpinelli Stefani, em 28-4-06, determinou o
encaminhamento conjunto de todas as exceções de suspeição a um mesmo relator, qual seja, o Desembargador Orlando de Almeida Perri, que suspendeu, em
29-5-06, o andamento da referida ação penal.
O Órgão Especial do TJMT, em 28-9-06 (fls. 837-843), rejeitou as exceções de suspeição, decisões que foram anuladas nos julgamentos dos embargos
de declaração opostos pelo excipiente (fls. 494-579). Ao reapreciá-las, em 23-8-07,
o Órgão Especial do TJMT novamente as rejeitou (fls. 787-796 e 844-983).
Rejeitaram-se, em 14-2-08, os embargos de declaração opostos pelo excipiente (fls. 696-701 e 705-734).
2. Paralelamente à tramitação da referida ação penal, o Ministério Público
estadual ajuizou, em 17-3-06, ação civil pública visando à declaração de perda
do cargo público de Antônio Alexandre da Silva (Processo 20185/06, fls. 18-27).
O Relator, Desembargador Licínio Carpinelli Stefani, indeferiu, em 31-3-06,
o pedido de afastamento de Antônio Alexandre da Silva (fls. 26-27).
Em 25-4-06, Antônio Alexandre da Silva opôs exceção de suspeição em
face do mencionado Relator (ES 30.547/06, fls. 29-40).
O Relator da Ação Civil Pública 20185/06, em 28-4-06, determinou o encaminhamento dessa exceção de suspeição ao mesmo relator (fl. 93), qual seja,
o Desembargador Orlando de Almeida Perri, que suspendeu, em 25-5-06, o andamento da referida ação (fl. 114).
O Órgão Especial do TJMT, em 28-9-06, rejeitou a ES 30.547/06 (fls. 140-146),
decisão que foi anulada no julgamento dos embargos de declaração opostos pelo reclamante (fls. 150-154), realizado em 25-1-07 (fls. 172-181).
Ao reapreciar a ES 30.547/06, em 23-8-07, o Órgão Especial do TJMT novamente a rejeitou (fls. 220-230).
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R.T.J. — 208
Rejeitaram-se, em 24-1-08 (fls. 250-253), os embargos de declaração opostos pelo Excipiente (fls. 236-241).
3. Antônio Alexandre da Silva ajuizou reclamação constitucional nesta
Corte (Rcl 5.877/MT) com o objetivo de suspender a tramitação no Tribunal de
Justiça daquela unidade federada das ES 30.547/06, ES 30.549/06, ES 30.550/ 06,
ES 30.551/06, ES 30.552/06, ES 30.553/06, ES 30.554/06, ES 30.555/06,
ES 30.556/06, ES 30.558/06, ES 30.559/06, ES 30.560/06, ES 30.561/06,
ES 30.562/06, ES 30.563/06, ES 30.564/06 e ES 30.565/06, bem como da Ação
Penal Originária 44/98 e da Ação Civil Pública 20185/06.
4. Julguei procedente a reclamação (fls. 985-994) e determinei a suspensão
da tramitação da Ação Penal Originária 44/98 e da Ação Civil Pública 20185/06.
A reclamação foi reautuada como a presente ação originária (AO 1.517/MT).
5. O Excipiente sustenta, em síntese, que os Desembargadores Licínio
Carpinelli Stefani (Relator), Leônidas Duarte Monteiro (Revisor), Rubens de
O. Santos Filho, Ernani Vieira de Souza, Shelma Lombardi de Kato, Márcio
Vidal, Juracy Perciani, Paulo da Cunha, José Tadeu Cury, Jurandir Florêncio
de Castilho, José Jurandir de Lima, José Silvério Gomes, José Ferreira Leite,
Paulo Inácio Dias Lessa, Mariano Alonso Ribeiro Travassos e Munir Feguri,
por terem participado do julgamento da referida ação penal, em 25-8-05, que
condenou-o à pena privativa de liberdade de dois anos e três meses, nos termos
do art. 333 do Código Penal (fls. 764-786), estariam impedidos de reapreciá-la
ou seriam suspeitos para tal.
Aduz que o Desembargador Licínio Carpinelli Stefani, nos autos da ação
penal em apreço, como relator, indeferiu todas as diligências requeridas pela
defesa, rejeitou todas as preliminares aventadas (inépcia da denúncia, ocorrência de cerceamento de defesa, existência de flagrante preparado, atipicidade dos
fatos narrados na denúncia, necessidade de suspensão condicional do processo,
utilização de provas ilícitas, nulidade do auto de apresentação e comunicação de
crime, inexistência de indícios suficientes a ensejar o recebimento da denúncia),
instruiu-a e valorou as provas produzidas, além de atribuir-lhe uma reprimenda
maior que o dobro da pena mínima cominada em abstrato, com o objetivo de
afastar a prescrição.
Argumenta, ainda, que os outros desembargadores citados já possuem
decisão sobre as acusações formuladas no processo em questão, porquanto
votaram pelo recebimento da denúncia, endossaram os indeferimentos de diligências proferidos pelo Relator, Desembargador Licínio Carpinelli Stefani,
rechaçaram as preliminares aventadas pela defesa, valoraram as provas e condenaram o Excipiente.
Assevera que essas circunstâncias tornam inútil qualquer tentativa de a
defesa demonstrar a sua inocência, pois os Exceptos já possuem convicção formada, razão pela qual são suspeitos para atuar na referida ação penal.
Alega, ademais, que o Desembargador Licínio Carpinelli Stefani, Relator
da Ação Civil Pública 20185/06, estaria impedido de instruí-la e julgá-la, dado
R.T.J. — 208
463
que o Ministério Público estadual se baseou nos mesmos argumentos e provas
utilizados na Ação Penal Originária 44/98, motivo pelo qual haveria identidade
entre as duas ações, o que afastaria a imparcialidade do magistrado em questão,
por já ter manifestado juízo de valor em relação às condutas do excipiente, em
25-8-05, estando, portanto, convicto a condená-lo (ES 30.547/06, fls. 29-40).
6. A Procuradoria-Geral da República, em parecer lavrado pela Sub­
procuradora-Geral da República Cláudia Sampaio Marques, aprovado pelo
Procurador-Geral da República, opina pela rejeição das exceções de suspeição
em apreço (fls. 1013-1016).
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. Ressalte-se, preliminarmen­te,
que a competência desta Suprema Corte, prevista no art. 102, I, n, da Constituição
Federal, firma-se, apenas e tão-somente, quando o impedimento ou a suspeição
dos membros do Tribunal de origem tenham sido reconhecidos, expressamente,
nas exceções correspondentes, pelos próprios magistrados em relação aos quais
são eles invocados; ou quando o Supremo Tribunal Federal, ao julgar as exceções, após esses magistrados as terem rejeitado, reconhecer situação configuradora de impedimento ou de suspeição, hipótese em que competirá à Suprema
Corte julgar, originariamente, o processo principal, consoante se infere das
ementas dos seguintes julgados:
(...)
Pressupostos de incidência da regra consubstanciada no art. 102, I, n, da
Constituição – Hipótese de impedimento/suspeição dos membros de Tribunal –
Procedimento a ser observado – Precedentes.
Para que uma causa seja submetida à competência originária do Supremo
Tribunal Federal, com suporte no art. 102, I, n, da Constituição, nos casos de impedimento ou de suspeição de mais da metade dos membros de qualquer Tribunal judiciário, impõe-se que os fundamentos justificadores dessas excepcionais situações de
inabilitação judicial sejam previamente expostos e argüídos, pela parte interessada
(excipiente), perante o Tribunal de inferior jurisdição, a fim de que este, em os apreciando, possa acolher, ou não, a recusatio judicis.
Se os juízes recusados pelo excipiente – desde que constituam mais da metade dos membros da Corte judiciária – vierem a reconhecer a exceção contra eles
próprios deduzida, tornar-se-á lícito admitir, desde logo, a competência originária
do Supremo Tribunal Federal para a causa principal, com fundamento no art. 102,
I, n, da Carta Política. De outro lado, se os juízes que sofrerem a exceção, a ela se
opuserem, a argüição de impedimento/suspeição será julgada, previamente, pelo
Supremo Tribunal Federal. Se este, ao apreciar a pertinente exceção, eventualmente reconhecer a situação configuradora de impedimento/suspeição, caberá à
Suprema Corte, então, com base no preceito constitucional referido, julgar, em
sede originária, a própria causa principal. Precedentes.
(MS 23.682-AgR/MG, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, DJ de 4-8-00.)
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R.T.J. — 208
Competência – Alínea n do inciso I do art. 102 da Constituição Federal –
Objeto – Impedimento ou suspeição. A incidência do disposto na alínea n do inciso I do art. 102 da Constituição Federal não prescinde, no caso de impedimento
ou suspeição, de apreciação do incidente na origem, pronunciando-se os integrantes do tribunal de justiça sobre a pecha.
(...)
(Rcl 685/RR, Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário, DJ de 12-4-02.)
Mandado de segurança contra ato jurisdicional que indeferiu petição ini­
cial de embargos de terceiro. Autos remetidos ao Supremo Tribunal Federal pelo
Presidente de Turma julgadora do Juizado Especial Cível. Competência. CF,
art. 102, I, n, da Magna Carta.
Para configurar-se a competência originária do Supremo Tribunal, pela
citada alínea n, é preciso que haja a manifestação formal, de impedimento ou suspeição, por parte dos membros da Corte de origem, espontaneamente ou por efeito
de ajuizamento da correspondente exceção. Precedentes.
(...)
(AO 1.045-QO/GO, Rel. Min. Carlos Britto, Plenário, DJ de 10-9-04.)
Agravo regimental. Ação originária. Mandado de segurança. Competência
do Supremo Tribunal Federal. Art. 102, I, n, da Constituição do Brasil. Declaração
expressa de suspeição de mais da metade dos membros de Tribunal de Justiça. Lei
13.454/00, do Estado de Minas Gerais. Agravo improvido.
1. O impedimento, suspeição ou interesse que autorizam o julgamento da
demanda pelo STF, na forma do art. 102, I, n, in fine, da CB/88, pressupõem a manifestação expressa dos membros do Tribunal local competente para o julgamento
da causa.
(...)
(AO 1.401-AgR/MG, Rel. Min. Eros Grau, Plenário, DJ de 7-12-06.)
No mesmo sentido foram as decisões proferidas na AO 662/PE, Rel. Min.
Celso de Mello, DJ de 8-3-00, e na Rcl 2.943/MT, Rel. Min. Carlos Britto, DJ
de 2-2-05.
Houve a rejeição da suspeição dos dezesseis desembargadores pelo
Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, razão pela
qual é competente esta Suprema corte para a apreciação das ES 30.547/06,
ES 30.549/06, ES 30.550/06, ES 30.551/06, ES 30.552/06, ES 30.553/06,
ES 30.554/06, ES 30.555/06, ES 30.556/06, ES 30.558/06, ES 30.559/06, ES
30.560/06, ES 30.561/06, ES 30.562/06, ES 30.563/06, ES 30.564/06 e ES
30.565/06, nos termos do art. 102, I, n, da Constituição Federal.
2. Os autos estão devidamente instruídos com todos os elementos necessários para o julgamento nesta Corte das referidas exceções de suspeição.
A matéria é eminentemente de direito, qual seja, decidir se os desembargadores mencionados estão ou não impedidos de julgar a Ação Penal Originária
44/98 e a Ação Civil Pública 20185/06, ou são ou não suspeitos para tal mister, por terem participado do julgamento realizado em 25-8-05, anulado pelo
Superior Tribunal de Justiça.
R.T.J. — 208
465
Passo, assim, a apreciar as exceções opostas por Antônio Alexandre da
Silva.
3. Os arts. 252 e 254 do Código de Processo Penal dispõem, verbis:
Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:
I – tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim, em linha
reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão
do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito;
II – ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido
como testemunha;
III – tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato
ou de direito, sobre a questão;
IV – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim em linha
reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado
no feito.
(...)
Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado
por qualquer das partes:
I – se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles;
II – se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a
processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia;
III – se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou afim, até o terceiro
grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes;
IV – se tiver aconselhado qualquer das partes;
V – se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes;
VI – se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no
processo.
O caso dos presentes autos não se subsume a hipótese alguma daquelas
expressamente disciplinadas na lei processual penal.
Ademais, o fato de os membros do Órgão Especial do Tribunal de Justiça
do Estado de Mato Grosso terem participado do julgamento anterior da Ação
Penal Originária 44/98 não os torna impedidos ou suspeitos para apreciá-la
novamente em decorrência da anulação da condenação do Excipiente pelo
Superior Tribunal de Justiça (HC 47.965/MT), dado que os referidos desembargadores não são interessados diretos ou indiretos na solução da referida ação penal, nem possuem vínculo algum com o excipiente ou com o Ministério Público.
É que não se pode afirmar que há interesse dos desembargadores no novo
julgamento e que eles já possuam convicção formada em relação ao que é imputado ao excipiente pelo simples fato de terem participado do primeiro julgamento, anulado pelo Superior Tribunal de Justiça. A imparcialidade e a isenção
da conduta funcional não se alteram em razão do julgamento proferido.
Quanto ao fato de o Desembargador Licínio Carpinelli Stefani, como relator da Ação Penal Originária 44/98, ter indeferido o requerimento de diligências
e rejeitado as preliminares aventadas pela defesa, além de ter instruído a referida
ação e valorado as provas produzidas, bem como de os outros desembargadores
466
R.T.J. — 208
citados terem ratificado tais decisões do Relator, assevere-se que não se pode
inferir a parcialidade dos magistrados em comento somente porque proferiram
decisões em desfavor do ora excipiente.
A prática dos atos judiciais, tal como acima retratados, insere-se nos poderes do magistrado quanto à condução regular e normal do processo.
Saliente-se, ainda, que, caso o Excipiente venha a ser condenado no futuro
julgamento da Ação Penal Originária 44/98, poderá recorrer e impugnar os pontos mencionados no relatório do presente processo.
Além disso, a jurisprudência desta Suprema Corte se posiciona de forma
contrária ao entendimento externado pelo excipiente, consoante se infere das
decisões proferidas nos seguintes julgados:
Ementa: Habeas corpus. Alegações de cerceamento de defesa, de descum­
primento de decisão do Supremo Tribunal Federal e de impedimento da Câmara
Criminal. Alegações improcedentes.
Não constitui cerceamento de defesa o indeferimento de diligências requeridas pela defesa, se foram elas consideradas desnecessárias pelo órgão julgador
a quem compete a avaliação da necessidade ou conveniência do procedimento
então proposto.
É de repelir-se a alegação de haver sido descumprida a decisão proferida no
HC 69.314. Com efeito, ao deferir o writ em favor do Paciente, esta Corte se limitou a anular o acórdão e determinar que outro fosse proferido após ouvida a defesa
sobre as peças inseridas nos autos pelo órgão acusador. O que determinou a Corte
foi cumprido pelo Tribunal a quo.
Por fim, inocorre qualquer situação de impedimento de a Câmara Criminal realizar o novo julgamento do processo objeto de anulação, porquanto
o inciso III do art. 252 do Código de Processo Penal se refere ao impedimento de
Juiz que, no mesmo processo, mas em outra instância, se houver pronunciado, de
fato ou de direito, sobre a questão, o que, evidentemente, não é o caso dos autos.
Habeas corpus indeferido.
(HC 76.614/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, DJ de 12-6-98,
destaquei.)
(...)
A decisão questionada, em princípio, está em consonância com a jurisprudência desta Suprema Corte, no sentido de que “a suspeição ocorre quando há
vínculo do Juiz com qualquer das partes (CPP, art. 254)” e o “impedimento configura-se quando há interesse do Juiz com o objeto do processo (CPP, art. 252)” (HC
77.622/SC, Segunda Turma, Rel. Min Nelson Jobim, DJ de 29-10-99).
Não se pode afirmar que há interesse dos Desembargadores integrantes
da 13ª Câmara do 7º Grupo da Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo no julgamento do recurso em sentido estrito, pelo simples fato de terem participado do 1º julgamento, anulado pelo Superior Tribunal de Justiça.
A declaração de nulidade de um acórdão, para que outro seja proferido, não
importa, necessariamente, na modificação da competência do respectivo órgão colegiado, ao menos que a nulidade seja decorrente da incompetência dele
ou a da participação de membro impedido ou suspeito, nos termos da lei. Não
foi o que se deu na espécie.
R.T.J. — 208
467
Como bem salientou a Ministra Laurita Vaz, em seu voto, “(...) o julgado do
Tribunal a quo restou anulado tão-somente por falta de intimação do advogado
da defesa para a sessão de julgamento e não em virtude do reconhecimento da
incompetência da Câmara ou de impedimento de seus integrantes”. E continuou:
“Em sendo assim, não há como afastar a competência da 13ª Câmara do 7º Grupo
da Seção Criminal – firmada por ocasião da distribuição eletrônica do recurso (fl.
357) – para a prolação de nova decisão, da forma como entender de direito, desde
que, é lógico, sanada a existência do vício reconhecido no acórdão ora embargado” (fl. 37).
Frise-se, ainda, que a sustentação oral pretendida poderá levar à modificação do entendimento exposto pelos Magistrados, não sendo o caso de declarar-se
o impedimento deles, nos termos do art. 252 do Código de Processo Penal, como
pretendem os Impetrantes.
Ante o exposto, indefiro o pedido de liminar.
(HC 95.708-MC/SP, Rel. Min. Menezes Direito, DJ de 19-8-08, negritei.)
Nesse sentido destaco do parecer da Procuradoria-Geral da República,
verbis:
9. Ao compulsar os autos, não se observa com relação aos exceptos a ocorrência de nenhum dos casos de impedimento ou suspeição previstos no Código de
Processo Penal.
10. Note-se, inclusive, que o inciso III do art. 252 do CPP estabelece o impedimento de juiz que tiver funcionado em outra instância, pronunciando-se, de
fato ou de direito, sobre a questão, o que não se amolda à hipótese da Ação Penal
Originária nº 44/1998, em que os Magistrados da mesma instância reapreciarão a
matéria sobre a qual não existe decisão válida, haja vista a declaração de nulidade
por vício formal.
(...)
11. Quanto à suspeição, o excipiente não logrou êxito em demonstrar que a
conduta dos exceptos se subsumiu a quaisquer das hipóteses elencadas no art. 254
do CPP.
12. Tampouco foram apresentados indícios concretos que coloquem em
dúvida as atuações dos Desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso.
Vale lembrar que pelo simples fato de o Magistrado proferir decisões contrárias ao imediato interesse da parte não se pode presumir sua parcialidade,
mesmo porque o excipiente poderá utilizar-se da via recursal a fim de impugnar tais decisões.
(...)
13. Ademais, a alegação de prévio juízo de valor prejudicial à defesa no novo
julgamento criminal e na esfera cível não passa de mera conjectura acerca da futura atuação dos Magistrados, sem respaldo no ordenamento jurídico pátrio, que
busca garantir a qualidade da prestação jurisdicional ao prever a devida motivação
das decisões judiciais.
14. Forçoso concluir, assim, pela não incidência das causas de impedimento
e pela ausência de demonstração cabal da suspeição dos membros do Tribunal de
Justiça do Estado de Mato Grosso para o julgamento da Ação Penal nº 44/1998 e
da Ação Civil Pública nº 20.185/2006.
(Fls. 1015-1016, negritei.)
468
R.T.J. — 208
Caso se acolhesse o entendimento externado pelo excipiente, ter-se-ia, em
última razão, que concluir que os Ministros do Supremo Tribunal Federal que
participaram do julgamento de uma determinada causa no Plenário desta Corte
não poderiam apreciar, por exemplo, a ação rescisória eventualmente proposta
contra o acórdão anteriormente proferido, o que certamente seria absurdo.
Assevere-se, finalmente, que as instâncias civil e penal são independentes,
razão pela qual entendo que não há impedimento dos referidos desembargadores em relação à apreciação da Ação Civil Pública 20185/06 pelo fato de terem
participado do julgamento da Ação Penal Originária 44/98. Os pedidos são distintos, inocorrendo qualquer hipótese de impedimento ou suspeição.
Concluo, assim, que as exceções de suspeição não merecem prosperar,
devendo o excipiente ser submetido, imediatamente, a novo julgamento no
Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso.
4. Ante o exposto, rejeito as ES 30.547/06, ES 30.549/06, ES 30.550/06,
ES 30.551/06, ES 30.552/06, ES 30.553/06, ES 30.554/06, ES 30.555/06, ES
30.556/06, ES 30.558/06, ES 30.559/06, ES 30.560/06, ES 30.561/06, ES
30.562/06, ES 30.563/06, ES 30.564/06 e ES 30.565/2006, e, consequentemente,
julgo improcedente a presente ação.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, apenas a confirmação de
um dado. Ministra Ellen Gracie – talvez não tenha percebido no voto de V. Exa.,
pelo menos de forma tão clara –, os desembargadores não admitiram a suspeição?
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Não.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Nesse caso, evidentemente, teríamos a regra do deslocamento que seria para o Supremo até mesmo por aplicação analógica do disposto na alínea n do inciso I do art. 102?
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Eles não aceitaram, não se consideraram suspeitos.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Porque geralmente, quando ocorre na
primeira instância e o juiz não se dá por suspeito, consigna as informações no
processo e procede ao deslocamento para o tribunal. A situação é interessante.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): Entrariam com uma ação civil
originária para o Supremo.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Mas qual seria o objeto da ação?
A ação, na verdade, nada mais é do que a exceção de suspeição, que, a meu
ver, teria de ser processada lá, no Tribunal, com possível deslocamento – admito –
para o Supremo, mas ouvindo-se os outros desembargadores. Daí a indagação
que fiz: se houve esse deslocamento na origem.
R.T.J. — 208
469
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): “O órgão especial do Tribunal de
Justiça de Mato Grosso em 28 de setembro de 2006 rejeitou (...) (lê) (...) rejeitou
também ação civil pública (...)”.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, é a primeira vez que me
defronto com a matéria. Fico um pouco perplexo no que passamos a ter apreciação de exceção de suspeição em ação originária, como autuada na Corte, pelo
próprio Supremo.
Compreendo – e isso percebo no Código de Processo Penal – que, quando
a argüição se faz quanto ao juízo, dá-se o deslocamento para o tribunal a que
vinculado esse juiz. A premissa, portanto, é a vinculação. Quando se faz em
relação a um dos integrantes do tribunal, tem-se o colegiado para decidir, sem a
participação desse integrante, sobre a suspeição.
Indago: e quando se articula no tocante a todos os integrantes do órgão
especial de Tribunal de Justiça, admitimos o deslocamento da exceção para o
Supremo? Por que não para o Superior Tribunal de Justiça?
Penso que, neste caso concreto – e precisamos construir, porque não há
regência específica sobre a matéria –, o que decidido pelo Tribunal, refutando
o impedimento, a incompatibilidade na atuação, deve ser impugnado mediante
recurso. E como se trata, de início, de um tema que tem disciplina estritamente
legal pelo Código de Processo Penal, o recurso é da competência do Superior
Tribunal de Justiça.
De início, não consigo conceber que possamos, nós do Supremo, julgar
mediante esse instrumental revelador da ação originária ajuizada a exceção articulada na origem.
Peço vênia para não admitir a apreciação do tema via ação originária.
ESCLARECIMENTO
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Senhor Presidente, apenas para,
brevemente, fazer o esclarecimento do que havia ficado pouco claro no meu
relatório. Retomo para esclarecer ao Tribunal que estas exceções opostas por
Antônio Alexandre da Silva foram apreciadas no Tribunal de Justiça do Mato
Grosso, lá rejeitadas. Ao contrário do que deveria ter sucedido, não foram remetidas a esse Tribunal. Em razão disso, o próprio excipiente ingressou com reclamação perante esta Corte e essa reclamação foi apreciada por mim e constatada
a usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal.
Na linha desse entendimento, transformei os autos da reclamação nessa
assim chamada “ação originária” que, agora, estamos apreciando.
Esse é o esclarecimento. A conclusão do meu voto, portanto, permanece
no sentido de remeter o conhecimento e o julgamento, tanto da ação penal
quanto da ação civil pública, ao Tribunal de Justiça do Mato Grosso.
470
R.T.J. — 208
ESCLARECIMENTO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, apenas ressalto que a
decisão quanto à incidência ou não da alínea n do inciso I do art. 102 cabe sempre ao Supremo. E é o que faz, agora, a Relatora.
EXTRATO DA ATA
AO 1.517/MT — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Excipiente: Antônio
Alexandre da Silva (Advogados: Eduardo Mahon e outros). Exceptos: Licínio
Carpinelli Stefani, Rubens de O. Santos Filho, Ernani Vieira de Souza, Shelma
L. de Kato, Marcio Vidal, Juracy Perciani, Paulo da Cunha, José Tadeu Cury,
Jurandir F. de Castilho, José Jurandir de Lima, José Silvério Gomes, José
Ferreira Leite, Paulo Inácio Dias Lessa, Leonidas Duarte Monteiro, Mariano
Alonso Ribeiro Travassos e Munir Feguri.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora,
rejeitou a exceção e determinou a baixa dos autos ao Tribunal de Justiça do
Estado de Mato Grosso. Ausente, justificadamente, porque em representação do
Tribunal no exterior, o Ministro Ricardo Lewandowski. Presidiu o julgamento o
Ministro Gilmar Mendes.
Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto,
Joaquim Barbosa, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. ProcuradorGeral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 8 de outubro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
R.T.J. — 208
471
AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO CAUTELAR 1.745 — MG
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Agravantes: Marco Aurélio Flora e outros — Agravado: Município de
Poços de Caldas
Recurso. Extraordinário. Retido. Inadmissibilidade. In­
terposição contra decisão que defere medida liminar. Antecipa­
ção de tutela. Desobstrução impossível. Ação cautelar julgada
improcedente. Agravo regimental improvido. Interpretação do
art. 542, § 3º, do CPC. Aplicação da Súmula 735. Precedentes. O
disposto no art. 542, § 3º, do Código de Processo Civil, não pode
ser interpretado de modo absoluto, mas não autoriza interposição de recurso extraordinário contra decisão que defere medida
liminar.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Celso de
Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto
do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro Joaquim Barbosa.
Brasília, 2 de dezembro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. Trata-se de agravo regimental interposto
contra decisão em que julguei improcedente ação cautelar que tinha por fim o
destrancamento de recurso extraordinário, retido nos autos de agravo de instrumento, com base no art. 542, § 3o, do CPC. A decisão é do seguinte teor:
Decisão: 1. Trata-se de ação cautelar, com pedido de liminar, movida por
Marco Aurélio Flora e outros contra decisão do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais que reteve o processamento de recurso extraordinário, com base no
art. 542, § 3º, do CPC, nos autos do Agravo de Instrumento 1.0518.05.084697-2/007
(fl. 273).
À origem da demanda está a ação de desapropriação, movida pelo ora réu –
Município de Poços de Caldas/MG –, e que tem por objeto área a ser destinada à
construção de uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), naquele Município.
O Juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Poços de Caldas/MG deferiu, liminarmente, a imissão provisória na posse em favor dos expropriantes (fl. 177).
Contra essa decisão foi interposto agravo de instrumento, desprovido pela 5ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (fls. 217-224).
Interposto recurso extraordinário, determinou o Desembargador Primeiro
Vice-Presidente do Tribunal a quo ficasse retido nos autos do Agravo de Instru­
mento, por amoldar-se o caso ao art. 542, § 3º, do Código de Processo Civil (fl. 273).
472
R.T.J. — 208
Pleiteia o autor o imediato processamento do extraordinário, com a concessão de efeito suspensivo.
2. Admissível esta via.
Ao propósito, a Corte ainda não firmou posição definitiva, oscilando entre
considerar adequada ora a reclamação, ora medida cautelar, ou até o agravo de
instrumento, para que a parte prejudicada com a retenção de recurso extraordinário, na forma do art. 542, § 3º, do Código de Processo Civil, lhe obtenha processamento imediato (Pet 2.460, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 11-10-01;
AC 410, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 10-9-04; Rcl 2.510, Rel. Min. Marco
Aurélio, DJ de 21-5-04; AI 498.260, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 13-10-04;
AI 406.983, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 9-5-03, e AI 455.842, Rel. Min.
Gilmar Mendes, DJ de 19-3-04).
Nos termos dos dois primeiros precedentes, que consideraram admissíveis
tanto reclamação, quanto medida cautelar incidental, tenho por curial qualquer
das três vias. Em primeiro lugar, porque, diante da incerteza da jurisprudência do
Tribunal, não seria lícito prejudicar a parte com o eventual não conhecimento do
remédio que, dentre aqueles, se entenda impróprio. Em segundo lugar, porque a
pretensão de que se cuida – o desbloqueio de recurso extraordinário retido, cujo
julgamento compete à Corte – parece quadrar no âmbito de admissibilidade das
três medidas processuais, que, para esse efeito, devem ter-se por fungíveis.
3. Incognoscível, no entanto, o pedido.
O art. 542, § 3º, do CPC, determina que os recursos extraordinário e especial, interpostos contra decisão interlocutória em processo de conhecimento
satisfativo (inclusive embargos à execução) ou cautelar, fiquem retidos nos autos
até que, sobrevinda decisão final da causa, sejam porventura reiterados pela parte
interessada no julgamento. Com isso, o dispositivo subverteu a regra geral de imediato processamento dos recursos ditos extraordinários (art. 543 do CPC), estipulando que, em certos casos, permaneçam retidos até eventual reiteração.
Nesse sentido, a Lei 9.756/98 pretendeu contribuir para o desafogo dos tribunais superiores, inibindo-lhes o acesso de recursos que, não tendo sido reiterados pela parte no prazo e condições legais, acabam revelando-se pouco úteis ou
sérios (Cf. José Carlos Barbosa Moreira, Reformas do CPC em matéria de recursos. In: Temas de direito processual, 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 147.)
É bem verdade que essa norma não pode lida de modo absoluto (cf. Pet
2.260, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 28-6-01, e AI 345.244-AgR, Rel.
Min. Ellen Gracie, DJ de 2-6-03). Afinal, há casos em que sua incidência levaria
a situações absurdas, causadoras de grave dano à parte ou à função jurisdicional,
o que se lhe não ajusta à ratio iuris.
Mas não é o caso dos autos. Não há razão para se determinar o imediato
processamento do recurso retido, se a análise perfunctória já revela, por si só,
sua irremediável inviabilidade. É que se volta o extraordinário contra decisão
que deferiu pedido de liminar, confirmada no tribunal a quo. Ora, é sabido que o
Supremo Tribunal Federal reputa, de há muito, inadmissíveis os recursos extraordinários voltados “contra decisões que concedem ou denegam medidas cautelares
ou provimentos liminares, pelo fato de que tais atos decisórios, precisamente porque apenas fundados na verossimilhança das alegações (...) ou na mera plausibilidade jurídica da pretensão deduzida – não veiculam qualquer juízo conclusivo de
constitucionalidade, deixando de ajustar-se, em conseqüência, à hipótese consubstanciada no art. 102, III, a, da Constituição” (AC 695, Rel. Min. Celso de Mello,
DJ de 13-4-05). Esse entendimento restou consolidado na Súmula 735 (“não cabe
recurso extraordinário contra acórdão que defere medida liminar”).
R.T.J. — 208
473
Logo, o recurso do autor é natimorto, razão por que não faria senso fosse
desobstruído. A norma do art. 542, § 3º, incide, portanto, em sua inteireza,
como, aliás, já reconheceu a Corte em caso muito similar (Pet 2.222, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, DJ de 12-3-03 e AC 1.612, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de
10-5-07).
4. Do exposto, com base nos arts. 21, § 1º, do RISTF, e 38 da Lei 8.038, de
28-5-90, julgo improcedente a ação cautelar.
2. Os Agravantes alegam que a decisão liminar que concede à expropriante a imissão provisória na posse é, na prática, definitiva. Por essa especial
razão, tal decisão está sujeita à preclusão, o que justifica o afastamento do óbice
da súmula 735 desta Corte, que reza: “Não cabe recurso extraordinário contra
acórdão que defere medida liminar”.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Sem razão os Agravantes.
Na decisão agravada, afirmei que a norma do art. 542, § 3o, do CPC, deve
lidar com alguns temperamentos:
O art. 542, § 3o, do CPC, determina que os recursos extraordinário e especial, interpostos contra decisão interlocutória em processo de conhecimento
satisfativo (inclusive embargos à execução) ou cautelar, fiquem retidos nos autos
até que, sobrevinda decisão final da causa, sejam porventura reiterados pela parte
interessada no julgamento. Com isso, o dispositivo subverteu a regra geral de imediato processamento dos recursos ditos extraordinários (art. 543 do CPC), estipulando que, em certos casos, permaneçam retidos até eventual reiteração.
Nesse sentido, a Lei 9.756/98 pretendeu contribuir para o desafogo dos tribunais superiores, inibindo-lhes o acesso de recursos que, não tendo sido reiterados pela parte no prazo e condições legais, acabam revelando-se pouco úteis ou
sérios (Cf. José Carlos Barbosa Moreira, Reformas do CPC em matéria de recursos. In: Temas de direito processual, 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 147.)
É bem verdade que essa norma não pode lida de modo absoluto (cf. Pet
2.260, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 28-6-01, e AI 345.244-AgR, Rel.
Min. Ellen Gracie, DJ de 2-6-03). Afinal, há casos em que sua incidência levaria
a situações absurdas, causadoras de grave dano à parte ou à função jurisdicional,
o que se lhe não ajusta à ratio iuris.
Adverti, no entanto, que esse não era o caso, não porque a natureza da liminar não o autorizasse, senão porque a antecipação de tutela concedida, uma
vez confirmada pelo Tribunal, sujeitou a hipótese à Súmula 735 deste Tribunal:
Mas não é o caso dos autos. Não há razão para se determinar o imediato
processamento do recurso retido, se a análise perfunctória já revela, por si só,
sua irremediável inviabilidade. É que se volta o extraordinário contra decisão
que deferiu pedido de liminar, confirmada no tribunal a quo. Ora, é sabido que o
Supremo Tribunal Federal reputa, de há muito, inadmissíveis os recursos extraordinários voltados “contra decisões que concedem ou denegam medidas cautelares
474
R.T.J. — 208
ou provimentos liminares, pelo fato de que tais atos decisórios, precisamente porque apenas fundados na verossimilhança das alegações (...) ou na mera plausibilidade jurídica da pretensão deduzida – não veiculam qualquer juízo conclusivo de
constitucionalidade, deixando de ajustar-se, em conseqüência, à hipótese consubstanciada no art. 102, III, a, da Constituição” (AC 695, Rel. Min. Celso de Mello,
DJ de 13-4-05). Esse entendimento restou consolidado na Súmula 735 (“não cabe
recurso extraordinário contra acórdão que defere medida liminar”).
Logo, o recurso do autor é natimorto, razão por que não faria senso fosse
desobstruído. A norma do art. 542, § 3º, incide, portanto, em sua inteireza,
como, aliás, já reconheceu a Corte em caso muito similar (Pet 2.222, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, DJ de 12-3-03; e AC 1.612, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ
de 10-5-07).
Não há como nem por onde, correspondendo o caso à hipótese da Súmula
735, mitigar-lhe a aplicação.
3. Do exposto, nego provimento ao agravo.
EXTRATO DA ATA
AC 1.745-AgR/MG — Relator: Ministro Cezar Peluso. Agravantes:
Marco Aurélio Flora e outros (Advogado: Carlos Henrique Naldoni). Agravado:
Município de Poços de Caldas.
Decisão: A Turma, por votação unânime, negou provimento ao recurso de
agravo, nos termos do voto do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro Joaquim
Barbosa.
Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros
Ellen Gracie, Cezar Peluso e Eros Grau. Ausente, licenciado, o Ministro
Joaquim Barbosa. Subprocuradora-Geral da República, Dra. Sandra Verônica
Cureau.
Brasília, 2 de dezembro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coor­
denador.
R.T.J. — 208
475
AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO CAUTELAR 1.806 — SP
Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto
Agravante: Idair Camilo Borges — Agravado: Ministério Público do Estado
de São Paulo
Agravo regimental. Direito penal e processual. Crime contra a honra, cometido por vereador. Condenação. Pena de detenção, substituída pela restritiva de direitos (prestação de serviços
comunitários). Recurso extraordinário em que se alega imunidade ou inviolabilidade parlamentar. Ação cautelar com pedido
de efeito suspensivo. Liminar indeferida.
1. Embora haja precedentes de que as penas restritivas de
direito não ensejam cumprimento antes de seu trânsito em julgado (HC 88.741, da relatoria do Ministro Eros Grau, e RHC
86.086, da relatoria do Ministro Marco Aurélio), tem-se que o
mesmo tema pode ser interpretado em sentido oposto, em favor
da sociedade, destinatária da prestação de serviços comunitários.
2. Agravo regimental desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal em negar provimento ao agravo regimental
na ação cautelar, o que fazem nos termos do voto do Relator e por unanimidade
de votos, em sessão presidida pelo Ministro Carlos Ayres Britto, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas.
Brasília, 20 de novembro de 2007 — Carlos Ayres Britto, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de agravo regimental contra decisão que indeferiu liminar em ação cautelar, proposta por Idair Camilo
Borges, vereador do Município de Cosmorama/SP.
2. Relembro que, de acordo com a inicial, o requerente foi condenado, em
primeira e segunda instâncias (Juizado Especial), à pena de sete meses e dez
dias de detenção, substituída por prestação de serviços comunitários (restrição
de direitos). Isso porque, ao participar de uma reunião no salão paroquial da
cidade, o postulante teria ofendido a honra do Prefeito municipal (chamando-o
de “prefeitinho vagabundo, de meia tigela”), bem como a honra da secretária de
saúde (a quem se referiu como “aquela vagabunda, eu nem sei se posso chamar
de secretária de saúde”).
3. Acontece que, em todos os recursos, o autor alegou que os impropérios
pelos quais responde foram proferidos no exercício do mandato parlamentar.
476
R.T.J. — 208
Portanto, acobertados pelos institutos da imunidade e da inviolabilidade, que
têm berço constitucional.
4. De se ver que a mesma linha de defesa foi adotada no recurso extraordinário, inadmitido na origem. Sendo que, diante desse revés, o recorrente interpôs agravo de instrumento, em fase de processamento.
5. Nesse interregno – prossegue a inicial –, o MM. Juiz de Direito determinou o início do cumprimento da pena restritiva de direitos, dado que o recurso
dirigido a esta colenda Corte não se orna de eficácia suspensiva.
6. Diante deste panorama, que revelaria a excepcionalidade do caso, foi
que o autor se animou a ajuizar a presente cautelar, visto que a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal seria no sentido de que as penas restritivas de direito
não ensejam cumprimento antes de seu trânsito em julgado.
7. Prossigo no relatório para averbar que indeferi o requerimento de liminar, no firme propósito de manter-me coerente com o ponto de vista externado
no julgamento do RHC 86.086, Rel. Min. Marco Aurélio. Naquela ocasião, pontuei que, em tema de conversão da condenação em pena restrita de direitos, “interpreto sempre em favor da sociedade”.
8. Foi aí que, inconformado, o requerente assestou o presente agravo, insistindo nos fundamentos expostos na petição inicial e na prevalência da orientação firmada em precedentes jurisprudenciais.
9. Finalizo estas linhas para dizer que, mantida a decisão agravada, submeto o recurso à apreciação da Turma.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Por uma questão de fidelidade aos eminentes Pares – já que fui voz isolada nos precedentes mencionados –, transcrevo a parte nuclear da decisão atacada, in verbis:
8. Muito bem. Feita essa resenha da matéria, já adianto que o tema ligado
à pretensa imunidade ou inviolabilidade parlamentar será examinado por esta
colenda Corte no bojo do apelo extremo, caso provido o agravo de instrumento.
9. Enquanto isso não acontece, há de se reconhecer que o raciocínio do
requerente tem assento no art. 147 da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84).
Conta, também, com a simpatia de respeitável corrente jurisprudencial, formada
tanto na Primeira Turma (Exemplo: HC 86.086, Rel. Min. Marco Aurélio) como
na Segunda Turma (Exemplo: HC 88.741, Rel. Min. Eros Grau).
10. Devo esclarecer, entretanto, que, no julgamento do supramencionado
HC 86.086, defendi ponto de vista contrário ao da maioria, por entender que, “em
se tratando de conversão da condenação à pena restrita de direitos, interpreto sempre em favor da sociedade”.
11. Naquela ocasião, eu disse ainda que a conversão da pena já é um benefício para o réu. E completei: “O próprio cumprimento dessa alternativa de ficar no
aguardo do trânsito em julgado da decisão é ‘garantismo’ demais”.
R.T.J. — 208
477
12. Por tudo isso, mantendo a coerência, não vejo plausibilidade jurídica
na tese levantada pelo autor. Plausibilidade necessária ao deferimento da cautelar, por meio da qual se pretende a atribuição de efeito suspensivo ao recurso
extraordinário.
12. Muito bem. Ao fazer a releitura da decisão agravada, mais me convenço
do ponto de vista nela externado. Sobretudo pela provável inexistência de nexo
causal entre a conduta do recorrente e o exercício de seu mandato parlamentar.
Constatação, essa, que torna implausível o êxito do recurso extraordinário, cuja
admissibilidade ainda depende do provimento do agravo de instrumento mencionado no relatório.
13. Ante o exposto, nego provimento ao agravo.
14. É como voto.
EXTRATO DA ATA
AC 1.806-AgR/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Agravante: Idair
Camilo Borges (Advogados: Marcelo Zola Peres e outros). Agravado: Ministério
Público do Estado de São Paulo.
Decisão: A Turma negou provimento ao agravo regimental na ação cautelar, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidiu o julgamento o Ministro
Carlos Britto. Ausente, justificadamente, o Ministro Marco Aurélio, Presidente.
Presidência do Ministro Carlos Britto. Presentes à sessão os Ministros
Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Ausente, justificadamente, o Ministro Marco Aurélio, Presidente. Subprocurador-Geral da
República, Dr. Wagner de Castro Mathias Netto.
Brasília, 20 de novembro de 2007 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
478
R.T.J. — 208
AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO 4.628 — SP
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Agravante: União — Agravado: Relator do Agravo de Instrumento
2004.03.00.034178-5 do TRF da 3ª Região — Interessados: José Carlos Peixoto
dos Santos e outros
Antecipação de tutela. Concessão contra a Fazenda Pública.
Servidor Público. Militar da Aeronáutica. Vencimentos. Reajuste
fundado nas Leis 8.622/93 e 8.627/93. Aplicação do art. 37,
X, da CF. Direito reconhecido. Jurisprudência do Supremo.
Ofensa à autoridade da liminar deferida na ADC 4. Não ocorrência. Reclamação julgada improcedente. Agravo improvido.
Precedentes. Não ofende a autoridade da liminar deferida na
ADC 4 a decisão em que o objeto da antecipação de tutela corresponda a prestação exigível nos termos da jurisprudência do
Supremo.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar
Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do
voto do Relator. Ausentes: licenciado, o Ministro Joaquim Barbosa; justificadamente os Ministros Celso de Mello e Menezes Direito e, neste julgamento, o
Ministro Marco Aurélio.
Brasília, 27 de novembro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. Trata-se de agravo regimental interposto contra decisão em que neguei seguimento a reclamação interposta pela
União contra decisão de Desembargador Federal da Quinta Turma do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região que, nos autos do Agravo de Instrumento
2004.03.00.034178-5, deferiu liminar para determinar efeito suspensivo à decisão monocrática que considerara prejudicado pedido de tutela antecipada, com
o fim de conceder aplicação do reajuste de 28,86% aos soldos de militares da
Aeronáutica, com base nas Leis 8.622/93 e 8.627/93. A decisão é do seguinte teor:
Decisão: 1. Trata-se de reclamação, com pedido de liminar, proposta pela
União, contra decisão de Desembargador Federal da Quinta Turma do TRF da 3ª
Região (fls. 117/118) que, nos autos do Agravo de Instrumento 2004.03.00.0341785, deferiu liminar, para determinar efeito suspensivo à decisão monocrática que considerou prejudicado pedido de tutela antecipada, para o fim de conceder aplicação
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do reajuste de 28,86% aos soldos de militares da Aeronáutica, com base nas Leis
8.622/93 e 8. 627/93.
O pedido funda-se em que a decisão ofenderia o provimento cautelar proferido por esta Corte na ADC 4/DF.
2. Insubsistente a reclamação.
Até há pouco, em casos como este, a Corte guardava posição favorável ao
ora reclamante, como bem demonstram os julgamentos da Rcl 877 (Rel. Min.
Gilmar Mendes, j. em 14-11-02) e da Rcl 951 (Rel. Min. Maurício Corrêa, j. em
24-10-02).
Mas, no julgamento da Rcl 2.924-AgR (Rel. Min. Marco Aurélio, j. em
23-6-05), ao rediscutir a matéria em hipótese idêntica à dos autos, assentou que
não ofende a autoridade do acórdão da ADC 4 a decisão em que o objeto da antecipação de tutela corresponda a prestação exigível nos termos da jurisprudência
da Casa. E não a ofende, porque, como observei na oportunidade, “me parece
contrário a todos os princípios que, sob pretexto de ofensa à norma inserta no
art. 1º da Lei 9.494/97, fosse procrastinado o pagamento de verba que esta Corte
entende devida”.
No caso, a decisão impugnada não destoa da orientação já firmada pelo
Plenário deste Tribunal, no julgamento do RMS 22.307-ED (Rel. p/ o ac. Min.
Ilmar Galvão, DJ de 26-6-98), e cuja tese vencedora foi muito bem explicitada
no julgamento do RE 291.701-AgR (Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 24-8-01),
nos termos da seguinte ementa:
“1. O Pleno desta Corte, reconhecendo a existência de omissão legislativa, deferiu aos servidores públicos civis a extensão do reajuste de
28,86% previsto nas Leis 8.622/93 e 8.627/93, segundo exegese do disposto
no inciso X do art. 37 da Constituição Federal.
2. No julgamento dos embargos de declaração opostos à decisão proferida nos autos do RMS 22.307-7/DF, ficou esclarecido que não houve singela extensão a servidores públicos civis de valores de soldos militares, mas
reajuste geral concedido a todo o funcionalismo, civil e militar, sem que se
tenha feito qualquer referência à compensação de valores pagos administrativamente. (No mesmo sentido, cf. RE 420.134, Rel. Min. Gilmar Mendes;
RE 419.223, Rel. Min. Nelson Jobim; RE 401.467, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence; RE 419.075-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio,
julgado em 24-5-05).”
3. Diante do exposto, com fundamento no art. 38 da Lei 8.038, de 28 de maio
de 1990, e art. 21, § 1º, do RISTF, julgo improcedente a reclamação.
(Fls. 160-161.)
2. A Agravante argumenta que não pretende discutir, nesta reclamação,
“se é devido ou não o reajuste de 28,86% aos servidores militares, mas, sim,
afirmar que o pagamento desse percentual pela Fazenda Pública, em sede de
tutela antecipada, ofende a decisão proferida no julgamento da ADC 4.”
Sustenta, ainda, que esta Corte, por maioria, no julgamento da RCL 877,
Rel. Min. Gilmar Mendes, sobre matéria idêntica, deu provimento ao pleito da
União.
É o relatório.
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VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. A decisão agravada invocou e
resumiu os fundamentos do entendimento invariável da Corte, cujo teor subsiste
invulnerável aos argumentos do recurso.
Repito que, no julgamento da Rcl 2.924-AgR (Rel. Min. Marco Aurélio,
DJ de 26-8-05), posterior, portanto, ao precedente invocado pela Agravante
(Rcl 877, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 14-3-03), ao rediscutir matéria idêntica à dos autos, o Plenário assentou que não ofende a autoridade do acórdão da
ADC 4 a decisão em que o objeto da antecipação de tutela corresponda a prestação exigível nos termos da jurisprudência da Corte. E não a ofende, porque,
como observei na oportunidade, “parece-me contrário a todos os princípios que,
sob pretexto de ofensa à norma inserta no art. 1º da Lei 9.494/97, fosse procrastinado o pagamento de verba que esta Corte entende devida”.
2. Do exposto, nego provimento ao agravo.
EXTRATO DA ATA
Rcl 4.628-AgR/SP — Relator: Ministro Cezar Peluso. Agravante: União
(Advogado: Advogado-Geral da União). Agravado: Relator do Agravo de
Instrumento 2004.03.00.034178-5 do TRF da 3ª Região. Interessados: José
Carlos Peixoto dos Santos e outros (Advogada: Lucinéia Fernandes).
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, negou provimento ao recurso
de agravo, nos termos do voto do Relator. Ausentes: licenciado, o Ministro
Joaquim Barbosa; justificadamente os Ministros Celso de Mello e Menezes
Direito e, neste julgamento, o Ministro Marco Aurélio. Presidiu o julgamento o
Ministro Gilmar Mendes.
Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros
Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski,
Eros Grau e Cármen Lúcia. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto
Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 27 de novembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
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AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO 5.983 — PI
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Agravante: Estado do Piauí — Agravado: Juiz de Direito da Comarca de
Uruçui (Processo 2856/08) — Interessado: Teles Renê Ferreira da Silva
Servidor público. Cargo. Concurso público. Candidato
aprovado. Nomeação e posse. Antecipação de tutela contra a
Fazenda Pública para estes fins. Admissibilidade. Pagamento
conseqüente de vencimentos. Irrelevância. Efeito secundário da
decisão. Inaplicabilidade do acórdão da ADC 4. Reclamação
indeferida liminarmente. Agravo improvido. Precedentes. Não
ofende a autoridade do acórdão proferido na ADC 4 a decisão
que, a título de antecipação de tutela, assegura a candidato aprovado em concurso a nomeação e posse em cargo público.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar
Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do
voto do Relator. Ausente, licenciado o Ministro Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Ministro Eros Grau.
Brasília, 3 de dezembro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. Trata-se de agravo regimental interposto
pelo Estado do Piauí contra decisão em que neguei seguimento à reclamação. A
decisão é do seguinte teor:
Decisão: 1. Trata-se de reclamação, com pedido de liminar, proposta pelo
Estado do Piauí, contra decisão proferida pelo Juiz de Direito da Comarca de
Uruçuí/PI, que concedeu, nos autos da Ação Ordinária 2.856/08 (fls. 36/37), tutela
antecipada a participante de concurso público, garantindo-lhe a nomeação e posse
no cargo de Professor, Classe “E”, na disciplina de Português.
O pedido funda-se em que a decisão ofenderia o provimento cautelar proferido por esta Corte na ADC 4/DF.
2. Insubsistente a reclamação.
Alega o autor, em síntese, na ação suso mencionada, que a Secretaria
Estadual de Educação e Cultura – promotora do certame – empossou, em poucos
meses, somente 3 (três) dos aprovados. E, embora o concurso tenha validade por
dois anos, prorrogáveis por mais dois, nesse mesmo lapso de tempo (poucos meses), realizou teste seletivo simplificado e nomeou e empossou mais 7 professores
dele advindos, em detrimento dos candidatos classificados no concurso original
e ainda válido.
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A decisão reclamada, diante dessas alegações do autor que se insurgia contra a contratação de professores que não participaram do certame ao qual se submeteu, foi posta nestes termos:
“A norma que rege um concurso público é o seu respectivo edital, e no
caso em espécie o edital que anunciou o concurso público para professores,
no qual o requerente se inscreveu e logrou aprovação, estabelece claramente
no item 17.3, das Disposições Finais, que o referido concurso terá validade
de 2 anos, a contar da data da homologação do resultado final, podendo ser
prorrogado por igual período a critério da Secretaria.
Se o edital do concurso prevê o prazo de 2 anos de validade, podendo
ainda ser prorrogado por igual período, é de se estranhar que em apenas
alguns meses depois do resultado final seja feito um teste seletivo para contratação de professores, sendo que já existiam candidatos aprovados para
preenchimento destas vagas que estavam sendo oferecidas no teste seletivo.
Qualquer outro concurso ou mesmo teste seletivo só poderia ser
realizado depois que expirasse o prazo de validade do último concurso,
mormente porque as vagas deste ainda não estavam todas preenchidas, e só
poderiam ser preenchidas pelos candidatos aprovados no mesmo.
Assim sendo, (...) defiro o pedido de liminar para determinar a imediata contratação do requerente (...) como aprovado e classificado no concurso para provimento do cargo de ‘Professor de Português’, Classe ‘E’ (...).”
Ora, dúvida não há de que o direito garantido pelo decisum não foi o pagamento de vencimentos, mas sim a nomeação e posse em cargo público.
Por essa especial razão, o caso não recai no âmbito de incidência do julgamento desta Corte na ADC 4, que cuida da impossibilidade de concessão de tutela
antecipada, por qualquer juiz ou tribunal, e que implique reclassificação ou equiparação, concessão de aumento, extensão de vantagens pecuniárias, outorga ou
acréscimo de vencimentos, pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias a
servidor público. O bem tutelado, à vista do entendimento do Juízo, de existência
de verossimilhança do direito invocado, foi a nomeação e posse do candidato, nos
termos do Edital 8/05. O pagamento de vencimentos é, tão-só, a partir dessa condição, corolário legítimo.
Não custa, por fim, advertir o cuidado que deve marcar a análise das reclamações, nas quais se alegue ofensa ao decidido por esta Corte na ADC 4.
É que, não raro, deparamos hipóteses que se distanciam, e muito, das situações específicas das quais cuidou aquela Ação. A subtração do poder geral de
cautela dos magistrados é exceção que deve observar os restritos limites decididos
por esta Corte, e que, repito, dizem respeito às decisões que impliquem “reclassificação ou equiparação, concessão de aumento, extensão de vantagens pecuniárias,
outorga ou acréscimo de vencimentos, pagamento de vencimentos e vantagens
pecuniárias a servidor público”.
Releva notar que o caso nem sequer cuida de servidor público, senão de
aspirante a essa categoria. Em reclamações bastante semelhantes, há precedentes
da Corte que enfatizam o acerto de pronta correção, por intermédio de decisões
antecipatórias contra a Fazenda Pública, quando haja, fora das limitadas situações
das quais cuida a ADC 4, ilegalidade por sanar: Rcl 4.711 e Rcl 5.312, Rel. Min.
Carlos Britto, DJ de 11-12-06 e 4-7-07; Rcl 5.019, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
DJ de 3-4-07; Rcl 5.065, Rcl 5.194 e Rcl 5.416, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 255-07, 25-6-07 e 16-8-07; e Rcl 2.539, Rel. Min. Eros Grau, Pleno, DJ de 9-12-05,
esta última assim ementada:
R.T.J. — 208
483
“Reclamação – Servidor cuja demissão decorreu de processo
administrativo disciplinar viciado – Suposta afronta à decisão da
Corte – ADC 4 – Inocorrência. 1. Não merece prosperar o argumento
do reclamante segundo o qual a Lei 9.494/97 veda qualquer pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias a servidor reintegrado
ao serviço público. 2. Pedido julgado improcedente.”
3. Do exposto, com base no art. 21, § 1º do RISTF, nego seguimento ao
pedido.
2. O Agravante, inconformado, repisa os mesmos argumentos.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Sem razão o Agravante.
A decisão agravada invocou e resumiu os fundamentos do entendimento
invariável da Corte, cujo teor subsiste invulnerável aos argumentos do recurso.
Somem-se aos precedentes já citados no decisum estoutros: Rcl 5.194, de minha relatoria, DJ de 21-6-07; Rcl 5.205, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 31-7-07;
Rcl 5.533, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 5-11-07; Rcl 6.138, Rel. Min. Gilmar
Mendes, DJ de 5-8-08; Rcl 6.500, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ de 15-9-08, e
Rcl 6.092, Rel. Min. Menezes Direito, DJ de 6-6-08.
2. Do exposto, nego provimento ao agravo.
EXTRATO DA ATA
Rcl 5.983-AgR/PI — Relator: Ministro Cezar Peluso. Agravante: Estado
do Piauí (Advogado: PGE/PI – Antônio Ribeiro Soares Filho). Agravado: Juiz
de Direito da Comarca de Uruçui (Processo 2856/08). Interessado: Teles Renê
Ferreira da Silva (Advogado: DPE/PI – Fabrício Márcio de Castro Araújo).
Decisão: O Tribunal, por votação unânime, negou provimento ao recurso
de agravo, nos termos do voto do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro
Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Ministro Eros Grau. Presidiu o julgamento o Ministro Gilmar Mendes.
Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Eros
Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. ProcuradorGeral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 3 de dezembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
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R.T.J. — 208
AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO 6.259 — RN
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Agravante: Estado do Rio Grande do Norte — Agravado: Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Norte (Mandado de Segurança 2008.001
534-2) — Interessados: Alexandre Henrique Meira Lima de Medeiros e outros
Reclamação. Inadmissibilidade. Antecipação de tutela contra a Fazenda Pública. Liminar deferida. Ofensa ao acórdão
proferido na ADC 4. Superveniência de sentença que acolhe o
pedido. Absorção da liminar. Seguimento negado. Agravo improvido. Precedentes do Plenário. Não se admite reclamação
contra sentença que, confirmando ou reformando antecipação de
tutela, ou concessão de tutela provisória contrária ao que decidiu
o Supremo na ADC 4, julga o mérito da causa.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar
Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do
voto do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Ministro Eros Grau.
Brasília, 3 de dezembro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. Trata-se de agravo regimental interposto
pelo Estado do Rio Grande do Norte contra decisão proferida pelo Ministro
Gilmar Mendes, às fls. 36/39, por meio da qual foi negado seguimento à reclamação. A decisão é do seguinte teor:
Decisão: Trata-se de reclamação, com pedido de medida liminar, proposta
pelo Estado do Rio Grande do Norte em face de acórdão do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Norte proferido no Mandado de Segurança 2008.001534-2, que
determinou a “implantação nos contracheques dos impetrantes da Gratificação de
Técnico de Nível Superior no percentual de 100% (cem por cento), sobre o vencimento básico, bem como o pagamento dos valores retroativos à data da impetração” (fl. 25). Segue a ementa:
“Ementa: mandado de segurança. Direito Constitucional e Admi­
nistrativo. Servidores públicos do Poder Judiciário estadual. Writ objetivando a percepção da Gratificação de Técnico de Nível Superior sobre o
vencimento básico, conforme previsão encartada na Lei 6.371/93, alterada
pelas Leis 6.568/94, 6.615/94 e 6.790/95. Servidores detentores de Cargo
Técnico de Nível Superior que não recebem Gratificação de Desempenho de
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485
Serviços de Saúde (GRADES). Preenchimento do requisito legal à percepção. Vedação da Lei Complementar 101/00 que não alcança os impetrantes.
Direito líquido e certo evidenciado. Precedentes desta Corte. Concessão da
segurança.
Aos servidores do Poder Judiciário, ocupantes de cargo de Técnico de
Nível Superior ou Equivalentes, é devida a Gratificação de Nível Superior,
no valor de 100% do vencimento básico, desde que não seja beneficiado com
a Gratificação de Desempenho de Serviços de Saúde.”
(Fl. 11.)
O Reclamante afirma que o acórdão reclamado foi proferido em manifesto
conflito com a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da cautelar da
ADC 4. Para sustentar seu pedido, alega que:
a) a Lei 9.494/97, em seu art. 2º-B, veda a implantação em folha de pagamento de vantagem pecuniária, enquanto não transitada em julgado a decisão;
b) tal decisão terá efeitos inesperados sobre o orçamento público, tendo em
vista que beneficiará centenas de servidores em idêntica situação.
Passo a decidir.
Verifico que a decisão reclamada é um acórdão proferido pelo Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Norte, que apreciou o mérito do Mandado de Segurança
2008.001534-2, determinando a incorporação da Gratificação de Técnico de Nível
Superior a salários de servidores públicos. Não se trata, portanto, de decisão concessiva ou denegatória de tutela antecipada.
Este Supremo Tribunal Federal possui entendimento no sentido de que, ante
a existência de sentença de mérito, não há afronta à decisão da ADC 4, tendo em
vista que “a decisão definitiva, seja qual for seu conteúdo, absorve e torna sem
efeito a cautelar e a tutela antecipada” e que o art. 1º da Lei 9.494/97 trata de tutela
antecipada, conforme ressaltado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto,
na Rcl 1.459/RS, Pleno, maioria, Rel. p/ ac. Sepúlveda Pertence. Segue ementa
deste julgado:
“Ementa: A ADC 4 examinou hipótese de tutela antecipada: se há
sentença de mérito – contra ou a favor da Fazenda Pública – não há o que
preservar pela via da reclamação.
A sentença de mérito prejudica a reclamação que se fundamenta na
afronta à decisão da ADC 4.”
Na ocasião deste julgamento, os Ministros consignaram no debate, verbis:
“O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, considero prejudicado o pedido.
Na verdade, trata-se de verificar descumprimento por força de liminar sem eficácia, porque esta foi suspensa. No momento em que vamos
apreciá-la, já não adianta restabelecer nem confirmar, porque sobreveio título que a absorveu. Em outras palavras, a partir de agora, teremos eventual
provisoriedade da sentença – ou executoriedade provisória –, independentemente do resultado desta reclamação, agora absolutamente inútil. O que ela
poderia ter produzido já está fora do mundo jurídico, porque foi suspensa a
eficácia da liminar. Desse modo, não há nada por fazer.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: A decisão definitiva, seja qual
for o seu conteúdo, absorve e torna sem efeito a cautelar e a tutela antecipada. (...) Apenas se há decisão de mérito, a reclamação contra tutela
anteci­pada [resta] prejudicada.”
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Não obstante tenha proferido voto vencido no julgamento da Rcl 1.459/RS,
curvo-me à jurisprudência firmada por este Tribunal no sentido da perda do objeto
da reclamação que tem por parâmetro a ADC 4/DF, quando a decisão que concedeu tutela antecipada for substituída por sentença de mérito.
Observe-se que, ainda que se trate de mandado de segurança, a execução
de um julgado de mérito não se equipara à antecipação de tutela. Portanto, no presente caso, não há afronta ao julgado por este Tribunal na ADC 4.
Dessa forma, nego seguimento à presente reclamação (art. 21, §1º c/c
art. 161, parágrafo único, RISTF).
2. O Agravante sustenta, em síntese, que “(...) é totalmente irrelevante saber se a liminar ou a decisão antecipatória de tutela foi suplantada ou absorvida
pela decisão de mérito, pois os efeitos da decisão proferida na ADC 4 projetamse para além da sentença de mérito, indo até seu trânsito em julgado (...)”
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Inconsistente o agravo.
A Corte já assentou entendimento de que, sobrevindo sentença de mérito,
contra ou a favor da Fazenda Pública, não há o que preservar, mediante reclamação, a qual se considera prejudicada, quanto a antecipação de tutela contrária ao
acórdão proferido na ADC 4. É o que se extrai à síntese desta ementa:
A ADC 4 examinou hipótese de tutela antecipada: se há sentença de mérito – contra ou a favor da Fazenda Pública – não há o que preservar pela via da
reclamação. A sentença de mérito prejudica a reclamação que se fundamenta na
afronta à decisão da ADC 4.
(Rcl 1.459, Pleno, maioria, Rel. p/ ac. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de
3-12-04. No mesmo sentido, Rcl 1.192, Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes,
j. 10-3-08).
3. Do exposto, nego provimento ao agravo.
EXTRATO DA ATA
Rcl 6.259-AgR/RN — Relator: Ministro Cezar Peluso. Agravante: Estado
do Rio Grande do Norte (Advogado: PGE/RN – Luis Marcelo Cavalcanti de
Sousa). Agravado: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte
(Mandado de Segurança 2008.001534-2). Interessado: Alexandre Henrique
Meira Lima de Medeiros e outros (Advogado: Vivaldo de Lima).
Decisão: O Tribunal, por votação unânime, negou provimento ao recurso
de agravo, nos termos do voto do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro
Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Ministro Eros Grau. Presidiu o julgamento o Ministro Gilmar Mendes.
R.T.J. — 208
487
Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Eros
Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. ProcuradorGeral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 3 de dezembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
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R.T.J. — 208
AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO 6.468 — SE
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Agravante: Estado de Sergipe — Agravado: Relatora da Ação Rescisória
2008601474 do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe — Interessado:
Alysson Farias de Souza
Servidor público. Policial Militar. Reintegração no posto.
Restabelecimento de condição funcional. Retorno ao statu quo.
Antecipação de tutela contra a Fazenda Pública. Admissibilidade.
Pagamento conseqüente de vencimentos futuros. Irrelevância.
Efeito secundário da decisão. Inaplicabilidade do acórdão da
ADC 4. Reclamação julgada improcedente. Agravo improvido.
Não ofende a autoridade do acórdão proferido na ADC 4 decisão que, a título de antecipação de tutela, se limita a determinar
reintegração de servidor no cargo ou posto, até julgamento da
demanda, sem concessão de efeito financeiro pretérito.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar
Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do
voto do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Ministro Eros Grau.
Brasília, 3 de dezembro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. Trata-se de agravo regimental contra decisão em que julguei improcedente reclamação proposta pelo Estado de Sergipe e
mantive a antecipação de tutela concedida pelo Tribunal de Justiça desse Estado,
a qual reintegrou o reclamado ao quadro de servidores da Polícia Militar sergipana. A decisão é do seguinte teor:
Decisão: 1. Trata-se de reclamação, com pedido de liminar, proposta pelo
Estado de Sergipe, contra decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado
de Sergipe, que concedeu, nos autos da Ação Rescisória 2008601474 (fls. 12-15),
tutela antecipada para determinar a suspensão da decisão rescindenda, bem como
a reintegração do reclamado ao quadro de servidores da Polícia Militar daquele
Estado.
Alega o autor, em síntese, que a decisão reclamada, ao determinar a reintegração de servidor público ao cargo original, importou outorga de vencimentos,
motivo pelo qual ofenderia o provimento cautelar proferido por esta Corte na
ADC 4/DF.
R.T.J. — 208
489
2. Insubsistente a reclamação.
No julgamento – agora de mérito –, da ADC 4 (sessão do dia 29-9-08), o
Plenário, por maioria, declarou a constitucionalidade do art. 1º da Lei 9.494/97
(“Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo
Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei 4.348, de 26 de junho
de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e
4º da Lei 8.437, de 30 de junho de 1992.), conforme consta do Informativo STF 522.
Tal decisão traduz a impossibilidade de prolação de qualquer decisão sobre
pedido de tutela antecipada contra a Fazenda Pública que tenha como pressuposto
a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei 9.494/97 e que
implique reclassificação ou equiparação, concessão de aumento, extensão de vantagens pecuniárias, outorga ou acréscimo de vencimentos, pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias a servidor público, ou exaustão, total ou parcial,
do objeto de demanda respeitante a qualquer de tais situações (cf. Rcl 1.514/RS e
Rcl 1.749/MS, Rel. Min. Celso de Mello).
Verifico dos autos que a decisão reclamada se limitou a determinar a reintegração do servidor ao posto de Policial Militar. Ora, dúvida não há de que o direito garantido pelo decisum não foi o pagamento de vencimentos, mas, sim, o seu
retorno ao status quo ante. E, por essa especial razão, o caso não recai no âmbito
de incidência do julgamento desta Corte na ADC 4, como se tem proclamado (Rcl
3.483-ED-AgR, Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 2-2-07; Rcl 2.382, Pleno,
Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 7-5-04; e Rcl 2.421-AgR, Pleno, Rel. Min. Eros
Grau, DJ de 17-12-04).
3. Do exposto, com base no art. 21, § 1º do RISTF, julgo improcedente a
reclamação.
2. Inconformado, alega o Estado de Sergipe que embora a decisão reclamada tenha determinado tão-só a reintegração do servidor “é decorrência lógica
(...) o pagamento de vantagens pecuniárias”.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Sem razão o Agravante.
O Plenário desta Corte já enfrentou caso idêntico, como se extrai à seguinte ementa:
Reclamação. Agravo regimental. ADC 4. Antecipação de tutela. Rein­
tegração de servidor sem concessão de efeitos financeiros pretéritos. Des­
cabimento. 1. A concessão de tutela antecipada que não teve como pressuposto a
constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei 9.494/97, objeto de
apreciação da ADC 4, não enseja o ajuizamento de reclamação perante o Supremo
Tribunal Federal. 2. O provimento antecipatório que se limita a restabelecer o sta­
tus quo ante de servidor, abstendo-se de conceder o pagamento dos vencimentos
atrasados, não configura afronta ao quanto decidido no julgado proferido na ADC
4. Agravo regimental desprovido.
(Rcl 2.421-AgR, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 17-12-04. Grifamos.)
490
R.T.J. — 208
É o que convém à espécie, pois a decisão reclamada limitou-se a determinar a reintegração do servidor, até julgamento final da ação, sem concessão de
nenhum efeito financeiro pretérito.
2. Do exposto, nego provimento ao agravo.
EXTRATO DA ATA
Rcl 6.468-AgR/SE — Relator: Ministro Cezar Peluso. Agravante: Estado
de Sergipe (Advogado: PGE/SE – André Luís Santos Meira). Agravada: Relatora
da Ação Rescisória 2008601474 do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe.
Interessado: Alysson Farias de Souza (Advogado: José Ronilson Menezes).
Decisão: O Tribunal, por votação unânime, negou provimento ao recurso
de agravo, nos termos do voto do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro
Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Ministro Eros Grau. Presidiu o julgamento o Ministro Gilmar Mendes.
Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Eros
Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. ProcuradorGeral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 3 de dezembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
R.T.J. — 208
491
AGRAVO REGIMENTAL NA
MEDIDA CAUTELAR NA RECLAMAÇÃO 6.650 — PR
Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie
Agravante: José Rodrigo Sade — Agravados: Eduardo Requião de Mello
e Silva e Juiz de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública, Falências e Concordatas
da Comarca de Curitiba (Ação Popular 2.424/08) — Interessados: Roberto
Requião de Mello e Silva e Estado do Paraná
Agravo regimental em medida cautelar em reclamação. Nomeação de irmão de Governador de Estado. Cargo de Secretário
de Estado. Nepotismo. Súmula Vinculante 13. Ina­plicabilidade
ao caso. Cargo de natureza política. Agente político. Entendimento firmado no julgamento do RE 579.951/RN. Ocorrência da
fumaça do bom direito.
1. Impossibilidade de submissão do reclamante, Secretário
Estadual de Transporte, agente político, às hipóteses expressamente elencadas na Súmula Vinculante 13, por se tratar de cargo
de natureza política.
2. Existência de precedente do Plenário do Tribunal: RE
579.951/RN, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJE de 12-9-08.
3. Ocorrência da fumaça do bom direito.
4. Ausência de sentido em relação às alegações externadas pelo
agravante quanto à conduta do prolator da decisão ora agravada.
5. Existência de equívoco lamentável, ante a impossibilidade lógica de uma decisão devidamente assinada por Ministro
desta Casa ter sido enviada, por fac-símile, ao advogado do reclamante, em data anterior à sua própria assinatura.
6. Agravo regimental improvido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata do julgamento e
das notas taquigráficas, por maioria de votos, negar provimento ao recurso de
agravo, nos termos do voto da Relatora.
Brasília, 16 de outubro de 2008 — Ellen Gracie, Relatora.
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Ellen Gracie: 1. Eduardo Requião de Mello e Silva, irmão
do Governador do Paraná, Roberto Requião de Mello e Silva, ajuizou a presente
reclamação, com pedido de liminar, contra a decisão prolatada pelo Juízo de
492
R.T.J. — 208
Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública, Falências e Concordatas do Foro Central
da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba/PR nos autos da Ação Popular
2.424/08 (fl. 60).
A decisão impugnada na presente reclamação suspendeu, em 11 de setembro deste ano, o ato de nomeação do reclamante para o cargo de Secretário
Estadual de Transportes (Decreto estadual 3.348/08, fl. 21).
O Reclamante sustentou, em síntese, a ocorrência de afronta à Súmula
Vinculante 13, porquanto os secretários estaduais são, em verdade, agentes políticos, razão pela qual o seu caso não se subsumiria às hipóteses preconizadas
na referida súmula.
2. O eminente Ministro Cezar Peluso, nos termos do art. 38, I, do RISTF,
com fundamento na jurisprudência desta Casa, deferiu, em 24 de setembro, o
pedido de liminar (fls. 67-69).
3. Daí o presente agravo regimental interposto por José Rodrigo Sade (fls.
90-101), em que se requer a reconsideração dessa decisão ou a imediata submissão do recurso ao Plenário do Supremo Tribunal Federal.
Diz o Agravante, inicialmente, que, de acordo com cópia obtida no sítio
oficial do Estado do Paraná na internet, houve o envio do inteiro teor da decisão
ora recorrida do Gabinete do Ministro Cezar Peluso ao aparelho de fac-símile
“do escritório do advogado subscritor da petição inicial da reclamação, isso no
dia 23 de setembro de 2008, às 18h43, ou seja, antes mesmo da própria data inserida na decisão agravada e, evidentemente, antes do resultado ser divulgado no
sítio dessa Suprema Corte”, o que revelaria “tratamento privilegiado ao reclamante e a sonegação de informações ao ora agravante” (fl. 92). Por essas razões,
requer que “(i) o presente recurso seja julgado com a mesma urgência emprestada na análise do pedido de liminar e (ii) que as novas intimações sejam feitas
simultaneamente e da mesma forma para ambas as partes” (fl. 92).
Afirma que o Decreto estadual 3.348/08, impugnado nos autos da Ação
Popular 2.424/08, promoveu a nomeação do reclamante para o cargo de Secretário
de Estado de Transportes e, também, designou-o para responder, cumulativamente, sem remuneração, pela autarquia denominada Administração dos Portos
de Paranaguá e Antonina (APPA) (fl. 21), o que configuraria situação de fraude
à Súmula Vinculante 13.
Ressalta o Agravante que, caso não seja considerada ofensiva à Súmula
Vinculante 13 a nomeação do reclamante para o cargo de Secretário Estadual,
deve-se impedir o seu exercício do cargo de responsável pela Administração
dos Portos de Paranaguá e Antonina (APPA), eis que este seria essencialmente
administrativo e não político.
Sustenta, em síntese, a ocorrência de ofensa aos princípios da legalidade,
moralidade e impessoalidade, ante a tentativa de fraudar o que dispõe a Súmula
Vinculante 13, na medida em que, em 6 de janeiro de 2003, o reclamante fora
nomeado para o cargo de Superintendente da Administração dos Portos de
R.T.J. — 208
493
Paranaguá e Antonina (APPA), do qual foi exonerado, em 2 de setembro de
2008, pelo próprio Decreto estadual 3.348/08 (fl. 21).
Aduz que a intenção do Reclamante “sempre foi de permanecer no comando da APPA” (fl. 94), o que se materializou com a edição do mencionado
decreto.
Argumenta que se trata de um caso de desvio de finalidade, porquanto
“a nomeação do reclamante para o cargo de Secretário, adotando-se a suposta
exceção criada por essa Corte, foi a forma encontrada pelo Governador de dar
ares de legalidade ao exercício das funções do reclamante na autarquia portuária” (fl. 96).
Alega que no texto da Súmula Vinculante 13 não existe comando que permita a nomeação de agentes políticos, certo que há referência expressa à vedação
de exercício de cargos em comissão, “que é justamente o caso de Secretário de
Estado” (fl. 97).
Defende, ainda, que, no julgamento do RE 579.951/RN, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, “apenas considerou-se hígida a nomeação de Secretário Muni­
cipal de Saúde, irmão de vereador, em razão da deficiência do pedido e da
ausência de comprovação do ajuste mediante designações recíprocas” (fl. 97),
conhecido como nepotismo cruzado.
Suscita o Agravante, por fim, a ocorrência de grave violação à estrutura
administrativa da Secretaria de Estado de Transportes, “pois é inédita a situação do Secretário de Estado também responder pela administração de uma autarquia, máxime quando essa entidade possui em seu organograma a figura do
Superintendente, como é o caso da APPA” (fl. 100).
4. O agravado, Eduardo Requião de Mello e Silva, por sua vez, encaminha
“extrato de chamadas recebidas pelo fax” do escritório de seu advogado, com o
objetivo de comprovar que a decisão ora agravada lhe foi encaminhada em 25
de setembro, 14:11h (fl. 165), demonstrando a inexistência de tratamento privilegiado por parte do gabinete do eminente Ministro Cezar Peluso.
Em relação à alegação de que estaria a exercer as funções de Superinten­
dente da Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (APPA), assevera
o agravado que, no dia 16 de setembro de 2008, “delegou ao Diretor Administra­
tivo e Financeiro e ao Procurador Jurídico as atribuições de Superintendente da
APPA” (fl. 159) – Portaria 71/08 (fl. 170) e, dessa forma, “voluntariamente se
retirou do exercício daquelas funções, a fim de assumir o cargo de Secretário de
Estado” (fl. 159).
Ressalta, ainda, que, embora não esteja no exercício dessas funções, se
estivesse não haveria afronta à Súmula Vinculante 13, porquanto “o cargo de
Superintendente da Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (APPA)
também é de agente político” (fl. 160), na medida em que a APPA é uma autarquia estadual vinculada e não subordinada à Secretaria de Estado dos
Transportes.
494
R.T.J. — 208
Noticia a existência de precedente desta Corte no sentido de que o dirigente de autarquia pode ser considerado agente político (ADI 3.289/DF, Rel.
Min. Gilmar Mendes, Plenário, DJ de 24-2-06).
Destaca, ademais, que o Superintendente da APPA “tem status de
Secretário de Estado, porquanto é nomeado diretamente pelo Governador, não
se subordina a nenhuma Secretaria e comanda autarquia com autonomia administrativa, técnica e financeira” (fl. 162), além de participar “da elaboração e
execução das diretrizes de governo para a atividade portuária, juntamente com
a Secretaria Especial de Portos da Presidência da República” (fl. 161), bem como
exercer “funções políticas da própria União, substituindo-a na administração e
exploração dos portos paranaenses, atividade essa de interesse público e de reconhecida relevância nacional” (fl. 162).
Requer o Agravado, ao final, tendo em vista a argüição do Agravante de
que a função de Superintendente da APPA seria cargo de agente administrativo, que o Supremo Tribunal Federal declare a compatibilidade com a Súmula
Vinculante 13 de sua designação para responder pela administração da APPA.
5. O Juízo de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública, Falências e Concor­
datas do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba/PR
prestou informações (fls. 189-190). Alegou, em síntese, que o reclamante, na
condição de Secretário Estadual de Transportes, continuou a responder pela
Administração dos Portos, razão pela qual entendeu o magistrado haver indícios
sérios de afronta à moralidade.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. A decisão ora agravada, prolatada pelo eminente Ministro Cezar Peluso, tem o seguinte teor:
2. É caso de liminar.
A edição da Súmula Vinculante 13 teve como precedentes: ADI 1.521MC (DJ de 17-3-00); MS 23.780 (DJ de 3-3-06); ADC 12-MC (DJ de 1º-9-06);
ADC 12 (acórdão pendente de publicação) e RE 579.951 (acórdão pendente de
publicação).
No julgamento do RE 579.951, a Corte enfrentou, expressamente, situação
análoga à deste caso, como se tira a este excerto constante do Informativo STF 516:
“O Tribunal deu parcial provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Norte que reputara constitucional e legal a nomeação de parentes de
Vereador e Vice-Prefeito do Município de Água Nova, daquela unidade
federativa, para o exercício dos cargos, respectivamente, de Secretário
Municipal de Saúde e de motorista. Asseverou-se, inicialmente, que, embora a Resolução 7/07 do CNJ seja restrita ao âmbito do Judiciário, a vedação do nepotismo se estende aos demais Poderes, pois decorre diretamente
dos princípios contidos no art. 37, caput, da CF, tendo aquela norma apenas
disciplinado, em maior detalhe, aspectos dessa restrição que são próprios a
atuação dos órgãos jurisdicionais. (...)
R.T.J. — 208
495
Aduziu-se que art. 37, caput, da CF/88 estabelece que a administração pública é regida por princípios destinados a resguardar o interesse
público na tutela dos bens da coletividade, sendo que, dentre eles, o da
moralidade e o da impessoalidade exigem que o agente público paute sua
conduta por padrões éticos que têm por fim último alcançar a consecução
do bem comum, independentemente da esfera de poder ou do nível políticoadministrativo da Federação em que atue.
Acrescentou-se que o legislador constituinte originário, e o derivado,
especialmente a partir do advento da EC 1/98, fixou balizas de natureza
cogente para coibir quaisquer práticas, por parte dos administradores públicos, que, de alguma forma, buscassem finalidade diversa do interesse
público, como a nomeação de parentes para cargos em comissão ou de confiança, segundo uma interpretação equivocada dos incisos II e V do art. 37
da CF.
Considerou-se que a referida nomeação de parentes ofende, além dos
princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade, o princípio da
eficiência, haja vista a inapetência daqueles para o trabalho e seu completo
despreparo para o exercício das funções que alegadamente exercem.
Frisou-se, portanto, que as restrições impostas à atuação do administrador público pelo princípio da moralidade e demais postulados do art. 37
da CF são auto-aplicáveis, por trazerem em si carga de normatividade apta
a produzir efeitos jurídicos, permitindo, em conseqüência, ao Judiciário
exercer o controle dos atos que transgridam os valores fundantes do texto
constitucional.
Com base nessas razões, e fazendo distinção entre cargo estritamente administrativo e cargo político, declarou-se nulo o ato de
nomeação do motorista, considerando hígida, entretanto, a nomeação
do Secretário Municipal de Saúde. RE 579.951/RN, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, 20-8-08.”
(Grifamos.)
Colho dos autos (fls. 4, 5 e 60) que o magistrado reconhece, no decisum, que
a hipótese sob apreciação entra no âmbito de incidência da exceção aberta por esta
Corte para os cargos de natureza política:
“Não se nega, é verdade, que entendimentos existem no sentido de
que subsunção não haveria àquela Súmula quando a nomeação fosse feita
para os cargos de agente político. Parece, para esta superficial e provisória
cognição, que tal entendimento não pode ser sustentado.”
Ainda assim, determinou, liminarmente, a suspensão do Decreto 3.348/08,
o que aparenta, neste juízo prévio e sumário, afronta à Súmula Vinculante 13.
3. Do exposto, defiro o pedido de liminar, determinando a suspensão da
decisão impugnada, com o conseqüente restabelecimento da eficácia do Decreto
estadual 3.348/08. Comunique-se, com urgência, por ofício e fac-símile, o inteiro
teor desta decisão ao Juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública da comarca de Curitiba,
no Estado do Paraná, requisitando-lhe, ainda, que preste informações. Após, dê-se
vista à Procuradoria-Geral da República.
(Fls. 68-69.)
2. A decisão agravada não merece qualquer reforma, devendo ser mantida
por seus próprios fundamentos, por refletir o entendimento sedimentado nesta
Suprema Corte.
496
R.T.J. — 208
A decisão é irretocável. Como Relatora desta reclamação, teria prolatado
decisão no mesmo sentido, mas certamente não melhor fundamentada do que a
do meu eminente colega.
A decisão prolatada pelo Ministro Cezar Peluso se baseou no acórdão proferido, em 20 de agosto deste ano, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal
no julgamento do RE 579.951/RN, Rel. Min. Ricardo Lewandowski (DJE de
12-9-08).
Naquela ocasião, assentou-se que a nomeação de parentes para cargos
políticos não configuraria afronta aos princípios constitucionais que regem a
administração pública, tendo em vista a sua natureza eminentemente política.
A Súmula Vinculante 13 se encontra assim redigida:
A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral
ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de
servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda,
de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos
poderes da união, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.
(Destaquei.)
As nomeações para cargos políticos não se subsumem às hipóteses elencadas nessa súmula.
Daí a impossibilidade de submissão do caso do reclamante, nomeação
para o cargo de Secretário Estadual de Transporte, agente político, à vedação
imposta pela Súmula Vinculante 13, por se tratar de cargo de natureza eminentemente política. Por esta razão, não merece provimento o recurso ora interposto.
3. Quanto ao pedido formulado pelo agravante no sentido de que se impeça
o exercício pelo Reclamante do cargo de responsável pela Administração dos
Portos de Paranaguá e Antonina (APPA), autarquia estadual, chamo a atenção
de meus pares para o fato de que estamos a apreciar agravo regimental interposto contra decisão que deferiu a liminar e, não, o mérito da presente reclamação, motivo por que devemos limitar este julgamento apenas à aferição da
fumaça do bom direito.
É dizer, as relevantes questões da designação do Reclamante para responder, sem remuneração, pela administração da referida autarquia e do seu
afastamento, real ou virtual, das funções de Superintendente da APPA deverão
ser analisadas, com a profundidade que o caso requer, quando do julgamento do
mérito da presente reclamação, após a elaboração do parecer da ProcuradoriaGeral da República.
4. Entendo, todavia, Senhor Presidente, necessárias algumas ponderações
adicionais antes de concluir meu voto, tendo em vista a relevância do caso em
apreço.
R.T.J. — 208
497
É que não há sentido nas alegações externadas pelo agravante quanto à
conduta do prolator da decisão ora agravada.
O Agravante foi induzido a erro pela data que consta nas cópias de fls. 102104, qual seja, 23 de setembro de 2008.
O que ocorreu foi um equívoco lamentável por parte do agravante, ante
a impossibilidade lógica de uma decisão devidamente assinada por Ministro
desta Casa, em 24 de setembro, ter sido enviada, por fac-símile, ao advogado do
reclamante, em data anterior.
Certamente a data lançada pelo aparelho de fac-símile está errada. Essa é
a única conclusão lógica para o presente caso.
Nenhum Ministro desta Suprema Corte tem qualquer interesse em prejudicar ou beneficiar qualquer das partes.
Esta Corte cuida dos interesses maiores do País, julgando a constitucionalidade de atos, decisões e diplomas normativos.
Sua maior missão é a defesa da Constituição.
Tenho a honra e o privilégio de ter como meu substituto eventual o eminente Ministro Cezar Peluso, mestre emérito e magistrado de escol, com quem
sempre aprendo muito neste Tribunal.
Sua postura ética e seus vastos conhecimentos jurídicos adquiridos ao
longo de mais de quarenta anos de magistratura engrandecem esta Casa de
Justiça, não devendo sua honra ser deslustrada pelo simples lançamento errôneo
de uma data em um fac-símile, que sequer se sabe ter origem idônea.
Não pode esta Suprema Corte silenciar em relação a ofensas a seus
Ministros, sob pena de subversão do respeito que lhe é devido por todos os
brasileiros.
A vida pública imaculada de um magistrado da Corte Suprema do Brasil
não pode ser alvo de ilações como as que estamos a presenciar.
5. Concluo meu voto, Senhores Ministros, portanto, consignando, expressamente, meu repúdio veemente às suspeitas externadas pelo ora Agravante.
6. Ante o exposto, nego provimento ao agravo.
VOTO
O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, subscrevo em toda a
linha o voto da eminente Relatora.
VOTO
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, também faço questão
de ressaltar inclusive a parte final relativamente às impropriedades havidas no
caso.
498
R.T.J. — 208
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, nós nos reservaremos para examinar a questão de mérito quando do julgamento da reclamação.
Eu me permitiria fazer uma pequena observação. Por ocasião do julgamento do leading case que levou à edição da Súmula 13 estabeleceu-se que o
fato de a nomeação ser para um cargo político nem sempre, pelo menos a meu
ver, descaracteriza o nepotismo. É preciso examinar caso a caso para verificar se
houve fraude à lei ou nepotismo cruzado, que poderia ensejar a anulação do ato.
Com esse registro, acompanho inteiramente o voto da Relatora.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, eu também vou negar provimento ao agravo nos termos do voto da Ministra Relatora. Por igual repudio
qualquer tentativa de assacar contra V. Exa. comportamento que fuja da imparcialidade que a Constituição exige para os magistrados.
Também entendo, nos termos do voto da Ministra Relatora, que só quando
julgarmos o mérito da reclamação é que apreciaremos a natureza dessa nomeação para superintendente de autarquia. Apenas quero adiantar que também me
reservo para essa oportunidade do julgamento do mérito da reclamação com o
aprofundamento dessa discussão, mas não posso deixar de adiantar o seguinte:
de fato, a autarquia não se confunde com secretaria de Estado. Autarquia não faz
parte da estrutura de governo, da formação do governo; faz parte da administração pública. O cargo de superintendente de autarquia é singelamente administrativo, não é cargo de governo, porque não é de existência necessária, só é cargo
de governo todo aquele nominado pela Constituição e, como tal, de existência
necessária. Daí por que o próprio art. 76 da Lei Magna é claríssimo ao dizer que:
Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.
Fora do cargo de Presidente da República e do Ministro de Estado, não se
tem cargo de Governo.
No caso, apenas antecipo aligeiradamente a análise, mas não posso deixar de dizer que me causa profunda estranheza um secretário de Estado dirigir
simultaneamente uma autarquia, porque ele passa a ser supervisor e supervisionado ao mesmo tempo, sabido que os secretários de Estado, que têm por
êmulo, paradigma, os cargos de Ministros de Estados, exercem sobre toda a
administração pública direta e indireta “orientação, coordenação e supervisão” – inciso I do art. 87. No caso dos autos, teríamos esse paradoxo de um secretário de Estado supervisionar ele mesmo, já que como secretário de Estado
ele é supervisor, à luz da Constituição, e como dirigente de autarquia ele seria
supervisionado. Mas isso é assunto a ser aprofundado quando do julgamento do
mérito da reclamação.
Acompanho o voto da Relatora para negar provimento ao agravo.
R.T.J. — 208
499
VOTO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, o pano de fundo não é
bom. E digo isso porque, antes, o beneficiário da nomeação, parente consangüíneo do Governador, por ser irmão, ocupou a Superintendência da Administração
dos Portos de Paranaguá e Antonina. Portanto, ocupou cargo revelando-se, sob
o ângulo da qualificação, um servidor público, em que pese ao parentesco. Isso
ocorreu até 2 de setembro de 2008.
A publicação do verbete referente ao nepotismo, Presidente, no Diário,
é de 29 de agosto de 2008. Sinalizando o Supremo o alcance da Constituição
Federal, o que houve na espécie? Houve a exoneração do cargo que não poderia
estar sendo ocupado e, a seguir, a nomeação para um cargo político, o cargo de
Secretário Estadual dos Transportes. Mas esse pano de fundo não está em jogo,
como também não está em jogo o acerto ou desacerto da nomeação para o cargo
de Secretário Estadual de Transporte.
O que está em jogo, a meu ver, acima de tudo, é a adequação desse instrumental que tenho como excepcionalíssimo – a reclamação –, sempre a pressupor
a usurpação da competência do Supremo ou o desrespeito a decisão proferida.
Articulou-se que haveria o menosprezo ao Verbete Vinculante 13.
Indago: o Verbete Vinculante 13 prevê – não cabe interpretar verbete,
muito menos a contrario senso e vou esquecer aqui o precedente, a ocupação do
cargo público anterior – a possibilidade de nomeação de parente consangüíneo,
no segundo grau, para Secretaria de Estado? A resposta é negativa. Não se tem,
no teor do verbete, qualquer referência a agente político. Aliás versa proibição
e não autorização.
Leio, para documentação em voto, o verbete:
A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral
ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de
servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda,
de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.
Posso entender que o Juízo da ação popular, ao deferir – penso que foi uma
ação popular – a liminar que implicou o afastamento, inobservou o teor desse
verbete? Não posso, porque cogitou de algo totalmente diverso e, quem sabe,
tenha até mesmo considerado o pano de fundo ao qual me referi e que não estou
aqui a analisar.
Não posso julgar simplesmente, com queima de etapas, o ato do Juízo. O
que me cabe perquirir é se houve desrespeito, ou não, ao verbete vinculante. A
toda evidência não houve desrespeito. Dir-se-á que essa matéria foi versada no
julgamento do RE 579.951, com acórdão pendente de publicação. Mas caberia
reclamação, considerado esse precedente? Não caberia, porque o precedente foi
formalizado em processo subjetivo, com muros subjetivos próprios, e um terceiro
500
R.T.J. — 208
não poderia evocar o desrespeito à decisão, nesse processo, para pretender, com
isso, fulminar ato de órgão investido no ofício judicante.
De duas, uma: ou admitimos – e não sei qual será a conseqüência – uma
flexibilização sob o ângulo da adequação da reclamação ou não admitimos e
concluímos, cotejando o Verbete 13 com a decisão que se diz desrespeitosa
desse mesmo verbete, que não houve menosprezo.
Presidente, porque não posso empolgar o que assentado no RE 579.951 visando a ter base para a reclamação, já que se trata de processo subjetivo e porque
o Verbete 13 não versa – e teria que versar expressamente – a possibilidade da
nomeação verificada, peço vênia à Relatora e àqueles que a acompanharam para
prover o agravo interposto.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Presidente): Senhores Ministros, em relação
ao mérito da decisão, nada tenho a acrescentar, senão que a matéria foi versada
nos debates do último recurso extraordinário que serviu de fundamento para a
edição da súmula. Trata-se, portanto, de questão ligada à interpretação e, evidentemente, ao alcance da súmula.
E digo mais: nesse debate, foi consignada expressamente a posição, que
ressalvei, quanto à extensão da conclusão de que o alcance da súmula não atingiria os agentes políticos. Deixei-a em dúvida, permitindo-me reavaliar a questão em outra oportunidade. E, por isso, nada tenho que acrescentar, pois adotei,
na concessão da liminar, a posição da ilustrada maioria.
Senhores Ministros, eu terminaria aqui, não fosse a necessidade de trazer
não uma explicação, porque, sobretudo, o voto da eminente Relatora e as manifestações dos ilustres Senhores Ministros me confortam no plano pessoal. Em
quarenta anos da Magistratura, jamais desci, e não me permitiria, agora, descer ao porão das provocações, mas não posso deixar de consignar alguns fatos
que, a meu ver, dizem respeito à imagem e ao prestígio públicos desta Corte, e
demonstram até que ponto chega a leviandade de suspeitas contra a retidão do
comportamento dos Ministros desta Corte. Além do que a eminente Relatora
aduziu, ponho ordem aos fatos.
V. Exas. se recordam de que, no dia 24 último, houve queda do sistema
geral de energia elétrica do Supremo Tribunal Federal. O fato ocasionou o retardamento público, televisionado e transmitido pela Rádio Justiça, do início
da sessão plenária, que não pôde começar no horário usual à falta de energia
elétrica. Nada funcionava. Não funcionavam os alto-falantes, não funcionava o
relógio, não funcionavam, enfim, os sistemas eletrônicos da Corte. A circunstância de a queda do sistema elétrico do Tribunal interromper a programação
de todos os aparelhos eletrônicos da Corte acarretou esse fato óbvio de que as
programações dos fax foram automaticamente alteradas. Esse é o primeiro dado
público e notório.
R.T.J. — 208
501
Proferi a decisão liminar no dia 24, tal como nela está consignado e se
encontra certificado nos autos. Como até então fazia, em homenagem a tradição
desta Corte, meu gabinete costumava, uma vez publicada a decisão, ou o despacho, e inseridos nos autos antes da publicação no Diário Oficial, permitiu que
os patronos das partes com representação nos autos tivessem acesso, antes da
publicação no Diário Eletrônico ou no Diário Oficial, ao teor das decisões e dos
despachos, por razão óbvia.
E, no caso, havia uma particularidade: o fato de que o advogado do reclamante era advogado de outro Estado, e não pareceu justo ao gabinete fosse obrigado a aguardar a publicação no Diário Eletrônico ou no Diário Oficial, quando
já estava nos autos a decisão. Não havia necessidade sequer de comparecer à
sede deste Supremo Tribunal Federal para inteirar-se do teor daquela decisão.
De modo que o gabinete, atendendo à praxe usual do Tribunal, atendeu a seu
pedido telefônico e expediu-lhe um fax da decisão.
O que sucedeu? Sucedeu que o fax consignou expressamente a data exata:
dia 25 de setembro, horário 14h11 – em cima, textual. Só que, um pouco abaixo
dessa linha, em virtude da desprogramação do aparelho de fax, constou também
a data de 23, num outro horário e com dados invertidos. Mas a data exata constava do fax!
Isso não seria nada, não fosse a circunstância de do fax constar também,
expressamente, um carimbo de cópia e o número da folha dos autos, isto é, fax
emitido de cópia de folha dos autos. Pois não é que se suscita, até em jornais,
que Ministro desta Corte – para atender a interesse que não se sabe, porque não
conheço nenhuma das partes, nem nenhum dos advogados – teria favorecido o
advogado do Reclamante, em dano do advogado do reclamado, que não tinha
procuração até então nos autos, não obstante pudesse tê-lo na ação popular, e
que não teria recebido igual obséquio.
Ora, o advogado do reclamante tinha procuração nos autos e, portanto, era
legal e justo que pudesse receber fax, como lhe foi transmitido. O outro advogado, depois, que não tinha procuração nos autos, mas apenas na ação popular,
e, não a tendo nos autos da reclamação, não podia ser atendido do mesmo modo.
Não se sabe se tal advogado do reclamado seria o mesmo ou seria outro, mas
isso não tem o mínimo relevo no caso. O que tem relevo é o fato de que não há
nenhuma dúvida de que o fax foi emitido exatamente no dia 25, às 14h11 horas.
Em primeiro lugar, porque o advogado do reclamante juntou o extrato telefônico
do aparelho de fax, do qual consta, expressamente, recebimento no dia 25, no
horário determinado: 14h11. Não satisfeito com isso, pedi cópia à Embratel para
que não ficasse nenhuma dúvida sobre a data da emissão. Está aqui, Senhores
Ministros!
Faço esse registro para lamentar, recusando-me a crer que o nível da advoca­
cia brasileira chegue a esse extremo. Em segundo lugar, para que a Corte já não
corra risco de tais temeridades, determinei, a partir daquele dia, que meu Gabi­
nete não forneça a nenhum advogado informação por via telefônica. A Corte não
pode expor-se a esse tipo de suspeita leviana, em dano do prestígio da Justiça!
502
R.T.J. — 208
Peço desculpas a V. Exas., mas considero isso um dever de consciência
para com a imagem do Supremo Tribunal Federal, a Corte mais importante do
País, que não pode ficar exposta a suspeitas e a leviandades dessa ordem.
São as razões pelas quais, Senhores Ministros, peço vênia ao eminente
Ministro Marco Aurélio, para, em relação à decisão, manter integralmente o
decidido, negando provimento ao agravo.
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, já que fui voto divergente, não posso deixar de registrar que subscrevo, completamente, o que lançado pela Relatora quanto à eqüidistância de órgão integrado a esta Corte, de
integrante desta Corte. E só posso vislumbrar, no episódio, a maledicência. Não
vejo sequer o direito de espernear. Vislumbro maledicência, no que presumido
não o que normalmente ocorre, mas partindo-se da premissa segundo a qual
todos são salafrários até prova em contrário. Isso bem revela a quadra vivida,
de perda de parâmetros e de abandono a princípios. Há de se respeitar a mais
alta Corte do País. A mais alta Corte do País é personificada por aqueles que a
integram.
Apenas para não ficar qualquer dúvida em relação à minha postura, à minha posição: divergi, no campo das idéias, quanto à adequação da reclamação,
mas, se tivesse que fazê-lo, adentraria, quanto ao que levianamente sinalizado,
o mesmo campo que adentrou a Relatora, fazendo-o em advertência, das mais
sérias, aos desavisados de plantão.
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, V. Exa. me permite?
Tenho a sensação de que todos nós recebemos as informações que V. Exa. deu
apenas com um critério de generosidade, porque o ato, como foi dito pela eminente Ministra Relatora, é tão inqualificável que não merece nenhuma explicação da Corte.
Quem conhece e convive com V. Exa. sabe, às completas, da dignidade,
da honra, do caráter. E somos todos não só colegas, mas admiradores e amigos de V. Exa. E conhecemos a sua retidão e a sua biografia e a sua história.
E, como disse a Ministra Ellen Gracie, no seu excelente voto, e todos nós tivemos o cuidado de sublinhar que a acompanhávamos às completas, V. Exa.
é, para nós, também, uma referência, como é uma referência para o Brasil. E
nós temos muito orgulho de ter a companhia de V. Exa. nesta Suprema Corte
do Brasil.
É lamentável que a nossa advocacia esteja exposta à sanha de pessoas que
cometem atos que não dignificam a nobre atividade dos advogados. E isso, por
sua vez, tem conseqüências, e as conseqüências são, cada vez mais, a distância
entre os Magistrados e os advogados.
R.T.J. — 208
503
Quero que V. Exa. registre, e o peço encarecidamente, e tenho certeza que
o faço como expressão que a Ministra Ellen Gracie usou com tanto calor, com
tanta veemência e com tanta indignação e que representou a todos nós, mas
quero que V. Exa. receba, e tenho a certeza de que o faço em nome de todos os
meus colegas, que nós apenas ouvimos essas informações de V. Exa. e sequer
as recebemos como explicação. E nem o Brasil precisa recebê-las como explicação, porque o voto de V. Exa., a vida de V. Exa., a biografia de V. Exa. são suficientes para que todos nós reconheçamos o privilégio de sermos seus colegas na
composição da Suprema Corte do Brasil.
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Presidente): Agradeço muito a manifestação
de V. Exa.
EXPLICAÇÃO
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, V. Exa. me permite?
Apenas para enfatizar, chamei a atenção para circunstância de que, tal como
acaba de dizer o eminente Ministro Menezes Direito, V. Exa. não apresentou,
absolutamente – e que fique claro para os jurisdicionados, tal como também
deixou claro isso a Ministra Ellen Gracie, quando fez a sua exposição, na parte
final de seu voto –, explicação para ninguém aqui do Tribunal, nem para a
comunidade jurídica, nem para a sociedade brasileira. Parece-me que isso é
tão-somente para registro de documentos, para os que vierem depois e que eventualmente não conviverem com V. Exa. como temos a honra de conviver. Porque
ninguém, absolutamente em momento algum, poria em dúvida qualquer fato,
qualquer ato da parte de V. Exa. ou de qualquer um dos membros do Supremo
Tribunal, muito menos de V. Exa., que tem passado a vida a dar exemplos exatamente na Magistratura. É uma referência, como diz o Ministro Menezes Direito.
E mais do que isso: a vida de V. Exa. é a grande representação do que deve ser o
Brasil que nós esperamos, tanto de juízes quanto de jurisdicionados.
Era esse o registro.
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Presidente): Muito obrigado.
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, peço a palavra.
Apesar de ter sufragado integralmente o voto da eminente Relatora, sintome no dever de manifestar a minha integral solidariedade a V. Exa. e também
expressar meu total repúdio a esse lamentável ato praticado pelo advogado.
AGRADECIMENTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhores Ministros, agradeço-lhes a manifestação, e reafirmo que não fiz os registros por necessidade de resguardo de
504
R.T.J. — 208
caráter pessoal. V. Exas. e todos aqueles que tiveram a oportunidade de conviver
comigo, na experiência profissional de mais de quarenta anos na Magistratura,
conhecem minha história. A minha preocupação é apenas de que alguns, infelizmente, não conheçam a história deste Supremo Tribunal Federal.
Muito obrigado.
EXTRATO DA ATA
Rcl 6.650-MC-AgR/PR — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Agravante:
José Rodrigo Sade (Advogado: José Cid Campêlo Filho). Agravados: Eduardo
Requião de Mello e Silva (Advogados: Sergio Botto de Lacerda e outros) e Juiz
de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública, Falências e Concordatas da Comarca
de Curitiba (Ação Popular 2.424/08). Interessados: Roberto Requião de Mello e
Silva e Estado do Paraná (Advogada: Procuradoria-Geral do Estado do Paraná).
Decisão: O Tribunal, por maioria, negou provimento ao recurso de agravo,
nos termos do voto da Relatora, contra o voto do Ministro Marco Aurélio.
Votou o Presidente. Ausentes, porque em representação do Tribunal no exterior, os Ministros Gilmar Mendes (Presidente) e Eros Grau e, justificadamente,
o Ministro Joaquim Barbosa. Presidiu o julgamento o Ministro Cezar Peluso
(Vice-Presidente).
Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presentes à sessão os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Carlos Britto,
Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Procurador-Geral da
República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 16 de outubro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
R.T.J. — 208
505
AGRAVO REGIMENTAL NO
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 25.310 — DF
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Agravante: Carlos Henrique de Oliveira — Agravada: União
1. Mandado de segurança. Decadência. Consumação.
Cargo público. Concurso. Preterição de candidato aprovado.
Comportamento comissivo da autoridade administrativa. Termo
inicial do prazo preclusivo, que se exauriu no caso. Processo
extinto, com julgamento do mérito. Aplicação do art. 269, IV,
do CPC. Seguimento negado ao recurso ordinário. Precedente.
Para efeito de mandado de segurança contra preterição de candidato aprovado em concurso público, conta-se-lhe o prazo decadencial desde o comportamento comissivo da autoridade que
tenha configurado a preterição.
2. Serviço público. Cargo público. Concurso. Prazo de
validade. Expiração. Pretensão de convocação para sua segunda etapa. Improcedência. Existência de cadastro de reserva.
Irrelevância. Aplicação do acórdão do RMS 23.696. Precedente
do Plenário que superou jurisprudência anterior, em especial o
julgamento dos RMS 23.040 e RMS 23.657. Agravo improvido.
Expirado o prazo de validade de concurso público, não procede
pretensão de convocação para sua segunda etapa, sendo irrelevante a existência de cadastro de reserva, que não atribui prazo
indefinido de validez aos certames.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar
Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do
voto do Relator. Ausente, licenciado o Ministro Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Ministro Eros Grau.
Brasília, 3 de dezembro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. Trata-se de agravo regimental contra decisão em que neguei seguimento a recurso em mandado de segurança, nos seguintes termos:
1. Trata-se de recurso ordinário interposto contra acórdão da Terceira Seção
do Superior Tribunal de Justiça, assim ementado:
506
R.T.J. — 208
“Mandado de segurança. Processual Civil. Concurso público. Fiscal
do trabalho. Exaurimento do prazo de validade do edital. Decadência.
Extinção do processo. Precedentes do STJ.
1. O exaurimento do prazo de validade do concurso, assim como a
abertura de novo processo seletivo pela Administração Pública, põe termo
ao que se tem denominado omissão continuada e se constitui em termo inicial do tempo de decadência do mandado de segurança. Precedentes do STJ.
2. Transcorridos mais de quatro anos entre o termo de validade
do Edital n.º 01/1994 – MTE, em 09 de agosto de 1997, e da impetração
do mandamus em 01 de abril de 2002, deve ser acolhida a preliminar de
decadência.
3. Processo extinto com julgamento de mérito (art. 269, inc. IV, do
Código de Processo Civil).”
(Fl. 491.)
Foram apresentadas contra-razões (fls.539/546).
A Procuradoria-Geral da República é pelo improvimento do pedido (fls.
552/553).
2. Inviável o recurso.
Foram bem anotadas pela Procuradoria-Geral da República as seguintes
ponderações: (a) o Tribunal a quo não pronunciou a decadência, com base na Lei
7.144/83 – legislação refutada pelo Recorrente; (b) inexistem razões deduzidas
capazes de afastar a contagem do prazo decadencial, nos moldes decididos; (c) a
hipótese não envolve ato omissivo continuado, haja vista que o alegado direito tem
como pressuposto a preterição do interessado – ato de natureza comissiva –, e
(d) o writ, interposto em 1º-4-02, é intempestivo, qualquer que seja o termo inicial da contagem do prazo decadencial. Reproduzo este último aspecto, porque
decisivo para o caso:
“O concurso de que participou o recorrente é o relativo ao edital nº 1,
de 25.10.94. Ora, ainda que ele tivesse o direito de participar do curso de
formação profissional correspondente à 2ª etapa do referido certame (e isto
não parece admissível, tendo em vista a sua classificação), e tivesse sido
indevidamente preterido, a preterição teria ocorrido bem antes do período
de 120 dias que antecedeu a data da impetração do mandado de segurança.
E isto quer se considere como dies a quo a data da publicação do edital do
novo concurso (edital nº 69, de 17/08/98) ou a data da convocação, para a
participação no respectivo curso de formação, de candidatos classificados
nesse último certame (data que não foi informada pelos interessados, mas
que certamente é bem anterior à data da impetração), quer se leve em conta,
para esse fim, a data da nomeação dos candidatos aprovados nesse último
certame (nomeação que, de qualquer sorte, teria ocorrido em vagas decorrentes de aposentadorias ocorridas depois de expirado o prazo de validade
do concurso)”.
A intempestividade do mandado de segurança é, pois, manifesta, dado que
interposto muito além do prazo previsto no art. 18, da Lei 1.533/51, como já decidido pela Corte, no RMS 24.279, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 5-11-02, como
se vê, à síntese da ementa:
“Ementa: Constitucional. Processual Civil. Mandado de segurança:
decadência. Lei 1.533/51, art. 18. Concurso público: delegado da Polícia
R.T.J. — 208
507
Federal. I – Concurso público para o cargo de Delegado Federal prestado
no ano de 1993. Candidato não convocado para a segunda etapa. Divulgação
de edital, em 1997, para novo concurso. Impetração, em outubro de 2000, de
mandado de segurança. Decadência do direito à impetração. II – Recurso
não provido.”
Por fim, ainda que assim não fosse, no mérito, melhor sorte não ficaria ao recorrente. É que também vem da jurisprudência desta Corte, no julgamento de caso
idêntico, o entendimento de que, expirado o prazo de validade do concurso, não procede a pretensão de convocação para sua 2ª etapa, até porque a existência de cadastro de reserva não atribui aos certames prazo de validade indefinido (RMS 23.696,
Primeira Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 2-5-03). Esta decisão, aliás, superou a tese dos precedentes lembrados do Recorrente, um deles – o RMS 23.040 – já
desafiado pela AR 1.685, cuja cautelar foi referendada pelo Pleno, em 12-6-02.
3. Do exposto, nego seguimento ao recurso, nos termos do art. 21, § 1º, do
RISTF.
(Fls. 555/556.)
2. O agravante insiste nos argumentos, em especial na aplicação do que foi
decidido no RMS 23.657 (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 9-11-01).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Inconsistente o agravo.
A decisão agravada invocou e resumiu os fundamentos do entendimento
invariável da Corte, cujo teor subsiste invulnerável aos argumentos ora deduzidos, os quais nada acrescentaram à compreensão e ao desate da quaestio iuris.
Não custa, porém, advertir que o precedente invocado, qual seja, o RMS
23.657 (Rel. Min. Marco Aurélio), foi superado pela decisão do AR 1.734 (Rel.
Min. Joaquim Barbosa), cuja liminar foi referendada pelo Pleno, em 28-9-05,
prejudicando a tese sustentada pelo Agravante, como já consignara a decisão
agravada, em relação a outro precedente lembrado do mesmo Recorrente:
Por fim, ainda que assim não fosse, no mérito, melhor sorte não ficaria ao
Recorrente. É que também vem da jurisprudência desta Corte, no julgamento de
caso idêntico, o entendimento de que, expirado o prazo de validade do concurso,
não procede a pretensão de convocação para sua 2ª etapa, até porque a existência de cadastro de reserva não atribui aos certames prazo de validade indefinido
(RMS 23.696, Primeira Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 2-5-03). Esta
decisão, aliás, superou a tese dos precedentes lembrados do recorrente, um
deles – o RMS 23.040 – já desafiado pela AR 1.685, cuja cautelar foi referendada pelo Pleno, em 12-6-02.
(Grifei.)
2. Do exposto, nego provimento ao agravo.
508
R.T.J. — 208
EXTRATO DA ATA
RMS 25.310-AgR/DF — Relator: Ministro Cezar Peluso. Agravante:
Carlos Henrique de Oliveira (Advogada: Heloisa Stein Neves). Agravada: União
(Advogado: Advogado-Geral da União).
Decisão: O Tribunal, por votação unânime, negou provimento ao recurso
de agravo, nos termos do voto do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro Joaquim
Barbosa e, neste julgamento, o Ministro Eros Grau. Presidiu o julgamento o
Ministro Gilmar Mendes.
Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Eros
Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. ProcuradorGeral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 3 de dezembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
R.T.J. — 208
509
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 26.369 — DF
Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio
Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Menezes Direito
Recorrente: Jorge Rubem Folena de Oliveira — Recorrida: União
Recurso em mandado de segurança. Curso de pós-graduação. Expedição de diploma. Curso não-credenciado pelo MEC.
Ilegitimidade passiva do Ministro de Estado.
1. Mandado de segurança impetrado porque o diploma não
foi expedido, em virtude do curso de pós-graduação não estar
credenciado no MEC. Ministro de Estado não é autoridade competente para determinar a expedição de diploma, tendo a universidade autonomia específica para a prática desse ato.
2. Desqualificada a autoridade apontada como coatora,
Ministro de Estado da Educação, determina-se a remessa dos autos ao Tribunal competente para julgar o mandado de segurança
com relação às outras autoridades apontadas como coatoras.
3. Recurso ordinário em mandado de segurança desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Pri­
meira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro
Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas,
por maioria de votos, negar provimento ao recurso ordinário em mandado de
segurança.
Brasília, 9 de setembro de 2008 — Menezes Direito, Relator para o acórdão.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: O Superior Tribunal de Justiça considerou o
Ministro de Estado da Educação parte ilegítima para figurar no pólo passivo da
relação processual e, em conseqüência, declarou a própria incompetência para o
julgamento do pedido. Eis a síntese do acórdão (fl. 206):
Administrativo e processo civil – Universidade – Expedição de diploma de
curso de pós-graduação – Ilegitimidade passiva.
1. Como as universidades, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, gozam de independência administrativa, científica e econômica, é delas a atribuição
de expedir diplomas e não da autoridade maior.
2. Ilegitimidade passiva do Ministro, que afasta a competência desta Corte.
3. Extinção do processo em relação ao Ministro da Educação, com a remessa dos autos à Justiça Federal de Primeira Instância, Seção Judiciária do Rio
de Janeiro.
510
R.T.J. — 208
Foram protocolados sucessivos embargos de declaração, ambos desprovidos pelo Colegiado (fls. 265 a 268 e 289 a 293).
No recurso ordinário de fls. 311 a 318, o Impetrante insiste em que o ato
omissivo complexo atacado mediante o mandado de segurança é também de
responsabilidade do Ministro de Estado da Educação, “cuja responsabilidade
não se limita a simples cursos superiores, entre os quais o curso de Mestrado em
Direito concluído com êxito pelo recorrente, perante a Universidade Federal do
Rio de Janeiro” (fl. 313). Aduz que, na qualidade de autoridade hierárquica superior, o Ministro tem poderes para determinar às demais autoridades coatoras a
ele subordinadas a adoção das providências necessárias a salvaguardar o direito
líquido e certo, até mesmo em respeito aos princípios da legalidade, da moralidade administrativa e da confiança, pois o curso foi promovido e realizado por
uma universidade pública federal. Alude ao precedente desta Corte, da lavra
do Ministro Eros Grau, revelado no julgamento de agravo regimental no RMS
22.047-7/DF. Assevera a omissão do Ministro da Educação no exercício do poder de polícia, ao permitir o funcionamento de curso superior não reconhecido
e ao deixar de determinar o registro do diploma do recorrente, com validade
nacional e sem restrição.
A União, nas contra-razões de fls. 326 a 333, ressalta o acerto da conclusão
em torno da ilegitimidade do Ministro da Educação.
O recurso foi admitido por meio da decisão de fl. 341.
A Procuradoria-Geral da República, no parecer de fls. 348 a 352, preconiza o desprovimento do recurso, ante fundamentos assim resumidos (fl. 348):
Recurso em mandado de segurança. Competência para o julgamento do
mandamus. I – Diploma de mestre em direito. expedição pela universidade.
Autonomia. Ministro de Estado da Educação. Ilegitimidade passiva ad causam.
Incompetência do Superior Tribunal de Justiça. II – Parecer pelo desprovimento
do recurso.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Na interposição deste recurso, foram observados os pressupostos gerais de recorribilidade. Os documentos de fls.
21, 198, 319 e 339 evidenciam a regularidade da representação processual e do
preparo. Quanto à oportunidade, a notícia do acórdão dos declaratórios foi veiculada no Diário de 11 de setembro de 2006, segunda-feira (fl. 294), ocorrendo
a manifestação do inconformismo, via fac-símile, em 26 imediato, terça-feira
(fl. 299). A apresentação do original deu-se em 28 subseqüente, quinta-feira (fl.
311), no prazo legal. Conheço.
Processo é liberdade em sentido maior. As leis instrumentais, de regras
possuidoras de natureza imperativa cogente, visam à organicidade da tramitação, devendo as partes ter idéia daquilo que se mostra passível de acontecer.
R.T.J. — 208
511
Em primeiro lugar, cumpre o destaque do descompasso entre a decisão de
fl. 174, mediante a qual o Relator de sorteio indeferiu o pedido, julgando extinto
o processo ante a decadência prevista no art. 18 da Lei 1.533/51 e a inexistência de direito líquido e certo, e o acórdão prolatado pela 1ª Seção do Superior
Tribunal de Justiça. Em síntese, sem que a decisão monocrática viesse a ser alterada, julgou a Seção matéria diversa assentando a ilegitimidade do Ministro de
Estado da Educação. A essa altura, em face da devolutividade restrita do recurso
ordinário, em face da circunstância de ser objeto do inconformismo o acórdão
proferido, não se deve adentrar o tema. Prevalece a dinâmica do Direito, ficando
suplantada a quebra da organicidade a ele inerente.
No mais, reitero que a definição, sob o ângulo subjetivo, considerada certa
ação ajuizada, está umbilicalmente ligada à inicial, às causas de pedir e ao pedido da ação ajuizada. Os princípios, os institutos, as expressões e os vocábulos
que bem revelam o Direito como uma ciência possuem sentido próprio, não se
podendo confundir tema de fundo – possível procedência ou improcedência do
pleito formulado – com preliminar, como é a alusiva à definição da autoridade
coatora.
Pois bem, a partir dessa premissa – que tenho como inafastável, sob pena
de vingar a Babel –, registro que a impetração envolveu o Ministro de Estado da
Educação não só por haver aprovado e homologado ato do Conselho Nacional de
Educação – fl. 5 –, como também, segundo o alegado, por lhe competir, em última instância, o poder de polícia quanto à regularidade de cursos em instituição
de educação superior, principalmente em se tratando de universidade pública
federal. Considerados esses atos – comissivo e omissivo –, não cabia concluir
pela ilegitimidade.
Repito, mais uma vez, ser impossível a mesclagem de preliminar com o
mérito. Sem ir à questão de fundo veiculada na impetração, provejo o recurso
ordinário interposto para que, ultrapassada a preliminar de ilegitimidade do
Ministro de Estado da Educação como autoridade coatora, prossiga a Corte de
origem no julgamento do mandado de segurança.
VOTO
O Sr. Ministro Menezes Direito: O credenciamento e o reconhecimento
dos cursos são feitos no âmbito do Conselho Nacional de Educação. No entanto,
o reconhecimento de que os requisitos necessários ao cumprimento da carga
acadêmica, a expedição dos diplomas e as demais exigências dependem da universidade. A universidade tem autonomia específica para autorizar a expedição
do diploma. Qual é o temor que tenho, compreendendo inteiramente o voto
de V. Exa.? Se determinarmos a superação dessa base da ilegitimidade ativa,
vamos criar uma dificuldade no sentido de impor ao Tribunal o exame dos requisitos de reconhecimento do credenciamento de um curso de ensino superior.
A meu sentir, como o pedido tem relação direta com a expedição do diploma, e pelo que pude deduzir no parecer da Procuradoria-Geral da República
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R.T.J. — 208
há indicação efetiva de que o impetrante teria conhecimento de que o curso não
estava credenciado, evidentemente que o Ministro da Educação não é a autoridade competente para mandar fazer a expedição do diploma. O que é que pode
ocorrer? Na minha compreensão, quando se desqualifica a autoridade coatora e
se determina a remessa dos autos para o Tribunal competente com relação às outras autoridades apontadas como coatoras, evidentemente que, aí, sim, poder-seá fazer um exame específico do preenchimento dos requisitos necessários para
a expedição do diploma. Um desses requisitos é a existência do credenciamento
ou do reconhecimento, dependendo da fase em que ele se encontra.
O Sr. Ministro Menezes Direito: Eu tenho a convicção diversa. Estou
entendendo, aqui, que ele entrou com mandado de segurança argüindo que o
diploma dele não foi expedido pela universidade porque o curso não estava credenciado pelo MEC.
Ora, o credenciamento dos cursos e o reconhecimento dos cursos é feito
no âmbito do Conselho Nacional de Educação, mas a expedição dos diplomas,
o reconhecimento de que os requisitos necessários ao cumprimento da carga
acadêmica e demais exigências dependem da universidade. A universidade tem
autonomia específica para autorizar a expedição do diploma. Qual é o temor que
eu tenho, compreendendo inteiramente o voto de V. Exa.? É que, se nós determinarmos a superação dessa base da ilegitimidade ativa, nós vamos criar uma
dificuldade no sentido de impor ao Tribunal o exame dos requisitos de reconhecimento do credenciamento de um curso de ensino superior.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente e Relator): V. Exa. me passaria
o processo, por gentileza?
O Sr. Ministro Menezes Direito: Claro, com muito prazer. Eu estava até
verificando, aqui, a petição inicial.
Então, a meu sentir, como o pedido tem relação direta com a expedição
do diploma, e pelo que pude deduzir, no parecer da Procuradoria-Geral da
República, há indicação efetiva de que o impetrante teria conhecimento de que
o curso não estava credenciado, evidentemente que o Ministro da Educação não
é a autoridade competente para mandar fazer a expedição do diploma. O que é
que pode ocorrer? Na minha compreensão, quando se desqualifica a autoridade
coatora e se determina a remessa dos autos para o Tribunal competente com
relação às outras autoridades apontadas como coatoras, evidentemente que, aí,
sim, poder-se-á fazer um exame específico do preenchimento dos requisitos
necessários para a expedição do diploma. Um desses requisitos é a existência
do credenciamento ou do reconhecimento, dependendo da fase em que ele se
encontra.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente e Relator): Apenas para ressaltar, mais uma vez, a jurisprudência da Corte. Não é dado, no mandado de segurança, alterarem-se as balizas subjetivas da inicial.
R.T.J. — 208
513
Houvesse impetração apenas contra o Reitor, ou Pró-Reitor, para ensino
de graduados da Universidade Federal do Rio de Janeiro, não teria a menor dúvida em concluir que acertada se mostrou a decisão do Superior. Acontece que
o mandado de segurança foi direcionado contra ato do Pró-Reitor, contra ato do
Presidente do Conselho Nacional de Educação e, considerados o ato comissivo
e o omissivo do Ministro de Estado, contra a postura dessa última autoridade.
O Sr. Ministro Menezes Direito: Só que, como eu disse a V. Exa., no meu
entendimento.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente e Relator): Não vou discutir.
V. Exa. inclusive estava com o processo, deve ter examinado melhor do que eu
como Relator.
O Sr. Ministro Menezes Direito: Não, eu examinei apenas a questão da
inicial, como sempre faço. Na minha compreensão, o Ministro de Estado da
Educação, neste caso, não praticou nenhum ato suscetível de ser combatido pela
impetração da ordem de segurança. Por isso é que peço vênia a V. Exa.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente e Relator): Não adentro o mérito. Estou na preliminar quanto à autoridade coatora e paro nela. Inclusive a
decadência, assentada pelo Relator, a inexistência de direito líquido e certo estarão sob o crivo do órgão competente para apreciar o mandado de segurança,
que é o Colegiado, a Primeira Sessão do Superior Tribunal de Justiça. Apenas,
diante das balizas da inicial – e defino se a autoridade é parte legítima ou não
pela inicial –, sem proclamar procedência ou improcedência do pedido, concluo
cumprir ao Superior Tribunal de Justiça julgar a impetração. Somente isso.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, permito-me fazer uma breve observação a partir do memorial que recebi do Recorrente. Aqui
consta que, depois de defendida a dissertação de mestrado, o diploma foi efetivamente expedido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Exatamente, por um curso descredenciado.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Pois é. Isso não importa, data ve­
nia, porque tenho o entendimento de que os títulos de mestrado, doutorado e
livre-docência têm validade dentro da universidade, em função de sua autonomia administrativa, financeira e pedagógica.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Sim, mas digo isso, Ministro, porque o
Ministro Marco Aurélio fez uma observação importante.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Permita-me só terminar o raciocínio.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Claro.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Então, a meu ver, o que o Recorrente
pretende, aqui, é obter validade ao título que obteve na Universidade Federal do
Rio de janeiro, validade erga omnes; ela quer compelir a Universidade a mandar esse título de mestrado ao Ministério de Educação e Cultura para que este,
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R.T.J. — 208
compulsoriamente, reconheça essa validade erga ommes. Ocorre que a validade
erga omnes se faz a partir de um credenciamento que a Capes outorga aos distintos cursos de mestrado e doutorado existentes no Brasil, que é a Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, um órgão do Ministério da
Educação e Cultura, e o faz a partir de um processo bastante complexo e verticalizado, ao examinar os títulos que têm os professores, as bibliotecas, as instalações físicas, a produção acadêmica, a pesquisa e tudo mais.
Portanto, até pedindo vênia ao eminente Relator, permito-me adiantar o
meu voto e acompanhar a divergência para entender que, realmente, o Ministro
da Educação não pode figurar no pólo passivo dessa demanda.
É como voto.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente e Relator): Ele, a rigor, não está
figurando no pólo passivo, porque eu, pelo menos, distingo.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Ele está figurando como autoridade
coatora.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente e Relator): Eu pelo menos distingo, no mandado de segurança, a parte passiva da autoridade apontada como
coatora.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Também faço isso. Concordo com
V. Exa. Isso é uma tecnicalidade com a qual concordo.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente e Relator): Mas reconheço que
a ilustrada maioria não distingue, inclusive o Tribunal não tem feito a distinção.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: O que ela quer, na verdade, é compelir o Ministério da Educação a dar validade ao título de mestrado erga omnes
sem passar pelo processo de credenciamento da Capes.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente e Relator): Se procede ou não
o que articulado, foi o que disse, não posso ir ao mérito para depois voltar à
preliminar; se procede ou não o que ela articula em termos de causa de pedir,
decidirá a Corte competente, que não é o Supremo, mas o Superior Tribunal de
Justiça. Por ora, fico apenas nessa questão, ou seja, tendo em conta as balizas
da inicial, no que se aponta um ato comissivo e um ato omissivo do Ministro de
Estado da Educação, competente para julgar esse pedido é o Superior e não a
primeira instância.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Eu gostaria apenas de fazer mais
um pequena observação. Ontem, por coincidência, tive um contato com um dos
mais eminentes professores da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo. Estávamos trocando idéias sobre os cursos de pós-graduação na nossa
Universidade e ele disse que nós temos vários cursos de mestrado em Medicina –
uma das melhores faculdades de Medicina do País, quiçá do mundo – que não
estão ainda credenciados, mas outorgam diplomas de mestre. Eles valem para
carreira acadêmica dentro da Universidade de São Paulo sem nenhum problema.
R.T.J. — 208
515
A única desvantagem do título de mestre ou doutor que não tem validade erga
omnes é que não pode ser utilizado numa outra universidade. No momento em
que é credenciado, ele tem efeito erga omnes, pode ser utilizado em concursos,
e em todas as atividades acadêmicas nas universidades do todo o País.
VOTO
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, peço vênia à divergência, mas vou acompanhar V. Exa. O que se põe aqui, o que está sendo discutido
e foi enfatizado desde o relatório, parece-me, é basicamente se o Ministro da
Educação comparece ou não na condição de impetrado, vale dizer, de autoridade coatora no mandado de segurança impetrado. Este caso, como foi posto – e
o Ministro Ricardo Lewandowski também chamou a atenção, só que chego à
conclusão contrária a que ele expõe –, é exatamente de que o curso de mestrado
em Direito teria sido desativado por decisão do Conselho de Ensino, portanto,
com ligações diretas com essa autoridade.
O Sr. Ministro Menezes Direito: Ministra, V. Exa. me permite só uma observação? Sem querer insistir.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Sim, por favor.
O Sr. Ministro Menezes Direito: É só para dizer o seguinte: nesses casos, o
que acontece é que o Conselho de Ensino e Pesquisa da Universidade, de acordo
com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, é que pode fazer isso. O
Ministro da Educação não tem nenhuma interferência nesse caso.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Eu sei, Ministro. Aliás até componho um
órgão desse na PUC de Minas. Estou dizendo é que a referência feita quanto à
circunstância de ter sido desativada, e que foi da Universidade, repercute no
patrimônio de bens jurídicos que o Impetrante, no caso, acha que tem direito.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: E não me parece que haja o envio
do título para o MEC. Na verdade, há o credenciamento ao curso. A partir do
momento em que o curso é credenciado, ele tem validade.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: E isso quem vai decidir, pelo que estou
entendendo, é a entidade competente na hora que julgar essa matéria lá. Essa
matéria, neste caso, com esses dados que estão agora adiantando, parece-me que
tem de ser examinada lá.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente e Relator): Aponta-se aqui que o
Ministro de Estado da Educação nada tem a ver com a controvérsia, mas que o
diga o órgão competente – o Superior.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Quando eles examinarem, eles podem dizer isso, mas não aqui, e sim o órgão competente. A circunstância de ele ter sido
posto como impetrado, portanto, autoridade coatora na parte passiva, não me
parece que seja alguma coisa que mereça de pronto o não-provimento.
Razão pela qual peço vênia à divergência, mas acompanho o voto do Relator.
516
R.T.J. — 208
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, estamos desafiados, hoje
à tarde, a discutir sobre temas que, pelo menos sob minha óptica, são polêmicos.
Claro que todo Ministro de Estado, disse bem a advogada, da tribuna, por
comando constitucional, exerce a orientação, coordenação e supervisão tanto
dos órgãos de administração direta quanto das entidades de administração indireta. É o inciso I do art. 87.
Quando o Ministro de Estado atua no âmbito dos órgãos da administração direta, portanto, órgãos privados de personalidade jurídica, ele, Ministro
da Educação, exerce um poder hierárquico propriamente dito. Quando ele atua
sobre as entidades da administração indireta, exerce um poder que não é de polícia, é um poder de tutela ou de controle das entidades da administração indireta.
Bem, essa é a regra geral. Porém, em matéria de universidade, a Constituição
contém uma disposição específica. As universidades gozam de autonomia, não
só didática, científica, financeira e patrimonial como administrativa e de gestão.
Quer dizer, a Constituição separou os órgãos e entes constituídos sob a forma
de universidade para lhes outorgar uma autonomia administrativa que não fez
em nenhuma outra passagem. Não há nenhuma outra passagem da Constituição
em que se destaque uma categoria de órgão ou de entidade da administração
indireta para aquinhoá-la – a entidade – ou aquinhoá-lo – o órgão – com essa
autonomia tão diversificada, autonomia de gestão patrimonial, financeira, didática, científica, administrativa, como a forçar mesmo que, nos mandados de
segurança, quando da indicação das autoridades impetradas, os impetrantes não
extrapolem o campo das próprias universidades, sejam universidades-órgão, sejam universidades-entidades ou aparelhos ou aparatos personalizados.
Por isso eu me inclino também para afastar da categoria de autoridade coatora o Ministro de Estado da Educação.
Peço vênia ao Ministro Marco Aurélio e à Ministra Cármen Lúcia para
acompanhar a dissidência inaugurada pelo Ministro Carlos Alberto Direito.
EXTRATO DA ATA
RMS 26.369/DF — Relator: Ministro Marco Aurélio. Relator para o acórdão: Ministro Menezes Direito. Recorrente: Jorge Rubem Folena de Oliveira
(Advogados: João Alberto de Sá Barbosa e outros). Recorrida: União (Advo­
gado: Advogado-Geral da União).
Decisão: Por maioria de votos, a Turma negou provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança; vencidos o Ministro Marco Aurélio, Presi­
dente Relator, e a Ministra Cármen Lúcia. Relator para o acórdão o Ministro
Menezes Direito. Falou a Dra. Sandra Maria do Couto e Silva, pelo Recorrente.
R.T.J. — 208
517
Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros
Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Sub­
procurador-Geral da República, Dr. Rodrigo Janot.
Brasília, 9 de setembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
518
R.T.J. — 208
MANDADO DE SEGURANÇA 26.484 — DF
Relatora: A Sra. Ministra Cármen Lúcia
Impetrante: Município de Ourém — Impetrado: Presidente do Tribunal de
Contas da União (Decisão Normativa 79/06)
Mandado de segurança. Fundo de Participação dos Mu­
nicípios. Cálculo do coeficiente de participação segundo critérios demográficos. Leis Complementares 91/97 e 106/01.
Com­pensação dos ganhos adicionais, percebidos em exercícios
financeiros anteriores, mediante a aplicação gradual de fatores
de redução.
1. O critério legal estabelecido no art. 2º da Lei Comple­
mentar 91/97 reduz a participação dos Municípios que recebem
mais que o permitido pelos seus índices populacionais e conduz
a maior participação daqueles que percebem menos do que
deveriam.
2. A Lei Complementar 91/97 não assegura aos Municípios
sujeitos ao fator de redução o direito de perceber o mesmo valor
dos Municípios que, com a mesma população, não estejam sujeitos ao redutor. Precedentes: MS 26.469/DF, MS 26.479/DF, MS
26.489/DF e MS 26.499/DF, todos de relatoria do Ministro Eros
Grau.
3. Apreciação do critério adotado pelo legislador é matéria
não sujeita à análise jurídica possível na via do mandado de segurança, que não se presta à impugnação de lei em tese (Súmula
266 do Supremo Tribunal Federal).
4. Segurança denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência da Ministra Ellen
Gracie, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade, denegar a segurança, nos termos do voto da Relatora.
Brasília, 7 de abril de 2008 — Cármen Lúcia, Relatora.
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: 1. Mandado de segurança, com pedido
de medida liminar, impetrado neste Supremo Tribunal Federal pelo Município
de Ourém/PA, em 21-3-07, contra ato do Presidente do Tribunal de Contas da
União, tendo como finalidade a correção dos “cálculos que [teriam] reduz[ido]
seu repasse a valor inferior ao de município em igual situação” (fl. 10 – grifos
no original).
R.T.J. — 208
519
O caso
2. Em 14-11-06, o Tribunal de Contas da União aprovou a Decisão
Normativa 79, que estabeleceu, para o exercício de 2007, “os coeficientes destinados ao cálculo das quotas referentes ao Fundo de Participação dos Estados
e do Distrito Federal – FPE e ao Fundo de Participação dos Municípios – FPM,
previstos no art. 159, inciso I, alíneas a e b, da Constituição Federal, bem como
à Reserva instituída pelo art. 2º do Decreto-lei 1.881, de 27 de agosto de 1981”
(fl. 17).
3. O Impetrante afirma enquadrar-se na hipótese do art. 1º, § 2º, da Lei
Complementar 91/97, com redação dada pela Lei Complementar 106/01, pelo
que estaria sujeito “à sistemática dos redutores financeiros, que incidem sobre o
ganho adicional percebido” (fl. 4).
Alega que esses redutores buscam “garantir que os Municípios enquadrados no que dispõe o § 2º do art. 1º tivessem uma redução gradual em seus
coeficientes, passando, somente a partir de 2008, a receber o mesmo que outro
Município com população equivalente que tivesse seu coeficiente calculado na
forma do caput do art. 1º ” (fl. 5).
O Município impetrante noticia que estaria recebendo, “já no exercício de
2007, não o mesmo valor que outro de população equivalente cujo cálculo seja
efetuado na forma do caput do art. 1º, mas valor inferior, o que [seria] incompreensível” (fl. 5).
Salienta que a Lei Complementar 91/97 teria sido concebida “para ame­
nizar as conseqüências orçamentárias dos Municípios por ela atingidos, mas
não, definitivamente, para causar-lhes mais e imediatos gravames, a ponto de
torná-los mais carentes de recursos do que os seus exatamente iguais” (fl. 6 –
grifos no original).
Compara os índices por ele percebidos com os de outro Município com
mesmo coeficiente, para concluir que haveria “descompasso entre o que a lei
pretendeu e a realidade, pois o ora Impetrante deveria estar recebendo [até
2008] um maior volume de recursos financeiros do que o Município de Bagre
(...) [mas], já em 2007, a participação relativa nos repasses de [Fundo de
Participação de Municípios] do Impetrante (0,436242%) é inferior à de BAGRE
(0,456810%)” (fl. 6, grifos no original).
Argumenta que a Decisão Normativa 79/06, “ainda que pareça obedecer
o que dispõem as LCs 91/97 e 106/01” (fl. 7), estaria afrontando-as e “prejudicando Municípios que deveriam estar sendo beneficiados” (fl. 7).
Requer “seja reconhecido o direito de o Município impetrante ter o coeficiente dos repasses do [Fundo de Participação dos Municípios] em coeficiente
igual ao dos Municípios em idêntica situação no Estado do Pará” (fl. 10).
4. Em 26-3-07, indeferi a liminar pleiteada e determinei fossem prestadas
informações pela autoridade coatora (fls. 29-36).
5. Em 11-4-07, a autoridade coatora esclareceu que, ao estabelecer o redutor financeiro aos Municípios que apresentassem “ganhos adicionais”, a Lei
520
R.T.J. — 208
Complementar 91/97 teria determinado que essas reduções fossem distribuídas
aos demais Municípios do Estado.
Dessa forma, explica, a redistribuição das reduções faria com que “os
Municípios que não estão sujeitos a redutores e que possuam o mesmo coeficiente daquele que sofreu a incidência do redutor passa[ssem] a receber mais
recursos pelo [Fundo de Participação dos Municípios], ampliando a sua participação relativa no total do Estado” (fl. 42).
6. Em 23-5-07, o Procurador-Geral da República manifestou-se pela denegação da ordem.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora):
Da preliminar de decadência
1. A Decisão Normativa 79/06 do Tribunal de Contas da União, publicada
em 20-11-06, estabeleceu, no art. 2º, que sua entrada em vigor ocorreria em
1º-1-07.
Dúvidas não remanescem de que, somente a partir dessa data, o Município
impetrante poderia ser efetivamente submetido aos coeficientes e redutores por
ela aprovados.
A considerar que o Impetrante tenha recebido a primeira parcela do Fundo
de Participação do Município em valor a menor do que entende ser a ele devido
em 10-1-07, é tempestivo o presente mandado de segurança, impetrado em
21-3-07.
No mérito
2. Nesta ação, o Município impetrante questiona o cálculo do coeficiente
do Fundo de Participação dos Municípios recebido por ele, aprovado pela
Decisão Normativa TCU 79/06, ao argumento de que outro ente municipal,
com número de habitantes aproximado ao seu, receberia percentual maior no
repasse.
3. A matéria posta em exame não é nova no Supremo Tribunal Federal,
que já decidiu pela competência do Tribunal de Contas da União para efetuar,
nos termos da legislação vigente e com base nos dados fornecidos pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o cálculo das quotas referentes ao
Fundo de Participação dos Municípios.
São exemplos disso os precedentes seguintes: MS 22.752/PR, Rel. Min.
Néri da Silveira, Tribunal Pleno, DJ de 21-6-02; MS 24.057/DF, Rel. Min.
Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ de 21-6-02; MS 22.828/PR, Rel. Min. Néri
da Silveira, Tribunal Pleno, DJ de 14-6-02; e MS 24.063/DF, Rel. Min. Nelson
Jobim, Tribunal Pleno, DJ de 7-6-02.
R.T.J. — 208
521
4. A Lei Complementar 91/97, com redação dada pela Lei Complementar
106/01, estabelece:
Art. 1º Fica atribuído aos Municípios, exceto os de Capital, coeficiente individual no Fundo de Participação dos Municípios – FPM, segundo seu número
de habitantes, conforme estabelecido no § 2º do art. 91 da Lei nº 5.172, de 25 de
outubro de 1966, com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 1.881, de 27 de agosto
de 1981.
(...) § 2º Ficam mantidos, a partir do exercício de 1998, os coeficientes do
Fundo de Participação dos Municípios – FPM atribuídos em 1997 aos Municípios
que apresentarem redução de seus coeficientes pela aplicação do disposto no caput
deste artigo.
Art. 2º A partir de 1º de janeiro de 1999, os ganhos adicionais em cada exercício, decorrentes do disposto no § 2º do art. 1º desta Lei Complementar, terão
aplicação de redutor financeiro para redistribuição automática aos demais participantes do Fundo de Participação dos Municípios – FPM, na forma do que dispõe o
§ 2º do art. 91 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, com a redação dada pelo
Decreto-Lei nº 1.881, de 27 de agosto de 1981.
§ 1º O redutor financeiro a que se refere o caput deste artigo será de:
(...) IX – noventa pontos percentuais no exercício financeiro de 2007.
§ 2º A partir de 1º de janeiro de 2008, os Municípios a que se refere o § 2º
do art. 1º desta Lei Complementar terão seus coeficientes individuais no Fundo de
Participação dos Municípios – FPM fixados em conformidade com o que dispõe
o caput do art. 1º.
5. Em 1997, o Município impetrante possuía coeficiente individual de participação de 1,4 (fl. 20), embora seu índice populacional permitisse o coeficiente
de apenas 1,0, caracterizando, assim, um ganho adicional de 0,4.
De acordo com o art. 2º da Lei Complementar 91/97, esse ganho deve ser
submetido a uma redução gradual, sendo-lhe aplicado um coeficiente redutor
que, até o final de 2008, eliminasse a distorção entre o Município impetrante
e aqueles que já estavam recebendo a cota de participação em percentual adequado à sua população, ou seja, Municípios que não recebiam qualquer ganho
adicional.
6. O fator de redução a incidir sobre o ganho adicional do Município impetrante, conforme os critérios estabelecidos no art. 2º, § 1º, inciso IX, da Lei
Complementar 91/97, para o ano de 2007 é de 90% (0,4 x 90% = 0,36). Com a
aplicação desse redutor, o coeficiente do Município de Ourém/PA deveria ser
ajustado para 1,04, garantindo a ele a participação em 0,436242% nos fundos
destinados aos Municípios paraenses.
O Município de Bagre/PA, adotado como paradigma, possuía originalmente o coeficiente de 1,0 e não se submetia redutor algum. Ao contrário, passou
a ser compensado no momento da redistribuição dos ganhos adicionais percebidos por entes municipais como o Município impetrante. É em razão disso que o
Município de Bagre/PA recebe uma parcela extra que eleva seu coeficiente para
1,089035 e que dá direito a ele de participar em 0,45681% daquele fundo.
522
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7. O Tribunal de Contas da União apenas aplicou ao Município impetrante
os critérios estabelecidos nas normas que regem a matéria, não havendo, por
isso mesmo, qualquer ato coator ou equívoco de cálculo, como o Município impetrante pretendeu comprovar na presente ação.
Como asseverado pela autoridade coatora, o art. 2º da Lei Complementar
91/97, a um só tempo, determina a aplicação do redutor aos Municípios cujo
coeficiente de participação mostre-se superior ao devido e, ainda, define que os
percentuais ali apurados devem ser redistribuídos aos demais Municípios participantes do fundo.
Em efeito, se por um lado o critério legal reduz a participação dos Muni­
cípios que recebem mais que seus índices populacionais lhes permitiriam, de
outro, conduz a maior participação daqueles que percebem menos do que deviam. Depreende-se disso o nítido propósito do legislador de reduzir as desigualdades entre Municípios com populações semelhantes, e não de agravá-las.
8. Na assentada de 22-11-07, no julgamento dos MS 26.469/DF, MS
26.479/DF, MS 26.489/DF e MS 26.499/DF, todos de relatoria do Ministro Eros
Grau, os quais versavam sobre matéria idêntica à debatida no caso vertente, o
Plenário do Supremo Tribunal, por unanimidade, denegou as seguranças pleiteadas (DJ de 4-12-07).
9. Saliente-se que a apreciação da justiça do critério adotado pelo legislador é matéria não sujeita à análise jurídica possível na via do mandado de
segurança, que não se presta para a impugnação de lei em tese (Súmula 266 do
Supremo Tribunal Federal).
Nesse sentido, são os precedentes: MS 25.609-AgR-ED/DF, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ de 22-9-06; MS 25.893-AgR/DF, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJ de 25-8-06; MS 25.456-AgR/DF,
Rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, DJ de 9-12-05, RMS 24.266/DF, Rel.
Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ de 24-10-03; MS 22.743/SC, Rel. Min.
Néri da Silveira, Tribunal Pleno, DJ de 1º-3-02; MS 23.622/PR, Rel. Min. Néri
da Silveira, Tribunal Pleno, DJ de 14-12-01; MS 23.023/RJ, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, Tribunal Pleno, DJ de 29-9-00; MS 20.805/DF, Rel. Min. Maurício
Corrêa, Tribunal Pleno, DJ de 14-2-97; MS 22.132/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso,
Tribunal Pleno, DJ de 18-11-96; MS 21.953/AM, Rel. Min. Carlos Velloso,
Tribunal Pleno, DJ de 30-9-96; e MS 22.083/GO, Rel. Min. Néri da Silveira,
Tribunal Pleno, DJ de 24-8-01.
10. Pelo exposto, não tendo sido comprovado qualquer direito do Impe­
trante, menos ainda líquido e certo, que pudesse ter sido ameaçado ou lesado
pelo ato apontado como coator, o qual, também, não se caracteriza por qualquer
ilegalidade ou abuso de poder, voto no sentido de denegar a segurança.
EXTRATO DA ATA
MS 26.484/DF — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Impetrante: Municí­
pio de Ourém (Advogados: Maria Tereza Calil Nader e outros). Impetrado:
Presidente do Tribunal de Contas da União (Decisão Normativa 79/06).
R.T.J. — 208
523
Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora,
denegou a segurança. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello,
Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski.
Presidiu o julgamento a Ministra Ellen Gracie.
Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros
Marco Aurélio, Carlos Britto, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito.
Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 7 de abril de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
524
R.T.J. — 208
HABEAS CORPUS 85.653 — SP
Relator: O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski
Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Carlos Britto
Paciente: Antônio José Zamproni — Impetrantes: Maria Cláudia de Seixas
e outros — Coator: Superior Tribunal de Justiça
Habeas corpus. Crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do Código Penal). Oitiva de testemunha no
exterior. Pedido de expedição de Carta Rogatória. Gratuidade.
Impossibilidade. Compatibilidade com o art. 804 do Código
de Processo Penal. Ausência de cerceamento de defesa. Ordem
denegada.
I – A cobrança antecipada de despesa relativa à expedição
de carta rogatória para a oitiva de testemunha defensiva não
configura cerceamento de defesa.
II – A gratuidade se refere, exclusivamente, às diligências
requestadas pelo órgão ministerial público. Interpretação das
letras b e k do item 10 da Portaria 26, de 14 de agosto de 1990,
com a redação da Portaria 16, de setembro de 2003, ambas do
Ministério das Relações Exteriores. Interpretação que afina com
o art. 804 do Código de Processo Penal, que se destina aos feitos
em curso no Brasil.
III – Ordem denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal em rejeitar a questão de ordem. No mérito,
por maioria de votos, indeferir o pedido de habeas corpus, o que fazem em sessão presidida pelo Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski,
Relator, e a Ministra Cármen Lúcia. Relator para o acórdão o Ministro Carlos
Britto.
Brasília, 5 de agosto de 2008 — Carlos Ayres Britto, Relator para o
acórdão.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de habeas corpus impetrado por Maria Cláudia de Seixas e outro em favor de Antônio José Zamproni
contra o acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça que denegou
o HC 38.418/SP, nos termos da ementa que segue transcrita:
R.T.J. — 208
525
Processual Penal. Habeas corpus. Apropriação indébita previdenciária.
Oitiva de testemunha no exterior. Expedição de Carta Rogatória. Adiantamento
das custas pelo interessado. Irreal conflito entre normas. Compatibilidade com o
disposto no art. 804 do Código de Processo Penal. Cerceamento de defesa inexis­
tente. Ordem denegada.
1. Eventual ocorrência de conflito entre normas (Portaria nº 26/1990/MRE,
art. 10, letra “k” – Decreto Legislativo nº 61/1995 c/c Decreto nº 2.022/1996) será
resolvida pela aplicação do critério cronológico, por meio do qual a norma posterior, que na hipótese é ainda de hierarquia superior, revoga a anterior.
2. A antecipação, pelo interessado, da despesa relativa à expedição de carta
rogatória não se confunde com a condenação do vencido nas custas processuais,
razão pela qual não há incompatibilidade entre a decisão que determina o adiantamento da referida despesa com disposto no art. 804 do Código de Processo Penal.
3. Na hipótese de sobrevir sentença absolutória, o paciente terá direito ao
reembolso das custas por ele eventualmente antecipadas, decorrente da produção
de prova oral no exterior que entendeu ser necessária e indispensável, evitando-se,
assim, na medida do possível, expedientes meramente procrastinatórios.
4. Cerceamento de defesa inexistente.
5. Ordem denegada.
(Fl. 132.)
O Paciente foi denunciado pela prática do crime previsto no art. 168-A
do Código Penal porque teria descontado contribuições previdenciárias de seus
empregados e deixado de recolhê-las à Previdência Social.
Narram os Impetrantes que, devidamente recebida a denúncia, a defesa
arrolou duas testemunhas residentes nos Estados Unidos da América do Norte,
com a finalidade de corroborar os fatos alegados por Co-réu em seu interrogatório (fl. 53).
A autoridade judicial, então, determinou que a defesa, no prazo de 3 (três)
dias, comprovasse a necessidade de inquirição de tais testemunhas. Em resposta, a defesa alegou que “a importância de tais oitivas reside nos fatos e nas
teses defensivas que iria comprovar, tais como: À crise asiática, à desvalorização cambial e às dificuldades financeiras suportadas pelas filiais da empresa
‘Smar Equipamentos Industriais Ltda.’, com sede no estrangeiro, que também
contribuíram substancialmente para agravar a crise enfrentada pela empresa no
Brasil” (fl. 4).
Na seqüência, determinou o Magistrado que fosse intimada a defesa para
que, no prazo de 3 (três) dias, apresentasse os quesitos necessários ao cumprimento da carta rogatória e os demais documentos pertinentes, nos termos
da alínea e do item 10 da Portaria 26, de 14-8-90, do Ministério das Relações
Exteriores (fl. 64).
Formulados os quesitos (fls. 66-69), determinou a autoridade judicial o
cumprimento dos itens 6 e 10, j, da referida Portaria, no prazo de 10 (dez) dias,
sob pena de preclusão (fl. 81). Diante do descumprimento da providência no
prazo assinalado, o Magistrado entendeu que ocorreu a preclusão no tocante à
expedição da carta rogatória (fl. 94).
526
R.T.J. — 208
Inconformados, sustentam os impetrantes, em síntese, que não se aplica
ao caso a alínea j do item 10 da Portaria 26/90-MRE, que exige, como condição
para o cumprimento de cartas rogatórias interrogatórias nos Estados Unidos, o
pagamento da importância de US$ 100,00 (cem dólares) em favor da Embaixada
brasileira naquele país, visto que se pretendia a oitiva de testemunhas, e não a
realização de interrogatório.
Alegam, ainda, que se aplica à espécie a alínea k do citado item, segundo
a qual “as custas, nas Cartas Rogatórias expedidas em processos movidos pelo
Ministério Público, serão pagas pela Embaixada do Brasil em Washington
(verba de Manutenção de Chancelaria)”. Dizem, mais, que, em se tratando de
ação penal pública incondicionada, não há necessidade do pagamento de despesas para o cumprimento de carta rogatória.
Argumentam, ainda, que o ato atacado vulnera o direito à ampla defesa, ao
contraditório, à igualdade e ao devido processo legal do Paciente.
Trazem à baila, também, decisões divergentes proferidas por juízes federais que atuam na Segunda Subseção Judiciária de Ribeirão Preto/SP, que, em
casos idênticos ao presente, autorizaram a expedição de carta rogatória sem o
pagamento das despesas.
Afirmam, por outro lado, que o Código de Processo Penal, em seu art. 804,
estabelece que as custas somente são recolhidas ao final da ação penal.
Nessa linha de raciocínio afastam, também, a aplicação do art. 12 da
Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias, aprovada pelo Decreto
Legislativo 61/95 e promulgada pelo Decreto 1.899/96, que dispõe sobre a exigência do pagamento das despesas para a tramitação e cumprimento de cartas
rogatórias, ao argumento de que a referida Convenção somente se aplica àquelas
expedidas em processos civis e comerciais.
Por fim, requerem a anulação do feito a partir do despacho que, na instância de origem, condicionou a expedição da carta rogatória ao prévio pagamento
das despesas.
A medida liminar foi indeferida pelo Ministro Carlos Velloso, então
Relator (fl. 176).
Requisitadas informações (fl. 176), foram elas prestadas pela autoridade
apontada como coatora (fls. 185-200).
A Procuradoria-Geral da República opinou pelo deferimento da ordem
(fls. 208-213).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Bem examinados os autos, verifico que o presente writ merece acolhimento.
R.T.J. — 208
527
Primeiramente, reconheço ter sido imprópria a fundamentação, pelo acórdão impugnado, da cobrança das despesas relacionadas ao interrogatório de
testemunhas no exterior com base na Convenção Interamericana sobre Cartas
Rogatórias (Decreto Legislativo 61/95, combinado com o Decreto 2.022/96). É
que o referido ato normativo somente tem aplicação às cartas rogatórias que tratam de matéria civil e comercial, o que exclui sua utilização para as destinadas
ao interrogatório de testemunhas de defesa em ações penais.
Para o deslinde da questão, convém afastar, também, a aplicação do
Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, firmado entre o Governo da
República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América, e
promulgado pelo Decreto 3.810/01.
Com efeito, segundo o referido Acordo, as partes signatárias obrigam-se a
prestar assistência mútua, inclusive para a tomada de depoimentos ou declarações de pessoas (art. I, 2, a),1 ficando estipulado que “o Estado Requerido arcará
com todos os custos relacionados ao atendimento da solicitação (...)” (art. VI).
E esse Acordo exime as autoridades brasileiras de quaisquer ônus quando elas
requerem a inquirição de testemunhas situadas nos Estados Unidos.
Ocorre, porém, que o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal
destina-se a “facilitar a execução das tarefas das autoridades responsáveis pelo
cumprimento da lei de ambos os países, na investigação, ação penal e prevenção do crime por meio de cooperação e assistência judiciária mútua em matéria
penal”. E o seu art. I, 4, ao dispor que “as Partes reconhecem a especial importância de combater graves atividades criminais, incluindo lavagem de dinheiro
e tráfico ilícito de armas de fogo, munições e explosivos”, delimita estritamente
a finalidade do Acordo, circunscrevendo-o à repressão de tais crimes.
O Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, portanto, tem por
escopo apenas facilitar a execução de atos de cooperação que importem, por
parte dos países signatários, a coleta de provas requeridas pela acusação, mas
não aquelas solicitadas pela defesa (art. I, 5) 2.
Forçoso, porém, concluir pela desconstituição do ato judicial que impôs a
cobrança antecipada das despesas para realização da diligência requerida pela
1
Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do
Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América:
“Artigo I – Alcance da Assistência.
(...)
2. A assistência incluirá:
a) tomada de depoimentos ou declarações de pessoas;”
2
Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa
do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América:
“Artigo I – Alcance da Assistência.
(...)
5. O presente Acordo destina-se tão-somente à assistência judiciária mútua entre as Partes.
Seus dispositivos não darão direito a qualquer indivíduo de obter, suprimir ou excluir qualquer
prova ou impedir que uma solicitação seja atendida.”
528
R.T.J. — 208
defesa, porque tal exigência não encontrava previsão no ordenamento jurídico
vigente à época do indeferimento da prova.
Cumpre observar que o ato normativo que rege a matéria é a Portaria
26/1990 do Ministério das Relações Exteriores. O fato de a norma referir-se a
cartas rogatórias interrogatórias não afasta a sua aplicação à hipótese de oitiva
de testemunhas, mesmo porque, em se tratando de normas de cunho internacional, cumpre ater-se à sua finalidade, sendo inexigível uma completa similitude
terminológica entre os institutos processuais dos países signatários.
O item 10, k, da citada Portaria,3 na redação original, vigente à época dos
fatos, não exigia o pagamento de despesas pela parte requerente quando se tratasse de processo movido pelo Ministério Público. No caso, como se trata de
ação penal pública, não era exigível do Paciente o pagamento de custas para o
cumprimento da Carta Rogatória.
Em nova redação, conferida pela Portaria 16/03-MRE, de 16 de setembro
2003, ao item 10, k, da Portaria 26/90-MRE,4 passou-se a excetuar do pagamento das despesas apenas as diligências requeridas pelo Ministério Público,
que passaram a ser pagas pela Embaixada do Brasil em Washington.
Assim, verifico que a alteração estabelecida pela Portaria 16/03-MRE, que
extinguiu a referida gratuidade, não se aplica ao requerimento de provas efetuado em 25 de março de 2002 e indeferido mediante decisão de 19 de dezembro de
2002, diante do princípio processual do tempus regit actum.
Afasto, na espécie, a exigência estabelecida no item 10, j, da Portaria
26/90-MRE,5 que impõe, como condição para o cumprimento das cartas rogatórias interrogatórias, o pagamento das respectivas despesas pela parte requerente
em favor da legação diplomática brasileira nos Estados Unidos.
Em face do exposto, defiro a ordem para que seja reaberta a instrução penal, anulando-se, em relação ao Paciente, os atos processuais praticados posteriormente ao despacho de fl. 752 da ação penal.
3
Item 10, k, da Portaria 26/1990, em sua redação original: “Nas Cartas Rogatórias para cumprimento nos Estados Unidos da América devem ser observadas as seguintes condições e demais
indicações emanadas do Departamento de Estado Norte-Americano:
k) As custas, nas Cartas Rogatórias expedidas em processos movidos pelo Ministério Público,
serão pagas pela Embaixada do Brasil em Washington (Verba de Manutenção de Chacelaria).”
4
Item 10, k, da Portaria 26/1990, com redação dada pela Portaria 16/2003-MRE: “Nas Cartas
Rogatórias para cumprimento nos Estados Unidos da América devem ser observadas as seguintes
condições e demais indicações emanadas do Departamento de Estado Norte-Americano:
k) As custas nas diligências requeridas pelo Ministério Público serão pagas pela Embaixada do
Brasil em Washington (Verba de Serviço de Manutenção dos Postos).”
5
Item 10, j, da Portaria 26/1990, com redação dada pela Portaria 16/2003-MRE: “Nas Cartas
Rogatórias para cumprimento nos Estados Unidos da América devem ser observadas as seguintes
condições e demais indicações emanadas do Departamento de Estado Norte-Americano:
j) nas interrogatórias: cheque de US$ 100,00 (cem) dólares, em favor de ‘Brazilian Embassy’,
expedido pela Seção de Câmbio de estabelecimento bancário, nacional ou estrangeiro sediado no
Brasil, cujo prazo de validade é de dois meses – caso ultrapasse tal período deverá ser renovado:
como caução das custas – adianta-se que a diferença entre os US$ 100,00 e as custas reais serão
devolvidas ou cobradas a posteriori, conforme o caso;”
R.T.J. — 208
529
VOTO
(Aditamento)
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Senhor Presidente, trago
longo voto e a minha primeira intenção era no sentido do indeferimento deste
habeas corpus, mas, vindo para o Tribunal, ocorreu-me, no carro, dar mais uma
examinada nos autos para verificar quando foi proferido o despacho em que o
juiz considerou preclusa a providência requerida pela defesa.
Nem tinha ainda pensado em reverter o meu voto, mas, dada a complexidade da matéria, providenciei cópia para V. Exas., inclusive para o eminente
Procurador da República, dos documentos que dizem respeito a esta matéria: vários tratados internacionais e uma portaria do Ministério das Relações
Exteriores.
Então, em primeiro lugar, observo que há sobre a bancada dos eminentes
Pares e do eminente Procurador da República o Decreto 3.810, que promulga
o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da
República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América.
Estou afastando o citado decreto – V. Exas. poderão constatar –, pois ele trata de
outros assuntos; trata de colaboração entre dois Estados soberanos.
No art. 1º, item 4, V. Exas. poderão ver que esse acordo tem como finalidade “combater graves atividades criminais, incluindo lavagem de dinheiro
e tráfico ilícito de armas de fogo, munições e explosivos”. Ele mostra como as
partes devem se haver e estabelece regras de relacionamento no tocante a esses
crimes. Portanto, parece-me, salvo melhor juízo, que este Acordo, este documento
internacional não se aplica ao caso.
De outra parte, V. Exas. podem, desde logo, verificar que essa convenção
interamericana sobre carta rogatória em matéria civil ou comercial, evidentemente, pelo menos a meu juízo, também não se aplica à hipótese, porque diz
respeito apenas à matéria civil e comercial. Estamos, aqui, num processo-crime;
portanto, tudo o que está disposto nesta convenção interamericana que não se
aplica ao caso.
Pelo que pude apurar – e esta é a controvérsia dos autos –, aplica-se, sim,
a Portaria 26, de 14 de agosto de 1990, que estabelece, como já adiantei no
Relatório, no item 10, o seguinte:
10 – nas Cartas Rogatórias para cumprimento nos Estados Unidos da
América devem ser observadas as seguintes condições e demais indicações emanadas do Departamento de Estado Norte-Americano:
(...)
b) não existe gratuidade;
Não faço a distinção preconizada pela eminente Advogada entre cartas
rogatórias e interrogatórias, ou para oitiva de testemunhas. Mas, superado isso,
reporto-me à alínea j, que tem o teor abaixo:
j) nas interrogatórias: cheque de US$ 100.00 (cem) dólares, em favor de
“Brazilian Embassy”, expedido pela Seção de Câmbio de estabelecimento bancário,
530
R.T.J. — 208
nacional ou estrangeiro sediado no Brasil, cujo prazo de validade é de dois meses – caso ultrapasse tal período deverá ser renovado; como caução das custas –
adianta-se que a diferença entre os US$ 100.00 e as custas reais serão devolvidas
ou cobradas “a posteriori”, conforme o caso;
A defesa se apega à alínea k:
k) as custas, nas Cartas Rogatórias expedidas em processos movidos pelo
Ministério Público, serão pagas pela Embaixada do Brasil em Washington (Verba
de Manutenção de Chancelaria);
Este é o caso: trata-se de um processo movido pelo Ministério Público –
crime de ação pública. Se tomássemos o art. k, realmente não caberia falar-se
em custas.
Ora, quando desenvolvi o meu voto, nas minhas pesquisas – e os Senhores
têm cópia de um Diário Oficial da União – deparei-me com uma alteração desta
Portaria 26, de 14 de agosto de 1990. Trata-se da Portaria de 16 de setembro de
2003, que altera justamente a alínea k do item 10:
Art. 1º O artigo 10, alínea k, da Portaria n° 26, de 14 de agosto de 1990,
passa a vigorar com a seguinte redação: As custas nas diligências requeridas pelo
Ministério Público serão pagas pela Embaixada do Brasil em Washington (Verba
de Serviço de Manutenção dos Postos).
Então, no meu voto, entendi, a contrario sensu, que, quando se tratasse
de diligências requeridas pela defesa, obviamente se aplicaria esse dispositivo e
seria incabível a antecipação das custas.
Ocorre que, folheando o processo, vejo que o requerimento da defesa é de
25 de março de 2003 e a decisão no sentido do pagamento das custas – tenho
anotações aqui – é de 19 de dezembro de 2002; portanto, a decisão do juiz é anterior a essa modificação da Portaria 26, de 14 de agosto de 1990, do Ministério
das Relações Exteriores.
Interpretando-se de forma estrita a alínea k do item 10, realmente, naquela
época, tendo-se em conta o princípio tempus regit actum, então, nos processos
movidos pelo Ministério Público, como é o caso, as despesas são pagas pela
Embaixada do Brasil.
Por essa razão, Senhor Presidente, estou deferindo a ordem para reabrir o
prazo para que essa carta rogatória seja levada a cabo.
É o meu voto.
VOTO
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, acompanho o voto do
eminente Relator, para ampliar a garantia do direito de defesa.
Então, como o ônus ficaria com ele, e o Ministério Público que é o autor da
ação, acompanho o voto do eminente Relator.
R.T.J. — 208
531
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, com a devida vênia do
eminente Relator, não concedo a ordem.
PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, a portaria, em si, teria
envergadura para criar ou dispensar ônus?
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: A portaria é ato administrativo que regula
como se assumem os ônus atribuídos.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: O que ocorreria em termos de processos em
curso no Brasil e tendo em conta diligências?
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Isso é muito bom, porque,
como os Estados Unidos não cumprem rogatória nenhuma, dá para ganhar um
ano aí.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Normalmente, em uma
perícia requerida pela parte, em um exame de DNA, por exemplo, ou uma perícia complexa, quem adiantará as custas? A embaixada?
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Fecha-se a embaixada,
vende-se o prédio para pagar as custas.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): É isso. E, realmente, isso
não conflita o art. 804 do CPP.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): O crime é de retenção de
contribuições descontadas dos empregados.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: É apropriação indébita previdenciária.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Seria a oitiva de testemunhas que estão nos
Estados Unidos?
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Exatamente, oitiva de testemunhas, nos Estados Unidos, após localizá-los, se possível .
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): As dificuldades financeiras da empresa são irrelevantes, quando se trata de apropriação de contribuições
descontadas dos empregados.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Que, segundo a Advogada, da tribuna,
seriam funcionários da empresa que poderiam, então, ajudar a garantir o direito
de defesa.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Dizendo, apenas, que a
empresa passava por uma crise, que havia uma crise mundial no setor etc. A
pertinência da prova, data venia, é discutível, mas foi requerida a tempo.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Teria serventia essa prova?
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não se trata da atuação do Estado, mas do
acusado no processo-crime.
532
R.T.J. — 208
Senhor Presidente, peço vista do processo. Não me considero suficientemente esclarecido sobre a matéria para formar convencimento e exteriorizá-lo.
EXTRATO DA ATA
HC 85.653/SP — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Paciente:
Antônio José Zamproni. Impetrantes: Maria Cláudia de Seixas e outros. Coator:
Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Após os votos do Ministro Ricardo Lewandowski, Relator, e da
Ministra Cármen Lúcia, que deferiam a ordem, e do Ministro Carlos Brito, que
a indeferia, pediu vista do processo o Ministro Marco Aurélio. Falou pelo paciente a Dra. Maria Cláudia de Seixas.
Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence. Presentes à sessão os Mi­
nistros Marco Aurélio, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia.
Subprocurador-Geral da República, Dr. Rodrigo Janot.
Brasília, 10 de outubro de 2006 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
VOTO
(Vista)
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Em jogo faz-se diligência a ser cumprida
mediante carta rogatória nos Estados Unidos da América. Diz respeito a processo-crime considerado o disposto no art. 168-A do Código Penal – desconto
de contribuições previdenciárias de empregados e falta de recolhimento à
Previdência Social. O Superior Tribunal de Justiça concluiu que não há choque
entre a exigência de depósito de cem dólares, em cheque, e a regra do art. 804
do Código de Processo Penal, a revelar que as custas serão pagas pelo vencido
após o trânsito em julgado da decisão formalizada.
O Relator, no voto proferido, concede a ordem para determinar a reabertura da instrução penal, anulando-se os atos processuais praticados após o que
se contém à fl. 752 da ação penal. Em síntese, teve presente que portaria do
Ministério da Justiça teria excetuado pagamento de despesas apenas quando
requerida a diligência pelo Ministério Público, não retroagindo para apanhar
situação que não distinguia a gratuidade prevista na Portaria 16/03.
Em 24 de janeiro de 2008, lancei o seguinte despacho (fl. 225):
Segue voto em fita, registrada a razão da demora – a descomunal carga de
processos e a atuação conjunta no TSE com o exercício da Presidência. Daí o sacrifício de metade das férias de janeiro do corrente ano.
Em tempo – indico como data em que o processo estará em mesa para o
oportuno pregão 12 de fevereiro próximo. Dêem ciência aos impetrantes.
Tal como ocorreu no Superior Tribunal de Justiça, afasto a aplicação do
disposto no art. 804 do Código de Processo Penal. A regra diz respeito às ações
em curso no Brasil e despesas efetuadas em território nacional. Levo em conta,
R.T.J. — 208
533
para tanto, que o art. 1º do mesmo Diploma revela que a regência do tema se
fará pelo que nele se contém, ressalvados os tratados, as convenções e regras de
direito internacional.
No caso, há despesas a serem cobertas nos Estados Unidos da América.
Ora, de início, se a diligência é requerida pela defesa, a esta cabe a satisfação
respectiva. Inexiste norma legal a direcionar em sentido diverso. Daí a previsão,
em portaria do Ministério das Relações Exteriores, da necessidade do depósito
de um cheque de cem dólares. Somente na hipótese de diligência requerida
pelo Ministério Público, o Estado arca com a despesa. É o que se tem considerado o Decreto 2.022/96, que ratificou o Protocolo Adicional à Convenção
Interamericana sobre Cartas Rogatórias, de 1979. Vale frisar, por oportuno, que
a exigência do depósito decorre da legislação americana. O tratado ratificado
mediante o Decreto 3.810/01 não guarda pertinência com a espécie. Diz respeito
à assistência mútua e gratuita entre os Estados no combate à criminalidade.
Assim, afasto a possibilidade de a solução do caso ser norteada pelo aparente
conflito entre as portarias referidas no voto do Relator e concluo pelo indeferimento da ordem.
EXTRATO DA ATA
HC 85.653/SP — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Paciente:
Antônio José Zamproni. Impetrantes: Maria Cláudia de Seixas e outros. Coator:
Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Adiado o julgamento por indicação do Ministro Marco Aurélio.
Presidiu o julgamento o Ministro Marco Aurélio. Ausente, justificadamente, o
Ministro Sepúlveda Pertence. Primeira Turma, 28-11-06.
Decisão: Prosseguindo o julgamento, após o voto do Ministro Marco
Aurélio, Presidente, que acompanhava o voto do Ministro Carlos Britto, indeferindo a ordem, pediu vista do processo o Ministro Menezes Direito. Primeira
Turma, 12-2-08.
Decisão: Adiado o julgamento por indicação do Ministro Menezes Direito.
Unânime.
Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à Sessão os Ministros
Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Sub­
procuradora-Geral da República, Dra. Cláudia Sampaio Marques.
Brasília, 8 de abril de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
QUESTÃO DE ORDEM
O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, V. Exa. me permite,
antes, trazer uma questão de ordem que foi apresentada em petição nesse habeas
corpus em favor de Antônio José Zamproni? Diz ele que houve o julgamento e
que esse julgamento, na realidade, resultou empatado, e que, portanto, a decisão
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R.T.J. — 208
deveria ser favorável à concessão do habeas corpus diante do desempate.
Portanto, não poderia eu ser convocado para efetuar o desempate.
Eu estou rejeitando essa questão de ordem por um motivo muito simples:
o colegiado estava integrado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, que não votou. Logo, a minha presença é substitutiva do Ministro Sepúlveda Pertence. A
Turma, por inteiro, deve participar do julgamento. E, nessa medida, o meu voto
é necessário e indispensável. E só não votei da vez anterior, como disseram os
meus eminentes Colegas, porque a matéria, realmente, é interessante e comportava um exame mais detalhado.
Rejeito a questão de ordem.
VOTO
(Vista)
O Sr. Ministro Menezes Direito: Habeas corpus impetrado pelos advogados Maria Cláudia de Seixas e Danilo Casella Peterossi em favor de Antônio José
Zamproni, contra acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que
denegou a ordem no HC 38.418/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima.
Afirmam os Impetrantes que o Paciente “na qualidade de sócio da empresa
‘Smar Equipamentos Industriais Ltda.’, bem como os demais sócios, estão sendo
acusados, em tese, de terem descontado contribuições previdenciárias de seus
empregados, deixando de recolhê-las, nas épocas próprias, à Previdência Social.
Tal conduta foi classificada, hipoteticamente, ao tipo penal descrito no artigo
168-A do Código Penal” (fl. 3).
Sustentam, ainda, que o Ministério Público arrolou como testemunha
agente fiscal, que prestou depoimento em Juízo, e que a defesa apresentou rol
de testemunhas, sendo duas delas residentes nos Estados Unidos da América. O
Magistrado proferiu decisão determinando que a defesa esclarecesse quais fatos
pretendia comprovar, o que foi feito. Inicialmente indeferiu a oitiva; posteriormente, em razão de ordem de habeas corpus deferido pelo Superior Tribunal
de Justiça, autorizou a expedição de carta rogatória, comandando que a defesa
cumprisse o item 6, alínea j, da Portaria 26, de 14-8-90, no prazo de dez dias,
ou seja, o pagamento das custas. Alegam, no entanto, que a alínea k do referido
item 10 dispõe que as custas deveriam ser pagas pela Embaixada do Brasil em
Washington. Assim, tratando-se de ação penal pública incondicionada, movida
pelo Ministério Público, não haveria necessidade de adiantamento de custas. O
entendimento do Ministério Público foi no sentido de que a alínea k alcançava a
oitiva de pessoas e não apenas a oitiva de réus, com o que incluiu as cartas rogatórias para a oitiva de testemunhas.
A medida liminar foi indeferida pelo Ministro Carlos Velloso (fl. 176).
O ilustre Subprocurador-Geral da República Dr. Edson Oliveira de Almeida
opinou pelo deferimento da ordem, afastando a aplicação da Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias (Panamá, 1975). Ademais, concluiu que a
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“Portaria 26/90, firmada pelo Chefe do Departamento Consular e Jurídico do
Itamaraty e pelo Secretário Nacional dos Direitos da Cidadania e Justiça do
Ministério da Justiça, prevê no art. 10, letra k, que as custas devidas à Justiça
norte-americana, em rogatórias expedidas em processos de ação penal pública,
serão pagas pela Embaixada do Brasil em Washington” (fl. 213).
Os Ministros Relator, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia deferem
a ordem; o Ministro Carlos Britto a indefere. Pediu vista o Ministro Marco
Aurélio, que trouxe voto acompanhando a divergência.
O voto do eminente Relator afastou a aplicação do Acordo de Assistência
Judiciária em Matéria Penal firmado entre o Brasil e os Estados Unidos da
América, promulgado pelo Decreto 3.810, de 2001, porquanto a sua finalidade
não tem pertinência com o caso sob julgamento, ou seja, destina-se à coleta das
provas requeridas pela acusação, mas não as solicitadas pela defesa. Todavia, entendeu ser incabível a cobrança antecipada das despesas para a realização da diligência requerida pela defesa, “porque tal exigência não encontrava previsão no
ordenamento jurídico vigente à época do indeferimento da prova”. Esclareceu o
Ministro Lewandowski que o ato normativo de regência é a Portaria 26, de 1990,
do Ministério das Relações Exteriores. Disse o eminente Relator que o “fato de
a norma referir-se a cartas rogatórias interrogatórias não afasta a sua aplicação
à hipótese de oitiva de testemunhas, mesmo porque, em se tratando de normas
de cunho internacional, cumpre ater-se à sua finalidade, sendo inexigível uma
completa similitude terminológica entre os institutos processuais dos países signatários”. Na época dos fatos, o item k não exigia o pagamento de despesas pela
parte requerente quando se tratasse de processo movido pelo Ministério Público,
assim não sendo exigível no caso que trata de ação penal pública. É certo, prossegue o Relator, que houve alteração, em 16-9-03, com a Portaria 16, que excetuou
o pagamento apenas das diligências requeridas pelo Ministério Público, que passaram a ser pagas pela Embaixada do Brasil em Washington. Assim, conclui o
Ministro Lewandowski, a alteração que extinguiu a gratuidade “não se aplica ao
requerimento de provas efetuado em 25 de março de 2002 e indeferido mediante
decisão de 19 de dezembro de 2002, diante do princípio processual do tempus
regit actum”. Daí que deferiu a ordem para “que seja reaberta a instrução penal,
anulando-se, em relação ao paciente, os atos processuais praticados posteriormente ao despacho de fl. 752 da ação penal”.
O voto vista do eminente Ministro Marco Aurélio entendeu que, no caso,
“há despesas a serem cobertas nos Estado Unidos da América. Ora, de início, se
a diligência é requerida pela defesa, a esta cabe a satisfação respectiva. Inexiste
norma legal a direcionar em sentido diverso. Daí a previsão, em portaria do
Ministério das Relações Exteriores, da necessidade do depósito de um cheque
de cem dólares. Somente na hipótese de diligência requerida pelo Ministério
Público, o Estado arca com a despesa. É o que se tem considerado o Decreto
2.022/96, que ratificou o Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre
Cartas Rogatórias, de 1979. Vale frisar, por oportuno, que a exigência do depósito decorre da legislação americana. O tratado ratificado mediante o Decreto
3.810/01 não guarda pertinência com a espécie. Diz respeito à assistência mútua
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R.T.J. — 208
e gratuita entre os Estados no combate à criminalidade. Assim, afasto a possibilidade de a solução do caso ser norteada pelo aparente conflito entre as portarias
referidas no voto do relator e concluo pelo indeferimento da ordem”.
Também eu não creio pertinente a aplicação do art. 804 do Código de
Processo Penal, porque diz respeito às ações em curso no Brasil. Igualmente,
não vejo como incidirem, na espécie, as regras dispostas no Decreto 3.810/01,
que promulgou o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal celebrada
entre a República Federativa do Brasil e os Estados Unidos da América, por ter
como finalidade o combate ao crime organizado entre esses dois países. E esse
não é o que se tem neste processo.
A redação original da Portaria 26, de 14 de agosto de 1990, do Ministério
das Relações Exteriores, no item 10, letra b, estabeleceu que nas cartas rogatórias para cumprimento nos Estados Unidos da América não existe gratuidade e,
na letra k, que as custas naquelas oriundas de processos movidos pelo Ministério
Público serão pagas pela Embaixada do Brasil em Washington. Com a redação do Portaria 16, de 2003, ficou estabelecido que as despesas nas diligências
requeridas pelo Ministério Público serão pagas pela Embaixada do Brasil em
Washington. Assim, a interpretação dada pelo Relator foi no sentido de que,
antes, todas as diligências nos processos movidos pelo Ministério Público correriam por conta da Embaixada, vindo a exceção apenas para as diligências requeridas pelo Ministério Público com a nova redação posterior aos fatos de que
trata este habeas corpus.
Vou pedir vênia ao Relator para acompanhar a divergência.
É que não me parece possível oferecer essa interpretação quando a exigência de custas não depende de ato do governo brasileiro, tanto que desde o
início especificado que não haveria gratuidade. As custas seriam sempre devidas, sendo mais compatível a interpretação no sentido de que somente haveria
pagamento pela Embaixada naqueles atos que envolviam o Ministério Público
enquanto instituição. Não teria nenhum sentido acolher a gratuidade para a execução de carta rogatória em favor da defesa se esta não estava expressamente
prevista. A portaria que afastou a gratuidade expressamente regulou o pagamento das despesas para os atos do Ministério Público, cobertas pelo governo
por intermédio da representação diplomática. Tanto é assim que, na alínea j da
Portaria, está previsto o valor a ser pago nas interrogatórias, alcançando a regra
o caso dos autos.
Com essas razões, denego a ordem.
EXTRATO DA ATA
HC 85.653/SP — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Relator para o
acórdão: Ministro Carlos Britto. Paciente: Antônio José Zamproni. Impetrantes:
Maria Cláudia de Seixas e outros. Coator: Superior Tribunal de Justiça.
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Decisão: Preliminarmente, a Turma rejeitou a questão de ordem. No mérito, por maioria de votos, a Turma indeferiu o pedido de habeas corpus; vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski, Relator, e a Ministra Cármen Lúcia.
Relator para o acórdão o Ministro Carlos Britto. Ausente, justificadamente, a
Ministra Cármen Lúcia.
Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à Sessão os Ministros
Carlos Britto, Ricardo Lewandowski e Menezes Direito. Ausente, justificadamente, a Ministra Cármen Lúcia. Subprocuradora-Geral da República, Dra.
Cláudia Sampaio Marques.
Brasília, 5 de agosto de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
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R.T.J. — 208
HABEAS CORPUS 85.718 — DF
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Pacientes: Newton Vieira de Paiva e Ana Fátima de Oliveira Rocha —
Impetrante: Marcelo Leal de Lima Oliveira — Coator: Superior Tribunal de
Justiça
Ação penal. Condenação. Concurso material. Crimes
de exercício ilegal da arte farmacêutica e de curandeirismo.
Inadmissibilidade. Incompatibilidade entre os tipos penais previstos nos arts. 282 e 284 do Código Penal. Pacientes não ignorantes nem incultos. Comportamento correspondente, em
tese, ao art. 282 do CP. Falta, porém, de laudo pericial sobre as
substâncias apreendidas. Inadmissibilidade de exame indireto.
Absolvição dos Pacientes decretada. Habeas corpus concedido
para esse fim. Interpretação do art. 167 do CPP. Precedentes.
Excluindo-se, entre si, os tipos previstos nos arts. 282 e 284 do
Código Penal, dos quais só primeiro se ajustaria aos fatos descritos na denúncia, desse delito absolve-se o réu, quando não tenha
havido perícia nas substâncias apreendidas.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Celso de
Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, deferir o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do
Relator. Falou, pelos Pacientes, o Dr. Marcelo Leal de Lima Oliveira. Ausentes,
justificadamente, neste julgamento, os Ministros Ellen Gracie e Eros Grau.
Brasília, 18 de novembro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Trata-se de habeas corpus, impetrado em favor de Newton Vieira de Paiva e Ana Fátima de Oliveira Rocha, contra acórdão
da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, ao julgar o HC 36.244,
lhes denegou a ordem, em decisão assim ementada:
Habeas corpus. Exercício ilegal de arte farmacêutica e curandeirismo.
Laudo pericial. Exigência. Princípio do livre convencimento motivado (art. 158
c/c 167, CPP). Diversidade, independência e autonomia de condutas denunciadas.
Bis in idem, concurso de crimes e consunção. Não configuração.
“A falta de exame de corpo de delito direto não implica em nulidade de processo penal, visto que, nos termos do art. 158, c/c o art. 167, do Código de Processo
Penal, pode ele ser suprido pelo indireto, sendo certo, ainda, que, em atenção ao
princípio do livre convencimento e do mandamento constitucional que abomina
apenas as provas obtidas por meios ilícitos, não se pode priorizar a perícia como
R.T.J. — 208
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único meio de comprovar a materialidade de crimes relacionados ao exercício ilegal de profissão da área da saúde.
Embora o curandeirismo seja prática delituosa típica de pessoa rude, sem
qualquer conhecimento técnico-profissional da medicina e que se dedica a prescrever substâncias ou procedimentos com o fim de curar doenças, não se pode
descartar a possibilidade de existência do concurso entre tal crime e o de exercício
ilegal de arte farmacêutica, se o agente também não tem habilitação profissional
específica para exercer tal atividade.
Reconhecida a prática de duas condutas distintas e independentes, não há
como se proclamar ilegal a condenação por cada uma delas, não se mostrando, in
casu, ter havido bis in idem ou indevida atribuição de concurso de crimes, não
cabendo, ainda, aplicação da consunção entre os delitos, tanto mais na estreita
via do habeas corpus, por demandar incursão profunda e valorativa em seara
fático-probatória”.
Habeas corpus denegado.
(Fl. 215.)
Alegam os Impetrantes que a condenação dos Pacientes é ilegal, por
apresentar os seguintes vícios: a) ausência de materialidade dos delitos, o que
conduziria à incompetência da Justiça comum para processar e julgar o feito;
b) impossibilidade de concurso material entre os delitos de exercício ilegal da
arte farmacêutica e curandeirismo; c) ilegalidades na fixação da pena.
Requerem anulação do processo da Ação Penal 2000.01.1.078317-8, em
trâmite na 1ª Vara Criminal da Circunscrição Judiciária Especial de Brasília/DF,
nos termos do disposto no art. 564, III, b, do CPP; ou, por impossibilidade de
concurso material de delitos, a nulidade da sentença, com remessa dos autos ao
Juizado Criminal Especial competente (art. 2º da Lei 10.259/01); ou, finalmente,
a redução da pena ao mínimo legal.
Pedi informações ao Superior Tribunal de Justiça, que as prestou (fls. 214
e seguintes)
Deferi liminar, para suspender os efeitos da condenação imposta aos
Pacientes, até o julgamento final deste pedido de writ (fls. 238-241).
Pedi informações ao juízo de primeiro grau, o qual remeteu a íntegra do
Processo-Crime 2000.01.1.085123-2, que tramitou perante a 1ª Vara Criminal
de Brasília (volumes em apenso).
A Procuradoria-Geral da República opinou pelo deferimento da ordem
(fls. 256-260).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Assiste razão aos Impetrantes.
Verifico, desde logo, haver contradição lógico-jurídica intrínseca às condenações impostas aos Pacientes. É que foram condenados ambos pela prática
de exercício ilegal da arte farmacêutica (art. 282 do Código Penal) e de curandeirismo (art. 284). Mas vejamos o teor dos tipos penais:
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R.T.J. — 208
Art. 282. Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites: Pena –
detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
Art. 284. Exercer o curandeirismo:
I – prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;
II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
III – fazendo diagnósticos:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente
fica também sujeito à multa.
Ora, os tipos são excludentes entre si, pois, no caso do art. 282, exige-se
que o agente apresente aptidões ou conhecimentos médicos, ainda que sem a
devida autorização legal para exercer o respectivo ofício, enquanto, para configurar-se o do art. 284, é preciso que o agente seja pessoa inculta ou ignorante.
Veja-se, a respeito, a lição de Hungria:
Segundo o conceito tradicional ou vulgar, curandeiro é o indivíduo inculto,
ou sem qualquer habilitação técnico-profissional, que se mete a curar, com o mais
grosseiro empirismo. Enquanto o exercente ilegal da medicina tem conhecimentos médicos, embora não esteja devidamente habilitado para praticar a arte de
curar, e o charlatão pode ser o próprio médico que abastarda a sua profissão com
falsas promessas de cura, o curandeiro (carimba, mezinheiro, raizeiro) é o ignorante chapado, sem elementares conhecimentos de medicina, que se arvora em
debelador dos males corpóreos.
(HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. RJ: Forense, 1958.
Vol. IX, p. 154, n. 83.)
No mesmo sentido, Delmanto entende que só pode ser sujeito ativo do
crime de curandeirismo a pessoa “desprovida de conhecimentos científicos” (in
Código Penal Comentado, 7. ed., p. 708). O autor ressalta, ainda, que “para que
haja crime deve haver comprovação de que o perigo de dano à saúde pública
efetivamente ocorreu” (idem, p. 709).
Assim, resta saber qual deles está, em tese, configurado pelos fatos narrados na denúncia.
Ora, segundo a descrição desta, não se trata de ato cometido por pessoas
rudes, desprovidas de recursos técnicos, mas, sim, por agentes que, mediante
diagnóstico e manipulação de substâncias, prescreviam “supostos medicamentos” que eles mesmos produziam e comercializavam (fls. 35-36). Confirma-o a
sentença condenatória, ao afirmar que as vítimas “tiveram um tratamento típico
daqueles que se faz com um médico” (fl. 133).
Diante disso, tenho por errônea a qualificação dos fatos como curandei­
rismo, cujo tipo penal não convém ao caso. Fazendo-se passar por médicos, os
Pacientes estariam sujeitos às penas do art. 282 do Código Penal.
2. Mas tal acusação não merece melhor sorte.
R.T.J. — 208
541
A denúncia assim descreve a primeira série de condutas que encontrariam
adequação típica no crime de exercício ilegal de medicina, arte dentária ou
farmacêutica:
Os denunciados, com unidade de desígnios, sem qualquer formação científico-profissional, praticaram, com a evidente habitualidade, sem autorização legal
e mediante remuneração em dinheiro, atos privativos da profissão de farmacêutico
(..), que consistiram no desempenho da função de dispensário (responsável por
laboratório farmacêutico) e de manipulação de fórmulas farmacopéicas (...),
prestando serviços diretamente ao consumidor final, tendo atendido centenas de
pacientes.
(Fl. 35. Grifos nossos.)
Suposto não haja controvérsia sobre o fato de os Pacientes não serem farmacêuticos, o tipo penal somente se configuraria, se as substâncias encontradas
em seu poder fossem autênticos compostos alopáticos.
Por isso, os Impetrantes sustentam, com razão, que o bom sucesso da acusação dependeria, inexoravelmente, de perícia das substâncias, não bastando o
Laudo de Exame de Local, efetuado pelos peritos do Instituto de Criminalística
(fls. 86 e seguintes).
Mas o juízo de primeiro grau, afastando do âmbito da adequação típica os
produtos classificados nas terapias ditas holísticas sob o título “florais de Bach”
(fl. 115) e afirmando que “havia no local grande quantidade de produtos e fórmulas farmacopéicas, do tipo tinturas, extratos, florais, homeopáticos e fitoterápicos” (fl. 117), entendeu que os depoimentos dos agentes da vigilância sanitária
e a apreensão de provetas, frascos vazios, rótulos separados, tinturas e instrumentos para fracionamento e medição seriam “evidências claras” de que os
Pacientes “faziam surgir” remédios a partir de “seus produtos”. E remeteu-se à
conclusão do Laudo de Exame de Local: “Assim, em face do exposto, concluem
os peritos que no local examinado estavam sendo manipuladas substâncias com
o objetivo de produzir compostos de natureza medicamentosa” (fl. 123).
A leitura da íntegra do Processo-Crime 2000.01.1.085123-2 não permite
saber os motivos pelos quais não se realizou perícia nas substâncias apreendidas – cumprido o mandado de busca e apreensão, apenas a CPU foi submetida
à análise do Instituto de Criminalística (fl. 27, Apenso 5). O fato é que perícia
não houve, e, assim, não vejo como concluir que os Pacientes “manipulavam
extratos, florais, tinturas, essências, produtos fitoterápicos e homeopáticos, misturando-os e obtendo remédios” (fl. 135. Grifos nossos). Aliás, ao que se colhe
dos autos, não é absurdo supor que as substâncias recolhidas fossem água, chás,
sucos etc., sem nenhum potencial medicamentoso.
E, diversamente do que afirma o acórdão atacado, neste caso a ausência
do exame de corpo de delito não pode suprida mediante exame indireto, nos
termos do art. 167 do Código de Processo Penal. É que, como se sabe, tal regra é
aplicável aos casos em que os vestígios hajam desaparecido. Mas, de acordo com
a sentença, os produtos foram apreendidos, mas não submetidos a exame
542
R.T.J. — 208
pericial para verificar-lhes a natureza das substâncias. O objeto da prova
estava à disposição do juízo, que a não produziu!
Como bem lembrou o representante do Ministério Público Federal, há
precedentes desta Corte no sentido de que a ausência de perícia, nos casos em
que esteja disponível o objeto material do crime, leva à nulidade absoluta do
processo (cf. RHC 62.743, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ de 2-8-85). A propósito,
nem se entende o porquê de o representante do Ministério Público ter, ao cabo
das alegações finais, requerido a decretação da perda de todos os documentos e
coisas apreendidos para efeito de destruição (fl. 110).
Está claro, pois, que a condenação pelo crime previsto no art. 282 do
Código Penal, fundada apenas nas conclusões do Laudo de Exame Local, padece de nulidade, nos termos do art. 564, III, b, do Código de Processo Penal.
Anulada a condenação por prática de exercício ilegal da arte farmacêu­
tica, à míngua de exame de corpo de delito nas substâncias apreendidas, e inaplicável ao caso o tipo penal de curandeirismo, faz-se mister a absolvição dos
Pacientes.
3. Ante o exposto, concedo a ordem, para absolver, como absolvo, os
Pacientes, prejudicados os demais pedidos.
EXTRATO DA ATA
HC 85.718/DF — Relator: Ministro Cezar Peluso. Pacientes: Newton
Vieira de Paiva e Ana Fátima de Oliveira Rocha. Impetrante: Marcelo Leal de
Lima Oliveira. Coator: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: A Turma, por votação unânime, deferiu o pedido de habeas cor­
pus, nos termos do voto do Relator. Falou, pelos Pacientes, o Dr. Marcelo Leal
de Lima Oliveira. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Ministros
Ellen Gracie e Eros Grau.
Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros
Cezar Peluso e Joaquim Barbosa. Ausentes, justificadamente, os Ministros Ellen
Gracie e Eros Grau. Subprocurador-Geral da República, Dr. Mário José Gisi.
Brasília, 18 de novembro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coor­
denador.
R.T.J. — 208
543
HABEAS CORPUS 89.622 — BA
Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto
Paciente: Franklin Costa Araújo — Impetrantes: Abdon Antônio Abbade
dos Reis e outros — Coator: Superior Tribunal de Justiça
Habeas corpus. Prisão cautelar. Prisão preventiva. Excesso
de prazo. Instrução criminal inconclusa. Alongamento para o
qual não contribuiu a defesa. Complexidade e peculiaridades do
caso não obstam o direito subjetivo à razoável duração do processo. Retardamento injustificado do feito. Ordem concedida.
1. O Supremo Tribunal Federal entende que a aferição de
eventual excesso de prazo é de se dar em cada caso concreto,
atento o julgador às peculiaridades do processo em que estiver
oficiando.
2. No caso, a custódia instrumental do paciente já ultrapassa
3 anos, tempo superior até mesmo a algumas penas do Código
Penal. Prazo alongado, esse, que não é de ser imputado à defesa.
3. A alegada gravidade da imputação não obsta o direito
subjetivo à razoável duração do processo (inciso LXXVIII do
art. 5º da CF).
4. Ordem concedida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, deferir o pedido de habeas corpus, o que
fazem nos termos do voto do Relator e por unanimidade de votos, em sessão
presidida pelo Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento
e das notas taquigráficas.
Brasília, 3 de junho de 2008 — Carlos Ayres Britto, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de habeas corpus, aparelhado
com pedido de medida liminar, impetrado contra acórdão do Superior Tribunal
de Justiça. Acórdão que entendeu justificada a demora no julgamento do processo-crime a que responde o Paciente.1
1
“Criminal. Habeas corpus. Roubo triplamente qualificado. Prisão preventiva. Necessidade
da custódia demonstrada. Réu foragido. Garantia da aplicação da lei penal. Condições pessoais
favoráveis. Irrelevância. Excesso de prazo. Feito complexo. Pluralidade de denunciados. Réu fo­
ragido por mais de quatro meses. Demora justificada. Princípio da razoabilidade. Prazo para a
conclusão da instrução que não é absoluto. Trâmite regular. Ordem denegada.
544
R.T.J. — 208
2. Pois bem, o Impetrante renova, aqui, a tese do alongamento injustificado da instrução criminal. Alongamento, esse, a transformar a prisão cautelar
do Paciente em verdadeira pena antecipada. Isso porque o Paciente está preso,
preventivamente, desde 7 de maio de 2005 sob a acusação assim resumida na
inicial acusatória:
(...) no dia 2 de dezembro de 2004, por volta das 21h30m, a partir de informações e ajuda prestadas pelos denunciados José Luiz Góes de Brito, José
Miraldo de Araújo Brito e Genildo Góes de Brito, o denunciado Franklin Costa
de Araújo em co-autoria com mais quatro pessoas não identificadas entraram na
residência situada na Rua Dr. Elzio Ferreira, n. 21, nesta cidade, e mediante emprego de arma de fogo, levaram a Sra. Olinda Maria de Oliveira, seu filho Genário
José de Oliveira Santos, sua filha Cleucia Maria de Oliveira Santos, seu sobrinho
André Fabrício Martins e seu neto para uma propriedade situada na zona rural,
deste Município, privando suas liberdades, com o fim de assegurar a execução do
roubo do Banco do Brasil.
(Fl. 10.)
3. Prossigo neste relato para pontuar que as informações prestadas pelo
Juízo Processante dão conta de que a instrução criminal ainda não foi concluída. Isso porque o feito aguarda, ainda hoje, a devolução de cartas precatórias,
expedidas para a oitiva de testemunhas.
4. À derradeira, anoto que a Procuradoria-Geral da República opinou pelo
indeferimento da ordem.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Conforme visto, a tese do
presente writ consiste em saber se há ou não excesso de prazo na prisão cautelar
I – Hipótese na qual se sustenta a ausência de embasamento legal do decreto de prisão preventiva, bem como a ocorrência de excesso de prazo para a formação da culpa.
II – Não se verifica ilegalidade na decisão que determinou a prisão do paciente, tampouco no
aresto confirmatório do encarceramento, tendo em vista a conformidade com os ditames legais e
a jurisprudência dominante.
III – A fuga do Réu do distrito da culpa revela sua intenção de se furtar à aplicação da lei penal,
sendo suficiente para obstar a revogação da custódia cautelar. Precedentes do STJ e do STF.
IV – Condições pessoais favoráveis não são garantidoras de eventual direito subjetivo à liberdade provisória, quando a necessidade da prisão é recomendada por outros elementos dos autos.
V – Evidenciado que o feito tramita regularmente, tendo sido retardado apenas em parte, pela
complexidade do feito, pela pluralidade de denunciados, e pelo fato do réu ter permanecido foragido por mais de 4 meses, resta afastada a alegação de constrangimento ilegal.
VI – Por aplicação do Princípio da Razoabilidade, justifica-se eventual dilação de prazo para a
conclusão da instrução processual, quando a demora não é provocada pelo Juízo ou pelo Ministério
Público.
VII – O prazo de 81 dias para a conclusão da instrução criminal não é absoluto.
VIII – O constrangimento ilegal por excesso de prazo só pode ser reconhecido quando a demora
for injustificada.
IX – Ordem denegada.”
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545
do Paciente. Pelo que remarco, de saída, que este Supremo Tribunal Federal tem
entendido que a aferição de eventual excesso de prazo é de se dar em cada caso
concreto, atento o julgador às peculiaridades do processo em que estiver oficiando
(como, por exemplo, o número de réus e de testemunhas arroladas, a complexidade do feito e o comportamento dos patronos dos acusados, que não podem
ser os causadores do retardamento do processo). Nesse mesmo sentido é que
foram julgados os HC 84.780, HC 83.842, HC 86.789 e HC 87.1642 , HC 88.433 e
HC 87.847 3. E mais recentemente os HC 92.971 e HC 92.836, ambos de minha
relatoria.
7. No caso, as informações do Juízo Processante dão conta de que o alongamento da instrução criminal não é de ser increpado à defesa, tampouco à
complexidade da causa. Donde a certidão de fl. 28 noticiar que, nada obstante
a prisão do Paciente em maio de 2005, em 21 de agosto de 2006, a instrução do
feito não havia sido iniciada. Mais: informações complementares requestadas
ao Juízo da Comarca de Queimadas/BA dão conta de que o feito nem sequer alcançou a fase do art. 499 do CPP, ante a falta de devolução de cartas precatórias.
Cartas, essas, expedidas em 2006!
8. Este o quadro, tenho que estamos diante de inversão da ordem mesma
das coisas. É que a custódia instrumental do Paciente já ultrapassa 3 anos,
tempo superior até mesmo a algumas das penas do Código Penal brasileiro.
9. Daqui se segue a contingência de calibrar valores constitucionais de
primeira grandeza: por um lado, o exercício do poder-dever de julgar (inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal); por outro, o direito subjetivo à
razoável duração do processo e dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação (inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal), sobretudo quando
em jogo a liberdade de locomoção. Daí a inquietante pergunta: a gravidade da
imputação que recai sobre o Paciente tem a força de coonestar o desmesurado
prazo de 3 anos de custódia cautelar?
10. A instantânea resposta está no exame da interação entre tempo e
Direito Penal. Interação que, na contemporaneidade, ganha largos contornos.
Explico: a velocidade que timbra as relações sociais contemporâneas caracteriza também a criminalidade pós-moderna. Barreiras temporais e espaciais
são reduzidas (e até suprimidas) para o bem das comunidades, como também,
lamentavelmente, para o alcance de interesses ilícitos. Nessa contextura, os
Estados Nacionais e a Comunidade Internacional não podem fazer da redução
das garantias penais clássicas um mecanismo de “eficiência” do sistema penal
repressivo. Afinal, o reconhecimento constitucional do direito ao julgamento em
prazo razoável é, antes de tudo, o coroamento da idéia de que, para ser eficaz, o
processo penal não precisa se despir de sua clássica feição garantista. Ao contrário, a eficácia do exercício do poder punitivo do Estado somente se viabiliza
no otimizado entrecruzar do tempo de julgamento e do respeito aos direitos e
garantias individuais de matriz constitucional.
2
Questão de ordem na extensão em extensão de medida cautelar.
3
HC 87.487-AgR.
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11. Não pode ser diferente à luz de uma Constituição que faz a mais avançada democracia coincidir com o mais depurado humanismo. É falar: tenho que,
em matéria penal, o prazo razoável para o julgamento é aquele timbrado pelo
integral respeito às garantias do contraditório e da ampla defesa. Qualquer outra
interpretação colidiria com o denso bloco de garantias penais e processuais penais que se lê no art. 5º da Constituição Federal.
12. Com efeito, de nada valeria declarar com pompa e circunstância o direito à razoável duração do processo, se a ele não correspondesse o dever estatal
de julgar com presteza. Dever que é uma das vertentes da altissonante regra
constitucional de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
ou ameaça a direito” (inciso XXXV do art. 5º). Dever, enfim, que, do ângulo
do indivíduo, é constitutivo da tradicional garantia de acesso eficaz ao Poder
Judiciário (“universalização da Justiça”, também se diz). E como garantia individual, a se operacionalizar pela imposição de uma dupla e imbricada interdição: a) interdição ao Poder Legislativo, no sentido de não poder afastar de
apreciação judiciária todo tipo de lesão ou ameaça a direito; b) interdição aos
próprios órgãos do Judiciário, na acepção de que nenhum deles pode optar pelo
não-exercício do poder de decidir sobre tais reclamos de lesão ou ameaça a direito. É o que se tem chamado de juízo de proibição do non liquet, a significar
que o Poder Judiciário está obrigado a solver ou liquidar as questões formalmente submetidas à sua apreciação. Esta a sua contrapartida, da qual não pode
se eximir jamais.
13. Ora bem, se ao Judiciário nunca se permite dar o silêncio como res­
posta às demandas que lhe são submetidas, o que dizer em tema de apreciação
de causas a envolver réus presos? Que o dever de decidir se marca por um tônus
de presteza máxima. Presteza máxima que me parece de todo incompatível com
o quadro retratado neste habeas corpus.
14. Não que esse modo de enxergar a causa signifique um olímpico fechar
de olhos para a crucial realidade das instâncias judiciárias brasileiras, traduzida
em ter que decidir um número de processos para muito além da resistência física
dos seus reconhecidamente devotados e competentes magistrados. Não é isso.
Mas o que importa considerar, em termos de decidibilidade, é que os jurisdicionados não podem pagar por um débito a que não deram causa. O débito é
da Justiça e a fatura tem que ser paga é pela Justiça mesma. Ela que procure
e encontre – peça elementar que é da engrenagem estatal – a solução para esse
brutal descompasso entre o número de processos que lhe são entregues para julgamento e o número de decisões afinal proferidas.
15. Assim colocada a questão, tenho que é o caso de concessão da ordem.
Isso porque não encontro justificativa plausível para a total paralisação do feito
pela falta de oitiva de testemunhas. Oitivas, essas, determinadas por meio de
cartas precatórias que foram expedidas há mais de um ano. É certo que, se, por
um lado, a parte interessada (Ministério Público ou defesa) deve contribuir para
o cumprimento da carta precatória, de outro, “o juiz que receber a precatória
para o cumprimento deve dar-lhe prioridade na pauta de julgamentos, pois está
lidando com a produção de uma prova destinada a outro colega, razão pela qual
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o pronto atendimento faz parte da sua colaboração, exigida por lei (...)” (NUCCI,
Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 6. ed. Revista dos
Tribunais. p. 469). Tudo a evidenciar, então, que a demora na conclusão da instrução criminal não decorre de “manobras protelatórias defensivas”.
16. Por tudo quanto colocado, concedo a ordem. O que faço para determinar a imediata soltura do Paciente, mediante termo de compromisso de comparecimento aos atos processuais para os quais for, eventualmente, intimado, se
por “al não estiver preso”.
17. É como voto.
VOTO
O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, o problema é o seguinte: o Paciente está preso desde o mês de maio de 2005. Foi a data da prisão
do Paciente, maio de 2005. Completaram-se, portanto, três anos recentemente
no último mês de maio.
A Procuradoria da República emitiu um parecer, em 9 de novembro de
2006, evidentemente pedindo o indeferimento da cautela, porque seria um prazo
razoável diante da complexidade da ação e, mais ainda, porque haveria uma
prisão fora do local em que estaria correndo o processo; daí o cumprimento de
diversas providências que, na nossa jurisprudência, seria perfeitamente admissível, ou seja, justificar-se-ia esse prazo mais alongado.
Acontece que o eminente Relator, diante das circunstâncias concretas,
despachou nos autos determinando que se expedisse um ofício ao Juiz da causa
em 22 de agosto de 2007 e, posteriormente a isso, o Juiz então informou, em
agosto de 2007, que já estavam sendo realizadas as oitivas das testemunhas,
que havia sido marcada a audiência para o dia 18 de julho de 2007 e que estaria
aguardando, também, a devolução das cartas precatórias que foram expedidas
no dia 8 de fevereiro de 2007.
Ora, nessa medida o que se verifica é que, nestes autos, concretamente,
estando a prisão decretada em maio de 2005, tendo sido emitido o parecer da
Procuradoria em novembro de 2006 e somente em agosto de 2007 é que o Juiz
informa que está em curso a audiência para oitiva de testemunhas e o aguardo
das cartas precatórias, evidentemente que esses três anos configuram, sob todas
as dúvidas, acima delas, excesso de prazo, independentemente de qualquer natureza conceitual.
Acompanho S. Exa. diante dessa circunstância de fato.
EXTRATO DA ATA
HC 89.622/BA — Relator: Ministro Carlos Britto. Paciente: Franklin
Costa Araújo. Impetrantes: Abdon Antônio Abbade dos Reis e outros. Coator:
Superior Tribunal de Justiça.
548
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Decisão: A Turma deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto
do Relator. Unânime.
Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Minis­
tros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito.
Compareceu o Ministro Eros Grau a fim de julgar processos a ele vinculados,
ocupando a cadeira do Ministro Ricardo Lewandowski. Subprocurador-Geral
da República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas.
Brasília, 3 de junho de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
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HABEAS CORPUS 90.450 — MG
Relator: O Sr. Ministro Celso de Mello
Paciente e Impetrante: Demétrios Nicolaos Nikolaidis — Coator: Pre­
sidente do Superior Tribunal de Justiça
Habeas corpus – Prisão civil – Depositário judicial – A questão da infidelidade depositária – Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (art. 7º, n. 7) – Hierarquia constitucional dos
tratados internacionais de direitos humanos – Pedido deferido.
Ilegitimidade jurídica da decretação da prisão civil do depositário infiel.
– Não mais subsiste, no sistema normativo brasileiro, a
prisão civil por infidelidade depositária, independentemente da
modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário, como o é o depósito
judicial. Precedentes.
Tratados internacionais de direitos humanos: as suas relações com o direito interno brasileiro e a questão de sua posição
hierárquica.
– A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º,
n. 7). Caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos e o sistema de proteção dos direitos
básicos da pessoa humana.
– Relações entre o direito interno brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º e § 2º e § 3º).
Precedentes.
– Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza
constitucional ou caráter de supralegalidade? – Entendimento do
Relator, Ministro Celso de Mello, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos
humanos.
A interpretação judicial como instrumento de mutação informal da Constituição.
– A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial
como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal
da Constituição.
A legitimidade da adequação, mediante interpretação do
Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e
quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações
550
R.T.J. — 208
resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade
contemporânea.
Hermenêutica e direitos humanos: a norma mais favorável
como critério que deve reger a interpretação do Poder Judiciário.
– Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio
hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos), consistente em
atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção
jurídica.
– O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que
prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode
ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha
positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair
a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o
acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais
vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a
tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs.
– Aplicação, ao caso, do artigo 7º, n. 7, c/c o art. 29, ambos
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São
José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais
favorável à proteção efetiva do ser humano.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e
das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, deferir o pedido de habeas
corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie.
Brasília, 23 de setembro de 2008 — Celso de Mello, Presidente e Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Celso de Mello: O Ministério Público Federal, em parecer
da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. MARIO JOSÉ GISI,
assim resumiu a presente impetração (fls. 153/155):
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551
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, nos autos em epígrafe, diz a V.
Exa. o que segue:
Trata-se de “habeas corpus” preventivo, com pedido de liminar, impetrado
em favor de Demétrios Nicolaos Nikolaidis, contra ato denegatório de liminar da
lavra do Ministro Presidente Barros Monteiro, do Superior Tribunal de Justiça,
proferido nos autos do “writ” n.º 73.319/MG.
Segundo os autos, o Juízo da 4ª Vara de Feitos Tributários da Comarca de
Belo Horizonte/MG expediu mandado de prisão em face do paciente que, depositário judicial nos autos da Execução Fiscal nº 024.99.053.662-5, foi qualificado
como infiel após deixar de devolver os bens penhorados.
Diante do decreto prisional, a defesa impetrou “habeas corpus”, com pe­
dido de liminar, perante o Tribunal de Justiça do Estado de Minas, cuja ordem foi
denegada em 12/12/06.
Novo “mandamus” foi manejado junto ao Superior Tribunal de Justiça,
sendo indeferida a medida liminar em 08 de janeiro de 2007 (fl. 112).
Na presente via, sustenta o impetrante a inconstitucionalidade da prisão
civil de depositário infiel, por ofender à norma insculpida no pacto de São José
da Costa Rica, bem como o artigo 5º, § 2º da Carta de 1988.
Alega que os bens recebidos em depósito judicial pelo paciente desapare­
ceram, e que o mesmo não possui condições financeiras de saldar a dívida com a
Fazenda Pública do Estado de Minas Gerais, decorrente do não-recolhimento do
ICMS, que totaliza R$ 268.206,73.
Postula a concessão de liminar para expedição de salvo-conduto ao paciente. Ao final requer a confirmação do pleito de urgência em caráter definitivo,
ou, caso não seja esse o entendimento da Corte, a conversão do julgamento em
diligência a fim de que o paciente possa cumprir pena em caráter domiciliar.
Medida cautelar concedida para suspender a eficácia da ordem de prisão
civil expedida contra o ora paciente, até o julgamento do presente “mandamus”
(fls. 125/126).
Informações prestadas pela autoridade coatora às fls. 110/112, e pelo Juízo
da 4ª Vara de Feitos Tributários da Comarca de Belo Horizonte às fls. 147/149.
É o relatório.
(Grifei.)
Deferi o pedido de medida cautelar, para, até final julgamento desta ação
de “habeas corpus”, suspender a eficácia da ordem de prisão civil expedida
contra o ora Paciente, qualificado como depositário judicial infiel, nos autos
da Execução Fiscal 024.99.053.662-5, em curso perante o Juízo de Direito da 4ª
Vara de Feitos Tributários da comarca de Belo Horizonte/MG.
A douta Procuradoria-Geral da República, ao pronunciar-se nos presentes autos (fls. 153/159), opinou pela denegação da ordem de “habeas corpus”,
em parecer assim ementado (fls. 153):
“HABEAS CORPUS”. EXECUÇÃO. PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO
INFIEL. PREVALÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PACTO DE SÃO
JOSÉ DA COSTA RICA. INAPLICABILIDADE. DESCUMPRIMENTO DE
“MUNUS PUBLICO” ASSUMIDO COM A GUARDA DOS BENS QUE GA­
RANTEM O PAGAMENTO DA DÍVIDA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL
INEXISTENTE.
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– Tendo sido prevista constitucionalmente, a prisão do depositário infiel
não pode ser tida como revogada pelo pacto de São José da Costa Rica, tendo em
vista que este, ratificado pelo Brasil, possui natureza infraconstitucional, sem o
condão de revogar norma originariamente prevista na Constituição Federal de
1988.
– É de rigor a decretação da prisão civil do depositário judicial que age
com infidelidade, tendo em vista que com a nomeação, o depositário passa a atuar
como “auxiliar” da Justiça, pois que responsável pela guarda dos bens, dos quais
só poderá dispor mediante autorização judicial.
– Parecer pela denegação do “writ” e cassação da liminar deferida.
(Grifei.)
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Celso de Mello (Relator): A questão básica suscitada na
presente causa consiste em saber se ainda subsiste, no direito positivo brasileiro, no plano infraconstitucional da legislação interna, a prisão civil do
depositário infiel, considerado o que dispõem a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos/Pacto de São José da Costa Rica (Art. 7º, n. 7) e o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 11).
A alta relevância dessa matéria, que envolve discussão em torno do alcance e precedência dos direitos fundamentais da pessoa humana, impõe que
se examine, de um lado, o processo de crescente internacionalização dos direitos humanos e, de outro, que se analisem as relações entre o direito nacional
(direito positivo interno do Brasil) e o direito internacional dos direitos humanos, notadamente em face do preceito inscrito no § 3º do art. 5º da Constituição
da República, introduzido pela EC 45/04.
Nesse contexto, o tema da prisão civil por dívida, analisado na perspectiva dos documentos internacionais, especialmente na dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, assume significativa importância no
plano jurídico, pois estimula reflexão a propósito de uma clara tendência que se
vem registrando no sentido da abolição desse instrumento de coerção processual, que constitui resquício de uma prática extinta, já na Roma republicana,
desde o advento, no século V a.C., da “Lex Poetelia Papiria”, saudada, então,
enquanto marco divisor entre dois períodos históricos, como representando a
“aurora dos novos tempos”.
Vale referir, a esse respeito, a valiosa lição de ALFREDO BUZAID (“Do
Concurso de Credores no Processo de Execução”, p. 43/44, item n. 3, e p. 53,
item n. 10, 1952, Saraiva):
No período das “legis actiones”, a execução se processava normalmente
contra a pessoa do devedor, através da “legis actio per manus injectionem”.
Confessada a dívida, ou julgada a ação, cabia a execução trinta dias depois,
sendo concedido êsse prazo a fim de o devedor poder pagar o débito. Se êste
não fôsse solvido, o exeqüente lançava as mãos sôbre o devedor e o conduzia
R.T.J. — 208
553
a juízo. Se o executado não satisfizesse o julgado e se ninguém comparecesse
para afiançá-lo, o exeqüente o levava consigo, amarrando-o com uma corda, ou
algemando-lhe os pés. A pessoa do devedor era adjudicada ao credor e reduzida
a cárcere privado durante sessenta dias. Se o devedor não se mantivesse à sua
custa, o credor lhe daria diàriamente algumas libras de pão. Durante a prisão
era levado a três feiras sucessivas e aí apregoado o crédito. Se ninguém o sol­
vesse, era aplicada ao devedor a pena capital, podendo o exeqüente matá-lo, ou
vendê-lo “trans Tiberim”. Havendo pluralidade de credores, podia o executado
na terceira feira ser retalhado; se fôsse cortado a mais ou a menos, isso não seria
considerado fraude.
(...)
O extremo rigor do primitivo processo civil romano não perdurou largo
tempo. Fez-se logo sentir a necessidade de uma reforma. Em 428, ou 441, foi publicada a “Lex Poetelia”: seu objetivo foi, por um lado, fortalecer a intervenção
do juiz. Assim foi abolida a faculdade de matar o devedor insolvente, de vendêlo como escravo, ou de detê-lo na cadeia, bem como proibido o uso da “manus
injectio” contra o devedor não “confessus”, nem “ judicatus”. Tornava-se indispensável a intervenção do magistrado mesmo quando o devedor se tivesse obri­
gado pelas formas solenes do “nexum”.
(Grifei.)
Sabemos que a vedação da prisão civil por dívida, no sistema jurídico
brasileiro, possui extração constitucional. A Lei Fundamental, ao estabelecer
as bases do regime que define a proteção dispensada à liberdade individual,
consagra, em tema de prisão civil por dívida, uma tradição republicana, que,
iniciada pela Constituição de 1934 (art. 113, n. 30), tem sido observada, com
a só exceção da Carta de 1937, pelos sucessivos documentos constitucionais
brasileiros (CF/46, art. 141, § 32; CF/67, art. 150, § 17; CF/69, art. 153, § 17).
A Constituição de 1988, perfilhando essa mesma orientação, dispõe, em seu
art. 5º, inciso LXVII, que “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do res­
ponsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentí­
cia e a do depositário infiel” (grifei).
Esse preceito da Constituição brasileira, como se vê, contempla a possibilidade de o legislador comum, em duas hipóteses – (a) inadimplemento de
obrigação alimentar e (b) infidelidade depositária –, limitar o alcance da vedação constitucional pertinente à prisão civil.
Ocorre, no entanto, Senhores Ministros, que a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, ao dispor sobre o estatuto jurídico da liberdade pessoal, prescreve, em seu Art. 7º, n. 7, que “Ninguém deve ser detido por dívidas.
Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente
expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar” (grifei).
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, instituída pelo
Pacto de São José da Costa Rica, a que o Brasil aderiu em 25 de setembro
de 1992, foi incorporada ao nosso sistema de direito positivo interno pelo
Decreto 678, de 6 de novembro de 1992, e que, editado pelo Presidente da
República, formalmente consubstanciou a promulgação desse importante ato
internacional.
554
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Essa Convenção internacional – reiterando os grandes princípios generosamente proclamados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem,
pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e pela Carta
da Organização dos Estados Americanos – reafirmou o propósito dos Estados
americanos de fazerem consolidar, neste Continente, “dentro do quadro das
instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social,
fundado no respeito dos direitos essenciais do Homem”.
Na realidade, o Pacto de São José da Costa Rica constitui instrumento
normativo destinado a desempenhar um papel de extremo relevo no âmbito
do sistema interamericano de proteção aos direitos básicos da pessoa humana,
qualificando-se, sob tal perspectiva, como peça complementar no processo de
tutela das liberdades públicas fundamentais.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, por sua vez,
celebrado sob os auspícios da Organização das Nações Unidas e revestido de
projeção global no plano de proteção dos direitos essenciais da pessoa humana,
estabelece, em seu Artigo 11, que “Ninguém poderá ser preso apenas por não
poder cumprir com uma obrigação contratual” (grifei).
Vê-se, daí, considerado esse quadro normativo em que preponderam declarações constitucionais e internacionais de direitos, que o Supremo Tribunal
Federal se defronta com um grande desafio, que, não superado, culminará por
causar injusta frustração e provocar grave comprometimento do regime das
liberdades públicas.
É por isso que, em tema de hermenêutica aplicada aos direitos humanos,
o critério da “norma mais favorável” há de prevalecer, sempre, na interpretação do Poder Judiciário.
Com efeito, os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade
interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos
humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele
proclamado no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa
humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica.
O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da “norma mais favorável” (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno
do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais
e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o
acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis,
a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa
humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana
tornarem-se palavras vãs.
Não se pode desconhecer, neste ponto, Senhores Ministros, que se delineia, hoje, uma nova perspectiva no plano do direito internacional. É que, ao
contrário dos padrões ortodoxos consagrados pelo direito internacional clássico,
R.T.J. — 208
555
os tratados e convenções, presentemente, não mais consideram a pessoa humana como um sujeito estranho ao domínio de atuação dos Estados no plano
externo.
O eixo de atuação do direito internacional público contemporâneo passou
a concentrar-se, também, na dimensão subjetiva da pessoa humana, cuja essencial dignidade veio a ser reconhecida, em sucessivas declarações e pactos
internacionais, como valor fundante do ordenamento jurídico sobre o qual
repousa o edifício institucional dos Estados nacionais.
Torna-se importante destacar, sob tal perspectiva, que a Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas, representou um passo decisivo no
processo de reconhecimento, consolidação e contínua expansão dos direitos
básicos da pessoa humana.
A Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada consensualmente
pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, foi responsável – consoante observa o diplomata brasileiro JOSÉ AUGUSTO LINDGREN ALVES
(“Os Direitos Humanos como Tema Global”, p. 135/144, item n. 8.2, 1994,
Perspectiva) – por significativos avanços conceituais que se projetaram nos
planos concernentes à legitimidade das preocupações internacionais com os
direitos humanos (art. 4º), à interdependência entre democracia, desenvolvimento e direitos humanos (art. 8º) e, ainda, ao reconhecimento do sentido de
universalidade dos direitos humanos (art. 5º).
Cumpre não desconhecer, nesse contexto, o alcance e o significado de
diversas proclamações constantes da Declaração de Viena, especialmente
daquelas que enfatizam o compromisso solene de todos os Estados de promoverem o respeito universal e a observância e proteção de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais das pessoas, assegurando-lhes, para esse
efeito, meios destinados a viabilizar o acesso à própria jurisdição de organismos internacionais.
Resulta claro de todas as observações que venho de fazer que os tratados e convenções internacionais desempenham papel de significativo relevo
no plano da afirmação, da consolidação e da expansão dos direitos básicos da
pessoa humana, dentre os quais avulta, por sua extraordinária importância,
o direito de não sofrer prisão por dívida, ainda mais se se considerar que
o instituto da prisão civil por dívida – ressalvada a hipótese excepcional do
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar – vem sendo
progressivamente abolido no âmbito do direito comparado.
É certo que a Constituição da República, ao vedar a prisão civil por
dívida, prevê a possibilidade de o legislador ordinário instituí-la em duas
situações excepcionais: (a) a do responsável pelo inadimplemento voluntário
e inescusável de obrigação alimentícia e (b) a do depositário infiel (CF, art. 5º,
inciso LXVII).
556
R.T.J. — 208
Também é inquestionável que a prisão civil, que não é pena, mas simples medida de coerção jurídico-processual (HC 71.038/MG, Rel. Min. CELSO
DE MELLO – RHC 66.627/SP, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, v.g.) – entendimento este igualmente adotado pelo magistério da doutrina (CLÓVIS
BEVILAQUA, “Código Civil”, vol. V, p. 22/23, itens ns. 3 e 5, 1957, Francisco
Alves; JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, “A Ação de Depósito e o Pedido
de Prisão”, “in” “Revista de Processo”, vol. 36/12, v.g.) – , não foi instituída
pela Constituição Federal.
Na realidade, as exceções à cláusula vedatória da prisão civil por dívida
devem ser compreendidas como um afastamento meramente pontual da interdição constitucional dessa modalidade extraordinária de coerção, em ordem
a facultar, ao legislador comum, a criação desse meio instrumental nos casos
em que o seu uso se torne possível.
Isso significa que, sem lei veiculadora da disciplina da prisão civil nas situações excepcionais referidas, não se torna juridicamente viável a decretação
judicial desse meio de coerção processual, pois a regra inscrita no inciso LXVII
do art. 5º da Constituição não tem aplicabilidade direta, dependendo, ao contrário, da intervenção concretizadora do legislador (“interpositio legislato­
ris”), eis que cabe, a este, cominar a prisão civil, delineando-lhe os requisitos,
determinando-lhe o prazo de duração e definindo-lhe o rito de sua aplicação,
a evidenciar, portanto, que a figura da prisão civil, se e quando instituída pelo
legislador, representará a expressão de sua vontade, o que permite examinar
esse instrumento coativo sob uma perspectiva eminentemente infraconstitucional e conseqüentemente viabilizadora da análise – que me parece inteiramente
pertinente ao caso em questão – das delicadas relações que se estabelecem
entre o Direito Internacional Público e o Direito interno dos Estados nacionais.
Torna-se relevante assinalar que a colenda Segunda Turma do Supremo
Tribunal Federal, ao julgar o HC 74.383/MG, Rel. p/o acórdão Min. MARCO
AURÉLIO (RTJ 166/963), pôs em destaque a não-vinculatividade do legislador ordinário às exceções constitucionais que meramente permitem – mas não
obrigam – a instituição, pelo Congresso Nacional, da prisão civil, havendo
ressaltado, ainda, nesse julgamento, como fundamento essencial de sua decisão, considerado o que dispõem o art. 4º, II, e o art. 60, § 4º, IV, da Constituição,
a primazia que os direitos e garantias individuais ostentam em nosso ordenamento positivo.
Reproduzo, no ponto, fragmento do voto então proferido pelo eminente
Ministro FRANCISCO REZEK (RTJ 166/963, 971-972):
Há de se presumir equilíbrio e senso das proporções em todo legislador,
sobretudo no constituinte quando trabalha nas condições em que trabalhou o
constituinte brasileiro de l988. Ele prestigia uma tradição constitucional brasi­
leira: não há, nesta República, prisão por dívida; não se prendem pessoas porque devem dinheiro. Mas abre duas exceções. E o que vamos presumir em nome
do equilíbrio? Que essas duas exceções têm peso mais ou menos equivalente. No
R.T.J. — 208
557
caso do omisso em prestar alimentos, a linguagem constitucional é firme: inadim­
plemento voluntário e inescusável da obrigação. E, ao lado disso, o que mais
excepciona a regra da proibição da prisão por dívida? O depositário infiel. Mas
nunca se há de entender que essa expressão é ampla, e que o legislador ordinário
pode fazer dela, mediante manipulação, o que quiser. O depositário infiel há de
enquadrar-se numa situação de gravidade bastante para rivalizar, na avaliação
do constituinte, com o omisso em prestar alimentos de modo voluntário e inescu­
sável. (...). Esse é o depositário infiel cuja prisão o constituinte brasileiro, embora
avesso à prisão por dívida, tolera. (...).
Mas, por cima de tudo isso, ainda vem São José da Costa Rica. Essa con­
venção vai além, depura melhor as coisas, e quer que em hipótese alguma, senão
a do inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia, se possa
prender alguém por dívida. O texto a que o Brasil se vinculou quando ratificou a
convenção de São José da Costa Rica não tolera sequer a prisão do depositário
infiel verdadeiro.
(...) o inciso LXVII proíbe a prisão por dívida e, ao estabelecer a exceção
possível, permite que o legislador ordinário discipline a prisão do alimentante
omisso e do depositário infiel. Permite, não obriga. O constituinte não diz:
prenda-se o depositário infiel. Ele diz: é possível legislar nesse sentido. (...) a
Constituição não obriga a prender o depositário infiel; ela diz apenas que isso
é uma exceção possível à regra de que não há prisão por dívida, e o legislador
ordinário que delibere. O legislador ordinário poderia, então, disciplinar a pri­
são nessa hipótese, ou não fazê-lo e assumir uma atitude mais condizente com os
novos tempos. (...).
(Grifei.)
Vê-se, daí, que a própria Constituição tornou juridicamente viável, no
plano da legislação meramente comum, a possibilidade de o legislador ordinário, mesmo em face das duas únicas exceções previstas na Lei Fundamental,
sequer considerar a instituição desse instrumento excepcional de coerção processual, a indicar, portanto, que se revela plenamente legítimo, no âmbito
infraconstitucional, ao Congresso Nacional, e desde que assim o entenda conveniente, restringir ou, até mesmo, suprimir a decretabilidade da prisão civil
em nosso ordenamento positivo.
Na realidade, o legislador não se acha constitucionalmente vinculado
nem compelido, em nosso sistema jurídico, a regular a utilização da prisão
civil, eis que dispõe, nesse tema, de relativa liberdade decisória, que lhe
permite – sempre respeitados os parâmetros constitucionais (CF, art. 5º,
LXVII) – (a) disciplinar ambas as hipóteses (inexecução de obrigação alimentar e infidelidade depositária), (b) abster-se, simplesmente, de instituir a prisão
civil e (c) instituí-la em apenas uma das hipóteses facultadas pela Constituição.
Abre-se, desse modo, um campo de relativa discrição, ao Poder Legis­
lativo, que poderá, presente tal contexto, adotar qualquer das providências
acima mencionadas.
Esse modelo constitucional vigente no Brasil, portanto, não impõe,
ao legislador comum, a regulação do instituto da prisão civil, com necessária projeção e abrangência das duas hipóteses excepcionais a que se refere à
Constituição.
558
R.T.J. — 208
Torna-se evidente, assim, que esse espaço de autonomia decisória, proporcionado, ainda que de maneira limitada, ao legislador comum, pela própria
Constituição da República, poderá ser ocupado, de modo plenamente legítimo,
pela normatividade emergente dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, ainda mais se se lhes conferir caráter de “supralegalidade”,
como preconizou, em douto voto, o eminente Ministro GILMAR MENDES
(RE 349.703/RS e RE 466.343/SP) ou, então, com muito maior razão, se se lhes
atribuir caráter constitucional, tal como o fiz, com apoio em eminentes doutrinadores, em julgamento plenário no Supremo Tribunal Federal (HC 87.585/
TO, RE 349.703/RS e RE 466.343/SP).
É que, em tal situação, cláusulas convencionais inscritas em tratados internacionais sobre direitos humanos – como aquelas previstas na Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, n. 7) –, ao limitarem a possibilidade da prisão civil, reduzindo-a a uma única e só hipótese (inexecução voluntária e inescusável de obrigação alimentar), nada mais refletirão senão aquele
grau de preeminência hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos em face da legislação comum, de caráter infraconstitucional, editada
pelo Estado brasileiro.
Posta a questão nesses termos, a controvérsia jurídica remeter-se-á ao
exame do conflito entre as fontes internas e internacionais (ou, mais adequadamente, ao diálogo entre essas mesmas fontes), de modo a se permitir que,
tratando-se de convenções internacionais de direitos humanos, estas guardem
primazia hierárquica em face da legislação comum do Estado brasileiro, sempre que se registre situação de antinomia entre o direito interno nacional e as
cláusulas decorrentes de referidos tratados internacionais.
Após longa reflexão sobre o tema em causa, Senhores Ministros – notadamente a partir da decisão plenária desta Corte na ADI 1.480-MC/DF, Rel.
Min. CELSO DE MELLO (RTJ 179/493-496) –, julguei necessário reavaliar
certas formulações e premissas teóricas que me conduziram, então, naquela
oportunidade, a conferir, aos tratados internacionais em geral (qualquer que
fosse a matéria neles veiculada), posição juridicamente equivalente à das leis
ordinárias.
As razões por mim invocadas no já referido julgamento plenário do
HC 87.585/TO, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, do RE 349.703/RS, Rel. Min.
CARLOS BRITTO e do RE 466.343/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO, no entanto, Senhores Ministros, convenceram-me da necessidade de se distinguir,
para efeito de definição de sua posição hierárquica em face do ordenamento
positivo interno, entre convenções internacionais sobre direitos humanos (revestidas de “supralegalidade”, como sustenta o eminente Ministro GILMAR
MENDES, ou impregnadas de natureza constitucional, como eu próprio reconheço), e tratados internacionais sobre as demais matérias (compreendidos
estes numa estrita perspectiva de paridade normativa com as leis ordinárias).
Isso significa, portanto, examinada a matéria sob a perspectiva da “su­
pralegalidade”, tal como preconiza o eminente Ministro GILMAR MENDES,
que, cuidando-se de tratados internacionais sobre direitos humanos, estes hão de
R.T.J. — 208
559
ser considerados como estatutos situados em posição intermediária que permita qualificá-los como diplomas impregnados de estatura superior à das leis
internas em geral, não obstante subordinados à autoridade da Constituição
da República.
Daí a observação que o eminente Ministro GILMAR MENDES fez em
seu douto voto:
Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais
tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar
privilegiado no ordenamento jurídico.
Em outros termos, solucionando a questão para o futuro – em que os tratados de direitos humanos, para ingressarem no ordenamento jurídico na qua­
lidade de emendas constitucionais, terão que ser aprovados em quorum especial
nas duas Casas do Congresso Nacional –, a mudança constitucional ao menos
acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados e conven­
ções internacionais já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE
80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1-6-77;
DJ 29-12-77) e encontra respaldo em um largo repertório de casos julgados após
o advento da Constituição de 1988.
(...)
Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a
característica de “supralegalidade” aos tratados e convenções de direitos huma­
nos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos
seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação
aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atri­
buto de “supralegalidade”.
Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam
afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado
no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar
o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa
humana.
(Grifei.)
Vale rememorar, ainda, neste ponto, expressiva passagem constante
do voto que o eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE proferiu, como
Relator, no julgamento do RHC 79.785/RJ (RTJ 183/1010-1012, 1022), demonstrando a sua inclinação no sentido de, ao reconhecer a necessária prevalência da Constituição, “no Direito brasileiro, sobre quaisquer convenções
internacionais, incluídas as de proteção aos direitos humanos (...)”, admitir,
contudo, a precedência desses mesmos tratados internacionais sobre a legislação interna do Estado brasileiro:
(...) tendo, assim (...), a aceitar a outorga de força supra-legal às conven­
ções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas – até, se
necessário, contra a lei ordinária – sempre que, sem ferir a Constituição, a com­
plementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes.
(Grifei.)
560
R.T.J. — 208
Vale registrar, neste ponto, a lição de GILMAR FERREIRA MENDES,
INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO
(“Curso de Direito Constitucional”, p. 670/671, item n. 9.4.4, 2007, IDP/
Saraiva), cuja análise e compreensão da função tutelar dos tratados internacionais, própria e co-natural, em matéria de liberdades públicas, à vocação protetiva inerente ao Direito internacional contemporâneo, põe em perspectiva o
decisivo papel que se atribui, hoje, em tema de direitos humanos, às convenções internacionais, culminando por reconhecer-lhes eficácia inibitória de diplomas normativos, que, impregnados de qualificação infraconstitucional, com
elas se mostrem colidentes:
Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direi­
tos humanos nos planos interno e internacional tornou imperiosa uma mudança
de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem
jurídica nacional.
Era necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às reali­
dades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à prote­
ção do ser humano.
Como enfatiza Cançado Trindade, “a tendência constitucional contempo­
rânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é,
pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar
posição central”.
Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacio­
nais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a
sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de rati­
ficação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica
de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.
Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Cons­
tituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da
prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII) não foi revogada pela adesão
do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa
Rica (Art. 7º, n. 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante
desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a ma­
téria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n. 911, de
1º-10-1969.
Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos interna­
cionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante
também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652
do novo Código Civil (Lei n. 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao
art. 1.287 do Código Civil de 1916.
Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos (Art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (Art. 7º, n. 7), não há base legal para
aplicação da parte final do art. 5º, LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão
civil do depositário infiel.
(Grifei.)
Reconheço, no entanto, Senhores Ministros, que há expressivas lições doutrinárias – como aquelas ministradas por ANTÔNIO AUGUSTO
R.T.J. — 208
561
CANÇADO TRINDADE (“Tratado de Direito Internacional dos Direitos
Humanos”, vol. I/513, item n. 13, 2ª ed., 2003, Fabris), FLÁVIA PIOVESAN
(“Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, p. 51/77, 7ª
ed., 2006, Saraiva), CELSO LAFER (“A Internacionalização dos Direitos
Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais”, p. 16/18,
2005, Manole) e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (“Curso de Direito
Internacional Público”, p. 682/702, item n. 8, 2ª ed., 2007, RT), dentre outros
eminentes autores – que sustentam, com sólida fundamentação teórica, que
os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na ordem positiva
interna brasileira, qualificação constitucional, acentuando, ainda, que as convenções internacionais em matéria de direitos humanos, celebradas pelo Brasil
antes do advento da EC 45/04, como ocorre com o Pacto de São José da Costa
Rica, revestem-se de caráter materialmente constitucional, compondo, sob
tal perspectiva, a noção conceitual de bloco de constitucionalidade.
Vale referir, no ponto, e no sentido ora exposto, o douto magistério do
eminente Professor CELSO LAFER (“A Internacionalização dos Direitos
Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais”, p. 15/18, 2005,
Manole):
No plano interno, esta política jurídica exterior tem o respaldo e o estímulo do § 2º do art. 5º, que afirma que os direitos e garantias expressos na
Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que
a República Federativa seja parte.
O § 2º do art. 5º suscitou controvérsias, pois argüiu-se que, a ser aplicado
literalmente, ensejaria mudança constitucional por maioria simples, que é a
maioria requerida para a aprovação de decreto legislativo que recepciona um
tratado na ordem jurídica interna. Destarte, não se cumprindo os requisitos da
votação da emenda constitucional (CF, art. 60, § 2º), os tratados internacionais
de direitos humanos não poderiam ter a validade de normas constitucionais.
Foi por conta desta controvérsia que a Emenda Constitucional n. 45, de
8 de dezembro de 2004, também adicionou ao art. 5º, em consonância com o
art. 60, § 2º, da CF, o novo § 3º que diz:
“Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos
que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois tur­
nos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes
às emendas constitucionais.”
O novo § 3º do art. 5º pode ser considerado como uma lei interpretativa
destinada a encerrar as controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias suscitadas
pelo § 2º do art. 5º. De acordo com a opinião doutrinária tradicional, uma lei
interpretativa nada mais faz do que declarar o que preexiste, ao clarificar a lei
existente. (...).
(...)
Este me parece ser o caso do novo § 3º do art. 5º.
Com efeito, entendo que os tratados internacionais de direitos humanos
anteriores à Constituição de 1988, aos quais o Brasil aderiu e que foram validamente promulgados, inserindo-se na ordem jurídica interna, têm a hierarquia de
normas constitucionais, pois foram como tais formalmente recepcionados pelo
§ 2º do art. 5° não só pela referência nele contida aos tratados como também
562
R.T.J. — 208
pelo dispositivo que afirma que os direitos e garantias expressos na Constituição
não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados.
Neste sentido, aponto que a referência aos princípios pressupõe, como foi visto,
a expansão axiológica do Direito na perspectiva “ex parte civium” dos direitos
humanos. Também entendo que, com a vigência da Emenda Constitucional n.
45, de 8 de dezembro de 2004, os tratados internacionais a que o Brasil venha
a aderir, para serem recepcionados formalmente como normas constitucionais,
devem obedecer ao “iter” previsto no novo § 3º do art. 5º.
Há, no entanto, uma situação jurídica de direito intertemporal distinta
das duas hipóteses já mencionadas: a dos muitos tratados internacionais de
direitos humanos a que o Brasil aderiu e recepcionou no seu ordenamento jurí­
dico desde a Constituição de 1988 até a Emenda Constitucional n. 45, seguindo
a política jurídica exterior determinada pela “vis directiva” do inc. II do art. 4º.
Entre estes tratados estão o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais; e a Convenção
Americana de Direitos Humanos. Penso que os dispositivos destes e de outros
tratados recepcionados pela ordem jurídica nacional sem o “quorum” de uma
emenda constitucional não podem ser encarados como tendo apenas a mera
hierarquia de leis ordinárias. E é neste ponto que a controvérsia se colocará em
novos termos, para voltar ao ensinamento de Paul Roubier, acima referido.
Explico-me, observando que entendo, por força do § 2º do art. 5º, que as
normas destes tratados são materialmente constitucionais. Integram, como di­
ria Bidart Campos, o bloco de constitucionalidade, ou seja, um conjunto normativo que contém disposições, princípios e valores que, no caso, em consonância
com a Constituição de 1988, são materialmente constitucionais, ainda que este­
jam fora do texto da Constituição documental. O bloco de constitucionalidade é,
assim, a somatória daquilo que se adiciona à Constituição escrita, em função
dos valores e princípios nela consagrados. O bloco de constitucionalidade imprime vigor à força normativa da Constituição e é por isso parâmetro hermenêutico, de hierarquia superior, de integração, complementação e ampliação
do universo dos direitos constitucionais previstos, além de critério de preenchi­
mento de eventuais lacunas. Por essa razão, considero que os tratados internacionais de direitos humanos recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro
a partir da vigência da Constituição de 1988 e a entrada em vigor da Emenda
Constitucional n. 45 não são meras leis ordinárias, pois têm a hierarquia que
advém de sua inserção no bloco de constitucionalidade.
Faço estas considerações porque concebo, na linha de Flávia Piovesan,
que o § 2º do art. 5º, na sistemática da Constituição de 1988, tem uma função
clara: a de tecer “a interação entre a ordem jurídica interna e a ordem jurídica
internacional”.
(Grifei.)
Após muita reflexão sobre esse tema (que entendi indispensável realizar,
quando do julgamento plenário do HC 87.585/TO, do RE 349.703/RS e do RE
466.343/SP), e não obstante anteriores julgamentos desta Corte de que participei como Relator (RTJ 174/463-465 – RTJ 179/493-496), acolhi essa orientação
que atribui natureza constitucional às convenções internacionais de direitos
humanos, reconhecendo, então, para efeito de outorga dessa especial qualificação jurídica, tal como observa CELSO LAFER, a existência de três distintas situações concernentes a referidos tratados internacionais:
R.T.J. — 208
563
(1) tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo
Brasil (ou aos quais o nosso País aderiu), e regularmente incorporados à
ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da Constituição
de 1988 (tais convenções internacionais revestem-se de índole constitucional, porque formalmente recebidas, nessa condição, pelo § 2º do art. 5º
da Constituição);
(2) tratados internacionais de direitos humanos que venham a ser
celebrados pelo Brasil (ou aos quais o nosso País venha a aderir) em
data posterior à da promulgação da EC nº 45/2004 (essas convenções
internacionais, para se impregnarem de natureza constitucional, deverão observar o “iter” procedimental estabelecido pelo § 3º do art. 5º da
Constituição); e
(3) tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil
(ou aos quais o nosso País aderiu) entre a promulgação da Constituição de
1988 e a superveniência da EC nº 45/2004 (referidos tratados assumem
caráter materialmente constitucional, porque essa qualificada hierarquia
jurídica lhes é transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade, que é “a somatória daquilo que se adiciona à Constituição
escrita, em função dos valores e princípios nela consagrados”).
Essa mesma percepção do tema em causa, que extrai a qualificação
constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos dos textos
normativos inscritos nos § 2º e § 3º do art. 5º da Constituição, é também revelada por FRANCISCO REZEK (“Direito Internacional Público – Curso
Elementar”, p. 101/103, item n. 50, 10ª ed./3ª tir., 2007, Saraiva):
“Direitos e garantias individuais: o art. 5º, § 2º e § 3º, da Constituição”.
No desfecho do extenso rol de direitos e garantias individuais do art. 5º da
Constituição um segundo parágrafo estabelece, desde 1988, que aquela lista não
exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios consa­
grados na carta, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. (...).
A questão não subsiste a partir de agora, resolvida que foi pelo adita­
mento do terceiro parágrafo ao mesmo artigo constitucional: os tratados sobre
direitos humanos que o Congresso aprove “com o rito da emenda à carta” – em
cada casa dois turnos de sufrágio e o voto de três quintos do total de seus mem­
bros – integrarão em seguida a ordem jurídica no nível das normas da própria
Constituição. Essa nova regra, que se poderia chamar de cláusula holandesa
por analogia com certo modelo prevalente nos Países Baixos e ali pertinente à
generalidade dos tratados (v. referência no § 49), autoriza algumas conclusões
prospectivas. Não é de crer que o Congresso vá doravante bifurcar a metodologia
de aprovação dos tratados sobre direitos humanos. Pode haver dúvida preliminar sobre a questão de saber se determinado tratado configura realmente essa
hipótese temática, mas se tal for o caso o Congresso seguramente adotará o rito
previsto no terceiro parágrafo, de modo que, se aprovado, o tratado se qualifique para ter estatura constitucional desde sua promulgação – que pressupõe,
como em qualquer outro caso, a ratificação brasileira e a entrada em vigor no
plano internacional. Não haverá quanto a semelhante tratado a possibilidade de
564
R.T.J. — 208
denúncia pela só vontade do Executivo, nem a de que o Congresso force a denúncia mediante lei ordinária (v. adiante o § 53), e provavelmente nem mesmo a
de que se volte atrás por meio de uma repetição, às avessas, do rito da emenda à
carta, visto que ela mesma se declara imutável no que concerne a direitos dessa
natureza.
Uma última dúvida diz respeito ao “passado”, a algum eventual direito
que um dia se tenha descrito em tratado de que o Brasil seja parte – e que já não
se encontre no rol do art. 5º. Qual o seu nível? Isso há de gerar controvérsia en­
tre os constitucionalistas, mas é sensato crer que, ao promulgar esse parágrafo
na Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, sem nenhuma ressalva
abjuratória dos tratados sobre direitos humanos outrora concluídos mediante
processo simples, o Congresso constituinte os elevou à categoria dos tratados de
nível constitucional. Essa é uma equação jurídica da mesma natureza daquela
que explica que nosso Código Tributário, promulgado a seu tempo como lei ordi­
nária, tenha-se promovido a lei complementar à Constituição desde o momento
em que a carta disse que as normas gerais de direito tributário deveriam estar
expressas em diploma dessa estatura.
(Grifei.)
Igual entendimento é perfilhado por FLÁVIA PIOVESAN (“Direitos
Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, p. 71/74, 7ª ed., 2006,
Saraiva), cuja lição – que acolho – assim expõe a matéria ora em exame:
Em síntese, há quatro correntes acerca da hierarquia dos tratados de pro­
teção dos direitos humanos, que sustentam: a) a hierarquia supraconstitucional
de tais tratados; b) a hierarquia constitucional; c) a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal e d) a paridade hierárquica entre tratado e lei federal.
No sentido de responder à polêmica doutrinária e jurisprudencial concernente à hierarquia dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos,
a Emenda Constitucional n. 45, de 8 dezembro de 2004, introduziu um § 3º no
art. 5º, dispondo: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos huma­
nos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emen­
das à Constituição.
Em face de todos argumentos já expostos, sustenta-se que hierarquia
constitucional já se extrai de interpretação conferida ao próprio art. 5º, § 2º,
da Constituição de 1988. Vale dizer, seria mais adequado que a redação do
aludido § 3º do art. 5º endossasse a hierarquia formalmente constitucional de
todos os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados,
afirmando – tal como o fez o texto argentino – que os tratados internacionais de
proteção de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm hierarquia
constitucional.
No entanto, estabelece o § 3º do art. 5º que os tratados internacionais de
direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois tur­
nos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas à Constituição.
Desde logo, há que afastar o entendimento segundo o qual, em face do § 3º
do art. 5º, todos os tratados de direitos humanos já ratificados seriam recepcio­
nados como lei federal, pois não teriam obtido o “quorum” qualificado de três
quintos, demandado pelo aludido parágrafo.
(...)
R.T.J. — 208
565
Reitere-se que, por força do art. 5º, § 2º, todos os tratados de direitos
humanos, independentemente do “quorum” de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O “quorum”
qualificado está tão-somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro
formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico in­
terno. Como já defendido por este trabalho, na hermenêutica emancipatória dos
direitos há que imperar uma lógica material e não formal, orientada por valores,
a celebrar o valor fundante da prevalência da dignidade humana. À hierarquia
de valores deve corresponder uma hierarquia de normas, e não o oposto. Vale
dizer, a preponderância material de um bem jurídico, como é o caso de um di­
reito fundamental, deve condicionar a forma no plano jurídico-normativo, e não
ser condicionado por ela.
Não seria razoável sustentar que os tratados de direitos humanos já ratifi­
cados fossem recepcionados como lei federal, enquanto os demais adquirissem
hierarquia constitucional exclusivamente em virtude de seu “quorum” de apro­
vação. A título de exemplo, destaque-se que o Brasil é parte da Convenção con­
tra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes
desde 1989, estando em vias de ratificar seu Protocolo Facultativo. Não haveria
qualquer razoabilidade se a este último – um tratado complementar e subsidiário ao principal – fosse conferida hierarquia constitucional, e ao instrumento
principal fosse conferida hierarquia meramente legal. Tal situação importaria
em agudo anacronismo do sistema jurídico, afrontando, ainda, a teoria geral da
recepção acolhida no direito brasileiro.
(...) Esse entendimento decorre de quatro argumentos: a) a interpretação
sistemática da Constituição, de forma a dialogar os § 2º e 3º do art. 5º, já que
o último não revogou o primeiro, mas deve, ao revés, ser interpretado à luz do
sistema constitucional; b) a lógica e racionalidade material que devem orientar
a hermenêutica dos direitos humanos; c) a necessidade de evitar interpretações
que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica; e d) a teoria geral da
recepção do direito brasileiro.
Acredita-se que o novo dispositivo do art. 5º, § 3º, vem a reconhecer, de
modo explícito, a natureza materialmente constitucional dos tratados de direi­
tos humanos, reforçando, desse modo, a existência de um regime jurídico misto,
que distingue os tratados de direitos humanos dos tratados tradicionais de cunho
comercial. Isto é, ainda que fossem aprovados pelo elevado “quorum” de três
quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, os tratados
comerciais não passariam a ter “status” formal de norma constitucional tãosomente pelo procedimento de sua aprovação.
(...)
Vale dizer, com o advento do § 3º do art. 5º surgem duas categorias de tra­
tados internacionais de proteção de direitos humanos: a) os materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente constitucionais. Frise-se: todos os
tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais,
por força do § 2º do art. 5º. Para além de serem materialmente constitucionais,
poderão, a partir do § 3º do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade de formal­
mente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito
formal.
(Grifei.)
566
R.T.J. — 208
VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (“Curso de Direito Interna­
cional Público”, p. 694/695, item n. 8, 2ª ed., 2007, Atlas), por sua vez, segue
essa mesma orientação, assim resumindo, no ponto em análise, a sua compreensão do tema em causa:
Tecnicamente, os tratados internacionais de proteção dos direitos hu­
manos ratificados pelo Brasil já têm “status” de norma constitucional, em virtude do disposto no § 2º do art. 5º da Constituição, segundo o qual os direitos
e garantias expressos no texto constitucional “não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte”, pois, na medida em que a
Constituição “não exclui” os direitos humanos provenientes de tratados, é porque ela própria “os inclui” no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando
o seu “bloco de constitucionalidade” e atribuindo-lhes hierarquia de norma
constitucional, como já assentamos anteriormente. Portanto, já se exclui, desde
logo, o entendimento de que os tratados de direitos humanos não aprovados pela
maioria qualificada do § 3º do art. 5º equivaleriam hierarquicamente à lei ordi­
nária federal, uma vez que os mesmos teriam sido aprovados apenas por maioria
simples (nos termos do art. 49, inc. I, da Constituição) e não pelo “quorum” que
lhes impõe o referido parágrafo. Aliás, o § 3º do art. 5º em nenhum momento atri­
bui “status” de lei ordinária aos tratados não aprovados pela maioria qualificada
por ele estabelecida. Dizer que os tratados de direitos humanos aprovados por
este procedimento especial passam a ser “equivalentes às emendas constitucio­
nais” não significa obrigatoriamente dizer que os demais tratados terão valor de
lei ordinária, ou de lei complementar, ou o que quer que seja. O que se deve entender é que o “quorum” que o § 3º do art. 5º estabelece serve tão-somente para
atribuir eficácia formal a esses tratados no nosso ordenamento jurídico interno,
e não para atribuir-lhes a índole e o nível “materialmente” constitucionais que
eles já têm em virtude do § 2º do art. 5º da Constituição.
O que é necessário atentar é que os dois referidos parágrafos do art. 5º
da Constituição cuidam de coisas similares, mas diferentes. Quais coisas dife­
rentes? Então para quê serviria a regra insculpida no § 3º do art. 5º da Carta
de 1988, senão para atribuir “status” de norma constitucional aos tratados de
direitos humanos? A diferença entre o § 2º, “in fine”, e o § 3º, ambos do art. 5º
da Constituição, é bastante sutil: nos termos da parte final do § 2º do art. 5º, os
“tratados internacionais [de direitos humanos] em que a República Federativa do
Brasil seja parte são, a “contrario sensu”, incluídos pela Constituição, passando
conseqüentemente a deter o “status” de norma constitucional” e a ampliar o rol
dos direitos e garantias fundamentais (“bloco de constitucionalidade”); já nos
termos do § 3º do mesmo art. 5º da Constituição, uma vez aprovados tais tratados
de direitos humanos pelo “quorum” qualificado ali estabelecido, esses instrumentos internacionais, uma vez ratificados pelo Brasil, passam a ser “equivalentes às emendas constitucionais”.
(...) A relação entre tratado e emenda constitucional estabelecida por
esta norma é de “equivalência” e não de “igualdade”, exatamente pelo fato de
“tratado” e “norma interna” serem coisas desiguais, não tendo a Constituição
pretendido dizer que “A é igual a B”, mas sim que “A é equivalente a B”, em nada
influenciando no “status” que tais tratados podem ter independentemente de apro­
vação qualificada. Falar que um tratado tem “status de norma constitucional”
R.T.J. — 208
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é o mesmo que dizer que ele integra o bloco de constitucionalidade material
(e não formal) da nossa Carta Magna, o que é menos amplo que dizer que ele
é “equivalente a uma emenda constitucional”, o que significa que esse mesmo
tratado já integra formalmente (além de materialmente) o texto constitucional.
Assim, o que se quer dizer é que o regime ‘material’ (menos amplo) dos tratados
de direitos humanos não pode ser confundido com o regime “ formal” (mais am­
plo) que esses mesmos tratados podem ter, se aprovados pela maioria qualificada
ali estabelecida. Perceba-se que, neste último caso, o tratado assim aprovado
será, além de materialmente constitucional, também formalmente constitucional. Assim, fazendo-se uma interpretação sistemática do texto constitucional em
vigor, à luz dos princípios constitucionais e internacionais de garantismo jurídico
e de proteção à dignidade humana, chega-se à seguinte conclusão: o que o texto
constitucional reformado quis dizer é que esses tratados de direitos humanos
ratificados pelo Brasil, que já têm “status” de norma constitucional, nos termos
do § 2º do art. 5º, poderão ainda ser formalmente constitucionais (ou seja, ser
“equivalentes às emendas constitucionais”), desde que, a qualquer momento, de­
pois de sua entrada em vigor, sejam aprovados pelo “quorum” do § 3º do mesmo
art. 5º da Constituição.
(Grifei.)
Não foi por outra razão que o eminente Ministro ILMAR GALVÃO (RE
349.703/RS), reconsiderando o seu anterior entendimento, tal como eu próprio
o fiz no julgamento plenário do HC 87.585/TO, Rel. Min. MARCO AURÉLIO,
do RE 349.703/RS, Rel. Min. CARLOS BRITTO e do RE 466.343/SP, Rel.
Min. CEZAR PELUSO, destacou, em momento anterior ao da promulgação
da EC 45/04, que o § 2º do art. 5º da Constituição – verdadeira cláusula geral
de recepção – autoriza o reconhecimento de que os tratados internacionais de
direitos humanos possuem hierarquia constitucional, em face da relevantíssima
circunstância de que viabilizam a incorporação, ao catálogo constitucional
de direitos e garantias individuais, de outras prerrogativas e liberdades fundamentais, que passam a integrar, subsumindo-se ao seu conceito, o conjunto
normativo configurador do bloco de constitucionalidade:
(...) certo que, no § 2º do art. 5º, se tem uma norma de caráter aberto,
que dá margem ao ingresso, no rol dos direitos e garantias fundamentais, a
outros direitos e garantias provenientes dos tratados de proteção dos direitos
humanos; ainda que se admita que tais tratados não têm o condão de emendar a
Constituição, parecendo fora de dúvida, no entanto, que podem adicionar novos
princípios que equivalem às próprias normas constitucionais, como se estivessem nelas escritos, ampliando o que se costuma chamar de “bloco de constitu­
cionalidade”, nas palavras de Canotilho (“Direito Constitucional”, p. 241). São
normas materialmente constitucionais, que, conquanto não se incorporem ao
Texto Fundamental, ampliam o núcleo mínimo de direitos e garantias nele con­
sagrados, ganhando hierarquia constitucional.
É a própria Constituição que assim as considera, ao incorporar em seu
texto esses direitos internacionais, refletindo, com isso, orientação adotada pelo
nosso constituinte no sentido de se ajustar às obrigações internacionalmente as­
sumidas pelo Estado brasileiro.
(...)
568
R.T.J. — 208
O exemplo clássico é o da prisão civil do depositário infiel, permitida no
inciso LXVII do art. 5º da CF/88 e vedada no art. 11 do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos e no art. 7º do Pacto de São José da Costa Rica.
(...)
Valendo dizer que eventual mudança de entendimento do Supremo Tribunal
Federal, para pôr-se de acordo com as modernas teorias acima expostas, haverá
de partir da adoção da tese de que o § 2º do art. 5º da CF elevou à categoria de
normas integrantes do chamado “bloco da Constituição” as normas decorrentes de tratados internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil seja parte.
(Grifei.)
Desejo fazer, neste ponto, Senhores Ministros, uma pequena observação.
Quando Presidente do Supremo Tribunal Federal (1997/1999), tive a
honra de ver acolhida, pela eminente Deputada Zulaiê Cobra, então Relatora
da Comissão Especial da Reforma do Poder Judiciário, em Substitutivo que
ofereceu à PEC 96/92, proposta que sugeri àquela Comissão da Câmara dos
Deputados, no sentido de conferir qualificação jurídico-constitucional aos
tratados internacionais de direitos humanos, objetivando, com tal sugestão, superar a polêmica doutrinária e jurisprudencial em torno do alcance do § 2º do
art. 5º da Constituição.
Essa eminente congressista paulista, em parecer que produziu como
Relatora da Proposta de Reforma do Poder Judiciário, no âmbito da Câmara
dos Deputados, assim justificou, no ponto, o Substitutivo que ofereceu:
Buscando a efetividade da prestação jurisdicional, acolhemos também
sugestão do Ministro Celso de Mello, Presidente do Supremo Tribunal Federal,
no sentido da outorga explícita de hierarquia constitucional aos tratados ce­
lebrados pelo Brasil, em matéria de direitos humanos, à semelhança do que
estabelece a Constituição Argentina (1853), com a reforma de 1994 (art. 75, n.
22), introdução esta no texto constitucional que afastará a discussão em torno do
alcance do art. 5º, § 2º.
(Grifei.)
Tenho para mim, desse modo, Senhores Ministros, que uma abordagem
hermenêutica fundada em premissas axiológicas que dão significativo realce e
expressão ao valor ético-jurídico – constitucionalmente consagrado (CF, art. 4º,
II) – da “prevalência dos direitos humanos” permitirá, a esta Suprema Corte,
rever a sua posição jurisprudencial quanto ao relevantíssimo papel, à influência e à eficácia (derrogatória e inibitória) das convenções internacionais sobre
direitos humanos no plano doméstico e infraconstitucional do ordenamento
positivo do Estado brasileiro.
Com essa nova percepção do caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, dar-se-á conseqüência e atribuir-se-á efetividade ao sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa
humana, reconhecendo-se, com essa evolução do pensamento jurisprudencial
desta Suprema Corte, o indiscutível primado que devem ostentar, sobre o
direito interno brasileiro, as convenções internacionais de direitos humanos,
R.T.J. — 208
569
ajustando-se, desse modo, a visão deste Tribunal, às concepções que hoje prevalecem, no cenário internacional – consideradas as realidades deste emergentes –, em torno da necessidade de amparo e defesa da integridade dos direitos
da pessoa humana.
Nesse contexto, e sob essa perspectiva hermenêutica, valorizar-se-á o
sistema de proteção aos direitos humanos, mediante atribuição, a tais atos de
direito internacional público, de caráter hierarquicamente superior ao da legislação comum, em ordem a outorgar-lhes, sempre que se cuide de tratados internacionais de direitos humanos, supremacia e precedência em face de nosso
ordenamento doméstico, de natureza meramente legal.
Cabe registrar, aqui, uma observação que se faz necessária. Refiro-me
ao fato, de todos conhecido, de que o alcance das exceções constitucionais à
cláusula geral que veda, em nosso sistema jurídico, a prisão civil por dívida
pode sofrer mutações, quer resultantes da atividade desenvolvida pelo próprio
legislador comum, quer emanadas de formulações adotadas em sede de convenções ou tratados internacionais, quer, ainda, ditadas por juízes e Tribunais,
no processo de interpretação da Constituição e de todo o complexo normativo
nela fundado.
Isso significa, portanto, presente tal contexto, que a interpretação judicial desempenha um papel de fundamental importância, não só na revelação
do sentido das regras normativas que compõem o ordenamento positivo, mas,
sobretudo, na adequação da própria Constituição às novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam a sociedade contemporânea.
Daí a precisa observação de FRANCISCO CAMPOS (“Direito Cons­
titucional”, vol. II/403, 1956, Freitas Bastos), cujo magistério enfatiza, corretamente, que, no poder de interpretar os textos normativos, inclui-se a
prerrogativa judicial de reformulá-los, em face de novas e cambiantes realidades
sequer existentes naquele particular momento histórico em que tais regras foram concebidas e elaboradas.
Importante rememorar, neste ponto, a lição desse eminente publicista,
para quem “O poder de interpretar a Constituição envolve, em muitos casos,
o poder de formulá-la. A Constituição está em elaboração permanente nos
Tribunais incumbidos de aplicá-la (...). Nos Tribunais incumbidos da guarda
da Constituição, funciona, igualmente, o poder constituinte” (grifei).
Cumpre referir que o poder de interpretar o ordenamento normativo
do Estado, ainda que disseminado por todo o corpo social, traduz prerrogativa
essencial daqueles que o aplicam, incumbindo, ao Judiciário, notadamente ao
Supremo Tribunal Federal – que detém, em matéria constitucional, “o monopólio da última palavra” –, o exercício dessa relevantíssima atribuição de ordem
jurídica.
A regra de direito – todos o sabemos – nada mais é, na expressão do seu
sentido e na revelação do seu conteúdo, do que a sua própria interpretação.
570
R.T.J. — 208
Na realidade, a interpretação judicial, ao conferir sentido de contemporaneidade à Constituição, nesta vislumbra um documento vivo a ser permanentemente atualizado, em ordem a viabilizar a adaptação do “corpus”
constitucional às novas situações sociais, econômicas, jurídicas, políticas e
culturais surgidas em um dado momento histórico, para que, mediante esse
processo de “aggiornamento”, o estatuto fundamental não se desqualifique em
sua autoridade normativa, não permaneça vinculado a superadas concepções
do passado, nem seja impulsionado, cegamente, pelas forças de seu tempo.
Ou, em outras palavras, a interpretação emanada dos juízes e Tribunais
será tanto mais legítima quanto mais fielmente refletir, em seu processo
de concretização, o espírito do tempo, aquilo que os alemães denominam
“Zeitgeist”.
Em uma palavra, Senhores Ministros: a interpretação judicial há de
ser vista como instrumento juridicamente idôneo de mutação informal
da Constituição, revelando-se plenamente legítima a adequação da própria
Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante
exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações
resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam,
em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea.
Essa percepção do tema – é importante referir – encontra suporte
em valioso magistério doutrinário (ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FER­
RAZ, “Processos Informais de Mudança da Constituição: Mutações Cons­
titucionais e Mutações Inconstitucionais”, 1986, Max Limonad; UADI
LAMMÊGO BULOS, “Mutação Constitucional”, 1997, Saraiva; INOCÊNCIO
MÁRTIRES COELHO, “Interpretação Constitucional”, p. 55/60, Cap. 6,
3ª ed., 2007, IDP/Saraiva; LUÍS ROBERTO BARROSO, “Interpretação e
Aplicação da Constituição”, p. 145/149, item n. 4, 5ª ed., 2003, Saraiva;
ADRIANO SANT’ANA PEDRA, “A Constituição Viva: Poder Constituinte
Permanente e Cláusulas Pétreas”, p. 159/176, item n. 4.1, 2005, Mandamentos;
ANDRÉ RAMOS TAVARES, “Curso de Direito Constitucional”, p. 85, item
n. 7, 3ª ed., 2006, Saraiva; FERNANDO LUIZ XIMENES ROCHA, “Controle
de Constitucionalidade das Leis Municipais”, p. 43/49, item n. 5, 2ª ed., 2003,
Atlas, v.g.).
Daí a correta observação feita pelo eminente Ministro GILMAR MENDES,
ao reconhecer “que a evolução jurisprudencial sempre foi uma marca de qualquer
jurisdição de perfil constitucional”, para enfatizar, a partir dessa constatação,
que “A afirmação da mutação constitucional não implica o reconhecimento,
por parte da Corte, de erro ou equívoco interpretativo do texto constitucional em
julgados pretéritos. Ela reconhece e reafirma, ao contrário, a necessidade da
contínua e paulatina adaptação dos sentidos possíveis da letra da Constituição
aos câmbios observados numa sociedade que, como a atual, está marcada pela
complexidade e pelo pluralismo” (grifei).
R.T.J. — 208
571
O fato é que – consoante assinalou em seu douto voto – “A prisão civil
do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para
si mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos
internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção dos direitos huma­
nos” (grifei).
Não custa rememorar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, em
diversos precedentes, assumiu posições que oscilaram, no tema ora em análise, em torno de sua compreensão sobre as relações entre as fontes normativas
do direito internacional e aquelas do direito interno.
Com efeito, esta Suprema Corte, ao interpretar o texto constitucional,
atribuiu, em determinado momento (décadas de 1940 e de 1950), superioridade às convenções internacionais em face da legislação interna do Brasil
(ACi 7.872/RS, Rel. Min. LAUDO DE CAMARGO – ACi 9.587/DF, Rel. Min.
LAFAYETTE DE ANDRADA), muito embora, em sensível mudança de sua
jurisprudência, viesse a reconhecer, em momento posterior (a partir da década
de 1970), relação de paridade normativa entre as espécies derivadas dessas
mesmas fontes jurídicas (RTJ 58/70 – RTJ 83/809 – RTJ 179/493-496, v.g.).
Como precedentemente salientei neste voto, e após detida reflexão em
torno dos fundamentos e critérios que me orientaram em julgamentos anteriores
(RTJ 179/493-496, v.g.), evoluí, Senhores Ministros, no sentido de atribuir,
aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, superioridade jurídica em face da generalidade das leis internas brasileiras, reconhecendo, a
referidas convenções internacionais, nos termos que venho de expor, qualificação constitucional, como preconiza, em douto magistério, o eminente Professor
LUIZ FLÁVIO GOMES (“Estado Constitucional de Direito e a nova pirâmide jurídica”, p. 30 e ss., 2008, São Paulo, Premier Máxima).
Tenho por irrecusável, de outro lado, a supremacia da Constituição sobre todos os tratados internacionais celebrados pelo Estado brasileiro, inclusive
aqueles que versarem o tema dos direitos humanos, desde que, neste último
caso, as convenções internacionais que o Brasil tenha celebrado (ou a que
tenha aderido) importem em supressão, modificação gravosa ou restrição a
prerrogativas essenciais ou a liberdades fundamentais reconhecidas e asseguradas pelo próprio texto constitucional (ou por anteriores tratados internacionais), eis que os direitos e garantias individuais qualificam-se, como sabemos,
como limitações materiais ao poder reformador do Congresso Nacional.
Sabemos que o exercício do “treaty-making power”, pelo Estado brasileiro – não obstante os polêmicos arts. 27 e 46 da Convenção de Viena sobre
o Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação perante o Congresso
Nacional) – , está sujeito à observância das limitações jurídicas emergentes do
texto constitucional.
A Constituição qualifica-se como o estatuto fundamental da República.
Nessa condição, todas as leis e tratados celebrados pelo Brasil estão subordinados à autoridade normativa desse instrumento básico (RTJ 84/724 – RTJ
572
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121/270-276 – RTJ 179/493-496). Nenhum valor jurídico terá o tratado internacional, que, incorporado ao sistema de direito positivo interno, transgredir
o texto da Carta Política, como sucederia, p. ex., na hipótese de o Estado brasileiro subscrever tratados internacionais ofensivos e gravosos ao regime das
liberdades públicas consagrado pela própria Lei Fundamental ou, ainda, por
outras convenções internacionais.
É essencial reconhecer, neste ponto, que a inconstitucionalidade de tratados internacionais em geral – e, também, de convenções internacionais que
eventualmente reduzam ou suprimam direitos e garantias individuais, tais
como consagrados pela própria Carta Política (ou por outros tratados internacionais) – impedirá a aplicação de suas normas mais gravosas na ordem jurídica
interna brasileira, porque violadoras de disposições fundamentais, como hoje
ocorre, p. ex., no sistema normativo vigente em Portugal, cuja Constituição
(1976) – com as alterações introduzidas pela Segunda Revisão Constitucional
(1989) – excepcionalmente admite a incidência de normas apenas formalmente
inconstitucionais constantes de tratados internacionais (art. 277, n. 2): “A inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica
portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da outra
parte, salvo se tal inconstitucionalidade resultar de violação de uma disposição
fundamental” (Grifei).
Impõe-se enfatizar, neste ponto, que o modelo consagrado pela Cons­
tituição de Portugal revela-se semelhante, ainda que com algumas variações,
ao que prescrevem importantes textos constitucionais vigentes no plano do
direito comparado.
Assim, a Constituição do Reino dos Países Baixos, promulgada em 1983,
permite, expressamente, que qualquer cláusula de tratado internacional que
se revele incompatível com a Carta Política do Estado holandês seja, não obstante o vício de inconstitucionalidade, suscetível de incorporação ao direito
interno daquele País, desde que o tratado venha a ser aprovado pelo voto de dois
terços dos membros integrantes das Câmaras que compõem os Estados-Gerais
(art. 91, n. 3).
O mesmo ocorre com a recente Constituição do Peru (1993), que admite
a incorporação de tratados inconstitucionais, desde que esse ato de direito
internacional público seja “aprovado pelo mesmo procedimento que rege a re­
forma da Constituição (...)” (art. 57).
A Constituição argentina de 1853, por sua vez, com as inovações introduzidas pela reforma de 1994, atribuiu hierarquia constitucional a determinados tratados internacionais que versem o tema dos direitos humanos (art. 75,
n. 22).
Vê-se, portanto, que já se esboça, no plano do direito constitucional comparado, uma significativa tendência contemporânea que busca conferir verdadeira equiparação normativa aos tratados internacionais de direitos humanos
R.T.J. — 208
573
em face das próprias Constituições políticas dos Estados, atribuindo, a tais
convenções internacionais, força e autoridade de norma constitucional.
Na realidade, essa tendência culminou por influenciar o Congresso
Nacional brasileiro, que, em 2004, promulgou a Emenda Constitucional 45,
que introduziu, em nosso sistema de direito positivo, a cláusula de equivalência dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos com as
emendas constitucionais, desde que observado, em seu processo de aprovação,
o rito procedimental de elaboração concernente à reforma da Constituição (CF,
art. 5º, § 3º).
Registre-se, neste ponto, a correta observação expendida pelo eminente
Professor LUÍS ROBERTO BARROSO (“Constituição e tratados internacionais: Alguns aspectos da relação entre direito internacional e direito
interno”, “in” “Novas Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo”,
p. 185/208, 207, coordenação de Carlos Alberto Menezes Direito, Antonio
Augusto Cançado Trindade e Antonio Celso Alves Pereira, 2008, Renovar),
cuja lição, a propósito do alcance e das conseqüências resultantes do § 3º do
art. 5º da Constituição, vale rememorar:
Na linha da nova previsão constitucional, os tratados internacionais sobre
direitos humanos, para serem equivalentes às emendas constitucionais, deverão
observar o seguinte trâmite: a) celebração pelo Presidente da República (art. 84,
VIII), b) aprovação pelo Congresso Nacional, em dois turnos, em cada Casa, por
três quintos dos votos dos respectivos membros, com a edição do correspondente
decreto legislativo (art. 5º, § 3º, c/c art. 49, I), c) ratificação (ato de direito inter­
nacional) e, por fim, d) a promulgação e publicação de seu texto via decreto do
Presidente da República. Somente a partir daí, como destaca a doutrina do di­
reito internacional, o tratado estará incorporado ao direito brasileiro. No caso,
vigerá com força de emenda constitucional, sem com ela se confundir.
É bem de ver que não se trata da criação de uma nova espécie normativa,
em acréscimo às do art. 59 da Constituição, mas de atribuição de uma eficácia
“qualificada”, que dará ensejo à produção de três efeitos diferenciados: a) em
caso de conflito entre lei e tratado de direitos humanos, aprovado em conformi­
dade com o art. 5º, § 3º, da CF, prevalecerá sempre o tratado, em razão de sua
equivalência com as emendas constitucionais (e independentemente do critério
cronológico); b) os tratados de direitos humanos incorporados de acordo com o
art. 5º, § 3º, da CF podem servir de parâmetro para o controle de constituciona­
lidade das leis e atos normativos, ampliando o chamado “bloco de constitucio­
nalidade”; c) tais tratados não podem ser objeto de denúncia do Presidente da
República, por força do art. 60, § 4º, da CF.
(Grifei.)
Desse modo, a relação de eventual antinomia entre os tratados internacionais em geral (que não versem o tema dos direitos humanos) e a Constituição
da República impõe que se atribua, dentro do sistema de direito positivo
vigente no Brasil, irrestrita precedência hierárquica à ordem normativa consubstanciada no texto constitucional, ressalvadas as hipóteses excepcionais
previstas nos § 2º e § 3º do art. 5º da própria Lei Fundamental, que conferem
hierarquia constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos.
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R.T.J. — 208
O eminente Professor CELSO LAFER, quando Ministro das Relações
Exteriores, ao propor à Presidência da República o encaminhamento, ao
Congresso Nacional, do texto da Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, entendeu conveniente enfatizar, em sua Exposição de Motivos, com
inteira correção e absoluto rigor acadêmico, a necessária subordinação hierárquica dos atos internacionais à ordem normativa fundada na Constituição
da República:
Infelizmente, o Brasil até hoje não ratificou a Convenção de Viena sobre
o Direito dos Tratados, em cuja elaboração participaram brilhantes especia­
listas nacionais. Dúvidas, a meu ver infundadas, surgidas no seio do próprio
Executivo, acerca da compatibilidade de algumas cláusulas sobre entrada em
vigor de tratados e a prática constitucional brasileira em matéria de atos inter­
nacionais (...) retardaram sua submissão ao referendo do Congresso Nacional.
Esse impedimento é tanto mais injustificado quando se considera a possibilidade
de fazer-se, no momento da ratificação, alguma reserva ou declaração interpretativa, se assim for o desejo do Poder Legislativo. Seja como for, a eventual
aprovação integral da Convenção, mesmo sem qualquer reserva, pelo Congresso
Nacional, nunca poderia ser tomada como postergatória de normas constitucionais, já que no Brasil não se tem admitido que os tratados internacionais se
sobreponham à Constituição.
(Diário do Congresso Nacional, Seção I, de 19-5-92, p. 9241 – Grifei.)
Daí a advertência – que cumpre não ignorar – de PONTES DE MIRANDA
(“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo
IV/146, item n. 35, 2ª ed., 1974, RT), no sentido de que, “Também ao tratado,
como a qualquer lei, se exige ser constitucional” (grifei).
Em suma: o entendimento segundo o qual existe relação de paridade
normativa entre convenções internacionais e leis internas brasileiras há de ser
considerado, unicamente, quanto aos tratados internacionais cujo conteúdo
seja materialmente estranho ao tema dos direitos humanos.
É que, como já referido, a superveniência, em dezembro de 2004, da EC
45 introduziu um dado juridicamente relevante, apto a viabilizar a reelaboração, por esta Suprema Corte, de sua visão em torno da posição jurídica que os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos assumem no plano
do ordenamento positivo doméstico do Brasil.
Vale dizer, essa nova percepção crítica, reforçada pelo advento da EC
45/04 – que introduziu um novo paradigma no cenário nacional –, estimula
novas reflexões, por parte do Supremo Tribunal Federal, em torno das relações
da ordem jurídica interna brasileira com o direito internacional em matéria de
direitos humanos.
A referida Emenda refletiu clara tendência que já se registrava no plano
do direito comparado no sentido de os ordenamentos constitucionais dos diversos Países conferirem primazia jurídica aos tratados e atos internacionais
sobre as leis internas, notadamente quando se tratasse de convenções internacionais sobre direitos humanos, às quais se atribuiu hierarquia constitucional.
R.T.J. — 208
575
É o que ocorre, por exemplo, na ARGENTINA (Constituição de 1853, com a
Reforma de 1994, art. 75, n. 22), na HOLANDA (Constituição de 1983, art. 94),
na FEDERAÇÃO RUSSA (Constituição de 1993, art. 15, n. 4), no PARAGUAI
(Constituição de 1992, arts. 137 e 141), na FRANÇA (Constituição de 1958,
art. 55) e na VENEZUELA (Constituição de 2000, art. 23).
Em decorrência dessa reforma constitucional, e ressalvadas as hipóteses
a ela anteriores (considerado, quanto a estas, o disposto no § 2º do art. 5º da
Constituição), tornou-se possível, agora, atribuir, formal e materialmente, às
convenções internacionais sobre direitos humanos, hierarquia jurídico-constitucional, desde que observado, quanto ao processo de incorporação de tais convenções, o “iter” procedimental concernente ao rito de apreciação e de aprovação
das propostas de emenda à Constituição, consoante prescreve o § 3º do art. 5º da
Constituição, embora pessoalmente entenda superior a fórmula consagrada
pelo art. 75, n. 22, da Constituição argentina de 1853, na redação que lhe deu a
Reforma de 1994.
É preciso ressalvar, no entanto, como precedentemente já enfatizado,
as convenções internacionais de direitos humanos celebradas antes do advento da EC 45/04, pois, quanto a elas, incide o § 2º do art. 5º da Constituição,
que lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua
integração e fazendo com que se subsumam à noção mesma de bloco de
constitucionalidade.
Essas razões que venho de mencionar levam-me a deferir a presente ordem de “habeas corpus”, considerada a circunstância de os tratados internacionais de direitos humanos possuírem hierarquia constitucional, como acentuei
em longo voto proferido nos já mencionados HC 87.585/TO, RE 349.703/RS
e RE 466.343/SP.
O fato, Srs. Ministros, é que, independentemente da orientação que se
venha a adotar (supralegalidade ou natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos), a conclusão será, sempre, uma só: a de que
não mais subsiste, em nosso sistema de direito positivo interno, o instrumento
da prisão civil nas hipóteses de infidelidade depositária, cuide-se de depósito
voluntário (convencional) ou trate-se, como na espécie, de depósito judicial,
que é modalidade de depósito necessário.
Assinalo, neste ponto, por relevante, que esta colenda Segunda Turma,
no julgamento do HC 93.435/MG, Rel. Min. CEZAR PELUSO, ocorrido em
16-9-08, concedeu, de ofício, ordem de “habeas corpus”, em favor de paciente
que se encontrava na situação de depositário judicial qualificado como infiel.
Sendo assim, e em face das razões expostas, defiro o pedido de “habeas
corpus”, para invalidar a ordem judicial de prisão civil decretada contra o ora
paciente, nos autos da Execução Fiscal 024.99.053.662-5 (4ª Vara de Feitos
Tributários da comarca de Belo Horizonte/MG), por não mais cabível, em
nosso ordenamento doméstico, a prisão civil do depositário infiel, qualquer
576
R.T.J. — 208
que seja a modalidade de depósito (depósito voluntário ou depósito necessário,
de que o depósito judicial constitui espécie).
É o meu voto.
VOTO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, eu acompanho, embora não esteja ainda com a minha opinião inteiramente formada sobre o assunto, seguindo a jurisprudência.
EXTRATO DA ATA
HC 90.450/MG — Relator: Ministro Celso de Mello. Paciente e Impetrante:
Demétrios Nicolaos Nikolaidis (Advogados: Sócrates Spyros Patseas e outros).
Coator: Presidente do Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: A Turma, por votação unânime, deferiu o pedido de habeas
corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie.
Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros
Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, a Mi­
nistra Ellen Gracie. Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves.
Brasília, 23 de setembro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coor­
denador.
R.T.J. — 208
577
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO HABEAS CORPUS 91.516 — PI
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Embargante: Ruberval Isidro de Oliveira ou Rubeval Isidro de Oliveira ou
Robeval Isidro de Oliveira — Coator: Superior Tribunal de Justiça
Ação penal. Habeas corpus. Data da sessão. Intimação do
patrono. Necessidade. Requerimento escrito de sustentação oral.
Julgamento realizado sem comunicação prévia. Cerceamento de
defesa. Nulidade processual caracterizada. Julgamento anulado.
Embargos declaratórios acolhidos para esse fim. Aplicação do
art. 5º, LV, da CF. Precedentes. Requerida intimação ou ciência
prévia para tanto, deve ser garantido à defesa, sob pena de nulidade decretável em embargos declaratórios, o exercício do ônus
de comparecer à sessão de julgamento de habeas corpus e expor
oralmente as razões da impetração.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência da Ministra Ellen
Gracie, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, acolher os embargos de declaração, para anular o julgamento anterior, nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste
julgamento, os Ministros Eros Grau e Celso de Mello.
Brasília, 14 de outubro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Trata-se de embargos de declaração opostos
contra a realização do julgamento do writ sem que fosse dada ciência à defesa.
Afirmam os embargantes que consta pedido expresso de intimação da defesa para a sessão em que o habeas corpus fosse a julgamento, a fim de permitir
a exposição oral das razões da impetração, o que não foi feito.
Requerem a anulação do julgamento, nos termos de precedentes desta Corte.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Verifico que, de fato, a defesa fez
juntar aos autos requerimento de sustentação oral (fl. 385), que não foi observado. E tenho que, em casos tais, o julgamento deva ser anulado:
Ação penal. Habeas corpus. Julgamento pelo Superior Tribunal de
Justiça. Data da sessão. Intimação do patrono. Necessidade. Requerimento
578
R.T.J. — 208
escrito de sustentação oral. Julgamento realizado sem comunicação prévia.
Cerceamento de defesa. Nulidade processual caracterizada. Preliminar
acolhida. Provimento parcial do recurso. Aplicação do art. 5º, LV, da CF.
Precedentes.
Requerida intimação ou ciência prévia para tanto, deve ser garantido à
defesa, sob pena de nulidade, o exercício do ônus de comparecer à sessão de julgamento de habeas corpus e expor oralmente as razões da impetração. (RHC
90.981, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 8-6-07. No mesmo sentido: HC 93.101,
Rel. Min. Eros Grau, DJ de 22-2-08; RHC 89.135, Rel. Min. Cezar Peluso, LEXJSTF 335/491; HC 86.550, Rel. Min. Carlos Britto; DJ de 13-10-06; RHC 84.310,
Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 10-12-04).
Em caso idêntico, a Primeira Turma acolheu embargos declaratórios para
anular julgamento de habeas corpus, renovado após a regular intimação da defesa (HC 84.233-ED, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 24-9-04).
2. Diante do exposto, acolho os embargos declaratórios para anular o julgamento do HC 91.516, realizado em 23 de setembro de 2008, cientificando-se
o Embargante da data do novo julgamento.
EXTRATO DA ATA
HC 91.516-ED/PI — Relator: Ministro Cezar Peluso. Embargante: Ruberval
Isidro de Oliveira ou Rubeval Isidro de Oliveira ou Robeval Isidro de Oliveira
(Advogado: Leonardo Barbosa Cavalcanti). Coator: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: A Turma, por unanimidade, acolheu os embargos de declaração,
para anular o julgamento anterior, nos termos do voto do Relator. Ausentes,
justificadamente, neste julgamento, os Ministros Eros Grau e Celso de Mello.
Presidiu, este julgamento, a Ministra Ellen Gracie.
Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Cezar
Peluso e Joaquim Barbosa. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de
Mello e Eros Grau. Subprocurador-Geral da República, Dr. Francisco Adalberto
Nóbrega.
Brasília, 14 de outubro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coor­
denador.
R.T.J. — 208
579
HABEAS CORPUS 91.516 — PI
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Paciente: Ruberval Isidro de Oliveira ou Rubeval Isidro de Oliveira ou
Robeval Isidro de Oliveira — Impetrante: Leonardo Barbosa Cavalcanti —
Coator: Superior Tribunal de Justiça
Ação penal. Trancamento. Inadmissibilidade. Atipicidade
não aparente. Conduta atribuída que corresponde ao delito previsto no art. 333 do Código Penal. Indícios de materialidade e
autoria de eventual delito. Impossibilidade de cognição profunda
da prova no âmbito de habeas corpus. Justa causa reconhecida.
Habeas corpus denegado. Precedentes. O reconhecimento de
justa causa, para trancamento de ação penal por atipicidade do
fato imputado, é inviável em sede de habeas corpus, quando dependa de cognição profunda das provas.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Celso de
Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, indeferir o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do
Relator. Falou, pelo Paciente, o Dr. João Ulisses Britto Azêdo e, pelo Ministério
Público Federal, o Dr. Mário José Gisi. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Ministros Ellen Gracie e Eros Grau.
Brasília, 18 de novembro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. Trata-se de habeas corpus impetrado
em favor de Ruberval Isidro de Oliveira, contra decisão da Corte Especial do
Superior Tribunal de Justiça, que recebeu a denúncia contra o Paciente nos autos
da AP 311.
O Paciente, juntamente com outros 15 co-réus, foi denunciado pelo Mi­
nistério Público Federal como incurso nas penas do art. 333, parágrafo único,
do Código Penal, por haver oferecido vantagem a desembargador do Tribunal de
Justiça do Piauí para obter resultado favorável em julgamento de habeas corpus
em que era paciente (fls. 111-116).
A denúncia foi recebida nos autos da AP 331, de relatoria do Ministro José
Arnaldo da Fonseca, cuja ementa a seguir se transcreve:
Ação penal. Desembargadores. Juiz de Direito. Promotor público. Cor­
rupção passiva e tráfico de influência. Corrupção ativa. Afastamento do exercício
das funções.
580
R.T.J. — 208
1. Os elementos colhidos no inquérito e narrados na denúncia demonstram
a existência de fortes indícios das condutas delituosas, irrogando aos acusados os
crimes descritos nos arts. 317, § 1º e 332, parágrafo único, do Código Penal.
2. “A gravidade do fato justifica o afastamento do exercício das funções do
seu cargo, sem prejuízo da remuneração e vantagens, até o julgamento definitivo.”
(Precedentes: APN 244/DF, Inq. 323/PE, Inq. 300/SP, Inq. 231/SP, APN 306/DF.)
3. Denúncia recebida com o afastamento dos denunciados das funções
respectivas.
(Fl. 178.)
Alega o Impetrante que a denúncia “sequer descreve elemento essencial do indigitado crime de corrupção ativa atribuído ao ora Paciente” (fl. 4).
Dessa forma, o que traz como fato típico “não atende, nem ao longe, aos pressupostos formais insertos no art. 41, do Código de Processo Penal, tampouco
atende aos princípios garantidores do devido processo legal e da ampla defesa
previstos constitucionalmente” (fl. 6).
Alega que não há tipicidade na conduta do Paciente, e, portanto, a peça
acusatória carece de justa causa para a persecução criminal.
Requer, liminarmente, o trancamento da ação penal por ausência de justa
causa e, no mérito, reproduz idêntico pleito.
A liminar foi indeferida (fls. 377-378).
A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela denegação da ordem (fls. 380-382).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Não assiste razão ao Impetrante.
Este pedido de writ tem por objeto o trancamento de ação penal, por falta
de justa causa. Segundo a eminente Ministra do Superior Tribunal de Justiça,
Maria Thereza Rocha de Assis Moura:
a justa causa não constitui condição da ação, mas a falta de qualquer uma
das apontadas condições implica falta de justa causa: se o fato narrado na acusação não se enquadrar no tipo legal; se a acusação não tiver sido formulada por
quem tenha legitimidade para fazê-lo e em face de quem deva o pedido ser feito;
e, finalmente, se inexistir o interesse de agir, faltará justa causa para a ação penal
(in Justa Causa para a Ação Penal, Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: RT,
2001. p. 221).
Afirma a defesa que a denúncia é inepta, por descrever fato atípico. Ex­
traio o seguinte trecho da peça acusatória:
(...) para conceder os dois habeas corpus, o Desembargador Soares de
Albuquerque recebeu uma parte do dinheiro pago pelos denunciados Amadeu,
Francisco Bernadone, Antonio dos Santos e Ruberval, aos seus parentes e cúmplices, João Ulisses, Ingrid, Maria Rôzely e Wezley.
R.T.J. — 208
581
(...)
A desonestidade do Desembargador Soares de Albuquerque e de seus
comparsas do escritório Wisa provocou a impunidade dos acusados Amadeu,
Ruberval, Francisco Bernadone e Antonio dos Santos.
(Fls. 67-68, grifos nossos.)
Transcrevo, ainda, parte do voto condutor do acórdão que recebeu a denúncia na Ação Penal 331, do Superior Tribunal de Justiça:
Nessa linha, portanto, a denúncia imputa a alguns acusados o cometimento
dos crimes qualificados de corrupção passiva e tráfico de influência e, a outros,
o de corrupção ativa, por conta de três situações distintas, que peço licença para
novamente citar:
(...)
III) crimes praticados para acobertar infrações cometidas por Amadeu
Campos de Carvalho Filho (12º acusado), Francisco Bernadone da Costa Vale
(13º acusado), Antônio dos Santos (14º acusado) e Ruberval Isidoro de Oliveira
(15º acusado).
Como se disse, as situações tidas por relevantes cingem-se ao desenrolar
dos três acontecimentos por onde tanto defesa, quanto acusação, debatem com
vigor, respectivamente, a relevância penal e a inobservância de qualquer liame
possível de enquadramento penal, e neste último circunscrito à imputação contida
na peça acusatória.
Seguindo tais delineamentos e visualizando o conjunto dos autos, nos seus
dezenove volumes, mais apenso, a peça acusatória cumpre os ditames do art. 41 do
Código de Processo Penal, pois os fatos apresentados configuram, em tese, crime,
sendo a narrativa acerca dos elementos objetivo e subjetivo potencialmente válida
para a persecução vindoura.
É bem verdade que os fatos envolveram atuações jurisdicionais que, grosso
modo, poderiam impedir a ação penal. Entretanto, a tomar pelos elementos indiciários, o que se observa é que não se está a discutir as decisões em si, porquanto
já transitadas, mas o que as gerou efetivamente, dentro de um plano de independência exigida pela função judicante. Daí por que o substrato da denúncia ajustase ao comando da norma processual sobredita. Pensar o contrário é admitir que
o Juiz jamais pode ser agente de crime no exercício de sua função, o que fere a
consciência de qualquer cidadão.
(Fl. 182.)
Vê-se, pois, que a conduta do Paciente configura, em tese, o delito previsto
no art. 333 do Código Penal (“Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”.).
Jurisprudência aturada desta Corte está em que o trancamento de inquérito
policial ou de ação penal é medida excepcionalíssima, justificada apenas diante
de patente atipicidade do comportamento, clara inocência do acusado, ou incidência de causa extintiva de punibilidade (cf. HC 82.872, Rel. Min. Ellen Gracie;
HC 82.656, HC 81.736, HC 81.517, Rel. Min. Maurício Corrêa; HC 82.128,
HC 82.377, HC 82.328, HC 85.636, Rel. Min. Carlos Velloso; HC 82.332, Rel.
Min. GILMAR MENDES; HC 81.612, HC 81.120, Rel. Min. Nelson Jobim;
HC 77.074, Rel. Min. Marco Aurélio). Não é o que ocorre no caso.
582
R.T.J. — 208
Como tenho afirmado, a justa causa reduz-se a mero juízo de admissibilidade da persecução criminal. Superado esse juízo preliminar, já não ecoa
alegação de sua carência, uma vez que o processo desenvolverá o curso normal
para edição de sentença que reconheça ou rejeite as acusações. Nesse sentido,
esta Corte já decidiu:
Habeas corpus. Trancamento da ação penal. Inépcia da denúncia. Ino­
corrência. Pedido indeferido. A denúncia descreve os fatos imputados à Paciente
e aponta o fato típico criminal, atendendo ao disposto no art. 41 do Código de
Processo Penal. Conduta suficientemente delineada e apta a proporcionar o exercício da defesa. Habeas corpus indeferido.
(HC 89.433, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 6-11-06.)
2. Ademais, cumpre salientar que eventual análise da tipicidade da conduta descrita na denúncia ultrapassaria os estreitos limites de cognição de
provas que comporta a via do habeas corpus, nos termos de perseverante jurisprudência desta Corte (HC 82.625, Rel. Min. Gilmar Mendes; HC 82.782, HC
82.493, HC 82.517, HC 82.246, Rel. Min. Ellen Gracie; HC 82.191, Rel. Min.
Mauríco Corrêa; HC 82.128, HC 82.377, HC 82.839, HC 82.394, Rel. Min.
Carlos Velloso).
A propósito, afirmei, por ocasião do julgamento do HC 92.110 (Rel. Min.
Cezar Peluso, DJ de 13-6-08), verbis:
Ora, sob pretexto de aparente atipicidade dos fatos imputados ao Paciente,
não se pode perder, a meio caminho, a velha e aturada jurisprudência da Corte,
a qual “(...) tem advertido que o exame aprofundado das provas não encontra
sede juridicamente adequada na via sumarissima do processo de habeas corpus.
Precedentes” (HC 69.958, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 10-8-06). Do voto do
Relator deste precedente consta ainda:
“No ponto concernente à alegada insuficiência de provas, não vislumbro possibilidade de apreciar essa objeção na presente sede processual,
posto que isso demandaria um exame aprofundado de fatos e uma ampla
discussão em torno dos demais elementos de caráter instrutório, o que se
mostra vedado, por incompatibilidade absoluta, na via estreita do ‘habeas
corpus’, consoante iterativa jurisprudência desta Corte (RTJ 129/1169 – RTJ
135/557)”.
E é o que temos reconhecido sempre (cf. HC 84.232-AgR/MS; Plenário;
Rel. Min. Cezar Peluso; j. 15-12-04, in RTJ 192/ 958 e LEX – JSTF 316/408).
3. Ante o exposto, denego a ordem.
EXTRATO DA ATA
HC 91.516/PI — Relator: Ministro Cezar Peluso. Paciente: Ruberval
Isidro de Oliveira ou Rubeval Isidro de Oliveira ou Robeval Isidro de Oliveira.
Impetrante: Leonardo Barbosa Cavalcanti. Coator: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: A Turma, por votação unânime, indeferiu o pedido de habeas
corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie. Segunda Turma, 23-9-08.
R.T.J. — 208
583
Decisão: A Turma, por votação unânime, indeferiu o pedido de ha­
beas corpus, nos termos do voto do Relator. Falou, pelo Paciente, o Dr. João
Ulisses Britto Azêdo e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Mário José Gisi.
Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Ministros Ellen Gracie e Eros
Grau.
Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros
Cezar Peluso e Joaquim Barbosa. Ausentes, justificadamente, os Ministros Ellen
Gracie e Eros Grau. Subprocurador-Geral da República, Dr. Mário José Gisi.
Brasília, 18 de novembro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coor­
denador.
584
R.T.J. — 208
HABEAS CORPUS 91.654 — PR
Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto
Paciente: Marcelo da Silva Ordálio — Impetrante: Defensoria Pública da
União — Coator: Superior Tribunal de Justiça
Habeas corpus. Crimes contra o patrimônio. Dosimetria da
pena. Confissão espontânea perante a autoridade policial. Réu
que se retratou em juízo. Confissão extrajudicial que embasa o
decreto condenatório. Harmonia da confissão com o conjunto
probatório.
1. “Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena
igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias:” (...) “g) de não
ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada” (art. 14, 3, g, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos). Esse efetivo direito a não se auto-incriminar constitui
uma das mais eminentes formas de densificação da garantia do
processo acusatório e do direito à presunção de não-culpabilidade. A revelar que o processo é o meio de plena demonstração
da materialidade do delito e da autoria.
2. A confissão extrajudicial retratada em Juízo constitui
circunstância atenuante (alínea d do inciso III do art. 65 do CP),
quando embasar a sentença penal condenatória. O que se deu no
caso concreto.
3. Ordem concedida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, deferir o pedido de habeas corpus, o que
fazem nos termos do voto do Relator e por maioria de votos, em sessão presidida
pelo Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas
taquigráficas. Vencido o Ministro Menezes Direito.
Brasília, 8 de abril de 2008 — Carlos Ayres Britto, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de habeas corpus, impetrado
contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça. Acórdão que deu provimento ao
recurso especial do Ministério Público e excluiu da pena do Paciente a atenuante
da confissão espontânea. Esta a ementa do julgado:
Criminal. Recurso especial. Roubo. Confissão espontânea no inquérito, que
não alicerçou a condenação. Posterior retratação em juízo. Não-aplicação da
atenuante. Recurso provido.
R.T.J. — 208
585
I – Não se aplica atenuante relativa a confissão no inquérito policial, posteriormente retratada em juízo, se esta não serviu, efetivamente, para alicerçar a
sentença condenatória, uma vez que outros elementos e circunstâncias do feito foram considerados para formar a convicção do Julgador a respeito da materialidade
e autoria do delito praticado. Precedentes.
II – Recurso provido, nos termos do voto do Relator.
2. Pois bem, a Impetrante sustenta que o Paciente tem direito à atenuante
da confissão espontânea. O que faz sob a alegação de que, a despeito da retratação da confissão em Juízo, o interrogatório policial do Paciente embasou a
sentença penal condenatória.
3. Derradeiramente, informo que, à falta de pedido de medida liminar,
abri vista imediatamente à Procuradoria-Geral da República. Procuradoria que
opinou pelo indeferimento da ordem.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Feito o relatório, passo ao
voto. Fazendo-o, pontuo, de saída, que o Paciente foi condenado por dois crimes
de roubo, constrangimento ilegal e facilitação de fuga de presos, na forma do
art. 69 do Código Penal. A questão a ser deslindada por este Supremo Tribunal
Federal diz tão-somente com a pena aplicada pelos crimes de roubo. Isso porque
a defesa insiste no reconhecimento da confissão espontânea e, portanto, na redução da reprimenda afinal fixada.
6. Pois bem, a temática da confissão espontânea é daqueles que suscita
acesos debates doutrinários e jurisprudenciais. Um dos pontos mais controvertidos diz com a possibilidade, ou não, de se reconhecer tal atenuante genérica se o
réu se retratar, em Juízo, da confissão perante a autoridade policial.
7. Este Supremo Tribunal Federal entende incabível o reconhecimento da
atenuante, no caso de retratação (HC 74.165, da relatoria do Ministro Maurício
Corrêa; HC 75.149, da relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence; HC 68.188, da
relatoria Ministro Celso de Mello; HC 70.376, da relatoria do Ministro Ilmar
Galvão; HC 73.766, da relatoria Ministro Ilmar Galvão; HC 72.257, da relatoria
do Ministro Marco Aurélio de Mello; HC 71.064, da relatoria do Ministro Celso
de Mello). Isso por adotar a tese de que a confissão só é de minorar a sanção penal quando ficar evidenciado que o agente assumiu a responsabilidade sobre o
delito que lhe é imputado. O que não ocorre nas situações em que o réu se retrata
da assunção da autoria delitiva, ou passa a esgrimir fantasiosa versão dos fatos.
8. Todavia, tenho que o caso é de concessão da ordem. Isso porque pinço
da sentença penal condenatória o trecho seguinte:
Ademais, deve ser registrado que o réu Marcelo (ora paciente), ao ser interrogado na fase indiciária, às fls. 21, confessou sua participação nos roubos verificados nas dependências internas da Delegacia de Polícia local, mais precisamente
586
R.T.J. — 208
no interior do cômodo paralelo à carceragem, tendo afirmado que ao saírem
daquele local, um dos filhos do Dito Quati, que é careca, entrou numa salinha e
roubou uma algema e uma pistola cromada, a qual passou para o Dito Quati, tendo
esta ficado o tempo inteiro na cintura do mesmo.
(Fl. 37.)
9. Como se vê, nada obstante a retratação do Paciente em Juízo, suas declarações na fase pré-processual, em conjunto com as provas apuradas sob o contraditório, embasaram a condenação. Do que ressai a pergunta: nas situações em
que o juiz se vale das declarações extrajudiciais do réu para sustentar o decreto
condenatório, é de se aplicar a alínea d do inciso III do art. 65 do Código Penal?
10. Penso que sim. Veja-se que a Constituição Federal assegura aos presos
o direito ao silêncio (inciso LXIII do art. 5º). Na mesma linha de orientação, o
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Pacto de São José de Costa
Rica) institucionaliza o princípio da “não auto-incriminação” (nemo tenetur se
detegere), in verbis:
Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo
menos, as seguintes garantias:
(...)
g) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada (artigo 14, 3, g).
11. Esse direito subjetivo de não se auto-incriminar constitui uma das mais
eminentes formas de densificação da garantia do devido processo penal e do
direito à presunção de não-culpabilidade. A revelar, primeiro, que é o processo
o locus em que o órgão de acusação tem o ônus da robusta demonstração da
autoria e da materialidade do delito. Noutros termos, esta encarecida exigência
de prova robusta em sentido contrário ao da presunção de não-culpabilidade é
a contrapartida específica do órgão acusatório (no caso dos autos, o Ministério
Público estadual). Órgão que não pode se esquivar da incumbência de fazer da
instrução criminal a sua estratégia oportunidade de produzir material probatório substancialmente sólido em termos de comprovação da existência de fato
típico e ilícito, além da culpabilidade do acusado.
12. Ora bem, aqui, na concreta situação dos autos, o Paciente, preso,
confessou perante a autoridade policial a autoria do crime de roubo. Não é só:
confessou detalhadamente as condutas que lhe eram increpadas, de modo a esclarecer as circunstâncias de tempo, modo e lugar das ações delitivas, bem como
a participação dos demais acusados. Confira-se:
(...)
Que no começo o Jamaica, Ademir Roque, seu colega de escola, chegou a
sua pessoa e disse que estava precisando ganhar um dinheiro, isto por volta de dois
a três meses atrás, dizendo que sabia quem ficava com moto, camioneta e carro e
pagava mil reais nos automóveis e quinhentos reais em motocicletas: que naquela
época disse ao mesmo que não fazia este tipo de coisa e ficaram um tempo sem
conversar, que, depois disso passou mais ou menos umas três semanas e disse que
R.T.J. — 208
587
tinha um engate de quem pagava dez mil reais para fazer um engate de preso; que
no começo ele era leva e trás, pois o Alexandre parecia que não queria mostrar a
cara para o interrogado; que, foi marcado um dia num sábado, por volta, de quatro semanas atrás e que iriam apenas o interrogado e Jamaica e que o pagamento
seria vinte mil, ou seja, dez mil reais para cada um e depois disso, o Jamaica foi
em sua casa e disse que seria cancelado o encontro porque o Alexandre não tinha
conseguido as armas, que, depois disso mudou para a semana seguinte, no domingo, daí passaram em sua casa para levá-lo para Maringá-PR, o Alexandre que
veio até ali dirigindo um veículo Fiat/Uno Mille, e uma mulher que ficou sabendo
ser a filha do Benedito Klaussen, vulgo, Dito Quati, que disse chamar-se Dóris,
veio dirigindo um veículo Monza, não se recordando a placa, de cor Champanhe
ou Dourado, daí o interrogado foi no veículo Monza no qual haviam três rapazes
que seriam traficantes em Londrina-PR, os quais não conhece, sendo que um
deles, um loirinho é que foi dirigindo o veículo, que no veículo Fiat/Uno foi o
Alexandre, a mulher, o Jamaica e mais um de Londrina-PR, que o interrogado não
conhece, que, isto ocorreu há dois domingos atrás e foram até Maringá-PR, mas lá
o Alexandre, saiu do carro e viu uma viatura amarela passar e disse para voltarem,
cancelando tudo; que o Alexandre disse para o Jamaica na presença do interrogado que era para eles arrumarem mais três adolescentes de confiança, pois os três
rapazes de Londrina-PR, não iriam mais; que esclarece que no começo das conversações não era dez mil reais como disse, era seis mil reais e daí no decorrer da
semana, eles procuraram novamente o Jamaica e o interrogado, tendo dito a eles
que não iriam mais, pois era um negócio de ir até lá e voltar e que estavam com
um mal pressentimento, então foi que eles ofereceram a importância de dez mil
reais para cada um e mais quatro mil reais para cada adolescente, que, arrumaram
os adolescentes, sendo seus amigos, Paulo Henrique, André, Rafael, Aparecido
Guize, e Vanildo Augusto da Silva, os quais residem no Jardim Ana Eliza, nesta
cidade, os quais se encontram apreendidos naquela subdivisão policial; que, então
no dia primeiro de mais, dia do trabalho, ontem, o procedimento foi igual acima,
passaram em sua casa para pegá-lo, vindo com o veículo Monza e com o veículo
Fiat Uno, tendo o interrogado dirigido o veículo Monza até aquela cidade, estando
no interior daquele Monza o interrogado, o Rafael e o Paulinho e no veículo Fiat/
Uno dirigido por Alexandre, foram a filha do Dito Quati, Dóris, o Jamaica e o
Vanildo; que, saíram daqui de Cambé-PR, por volta das 20.30 horas e chegando
em Maringá, foram para próximo da Delegacia, ocasião que Alexandre pegou a
bolsa que estava com as armas e levou no veículo Monza, daí cada um pegou uma
arma; tendo o interrogado pego um revólver Taurus 38; que, a mulher falou para o
Jamaica em que alas e “x” estavam as pessoas que deveriam ser libertadas e exibiu para o interrogado e para os demais as fotografias deles, ou seja, três fotos as
quais eram dos presos Benedito Klaussem, Willian Klaussem e Adilson Klaussen,
fato que só tomou conhecimento depois, pois não sabia o nome deles e não sabiam quem eram; que, daí o Alexandre foi embora com a mulher e os que estavam
no carro que eles saíram e foram andar ali em volta, daí ficaram esperando um
sinal para entrar, sendo que o Jamaica iria dar o sinal para entrarem na delegacia; que, não sabe precisar o horário e Jamaica fez um movimento com a cabeça
chamando-os e então, o Jamaica colocou o adolescente Vanildo na frente para falar que haviam roubado a motocicleta dele e que ele queria fazer uma queixa, daí
adentraram na sala do plantão e ali todos puxaram as armas juntos e renderam um
homem, nisso foi o Jamaica empurrando ele para a frente com as mãos para trás
e aí perguntaram para ele onde ficava a chave para abrir a cadeia, daí viram uma
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outra salinha onde renderam outra pessoa, um outro homem e continuaram na
mesma formação e colocaram aquela pessoa que pegaram naquela salinha para
ir abrindo as portas, daí abriram o Jamaica já sabia a cela, e foram até lá abriram
a celas cinco e sete e não s lembra da outra, liberando além dos presos Benetito
Klaussem, Willian Klaussem e Adilson Klaussen os outros presos que estavam
com eles nas celas; que os presos pegaram as chaves e abriram também outras
celas; que daí verificando que eram eles mesmos que deveriam soltar, voltaram
em seguida, vindo o preso Benedito abrindo as portas; que, esclarece que na saída um dos filhos do Dito Quati, que é careca entrou numa salinha e roubou
uma algema e uma pistola cromada, a qual passou para o Dito Quati, tendo
a mesma ficado o tempo inteiro na cintura do mesmo; que o revólver que portava passou para o outro filho dp Dito Quati, tendo também o Jamaica passado a
pistola que usava para o outro filho dele, que parece que era chamado Gil; que o
interrogando ficou desarmado e também o Jamaica; que foram até o Monza e então deu partida no Monza, mas ele não pegava, então falaram “vamos sair, vamos
sair” e saíram do Monza, ocasião que um veículo Voyage que passava pelo local
foi parado por eles, tendo eles dito que eram policiais e roubaram aquele veículo
para fugirem; que entraram no Voyage e saíram dele rapidamente, verificando o
filho de Dito Quati que chamavam de gil que não havia combustível naquele veículo e então foram até um posto de gasolina e tomaram outro veículo que não tinha
abastecido ainda, onde tomaram outro carro de assalto, um veículo Tempra e daí
verificaram que também aquele veículo não tinha abastecido ainda, tendo pouco
combustível e então foram até outro posto de gasolina e tomaram outro veículo,
agora de marca Celta e orientado pelo Dito Quati, fugiram por estradas secundárias, pois seu Dito Quati conhecia todas aquelas estradas e daí o celta começou a
ficar sem combustível e daí abasteceram o veículo numa cidade que não conhece,
isto por volta de 1 da manhã; que caíram para o mato de novo, utilizando estradas
secundárias e chegaram a cidade de Sertanópolis-PR, daí ele deixou o interrogado
e Jamaica na Rodoviária e os três foram embora dizendo que iriam para Campo
Mourão PR; que chegaram naquela Rodoviária por volta de 08:00 horas, quando
Alexandre foi buscá-los com o veículo Uno/Mille e trouxe-os para esta cidade, levando o Jamaica, para a favela Maracanã e deixando o interrogando em sua casa;
que permaneceu em sua casa e saiu depois para jogar videogame e por volta das
12horas quando estava tomando banho, chegou os policiais civis em sua casa e
efetuaram a sua prisão, tendo naquele ato confessado o crime e não ofereceu nenhuma resistência a sua prisão.
(Sic, grifei, fls. 110/111.)
13. Não se desconhece que o Denunciado negou, parcialmente, as acusações contra si oficializadas em Juízo. Todavia, em nenhum momento ofereceu
versão de todo fantasiosa ou mesmo que dificultasse o curso da persecução
criminal. Ao contrário, sua retomada do compreensível propósito de autodefesa (seu interrogatório em Juízo) não foi suficiente para desconstituir as
provas contra ele, Paciente, facilitadamente produzidas. Provas que corroboraram, na verdade, suas declarações pré-processuais, como salientou a sentença
condenatória.
14. Em tal cenário, pouco importa a quantidade de linhas que a sentença
dedicou ao interrogatório policial do Paciente. Não é esse o critério para se aferir a
efetiva contribuição das palavras do Réu contra si mesmo e demais agentes. Esta
R.T.J. — 208
589
é de ser avaliada no exame da influência que a confissão extrajudicial exerceu
sobre o juízo de condenação. O que, a meu sentir, aconteceu no caso concreto.
Estou a dizer: estou convencido de que a confissão extrajudicial, na concreta
situação dos autos, fundamentou o decreto condenatório. Seja porque ajudou a
própria investigação policial (pois o Paciente narrou detidamente a empreitada
delitiva, apontando os demais investigados), seja porque serviu de adjutório
para fundamentar a decisão judicial que assentou a responsabilidade penal do
ora Paciente.
15. Mas o caso é timbrado por outra particularidade: o Superior Tribunal
de Justiça entendeu não ser “efetiva” a contribuição da confissão extrajudicial
para a condenação do Paciente, pois existem, na sentença penal condenatória,
elementos outros de convicção do julgador.
16. Ora bem, tal entendimento me causa estranheza, pois, a contrario
sensu, o que disse o Superior Tribunal de Justiça foi que a confissão retratada
só é de reduzir a pena se for “a” base da condenação. O que, salvo melhor juízo,
é inviável no sistema processual brasileiro. Sistema que impede condenações
fundamentadas tão-somente nas palavras do acusado. Noutro falar, a autoria e
materialidade delitiva não podem ser atestadas exclusivamente pela confissão,
quer a judicial, quer a extrajudicial.
17. O que intento dizer é que a premissa de que partiu o Superior Tribunal
de Justiça para rechaçar a atenuante da confissão espontânea constitui, no caso,
a própria ilegalidade a ser reparada na via processualmente contida do habeas
corpus. Isso porque, repito, o que fez a Corte Superior de Justiça foi condicionar
o reconhecimento da confissão espontânea – retratada em Juízo – à essencialidade das palavras do acusado para a sua própria condenação. Desvirtuando,
a seguinte e procedente linha de orientação da dogmática processual penal: o
valor probatório da confissão está a depender, sempre, de seu confronto com
os demais elementos de prova, colhidos ao longo da instrução criminal. É que,
segundo ensina Guilherme de Souza Nucci, a confissão deve ser “reputada totalmente inconsistente para condenar uma pessoa, caso venha isolada no bojo
dos autos” 1.
18. Do que se segue a constatação de que atrelar o reconhecimento da confissão à eventual necessidade de seu conteúdo na formação da convicção do julgador parece colidir com a máxima de que “o valor da confissão se aferirá pelos
critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o
juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre
ela e estas existe compatibilidade ou concordância” (art. 197 do CPP). Pelo que
o acórdão impugnado, inverteu a lógica processual constitucional e se contrapôs à própria jurisprudência do STJ. Jurisprudência segundo a qual a confissão
retratada em Juízo é de minorar a pena do réu, se, em conformidade com outras
provas, alicerçar a condenação. Confira-se, por amostragem, o seguinte julgado:
1
In: Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 414.
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Habeas corpus. Roubo circunstanciado. Exasperação da pena-base. Ex­
cessivo rigor no quantum majorado. Inadequação da via eleita. Atenuante.
Confissão espontânea. Retração. Atenuante aplicada. Ordem parcialmente co­
nhecida e, nessa extensão, concedida.
1. Saber se o quantum arbitrado, motivadamente, na fixação da pena-base
pelo julgador a quo é adequado implica análise do conjunto fático-probatório, inviável em habeas corpus.
2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido
de que deve ser aplicada a atenuante da confissão espontânea realizada perante a autoridade policial, ainda que retratada em juízo, desde que ela tenha,
em conjunto com outros meios de prova, embasado a condenação. Ressalva do
ponto de vista do relator que entende que a retratação afasta a incidência dessa
atenuante.
3. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, concedida para anular
parcialmente o acórdão da apelação no pertinente à dosimetria e determinar o retorno dos autos ao Tribunal de origem a fim de que refaça o cálculo da pena, com
observância da incidência da atenuante relativa à confissão espontânea.
(HC 86.685, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima.)
19. Tudo isso é o claro reconhecimento de que o chamado réu confesso assume uma postura sobremodo incomum: afastar-se do próprio instinto do autoacobertamento individual e grupal, o que, por certo, lhe acarreta perigo de vida.
Criar injustificados embaraços para lhe sonegar a sanção premial da atenuante é,
de certa forma, assumir perante ele reação de deslealdade (esse vívido conteúdo
do princípio que, na cabeça do art. 37 da Constituição, toma o explícito nome de
moralidade). Pelo que concedo a ordem. O que faço para restabelecer o acórdão
do Tribunal de Alçada do Paraná.
20. É como voto.
VOTO
(Aditamento)
O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Senhor Presidente, arremato dizendo que tudo isso que estou a falar é o claro reconhecimento de que o chamado “réu confesso” assume uma postura sobremodo incomum ao afastar-se
do próprio instinto do auto-acobertamento dos seus descaminhos e dos demais.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Revelando até um certo
arrependimento.
O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): E correndo riscos perante os
co-denunciados.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Sim, ele acabou indicando os
comparsas.
O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Então me parece que deixar de
reconhecer a ele essa sanção premial da atenuante da pena é uma postura até
de deslealdade, que é um dos conteúdos – digamos assim – mais eminentes do
princípio da moralidade: a lealdade é um dos conteúdos mais expressivos do
princípio da moralidade.
R.T.J. — 208
591
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): É afastar o estímulo a essa
postura.
O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Senhor Presidente, por isso concedo a ordem e restabeleço o acórdão do Tribunal de Alçada do Paraná, com a
devida vênia dos que pensam diferentemente.
VOTO
O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, V. Exa. e o Relator
certamente poderão esclarecer. É que a eminente Subprocuradora deu notícia de
que há precedentes da Suprema Corte no sentido de que, uma vez tendo ocorrido a retratação, não se dá a atenuante, em nenhuma circunstância. Ou seja,
independentemente desse critério de ter ou não outras provas, pareceu-me, pelo
que foi dito pela Subprocuradora, que o fato singular de ter havido a retratação
afasta a aplicação da atenuante.
Se há precedentes do Plenário nessa direção, peço vênia ao eminente
Ministro Carlos Britto para ficar com o precedente do Pleno.
O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Há precedente. A eminente Sub­
procuradora citou corretamente.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Apenas um dado: houve, pelo
menos no Juízo, a consideração da confissão – foi causa para se impor a pena –,
robustecendo as demais provas.
O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Exato. Fui além disso: a conjugação
da confissão com outros elementos de prova.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: O Relator superou, de certa forma, ou contornou, pelo menos.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Superou por esse detalhe.
O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Pelas peculiaridades do caso.
O Sr. Ministro Menezes Direito: Entendo que, se há um precedente do
Pleno em que o ato singular da retratação afasta a atenuante, o fato de ter havido
a retratação, a meu sentir, é suficiente para a manutenção do precedente. Se o
precedente fosse de uma das Turmas do Supremo, eu não teria dúvida em reexaminar; mas, aqui, pelo que pude deduzir, há um precedente claro do Plenário do
Supremo, dizendo que este fato, ou seja, a retratação, é suficiente para afastar a
aplicação da atenuante.
Peço vênia ao eminente Ministro Carlos Britto, mas ficarei com o precedente do Pleno do Supremo. Denego a ordem.
VOTO
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, peço vênia ao Ministro
Menezes Direito. Como princípio, também, não supero as decisões do Plenário
no julgamento de Turma. Porém, como entendo que não há superação nem
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R.T.J. — 208
descumprimento do que foi decidido pelo Plenário, mas que, diante do caso
concreto, aquela interpretação dada – e que está posta, sedimentada como precedente do Supremo – não se aplica na hipótese, em razão dos dados específicos,
neste caso, acompanho o Ministro Relator, por entender que não estou descumprindo a decisão do Plenário.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, peço vênia para
acompanhar o eminente Relator, dadas as peculiaridades do caso concreto.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): O decreto condenatório, como
ressaltou o Relator para apontar a inadequação do precedente do Pleno, está
calcado na conjugação, ou seja, placitou-se as demais provas ante a confissão na
delegacia policial.
Acompanho o Relator no voto proferido.
EXTRATO DA ATA
HC 91.654/PR — Relator: Ministro Carlos Britto. Paciente: Marcelo
da Silva Ordálio. Impetrante: Defensoria Pública da União. Coator: Superior
Tribunal de Justiça.
Decisão: Por maioria de votos, a Turma deferiu o pedido de habeas corpus,
nos termos do voto do Relator; vencido o Ministro Menezes Direito. Falaram:
o Dr. Antônio de Maia e Pádua, Defensor Público da União, pelo Paciente, e
a Dra. Cláudia Sampaio Marques, Subprocuradora-Geral da República, pelo
Ministério Público Federal.
Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à Sessão os Ministros
Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito.
Subprocuradora-Geral da República, Dra. Cláudia Sampaio Marques.
Brasília, 8 de abril de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
R.T.J. — 208
593
HABEAS CORPUS 93.712 — RS
Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto
Paciente: Delmar Padilha Soares — Impetrante: Michel Mota de Moraes —
Coator: Presidente do Superior Tribunal de Justiça
Habeas corpus. Indeferimento de liminar pelo Relator
do habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça.
Súmula 691/STF. Mitigação. Evidente ilegalidade. Decreto de
prisão desfundamentado. Ausência de trânsito em julgado.
Garantia da fundamentação das decisões judiciais e direito à
presunção de não-culpabilidade.
1. A jurisprudência deste STF é no sentido da inadmissibilidade de impetração sucessiva de habeas corpus, sem que antes
se dê o julgamento definitivo do writ impetrado na(s) instância(s)
de origem.
2. É certo que tal jurisprudência comporta relativização,
quando de logo avulta que o cerceio à liberdade de locomoção
do Paciente decorre de ilegalidade ou de abuso de poder (inciso LXVIII do art. 5º da CF/88).
3. No caso, contra o Paciente que aguardou em liberdade
o julgamento da apelação interposta pelo Ministério Público,
foi expedido mandado de prisão sem nenhum fundamento idôneo por acórdão que se limitou a anotar: “Expeça-se mandado
de prisão”. Caso como aqueles em que a nossa jurisprudência
entende desatendida a garantia da fundamentação das decisões
judiciais (inciso IX do art. 93 da Constituição Federal).
4. Em matéria de prisão provisória, a garantia da fundamentação consiste na demonstração da necessidade da custódia
cautelar, a teor do inciso LXI do art. 5º da Carta Magna e do
art. 312 do Código de Processo Penal. A falta de fundamentação
do decreto de prisão inverte a lógica elementar da Constituição,
que presume a não-culpabilidade do indivíduo até o momento do
trânsito em julgado de sentença penal condenatória (inciso LVII
do art. 5º da CF).
5. Ordem concedida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Marco
Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
maioria de votos, em conhecer do pedido de habeas corpus; vencidos a Ministra
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Cármen Lúcia e o Ministro Menezes Direito. Por unanimidade, concedeu a ordem, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 1º de abril de 2008 — Carlos Ayres Britto, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de habeas corpus, aparelhado com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão do Presidente
do Superior Tribunal de Justiça. Decisão que indeferiu a liminar ali requestada
sob o fundamento de que o pedido se confundia, no caso, com o próprio mérito
da impetração.
2. Pois bem, antes do julgamento do writ ajuizado na Corte Superior de
Justiça, o Impetrante renova, aqui, a tese de que a prisão do Paciente é ilegal.
Isso porque decretada à míngua de qualquer circunstância ou elemento factual
sem qualquer elemento fático de pronto explicitados.
3. Prossigo neste relato da causa para retratar, em síntese, o quadro empírico da causa:
I – Delmar Padilha Soares, Paciente, preso em flagrante delito, em 25 de
setembro de 2005, foi denunciado pelos supostos delitos de tráfico de entorpecentes e posse ilegal de arma de uso restrito. Seguido o devido iter processual,
sobreveio sentença penal absolutória (em 25-11-05), lastreada no inciso VI do
art. 386 do Código de Processo Penal. Sentença que determinou a imediata expedição de alvará de soltura em nome dele, Paciente;
II – deu-se que o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul apelou da sentença. Apelo que, em 30 de outubro de 2007, foi provido para condenar
o ora Paciente à pena de seis anos de reclusão (pelo delito de tráfico de entorpecentes) e determinar seu imediato recolhimento à prisão, nos termos seguintes:
Provido o apelo do Ministério Público, condenado o Réu, lance-se seu nome
no rol dos culpados; comunique-se a condenação ao TRE; custas pelo condenado.
Intimado. Publicada em sessão de julgamento a condenação.
Expeça-se mandado de prisão (voto condutor do acórdão, fl. 79);
III – foi contra esta decisão que o Impetrante ajuizou habeas corpus no
Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus que, segundo as informações prestadas pela autoridade impetrada, aguarda a manifestação da Procuradoria-Geral
da República.
4. Dito isso, averbo que a Presidente deste Supremo Tribunal Federal indeferiu a cautelar requestada. Na seqüência, a Procuradoria-Geral da República
opinou pela concessão da ordem. O que fez por entender que o caso é daqueles
que comporta a relativização da Súmula 691/STF. Isso porque não há nenhum
fundamento a legitimar a ordem prisional.
É o relatório.
R.T.J. — 208
595
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Conforme relatado, a questão
a ser deslindada por esta nossa Turma é a da possibilidade, ou não, de superação
do óbice da Súmula 691/STF. Isto retratado no seguinte quadro fático: Paciente
que, preso em flagrante delito, foi processado e absolvido das imputações de
tráfico de drogas e porte ilegal de arma. Sendo afinal condenado pelo delito do
art. 12 da Lei 6.368/76, quando do julgamento do apelo do Ministério Público,
tendo sido de imediato encarcerado por ordem assim proferida: “Expeça-se
mandado de prisão.”
7. Dito isso, averbo que a questão de fundo deste writ, qual seja, a validade
da execução provisória da pena imposta a condenado que aguardou, em liberdade, a instrução criminal, está afetada ao Plenário deste Supremo Tribunal
Federal. Plenário que deverá responder ao seguinte questionamento: é legítimo
executar provisoriamente um acórdão penal condenatório? Noutro dizer, é constitucional a prisão decorrente apenas de um título condenatório provisório?
8. Esta nossa Primeira Turma parece perfilhar a tese de que a pendência
dos recursos extraordinários não impede a execução provisória da pena. Isto
porque tais apelos não têm efeito suspensivo. Todavia, como ressaltei no julgamento do HC 91.352, da relatoria do Ministro Menezes Direito (Pleno), penso
que este nosso órgão fracionário apenas tem feito ponderações caso a caso.
Leia-se uma das minhas intervenções:
(...) uma ponderação de peculiaridades do caso, de maneira que não firmamos, na Primeira Turma – é a minha leitura –, a tese dogmática, ortodoxa, de que
o manejo dos recursos excepcionais não tem o efeito de suspender a condenação,
seja qual for a situação.
Tenho entendido, das nossas decisões, que, diante de peculiaridades do
caso, é admissível a execução provisória da pena pendentes os recursos excepcionais. Até tenho dito, reiteradamente, que, em matéria de Processo Penal, o Direito
é orteguiano: “Eu sou eu e as minhas circunstâncias.”
9. Assim colocada a questão, ajuízo que a situação é de flagrante ilegalidade, de modo a ensejar a mitigação da Súmula 691/STF. Isso porque, a despeito
de sua prisão em flagrante no ano de 2005, nesse mesmo ano, o Paciente foi solto
por força de sentença absolutória. Estado de liberdade que perdurou por aproximadamente dois anos, até o julgamento da apelação do Ministério Público.
Período, aquele, em que não foi registrado qualquer ato desabonador da conduta
do Paciente. Sobremais, a sentença consigna que ele, Paciente, é proprietário de
um pequeno comércio de que extrai o sustento de sua família. Sendo temerário,
antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, afastá-lo do convívio
social e mais especificamente do seu núcleo familiar, desagregando-o (a família
tem “especial proteção do Estado”, segundo o caput do art. 226 da Constituição
Federal).
10. Diga-se mais: a ordem de prisão padece da falta de qualquer explicitado
fundamento. O que ofende a garantia constitucional que se lê na segunda parte
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R.T.J. — 208
do inciso LXI do art. 5º e na parte inicial do inciso IX do art. 93 da Constituição.
Vale dizer, não se enxerga no decreto prisional o conteúdo mínimo da garantia
da fundamentação das decisões judiciais, sem o qual não se viabiliza a ampla
defesa nem se afere o dever do juiz de se manter eqüidistante das partes processuais em litígio.
11. Há mais o que dizer: em matéria de prisão provisória, a garantia da
fundamentação importa o dever judicante da demonstração de que a segregação
atende aos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. Sem o que se dá
a inversão da lógica elementar da Constituição, segundo a qual a presunção de
não-culpabilidade é de prevalecer até o momento do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
12. Como salientei no julgamento do HC 92.435, de minha relatoria, a presunção de não-culpabilidade (inciso LVII do art. 5º da CF) não opera de modo
absoluto ou jure et de jure, é certo, mas para ser afastada é preciso que se demonstre a autoria delitiva do acusado por modo substancial, no curso de um processo penal que desemboque em condenação de que já não caiba mais recurso.
Demonstração, portanto, que somente se faz mediante prova cabal da autoria do
delito, porque senão a presunção se deslocaria da não-culpabilidade para a culpabilidade. Estou a dizer: o que dispensa qualquer demonstração ou elemento
de prova é a não-culpabilidade (que se presume). O seu oposto (a culpabilidade)
é que demanda prova, e prova inequívoca de protagonização do fato criminoso.
13. Qual a principal razão desse reclamo de certeza da prova de culpabilidade em sede de sentença penal condenatória irrecorrível? Ora, se a presunção
de não-culpabilidade é direito subjetivo – mais que isso, direito subjetivoconstitucional de índole fundamental (todo o art. 5º da Constituição é encimado
pelo auto-explicativo título “Dos direitos e garantias fundamentais”) –, essa
fundamentalidade mesma é que faz de tal presunção algo de compleição juridicamente forte ou avantajada. Lógico! Senão o vocábulo em si – “presunção” –
deixaria de ter o significado que os dicionários registram e o Direito Positivo
absorve: “suposição que se tem por verdadeira até prova em contrário” (Cf.
Enciclopédia e Dicionário Koogan/Houaiss, Edições Delta, 1994, p. 676). Prova
em contrário, agora sim, que tem de ultrapassar as fronteiras semânticas da simples possibilidade e até da probabilidade da culpa para traduzir uma certeza de
autoria do sujeito penalmente processado.
14. Em diferentes palavras, a suposição de não-culpabilidade é direito que
incorpora o “benefício da dúvida” como civilizada ou humanitária couraça do
réu. Não a prova em sentido contrário. Esta, mais do que duvidosa, mais que sinalizar ou sugerir ou indicar uma culpa subjetiva, tem que ser produzida com o
timbre pelo menos razoável da certeza. Do tônus da robustez. Da ambiência processual da convicção, sem o que a presunção constitucional de excludência de
culpa subjetiva não se desfaz validamente. É como dizer: sem o que a sentença
penal condenatória resvala para a zona proibida do indevido processo legal.
Zona proibida tanto mais intolerável quanto ofensiva do bem jurídico da liberdade, esse valor que se ombreia ao da própria segurança jurídica para também
R.T.J. — 208
597
figurar do preâmbulo da Constituição e da cabeça do mesmo art. 5º. Com a
mesma dignidade intrínseca e altanaria sistêmica, a ponto de ter ao seu específico serviço a possibilidade de manejo da mais célere e forte ação mandamental
de timbre genuinamente constitucional, que é o habeas corpus.
15. Nesta ampla moldura de direitos e garantias constitucionais do indivíduo, a custódia cautelar só pode assumir função de justificada excepcionalidade.
Excepcionalidade prática – nunca simplesmente teórica – que não é atestada
pelo acórdão que, no caso, decretou a prisão do Paciente.
16. Esse o quadro, convenço-me de que o caso é daqueles que comportam a
relativização da Súmula 691 deste Supremo Tribunal Federal. Motivo pelo qual
conheço do habeas corpus e concedo a ordem de soltura do Paciente. Em conseqüência, casso a desfundamentada ordem de prisão, expedida pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Rrio Grande do Sul, nos autos da Apelação 70014570725.
17. É como voto.
VOTO
O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, peço vênia ao Relator,
vou ficar na preliminar de não-conhecimento.
Trata-se de tráfico de entorpecentes, e o despacho do Ministro Presidente
do STJ tem carga de fundamentação extremamente forte. S. Exa. entende que a
liminar, no caso, confunde-se com o mérito, e a apreciação da demanda exige
apreciação de fatos e de provas.
Não entendo, nessa circunstância, diante dos fatos e da condenação feita
pelo Tribunal de origem, que se possa excepcionar a Súmula 691.
Peço vênia ao Relator e não conheço da impetração.
VOTO
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, também peço vênia ao
Relator para acompanhar a divergência iniciada pelo Ministro Menezes Direito,
porque não reconheço as condições de excepcionalidade que são as que autorizam o temperamento da aplicação do verbete.
Por essa razão, com as vênias de estilo, acompanho a divergência iniciada
com o Ministro Carlos Alberto.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, acompanho o
voto do Ministro Relator, com a devia vênia da divergência, porque, neste caso,
estou vendo a excepcionalidade. Houve uma absolvição em primeira instância.
O Paciente vem respondendo solto e certamente está comparecendo aos atos do
598
R.T.J. — 208
processo. Parece-me que a situação se reveste de uma excepcionalidade que autoriza a superação da Súmula 691.
Portanto, data venia, acompanho o voto do Relator.
EXTRATO DA ATA
HC 93.712/RS — Relator: Ministro Carlos Britto. Paciente: Delmar Padilha
Soares. Impetrante: Michel Mota de Moraes. Coator: Presidente do Superior
Tribunal de Justiça.
Decisão: A Turma, por maioria de votos, conheceu do pedido de habeas
corpus; vencidos a Ministra Cármen Lúcia e o Ministro Menezes Direito. Por
unanimidade, concedeu a ordem, nos termos do voto do Relator.
Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros
Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Ministra Cármen Lúcia e Menezes
Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner de Castro Mathias
Netto.
Brasília, 1º de abril de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
R.T.J. — 208
599
HABEAS CORPUS 93.786 — ES
Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto
Paciente: Fabiano de Oliveira Costa — Impetrante: Cecília da Silva
Massa — Coator: Superior Tribunal de Justiça
Habeas corpus. Prisão preventiva. Excesso de prazo. Ins­
trução criminal inconclusa. Audição das testemunhas da defesa.
Carta precatória não-cumprida. Inércia do Poder Judiciário.
Alongamento para o qual não contribuiu a defesa. A gravidade
da imputação não obsta o direito subjetivo à razoável duração
do processo.
1. O Supremo Tribunal Federal entende que a aferição de
eventual excesso de prazo é de se dar em cada caso concreto,
atento o julgador às peculiaridades do processo em que estiver
oficiando.
2. No caso, a prisão preventiva do Paciente foi decretada há
mais de oito anos, sendo que nem sequer foram ouvidas as testemunhas arroladas pela defesa. Embora a defesa haja insistido na
oitiva de testemunhas que residem em Comarca diversa do Juízo
da causa, nada justifica a falta de realização do ato por mais de
cinco anos. A evidenciar que a demora na conclusão da instrução
criminal não decorre de “manobras protelatórias defensivas”.
3. A gravidade da imputação não é obstáculo ao direito
subjetivo à razoável duração do processo (inciso LXXVIII do
art. 5º da CF).
4. Ordem concedida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal em deferir o pedido de habeas corpus, o
que fazem nos termos do voto do Relator e por unanimidade de votos, em sessão
presidida pelo Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e
das notas taquigráficas. Determinada a retificação da autuação para que conste
como órgão coator o Superior Tribunal de Justiça.
Brasília, 17 de junho de 2008 — Carlos Ayres Britto, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Cuida-se de habeas corpus, aparelhado
com pedido de medida liminar, impetrado contra acórdão do Superi­or Tribunal
de Justiça. Acórdão que não conheceu do writ ali ajuizado, sob o fundamento
600
R.T.J. — 208
de que as matérias suscitadas na impetração não foram apreciadas pelo Tribunal
de Justiça do Espírito Santo (fl. 136).
2. Pois bem, o Impetrante renova, aqui, a tese do retardamento injustificado para o término da instrução criminal. Retardamento, esse, a transformar
em verdadeira antecipação de pena a prisão cautelar do Paciente, que aguarda
preso o respectivo julgamento há mais de oito anos.
3. Indeferida a medida liminar requestada, requisitei informações ao Juízo
de Direito da Comarca de Anchieta/ES. Eis, em apertada síntese, o quadro empírico da causa:
I – Fabiano de Oliveira Costa (“Marcelo”) foi denunciado pelos crimes
de homicídio qualificado (inciso IV do § 2º do art. 121 do CP) e de quadrilha
(art. 288 do CP), em concurso de pessoas (art. 29 do CP);
II – a denúncia foi recebida em 30-8-99, com a decretação da prisão
preventiva;
III – o Paciente já se encontrava preso em uma Delegacia de Polícia de
Itaboraí/RJ, motivo pelo qual foi expedida carta precatória para citação e respectivo interrogatório (isso, em 2 de setembro de 1999);
IV – devidamente interrogado, as advogadas do Réu renunciaram aos
poderes por ele outorgados. O que motivou a intimação do Paciente para constituir novo patrono, em 14 de fevereiro de 2001. Não constituído novo causídico,
repetiu-se o ato em 11 de abril de 2001;
V – deu-se a suspensão do processo em relação aos acusados que, citados
por edital, não foram interrogados nem constituíram advogados;
VI – ainda uma vez (em 15 de maio de 2001), o Paciente foi intimado para
a constituição de novo patrono, oportunidade em que externou o desejo de ser
defendido pela Defensoria Pública;
VII – devidamente assistido, e deferido o pleito de novo interrogatório,
expediu-se nova carta precatória para tal finalidade, cujo cumprimento se deu
em 1-11-01;
VIII – no dia 10 de dezembro de 2001, o novo advogado constituído pelo
Paciente requereu vista dos autos e a substituição das testemunhas arroladas na
defesa prévia. Isto para a respectiva oitiva na Comarca do Rio de Janeiro/RJ;
IX – a Polinter requereu, no dia 5-9-02, a confirmação de eventual expedição de alvará de soltura do Paciente, apresentado na referida Delegacia especializada. Em resposta, o TJ do Espírito Santo informou que em nenhum momento
deferiu a soltura do Paciente (fl. 171);
X – encerrado o sumário de acusação em fevereiro de 2003, expediu-se
carta precatória para a oitiva das testemunhas defensivas. Testemunhas cuja intimação foi dispensada pela defensora constituída, sendo designado o dia 9 de
abril de 2003 para o referido ato;
R.T.J. — 208
601
XI – o acusado solicitou a revogação de sua custódia preventiva, sob a alegação de excesso de prazo. O que foi indeferido pela decisão de fl. 194;
XII – o Juízo da Comarca de Anchieta/ES informou, em 25 de março de
2008, que, após reiterados ofícios com pedido de devolução da carta precatória
de oitiva das testemunhas da defesa, assinou o prazo de 30 (trinta) dias para o
respectivo cumprimento. Isso para eventual aplicação do § 2º do art. 222 do
CPP.
4. Prossigo neste relato para averbar que, após as informações da autoridade impetrada e do Juízo de Direito da Comarca de Anchieta/ES, abri vista dos
autos à Procuradoria-Geral da República. Procuradoria que opinou pelo deferimento da ordem sob o fundamento de que, no caso, é de se reconhecer o excesso
de prazo na custódia preventiva do Paciente.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Consoante relatado, a questão posta a exame desta nossa Primeira Turma é saber se há ou não excesso de
prazo na prisão cautelar do Paciente.
7. De saída, anoto que este Supremo Tribunal Federal entende que a aferição de eventual excesso de prazo é de se dar em cada caso concreto, atento
o julgador às peculiaridades do processo em que estiver oficiando (como, por
exemplo, o número de réus e de testemunhas arroladas, a complexidade do feito
e o comportamento dos patronos dos acusados, que não podem ser os causadores do retardamento do processo). Nesse sentido é que foram julgados os HC
84.780, HC 83.842, HC 86.789 e HC 87.1641, HC 88.433 e HC 87.8472. E mais
recentemente os HC 92.971 e HC 92.836, ambos de minha relatoria.
8. Feito este breve retrospecto do entendimento desta nossa Corte, em matéria de excesso de prazo, passo a decidir. Fazendo-o, tenho que estamos diante
de um caso que revela a inversão da ordem mesma das coisas. É que a prisão
preventiva do Paciente foi decretada desde o dia 30 de agosto de 1999. Há quase
nove anos, portanto. Sendo certo que nem sequer ainda foram ouvidas as testemunhas de defesa.
9. Vê-se, pois, que se está diante da contingência de calibrar valores constitucionais de primeira grandeza: por um lado, o exercício do poder-dever de
julgar (inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal); por outro, o direito
subjetivo à razoável duração do processo e dos meios que garantam a celeridade
de sua tramitação (inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal), sobretudo quando em jogo a liberdade de locomoção. Daí a inquietante pergunta: a
gravidade da imputação que recai sobre o Paciente tem a força de coonestar o
1
Questão de ordem na extensão em extensão de medida cautelar.
2
HC 87.487-AgR.
602
R.T.J. — 208
alongado prazo de quase nove anos de custódia cautelar? Noutros termos: o simples fato de o Paciente já se encontrar encarcerado no momento da decretação
de sua prisão preventiva no Processo-crime 1.273/99 (ora sob análise) justifica
tal demora?
10. A instantânea resposta está no exame da interação entre tempo e
Direito Penal. Interação que, na contemporaneidade, ganha largos contornos.
Explico: a velocidade que timbra as relações sociais contemporâneas caracteriza também a criminalidade pós-moderna. Barreiras temporais e espaciais
são reduzidas (e até suprimidas) para o bem das comunidades, como também,
lamentavelmente, para o alcance de interesses ilícitos. Nessa contextura, os
Estados Nacionais e a Comunidade Internacional não podem fazer da redução
das garantias penais clássicas um mecanismo de “eficiência” do sistema penal
repressivo. Afinal, o reconhecimento constitucional do direito ao julgamento em
prazo razoável é, antes de tudo, o coroamento da idéia de que, para ser eficaz, o
processo penal não precisa se despir de sua clássica feição garantista. Ao contrário, a eficácia do exercício do poder punitivo do Estado somente se viabiliza
no otimizado entrecruzar do tempo de julgamento e do respeito aos direitos e
garantias individuais de matriz constitucional.
11. Não pode ser diferente, à luz de uma Constituição que faz a mais avançada democracia coincidir com o mais depurado humanismo. É falar: tenho que,
em matéria penal, o prazo razoável para o julgamento é aquele balizado pelo
integral respeito às garantias do contraditório e da ampla defesa. Qualquer outra
interpretação colidiria com denso bloco de garantias penais e processuais penais
que se lê no art. 5º da Constituição Federal.
12. Com efeito, de nada valeria declarar com tanta pompa e circunstância
o direito à razoável duração do processo, se a ele não correspondesse o dever
estatal de julgar com presteza. Dever que é uma das vertentes da altissonante
regra constitucional de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito” (inciso XXXV do art. 5º). Dever, enfim, que, do
ângulo do indivíduo, é constitutivo da tradicional garantia de acesso eficaz ao
Poder Judiciário (“universalização da Justiça”, também se diz). E como garantia
individual, a se operacionalizar pela imposição de uma dupla e imbricada interdição: a) interdição ao Poder Legislativo, no sentido de não poder afastar de
apreciação judiciária todo tipo de lesão ou ameaça a direito; b) interdição aos
próprios órgãos do Judiciário, na acepção de que nenhum deles pode optar pelo
não-exercício do poder de decidir sobre tais reclamos de lesão ou ameaça a direito. É o chamado de juízo de proibição do non liquet, a significar que o Poder
Judiciário está obrigado a solver ou liquidar as questões formalmente submetidas à sua apreciação. Esta a sua contrapartida, da qual não pode se eximir jamais.
13. Ora bem, se ao Judiciário nunca se permite dar o silêncio como res­
posta às demandas que lhe são submetidas, o que dizer em tema de apreciação
de causas a envolver réus presos? Resposta: que o dever de decidir se marca por
um tônus de presteza máxima. Presteza máxima que me parece de todo incompatível com o quadro retratado neste habeas corpus.
R.T.J. — 208
603
14. Não que este modo de enxergar a causa signifique um olímpico fechar
de olhos para a crucial realidade das instâncias judiciárias brasileiras, traduzida
em ter que decidir um número de processos para muito além da resistência física
dos seus reconhecidamente devotados e competentes magistrados. Não é isso.
Mas o que importa considerar, em termos de decidibilidade, é que os jurisdicio­
nados não podem pagar por um débito a que não deram causa... O débito é da
Justiça e a fatura tem que ser paga é pela Justiça mesma. Ela que procure e
encontre – peça elementar que é da engrenagem estatal – a solução para esse
brutal descompasso entre o número de processos que lhe são entregues para
julgamento e o número de decisões afinal proferidas.
15. Assim colocada a questão, para mim o caso é de concessão da ordem,
na linha do parecer ministerial público. Isso porque a leitura das informações
do Juízo Processante revela que o alongamento da instrução criminal, embora
decorra, em certa medida, de um pleito defensivo – oitiva de testemunhas fora
da Comarca processante –, é de se debitar ao próprio Poder Judiciário.
16. Com efeito, não encontro justificativa plausível para a total paralisação
do feito pela falta de oitiva das testemunhas arroladas pela defesa. Oitiva, essa,
determinada por meio de uma carta precatória que foi expedida há mais de
cinco anos. Sendo que o Juízo processante, não obstante patente a demora no
seu cumprimento, se limitou a reiterar ofícios com vistas à devolução da referida
precatória, sem adotar nenhuma outra medida procedimental. Afinal, se por um
lado a parte interessada deve contribuir para o cumprimento da carta precatória, de outro, “o juiz que receber a precatória para o cumprimento deve dar-lhe
prioridade na pauta de julgamentos, pois está lidando com a produção de uma
prova destinada a outro colega, razão pela qual o pronto atendimento faz parte
da sua colaboração, exigida por lei (...)” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código
de Processo Penal comentado. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 469).
Tudo a evidenciar, então, que a demora na conclusão da instrução criminal não
decorre de “manobras protelatórias defensivas”.
17. Como se não bastasse esse flagrante e injustificado excesso de prazo,
anoto que as justificativas lançadas pelo Juízo originário da causa nestes autos
são, em essência, as mesmas prestadas, no ano de 2006, ao Tribunal de Justiça
do Espírito Santo, que indeferiu o habeas corpus ali ajuizado, nos seguintes
termos (fls. 203/204):
(...)
Primeiramente, esclarece o douto magistrado que o Paciente encontra-se
preso em outro estado da federação, tendo o seu interrogatório sido realizado por
meio de carta precatória na data de 19 de julho de 2000, e sua defesa prévia apresentada em 28 de julho de 2000.
A seguir ressaltou que o juízo deprecado encontrou grande dificuldade em
localizar o ora Paciente para realização de seu interrogatório, pois o mesmo era
constantemente transferido dos estabelecimentos prisionais.
Destaca ainda que o Réu fora já representado por dois advogados constituídos e um defensor público, e que a oitiva das testemunhas de acusação terminaram
em 27 de fevereiro de 2003.
604
R.T.J. — 208
Por fim, a autoridade coatora pontua que a patrona do Réu deixou de comparecer e apresentar suas testemunhas em duas audiências, esclarecendo que o
desenrolar do trâmite processual está pendente de devolução de carta precatória expedida para a oitiva de testemunhas de defesa, que não estão sendo
localizadas pelo juízo deprecado.
(...)
(Sem destaques no original.)
18. Por tudo quanto colocado, acolho o parecer ministerial público e concedo a ordem. O que faço para determinar a imediata soltura do Paciente, se por
“al não estiver preso”. Alvará a ser cumprido mediante termo de compromisso
de comparecimento aos atos processuais para os quais for, eventualmente, intimado (art. 310 do CPP).
19. É como voto.
EXTRATO DA ATA
HC 93.786/ES — Relator: Ministro Carlos Britto. Paciente: Fabiano de
Oliveira Costa. Impetrante: Cecília da Silva Massa. Coator: Superior Tribunal
de Justiça.
Decisão: A Turma deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto
do Relator. Determinada a retificação da autuação para que conste como órgão
coator o Superior Tribunal de Justiça. Unânime.
Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros
Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Sub­
procurador-Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves.
Brasília, 17 de junho de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
R.T.J. — 208
605
HABEAS CORPUS 94.278 — SP
Relator: O Sr. Ministro Menezes Direito
Paciente: Nery da Costa Júnior — Impetrantes: Manoel Cunha Lacerda e
outros — Coator: Relator do Inquérito 547 do Superior Tribunal de Justiça
Habeas corpus. Inquérito judicial. Superior Tribunal de
Justiça. Investigado com prerrogativa de foro naquela Corte.
Interpretação do art. 33, parágrafo único, da Loman. Tran­
camento. Ausência de constrangimento ilegal. Precedentes.
1. A remessa dos autos do inquérito ao Superior Tribunal
de Justiça deu-se por estrito cumprimento à regra de competência originária, prevista na Constituição Federal (art. 105, inciso I, alínea a), em virtude da suposta participação do Paciente,
Juiz Federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, nos
fatos investigados, não sendo necessária a deliberação prévia da
Corte Especial daquele Superior Tribunal, cabendo ao Relator
dirigir o inquérito.
2. Não há intromissão indevida do Ministério Público Fe­
deral, porque como titular da ação penal (art. 129, incisos I e VIII,
da Constituição Federal) a investigação dos fatos tidos como delituosos a ele é destinada, cabendo-lhe participar das investigações.
Com base nos indícios de autoria, e se comprovada a materialidade dos crimes, cabe ao Ministério Público oferecer a denúncia
ao órgão julgador. Por essa razão, também não há falar em sigilo
das investigações relativamente ao autor de eventual ação penal.
3. Não se sustentam os argumentos da impetração, ao afirmar que o inquérito transformou-se em procedimento da Polícia
Federal, porquanto esta apenas exerce a função de Polícia Ju­
diciária, por delegação e sob as ordens do Poder Judiciário. Os
autos demonstram tratar-se de inquérito que tramita no Supe­
rior Tribunal de Justiça, sob o comando de Ministro daquela
Corte Superior de Justiça, ao qual caberá dirigir o processo sob
a sua relatoria, devendo tomar todas as decisões necessárias ao
bom andamento das investigações.
4. Habeas corpus denegado.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar
Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
606
R.T.J. — 208
unanimidade de votos, rejeitar a preliminar de prejudicialidade e, por maioria,
denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 25 de setembro de 2008 — Menezes Direito, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Menezes Direito: Habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado pelos advogados Manoel Cunha Lacerda e Nabiha de Oliveira
Maksoud em favor de Nery da Costa Júnior, Juiz Federal do Tribunal Regional
Federal da 3ª Região, buscando o trancamento, quanto a ele, do inquérito em
trâmite no Superior Tribunal de Justiça, no qual se investiga suposta prática de
crimes contra a administração pública, lavagem de dinheiro e contra a ordem
tributária.
Apontam como autoridade coatora o Ministro Felix Fischer, do Superior
Tribunal de Justiça, Relator do Inquérito 547/SP.
Informam, inicialmente, que:
(...)
4. (...) o paciente está sendo vítima de inquérito arbitrário, no qual, acolhendo requerimento de Delegado de Polícia Federal, a eminente autoridade
coatora determinou, sem nenhuma fundamentação, a expedição de mandados
de buscas e de apreensões na residência e no gabinete do Paciente – assim como
em relação a outros dois desembargadores federais, dois juizes federais e outras
42 (quarenta e duas) pessoas – conforme consta na relação existente na decisão –
(anexo I – fl. 123-126).
(...)
5. De mais a mais, esse arbítrio e perseguição culminaram com a quebra do
sigilo telefônico, bancário e fiscal de todos os investigados (indiciados), além do cumprimento dos mandados de busca e apreensão na residência e no gabinete do Paciente.
(Fl. 5.)
Relatam, ainda:
(...)
15. Na Corte Especial do STJ, em 15.12.06, o Inquérito n. 740-SP foi autuado
como sendo Inquérito n. 547-SP (2006/0278698-0), cuja relatoria coube ao eminente Ministro Félix Fischer.
16. Também na mesma Corte, até o momento, o inquérito n. 547-SP não foi
submetido a sua deliberação.
Diante dessa completa omissão, e da usurpação de competência pela autoridade coatora, cabe concluir: o Inquérito n. 547-SP ainda não foi instaurado,
sendo apenas um procedimento ilegal e injusto!...
17. Ainda, para alargar o campo das ilegalidades processuais, no dia
18.12.06, o eminente Relator (autoridade coatora) proferiu despacho (anexo
I – f. 54 e f. 52), determinando vista dos autos ao ilustre “Procurador-Geral da
República” – (cópia – anexo I, f. 55-69).
Porém, é inadmissível a intromissão do Órgão Ministerial em inquérito
judicial.
R.T.J. — 208
607
17.1 Valendo-se da oportunidade da referida vista, o ilustre SubprocuradorGeral da República, Dr. Franscisco Dias Teixeira, em 02.02.07, requereu a juntada do “Procedimento Investigatório Criminal n. 1.34.–001.003633/2005-49”,
contendo 7 volumes, a fim de que “as investigações, a serem realizadas pela
Polícia Federal, façam-se em conjunto” – (cópia – anexo – f. 94-109).
17.1.1 Dessa maneira, o mencionado requerimento cuidou de transformar o inquérito judicial, contra desembargador federal, numa investigação
da Polícia Federal!...
18. Na seqüência, deve ser ressaltado que o nome do Paciente somente
foi mencionado no dia 01.02.07, quando o Delegado de Polícia Federal de São
Paulo-SP, Dr. Luiz Roberto Ungaretti de Godoy, de maneira ilegal, requereu à
eminente autoridade coatora a interceptação da comunicação telefônica do
Paciente, relativa aos seus telefones n. (11) 7242.4269 e (11)7628.1671, conforme
consta da cópia do referido requerimento – (anexo II – f. 168-173).
Também foi requerida a interceptação dos telefones de mais oito pessoas,
assim como a prorrogação da interceptação de mais 67 (sessenta e sete) telefones.
(...)
18.2 No dia 7.2.07, o aludido requerimento foi deferido pela autoridade coatora, cuidando-se de decisão genérica ou coletiva sem a devida fundamentação,
e com flagrante violação à norma do art. 2º, I, parágrafo único, da Lei n. 9.296, de
24.07.96, além de ter sido deferida a prorrogação de várias outras interceptações
telefônicas – (cópia da decisão – anexo II, f. 174-181).
18.3 Ademais, para ser admitida a interceptação, é necessário que existam
“indícios razoáveis da autoria”, devendo, ainda, “ser descrita com clareza a
situação objeto da investigação”, além de não ser juridicamente viável alcançar
delito punível com pena máxima de detenção – (art. 2º, I e III, parágrafo único,
Lei n. 9.296/96).
Porém, ainda não foi especificado, ao menos, qual seria o delito que estaria
sendo investigado.
(...)
22. Continuando, cabe reafirmar: até agora o Paciente não foi acusado de
ser partícipe ou de ter praticado qualquer espécie de delito, embora tenha sofrido
o gravíssimo constrangimento ilegal, pois inclusive foi interrogado, sem que lhe
tivesse sido especificado qual seria o delito, que lhe estaria sendo imputado – (cópia do interrogatório – anexo I, f. 147-165).
22.1 O interrogatório ocorreu no dia 18.12.07, o qual foi realizado pelo
Desembargador Federal Baptista Pereira, do Tribunal Regional Federal da 3ª
Região, em cumprimento de carta de ordem, com indevida ou ilegítima participação no MP.
(...)
23. Na continuação, procedeu-se à qualificação e ao interrogatório do
Paciente, sem que lhe tivesse sido feita nenhuma indagação acerca de sua
eventual participação em qualquer espécie de delito – (cópia do termo de interrogatório – anexo I, f. 147-165).
(...)
24. Diante disso, está evidenciado que o citado interrogatório configura
ato judicial impertinente e imprestável (sem finalidade), além de ilegal e injusto,
e de ter causado grave constrangimento ao Paciente, concessa maxima venia.
608
R.T.J. — 208
25. Ainda deve ser ressaltado: hoje completa (um) ano, 3 (três) meses e 20
(vinte) dias que o Inquérito n. 547-SP foi distribuído, sem que o mesmo tenha sido
concluído.
25.1 Para complementar esse quadro de arbítrio e de ilegalidades, desde o
dia 16.01.08, o Inquérito se encontra com vista ao Órgão Ministerial, embora isso
seja absolutamente ilegal.
26. Por essa razão, também não está sendo observada a garantia constitucional da “razoável duração do processo”, que se encontra estipulada no art. 5º,
inciso LXXVIII, da Carta Política da República.
(...)
31. Portanto, o Inquérito n. 547-SP não poderia estar em andamento,
porque: A Corte Especial não determinou a sua abertura, e não autorizou a continuidade da investigação, iniciada no TRF-3.
Diante do primado do due process of law, não se pode admitir que um inquérito judicial seja iniciado sem ter base num acórdão, e que não seja concluído
sem pronunciamento da Corte Especial, com competência para autorizar a sua
instauração.
(...)
37. Em razão disso, referido inquérito, que se encontra em andamento,
é totalmente ilegal e arbitrário, porque: foi contrariado o princípio estatuído no
art. 33, parágrafo único, ambos da Lei Complementar n. 35/79, assim como foi
violado o art. 5º, do Estatuto Maior, que assegura o seguinte, verbis:
“LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal;”
38. Também deve ser levado em conta: a competência, exclusiva, para “processar e julgar” desembargador – eventualmente acusado da prática de delito
comum – é do Superior Tribunal de Justiça, ou seja, da Corte Especial, nos exatos
termos do art. 105, I, “a”, da Carta Política, c.c. o art. 11, I, do RISTJ.
39. Acrescente-se: o art. 6º, caput, da Lei n. 8.038, de 28.05.90 estipula que
compete ao Tribunal deliberar sobre o recebimento ou rejeição da denúncia ou
queixa.
Pelo mesmo motivo, compete à Corte Especial deliberar sobre o prossegui­
mento de investigação (art. 33, parágrafo único, da Loman) contra desembargador,
isto é, acerca do cabimento de abertura de inquérito judicial criminal.
A mesma competência haverá de prevalecer, em relação a deferimento ou
indeferimento de medida cautelar (quebra de sigilo telefônico, bancário, fiscal, e
expedição de mandado de busca domiciliar).
(Fls. 12 a 25 – grifos no original.)
Alegam que as provas produzidas através das escutas telefônicas, da expedição de mandados de busca e apreensão e pelas quebras de sigilo bancário e fiscal
seriam provas ilícitas e ilegítimas, devendo ser desentranhadas dos autos (fl. 32).
Por todo o exposto, sustentam a manifesta e total ausência de justa causa
para a tramitação do inquérito contra o Paciente.
Requerem, liminarmente, que “seja determinada a pronta suspensão do
andamento do Inquérito Judicial n. 547/SP (...) até o julgamento final da presente ordem, (...), determinando, ainda, a imediata devolução dos autos, que se
encontram com carga ao Ministério Público Federal, desde 16-01-08 (...)” (fls.
39/40 – grifos no original).
R.T.J. — 208
609
No mérito, pedem:
(...)
a) – Trancar do Inquérito n. 547-SP, em relação específica ao paciente Nery
da Costa Júnior, pelo fato de não existir nenhuma acusação contra si, ou a exclusão do seu nome da relação dos investigados (indiciados), ou
b) – Decretar a anulação do Inquérito n. 547-SP, que tramita perante a
Corte Especial do STJ, extensivo àquele que o originou, no âmbito do TRF-3,
o Inquérito n. 740-SP, porquanto ressentidos ambos de utilização da necessária
apreciação das cortes especiais para a continuação da investigação, fenômeno
que viciou ab ovo todo o procedimento, malferindo de morte prerrogativa do magistrado paciente em ver-se investigado somente pelo Poder Judiciário, na forma
legal, sendo certo que a autoridade coatora, na realidade, ante a ausência de pronunciamento da Corte, propiciou que o magistrado fosse investigado por provo­
cação da Polícia e do MPF, limitando-se a deferir ou não medidas pleiteadas fora
do Poder Judiciário. Nulidade absoluta.
Que seja declarado, nesse andar, a nulidade da decisão monocrática lavrada pelo Des. Federal Batista Pereira, do TRF-3, que determinou a remessa do
Inquérito n. 740-SP, daquela corte regional ao STJ, porquanto sem fundamentação jurídica, e sem prévio exame da corte especial daquele regional, providência
tomada em homenagem a “cautela”, sem qualquer notícia das razões jurídicas
que a justificasse, e principalmente sem indicar qual seria o investigado, com foro
perante o STJ.
Que sejam, por fim, declaradas nulas as decisões lançadas pela autoridade
indicada coatora, que autorizou as interceptações de comunicações telefônicas,
de quebra de sigilo bancário, fiscal, e que determinou as expedições de mandados de busca e apreensão (...).
(Fls. 40/41 – grifos no original.)
O pedido de liminar foi indeferido e decretado o sigilo dos autos por
referir-se a processo que tramita em segredo de justiça no Superior Tribunal de
Justiça (fls. 46 a 54).
As informações foram prestadas à fl. 62 e encaminhado o documento de
fls. 63 a 73.
O Ministério Público Federal, pelo parecer do ilustre SubprocuradorGeral da República, Dr. Wagner Gonçalves, manifestou-se pelo não-conhecimento do writ e, se conhecido, pela denegação da ordem (fls. 80 a 89). Juntou,
ainda, cópia da denúncia oferecida contra o Paciente no Superior Tribunal de
Justiça (fls. 90 a 321).
É o relatório.
VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Senhor Presidente, V. Exa. me
permite, em primeiro lugar, fazer uma saudação especial ao eminente advogado
que usou da tribuna, que, todos nós sabemos, é uma das honras e das glórias da
610
R.T.J. — 208
advocacia criminal brasileira. E é sempre para esta Corte um privilégio contar
com a participação de um advogado desta qualificação profissional e pessoal.
Há, inicialmente, uma questão que eu gostaria de argüir perante esta Corte
e que diz respeito àquela preliminar que foi posta pelo Ministério Público, no
sentido de que toda impetração, como tive a cautela de indicar e o eminente
advogado, da tribuna, enfatizou, dirige-se contra o procedimento de inquérito
judicial, inquérito que foi transferido ao Superior Tribunal de Justiça, exatamente considerando a qualificação profissional de um dos investigados, que é
Juiz do Tribunal Regional Federal, e por essa razão, evidentemente, no momento
em que aparece uma figura que detém essa prerrogativa de foro, o inquérito é
deslocado, automaticamente, para o Tribunal Superior competente e, em alguns
casos, até mesmo para a Suprema Corte.
O grande ataque formulado a essa questão do inquérito diz com a sua
absoluta ilegalidade, no sentido de que o inquérito foi conduzido pelo Relator,
houve a participação do Ministério Público e em nenhum momento a Corte
Especial do Tribunal atuou nesse inquérito, autorizando esta ou aquela diligência, considerando que todas as diligências foram determinadas por iniciativa do
próprio Relator.
Houve a denúncia e, evidentemente com ela, o inquérito fica ultrapassado,
porque, formulada, a denúncia é uma conseqüência do inquérito; se há o inquérito e o Ministério Público, no curso do inquérito, oferece a denúncia, a denúncia suplanta o inquérito. E o Ministério Público argüiu esse aspecto no tocante à
superação da matéria objeto da impetração.
O Doutor Manoel Cunha Lacerda ingressou imediatamente com petição
em resposta a essa preliminar do Ministério Público. Nessa judiciosa petição, S.
Exa., o eminente advogado, procurou demonstrar que houve uma questão que ele
entende inédita, ou pelo menos, diria eu, não-inédita, porque em Direito não há
nada inédito, mas pelo menos insólita, no sentido de que tão logo tenha sido apresentada a denúncia, a denúncia foi apresentada, e logo em seguida o Ministério
Público requereu a complementação de algumas provas.
Então, diz o eminente advogado em sua judiciosa petição, essa circunstância específica poderia induzir ao entendimento de que a denúncia estaria suspensa em virtude da realização deste pedido de nova prova no bojo do inquérito,
ou seja, equivaleria a uma conversão do inquérito em diligência.
Então o ponto agora, nesta preliminar, é saber o seguinte: vamos nós entender que essa solicitação de complementação de uma prova significa efetivamente, concretamente, um retorno ao status quo ante da denúncia, isto é, a uma
conversão do inquérito em diligência e, portanto, a uma suspensão da denúncia,
como põe o eminente advogado ou vamos nós entender que, de fato, existe já
uma denúncia apresentada e que até mesmo no corpo da denúncia é possível
o requerimento de novas provas e, aí, caberia o recurso próprio, dentro do
Superior Tribunal de Justiça, contra o despacho do eminente Ministro Relator,
R.T.J. — 208
611
que é o eminente Ministro Felix Fischer, que deferiu esse requerimento, segundo
esclarece a petição do eminente advogado? É claro, S. Exa. sabe muito bem que
eu estou me louvando na fé pública do advogado, porque nos autos, evidentemente, não há nenhum elemento que possa indicar essa circunstância.
Eu então gostaria de, preliminarmente, submeter essa questão à Suprema
Corte, ou seja, vamos entender desta maneira ou vamos entender da outra?
Como essa questão, Senhor Presidente, se V. Exa. assim autorizar, não foi dada
à defesa na sustentação que fez o eminente advogado, o eminente Procurador
fez apenas uma referência, qualquer questionamento, se V. Exa. assim autorizar,
também “de maneira inédita”, eu teria muito prazer em ouvir.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Inédita, sem ser insólita.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Sem ser insólita. Eu teria muito
prazer em ouvir o eminente advogado sobre essa questão.
O Dr. José Carlos Dias (Advogado): Com todo o respeito, eu gostaria de
uma questão de ordem para suscitar o seguinte: há uma denúncia, mas essa denúncia não tem nenhum peso, porque não foi recebida. Ela foi oferecida logo
após a impetração do habeas corpus, mas ela está lá.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): É a questão que S. Exa. coloca
com a ponderação de ouvirmos a respeito.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Estou pondo exatamente essa
questão.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Eu só pediria a V. Sa. para
exercer poder de síntese maior na exposição do ponto de vista da defesa.
O Dr. José Carlos Dias (Advogado): Pois não. Entendo que, se nós estamos
sustentando a imprestabilidade de tudo aquilo que foi colhido na fase pré-processual, parece-me que isso perde relevância, porque a nossa tese não é contra a
denúncia, a nossa tese é contra todo aquele amontoado de indícios que forneceriam elementos para a denúncia.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): A colocação do Relator parte
do princípio da eventualidade de virmos a entender que as investigações foram
válidas e que, uma vez apresentada a denúncia, não há mais como articular esse
defeito originário e embrionário.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Teria de ser articulado na de­
núncia.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): De qualquer forma, vou ouvir,
depois, o Relator, muito embora já tenha convencimento a respeito.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Então V. Exa. pode dizer o convencimento de V. Exa., como sempre o faz. Com muito prazer, é claro.
V. Exa. foi exatamente no ponto. A dificuldade maior é que há uma denúncia que não foi recebida, foi apresentada a denúncia.
612
R.T.J. — 208
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): O que é o inquérito, em si, na
maioria das vezes? É o estágio embrionário, considerada a persecução criminal.
Penso que a situação se assemelha àquela em que a denúncia é apresentada – e
é apresentada com defeito –, a parte impugna à primeira hora, insiste nessa
impugnação, vem à balha uma sentença e o Tribunal, concluindo pelo defeito,
torna insubsistente o processo como um todo, pouco importando a existência de
decreto até mesmo condenatório. Mostra-se interessante a matéria.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Isso que V. Exa. falou tem tanta
força que, na realidade, pode-se, no curso da denúncia, por via de habeas cor­
pus, invalidá-la por ilegalidade. E esse caso que está aqui é exatamente isso.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Porque senão seria admitirmos
a eficácia da denúncia, a ponto de afastar do cenário jurídico defeito por inobservância de forma imposta em lei.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Parece-me que aqui há um outro dado.
Conforme afirma o nobre Relator, com base nas informações prestadas pelo
eminente Advogado, foram pedidas novas diligências.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Isso reforça.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Reforça isso porque, não recebida, poderia, por exemplo, essa denúncia viabilizar-se por outro caminho, pode haver
uma mudança na tipificação, enfim, estou dizendo do ponto de vista de tese,
apenas.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Não quero com isso assentar
que a oferta da denúncia visou a suplantar o defeito e afastá-lo do cenário.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Sim. Apenas para reforçar a tese de V. Exa.
exatamente sobre o significado jurídico disso.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Mas é interessante.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): O que me parece mais grave,
Presidente, do que V. Exa. assinalou agora, e também a Ministra Cármen
Lúcia, e a questão é tão interessante que comporta realmente essa reflexão,
é que, pelo que está dito pelo eminente advogado, quando foi apresentada a
denúncia, e esse é um fato relevante, houve um requerimento de complementação de prova, com relação à denúncia. Ora, neste momento o defeito passa
para o campo da denúncia, não para o campo do inquérito, porque como é
possível a apresentação da denúncia com um pedido de reabertura de prova
para a sua apresentação?
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Para respaldar o oferecimento
da denúncia.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Então, o inquérito em si mesmo
está morto, está jogado no limbo.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Em termos, porque, na maioria
das vezes, quando há um inquérito e, posteriormente, a denúncia, os elementos
R.T.J. — 208
613
coligidos na fase precedente servem a respaldar a própria denúncia em termos
de indícios da autoria, de materialidade do crime. É interessante a matéria.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Mas veja bem, aqui o que está
me chamando a atenção, e o eminente Doutor José Carlos Dias nos ajudará a
refletir, é que a leitura do habeas corpus, tecnicamente, o eminente advogado
nos ajudará, não impugna esta ou aquela prova. O que o habeas corpus impugna
objetivamente é o fato, primeiro, de ter o inquérito seguido no Superior Tribunal
de Justiça sem a participação do Plenário da Corte Especial. Segundo.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): A colocação em segundo plano
do parágrafo único do art. 33 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Exatamente isso. Terceiro, a
intervenção indevida do Ministério Público.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Ou seja, faltou o exercício da competência
do órgão, e essa omissão gerou, portanto, um ato.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Então, o que ocorre? Exatamente
isso que o Ministro Marco Aurélio acabou de falar, só que com um terceiro
fato, que é a participação que seria indevida do Ministério Público. O Relator
mandou o Ministério Público opinar sobre diversas providências.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Antes do crivo do Colegiado,
sim, porque ele pode requerer diligências, mas como o pressuposto do curso do
inquérito contra o magistrado é o pronunciamento do Órgão Especial, esse pronunciamento teria de preceder o implemento de diligência.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Claro. O que é que me chama a
atenção? O que é que me chama a atenção nos autos? É que, admitindo possível
a não-prejudicialidade do habeas corpus, com relação ao inquérito, nós podemos examiná-lo e, se examinando, entendermos que o inquérito padece desses
vícios, repercutir sobre a denúncia.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Por conseqüência, cai a
denúncia.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Então, a meu sentir, é tecnicamente melhor, do ponto de vista jurídico, que nós enfrentemos o habeas corpus.
Se porventura a impetração do habeas corpus tivesse como objeto a realização
das diligências ou de alguma prova especificamente, eu confesso a V. Exa. que
transferiria para a denúncia, porque, como há uma falha de prova, transfere-se
para a denúncia.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): É o raciocínio correto.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): E a denúncia pode ser atacada, nem se espera a recepção pelo Órgão Especial. Eu participei, com muita
honra, com muita alegria e com muita felicidade da Corte Especial do Superior
Tribunal de Justiça e nós cansamos de verificar que muitas vezes pode ocorrer, antes do recebimento da denúncia, recursos à Corte Especial para que a
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R.T.J. — 208
denúncia possa ser obstada aqui ou ali por um recurso contra decisão do Relator.
Freqüentemente, pode levar à Corte Especial. Quando não, um trancamento direto da denúncia, por essa falha, aqui, pela via do habeas corpus, no Supremo
Tribunal Federal. Mas o que me chama a atenção, aqui, é que isso não está contido em habeas corpus. O que está contido no habeas corpus é o defeito formal
da realização do inquérito.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): A contaminar a denúncia
ofertada.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): A contaminar a denúncia.
Então, eu, embora reconheça que a ponderação do Ministério Público é extremamente forte, inclino-me, do ponto de vista técnico, a não considerar prejudicado o habeas corpus e a enfrentá-lo, considerando essas peculiaridades. Eu,
portanto, rejeito essa preliminar de prejudicialidade.
VOTO
(Sobre preliminar)
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, igualmente acompanho o Relator, exatamente porque, na discussão, se fez clara a questão, ou seja,
não é um ato contido naquele inquérito, mas é a sua realização quando ausente
o órgão competente, nos termos da Constituição e da própria Lei Orgânica da
Magistratura. Acompanho-o integralmente.
Quero apenas, Senhor Presidente, rapidamente, também, fazer minhas
as palavras do eminente Ministro relator quanto à honra com que ouvimos,
aqui, o eminente Professor José Carlos Dias, para dizer que, conforme V. Exa.
tem cansado de repetir, a advocacia é imprescindível à administração da boa
Justiça, mas é essencial quando bem exercida. É exatamente nesse sentido que
o eminente Advogado é, realmente, um mestre que honra a advocacia brasileira
e, portanto, garante todos os jurisdicionados que somos todos nós, cidadãos
brasileiros.
Acompanho o voto do Relator quanto à preliminar.
VOTO
(Sobre preliminar)
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, eu queria,
inicialmente, associar-me às palavras do eminente Ministro Carlos Alberto
Direito, elogiando esse grande Advogado do meu Estado; cumprimentar, também, S. Exa. pela clareza da sustentação oral que fez, e dizer que acompanho o
Relator na rejeição da preliminar. Como foi alegado da tribuna, podem, eventualmente, existir vícios formais no inquérito aptos a contaminar a denúncia.
Portanto, acompanho o voto do eminente Relator nesse aspecto.
R.T.J. — 208
615
VOTO
(Sobre preliminar)
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Adiro às manifestações e sem
que S. Exa. tenha receio quanto à regra: quase sempre quando o magistrado elogia o advogado tende a votar contra os interesses por ele defendidos.
Acompanho também o Relator. Trata-se, segundo a Lei Orgânica da
Magistratura Nacional, já que o preceito do parágrafo único do art. 33 é imperativo, de formalidade essencial. E se o inquérito foi formalizado – ainda não
estou afirmando peremptoriamente que isso ocorreu – à margem da exigência
legal, evidentemente, a denúncia, confeccionada a partir dos dados levantados
nesse inquérito, inclusive com atos de constrição da maior envergadura, como
a interceptação telefônica, ficou contaminada. Não há o prejuízo, portanto, do
habeas corpus impetrado.
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Se os Colegas me permitirem,
até mesmo para fazer um contraponto, gostaria de veicular que o parágrafo
único do art. 33 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, já apontada, inclusive, como o “Código Penal dos Magistrados”, é muito categórico ao revelar,
com a natureza imperativa, formalidade essencial para dar-se o curso da investigação contra magistrado:
Parágrafo único. Quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do magistrado, [ocorreu lá, daí o deslocamento do inquérito do Tribunal Regional Federal para o Superior Tribunal de Justiça] a autoridade
policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos [já que o inquérito não
depende da intermediação do Judiciário para ser instaurado, pode ser instaurado
até pela autoridade policial] ao tribunal ou órgão especial competente para o julgamento, [houve a remessa pelo Regional Federal, aí, vem a finalidade, e a finalidade
está em bom vernáculo] a fim de que prossiga na investigação.
Ou seja, mostra-se condição inafastável, a partir do momento em que vier
a sinalização de envolvimento de magistrado, que o Tribunal ou órgão especial
delibere se deve, ou não, haver a continuidade da investigação.
A formalidade faz-se essencial à valia de atos a serem praticados no
campo investigatório quando se tratar de magistrado. Estamos numa época que
já apontei, falando à imprensa, como de purificação nacional, em bom sentido.
Não é época de justiçamento. Em época de purificação nacional, o cuidado nesse
afã persecutório com as franquias deve ser enorme.
Preocupa-me muito a divergência que maior descrédito pode causar ao
Judiciário, a divergência intestina. Quando cogitamos de Supremo, imaginamos
órgão único a atuar, mas não é o que ocorre no Brasil, que, em última análise,
conta com três Órgãos: Primeira e Segunda Turmas e Plenário.
616
R.T.J. — 208
Em 1998, como ressaltado da tribuna pelo proficiente, dedicado e exemplar profissional da advocacia Doutor José Carlos Dias, a Segunda Turma – mas
não é Segunda em gradação, está no mesmo patamar da Primeira – acabou por
assentar a eficácia, por afastar a inocuidade desse preceito e, julgando o HC
77.355-8/RS a uma só voz, porque a decisão foi unânime, proclamou:
Investigação de denúncia [denúncia aqui é delação, não é peça primeira
da ação penal] Envolvimento de magistrado – Formalidade. A teor do disposto
no parágrafo único do art. 33 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Lei
Complementar 35, de 14 de março de 1979 –, a continuidade [e tivemos essa
continuidade, desmembramentos, chegando-se posteriormente a uma denúncia
apresentada cogitando-se de novos dados para respaldá-la, não de novos dados
para se ter a condenação criminal, porque não teria havido sequer ainda o recebimento da própria denúncia] de investigação, a remessa do processo ao Ministério
Público [que ocorreu na espécie] e o oferecimento, ou não, de denúncia, [já houve
o oferecimento, é polivalente até esta ementa] pressupõem, [no plural] uma vez
envolvido magistrado, a manifestação prévia do tribunal ou do órgão especial a ele
integrado [ou, se a competência evidentemente for de outro tribunal, do tribunal
competente]. A condição é essencial à valia de qualquer dos atos referidos, [remessa ao Ministério Público, diligência e também recebimento da denúncia], não
se podendo cogitar de preclusão decorrente de já haver sido recebida a denúncia.
Se já houvesse até mesmo condenação, decreto condenatório, também não
prejudicaria, como acabamos de assentar que não prejudicou a oferta da denúncia, a observância da formalidade.
Conclusão da Turma:
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Su­premo
Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e
das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir o habeas corpus,
para determinar o trancamento da ação penal [naquele caso já havia ação penal,
aqui não há ainda ação penal, porque, pelo menos, ainda não tive notícia de recebimento da denúncia] por falta de justa causa.
Então, se, na Primeira Turma, caminharmos no sentido de adotar óptica
diferente, já que não cabem embargos de divergência para o Plenário, em caso
de descompasso de entendimento, a distribuição terá sabor lotérico.
Eu, por exemplo, estou convencido de que, de duas, uma: ou se tem o parágrafo único como inócuo e, aí, estaríamos no campo do faz-de-conta; ou damos
eficácia a esse parágrafo único com as conseqüências próprias. É o preço que se
paga por viver em um Estado Democrático de Direito, e o respeito irrestrito às
regras estabelecidas é um preço módico.
Por isso, Ministro Menezes Direito – até mesmo porque não posso, depois
de dez anos, excomungar o filho que foi apresentado, o precedente, e é um filho
bonito –, pedir vênia a V. Exa. – e a Turma esteve sob a Presidência do cuidadoso Ministro Néri da Silveira, creio que o Doutor José Carlos Dias se referiu
à composição da Turma considerados também os Ministros Nelson Jobim e
R.T.J. — 208
617
Maurício Corrêa – para conceder o habeas corpus. Assim o faço, conforme já
disse, porque não posso admitir o oferecimento da denúncia como um drible à
observância do parágrafo único em análise. Nesse caso concreto que julgamos
na Segunda Turma, já havia inclusive o recebimento.
Mostra-se muito interessante a matéria. Perdoem-me ter adiantado o ponto
de vista, até mesmo considerado o precedente da Segunda Turma, que é de minha lavra.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Mas, Ministro Marco Aurélio,
acho que V. Exa. fez muito bem, como sempre. A nossa Turma tem essa beleza de nós podermos votar com a mais absoluta liberdade, de acordo com o
convencimento e sem essa ordem pré-estabelecida, porque um pode ajudar no
esclarecimento do outro.
Eu mantive esse entendimento, e peço vênia a V. Exa. para insistir na manutenção desse entendimento, porque a interpretação que nós temos dado, pelo
menos na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, é no sentido de que é
distribuída à Corte Especial sim.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): No Supremo, tem-se a interpretação a que me referi.
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): É remetido à Corte Especial
sim, mas é remetido e distribuído ao Relator e o Relator então conduz o processo, porque o fundamento básico é que senão nós teríamos de ter o recebimento do inquérito, depois o recebimento da denúncia e depois o julgamento
da ação penal.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Penso ser o previsto no parágrafo único do citado art. 33. Em que situação concreta haveria a aplicação do
preceito?
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Então, o que diz o Tribunal? Diz
o Tribunal que esse procedimento é feito pela Corte Especial por intermédio do
Relator, que é o titular das providências com relação ao inquérito.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Em um inquérito normal, a
partir do momento – até mesmo pela repercussão, considerada a instituição em
si, o Judiciário – em que se verifica o envolvimento de magistrado, requer-se o
atendimento de uma condição, para mim de procedibilidade do inquérito, que é
o crivo do Colegiado, sob pena de relegarmos à inocuidade o que está no parágrafo único do art. 33 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
PROPOSTA DE REMESSA AO PLENO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, peço licença e
escusas por ter interrompido V. Exa., mas pensei que V. Exa. já havia terminado
seu raciocínio.
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R.T.J. — 208
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Terminei. Como dizia o
Ministro Nelson Jobim, sou igual àquele ferrinho do dentista lá no nervo
exposto.
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, eu gostaria de
fazer uma reflexão juntamente com os eminentes Pares, no seguinte sentido.
O tema em debate aqui é da maior magnitude, envolve prerrogativa da magistratura e também a competência do Plenário desta Casa. Indago aos eminentes Colegas, já fazendo esta sugestão, salvo melhor juízo do eminente Relator,
que talvez fosse prudente afetarmos esta matéria ao Plenário.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Se pudesse adentrar o campo
da premonição e saber o convencimento dos meus dois Colegas, julgaria aqui
mesmo, mas não posso e há o receio de termos o descompasso dentro do próprio
Supremo.
VOTO
(Sobre proposta de remessa ao Pleno)
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, considero pertinente a
proposta do eminente Ministro Ricardo Lewandowski, apesar de já saber como
votar, pelo menos até que venham novos argumentos, mas entendo haver dois
fatos que talvez fossem necessários. Primeiro, porque há um precedente; mas,
conforme V. Exa. muito bem lembrou, estamos numa quadra histórica, quando
especialmente se trata do julgamento de determinadas pessoas.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): A precipitação partindo-se
para o justiçamento.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Acredito que no Plenário, não.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Não, digo em geral, no con­
texto.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Exatamente. Então, por conta disso e como
os habeas corpus têm sempre preferência nos julgamentos do Plenário, seria
talvez de todo conveniente para se fixar de maneira mais definitiva o tema. É
claro que aqui é um julgamento que, para este caso, valerá, mas o julgamento do
Plenário do Supremo Tribunal prevalece e tem imediato reflexo, inclusive para
os outros órgãos que, eventualmente – como bem disse o eminente Ministro
Relator –, têm tido um convencimento, como no caso do Superior Tribunal de
Justiça, que eventualmente contraria o do Supremo, e isso não mais acontecerá,
a evitar prejuízos como esses aqui alegados.
Então, eu poderia votar, mas realmente entendo que seria muito conveniente que se afetasse o feito ao Plenário.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Teremos a satisfação de ouvir
novamente o Doutor José Carlos Dias.
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Que o Professor Geraldo Ataliba dizia
ser o melhor advogado criminalista do Brasil, porque era o advogado que ele
R.T.J. — 208
619
chamaria num caso de necessidade, e acabou precisando e chamando. Então é a
voz abalizada de alguém como o Professor Ataliba.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): E não devemos esquecer também que o chicote muda de mão!
EXTRATO DA ATA
HC 94.278/SP — Relator: Ministro Menezes Direito. Paciente: Nery da
Costa Júnior. Impetrantes: Manoel Cunha Lacerda e outros (Advogados: Suzana
Ribeiro Miranda Tamassia e José Carlos Dias e outros). Coator: Relator do
Inquérito 547 do Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Rejeitada a preliminar, a Turma decidiu afetar o julgamento do
presente habeas corpus ao Tribunal Pleno. Unânime. Falaram: o Dr. José Carlos
Dias, pelo Paciente, e o Dr. Rodrigo Janot, Subprocurador-Geral da República,
pelo Ministério Público Federal. Ausente, justificadamente, o Ministro Carlos
Britto.
Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros
Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Ausente, justificadamente, o Ministro Carlos Britto. Subprocurador-Geral da República, Dr.
Rodrigo Janot.
Brasília, 12 de agosto de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Senhor Presidente, deixei de
mencionar, mas o eminente advogado certamente irá fazê-lo. Há uma preliminar resistente, considerando que, a esta altura, o Superior Tribunal de Justiça já
teria recebido a denúncia. O eminente advogado provavelmente fará referência
da tribuna.
PRELIMINAR
O Sr. Ministro Menezes Direito: Há uma questão preliminar posta pelo
Ministério Público no sentido de que toda a impetração dirige-se contra o inquérito que foi instaurado e posteriormente transferido ao Superior Tribunal de
Justiça, tendo em vista que um dos investigados é Juiz do Tribunal Regional
Federal com sede em São Paulo. Ocorre que a denúncia já foi oferecida e
com isso, ainda de acordo com o Ministério Público, o habeas corpus estaria
prejudicado.
Estou rejeitando a preliminar. Se o habeas corpus está atacando a investigação marcando a existência de vícios insanáveis e se a denúncia está apoiada
nessa investigação, evidentemente que deferido o habeas corpus cai por terra a
denúncia. Isso quer dizer que nossa decisão no habeas repercute na denúncia,
daí não haver razão forte o bastante para que se afirme a prejudicialidade considerando a realidade dos autos.
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R.T.J. — 208
VOTO
O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Conforme relatado, a impetração volta-se contra ato do Ministro Felix Fischer, do Superior Tribunal de
Justiça, Relator do Inquérito 547/SP, buscando o trancamento do feito no qual se
investiga o Paciente e outros indiciados por suposta prática de crimes contra a
administração pública, lavagem de dinheiro e contra a ordem tributária.
São, em síntese, as alegações da impetração: a) violação do princípio do juiz
natural, porque o Superior Tribunal de Justiça não deliberou sobre a instauração
do inquérito judicial contra o Paciente; b) ausência de autoria do crime imputado
ao Paciente e de “hipotético fato típico que servisse para justificar a abertura de
inquérito” (fl. 4); c) indevida atuação da Polícia Federal no inquérito; e d) “determinação ilegal de vista dos autos ao Ministério Público Federal pela autoridade
coatora” (fl. 7), o que estaria a causar violação do sigilo do inquérito.
Na hipótese, não há elementos aptos a sustentar os fundamentos da impetração, já que não há nenhuma indicação de ato ilegal ou abusivo por parte do
Ministro do Superior Tribunal de Justiça a configurar constrangimento ilegal.
Consta dos autos que o inquérito em questão teve início no Tribunal
Regional Federal da 3ª Região, em virtude das declarações prestadas pelo Sr.
Lúcio Bolonha Funaro ao Ministério Público Federal, que delatou o Juiz Federal
Manoel Alves pela prática de corrupção passiva. Instauradas as investigações,
aquele Tribunal Regional autorizou a quebra do sigilo telefônico de diversas
pessoas, surgindo daí a suspeita de participação de alguns Magistrados daquele
Regional nos fatos criminosos, entre eles a do ora Paciente, tendo, por isso, sido
o inquérito remetido ao Superior Tribunal de Justiça, onde foi autuado como
Inquérito 547/SP, distribuído ao Ministro Felix Fischer.
Passo à análise das alegadas irregularidades.
Quanto à alegação de desrespeito ao princípio do juiz natural, porque o
Superior Tribunal de Justiça não deliberou sobre a instauração do inquérito judicial contra o Paciente, é vazia e desprovida de fundamento jurídico.
A remessa dos autos do inquérito ao Superior Tribunal de Justiça deuse por estrito cumprimento à regra de competência originária, prevista na
Constituição Federal (art. 105, inciso I, alínea a), em virtude da suposta participação do Paciente, Juiz Federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região,
nos fatos investigados, não sendo necessária a deliberação da Corte Especial
daquele Superior Tribunal para a instauração desse procedimento. Cabe à Corte
Especial receber ou rejeitar a denúncia, conforme o caso, sendo desnecessária
a sua autorização para a instauração de inquérito judicial. Entendo que não se
pode dar ao art. 33, parágrafo único, da Loman esse alcance. Ao contrário, o que
ali se contém é a indicação de que havendo indício da prática de crime por parte
de Magistrado, desloca-se a competência ao Tribunal competente para julgar a
causa a fim de que prossiga a investigação. É, portanto, regra de competência.
No Tribunal, o inquérito é distribuído ao Relator, a quem cabe determinar as
diligencias próprias para a realização das investigações, podendo chegar até ao
R.T.J. — 208
621
arquivamento. No dispositivo não existe conteúdo normativo impondo seja submetido ao órgão colegiado desde logo a autorização para que siga o inquérito.
A investigação prosseguirá no Tribunal competente sob a direção do Relator ao
qual for distribuído o inquérito, cabendo-lhe, portanto, dirigir o inquérito.
Conforme ressaltou o ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr.
Wagner Gonçalves, em seu parecer, “os impetrantes, ao defenderem a prévia
autorização da Corte Especial para a abertura do inquérito, tentam criar uma
verdadeira condição de admissibilidade para as investigações, desfigurando,
assim, o caráter inquisitivo daquele procedimento. Não há contraditório em
sede de inquérito, ainda que judicial, pois ‘trata-se de uma instrução provisória, preparatória, informativa’ (Julio Fabbrini Mirabete, in Processo Penal,
Ed. Atlas, 8ª edição, pág. 76)” (fl. 85 – grifos no original).
São desprovidas de fundamentos jurídicos as alegações de que o inquérito
em questão se transformou em procedimento da Polícia Federal e, ainda, de que
há intromissão não autorizada do Ministério Público Federal nas investigações.
Como titular da ação penal (art. 129, incisos I e VIII, da Constituição
Federal), a investigação dos fatos tidos como delituosos é destinada ao Minis­
tério Público Federal. Por esse motivo é que o Ministério Público deve necessariamente participar das investigações, requerendo as diligências que se fizerem
necessárias. Com base nos indícios de autoria, e se comprovada a materialidade dos crimes, oferecerá a denúncia ao órgão julgador. O Ministério Público
Federal é o órgão constitucionalmente competente para oficiar nos Tribunais
Superiores, especialmente nos feitos de sua competência originária, não havendo, a meu sentir, nenhuma irregularidade na decisão que determinou a vista
dos autos àquele Parquet. Assim, não há falar em sigilo das investigações relativamente ao autor de eventual ação penal. Como assinalou o Dr. Wagner
Gonçalves em seu parecer, “Seria ilógico opor sigilo ao órgão ministerial se
toda a investigação é dirigida a ele, para que analise todos os dados colhidos
durante a investigação e forme a sua opinio delicti” (fl. 85).
O Ministério Público Federal informou, nestes autos, que a denúncia já foi
oferecida contra o Paciente e outros 15 acusados, em 26-5-08, mas ainda não
apreciada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (cópia às fls. 93
a 321).
Igualmente não se sustentam os argumentos da impetração no ponto em
que afirma que o inquérito transformou-se em procedimento da Polícia Federal.
É legitimamente autorizada a delegação dos atos instrutórios do inquérito à
Polícia Federal, que os executa por expressa autorização legal e regimental. Os
autos bem demonstram tratar-se de inquérito que tramita no Superior Tribunal
de Justiça, sob o comando de Ministro daquela Corte Superior de Justiça, que é
a autoridade ora apontada como coatora, ao qual caberá dirigir o processo sob
a sua relatoria, devendo tomar todas as decisões necessárias ao bom andamento
das investigações. Vale relembrar, para que fique bem claro, que ao Juiz compete comandar as providências necessárias no curso do inquérito. A autoridade
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R.T.J. — 208
policial, portanto, subordina-se à autoridade judiciária, seja para determinar
quebra de sigilo, seja para determinar medidas restritivas da liberdade.
É preciso ficar claro que o Ministro Relator na Corte Especial é que tem
competência para dirigir o inquérito. Assim, nesse cenário, não se impõe a
autorização prévia do colegiado para o curso da investigação. Não vislumbro,
portanto, nenhum amparo na interpretação do impetrante em torno do art. 33,
parágrafo único, da Loman.
No que concerne aos indícios de autoria e à comprovação da materialidade
dos crimes imputados ao Paciente, o Ministério Público Federal ressaltou a participação do Paciente nos fatos investigados, nos seguintes termos:
(...)
22. Há, também, fortes indícios da participação do ora paciente na organização criminosa, consoante informações prestadas neste writ pelo Subprocurador
Geral da República Francisco Dias Teixeira, que está atuando no caso, às fls.
66/69:
“(...) Conforme já assinalado, dentre os magistrados federais com
quem Luís Roberto Pardo mantinha relacionamento suspeito surgiu Nery
da Costa Júnior, e assim é que, em face de representação da autoridade policial responsável pelas investigações, essa D. Relatoria autorizou fosse-lhe
estendida a interceptação de comunicação telefônica (apenso nº 16 do Inq
547/SP, fls. 293/300 – doc. 5).
Dentre os diversos processos sobre os quais os interlocutores investigados conversavam, observou-se referência a um processo de interesse de
uma empresa por eles designada por ‘Ó’, na linguagem cifrada em que se
dava a comunicação.
Constatou-se que essa empresa era a Companhia Comercial OMB,
cujo administrador principal era José Carlos de Brito, que ajuizara um mandado de segurança perante a 21ª Vara da Justiça Federal em São Paulo-SP
(autos de nº 2001.61.00.003384-9), objetivando fosse-lhe reconhecido direito a lançamento de créditos de IPI.
Analisando-se esses autos de mandado de segurança, verificou-se
que o pedido de liminar fora indeferido, e contra essa decisão a OMB,
em 25/7/2001, interpôs agravo de instrumento, que veio a ser distribuído
à relatoria do Juiz-TRF Nery da Costa Júnior, membro da 3ª Turma daquela Corte (autos de nº 2001.03.00.023958-8), apensos nºs 379 e 380 do
Inq 547/SP – cópia em anexo). No dia seguinte à interposição do agravo de
instrumento, ou seja, em 26.7.2001, o juiz Nery Júnior concedeu à OMB a
pretendida liminar e, conseqüentemente, autorizou a empresa-agravante a
utilizar o alegado crédito-prêmio de IPI, inclusive para fins de compensação
com créditos de terceiros (apenso nº 379 do Inq 547/SP, fls. 339/341 – cópia
anexa).
Em 17/2/2004, foi proferida sentença concedendo parcialmente a
ordem. Contra essa sentença apelaram a União e a OMB. A apelação foi
distribuída em 11.1.2005, à relatoria do Juiz TRF Nery da Costa Júnior.
Em 21.7.2005, a OMB requereu ao Relator Juiz Nery da Costa Júnior
a expedição de ofício ao Delegado de Administração Tributária de São
Paulo, determinando-lhe o cumprimento da sentença, sob o fundamento de
R.T.J. — 208
623
que o recurso da União não tinha efeito suspensivo. Em 26.8.2005, o Juiz
Nery da Costa Júnior deferiu o pedido (apenso nº 378 do Inq 547/SP, fls.
558/559 – cópia anexa), e o ofício foi expedido nos termos em que a OMB
requereu.
Em 11.10.2006, a OMB novamente requereu ao Relator fosse determinada à Receita Federal o cumprimento da sentença, o que também foi
deferido apenso nº 378 do Inq 547/SP, fl. 581 – cópia anexa), vindo a ser
expedido o respectivo ofício.
A expedição de ofício judicial à autoridade fiscal determinando-lhe
o cumprimento da sentença, ao fundamento de que os recursos não tinham
efeito suspensivo, era indispensável para atender aos interesses da OMB,
já que o seu pedido administrativo havia sido definitivamente indeferido,
abrindo-se, assim, ensejo para sua autuação pelo não recolhimento dos
tributos declarados como tendo sido compensados com o crédito-prêmio
de IPI.
Encontrando-se o Juiz-Relator Nery da Costa Júnior afastado de
suas funções, em 29.11.2006, os autos foram à conclusão do relator substituto, o qual solicitou data para julgamento (apenso nº 378 do Inq 547/SP, fl.
645 – cópia anexa). O julgamento foi pautado para o dia 7 de fevereiro de
2007 (fl. 646). Porém, na sessão de 7/2/07, agora já presente o relator-titular,
Juiz Nery da Costa Júnior, este retirou de pauta o julgamento (fl. 647).
Assim, as decisões do Juiz Nery da Costa Júnior, membro do
TRF-3ª Região, nos autos do agravo de instrumento relativo ao mandado de segurança nº 2001.61.00.003384-9, viabilizaram à OMB a compensação de seus débitos tributários, a pretexto de crédito-prêmio de
IPI em total superior a 163 milhões de reais (valor que, atualizado nesta
data, supera 200 milhões de reais), não obstante pacífica jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça em sentido contrário.
Nas interceptações de comunicação telefônica verificou-se intensa
conversa entre Nery da Costa Júnior, Luís Roberto Pardo, Luiz João
Dantas e os administradores da OMB, Paulo Carlos de Brito e José Carlos
de Brito (além de outros intervenientes), em contexto que emanam indício
de que eles conversavam sobre o modo de se assegurar o interesse da empresa OMB, interesse esse que, conforme já dito, consistia em não levar a
julgamentos os recursos. (...)”
23. Diante disso, nota-se que o paciente, na qualidade de Desembargador
Federal, teria favorecido a empresa OMB, beneficiando-lhe com decisão totalmente contrária à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. São dignas de
destaque, ainda, as seguintes considerações do e. Representante ministerial à fl. 71:
“(...) durante as investigações, verificaram-se encontros entre Nery
da Costa Júnior, Luís Roberto Pardo e Luiz João Dantas em contexto que
levam a fundada suspeita de que eles estavam a tratar do interesse da empresa OMB (por eles referida por ‘Ó’), interesse esse que consistia em retardar o julgamento dos recursos de agravo de instrumento e de apelação,
já que não havia probabilidade de a empresa vir a ter êxito nesses recursos,
e assim, para ela, o interesse consistia em retardar o julgamento até que ela
consumasse a compensação dos créditos tributários, compensação esta
as­segurada por aquela medida liminar do Juiz-Relator Nery Júnior. Esses
encontros foram registrados fotograficamente por agentes da Polícia
Federal (...)”
624
R.T.J. — 208
24. Não se pode dizer, portanto, que o inquérito no STJ foi instaurado sem
indícios de autoria, tanto é assim que foi oferecida denúncia em desfavor do paciente e de outros quinze indivíduos no dia 26 de maio p. passado (v. andamento
processual em anexo). A peça acusatória atribui ao paciente a suposta prática dos
crimes previstos nos arts. 288 (quadrilha) e 319 (prevaricação). O MPF toma a
liberdade de anexar à presente manifestação a denúncia, esclarecendo que o faz
tendo em vista também o despacho de Vossa Excelência que decretou o sigilo deste
habeas corpus em consonância com o sigilo imposto no inquérito de origem. Só
por isso, aliás, constata-se que este mandamus perdeu seu objeto, pois se a pretensão do paciente era trancar o inquérito por falta de justa causa, há agora (com a
denúncia) fato novo, que alterou o status quo, que justificava, em princípio, esta
impetração.
(Fls. 86 a 89 – Grifos no original.)
Existindo crime em tese, este deverá ser apurado no devido curso do inquérito judicial. As investigações não importam, em princípio, ato arbitrário
por parte do Ministro Relator do Superior Tribunal de Justiça. Como visto,
trata-se de inquérito instaurado por representação da autoridade policial, no
qual foram investigadas mais de 50 pessoas, já agora com oferecimento da denúncia contra o Paciente e outros 15 acusados, e, desde que presente razoável
suspeita a propósito do seu comportamento, a persecução penal é conseqüência
natural que se impõe, segundo a norma do art. 6º do Código de Processo Penal,
sem que tanto configure arbitrariedade ou abuso de poder. Havendo impugnação quanto à denúncia, certamente o Paciente poderá adotar as providências
necessárias à defesa de seu direito, na oportunidade própria. No presente caso,
como já indicado, a denúncia foi apresentada mas ainda não foi apreciada.
De todos os modos, só resta lembrar que é firme a jurisprudência consagrada por esta Corte Suprema no sentido de que a concessão de habeas corpus
com a finalidade de trancamento de ação penal em curso só é possível em situações excepcionais, quando estiverem comprovadas, de plano, a atipicidade
da conduta, causa extintiva da punibilidade ou ausência de indícios de autoria.
Nesse sentido:
Habeas corpus. Penal e processual penal. Crime do art. 20 da Lei
7.716/89. Alegação de que a conduta configuraria o crime previsto no art. 140,
§ 3º, do Código Penal. A ilegitimidade ad causam do Ministério Público
Federal não pode ser afirmada na fase em que se encontra a ação penal. Justa
causa. Existência. Precedentes.
1. A afirmação da legitimidade ad causam do parquet, no caso, se confunde
com a própria necessidade de se instruir a ação penal, pois é no momento da sentença que poderá o Juiz confirmar o tipo penal apontado na inicial acusatória.
Qualquer capitulação jurídica feita sobre um fato na denúncia é sempre provisória
até a sentença, tornando-se definitiva apenas no instante decisório final.
2. Não cabe ao Supremo Tribunal Federal, em habeas corpus, antecipar-se
ao Magistrado de 1º grau e, antes mesmo de iniciada a instrução criminal, firmar
juízo de valor sobre as provas trazidas aos autos para tipificar a conduta criminosa
narrada.
R.T.J. — 208
625
3. A jurisprudência deste Tribunal é firme no sentido de que o trancamento
da ação penal, em sede de habeas corpus, por ausência de justa causa, constitui
medida excepcional que, em princípio, não tem lugar quando os fatos narrados na
denúncia configuram crime em tese.
4. É na ação penal que deverá se desenvolver o contraditório, na qual serão
produzidos todos os elementos de convicção do julgador e garantido ao paciente
todos os meios de defesa constitucionalmente previstos. Não é o habeas corpus
o instrumento adequado para o exame de questões controvertidas, inerentes ao
processo de conhecimento.
5. Habeas corpus denegado.
(HC 90.187/RJ, Primeira Turma, de minha relatoria, DJ de 25-4-08.)
Ação penal – Falta de justa causa – Trancamento.
O trancamento da ação penal por falta de justa causa situa-se no campo da
excepcionalidade, sendo indispensável que, da narração dos fatos na denúncia,
surja a atipicidade.
(HC 90.320/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de
25-5-07.)
Habeas corpus. Crime de apropriação indébita. Impossibilidade de modi­
ficação da capitulação no recebimento da denúncia. Concessão de sursis proces­
sual: impossibilidade. Não-aplicação analógica do art. 168-A, § 2º, do Código
Penal. Arrependimento posterior. Pedido de trancamento da ação penal. Habeas
corpus denegado.
(...)
3. O trancamento da ação penal, em habeas corpus, apresenta-se como
medida excepcional, que só deve ser aplicada quando evidente a ausência de justa
causa, o que não ocorre quando a denúncia descreve conduta que configura crime
em tese.
(...)
(HC 87.324/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ de 18-5-07.)
Penal. Processual Penal. Habeas corpus. Inépcia da denúncia. Inexistência.
Preenchimento dos requisitos do art. 41 do CPP. Trancamento da ação pe­
nal. Possibilidade de substituição do enquadramento legal descrito na inicial.
Súmula 524 do STF. Questões não apreciadas pelo Tribunal a quo. Supressão de
instância.
I – Denúncia que bem individualiza as condutas, expondo de forma pormenorizada o fato criminoso, preenchendo, assim, os requisitos do art. 41 do CPP.
Ademais, não se declara inepta a denúncia se o seu teor permitir o exercício do
direito de defesa.
II – O trancamento da ação penal, em habeas corpus, se apresenta como
medida excepcional que só deve ser aplicada quando evidente a ausência de justa
causa, o que não ocorre quando a denúncia descreve conduta que configura crime
em tese.
(...)
(HC 85.496/SC, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ
de 8-9-06.)
626
R.T.J. — 208
Ainda: HC 93.853/PA, Primeira Turma, de minha relatoria, DJ de 30-5-08;
HC 93.291/RJ, Primeira Turma, de minha relatoria, DJ de 23-5-08; HC 93.801/
SP, Primeira Turma, de minha relatoria, DJ de 2-5-08; HC 86.583/SP, Segunda
Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 27-4-07; HC 85.066/GO, Segunda Turma,
Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 20-5-05; entre outros.
Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, costumo afirmar que, na qual
em que prevalece o afã de punir, deve-se ter um cuidado maior com as formalidades essenciais à valia do ato.
Todos sabemos que, no inquérito, não há o contraditório propriamente
dito. No caso, a regência da matéria em discussão não se faz pelo Código de
Processo Penal.
O que houve na espécie? Implementadas escutas, surgiram indícios do
envolvimento do magistrado. E aí, lançando-se, inclusive, que a remessa se
fazia ao Superior Tribunal de Justiça por cautela, procedeu-se a essa mesma remessa. Os autos do inquérito foram recebidos no Superior Tribunal de Justiça.
Deu-se, então, no âmbito de automatismo maior – a meu ver conflitante com a
Lei Orgânica da Magistratura Nacional –, o curso do inquérito.
Hoje, sabemos que, no processo-crime propriamente dito, antes da denúncia, há de modo alargado a necessidade de ouvir-se o acusado, o denunciado na
peça primeira da ação penal do Ministério Público. Mas repito: a solução não
pode ser aguardar a fase de recebimento da denúncia para ter-se, em primeiro
lugar, um ato específico do tribunal competente, que é o Superior Tribunal de
Justiça, dando seqüência ao inquérito.
Volto a consignar que a seqüência resultou de simples despacho do relator,
sem a abordagem, pelo menos, dos indícios que estariam a sinalizar o envolvimento do magistrado.
Em segundo lugar, conforme constou do precedente mencionado da tribuna, originário de julgamento procedido na Segunda Turma, o art. 33 em
comento há de ser interpretado buscando-se – também com interpretação sistemática, considerado o art. 27 – a finalidade do preceito do parágrafo único nele
contido:
Parágrafo único. Quando, no curso de investigação, houver indício da
prática de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar,
remetará os respectivos autos ao tribunal ou órgão especial competente para o
julgamento, a fim de que [e se pressupõe aqui que haja deliberação em tal sentido]
prossiga na investigação.
Não ocorreu essa deliberação. É inconcebível, Presidente, ante a Lei
Orgânica da Magistratura Nacional, que, havendo indícios de envolvimento de
magistrado que continua em pleno exercício do ofício judicante, se dê seqüência
R.T.J. — 208
627
a uma investigação sem que o órgão competente para capitanear essa investigação se pronuncie a respeito.
Foi justamente isso que decidiu a Segunda Turma, sem discrepância de
votos, no HC 77.355-8/RS:
Investigação de denúncia – Envolvimento de magistrado – Formalidade. A
teor do disposto no parágrafo único do artigo 33 da Lei Orgânica da Magistratura
Nacional – Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979 –, a continuidade de investigação, a remessa do processo ao Ministério Público e o oferecimento, ou não,
de denúncia, pressupõem, uma vez envolvido magistrado, a manifestação prévia
do tribunal ou do órgão especial a ele integrado. A condição é essencial à valia de
qualquer dos atos referidos, não se podendo cogitar de preclusão decorrente de já
haver sido recebida a denúncia.
Foi essa a decisão proferida, repito, em 1998, pela Segunda Turma.
E o vício, a meu ver, precede, até, o ato – e admito que se tenha mostrado
simplificado ante a sobrecarga de trabalho – que implicou, como disse, a seqüência automática do inquérito, acatando-se a remessa das investigações, pelo
Órgão de origem. Há um vício anterior à tramitação no Superior Tribunal de
Justiça.
Extraio, Presidente – já que o inquérito é embrionário do processocrime que pode levar à perda do cargo –, do § 1º do art. 27 da Lei Orgânica da
Magistratura Nacional a maior eficácia possível no que esse artigo prevê que:
Em qualquer hipótese, a instauração do processo [para mim, o vocábulo,
muito embora sem a perfeição técnica, jurídica, envolve também autos de inquérito] preceder-se-á da defesa prévia do magistrado (...)
É importante que se ouça o magistrado. Essas normas não visam a proteger o cidadão que personifica o Estado-Juiz. Essas normas visam a proteger o
próprio cargo ocupado. Esse magistrado hoje, sem saber – considerado o simplório pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça – as razões pelas quais
está envolvido no inquérito, continua exercendo o ofício judicante, julgando os
semelhantes e os conflitos de interesses que envolvam os semelhantes. Continua
atuando como Estado-Juiz sem ter sido ouvido para deliberação – deliberação
que, a meu ver, tem de ser específica, fundamentada e do Colegiado – quanto à
continuidade do inquérito. Trata-se de automatização do curso do inquérito incompatível com a regência própria.
Repito: os autos foram deslocados – como salientado por quem os remeteu – por cautela. Não houve, evidentemente, o assentamento concreto de indícios de envolvimento – porque não poderia haver, não seria o Tribunal Regional
Federal o competente – do magistrado. No Superior Tribunal de Justiça, deu-se
seqüência ao procedimento – e aqui o vocábulo é gênero, não diz respeito apenas ao processo-crime, pode estar ligado também a processo administrativo ou
a autos de inquérito –, em vez de se procurar ouvir o magistrado, que continua
exercendo, repito, o ofício judicante. Não ocorreu uma deliberação mínima para
628
R.T.J. — 208
assentar o que estaria a levar a essa investigação contra um integrante de tribunal regional federal.
Peço vênia, Presidente, para reiterar o entendimento que exteriorizei
quando do julgamento do HC 77.355-8/RS, consignando – já que, na espécie,
não se fez em jogo esta matéria –, em primeiro lugar, que só poderia haver a
investigação contra o integrante do Tribunal se ouvido esse mesmo integrante.
Em segundo lugar – extraio, portanto, do art. 27 da Loman a maior eficácia possível –, que a Corte, como Colegiado, teria de deliberar quanto a essa seqüência,
o que não aconteceu.
Concedo a ordem, entendendo que há de se voltar ao statu quo ante – que é
a fase da audição do Juiz, e não desembargador federal. Vislumbro até essa definição – como Juiz – não só no título de nomeação do Paciente, como também
no art. 34 da Lei de Organização da Magistratura Nacional, que é expresso a
respeito. O crivo do órgão especial, e não simplesmente um despacho do Relator
dando seqüência às investigações, há de ser precedido da referida audição.
É como voto.
VOTO
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, peço vênia ao Ministro
Marco Aurélio para acompanhar o Relator.
Do que me foi trazido para estudo e do exposto aqui pelo nobre Advogado,
pelo Procurador-Geral e, agora, no voto sempre muito percuciente do eminente
Relator, não vislumbro afronta alguma, incompossibilidade alguma do procedimento, tal como foi adotado com os arts. 105 da Constituição e 33 da Loman.
Creio, realmente, que o órgão judicial indicado é o Superior Tribunal – o
que atuou.
Também não vislumbrei possibilidade alguma, como bem demonstrado
pelo eminente Relator, de afronta a qualquer dos princípios que nortearam quer
a participação do Ministério Público, o titular da ação penal, conforme a sustentação oral do Procurador-Geral, quer a atuação da polícia.
Com relação a todos os elementos indicados quanto à nulidade, acompanho integralmente o voto do Relator e, também, quanto aos indícios, assim
como bem posto, isso se refere muito mais ao que vier a ser depois verificado, já
em fase de ação, se vier a ser recebida a denúncia.
O Procurador-Geral também disse que – parece-me que das páginas 84 a 88 –
há descrição específica da conduta do próprio Paciente, razão pela qual não posso
acatar qualquer dos argumentos que foram aqui esgrimidos a favor do Paciente.
Acompanho o Relator para negar o habeas corpus.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, dada a importância do tema, trago brevíssimas notas, às quais farei referência.
R.T.J. — 208
629
Além das teses já desfiadas da tribuna e também enunciadas pelo eminente Relator, identifiquei no material que recebi, sobretudo nos memoriais, três
teses básicas.
A primeira delas seria o descumprimento do parágrafo único do art. 33
da Loman; portanto, ofensa ao princípio do juiz natural. Neste tópico, dou a seguinte interpretação: quando, no curso de uma investigação, surgirem indícios
da prática de crime por parte de um magistrado, essa investigação é enviada
ao tribunal ou ao órgão especial competente para julgá-lo. Ocorre que, em se
tratando ainda de mera investigação, ela é distribuída a um relator, nos termos
do Regimento Interno da Corte, que atua como um delegado do Plenário ou do
órgão especial, cabendo-lhe desempenhar as funções de juiz-preparador. No
exercício dessas funções, pode determinar diligências instrutórias, entre as
quais: quebra de sigilo telefônico, fiscal ou bancário; expedição de mandados
de busca e apreensão; deferimento de cautelares; etc. Essas decisões de caráter
monocrático sempre poderão ser contestadas perante colegiado maior mediante
instrumento processual adequado.
Não é demais lembrar que, por força do art. 96, I, da Constituição Federal,
compete privativamente aos tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com
observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;
O diploma legal aplicável à espécie é exatamente a Lei 8.038/90, que regula o procedimento e o processo no âmbito do Supremo Tribunal Federal e
do Superior Tribunal de Justiça. Essa lei – como bem lembrado pelo eminente
Ministro Relator – foi aditada pela Lei 8.658/93, que manda aplicar esses procedimentos também aos Tribunais Regionais Federais e aos Tribunais de Justiça
dos Estados.
O que diz essa lei, especialmente o seu art. 2º, parágrafo único? Ele estabelece o seguinte:
Art. 2º O relator, escolhido na forma regimental, será o juiz da instrução,
(...)
Parágrafo único. (...) terá as atribuições que a legislação processual confere
aos juízes singulares.
Portanto, está perfeitamente dentro da legalidade a competência que se
atribui ao relator para presidir o inquérito. Não há nenhum problema, não há
nenhuma violação – a meu ver – ao art. 33, parágrafo único, da Loman.
A segunda tese ventilada é a seguinte: a nulidade dos atos da autoridade
impetrada, notadamente no tocante à quebra dos sigilos telefônico, fiscal e bancário, bem como à falta de fundamentação de suas decisões.
Conforme já afirmei, na qualidade de juiz-preparador e de delegado do
Plenário, pode o relator determinar todas as providências que julgar necessárias
segundo seu prudente arbítrio, sujeitando-se, embora, ao crivo do Plenário. Esse
630
R.T.J. — 208
tipo de decisão de caráter eminentemente instrutório, como é da prática forense,
pode ser sucinta, dispensando uma fundamentação mais aprofundada, pois,
como regra, acolhe solicitação da autoridade policial ou do Ministério Público,
que explicita a necessidade da diligência reportando-se aos indícios da prática
de crime que a justificam.
A terceira tese é a da nulidade da denúncia pela ocorrência de vícios na
investigação e por serem os fatos atribuídos ao Paciente atípicos.
Digo então que é pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que
a eventual nulidade registrada na fase investigatória, da qual resulta uma peça
meramente informativa, não contamina a ação penal se outras provas idôneas
forem produzidas ao longo da instrução criminal.
Imputa-se ao Paciente, bem assim a outros quinze acusados, a prática dos
crimes de prevaricação e de formação de quadrilha, previstos, respectivamente,
nos arts. 319 e 288 do Código Penal – fatos estes, em tese, típicos. Se eles foram
ou não cometidos pelo Paciente e demais indiciados – conforme disse o eminente Relator –, isso é matéria a ser debatida sob o crivo do contraditório no
bojo da ação penal.
Os demais argumentos, que dizem respeito ao sigilo do Ministério Público
e à autonomia da Polícia Federal no concernente às investigações, foram – a meu
ver – muito bem rebatidos pelo eminente Relator.
Razões pelas quais, Senhor Presidente, também indefiro a ordem, pedindo
vênia ao eminente Ministro Marco Aurélio.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, também eu entendo que,
se o Relator fez o que me parece a melhor interpretação do parágrafo único
do art. 33 da Loman, agora com as achegas preciosas do Ministro Ricardo
Lewandowski que, interpretando a Lei 8.038, de 1990, também não enxerga nela
nenhum comando que venha significar a obrigatoriedade de instauração ou de
condução colegiada de inquérito.
Portanto, peço vênia ao Ministro Marco Aurélio para acompanhar o eminente Relator.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, vou pedir vênia ao eminente Ministro Marco Aurélio, em primeiro lugar, para acompanhar o eminente
Relator.
Em segundo lugar, vou pedir vênia ao Relator, para me permitir algumas
considerações sobre tema que considero da maior importância institucional, que
é a interpretação da Loman. Vou deter-me neste ponto, Senhor Presidente!
R.T.J. — 208
631
A primeira diz respeito à interpretação que já foi afirmada, não apenas pelos brilhantes votos, sobretudo o do eminente Relator, mas também pelo douto
Procurador-Geral da República, a respeito do parágrafo único do art. 33.
A meu ver e com o devido respeito, esse artigo não consagra nenhuma
norma de previsão de competência para supervisionar inquérito policial ou
inquérito judicial. Trata-se, pura e simplesmente, de regra de competência de
juízo, não obstante o fenômeno seja conhecido como regra de foro especial por
prerrogativa de função, quando, na verdade, na nomenclatura processual tradicional, a palavra “foro” está ligada a critérios de distribuição de competência
com base no território. Mas essa norma enuncia apenas que, quando, no curso
de investigação iniciada fora do juízo competente para processar o magistrado,
se apure envolvimento deste, a investigação tem de ser transferida para o juízo
competente para esse procedimento e que é o tribunal. É isso o que dita a norma
textualmente:
Art. 33.
Parágrafo único. (...) remeterá os respectivos autos ao tribunal ou órgão especial competente para o julgamento (...)
não do inquérito, é óbvio, mas para o julgamento de eventual ação penal,
porque a finalidade da remessa está exatamente em que prossiga a investigação
sob a supervisão do tribunal competente ou do órgão especial, onde o haja.
Portanto, remete-se o inquérito ou o procedimento para o órgão competente, o tribunal, e este, como de regra, atua pelos seus órgãos fracionários.
Evidentemente, é impossível, na prática, que esses procedimentos sejam promovidos e impulsionados mediante decisões colegiadas. Então, o tribunal atua
por seus órgãos fracionários, dos quais o mais importante para essa função é o
relator sorteado.
A norma, a meu ver, se limita, pois, a definir a regra de competência de
juízo para investigação que tenha por alvo um magistrado.
Em segundo lugar, a interpretação do art. 27, a meu ver e com o devido
respeito, deve ser outra. Primeiro, porque o § 1º do art. 27 está ligado à hipótese
do caput, que, à data da concepção e do início de vigência da Loman, permitia
que magistrado perdesse o cargo em procedimento administrativo.
A regra era:
Em qualquer hipótese, a instauração do processo (...)
É porque esse processo era de tal gravidade, na vigência do ordenamento
constitucional de então, que o magistrado poderia perder o cargo sem ação,
coisa que hoje está completamente afastada e, portanto, a regra não tem aplicação ao caso. Processo, aqui, se deve, pois, entender aquele que seria destinado à
perda do cargo de magistrado. Por que não se aplica hoje? Simplesmente porque,
hoje, não podendo o magistrado perder o cargo senão por sentença judicial, o
632
R.T.J. — 208
processo a que se refere é só o jurisdicional, que é regido pela Lei 8.038, onde
a mesma faculdade de defesa prévia está textualmente prevista, aliás, com o
mesmo prazo.
Noutras palavras, o art. 27, § 1º, não tem agora aplicação nem incidência
alguma, porque é impertinente em relação ao objeto do caput, que já não vige, e,
em segundo lugar, se vigesse, seria simplesmente expletivo, pois a mesma regra
está consagrada na Lei 8.038, que regula o processo de competência originária
para perda de cargo.
Ademais, em se tratando de processo originário, de perda de cargo, o procedimento – como já relevaram o eminente Procurador e os brilhantes votos que
me antecederam – é regido pela Lei 8.038. Ora, perante a Lei 8.038, a competência para a supervisão do inquérito é do Relator, e o é como se pode tirar claro da
conjugação de várias de suas normas.
Vejamos algumas delas, que me parecem induvidosas. Por exemplo: o § 1º
do art. 1º fala em diligências complementares que antecedem o recebimento da
denúncia:
(...) poderão ser deferidas pelo relator (...)
Isso que significa, portanto, que o Relator, ainda no curso do inquérito, é
que tem competência para deferir requerimentos do Ministério Público, eventuais diligências, enfim, decidir todos os incidentes suscetíveis de ocorrer no
curso do inquérito, que é judicial, e não inquérito policial.
Além do mais, diz textualmente – e também já foram feitas referências a
este fato – que o relator será o juiz da instrução. E essa instrução não é apenas
a que constitui objeto do art. 9º, que diz respeito à instrução da ação penal, mas
abrange também a instrução, conquanto provisória e unilateral, do inquérito
judicial.
Mais do que isso. O que me parece decisivo é que o Relator é que detém
competência para dar prosseguimento ao inquérito. Por quê? Porque, quando
se trate de arquivamento, hipótese oposta, é que ele deve, não sendo o caso de
inexistência de indícios de crime, e a requerimento do Ministério Público, submeter o caso ao Colegiado, como prevê o art. 3º, inciso I:
(...) o requerimento [do Ministério Público] à decisão competente do Tribunal;
Isto é, o Tribunal é chamado a pronunciar-se apenas quando haja requerimento do Ministério Público para arquivar o inquérito com base em causa que
gere coisa julgada material e impeça a reabertura das investigações. Nos outros
casos, o Relator prossegue com o inquérito e, se for o caso, ele próprio o arquiva,
à falta de indícios de autoria ou de prova de materialidade do fato.
Além do mais, Senhor Presidente, e isso me parece não menos decisivo,
ainda que, para mera argumentação, se se admitisse que houvera irregularidade a esse título no inquérito judicial, ela não teria nenhuma repercussão
em relação ao juízo sobre a denúncia e sequer sobre o curso da ação penal e o
R.T.J. — 208
633
seu resultado. Por quê? Porque, salva a questão da ilicitude da prova colhida
em inquérito, que não pode, nos termos da Constituição, aproveitar em hipótese alguma, todas as demais irregularidades – e isto o Ministro Ricardo
Lewandowski já acentuou à exaustão – em nada interferem na aproveitabilidade do inquérito como fundamento para a emissão da opinio delicti, que cabe
ao Ministério Público.
E, nesse sentido, a Corte já se manifestou não apenas genericamente, mas
especificamente quanto à interpretação do art. 33, parágrafo único. Foi no RHC
84.903, em que o magistrado tinha sido condenado, e o Tribunal reconheceu a
inteira validez do processo, dispondo na Ementa:
I – Foro por prerrogativa de função: inquérito policial: exceção atinente à
magistratura (Loman, art. 33, parágrafo único): discussão que, no caso, recebida
a denúncia por decisão definitiva, é desnecessário aprofundar, pois se irregularidades ocorreram no inquérito, não contaminaram a ação penal: prejuízo concreto
não demonstrado. (...)
Noutras palavras, a inobservância do art. 33, parágrafo único, em nada
reflete sobre a validez da ação penal. E o item 3 da Ementa diz:
3. Exceção atinente à magistratura (Loman, art. 33, parágrafo único) que,
no caso, não cabe aprofundar, dado que não contaminam a ação penal eventuais
irregularidades ocorridas no inquérito (...) exaurindo-se, assim, a função informativa dele;
Em seguida, o eminente Relator, que foi o Ministro Sepúlveda Pertence,
faz considerações sobre a irrelevância desses dados na condenação que tinha
sido decidida pelo Tribunal.
Faço menção ainda, Senhor Presidente, a outros velhíssimos acórdãos
deste Tribunal, desde 1986 e 1987, relatados pelos Ministros Carlos Madeira,
Néri da Silveira, Alfredo Buzaid, Cordeiro Guerra, Nelson Jobim e, recentemente, do Ministro Eros Grau, nos RHC 65.289, 63.21w3, 60.069, 58.120,
83.233 e, do Ministro Eros Grau, RHC 83.921, que reafirmam a tese de que
eventuais irregularidades do inquérito policial ou judicial não comprometem
a validez da denúncia, nem a inteireza do processo da ação penal. Até porque se concebe que o magistrado possa ser denunciado sem inquérito. Basta
haja prova pré-constituída e suficiente para que o representante do Ministério
Público ofereça a denúncia de imediato. Neste caso, teríamos que, fixando tese
oposta, estatuir que os elementos que retrataram, para efeito de emissão da opi­
nio delicti do Ministério Público, casualmente, num procedimento qualquer,
deveriam ser antecedidos de juízo prévio do Tribunal sobre a possibilidade da
produção desses mesmos documentos! O que, com o devido respeito, parece
pouco sustentável.
Noutras palavras, se um magistrado pode, perante o juízo competente,
obedecidas ou atendidas as garantias previstas na Lei 8.038 e na Constituição,
como a defesa prévia etc., é de nenhum relevo que o Tribunal não se tenha, porque seria desnecessário, pronunciado sobre o curso das investigações de cuja
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R.T.J. — 208
conclusão resultaram os fundamentos da denúncia oferecida pelo representante
do Ministério Público.
Razões pelas quais, pedindo vênia mais uma vez ao eminente Ministro
Marco Aurélio, para divergir de S. Exa., e pedindo vênia ao eminente Mi­
nistro Relator, porque me excedi nesses argumentos que S. Exa., de certo
modo, já havia sintetizado, eu também denego a ordem.
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, só uma observação.
E, evidentemente, tomo a dicção do Tribunal como linear. Sabemos que,
em se tratando de crimes comuns, Ministro do Supremo pode ser processado no
próprio Supremo.
Indago: o inquérito e a seqüência do inquérito não dependem de pronunciamento do Colegiado? Fica a cargo de um par?
VOTO
O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): Eu também peço todas as vênias ao eminente Ministro Marco Aurélio e acompanho o eminente Relator, entendendo que, neste caso, a interpretação que se propõe parece adequada, tendo
em vista, inclusive, atualização temporal que se fez do texto da Loman em face
da Constituição de 1988, tal como já amplamente destacada.
Gostaria, Senhores Ministros, de fazer duas notas, além disso, lembrando
que estamos, neste caso, na chamada “Operação Têmis”. Inclusive, o próprio
nome foi concebido muito apropriadamente, talvez para causar adequado desgaste à imagem do Poder Judiciário provocativamente.
Além disso, há incidentes graves nesse processo envolvendo o nome do
Ministro Relator, Felix Fischer, que, por não ter decretado a prisão preventiva,
foi desafiado, inclusive, por membros da Polícia Federal, dizendo que ele estava
com a prisão provisória, que ele estava equivocado.
Isso são fatos graves. S. Exa. fez representação ao eminente ProcuradorGeral com ação de improbidade para a investigação criminal, inclusive, queixando-se da maneira como fora tratado pelas autoridades policiais. Essas
representações resultaram arquivadas no âmbito do Ministério Público; aparentemente em relação ao inquérito, ainda pende uma manifestação por parte da
Câmara Criminal do Ministério Público.
Faço esses registros para efeitos históricos.
Acompanho o eminente Relator.
EXTRATO DA ATA
HC 94.278/SP — Relator: Ministro Menezes Direito. Paciente: Nery da
Costa Júnior. Impetrantes: Manoel Cunha Lacerda e outros (Advogados: Suzana
R.T.J. — 208
635
Ribeiro Miranda Tamassia e José Carlos Dias e outros). Coator: Relator do
Inquérito 547 do Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, rejeitou a preliminar de prejudicialidade. Em seguida, o Tribunal, por maioria, denegou a ordem de habeas corpus,
nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio, que a concedia. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Falaram, pelo Paciente, o Dr.
Manoel Cunha Lacerda e, pelo Ministério Público Federal, o Procurador-Geral
da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa,
Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. ProcuradorGeral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 25 de setembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
636
R.T.J. — 208
RECURSO EM HABEAS CORPUS 94.805 — PB
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Recorrente: Marcondes Xavier de Oliveira — Recorrido: Ministério
Público Federal
Ação penal. Prisão preventiva. Conveniência da instrução
criminal. Chacina de membros de uma família. Réu foragido.
Risco manifesto à vítima e única testemunha do fato, ainda não
ouvida. Inexistência de constrangimento ilegal. Habeas corpus
denegado. Aplicação do art. 312 do CPP. Precedentes. É legal o
decreto de prisão preventiva que, a título de conveniência da instrução criminal, se baseia em que o réu, foragido, teria feito ou,
pelas circunstâncias do fato, representaria séria ameaça a testemunha ou vítima ainda não ouvida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Celso de
Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso ordinário, nos termos do
voto do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro Joaquim Barbosa.
Brasília, 25 de novembro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Trata-se de recurso ordinário em habeas
corpus, interposto em favor de Marcondes Xavier de Oliveira contra decisão do
Superior Tribunal de Justiça que, ao julgar o RHC 83.720, negou provimento
ao recurso.
O ora recorrente foi denunciado como incurso nas penas dos arts. 121, § 2º,
VI, por duas vezes, e 129, § 1º, I, c/c art. 69, todos do Código Penal. Pronunciado
(fls. 49-57), teve mantida a prisão cautelar decretada anteriormente (fls. 44-46).
Após a sentença de pronúncia, empreendeu fuga, encontrando-se atualmente
foragido (fl. 82).
A defesa impetrou habeas corpus ao Tribunal de Justiça da Paraíba, para
desconstituir o decreto de prisão. A ordem foi denegada, verbis:
Habeas corpus. Duplos Homicídios qualificados e Lesão Corporal Grave.
Réu preso em decorrência de prisão preventiva. Manutenção. Pronúncia. Negatória
do direito de apelar em liberdade. Cautelar mantida. Alegativa de falta de motivação e desfundamentação para manter a segregação do paciente. Legalidade da decisão. Inexigibilidade de nova fundamentação para se manter a segregação de réu
em decisão de pronúncia (precedentes STF e STJ). Fuga da cadeia após sentença
de pronúncia. Ordem denegada.
R.T.J. — 208
637
Ressalvada mudança no quadro fático, o que in casu não ocorreu, não se
exige, em decisão de pronúncia, nova fundamentação para manter-se a medida
cautelar – Precedentes do STF e STJ.
A fuga do réu do distrito da culpa enseja sua custódia preventiva, por preenchimento do requisito da aplicação da lei penal, mormente quando ocorre evasão
da cadeia pública, após sentença de pronúncia.
(Fl. 83.)
Recorreu-se, então, ao Superior Tribunal de Justiça, mas o recurso foi improvido, em decisão assim ementada:
Processual Penal. Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Art. 121,
§ 2º, IV, (duas vezes) e art. 129, § 1º, I, do Código Penal. Ausência de fundamen­
tação no decreto prisional. Segregação cautelar devidamente fundamentada na
garantia da ordem pública.
I – A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional (HC 90.753/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de
22/11/2007), sendo exceção à regra (HC 90.398/SP, Primeira Turma. Rel. Min.
Ricardo Lewandowski, DJU de 17/05/2007). Assim, é inadmissível que a finalidade da custódia cautelar, qualquer que seja a modalidade (prisão em flagrante,
prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de decisão de pronúncia
ou prisão em razão de sentença penal condenatória recorrível) seja deturpada a
ponto de configurar uma antecipação do cumprimento de pena (HC 90.464/
RS, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJU de 04/05/2007).
O princípio constitucional da não-culpabilidade se por um lado não resta malferido diante da previsão no nosso ordenamento jurídico das prisões cautelares
(Súmula nº 09/STJ), por outro não permite que o Estado trate como culpado
aquele que não sofreu condenação penal transitada em julgado (HC 89.501/GO,
Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 16/03/2007). Desse modo,
a constrição cautelar desse direito fundamental (art. 5º, inciso XV, da Carta
Magna) deve ter base empírica e concreta (HC 91.729/SP, Primeira Turma,
Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 11/10/2007). Assim, a prisão preventiva se
justifica desde que demonstrada a sua real necessidade (HC 90.862/SP, Segunda
Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJU de 27/04/2007) com a satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do Código de Processo Penal, não bastando,
frise-se, a mera explicitação textual de tais requisitos (HC 92.069/RJ, Segunda
Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 09/11/2007). Não se exige, contudo
fundamentação exaustiva, sendo suficiente que o decreto constritivo, ainda que de
forma sucinta, concisa, analise a presença, no caso, dos requisitos legais ensejadores da prisão preventiva (RHC 89.972/GO, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen
Lúcia, DJU de 29/06/2007).
II – No caso, o decreto prisional se encontra devidamente fundamentado em
dados concretos extraídos dos autos que denotam fato de extrema gravidade,
sendo que a manutenção do paciente em liberdade acarretaria insegurança jurídica e, por conseguinte, lesão a ordem pública. O paciente é acusado de ter participado da chacina de uma família, quando, no interior da residência das vítimas,
teria efetuado diversos disparos de arma de fogo contra as mesmas, enquanto elas
dormiam, causando a morte de duas delas e lesionando a outra.
III – De fato, a periculosidade do agente para a coletividade, desde que
comprovada concretamente é apta a manutenção da restrição de sua liberdade
638
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(HC 89.266/GO, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJU de
28/06/2007; HC 86.002/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU
de 03/02/2006; HC 88.608/RN, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa,
DJU de 06/11/2006; HC 88.196/MS, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio,
DJU de 17/05/2007).
IV – Acrescente-se, também, que em alguns crimes, como foi afirmado no
HC 67.750/SP, Primeira Turma. Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 09/02/1990,
a periculosidade do agente encontra-se ínsita na própria ação criminosa praticada em face da grande repercussão social de que se reveste o seu comportamento. Não se trata, frise-se, de presumir a periculosidade do agente a partir de
meras ilações, conjecturas desprovidas de base empírica concreta, que conforme
antes destacado não se admite, pelo contrário, no caso, a periculosidade decorre
da forma como o crime foi praticado (modus operandi).
Habeas corpus denegado.
(Fls. 120-121.)
Recorre, novamente, a defesa, sob fundamentos idênticos aos que constam da impetração original. Requer a expedição de salvo-conduto em favor do
recorrente.
O Ministério Público Federal opinou pelo improvimento do recurso (fls.
173-176).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Inconsistente o recurso.
A sentença de pronúncia manteve a custódia do ora recorrente, fundandose nas razões expostas no decreto de prisão preventiva. E verifico que esse possui dois fundamentos principais: a periculosidade do agente e a conveniência da
instrução criminal.
E, embora afaste, por discrepante da disciplina constitucional, as referências à periculosidade do agente, concreta ou presumida, como fundamento
idôneo para a prisão cautelar (HC 90.471, Rel. Min. Cezar Peluso, LEX-JSTF
348/423), tenho por válida a segunda razão invocada pelo decreto.
Cuida-se de acusação de chacina, em que apenas um dos membros da
família sobreviveu. Segundo a decisão impugnada, a vítima sobrevivente encontra-se escondida, aterrorizada pelo ocorrido. É a única testemunha dos fatos,
em processo cuja instrução ainda não se encerrou, e, daí, a liberdade do Réu –
foragido desde a pronúncia – representar risco fundado à produção da prova
testemunhal. Justifica-se, pois, a cautelar, nos termos do art. 312 do Código de
Processo Penal.
Em casos análogos, esta Corte tem dado pela idoneidade da prisão:
Ementa: ação penal. Prisão preventiva. Conveniência da instrução criminal. Réu foragido. Ameaça a testemunhas ainda não ouvidas. Inexistência de
constrangimento ilegal. Habeas corpus denegado. Aplicação do art. 312 do CPP.
R.T.J. — 208
639
É legal o decreto de prisão preventiva que, a título de conveniência da instrução
criminal, se baseia em que o réu, foragido, teria feito ameaças a testemunhas ainda
não ouvidas.
(HC 89.815, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 8-6-07). No mesmo sentido:
HC 89.594, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 13-10-06; HC 88.476, Rel. Min.
Gilmar Mendes, DJ de 6-11-06.
2. Ante ao exposto, nego provimento ao recurso.
EXTRATO DA ATA
RHC 94.805/PB — Relator: Ministro Cezar Peluso. Recorrente: Marcon­
des Xavier de Oliveira (Advogado: Luiz Francisco Buarque de Lacerda). Recor­
rido: Ministério Público Federal.
Decisão: A Turma, por votação unânime, negou provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro Joaquim
Barbosa.
Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão a Ministra
Ellen Gracie, e os Ministros Cezar Peluso e Eros Grau. Ausente, licenciado, o
Ministro Joaquim Barbosa. Subprocurador-Geral da República, Dr. Francisco
Adalberto Nóbrega.
Brasília, 25 de novembro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coor­
denador.
640
R.T.J. — 208
HABEAS CORPUS 95.009 — SP
Relator: O Sr. Ministro Eros Grau
Pacientes: Daniel Valente Dantas e Verônica Valente Dantas — Impe­
trantes: Nélio Roberto Seidl Machado e outros — Coator: Relator do HC 107.514
do Superior Tribunal de Justiça
Habeas corpus. Constitucional e processual penal. Corrup­
ção ativa. Conversão de habeas corpus preventivo em liberatório
e exceção à Súmula 691/STF. Prisão temporária. Fundamentação
inidônea da prisão preventiva. Conveniência da instrução criminal para viabilizar a instauração da ação penal. Garantia
da aplicação da lei penal fundada na situação econômica do paciente. Preservação da ordem econômica. Quebra da igualdade
(art. 5º, caput e inciso I, da Constituição do Brasil). Ausência de
fundamentação concreta da prisão preventiva. Prisão cautelar
como antecipação da pena. Inconstitucionalidade. Presunção
de não culpabilidade (art. 5º, LVII, da Constituição do Brasil).
Constrangimento ilegal. Estado de Direito e direito de defesa.
Combate à criminalidade no Estado de Direito. Ética judicial,
neutralidade, independência e imparcialidade do Juiz. Afronta
às garantias constitucionais consagradas no art. 5º, incisos XI,
XII e XLV, da Constituição do Brasil. Direito, do acusado, de
permanecer calado (art. 5º, LXIII, da Constituição do Brasil).
Conversão de habeas corpus preventivo em habeas corpus liberatório. O habeas corpus preventivo diz com o futuro. Respeita
ao temor de futura violação do direito de ir e vir. Temor que, no
caso, decorrendo do conhecimento de notícia veiculada em jornal
de grande circulação, veio a ser concretizado. Justifica-se a conversão do habeas corpus preventivo em liberatório em razão da
amplitude do pedido inicial e porque abrange a proteção mediata
e imediata do direito de ir e vir.
Súmula 691. Exceção. Decisão fundamentada na necessidade, no caso concreto, de pronta atuação desta Corte. Esta Corte
tem abrandado o rigor da Súmula 691/STF nos casos em que (i)
seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar
e (ii) a negativa de liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou manutenção de situações manifestamente contrárias ao entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Prisão temporária revogada por ausência de seus requisitos e porque cumpridas as providências cautelares destinadas
à colheita de provas. Prisão temporária que não se justifica em
razão da ausência dos requisitos da Lei 7.960/89 e, ainda, porque
no caso foram cumpridas as providências cautelares destinadas
à colheita de provas.
R.T.J. — 208
641
Prisão preventiva: Indeferimento, pelo Juiz, sob o fundamento de ausência de conduta, do paciente, necessária ao estabelecimento de nexo de causalidade entre ela e fatos imputados a
outros investigados. Reconsideração com fundamento em prova
nova consistente na apreensão de papéis apócrifos na residência
do paciente. Insuficiência de provas que se reportam a circunstâncias remotas, dissociadas do contexto atual.
Fundamentação inidônea:
I – Conveniência da instrução criminal para viabilizar,
com a colheita de provas, a instauração da ação penal. Tendo o
Juiz da causa autorizado a quebra de sigilos telefônicos e determinado a realização de inúmeras buscas e apreensões, com o intuito de viabilizar a eventual instauração da ação penal, torna-se
desnecessária a prisão preventiva do paciente por conveniência
da instrução penal. Medidas que lograram êxito, cumpriram seu
desígnio. Daí que a prisão por esse fundamento somente seria
possível se o magistrado tivesse explicitado, justificadamente, o
prejuízo decorrente da liberdade do paciente. A não ser assim
ter-se-á prisão arbitrária e, por conseqüência, temerária, autêntica antecipação da pena. O propalado “suborno” de autoridade
policial, a fim de que esta se abstivesse de investigar determinadas pessoas, à primeira vista se confunde com os elementos constitutivos do tipo descrito no art. 333 do Código Penal (corrupção
ativa).
II – Garantia da aplicação da lei penal, fundada na situação
econômica do paciente. A prisão cautelar, tendo em conta a capacidade econômica do paciente e contatos seus no exterior não
encontra ressonância na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, pena de estabelecer-se, mediante quebra da igualdade
(art. 5º, caput e inciso I da Constituição do Brasil) distinção entre
ricos e pobres, para o bem e para o mal. Precedentes.
III – Garantia da ordem pública, com esteio em suposições.
Mera suposição – vocábulo abundantemente utilizado no decreto prisional – de que o paciente obstruirá as investigações ou
continuará delinqüindo não autorizam a medida excepcional de
constrição prematura da liberdade de locomoção. Indispensável,
também aí, a indicação de elementos concretos que demonstrassem, cabalmente, a necessidade da prisão.
IV – Preservação da ordem econômica. No decreto prisional nada se vê a justificar a prisão cautelar do paciente, que não
há de suportar esse gravame por encontrar-se em situação econômica privilegiada. As conquistas das classes subalternas, não
se as produz no plano processual penal; outras são as arenas nas
quais devem ser imputadas responsabilidades aos que acumulam
riquezas.
642
R.T.J. — 208
Prisão preventiva como antecipação da pena. Inconsti­
tucionalidade. A prisão preventiva em situações que vigorosamente não a justifiquem equivale a antecipação da pena, sanção
a ser no futuro eventualmente imposta, a quem a mereça, mediante sentença transitada em julgado. A afronta ao princípio
da presunção de não culpabilidade, contemplado no plano constitucional (art. 5º, LVII da Constituição do Brasil), é, desde essa
perspectiva, evidente. Antes do trânsito em julgado da sentença
condenatória a regra é a liberdade; a prisão, a exceção. Aquela
cede a esta em casos excepcionais. É necessária a demonstração
de situações efetivas que justifiquem o sacrifício da liberdade individual em prol da viabilidade do processo.
Estado de direito e direito de defesa. O Estado de direito viabiliza a preservação das práticas democráticas e, especialmente,
o direito de defesa. Direito a, salvo circunstâncias excepcionais,
não sermos presos senão após a efetiva comprovação da prática
de um crime. Por isso usufruímos a tranqüilidade que advém
da segurança de sabermos que se um irmão, amigo ou parente
próximo vier a ser acusado de ter cometido algo ilícito, não será
arrebatado de nós e submetido a ferros sem antes se valer de todos os meios de defesa em qualquer circunstância à disposição de
todos. Tranqüilidade que advém de sabermos que a Constituição
do Brasil assegura ao nosso irmão, amigo ou parente próximo a
garantia do habeas corpus, por conta da qual qualquer violência
que os alcance, venha de onde vier, será coibida.
Combate à criminalidade no Estado de direito. O que caracteriza a sociedade moderna, permitindo o aparecimento do
Estado moderno, é por um lado a divisão do trabalho; por outro a monopolização da tributação e da violência física. Em
nenhuma sociedade na qual a desordem tenha sido superada
admite-se que todos cumpram as mesmas funções. O combate
à criminalidade é missão típica e privativa da administração
(não do Judiciário), através da polícia, como se lê nos incisos do
art. 144 da Constituição, e do Ministério Público, a quem compete, privativamente, promover a ação penal pública (art. 129, I).
Ética judicial, neutralidade, independência e imparcialidade do Juiz. A neutralidade impõe que o juiz se mantenha em
situação exterior ao conflito objeto da lide a ser solucionada. O
juiz há de ser estranho ao conflito. A independência é expressão
da atitude do juiz em face de influências provenientes do sistema
e do governo. Permite-lhe tomar não apenas decisões contrárias a interesses do governo – quando o exijam a Constituição
e a lei – mas também impopulares, que a imprensa e a opinião
pública não gostariam que fossem adotadas. A imparcialidade é
R.T.J. — 208
643
expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes
das partes nos processos judiciais a ele submetidos. Significa
julgar com ausência absoluta de prevenção a favor ou contra alguma das partes. Aqui nos colocamos sob a abrangência do princípio da impessoalidade, que a impõe.
Afronta às garantias constitucionais consagradas no art. 5º,
incisos XI, XII e XLV da Constituição do Brasil. De que vale declarar, a Constituição, que “a casa é asilo inviolável do indivíduo”
(art. 5º, XI) se moradias são invadidas por policiais munidos de
mandados que consubstanciem verdadeiras cartas brancas, mandados com poderes de a tudo devassar, só porque o habitante é
suspeito de um crime? Mandados expedidos sem justa causa, isto
é, sem especificar o que se deve buscar e sem que a decisão que
determina sua expedição seja precedida de perquirição quanto à
possibilidade de adoção de meio menos gravoso para chegar-se
ao mesmo fim. A polícia é autorizada, largamente, a apreender
tudo quanto possa vir a consubstanciar prova de qualquer crime,
objeto ou não da investigação. Eis aí o que se pode chamar de
autêntica “devassa”. Esses mandados ordinariamente autorizam
a apreensão de computadores, nos quais fica indelevelmente gravado tudo quanto respeite à intimidade das pessoas e possa vir a
ser, quando e se oportuno, no futuro usado contra quem se pretenda atingir. De que vale a Constituição dizer que “é inviolável o
sigilo da correspondência” (art. 5º, XII) se ela, mesmo eliminada
ou “deletada”, é neles encontrada? E a apreensão de toda a sorte
de coisas, o que eventualmente privará a família do acusado da
posse de bens que poderiam ser convertidos em recursos financeiros com os quais seriam eventualmente enfrentados os tempos
amargos que se seguem a sua prisão. A garantia constitucional
da pessoalidade da pena (art. 5º, XLV) para nada vale quando
esses excessos tornam-se rotineiros.
Direito, do acusado, de permanecer calado (art. 5º, LXIII
da Constituição do Brasil). O controle difuso da constitucionalidade da prisão temporária deverá ser desenvolvido perquirindo-se necessidade e indispensabilidade da medida. A primeira
indagação a ser feita no curso desse controle há de ser a seguinte:
em que e no que o corpo do suspeito é necessário à investigação?
Exclua-se desde logo a afirmação de que se prende para ouvir o
detido. Pois a Constituição garante a qualquer um o direito de
permanecer calado (art. 5º, LXIII), o que faz com que a resposta
à inquirição investigatória consubstancie uma faculdade. Ora,
não se prende alguém para que exerça uma faculdade. Sendo a
privação da liberdade a mais grave das constrições que a alguém
se pode impor, é imperioso que o paciente dessa coação tenha a
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sua disposição alternativa de evitá-la. Se a investigação reclama
a oitiva do suspeito, que a tanto se o intime e lhe sejam feitas perguntas, respondendo-as o suspeito se quiser, sem necessidade de
prisão.
Ordem concedida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar
Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, preliminarmente, por maioria de votos, em conhecer do habeas corpus, e no mérito
também por maioria, conceder o habeas corpus, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 6 de novembro de 2008 — Eros Grau, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Eros Grau: Habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado contra ato do Superior Tribunal de Justiça, decisão monocrática que indeferiu pleito cautelar em habeas corpus lá impetrado.
2. Os Impetrantes inicialmente pleitearam acesso a documentos atinentes
a investigação que teria curso na Polícia Federal, bem assim salvo-conduto ante
a possibilidade de decretação de suas prisões provisórias.
3. A impetração aludia a matéria publicada no jornal Folha de São Paulo,
dando conta de possível instauração de inquérito contra os pacientes. Em vista
disso determinei, em 12 de junho de 2008, a expedição de ofício ao Juízo da
causa, a fim de que prestasse informações pormenorizadas a respeito do alegado
na inicial.
4. As informações, endereçadas ao Ministro “Eros Grau de Mello”, não
obstante datadas de 26 de junho foram juntadas aos autos apenas no período de
férias forenses, em 7 de julho passado (fls. 53/59), quase um mês após requisitadas. Daí a impossibilidade do exame, por mim, do pedido de concessão de liminar. Essas “informações” são evasivas, expressando evidente recusa, do Juiz
federal, a prestá-las.
5. O Ministro Gilmar Mendes reconheceu, durante as férias forenses,
a existência de situação de flagrante constrangimento ilegal, a justificar exceção à Súmula 691 do STF. Deferiu medida liminar a fim de que o Juízo da
Sexta Vara Criminal da Seção Judiciária de São Paulo franqueasse, aos pacientes e a seus procuradores, acesso aos autos números 2007.61.81.001285-2,
2008.61.81.008935-1 e 2008.61.81.008919-1. Requisitou cópia do decreto de prisão temporária (fls. 61/71).
6. O juiz de plantão na Sexta Vara Criminal Federal de São Paulo encaminhou a este Tribunal cópia integral da decisão que determinou várias buscas e
apreensões e decretou a prisão temporária dos Pacientes e outros (fls. 90/262).
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645
7. O Ministro Gilmar Mendes deferiu então nova liminar, cassando a prisão temporária dos pacientes. Isso porque a entendeu injustificável face à realização da colheita de provas determinada nos mandados de busca e apreensão.
Considerou ainda a inviabilidade de decreto de prisão temporária com base na
mera necessidade de oitiva dos investigados para fins de instrução processual
(fls. 445/462). Essa decisão foi estendida aos demais investigados (fls. 776/781).
8. Posteriormente o juiz do feito indeferiu representação pela custódia cautelar do paciente, decretando-a somente em relação a Umberto José da Rocha
Braz e Hugo Chicaroni (fl. 908). Sobreveio pedido de reconsideração dessa decisão, formulado pela autoridade policial, sob a alegação de que a liberdade do
paciente e de outros investigados poria em risco a tramitação da investigação.
9. O juiz em seguida reconsiderou a decisão anterior, decretando a prisão
cautelar de Daniel Dantas por conveniência da instrução criminal, a pretexto de
assegurar a aplicação da lei penal e garantir a ordem pública e econômica (fls.
914/931).
10. O Ministro Gilmar Mendes então revogou a prisão cautelar observando
que (fls. 932/942):
a) os mesmos fundamentos que permitiram o conhecimento do pedido de
afastamento da prisão temporária nestes autos também permitem conhecer do
pleito de revogação da prisão preventiva;
b) a fundamentação utilizada pelo Juiz Federal da 6ª Vara Criminal de São
Paulo, Dr. Fausto Martin de Sanctis, não é suficiente para justificar a restrição à
liberdade do paciente;
c) para que o decreto de custódia cautelar seja idôneo, é necessário que o ato
judicial constritivo da liberdade especifique, de modo fundamentado (CF, art. 93,
IX), elementos concretos que justifiquem a medida;
d) não há fatos novos de relevância suficiente a permitir a nova ordem de
prisão expedida;
e) o encarceramento do paciente revela nítida via oblíqua de desrespeitar a
decisão deste Supremo Tribunal Federal anteriormente expedida.
11. Sobreveio extensa manifestação, em trinta e nove laudas, do Ministério
Público Federal, assim ementada (fls. 1115/1153):
Habeas corpus. Pedido preventivo convertido em liberatório. Impos­
sibilidade. Novo título: prisão temporária. Decisão satisfativa. Acesso aos autos.
Perda de objeto. Novo título: prisão preventiva. Sucessivas supressões de instân­
cia. Implicações.
1. Se advém ato jurídico novo, representado por um despacho de prisão
temporária (mais de 172 laudas), não se pode transformar, em questão tão complexa – crime contra o Sistema Financeiro Nacional, lavagem de dinheiro, cor­
rupção ativa, etc, com inúmeros investigados – um habeas corpus de preventivo
para liberatório. Aliás, o ato não foi levado às instâncias ordinárias.
2. Não é o caso de flexibilização da Súmula 691 (STF), porque tal flexibilização só é possível quando a questão, levada às instâncias anteriores, foi
indeferida liminarmente ou não restou apreciada. Além disso, não há teratologia,
ilegalidade ou abuso de poder.
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3. Não pode essa Suprema Corte apreciar diretamente ato de juiz singular,
para dizer que tal ato não está fundamentado, sob pena de supressão de instâncias.
Na lição da Ministra Ellen Gracie: “Falece competência ao Supremo Tribunal
Federal para conhecer e julgar habeas corpus contra ato de juiz de 1º grau, sob
pena de supressão de instância, em completo desvirtuamento do ordenamento jurídico brasileiro em tema relativo à competência dos órgãos do Poder Judiciário,
notadamente da Suprema Corte.” (HC 93.462/DF, 2ª Turma, julgado de 10.6.2008)
4. Pode o Juiz de 1º grau, de posse de elementos concretos e fatos novos,
após a realização de buscas e apreensões e oitiva de testemunhas, expedir mandado de prisão preventiva, no curso de uma ação de habeas corpus, providência
que se encontra no âmbito de sua competência e atribuições. No dizer do sempre
saudoso ex-Ministro Aliomar Baleeiro: “Prisão preventiva. Não há constrangimento ilegal se, depois da concessão de habeas corpus por defeito de fundamentação do primeiro despacho de prisão preventiva, o juiz expediu outro,
em boa forma processual, reportando-se a novos elementos de convicção de
que o paciente, acusado de receptação dolosa, dificulta a prova e pretenda fugir,
como, aliás, fugiu.” (HC 43.961/RS, 2ª Turma, DJ 15.6.1967). É o caso, mutatis
mutandis!
5. Cabe à 2ª Turma referendar ou não as decisões da ilustrada Presidência
expedidas com base no art. 13, inc. VIII, do RISTF. Precedentes dessa Corte.
6. Pelo referendum de todas as decisões que garantiram às partes e aos
advogados o acesso aos autos; que se reconheça a perda de objeto do mandamus,
que, convertido, passou a atacar prisão temporária, cujo prazo já transcorreu;
que se acate o pedido de reconsideração, para que essa respeitável 2ª Turma não
referende, data venia, a revogação do despacho da preventiva, por supressão de
instância. Além disso, o mesmo contém fatos novos e se encontra devidamente
fundamentado. E, por conseqüência, que se dê ciência ao juiz singular, para os
devidos fins.
12. O Subprocurador-Geral da República Wagner Gonçalves manifestouse novamente às fls. 1415/1415 requerendo, dada a relevância da matéria (art. 21,
inciso XI, c/c art. 22, parágrafo único, letra b, do RISTF), a afetação do julgamento ao Pleno.
É o relatório.
ESCLARECIMENTO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, pela ordem, apenas para deixar
registrado a convicção nutrida.
De início, o julgamento do habeas caberia, como já frisado pelo Ministro
Eros Grau, à Turma. É sabido que qualquer um dos integrantes do Supremo
Tribunal Federal pode, independentemente de provocação, afetar o julgamento
da matéria ao Colegiado maior. Temos julgado inúmeros habeas, mais ou menos com os parâmetros deste, nas Turmas. Mas houve provocação expressa do
Procurador-Geral da República que oficiou no sentido de trazer-se este processo
ao Plenário. E assentiu o ilustre Relator.
De minha parte, entendo que o processo estaria muito bem no âmbito da
Segunda Turma.
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647
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): O habeas corpus preventivo diz com o
futuro. Respeita a futura violação do direito de ir e vir. O temor de que a liberdade do paciente venha a ser sacrificada justifica-o. Temor, medo que decorria,
no caso concreto, do conhecimento de notícia veiculada em jornal de grande
circulação. O fim, seja no pedido preventivo, seja no pleito liberatório, está na
proteção da liberdade de locomoção, ameaçada de forma mediata no primeiro
caso, imediatamente, no segundo. Eis porque o parecer ministerial não prospera
ao sustentar a impossibilidade de conversão de habeas corpus preventivo em
liberatório. A esse respeito o Ministro Gilmar Mendes observou: “o conhecimento do pedido de liberdade por esta Corte se mostra possível em virtude da
conversão da natureza do presente writ, de preventivo para liberatório” (fl. 589).
Nada tenho, em um primeiro passo, a acrescentar quanto a este aspecto.
2. Outrossim, o conhecimento deste habeas corpus antes do pronunciamento de mérito nas instâncias precedentes deu-se de forma convincentemente
fundamentada, qual se infere da leitura do seguinte trecho da decisão, do
Ministro Gilmar Mendes, que deferiu a liminar:
Em princípio, a jurisprudência desta Corte é no sentido da inadmissibilidade
da impetração de habeas corpus, nas causas de sua competência originária, contra
decisão denegatória de liminar em ação de mesma natureza articulada perante tribunal superior, antes do julgamento definitivo do writ (cf. HC 76.347-QO/MS, Rel.
Min. Moreira Alves, Primeira Turma, unânime, DJ de 8-5-98; HC 79.238/RS, Rel.
Min. Moreira Alves, Primeira Turma, unânime, DJ de 6-8-99; HC 79.238/RS, Rel.
Min. Moreira Alves, Primeira Turma, unânime, DJ de 3-3-00; HC 79.775/AP, Rel.
Min. Maurício Corrêa, Segunda Turma, maioria, DJ de 17-3-00; e HC 79.748/RJ,
Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, maioria, DJ de 23-6-00).
Esse entendimento está representado na Súmula 691/STF, verbis: “Não
compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado
contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior,
indefere a liminar”.
O rigor na aplicação da Súmula 691/STF tem sido abrandado por julgados
desta Corte em hipóteses excepcionais em que: a) seja premente a necessidade de
concessão do provimento cautelar para evitar flagrante constrangimento ilegal;
ou b) a negativa de decisão concessiva de medida liminar pelo tribunal superior
importe na caracterização ou na manutenção de situação que seja manifestamente
contrária à jurisprudência do STF (cf. as decisões colegiadas: HC 84.014/MG,
Primeira Turma, unânime, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 25-6-04; HC 85.185/
SP, Pleno, por maioria, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 1º-9-06; HC 88.229/SE, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, maioria, DJ de 23-2-07; e as seguintes decisões monocráticas: HC 85.826-MC/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ
de 3-5-05; e HC 86.213-MC/ES, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 1º-8-05).
3. O prolator dessa decisão demonstrou serem flagrantemente ilegais tanto
a negativa de acesso aos autos do procedimento investigatório, em prejuízo das
partes e de seus procuradores, quanto as prisões temporárias e preventivas, estas
últimas concretizadas após a impetração.
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A prisão cautelar do paciente foi decretada em longa decisão, repetitiva,
que passo a transcrever para registro, adiante dela extraindo, em destaque, trechos significativos. Permito-me de pronto observar que seu caráter, rebarbativo,
é coerente com a circunstância de as “informações” aportadas aos autos pelo
Juiz que a decretou serem evasivas – em verdade o Juiz negou-se a cumprir
o que determinei – tendo sido ademais dirigidas ao “Ministro Eros Grau de
Mello”. Inadmissível que um membro do Poder Judiciário desconheça os nomes
corretos dos juízes desta Corte, o desvio, talvez irônico – o que consubstancia
desrespeito a todos nós – é extremamente grave. A coerência decorre, em alguns
casos, da sua própria incoerência. Lê-se às fls. 914/931:
As autoridades policiais signatárias do pedido formulado às fls. 02/10 re­
presentam pela reconsideração da decisão que indeferiu a Prisão Preventiva de
Daniel Valente Dantas, reportando-se inicialmente ao teor do Relatório Parcial
apresentado a este Juízo em 23.06.2008, no qual teriam sido compiladas as provas
reunidas até aquele momento da investigação e o risco que a liberdade do representado e de outros investigados oferecia à tramitação da presente investigação
“ante aos indícios e materialidade as ameaças e ofertas generosas em troca de
paralisação das investigações ou ocultação de provas necessárias à conclusão do
feito (episódio vazamento)”.
Na residência de Hugo Chicaroni foram apreendidos cerca de R$ 1.280.000,00,
que seriam utilizados para pagamento a título de propina a um dos signatários
da Representação, qual seja, o DPF Victor Hugo, para que o investigado Daniel
Valente Dantas fosse excluído da investigação, como teriam afirmado Hugo
Chicaroni e Humberto Braz nos três encontros que mantiveram no bojo da Ação
Controlada previamente autorizada por este Juízo. Salientam que tal quantia só
não teria sido entregue ao DPF Victor Hugo porquanto o quarto encontro que haveria com os membros do suposto grupo criminoso não se efetivou dado o receio
das autoridades, ante a constatação de que no encontro anterior, foi-lhe entregue
quantia menor (diferença de R$ 950,00), o que poderia configurar estratégia do
suposto grupo para questionar a integridade da conduta dos membros da equipe
de investigação.
Sustentam que referido numerário reforça a hipótese de que Daniel Valente
Dantas tinha pleno conhecimento do oferecimento de propina, conforme indícios que declinam nas alíneas “a” a “d.5” de sua Representação, além disso, [sic]
mencionam que a análise preliminar dos documentos apreendidos na diligência
de Busca e Apreensão realizada na residência de Daniel Valente Dantas teria
trazido novas evidências que reforçariam a necessidade da decretação de sua custódia cautelar.
Apresentam documento intitulado “Contribuições ao Clube”, figurando
dentre eles, as expressões “Contribuição para que um dos companheiros não fosse
indiciado criminalmente”, forma de pagamento “Cash” no valor de 1.500.000,00
(não se sabe em qual moeda), no ano de 2004, figurando como interlocutor pessoa
denominada “Pedro”. Em outra folha manuscrita apreendida em sua residência,
com timbre do Hotel The Waldorf Astoria, pode-se ler a anotação: “usar o assunto
da Polícia p/produzir notícia e influenciar na Justiça”, concluindo seu raciocínio
no sentido de que estaria confirmada “a produção de factóides pela quadrilha com
vistas a manipular a imprensa, a fim de gerar notícias favoráveis à organização criminosa, tudo para abastecer com argumentos as inumeráveis manobras jurídicas
R.T.J. — 208
649
de seus advogados”, mormente porque no curso da investigação havia sido comprovado que o investigado “manteve pessoalmente e por meio de outras pessoas de
sua organização contatos com vários jornalistas, ocasiões nas quais são discutidos
o teor de matérias a serem publicadas na imprensa”.
Pugnam, por fim, pelo acolhimento de sua Representação visando-se garantir a ordem pública, por conveniência da instrução penal e para assegurar a
aplicação da lei penal.
O Ministério Público Federal, em sua manifestação ofertada às fls. 12/23,
requer novamente a decretação da prisão preventiva de Daniel Valente Dantas
e pugna pela adoção da medida também em relação a Wilson Mirza Abraham,
porquanto com a deflagração da Operação Policial, estaria evidenciado que,
sob o comando de Daniel Valente Dantas, Humberto Braz e Hugo Chicaroni
teriam oferecido vantagem indevida ao Delegado de Polícia Federal Vitor Hugo
Rodrigues Alves Ferreira, para determiná-lo a omitir ato de ofício consubstanciado na concretização da investigação criminal, especificamente em relação ao
primeiro investigado e sua irmã Verônica Valente Dantas, incorrendo todos nas
disposições do arigo 333 do Código Penal.
A apreensão de grande quantia em dinheiro na residência de Hugo Chicaroni,
além das declarações deste investigado coligidas no bojo do IPL nº 12.0233/2008
nas quais afiançou que quem teria coordenado a entrega de valores a ele foi
Humberto, que seria executivo do Banco Opportunity, evidenciam ter Daniel
Valente Dantas perpetrado o crime de corrupção ativa, contando ainda com
a participação do advgado Mirza, conforme declarações prestadas por Hugo
Chicaroni. Em acréscimo, pontua o órgão ministerial o documento apreendido na
residência de Daniel Valente Dantas em ordem a demonstrar que “a corrupção
representa expediente contumaz na atividade deletéria desempenhada pelo grupo
criminoso”, porquanto tratar-se-ia de manuscrito dando conta de pagamento de
elevada cifra, no ano de 2004, a título de “contribuição para que um dos companheiros não fosse indiciado criminalmente”. Acompanha a manifestação os documentos encartados às fls. 24/29.
É o relatório.
Decido.
Ora, com os novos elementos acima retratados pela autoridade policial e
pelo órgão ministerial, não se pode deixar de analisar novamente a questão, a despeito da r. decisão do Eminente Ministro Gilmar Mendes, que fez considerações
apenas acerca dos fundamentos da prisão temporária, conforme, aliás, restou registrado na decisão de fls. 305/478 dos autos nº 2008.61.81.008936-1, consignando
a necessidade de outros elementos. A prisão preventiva não tinha sido decretada
na oportunidade pelo fato de ser indispensável estabelecer o vínculo entre o representado Daniel Valente Dantas e aqueles que, supostamente, a seu serviço,
estariam corrompendo a autoridade policial.
Com a revelação de outros elementos, que fornecem subsídios equivalentes
à Prisão Preventiva de Hugo Chicaroni e de Humberto José da Rocha Braz, por
força do preceito da igualdade, não teria sentido permitir e decidir pela prisão
destes e deixar à margem os outros, no caso Daniel Valente Dantas. Do contrário, a justiça criminal correria risco de descrédito caso não sejam debeladas as
desigualdades que, s.m.j., não podem subsistir no seu funcionamento, e este juízo
consagraria verdadeira distinção.
Aqueles que tiveram suas liberdades cerceadas, diante de prisões já decretadas, poderiam alegar situação de inferioridade ou de menor proteção. Em outras
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palavras, invocariam diferenciação injustificada de tratamento, sentimento experimentado de tratamento não igualitário aliás, o que já sente o cidadão comum
quanto à alegada desigualdade de repressão penal, a consciência de que a injustiça
é mais aguda e a justiça severa para as classes mais desfavorecidas (preconceito
de classe).
A diferenciação aceitável de tratamento encontra guarida quando a concessão de direitos especificamente a certas pessoas, notadamente, [sic] às que se
encontram em situação de inferioridade, carência ou menor proteção, somente
ocorre se o objetivo for de alcançar a igualdade e tais direitos aparecem como instrumentais a essa finalidade.
Jorge Miranda entende a esse respeito que “a igualdade social como igualdade efetiva pode considerar-se um elemento ou um momento de uma igualdade
jurídica de conteúdo mais rico” (cf. Princípio da Igualdade, Polis, vol. 3, p. 408).
Determinada solução será materialmente justa se permitir que aquilo que
foi considerado igual entre si se torne cada vez mais próximo do que até aí lhe era
desigual e afigura-se como desejável num dado momento histórico.
Não se pode permitir que subsistam diferenças de tratamento pela justiça
criminal, como historicamente sempre ocorreu, mesmo nos primórdios quando a
vingança privada identificar-se-ia como a justiça do mais forte.
Quanto ao sistema português, por exemplo, as Ordenações Afonsinas (1446,
Afonso V), Manuelinas (1521, Manuel I) e Filipinas (1603, Filipe II), já consignavam, como causa de comutação ou de perdão da pena de morte, o fato de o condenado ser “peritísismo, e muito insígne na sua arte: porque semelhante qualidade
do homem, e que tem tal engenho não deve morrer”, devendo-lhe impor pena
correspondente à sua nobreza.
Logo, não é a diferença (física, psíquica ou econômica), [sic] que motiva o
crime: aqueles que detenham confortável situação econômica, socialmente integrados, como sujeitos perfeitamente aptos, capazes quer do ponto de vista biológico, quer do intelectual, e, por vezes, atém com capacidade acima da média,
devem aceitar a idéia de estar em posição de igualdade a qualquer investigado ou
acusado, respeitando-se a atividade legítima do Estado.
Todos devem merecer adequado tratamento, sem distinção, uma vez presentes os requisitos da Prisão Preventiva. Essa igualdade requer, assim, que não
haja condescendência com os comportamentos duvidosos que atinjam o resultado
de um processo criminal legítimo, jamais justificados “naquilo que todos fazem”,
devendo merecer pronto repúdio, não se admitindo clemências públicas despropositadas ou tratamento privilegiado ou leniente.
Não há direito subjetivo a responder o processo em liberdade por parte
de pessoas que teriam atuado para obstruir a persecução penal. A Constituição
Federal, como, aliás, todas as Constituições, não podem se constituir numa Carta
de Declaração de Direitos Individuais. Ela estabelece princípios. Consiste num
instrumento útil e dinâmico de conjugação de preceitos baseados nos valores da
sociedade em determinado momento histórico. Caso a encare sob uma única óptica, míope será a interpretação por não se conformar com o verdadeiro sentido da
obra. Há conjugação de direitos e obrigações a todas as pessoas que a ela devem
se submeter.
No caso, deve prevalecer o interesse público de uma apuração regular
sem as interferências, já comprovadas, de que lança mão o representado Daniel
Valente Dantas, conforme passa-se a aduzir.
R.T.J. — 208
651
As investigações efetivadas nos feitos nºs 2007.61.81.001285-2, 2007.
61.81.011419-3 e 2007.61.81.010208-7, bem ainda as obtidas a partir de 08.07.2008,
no desencadeamento da Operação “Satiagraha”, por força das Representações
Policiais contidas nos autos sob nºs 2008.61.81.008936-1, 2008.61.81.008919-1 e
2008.61.81.008920-8, nas quais foram deferidas medidas de Busca e Apreensão,
de Prisões Prevetivas e Temporárias, de Quebras de Sigilo Fiscal e Bancário de vários investigados, dentre outras, permitiram a apuração de indícios de dois supostos grupos criminosos voltados à perpetração de delitos em princípio tipificados
nos artigos 288 (c.c. o artigo 2, alínea, “a” da Convenção de Palermo – introduzida
no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 5.015, de 12.03.2004, e c.c. a
Lei nº 9.034, de 03.05.1995), 332 e 333, todos do Código Penal; artigos 4º, caput,
16.17 e 22, todos da Lei nº 7.492, de 16.06.1986; artigo 27-D da Lei nº 6385, de
07.12.1976, e artigo 1º, incisos V, VI e VIII, da Lei nº 9.612, de 03.03.1998.
No que tange a Daniel Valente Dantas, foi possível aferir por meio das
diligências de Busca e Apreensão efetivadas em 08.07.2008, tanto em sua residência quando no endereço de Hugo Chicaroni, fortes indícios do cometimento do
delito tipificado no artigo 333 do Código Penal, perpetrado, em tese, em face de
autoridade policial federal, conforme descrição contida às fls. 305/478 dos autos
nº 2008.61.81.008936-1.
Cabe, neste ponto, relembrar que as prisões preventivas decretadas em
04.07.2008 em relação às pessoas de Humberto José da Rocha Braz e de Hugo
Chicaroni decorreram da necessidade de postergar as prisões em flagrante em
razão das medidas adotadas no procedimento de Ação Controlada que aconselharam o protelamento [sic] daquelas medidas.
No endereço de Hugo Chicaroni foi apreendida no dia 08.07.2008 a quantia
de R$ 1.280.000,00, num claro indicativo de que destinar-se-ia à complementação dos valores outrora entregues à Autoridade Policial Federal (recebidos dentro
do Procedimento de Ação Controlada em curso perante este Juízo) visando-se
o pleno êxito do intento de fazer cessar o andamento de qualquer investigação
perante o Poder Judiciário Federal em desfavor de Daniel Valente Dantas, de
Verônica Valente Dantas e de outro familiar, questão já retratada na decisão proferida em 04.07.2008.
Há de se observar que para o indeferimento do pedido de prisão preventiva
de Daniel Valente Dantas outrora requerido pela autoridade policial, com manifestação favorável do Ministério Público Federal, este juízo reputou ausente seguro vínculo deste investigado com os representados Humberto e Hugo no tocante
às tratativas para a consumação do delito de corrupção ativa, objeto de apuração
nos autos da Ação Controlada sob nº 2008.61.81.008291-3.
Até aquele momento, pela análise dos elementos de prova existentes, podiase entrever que todas as tratativas levadas a efeito por Humberto e Hugo perante
Delegado de Polícia Federal que auxiliava nas investigações objeto das medidas assecuratórias em curso, tinham como beneficiários diretos Daniel Valente
Dantas, Verônica Valente Dantas e outro familiar. Tal circunstância, contudo,
não se afigurava suficiente a conferir a concretude necessária ao acolhimento do
pedido de prisão preventiva de Daniel, tanto é que se fez constar daquele decisum:
“(...) Já, desde o princípio das investigações, tem-se aferido que
Daniel Valente Dantas voltar-se-ia, em tese, ao cometimento dos delitos,
ora em averiguação, com a absoluta certeza de sua impunidade tanto é que
diligentemente exerceria seu poder de mando sobre os demais investigados
652
R.T.J. — 208
sem adoção de ações visíveis, porquanto seu nome não consta de muitas
das empresas investigadas; utiliza-se de telefone com parcimônia, deixando
entrever, em poucos, mas significativos diálogos, sua posição de proeminência; raramente faz uso de e-mails, fato por ele claramente revelado em
um dos diálogos monitorados (a título ilustrativo, merece mais uma vez ser
salientado sua articulação para confundir autoridade judiciária da Corte de
New York na ocasião em que prestara depoimento em processo movido pelo
Citibank) e, de forma evasiva, vale-se dos demais investigados, que comporiam formalmente seu Grupo, cujas supostas atividades ilícitas estariam se
divisando neste atual estágio de investigações.
Como salientado em tópico precedente, o crime de corrupção ativa
que teria sido perpetrado por Humberto José da Rocha Braz e Hugo Chicaroni
e que motivou a decretação de suas prisões preventivas, aparentemente
guardaria liame com as condutas de Daniel Valente Dantas.
Os vínculos desse investigado com aqueles que, aparentemente,
em seu nome, oferecem e entregam à autoridade policial altas somas em
dinheiro (para possivelmente afastá-lo, bem como sua irmã e outro familiar), fornecem subsídios ao juízo no sentido de que tais pessoas (Hugo
e Humberto) teriam atuado sob suposta orientação do primeiro (Daniel
Valente Dantas). Tal inferência, se de um lado impõe cautela na apreciação
do pedido de decretação da prisão preventiva requerido pela autoridade policial e pelo Ministério Público Federal, de outro, aconselha a decretação de
sua prisão temporária como forma de se obter maiores elementos acerca do
delito de corrupção ativa, bem como dos demais delitos em averiguação, afigurando-se, pois, a medida constritiva imprescindível às investigações (...)”.
As questões aduzidas naquela ocasião estão agora superadas diante dos
novos elementos de prova obtidos por meio das diligências de Busca e Apreensão
realizadas no dia 08.07.2008 que conferem suporte necessário ao que já se verificou pelos contatos telefônicos e telemáticos objeto de monitoramento, nos
quais Humberto teria supostamente agido a mando de Daniel Valente Dantas,
na medida em que teria sido a pessoa que efetivara contatos com autoridade policial, oferecendo-lhe vantagem indevida para “determiná-lo a praticar, omitir ou
retardar ato de ofício”, consistente em altas somas em dinheiro e em espécie, cuja
origem deve ser objeto de perquirição.
Hugo Chicaroni ao ser inquirido nos autos do IPL nº 12.0233/2008, assim declarou: “é amigo de um ex-Desembargador chamado Pedro Rotta; que,
em determinada ocasião Pedro Rotta apresentou ao declarante um advogado de
nome Mirza, o qual milita na cidade do Rio de Janeiro/RJ; que, Mirza questionou
ao declarante se o mesmo conhecia o delegado Queiroz; que o declarante deu
resposta positiva, afirmando que conheceu o referido Delegado Queiroz aproximadamente, no ano de 2003, ocasião em que o declarante apresentou à Polícia
Federal, o projeto de palestras a serem ministradas; que, então Mirza comentou
com o declarante a respeito de notícia publicada no Jornal Folha de São Paulo sobre eventual investigação envolvendo Daniel Dantas e/ou o Grupo Opportunity,
mostrando ao declarante referida notícia (tal investigação estaria sendo presidida
pelo Delegado Queiroz); que, então Mirza perguntou ao declarante se o mesmo
poderia perguntar ao Delegado Queiroz sobre a investigação; que, aproximadamente, 20 dias depois o declarante questionou o Delegado Queiroz a respeito do
fato acima mencionado; que, o Delegado Queiroz afirmou ao declarante que “não
estava no caso”, tendo indicado um Delegado chamado Vitor Hugo para presidir
R.T.J. — 208
653
a investigação; que, então o declarante falou para o Delegado Queiroz que tinha
sido procurado pelo Grupo Opportunity, na pessoa do advogado Mirza, o qual teria solicitado ao declarante que conversasse com o Delegado Queiroz a respeito da
notícia supramencionada; (...) que, então, o declarante conheceu o Delegado Vitor
Hugo questionando o mesmo sobre a possibilidade de que fossem passadas informações ao Grupo Opportunity sobre a investigação envolvendo o mesmo Grupo;
que, o Delegado Vitor Hugo afirmou que poderia passar alguma informação, mas
que não trataria com advogados, mas somente com algum executivo ligado ao
Grupo Opportunity; que, neste mesmo dia, o declarante entregou ao Delegado
Vitor Hugo a quantia de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) a título de “primeiro
encontro” e também pela promessa de pequenas informações; que, o declarante
comunicou tal fato ao advogado Mirza, salientando que o Delegado Vitor Hugo,
somente conversaria com executivos do Grupo Opportunity; que, então Mirza
apresentou ao declarante uma pessoa de nome Humberto, executivo do Grupo
Opportunity e morador da cidade do Rio de Janeiro/RJ; que o declarante informa
ter conhecimento que o controlador do Grupo Opportunity é Daniel Dantas e que
Humberto estava na condição, naquele momento, representando interesses, do
Grupo Opportunity; (...) que, poucos dias depois o declarante marcou um jantar
no Restaurante El Tranvia com o Delegado Vitor Hugo, ocasião em que o executivo Humberto também compareceu; que, nesta data, o Delegado Vitor Hugo e
Humberto conversaram por longo tempo, tendo sido confirmado que a quantia
de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) recebida pelo Delegado Vitor Hugo foram
entregues em nome do Grupo Opportunity; que, na mesma ocasião o Delegado
Vitor Hugo mostrou um envelope no qual continha alguns documentos referentes
à investigação focada no Grupo Opportunity; que, após tal fato o Delegado Vitor
Hugo em (sic) Humberto combinaram que o Delegado receberia a quantia de US$
1.000.000,00 (um milhão de dólares) para passar informações da investigação
supramencionada; (...) que, aproximadamente uma semana depois o declarante
entregou ao Delegado Vitor Hugo mais R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) referentes
ao acordo celebrado entre a Autoridade Policial e o executivo Humberto; que, há
aproximadamente 10 dias, algumas pessoas ligadas ao Grupo Opportunity levaram à casa do declarante (diversas entregas) a quantia de R$ 865.000,00 (oitocentos e sessenta e cinco mil reais), os quais deveriam ser entregues ao Delegado
Vitor Hugo; que, o declarante gostaria de salientar que somente a quantia supramencionada foi entregue, por pessoas ligadas ao Grupo Opportunity, sendo que o
restante do dinheiro apreendido em sua residência era oriundo de serviços prestados pelo declarante à Empresa Frango Forte (...)”.
Em outra declaração prestada no mesmo dia e na presença de seu advogado, Hugo Chicaroni revelou: “Que, em relação aos recursos que recebeu para
pagamento ao Delegado Vitor Hugo informa que quem coordenou a entrega dos
valores ao Declarante foi uma pessoa de nome Humberto, executivo do Banco
Opportunity”.
O estreito vínculo entre Daniel Valente Dantas, Hugo Chicaroni e Humberto
Braz, se precendentemente às diligências encetadas a partir do dia 08 do corrente
mês não se afigurava plenamente apto à decretação de sua custódia preventiva,
neste momento ressai com clareza suficiente à reconsideração deste Juízo para o
fim de determinar sua prisão preventiva diante dos elementos de prova apresentados nesta data, por meio da Representação da Polícia Federal e pela manifestação
ofertada pelo Parquet Federal.
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R.T.J. — 208
Transcreve-se, a seguir, excerto da Representação Policial ao tecer considerações acerca do dinheiro apreendido na residência de Hugo Chicaroni reforçando
a hipótese de que efetivamente Daniel Valente Dantas era sabedor do oferecimento de propina à Polícia Federal, como segue:
“a) as interceptações telefônicas e telemáticas comprovaram, no curso
da investigação, que Humberto Braz é o braço direito de Daniel Valente
Dantas na organização criminosa; b) o pagamento ofertado por Humberto
Braz na reunião com o signatário tinha por propósito excluir Daniel Dantas
e seus familiares da investigação, ou seja, o beneficiado direto do crime
seria Dantas, e não Chicaroni e Braz e a pergunta elementar que se deve
fazer quando se investiga um crime é a quem ele aproveita; c) em telefonemas para o telefone do DPF Victor Hugo, interceptado com autorização
judicial sugerida pelo próprio, Hugo Chicaroni disse, em código, que o
dinheiro do pagamento já estaria em sua residência; d) sendo o homem de
confiança e subordinado direto de Dantas, não é nem minimamente crível
que Humberto Braz, sem o consentimento de seu chefe: d1) telefonasse ao
DPF Victor Hugo propondo uma reunião, como de fato o fez, apesar de a
conversa não ter sido interceptada, por ainda não ter havido autorização
judicial; d2) adiantasse R$ 50 mil a Hugo Chicaroni para que a importância
fosse oferecida ao signatário como gratificação pelo primeiro contato; d3)
arriscasse-se a reunir-se com o DPF Victor Hugo e propor o pagamento de
um milhão de dólares para excluir Dantas e seus familiares da investigação;
d4) entregasse mais R$ 79.050,00 a Hugo Chicaroni para que adiantasse
novamente ao signatário; d5) finalmente, providenciasse um milhão, duzentos e oitenta mil reais para abastecer o apartamento de Hugo Chicaroni de
dinheiro a fim de que fosse posteriormente entregue ao DPF Victor Hugo.”
Na diligência de Busca e Apreensão efetivada na residência de Daniel
Valente Dantas foi apreendido manuscrito (cuja fotografia está inserida à fl. 05
da Representação da Autoridade Policial) intitulado “Contribuições ao Clube”
dando mostras de que em outra oportunidade já se valia do espúrio mecanismo
de corrupção ativa, na medida em que em tal documento observam-se as expressões “Contribuição para que um dos companheiros não fosse indiciado criminalmente”, forma de pagamento “Cash”, no valor de R$ 1.500.000,00 (não se sabe
em qual moeda), no ano de 2004, figurando como interlocutor pessoa denominada
“Pedro”.
Em outra folha manuscrita apreendida na residência de Daniel Valente
Dantas, com timbre do Hotel The Waldorf Astoria, pode-se ler a anotação: “usar
o assunto da polícia p/produzir notícia e influenciar na Justiça” (fls. 05/06), concluindo a autoridade policial, seu raciocínio no sentido de que estaria confirmada
“a produção de factóites pela quadrilha com vistas a manipular a imprensa, a fim
de gerar notícias favoráveis à organização criminosa, tudo para abastecer com
argumentos as inumeráveis manobras jurídicas de seus advogados”, mormente
porque no curso da investigação havia sido comprovado que o investigado “manteve pessoalmente e por meio de outras pessoas de sua organização contatos com
vários jornalistas, ocasiões nas quais são discutidos o teor de matérias a serem
publicadas na imprensa” (fl. 06).
Vislumbra-se, pois, em tese, o crime de corrupção ativa supostamente
perpetrado por Daniel Valente Dantas, Humberto José da Rocha Braz e Hugo
Chicaroni, donde se conclui também pela necessidade da decretação da prisão preventiva do primeiro nominado, por afigurar-se medida essencial à conveniência
R.T.J. — 208
655
da instrução criminal, porquanto tudo fará para continuar obstando regular e legítima atuação estatal visando impedir a apuração de fatos criminosos.
Como já se afirmou na decisão exarada em 04.07.2008, nos autos de nº
2008.61.81.008936-1, não houve apenas oferecimento de recursos à autoridade
policial, mas entrega efetiva de moeda em espécie (inicialmente R$ 50.000,00
e depois 79.050,00 – tais quantias estão devidamente acauteladas perante o
Departamento de Polícia Federal, nos termos do Procedimento de Ação Controlada
deferido por este juízo – autos nº 2008.61.81.008291-3), com a promessa de pagamento de um milhão de dólares, para contínua obtenção de informações sigilosas
e para afastar das investigações o ora representado Daniel Valente Dantas, bem
como Verônica Valente Dantas e outro familiar.
Vale uma vez mais, relembrar, que Hugo Chicaroni relatou no mês de junho
do corrente ano à autoridade policial, no Procedimento de Ação Controlada, que
“o pagamento a ser feito por Humberto seria destinado a livrar Daniel Valente
Dantas, seu filho e sua irmã da investigação e que a preocupação de Dantas seria
apenas com o processo ‘na primeira instância’, uma vez que no STJ e no STF ele
‘resolveria tudo com facilidade” (fl. 29 dos autos nº 2008.61.81.008291-3), dando
mostras e sinas de ousadia e zombaria sem precedentes.
Pelo monitoramento, pôde-se também perceber em diálogo mantido pela
investigada Danielle Silbergleid Nimio em 27.06.2008, às 14h29m37s, com o advogado Korologos, tratativas neste sentido já que teria sido afirmado o pagamento
de valores para o encerramento de todos os procedimentos administrativos, “mas
para os processos criminais fica muito mais difícil” (cf.fls. 785/786 dos autos nº
2008.61.81008919-1), revelando que órgãos da administração pública (‘FCC brasileira’, segundo o diálogo) também teriam sido objeto de atuação ilícita.
Consigne-se, ainda, ter sido possível aferir das investigações que Hugo, por
ordem do representante do Grupo Opportunity, procurara o delegado de Polícia
Federal Victor Hugo Rodrigues Alves Pereira, que integraria a equipe de investigação da “Operação Satiagraha” para efetivar as tratativas iniciais. Contudo, em
razão deste policial federal ter afirmado que somente conversaria com o excecutivo do aludido Grupo, fez-se necessário o agendamento de novo encontro, mas,
já naquela oportunidade, houve entrega da quantia de R$ 50.000,00. Em outra
ocasião, fez-se presente o co-investigado Humberto José da Rocha Braz em jantar
com Hugo Chicaroni e o aludido Delegado de Polícia Federal, ocasião em que foi
efetivado o pagamento da quantia de R$ 79.050,00 (cf. autos da Ação Controlada).
Tais elementos de prova, além dos acrescidos após as diligências efetivadas
no dia 08.07.2008 (documentos apreendidos e versão de Hugo), nos quais Hugo,
em seu depoimento prestado na Polícia Federal (acima citado), declara ter sido
procurado por Wilson Mirza Abraham que o teria questionado se conheceria o
Delegado Queiroz. Diante de sua afirmativa, Hugo teria efetuado contato com o
referido Delegado, que teria afirmado “que não estava no caso”, indicando que
a presidência da investigação estaria a cargo do Delegado Victor Hugo. Diante
desses fatos, foi dado prosseguimento às tratativas para a suposta perpetração do
crime de corrupção ativa.
Todos estes elementos dão pleno suporte às conclusões de que Daniel
Valente Dantas efetivamente teria determinado o pagamento de propina, figurando Humberto como o representante do Grupo Opportunity para a suposta perpetração do aludido crime. Todavia, a despeito da possível participação de Wilson
Mirza Abraham, neste atual estágio das investigações, não vislumbro, por ora, a
certeza necessária ao acolhimento do pleito ministerial no tocante à decretação de
sua Prisão Preventiva.
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Ao contrário, a conduta de Daniel Valente Dantas afigura-se mais nítida ao
se verificar que se tivessem logrado sucesso no acordo pretendido, imenso e irreparável prejuízo às investigações teria advindo notadamente levando-se em conta
o objetivo de isentar pessoas das imputações que possivelmente sobre elas recaísse
para atribuí-las a terceiros, sem mensurar o dano já sentido diante do vazamento e
posterior publicação acerca da investigação.
Lançam-se, supostamente, mão de práticas escusas para obstruir, quando não
obstaculizar, o exercício normal e eficaz da persecução criminal. A prisão preventiva também de Daniel Valente Dantas, in casu, está justificada para conveniência da instrução penal e para assegurar a eventual aplicação da lei criminal dada a
flagrante e acintosa captação de terceiros para a prática delitiva, desafiando, desse
modo, o poder de controle e repressão das autoridades, revelando a finalidade primeira e última de sua atuação espúria, com potencialidade lesiva, habitualidade
atual e prospectiva de sua conduta, caso permaneça em liberdade.
Os elementos coletados até o presente momento permitem ao juízo concluir
que Daniel Valente Dantas adota supostamente postura de extrema cautela ante
as ligações telefônicas e troca de e-mail’s, mas com a idéia de inoperância dos
órgãos de controle, o que lhe possibilita aparentemente a persistência da prática
delitiva, além de possuir considerável poder de decisão, autonomia e representação em sua esfera de atuação, tentando frustrar a persecução penal de modo que,
solto, possivelmente continuaria a empreender a prática de atividades delitivas,
colocando em sério risco a ordem econômica, a ordem pública, justificando, assim, a medida.
Os artigos 311 e 312 do Código de Processo Penal prevêem que a custódia
preventiva deve ser decretada quando, havendo prova de existência do crime e
indícios suficientes de autoria (pressupostos), a prisão mostrar-se necessária para
garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução
criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal (requisitos).
A ordem pública, associada à credibilidade que o Poder Judiciário desfruta perante a sociedade, foi também afetada pelos fatos aqui noticiados, ainda
mais quando se considera que os crimes cuja averiguação se pretendia impedir
têm o poder de lesar investidores em milhões de reais, com prejuízo ao Sistema
Financeiro Nacional, afetando a ordem econômica.
Os fatos em exame, além de evidenciarem o desrespeito de Daniel, de
Humberto e de Hugo para com os órgãos estatais, notadamente, a Polícia Federal,
o Ministério Público Federal e o Poder Judiciário Federal, afetam a credibilidade
deste à medida que não se adote resposta drástica para fazer cessar a prática de
atos irregulares.
Júlio Fabbrini Mirabete em suas sempre bem fundamentadas lições elucida
a necessidade da prisão preventiva, como segue: “o conceito de ordem pública não
se limita a prevenir a reprodução dos fatos criminosos, mas também acautelar o
meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de
sensibilidade do juiz à reação do meio ambiente à prática delituosa. Embora seja
certo que a gravidade do delito, por si, não basta para a decretação da custódia, a
forma e execução do crime, conduta do acusado, antes e depois do ilícito, e outras
circunstâncias podem provocar imensa repercussão e clamor público abalando a
própria garantia da ordem pública, impondo-se a medida como garantia do próprio prestígio e segurança da atividade jurisdicional. A simples repercussão do
fato, porém, sem outras conseqüências, não se constitui em motivo suficiente para
decretação da custódia, mas está ela justificada se o acusado dotado de periculosidade, na perseverança da prática delituosa, quando denuncia na prática do crime
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657
perversão, malvadez, cupidez e insensibilidade moral” (Código de Processo Penal
Interpretado, ed. Atlas, p. 690). (grifo nosso)
A jurisprudência de nossos Tribunais, quanto ao conceito de ordem pública,
tem se posicionado no seguinte sentido:
“Ementa:
Habeas corpus. 2. Crime contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei n.
7.492/1986; Lei n. 8.137/1990 e Lei n. 9.613/1988, e art. 288 do Código penal).
3. Decreto prisional fundado nos requisitos da garantia da ordem pública,
garantia da ordem econômica e na necessidade de assegurar a aplicação da
lei penal. 4. Alegação de ausência dos requisitos para decretação da prisão
preventiva (CPP, art. 512). 5. Quanto à ordem pública, a jurisprudência do
Tribunal se firmou no sentido de que a caracterização genérica ou a mera
citação do art. 312 do CPP não são suficientes para caracterizar a ameaça
à ordem pública. Preceentes: HC n. 84.680-PA, Rel. Min. Carlos Britto, DJ
de 15.04.2005; HC n. 82.852-DF, Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de
05.09.2003; HC n. 82.770-RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de
05.09.2003; HC n. 83.943-MG, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de
17.09.2004; HC nº 83.641-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de
17.05.2005. 6. Segundo entendimento jurisprudencial do STF, a garantia da
ordem econômica, por sua vez, funda-se não somente na magnitude da lesão
causada, mas também na necessidade de se resguardar a credibilidade das
instituições públicas. Precedente: HC n. 80.177-SP, Red. Para o acórdão Min.
Ellen Gracie, DJ de 05.03.2004 (...).”
(Habeas Corpus n. 85.615/RJ, 2ª Turma do E. Supremo Tribunal Federal,
v.u., Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 03.03.2006, p. 91) (grifo nosso)
“Ementa: Habeas corpus. Questão de ordem. Pedido de medida liminar.
Alegada nulidade da prisão preventiva do Paciente. Decreto de prisão cautelar
que se apóia na gravidade abstrata do delito, supostamente praticado, na neces­
sidade de preservação da ‘credibilidade de um dos Poderes da República’, no
clamor popular e no poder econômico do acusado. Alegação de excesso de prazo
na conclusão do processo.
(...) O plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC
80.717, fixou a tese de que o sério agravo à credibilidade das instituições públicas pode servir de fundamento idôneo para fins de decretação da prisão
cautelar, considerando, sobretudo, a repercussão do caso concreto na ordem
pública. O poder econômico do réu, por si só, não serve para justificar a
segregação cautelar, até mesmo para não se conferir tratamento diferenciado, no ponto, às pessoas humildes em relação às mais abastadas (caput
do art. 5º da CF). Hipótese, contudo, que não se confunde com os casos em
que se comprova a intenção do acusado de fazer uso de suas posses para
quebrantar a ordem pública, comprometer a eficácia do processo, dificultar
a instrução criminal ou voltar a delinqüir. No caso, não se está diante de
prisão derivada da privilegiada situação econômica do acusado. Trata-se,
tão-somente, de impor a segregação ante o fundado receio de que o referido
poder econômico se transforme em um poderoso meio de prossecução de
práticas ilícitas (...).”
(Habeas Corpus nº 85298/SP, 1ª Turma do E. supremo Tribunal Federal,
Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. para acórdão Ministro Carlos Britto, p.m., j.
29.03.2005, DJ de 04.11.2005, p. 26) (grifo nosso)
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Impõe sublinhar que o juízo de valor exarado sobre as condutas do investigado vinculou-se a fatos concretos, sendo insubsistente possuir Daniel Valente
Dantas domicílio certo e eventual vida pregressa imaculada, porquanto faz-se
necessária, neste momento, sua constrição cautelar diante da aferição da presença
dos requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, com fundamento nos
artigos 311 e 312, ambos do Código de Processo Penal, por conveniência da instrução criminal, para assegurar eventual aplicação da lei penal e também para
garantias das ordens pública e econômica.
Em remate, não é possível olvidar que o requerido detém significativo poder
econômico e possui contatos com o exterior, ampliando a possibilidade de evasão
do território nacional, bem ainda porque poderia ocultar vestígios criminosos que
ainda se esperam poder apurar, autorizando, desta feita, a decretação de Prisão
Preventiva também para garantir a eventual aplicação da lei penal. Ficou claro que
coragem e condições para tumultuar a persecução penal não falta ao representado.
Dê-se ciência ao Ministério Público Federal e à Autoridade Policial, ficando
quaisquer destes órgãos autorizados a retirar em cartório o Mandado de Prisão
Preventiva.
5. Extraio à leitura desse extenso texto – longo por repetição, não na sua
substância – que a prisão cautelar foi inicialmente rejeitada sob o fundamento de
ausência de conduta, do paciente, necessária ao estabelecimento de nexo de causalidade entre ela e os fatos imputados a Hugo Chicaroni e a Humberto José da
Rocha Braz (corrupção ativa). Posteriormente, atendendo a representação da autoridade policial, secundada pela manifestação do Ministério Público Federal, o
Juiz reconsiderou a decisão anterior e decretou a prisão preventiva, acentuando
a ocorrência de fatos novos.
6. Eis, em síntese, nos trechos significativos, os fundamentos da decretação dessa prisão:
Fls. 920: “pela análise dos elementos de prova existentes, podia-se entrever
que todas as tratativas levadas a efeito por Humberto e Hugo perante Delegado
de Polícia Federal que auxiliava nas investigações objeto [sic] das medidas assecuratórias em curso, tinham como beneficiários diretos Daniel Valente Dantas,
Verônica Valente Dantas e outro familiar. Tal circunstância, contudo, não se afigurava suficiente a conferir a concretude necessária ao acolhimento do pedido de
prisão preventiva de Daniel”.
Fls. 922: “As questões aduzidas naquela ocasião estão agora superadas
diante dos novos elementos de prova obtidos por meio das diligências de Busca e
Apreensão realizadas no dia 08.07.2008 que conferem suporte necessário ao que
já se verificou pelos contatos telefônicos e telemáticos objeto de monitoramento,
nos quais Humberto teria supostamente agido a mando de Daniel Valente Dantas,
na medida em que teria sido a pessoa que efetivara contatos com autoridade policial, oferecendo-lhe vantagem indevida para ‘determiná-lo a praticar, omitir ou
retardar ato de ofício’, consistente em altas somas em dinheiro e em espécie, cuja
origem deve ser objeto de perquirição”.
Fls. 924: “O estreito vínculo entre Daniel Valente Dantas, Hugo Chicaroni
e Humberto Braz, se precendentemente às diligências encetadas a partir do dia 08
do corrente mês não se afigurava plenamente apto à decretação de sua custódia
preventiva, neste momento ressai com clareza suficiente à reconsideração deste
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659
Juízo para o fim de determinar sua prisão preventiva diante dos elementos de
prova apresentados nesta data, por meio da Representação da Polícia Federal e
pela manifestação ofertada pelo Parquet Federal”.
Fls. 925: “Na diligência de Busca e Apreensão efetivada na residência de
Daniel Valente Dantas foi apreendido manuscrito (cuja fotografia está inserida
à fl. 05 da Representação da Autoridade Policial) intitulado ‘Contribuições ao
Clube’ dando mostras de que em outra oportunidade já se valia do espúrio mecanismo de corrupção ativa, na medida em que em tal documento observam-se
as expressões ‘Contribuição para que um dos companheiros não fosse indiciado
criminalmente’, forma de pagamento ‘Cash’, no valor de R$ 1.500.000,00 (não se
sabe em qual moeda), no ano de 2004, figurando como interlocutor pessoa denominada ‘Pedro’.
Em outra folha manuscrita apreendida na residência de Daniel Valente
Dantas, com timbre do Hotel The Waldorf Astoria, pode-se ler a anotação: ‘usar
o assunto da polícia p/produzir notícia e influenciar na Justiça’ (fls. 05/06), concluindo a autoridade policial, seu raciocínio no sentido de que estaria confirmada
‘a produção de factóites pela quadrilha com vistas a manipular a imprensa a fim
de gerar notícias favoráveis à organização criminosa, tudo para abastecer com
argumentos as inumeráveis manobras jurídicas de seus advogados’, mormente
porque no curso da investigação havia sido comprovado que o investigado ‘manteve pessoalmente e por meio de outras pessoas de sua organização contatos com
vários jornalistas, ocasiões nas quais são discutidos o teor de matérias a serem
publicadas na imprensa’ (fl. 06).
Vislumbra-se, pois, em tese, o crime de corrupção ativa supostamente
perpetrado por Daniel Valente Dantas, Humberto José da Rocha Braz e Hugo
Chicaroni, donde se concluir também pela necessidade da decretação da prisão
preventiva do primeiro nominado, por afigurar-se medida essencial à conveniência da instrução criminal, porquanto tudo fará para continuar obstando regular e
legítima atuação estatal visando impedir a apuração de fatos criminosos.”
7. O Ministro Gilmar Mendes, embora reconhecendo a ocorrência desses
fatos, não os considerou suficientemente relevantes para justificar a decretação
da medida excepcional de cerceio da liberdade. E nem poderia tê-lo feito. Tais
fatos, aos quais se refere a autoridade policial, inicialmente consistem – repito
para deixar este ponto bem vincado – na apreensão de documentos na residência
do paciente. Um deles, manuscrito datado de 2004 no qual há alusão a contribuições a autoridades, visando, supostamente, o não-indiciamento criminal de
pessoas. Daí a impossibilidade do estabelecimento de relação entre esse manuscrito, de 2004, e fatos ocorridos em meados de 2008. O outro fato novo estaria
na apreensão de uma folha manuscrita na residência de Daniel Valente Dantas,
com timbre do Hotel The Waldorf Astoria, no qual se pode ler a seguinte anotação: “usar o assunto da polícia p/produzir notícia e influenciar na Justiça”.
8. O Juiz da causa autorizou medidas cautelares – quebra de sigilos telefônicos, trinta e duas buscas e apreensões etc. – com o intuito de viabilizar a
eventual instauração de ação penal. Essas medidas lograram êxito, cumpriram
seu desígnio. Daí resultar desnecessária a prisão preventiva por conveniência da
instrução criminal sem que o magistrado aponte a necessidade da produção de
outras provas, explicitando, de forma fundamentada, o prejuízo decorrente da
660
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liberdade do Paciente. A não ser assim ter-se-á prisão arbitrária e, conseqüentemente, temerária, autêntica antecipação da pena.
9. É certo, de outra banda, que a prisão cautelar para garantia da aplicação da lei penal fundada na situação econômica do Paciente e em contatos seus
no exterior não encontra ressonância na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal (HC 72.358, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 9-6-95 e HC 86.758,
Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 1º-9-06), pena de estabelecer-se distinção
entre ricos e pobres, para o bem e para o mal.
10. A custódia cautelar voltada à garantia da ordem pública não pode, igualmente, ser decretada com esteio em mera suposição – vocábulo abundantemente
usado na decisão que a decretou – de que o Paciente obstruirá as investigações
ou continuará delinqüindo. Seria indispensável, também aí, a indicação de elementos concretos que demonstrassem, cabalmente, a necessidade da medida
extrema.
11. No que concerne à preservação da ordem econômica, no decreto prisional nada se vê a justificar a prisão cautelar do Paciente, que não há de suportar
esse gravame por encontrar-se em situação econômica privilegiada. As conquistas de classe dos subalternos, não se as produz no plano processual penal;
outras são as arenas nas quais devem ser imputadas responsabilidades aos que
acumulam riqueza. Por isso não me excedo ao observar que a História não é objeto de apropriação individual, ainda que os que acumulam riquezas acumulem
também liberdades, fartem-se de liberdades. Ao processo de acumulação de
capital corresponde o de acumulação das liberdades, mas a prisão cautelar não
resultaria justificável tão-só em razão disso. Aqui também se imporia a demonstração de circunstâncias expressivas de prejuízo concreto à ordem econômica.
12. Isso não bastasse, os fundamentos fáticos da prisão preventiva por
conveniência da instrução criminal – “suborno” da autoridade policial, a fim
de que esta se abstivesse de investigar determinadas pessoas – à primeira vista
se confundem com os elementos constitutivos do tipo descrito no art. 333 do
Código Penal (corrupção ativa).
13. Aliás, o advogado do HC 95.693, no qual Humberto José Rocha Braz é
Paciente, juntou aos autos daquela impetração parecer do Subprocurador-Geral
da República Eduardo Antônio Dantas Nobre no qual S. Exa. aponta a ilegalidade da prisão preventiva do Paciente exatamente porque essa medida excepcional de constrição da liberdade não poderia ter como fundamento os elementos
constitutivos do tipo, fazendo-se necessária a indicação de fatos concretos que
justificassem a custódia processual, fatos por ele mesmo – o SubprocuradorGeral da República Eduardo Antônio Dantas Nobre – não vislumbrados. Daí
porque opinou no sentido da concessão da ordem no Superior Tribunal de
Justiça. Note-se que os fatos são os mesmos lá e cá. Eis, no que importa, trechos
dessa manifestação da Subprocuradoria-Geral da República:
6. A prisão preventiva deve ser decretada por despacho fundamentado,
cabendo à autoridade judiciária, por isso, demonstrar, acima de qualquer dúvida
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razoável, que o fato determinante da restrição imposta à liberdade ambulatória,
[sic] subsume-se a uma das situações modeladas, hipoteticamente, pela disposição
inscrita no Código de Processo Penal, art. 312.
7. Tenho que não se adequam a essas previsões motivos invocados, com
freqüência, pelas Primeira e Segundas Instâncias, que se encerram em fórmulas
como o clamor público provocado pelo crime, em decorrência de sua gravidade concreta ou abstrata, a necessidade de preservar a credibilidade das
instituições judiciárias ou o bem jurídico pela norma incriminadora, pois,
em nenhuma delas, é possível visualizar embaraços ao resultado útil do processo,
criados pelo paciente ou por alguém em seu favor.
8. Fixado este ponto, esclareço que não enxergo, no ato perpetrado pela
autoridade apontada como coatora, nenhuma alusão, explícita ou implícita, à necessidade de resguardar a ordem pública, que só exsurgiria se a permanência do
réu, livre e solto, pudesse ensejar o cometimento de novos delitos, com projeções
danosas e prejudiciais sobre a ordem social.
9. O ato hostilizado carece de motivação convincente, também, quando se
louva na participação do paciente, com eficácia causal, no delito descrito pela denúncia acostada aos autos.
10. Sim, porque a prova do crime e os indícios suficientes de autoria, que
devem conjugar-se, são meros pressupostos da custódia preventiva, que, estando
ligada a aspectos estritamente processuais, só deve subsistir se estiver supedaneada [sic] em um fato, imputado ao paciente, dotado de eficiência para empecer o
cabal esclarecimento do delito a ele atribuído.
11. A corrupção ativa, que conforma delito contra a Administração Pública,
não se qualifica nem se torna mais grave quando detrimentosa [sic] às atividades
policial e judiciária, porquanto, em ambas as situações alvitradas, ao juiz só é
lícito fazer incidir, sobre o caso submetido à sua apreciação, a causa especial de
aumento de pena prevista pelo Código Penal, art. 333, parágrafo único.
“O ato hostilizado [diz o próprio Subprocurador-Geral da República] carece de motivação convincente, também, quando se louva na participação do paciente, com eficácia causal, no delito descrito pela denúncia acostada aos autos.”
14. Prisão preventiva em situações que vigorosamente não a justifiquem
equivale a antecipação do cumprimento de pena, pena a ser no futuro eventual­
mente imposta, a quem a mereça, mediante sentença transitada em julgado. A
afronta ao princípio da presunção de não-culpabilidade, contemplado no plano
constitucional, é, desde essa perspectiva, evidente.
15. Antes do trânsito em julgado da sentença condenatória a regra é a
liberdade; a prisão, a exceção. Aquela cede a esta em situações excepcionais.
É necessária, contudo, a demonstração de situações efetivas que justifiquem
o sacrifício da liberdade individual em prol da viabilidade do processo, o que
não se dá no caso sob exame. Nesse sentido é a jurisprudência desta Corte em
decisões colegiadas nos HC 83.516, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 23-5-08; HC
91.662, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 4-4-08; HC 88.858, Rel. Min. Marco
Aurélio, DJ de 25-4-08; HC 87.343, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 22-6-07; HC
84.071, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 24-11-06; HC 88.025, Rel. Min. Celso de
Mello, DJ de 16-2-07; HC 85.237, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 29-4-05. E em
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decisões monocráticas, nos HC 95.693-MC, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 15-808; HC 94.194-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 2-9-08; HC 95.886-MC,
Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 2-9-08; HC 94.404-MC, Rel. Min. Celso de
Mello, DJ de 26-8-08; HC 91.662-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 2-5-08;
HC 94.036, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 26-3-08 e HC 93.840, Rel. Min.
Celso de Mello, DJ de 22-2-08.
16. Os fundamentos da decisão que deferiu a liminar, acrescidos dos que
acabo de expor, conduziriam prontamente à concessão da ordem. Há, porém,
ainda outros aspectos em relação aos quais pretendo manifestar-me.
17. Não vivemos ainda um tempo de guerra, um tempo sem sol, embora
de quando em quando o sintamos próximo a nós. Sobretudo quando os que nos
cercam assumem a responsabilidade pelo combate ao crime e aos criminosos,
atribuindo a si mesmos poderes irrestritos, transformando-se em justiceiros.
Milícias que em outros tempos faziam-no às escondidas agora se reúnem nas casas ao lado das nossas casas, entre nossos irmãos e amigos. Combate-se o crime
com o crime, os linchamentos ocorrendo cotidianamente nas mídias.
Em outra ocasião observei que o Estado de direito viabiliza a preservação
das práticas democráticas, instalando-se como regra que o imaginário social
sustenta. Aqui e ali, no entanto, nesse ou naquele momento, no nosso tempo
com azeda freqüência, o Estado de direito tem sido excepcionado, com o que o
direito de defesa resulta sacrificado.
Pois é disso que se trata, na raiz, quando cogitamos do Estado de direito:
direito de defesa. Direito a, salvo circunstâncias excepcionais, não sermos presos senão após a efetiva comprovação da prática de um crime. Direito a todos
assegurados pela regra do Estado de direito. Como regra. Por isso usufruímos a
tranqüilidade que advém da segurança de sabermos que se um irmão, amigo ou
parente próximo vier a ser acusado de ter cometido algo ilícito, não será arrebatado de nós e submetido a ferros sem antes se valer de todos os meios de defesa
em qualquer circunstância à disposição de todos. Tranqüilidade que advém de
sabermos que a Constituição do Brasil assegura ao nosso irmão, amigo ou parente próximo a garantia do habeas corpus, por conta da qual qualquer violência
que os alcance, venha de onde vier, será coibida.
A regra do Estado de direito tem sido, no entanto, reiteradamente excepcionada entre nós. A classe média, sobretudo a classe média, já não a deseja senão para o irmão, o amigo, o parente de cada um. O individualismo que domina,
o egoísmo que preside as nossas relações com o outro não quer mais saber da lei
e da Justiça, que “só servem para soltar quem a polícia prende (...)”.
O trágico que se manifesta em nosso cotidiano está em que a exceção
aqui se manifesta não como algo momentâneo, singular – como que a confirmar a regra – mas permanente. O seu caráter temporário é diluído e ela se estende no tempo. Este é o drama que suportamos. Agora somos mais originais.
Pois é a própria sociedade que clama, de quando em quando, pela suspensão
da ordem constitucional. Somos tão originais que dispensamos quaisquer déspotas para nos tornarmos presa do pior dos autoritarismos, o que decorre da
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falta de leis e de Justiça. O estado de sítio instala-se entre nós no instante em
que recusamos aos que não sejam irmãos, amigos ou parentes o direito de defesa, combatendo-os – aqui uso palavras de Paulo Arantes – como se fossem
“parcelas-fora-da-Constituição”.
Assim, ao abrir mão das garantias mínimas do Estado de direito, o que poderíamos chamar de a nossa sociedade civil submete-se a um estado de exceção
permanente, prescindindo de qualquer déspota que a oprima.
18. O que caracteriza a sociedade moderna, permitindo o aparecimento
do Estado moderno, é por um lado a divisão do trabalho; por outro a monopolização da tributação e da violência física1. Em nenhuma sociedade na qual a desordem tenha sido superada admite-se que todos cumpram as mesmas funções.
Divisão de funções, não separação de poderes, qual tenho insistido em textos
acadêmicos e em inúmeros votos prolatados neste Tribunal.
O combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração
(não do Judiciário), seja através da polícia, como se lê nos incisos do art. 144 da
Constituição, quanto do Ministério Público, a quem compete, privativamente,
promover a ação penal pública (art. 129, I).
19. O combate à criminalidade, garantia da segurança pública, inevitavelmente entra em testilhas, em certos momentos, com pretensões, legítimas ou
não, de direito individual. Eis porque nos Estados de direito há, à disposição
dos cidadãos, um Poder Judiciário independente, com a função de arbitrar esses
conflitos, declarando ao indivíduo quais constrangimentos o ordenamento jurídico o obriga a suportar, quais os que se não lhe pode impor.
Isso tem sido, no entanto, ignorado nos dias que correm, de sorte que alguns juízes se envolvem direta e pessoalmente com os agentes da Administra­
ção, participando do planejamento de investigações policiais que resultam em
ações penais de cuja apreciação e julgamento eles mesmos serão incumbidos,
superpondo os sistemas inquisitório e misto, a um tempo só recusando o sistema
acusatório. Este, contemplado pelo nosso ordenamento jurídico, impõe sejam
delimitadas as funções concernentes à persecução penal, cabendo à Polícia investigar, ao Ministério Público acusar e ao Juiz julgar, ao passo que no sistema
inquisitório essas funções são acumuladas pelo Juiz. Basta tanto para desmontar
as estruturas do Estado de direito, disso decorrendo a supressão da jurisdição.
O acusado já então não se verá face a um Juiz independente e imparcial. Terá
diante de si uma parte acusadora, um inquisidor a dizer-lhe algo como “já o investiguei, colhi todas as provas, já me convenci de sua culpa, não lhe dou crédito
algum, mas estou a sua disposição para que me prove que estou errado”! E isso
sem sequer permitir que o acusado arrisque a sorte em ordálias...
20. Em outra ocasião detive-me sobre o tema da ética judicial2 , afirmando
serem três, em linhas gerais, os seus cânones primordiais. A neutralidade, a in­
dependência e a imparcialidade.
1
Vide meu A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 14.
2
O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 297 et seq.
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21. A neutralidade impõe que o juiz se mantenha em situação exterior ao
conflito objeto da lide a ser solucionada. O juiz há de ser estranho ao conflito. Seus
interesses não devem, sob nenhuma maneira, entrar em jogo no conflito que ele
deve resolver. Por isso e apenas assim será capaz de dizer o direito, não se engajando no conflito, mantendo-se estranho a ele.
Somente desde essa perspectiva podemos falar em neutralidade política
de qualquer intérprete do direito, inclusive do intérprete autêntico, o juiz. Pois
é certo que – ainda que na interpretação do direito deva prevalecer a força dos
princípios (são eles que dão coerência ao sistema) – a neutralidade política
do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre.
Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas; que o
ato de julgar consubstancia uma experiência existencial.
A neutralidade do juiz há de ser concebida, portanto, exclusivamente no
sentido acima indicado. Mas nesse sentido se impõe, plenamente. Haverá neutralidade quando nenhum interesse do juiz estiver em jogo no conflito que lhe
incumbe resolver.
Essa neutralidade se desdobra em independência e imparcialidade.
22. A independência é expressão da atitude do juiz em face de influências
provenientes do sistema e do governo. Permite-lhe tomar não apenas decisões
contrárias a interesses do governo – quando o exijam a Constituição e a lei –
mas também impopulares, que a imprensa e a opinião pública não gostariam
que fossem adotadas. A vinculação do juiz à ética da legalidade algumas vezes
o coloca sob forte pressão dos que supõem que todos são culpados até prova em
contrário.
23. A imparcialidade, por fim, é expressão da atitude do juiz em face de
influências provenientes das partes nos processos judiciais a ele submetidos.
Significa julgar com ausência absoluta de prevenção a favor ou contra alguma
das partes. Aqui nos colocamos sob a abrangência do princípio da impessoali­
dade, que a impõe.
24. Perdoem-me por falar em “interesses das partes” e em “conflito” no
processo penal, mas desejo vigorosamente afirmar que a independência do juiz
criminal impõe sua cabal desvinculação da atividade investigatória e do combate ativo ao crime, na teoria e na prática.
O resultado dessa perversa vinculação não tarda a mostrar-se, a partir dela,
a pretexto de implantar-se a ordem, instalando-se pura anarquia. Dada a suposta
violação da lei, nenhuma outra lei poderia ser invocada para regrar o comportamento do Estado na repressão dessa violação. Contra “bandidos” o Estado e
seus agentes atuam como se bandidos fossem, à margem da lei, fazendo mossa
da Constituição. E tudo com a participação do juiz, ante a crença generalizada
de que qualquer violência é legítima se praticada em decorrência de uma ordem
judicial. Juízes que se pretendem versados na teoria e prática do combate ao
crime, juízes que arrogam a si a responsabilidade por operações policiais transformam a Constituição em um punhado de palavras bonitas rabiscadas em um
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pedaço de papel sem utilidade prática, como diz Ferrajoli3. Ou em papel pin­
tado com tinta; uma coisa em que está indistinta a distinção entre nada e coisa
nenhuma, qual nos versos de Fernando Pessoa.
25. De que vale declarar, a Constituição, que “a casa é asilo inviolável do
indivíduo” (art. 5º, XI) se moradias são invadidas por policiais munidos de mandados que consubstanciem verdadeiras cartas brancas, mandados com poderes
de a tudo devassar, só porque o habitante é suspeito de um crime? Mandados
expedidos sem justa causa, isto é sem especificar o que se deve buscar e sem que
a decisão que determina sua expedição seja precedida de perquirição quanto à
possibilidade de adoção de meio menos gravoso para chegar-se ao mesmo fim.
A polícia é autorizada, largamente, a apreender tudo quanto possa vir a consubstanciar prova de qualquer crime, objeto ou não da investigação. Eis aí o que se
pode chamar de autêntica “devassa”.
Esses mandados ordinariamente autorizem a apreensão de “moeda nacional ou estrangeira”, como se sua posse fosse, por si só, ilícita. E jamais fica
neles ausente o comando de que se apreenda, genericamente, computadores, nos
quais tudo fica indelevelmente gravado, tudo quanto respeite à intimidade das
pessoas e possa vir a ser, quando e se oportuno, no futuro usado contra quem
se pretenda atingir. De que vale a Constituição dizer que “é inviolável o sigilo
da correspondência” (art. 5º, XII) se ela, mesmo eliminada ou “deletada”, é neles encontrada? Por fim, a ordem de apreensão de automóveis, que nada dizem
com a investigação, mas ensejam espetáculo imperdível nas mídias. Ainda que
privem a família do acusado da posse de bens que poderiam ser convertidos em
recursos financeiros com os quais seriam eventualmente enfrentados os tempos
amargos que se seguem a sua prisão. De que vale a garantia constitucional da
pessoalidade da pena (art. 5º, XLV) quando esses excessos tornam-se rotineiros?
26. No HC 89.025/SP, de que fui Relator para o acórdão, esta Corte execrou
a possibilidade de devassa da comunicação entre cliente e advogado. O caso de
que ora cogitamos evidencia, porém que a prática, desgraçadamente, continua.
Vasculhada a casa, sobrevém a prisão temporária, instituto previsto em
lei, a Lei 7.960/89, mas cuja constitucionalidade pende de apreciação na Casa,
em controle concentrado (ADI 3.360). Isso não exime contudo nenhum julgador
do dever de proceder, em cada situação, ao controle difuso.
27. É óbvio o que vou dizer, mas deve ser dito: como a Constituição se
sobrepõe a todo o ordenamento jurídico, a ninguém é dado produzir norma
individual inconstitucional. Assim, no momento de editar a norma de decisão –
especialmente quando se tratar de decisão restritiva de direitos individuais – é
dever, do magistrado, refletir sobre sua constitucionalidade.
No julgamento do RHC 81.057 – impetrado por dedicado defensor público
em favor de um réu pobre, visando a discutir a questão do porte de arma sem
munição – aprendi, nos votos dos Ministros Sepúlveda Pertence e Cezar Peluso,
3
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madri Trotta, 1995. p. 852.
666
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que nem mesmo o amoldar-se a conduta ao tipo penal é suficiente para a condenação do acusado, devendo o julgador perquirir da ofensividade dessa conduta
para fundamentar a necessidade da privação da liberdade de ir e vir. Em outros
termos, o tipo deve ser lido por qualquer intérprete, especialmente pelo intérprete autêntico, no sentido de Kelsen, à luz da Constituição. O juiz não pode
limitar-se a invocar a previsão legal de prisão temporária, abstendo-se de verificar a constitucionalidade da ordem que vier a expedir.
28. Decisão memorável da Justiça paulista desenhou com precisão o papel do Juiz no processo criminal: “A mais importante missão do juiz criminal é
resguardar os direitos fundamentais do cidadão frente ao poder do Estado. Ao
juiz criminal cabe a função de resguardar e proteger os direitos individuais do
homem diante do poder punitivo do Estado. Este o sentido desta decisão neste
writ. Impedir que o poder punitivo do Estado violente os direitos individuais do
paciente” (TACrimSP – HC 362.090, Rel. Juiz Marco Nahum).
29. Por isso esta Corte afirmou que o despacho que defere a prisão temporária “deve ser devidamente fundamentado” (ADI 162-MC/DF, Rel. Min. Moreira
Alves), com “elementos concretos e individualizados aptos a demonstrar a necessidade da prisão cautelar” (HC 91.121, Min. Gilmar Mendes). Quando das
concessões unânimes dos HC 88.025 e HC 89.501 acompanhei o voto condutor
do Ministro Celso de Mello, no sentido de que a prisão cautelar – aí expressamente incluída a temporária – “somente se legitima se se comprovar, com apoio
em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do status libertatis do indiciado ou do réu.
Precedentes. O postulado constitucional da não-culpabilidade impede que
o Estado trate, como se culpado fosse, aquele que ainda não sofreu condenação penal irrecorrível. A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui
extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV [e, acrescentaria eu, caput])–
não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais que,
fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais
proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem”.
30. O controle difuso da constitucionalidade da prisão temporária deverá
ser desenvolvido perquirindo-se necessidade e indispensabilidade da medida.
Daí que a primeira indagação a ser feita no curso desse controle há de ser a seguinte: em que e no que o corpo do suspeito é necessário à investigação?
Exclua-se desde logo a afirmação de que se prende para ouvir o detido.
Pois a Constituição garante a qualquer um o direito de permanecer calado
(art. 5º, LXIII) – e o temos afirmado aqui exaustivamente – o que faz com que
a resposta à inquirição investigatória consubstancie uma faculdade. Ora, não se
prende alguém para que exerça uma faculdade!
Sendo a privação da liberdade a mais grave das constrições que a alguém
se pode impor, é imperioso que o paciente dessa coação tenha a sua disposição
alternativa de evitá-la. Se a investigação reclama a oitiva do suspeito, que a tanto
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se o intime e lhe sejam feitas perguntas, respondendo-as o suspeito se quiser,
sem necessidade de prisão.
31. Tampouco se pode acolher a prisão para impedir que provas sejam destruídas sem que o suspeito tenha dado qualquer motivo para que se afirme essa
possibilidade. Na dicção do Ministro Celso de Mello, para tanto é indispensável
“base empírica idônea”.
32. Não falta quem diga que a prisão temporária é, às vezes, a “única
punição” que o suspeito sofre. Mas prisão cautelar não é pena, de sorte que a
circunstância de ter sido ela o único constrangimento por ele suportado consubstanciará prova cabal de que, não tendo sido condenado, o acusado não merecia ser punido.
33. Pior ainda é o argumento da “agilização” da investigação. Pois antes
de ser ágil é preciso que ela seja legal e necessária, inexistindo qualquer outra
via para o seu curso. Há anos escrevi4: “A legalidade é também a possibilidade –
pelo menos a possibilidade – (...) da efetivação dos direitos e garantias individuais: não ser arbitrariamente preso nem condenado, não ser torturado, não
ter a casa invadida a qualquer hora da noite etc. Daí a observação, de Antoine
Jeammaud, de que ‘a dominação através do direito apresenta uma especificidade que, pensando bem, faz dela um modo de dominação preferível a qualquer
outro’ – que eu complementaria afirmando que o nosso drama está em que a
legalidade e o procedimento legal resultam, inúmeras vezes, perversos e violentos, funcionando como as nossas derradeiras defesas, contudo, contra a perversidade e a violência”. E completei, mais adiante5: “As alternativas diante das
quais nos colocamos não permitem senão uma opção: a que privilegia o Estado
de direito, em oposição ao privilégio do Estado autoritário”.
Na Aula Magna com que se despediu da cátedra de processo civil, em
junho de 2005, o Professor José Ignacio Botelho de Mesquita, meu colega no
Largo de São Francisco – e ser seu colega, isso me honra sobremodo, isso me
honra efetivamente – denunciou “o apetite tirânico e as inclinações despóticas
que informam o ideário do processo autoritário, incivil”, para dizer que, graças
a esse ideário, o que hoje vige é a regra de que “qualquer um pode ser privado de
sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, benefício que, após
consumada a privação, lhe será integralmente concedido para que se queixe à
vontade”. Tratando da liberdade e de bens, a regra vale tanto para o processo civil quanto para o processo penal, em ambos os casos afrontando a Constituição.
34. Tenho criticado aqui – e o fiz ainda recentemente (ADPF 144) – a “banalização dos ‘princípios’ [entre aspas] da proporcionalidade e da razoabilidade,
em especial do primeiro, concebido como um ‘princípio’ superior, aplicável a todo
e qualquer caso concreto, o que conferiria ao Poder Judiciário a faculdade de
‘corrigir’ o legislador, invadindo a competência deste. O fato, no entanto, é que
4
O direito posto e o direito pressuposto, cit., p. 155.
5
Idem, p. 169.
668
R.T.J. — 208
proporcionalidade e razoabilidade nem ao menos são princípios – porque não
reproduzem as suas características – porém postulados normativos, regras de
interpretação/aplicação do direito”.
No caso de que ora cogitamos esse falso princípio estaria sendo vertido
na máxima segundo a qual “não há direitos absolutos”. E, tal como tem sido em
nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar toda e
qualquer garantia constitucional. Deveras, a cada direito que se alega o juiz responderá que esse direito existe, sim, mas não é absoluto, porquanto não se aplica
ao caso. E assim se dá o esvaziamento do quanto construímos ao longo dos séculos para fazer, de súditos, cidadãos. Diante do inquisidor não temos qualquer
direito. Ou melhor, temos sim, vários, mas como nenhum deles é absoluto, nenhum é reconhecível na oportunidade em que deveria acudir-nos.
35. Primeiro essa gazua, em seguida despencando sobre todos, a pretexto
da “necessária atividade persecutória do Estado”, a “supremacia do interesse
público sobre o individual”. Essa premissa que se pretende prevaleça no Direito
Administrativo – não obstante mesmo lá sujeita a debate, aqui impertinente –
não tem lugar em matéria penal e processual penal. Esta Corte ensina (HC
80.263, Rel. Min. Ilmar Galvão) que a interpretação sistemática da Constituição
“leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade
em detrimento do direito de acusar”. Essa é a proporcionalidade que se impõe
em sede processual penal: em caso de conflito de preceitos, prevalece o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta sua supressão. A nos afastarmos disso
retornaremos à barbárie.
36. Estou a me exceder, Senhor Presidente? Talvez. Perdoe-me, mas é o
noviciado de quem nunca viu ilegalidade tão desabrida. A prisão temporária foi
decretada, no caso dos autos, sem qualquer fundamento e sem representação
da autoridade policial ou do Ministério Público, na ocasião em que rechaçada,
pelo juiz do feito, prisão cautelar de diverso caráter (a preventiva, pedida pela
autoridade policial). Note-se que entre prisão temporária e prisão preventiva
não há relação de menos a mais. Uma e outra são distintas mercê de seu caráter,
uma para atender necessidades da investigação, outra para a proteção da ordem
pública e da instrução criminal. V. Exa., substituindo-me durante o recesso, fez
exatamente o que eu faria, ainda que certamente eu não lograsse revestir minha
decisão de fundamentação jurídica tão densa.
Houve algumas críticas apaixonadas. Chegou-se mesmo a dizer que V.
Exa. não poderia converter habeas corpus preventivo em liberatório. O que
foi dito seria mais ou menos o seguinte: um cidadão bate às portas do Tribunal
afirmando “tenho receio de ser preso”; quando o receio mostrar-se fundado,
ele sendo efetivamente preso, o Tribunal haveria de dizer-lhe “seu pedido está
prejudicado; agora o senhor não tem mais receio de nada, pois está preso; vou
mandar o seu caso para o arquivo e o senhor, querendo, comece sua via crucis
outra vez, para dar tempo a seus algozes de infligir-lhe a ilegalidade que desejam”. Era isso o que pretendiam os que o criticaram? O despacho de V. Exa. foi
de um acerto irrepreensível. Eu não teria feito melhor, embora concluísse da
mesma forma.
R.T.J. — 208
669
37. Depois veio o inimaginável: a prisão preventiva, antes expressamente
afastada, acabou por ser decretada a pretexto de que, ao remexer os guardados
existentes na residência do paciente, encontraram-se dois papeluchos apócrifos.
Nada além do que desrespeitar a Suprema Corte por via oblíqua, como bem decidiu V. Exa.
E as agressões intimidatórias a nós todos? E o gabinete de V. Exa. sendo
invadido pela bisbilhotagem e coisas mais?
38. Querem nos intimidar e não se intimidam de mostrá-lo às claras. Não
conhecem a História. Não sabem que ninguém ocupa por acaso a cadeira que foi
de Ribeiro da Costa. Ignoram o perfil de dignidade de V. Exa. Não se dão conta de
que nós, na bancada, não desonraremos a sucessão de Gonçalves de Oliveira,
de Adaucto, de Baleeiro e, sobretudo, de Evandro, Hermes e Victor Nunes.
As baionetas da ditadura não conseguiram vergar esta Corte. Não o logrará o discurso autoritário denunciado pelo Ministro Celso de Mello. Pior do
que a ditadura das fardas é a das togas, pelo crédito de que dispõem na sociedade. A nós cabe, no entanto, o dever de, exercendo com sabedoria nosso poder,
impedi-la.
Pergunto novamente, Senhor Presidente: estou a me exceder? Agora respondo eu mesmo, afirmando que não. É que ainda ressoam neste plenário sábias
palavras recentemente pronunciadas pelo Ministro Marco Aurélio: “É hora de o
Supremo emitir entendimento sobre a matéria, inibindo uma série de abusos notados na atual quadra, tornando clara, até mesmo, a concretude da lei reguladora
do instituto do abuso de autoridade, considerado o processo de responsabilidade
administrativa, civil e penal, para a qual os olhos em geral têm permanecido
cerrados” (HC 91.952/SP).
Concedo a ordem, Senhor Presidente, nos exatos termos dos dois despachos de V. Exa., que ora reafirmo e endosso. Ao fazê-lo, cumpro simultaneamente dois inarredáveis deveres de juiz deste Supremo Tribunal Federal: o de
garantir os direitos de quem os pleiteia e o de afirmar a prevalência do ordenamento jurídico, a supremacia da Constituição e a autoridade suprema desta
Corte.
Concedo a ordem para confirmar as medidas liminares que revogaram as
prisões temporárias e preventivas, bem assim as extensões deferidas aos coréus, inclusive ao co-réu do HC 95.317, apensado a estes autos, com fundamento
no art. 580 do Código de Processo Penal.
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, há duas preliminares que precisam ser enfrentadas, e creio que o Relator as enfrentou em conjunto com a matéria de fundo. A primeira, sob o ângulo da competência, considerado o Verbete
691. A segunda, sob o ângulo do prejuízo, no que preventivo o habeas corpus,
teria sobrevindo a prisão temporária, a esta altura já suplantada, pelo menos na
óptica do Ministério Público, pela preventiva.
670
R.T.J. — 208
Talvez fosse interessante, só para nós outros ordenarmos os votos, observar a legislação instrumental e proceder a essa divisão.
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, como provavelmente
V. Exa. vai suspender a sessão em breve, antes disso e sem prejuízo de as questões suscitadas pelo Ministro Marco Aurélio poderem ser objeto de deliberação
na retomada do julgamento, e como o eminente Relator acabou de proferir o
voto, eu precisaria de um esclarecimento prévio para que possa formar minha
convicção.
Temos uma sucessão de prisões: primeiro, foi decretada a prisão temporária. Sobre os fundamentos da prisão temporária, não tenho nenhuma dúvida
à luz da sua transcrição. Em seguida, o Meritíssimo Juiz, após a expedição do
alvará de soltura quanto à prisão provisória, decretou a prisão em flagrante, invocando fatos novos.
Pelo que depreendi dos documentos que tenho em mãos, sem ter acesso
aos autos, o ilustre magistrado se teria baseado em três fatos: em primeiro lugar,
a circunstância de que o ora paciente era detentor de grande poder econômico e,
por isso, apresentaria risco de evasão para o exterior. Esse fato, eu comentaria
depois. Em segundo lugar, invoca ocultação de vestígios. Também não tenho dúvida a respeito disso. E, em terceiro lugar, alude à possibilidade de interferência
na instrução. E aqui liga o argumento ao suposto delito que teria sido praticado
por outras duas pessoas, as quais seriam funcionários de um grande conglomerado financeiro, a que já fizera referência no decreto da prisão provisória.
Senhor Relator, gostaria que V. Exa. me esclarecesse sobre qual terá sido o
fato novo em que S. Exa. se baseou para decretar a prisão preventiva. Acho isso
fundamental, não apenas para dar resposta ao pedido de habeas corpus, mas
também para efeito de outras questões que interessam ao Poder Judiciário. Acho
que este é ponto fundamental nesta causa. Quero saber qual é o fato novo em
que o Meritíssimo Juiz se baseou para decretar a prisão preventiva.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Ministro Peluso, ele não foi preso em
flagrante. Na segunda prisão ele estava no escritório de um advogado.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Havia a preventiva.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): V. Exa. falou em flagrante. Mas o fato
novo foi o aparecimento de dois pedaços de papel. Isso está na fl. 925.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não, um minutinho. Uma coisa é fato novo;
outra coisa é prova nova de fato velho.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Mas isso que é alegado no decreto.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Pois é. Qual é o fato novo? É isso que eu quero
saber. O Meritíssimo Juiz teria dito que houve fato novo. Depois do dia tal, teriam
surgido fatos novos. Quais são esses fatos novos em que S. Exa. se fundou para
decretar a preventiva?
R.T.J. — 208
671
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Eu não posso responder qual é fato
novo porque não há indicação de fato novo.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não há fato novo!
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): O que há é a indicação dessas provas
novas.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Teriam surgido, então, provas novas. Minis­
tro Relator, por gentileza, essas provas novas consistiriam em quê?
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Fl. 925:
(...) na diligência de Busca e Apreensão realizada na residência de Daniel
Valente Dantas (...)
Apresentam documento intitulado “Contribuições ao Clube,”
Dando mostras de que, em outra oportunidade, já se valia do espúrio mecanismo de corrupção ativa, na medida em que em tal documento observam-se:
(...) figurando dentre eles, as expressões “Contribuição para que um dos companheiros não fosse indiciado criminalmente”, forma de pagamento “cash” no valor
de 1.500.000,00 (não se sabe em qual moeda), no ano de 2004, figurando como interlocutor pessoa denominada “Pedro”. Em outra folha manuscrita apreendida em sua
residência, com timbre do Hotel The Waldorf Astoria, pode-se ler a anotação: “usar
o assunto da Polícia p/produzir notícia e influenciar na Justiça”,
É só isso.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Estou satisfeito.
VOTO
(Sobre preliminar)
O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, eu gostaria inicialmente de registrar, de modo muito especial, o privilégio que estou tendo de
ouvir o voto brilhantíssimo pronunciado pelo eminente Ministro Eros Grau.
Na realidade, o voto que S. Exa. acaba de pronunciar, independentemente de
qualquer conclusão a que esta Suprema Corte possa chegar, sem sombra de
dúvida, engrandece a composição histórica do Supremo Tribunal Federal. A
nossa Corte, ao longo de toda a sua história, tem sido sempre uma intransigente
defensora das liberdades públicas, mas, sobretudo, tem sido uma intransigente defensora da integridade institucional. Quantas vezes, imagino, Senhor
Presidente, e os Ministros desta Corte, certamente, são menores do que a própria Corte, que é maior do que todos nós, como todos bem sabemos, devemos
ter presente aquela frase escrita por Anatole France quando reproduziu, em
versão diversa, o conto de Charles Perrault sobre Barba Azul. Disse Anatole:
O que pode a verdade nua e crua contra o prestígio cintilante da mentira.
E muitas vezes os Ministros desta Suprema Corte, quando se defrontam
com questões desta natureza, devem ter presente exatamente esse postulado que
Anatole, com sua pena extraordinária, soube produzir com riqueza indelével.
672
R.T.J. — 208
Feito esse registro, Senhor Presidente, passo a enfrentar, pelo menos nas
limitações do meu entender, as sempre oportunas posições postas agora pelo
eminente Ministro Marco Aurélio no que concerne às preliminares, que peço
a S. Exa. para convertê-las em uma preliminar, porque entendo que elas podem
ser fundidas na questão sobre a rubrica da Súmula 691.
Tenho entendido, Senhor Presidente, que nós todos somos extremamente
rigorosos, pelo menos na composição da Primeira Turma, no que concerne à
aplicação da Súmula 691, e o eminente Ministro Marco Aurélio tem sido sempre um paladino da posição adotada pelo Pleno desta Suprema Corte no que diz
com o temperamento desta Súmula. Eu, diversamente, tenho sido muito intransigente na aplicação da Súmula 691, porque entendo que a Suprema Corte não
pode banalizar o conhecimento da hierarquia jurisdicional brasileira.
Mas, neste caso, eu entendo que é perfeitamente lógica a superação da
Súmula 691, menos pelas circunstâncias jurídicas, no que concerne à própria
impetração, e mais com o cenário que foi traduzido nesta Corte pelo voto do
eminente Ministro Eros Grau. Lembro que V. Exa., Senhor Presidente, ao
despachar a medida liminar em substituição ao eminente Ministro Eros Grau,
fez questão de assinalar que o encarceramento do Paciente, e esta Corte não vê
nomes, esta Corte vê situações jurídicas e tão-só situações jurídicas, revelava a
nítida via oblíqua de desrespeitar a decisão do Supremo Tribunal Federal, e V.
Exa. alinhavou, ainda no final, a lembrança de que situação semelhante havia
ocorrido sob a relatoria do eminente Ministro Celso de Mello, ou seja, também, naquela ocasião, fez-se uma tentativa oblíqua de desrespeito à decisão da
Suprema Corte do Brasil.
Tenho, Senhor Presidente, a sensação de que este fato é bastante forte, suficientemente forte, para atrair a competência da Suprema Corte no julgamento
deste habeas corpus. Diga-se que o eminente Ministro Eros Grau, à fl. 7 do seu
brilhantíssimo voto, fez questão de reproduzir a fundamentação apresentada por
V. Exa., no que concerne à superação da Súmula 691. Eu não só endosso essa
fundamentação que foi apresentada, mas que, talvez, em certas circunstâncias,
poderia ser insuficiente no seu contexto, mas acresço a essa fundamentação
aquilo que, para mim, serve de exceção suficiente para acolher a via aberta pelo
Pleno desta Suprema Corte no que diz com a superação da Súmula 691. É que
em nenhuma circunstância nós podemos ser lenientes com o cumprimento das
determinações da Suprema Corte do Brasil, em qualquer circunstância. Este fato,
a meu ver, sublinho ainda uma vez, é motivo mais do que forte para que nós possamos atrair a competência da Suprema Corte para o julgamento deste habeas
corpus e, ao mesmo tempo, com essa vis atrativa, suplantar a Súmula 691.
Com essas razões, Senhor Presidente, eu entendo que possa ser superada
a preliminar apresentada pelo eminente Ministro Marco Aurélio, daí por que
estou conhecendo da ordem de habeas corpus.
VOTO
(Sobre preliminar)
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, também tenho sido
muito dura quanto à Súmula 691, no sentido de não achar que seja possível
R.T.J. — 208
673
suplantá-la a não ser quando se configure constrangimento ilegal manifesto,
que, neste caso, nem vou examinar, uma vez que estamos ainda em preliminar e,
portanto, exclusivamente para saber que, uma vez que o habeas corpus aqui era
preventivamente, mas que foi, por força do ato praticado naquele período, transformado em habeas corpus liberatório, não vejo porque realmente não dar a minha adesão também neste caso, especificamente por isto, porque já estava aqui.
VOTO
(Sobre preliminar)
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, inicialmente
faço minhas as palavras do eminente Ministro Menezes Direito, quanto à profundidade do voto do Ministro Eros Grau, perfeito tanto na forma quanto na
substância. Endosso também as ponderações de S. Exa., o eminente Relator, que
foram feitas por ocasião da liminar que concedeu quanto à excepcionalidade do
caso, apta a superar a Súmula 691.
Identifico na espécie, a excepcionalidade, porque estamos diante de uma
patente ilegalidade que só poderia ser remediada mediante o remédio constitucional adequado que é exatamente o habeas corpus. A flexibilização da Súmula
691, como todos nós sabemos, não é novidade nesta Corte, faz parte do seu diaa-dia jurisdicional.
De outra parte, Senhor Presidente, não assento o prejuízo do presente writ,
porque a ameaça ao direito de ir e vir do paciente ainda se mantém presente.
Por esse motivo, Senhor Presidente, conheço do habeas corpus.
VOTO
(Sobre preliminar)
O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, também, a essa altura
dos debates, conheço do habeas corpus, assento a competência originária desta
Corte.
VOTO
(Sobre preliminar)
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, vou ser breve. Mas não
gostaria de deixar de recordar uma seqüência histórica que me parece importante para situar a preliminar.
Recordo-me de que, talvez, tenha sido eu quem, no julgamento do HC
85.185, de São Paulo, em que se discutia a não-tipicidade de crime tributário sem lançamento definitivo de tributo, suscitou, neste Plenário, a questão
de não-conhecimento do habeas corpus com base na Súmula 691. Naquela
oportunidade, propus o cancelamento da súmula. Propus por quê? Porque me
parecia, sobretudo diante do dever jurídico previsto no art. 654, § 2º, do Código
de Processo Penal, de os juízes, em qualquer processo ou causa de que tomem
conhecimento, vendo-se diante de ofensa à liberdade, conceder, de ofício – por
674
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isso é dever –, ordem de habeas corpus. Parecia-me que esse dever, e me parece ainda hoje, é absolutamente incompatível com o entendimento de caráter
absoluto da súmula, o qual impede que o Tribunal, tomando ciência de grave
ofensa à liberdade de locomoção de um cidadão, possa expedir ordem de ofício,
sob fundamento de que o pedido teria sido dirigido contra decisão que não conheceu ou indeferiu requerimento de liminar noutro habeas corpus. O que fez o
Tribunal na oportunidade? Manteve a súmula, contra o meu voto, mas, a partir
daí, sistematizou uma postura de que, quando se trate, sobretudo, de decisão que
contrarie ostensivamente a jurisprudência da Corte, esta supera a súmula. Foi o
que sucedeu no caso, onde foi conhecido e concedido o habeas corpus, porque o
ato impugnado violava a jurisprudência da Corte quanto à atipicidade de delito
tributário. A partir daí, o Tribunal foi sistemático. Só para citar alguns precedentes nesse sentido: HC 86.375, Rel. Min. Marco Aurélio; HC 93.503 e HC
86.634, Rel. Min. Celso de Mello; HC 85.200, Rel. Min. Eros Grau; HC 87.468
e HC 89.777, da minha relatoria; entre tantos outros.
É, portanto, absolutamente falso o argumento de que, neste caso, V. Exa.,
Senhor Presidente, teria inovado em relação à jurisprudência da Corte, conhecendo de pedido de habeas corpus que não poderia ser conhecido. Falso, absolutamente falso. Inúmeras vezes o Tribunal conheceu de pedidos de habeas
corpus, sem que isso implicasse supressão de instância ou outra causa que impedisse a cognição.
Ora, Senhor Presidente, diante disso, mas ainda sem adentrar o mérito em
relação à ostensividade, ou não, de grave risco à liberdade dos ora pacientes, eu
acompanho o eminente Relator, cujo brilhante voto louvo em todos os sentidos,
para também conhecer do pedido de habeas corpus, superando a restrição da
súmula.
VOTO
(Sobre preliminar)
A Sra. Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, eu não acompanho, como
V. Exas. bem sabem, a posição agora externada pelo Ministro Cezar Peluso e
muito raramente dou por transposto o obstáculo da Súmula 691. Faço-o, nesse
caso, no entanto, apenas a uma consideração, à consideração de que se utilizou
efetivamente de uma via oblíqua para obviar a necessária obediência à ordem
emanada deste Tribunal.
Esse é o motivo pelo qual eu supero a Súmula e conheço do habeas corpus.
VOTO
(Sobre preliminar)
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, eis três esclarecimentos. En­
frentamos um habeas corpus, enfrentamos uma impetração. Não fomos convocados, considerado o processo apregoado por V. Exa. e que está sob exame, para
R.T.J. — 208
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julgar quem quer que seja – integrante da Polícia Federal, da Agência Brasileira
de Inteligência, do Ministério Público; juiz federal; ministro; jornalista; e nem
mesmo os pacientes e aqueles beneficiados com os pronunciamentos que resultaram em extensão das liminares. É o primeiro esclarecimento que faço.
O segundo, Presidente, é que não suscitei preliminar, porque quem a suscita o faz para acolhê-la. Apenas disse que preliminares surgiram, vieram à balha e que, regimentalmente, considerado o Código de Processo Penal e o Código
de Processo Civil, deveríamos proceder à divisão da matéria.
O terceiro, Presidente, é que há duas preliminares. Perdoe-me o estimado
amigo, fraternal amigo Menezes Direito. A preliminar que surge sob o ângulo,
como disse, da competência, tendo em conta o Verbete 691 da Súmula, e a preliminar referente ao prejuízo desta impetração, no que, formalizada sob o ângulo
preventivo, se tornou, a seguir, ante um certo título, “liberatória”, e houve o
afastamento, a suplantação desse título por um outro, já que não confundo – e
ninguém confunde – temporária com preventiva. Então, se entendermos que
a jurisdição do Supremo ficou exaurida com a liminar primeira de V. Exa. – e
diria, não seria a primeira, porque a primeira ficou restrita ao acesso aos autos
do inquérito e a segunda liminar, no que fulminou a temporária, que tinha vigência certa de cinco dias, surgindo novo título –, assentaremos o prejuízo da
impetração.
Permito-me, Presidente, fazer uma recapitulação e diria que, a esta altura,
há pontas e não meio. Explico melhor. Tem-se um habeas, no Supremo, que está
sendo julgado, e tem-se outro, em tramitação, no Tribunal Regional Federal,
pendente de apreciação, pendente de crivo jurisdicional. Não há mais o habeas
impetrado no Superior Tribunal de Justiça. E não há porque, numa visão que
venho ressaltando equivocada, inclusive em ementas de acórdão, o relator do
habeas que estava tramitando no Superior Tribunal de Justiça, ante a liminar
deferida por V. Exa. – sabidamente ato precário e efêmero –, declarou o prejuízo
da impetração.
Por isso mesmo, quando suplanto o Verbete 691 da Súmula, porque a ele se
sobrepõe a Constituição Federal, e defiro uma medida acauteladora, pedagogicamente lanço item na decisão esclarecendo o óbvio, ou seja, que o deferimento
não repercute na seqüência do habeas em curso no Superior Tribunal de Justiça.
No Superior Tribunal de Justiça – procedi à leitura da decisão do Ministro
Arnaldo Esteves –, houve o deferimento parcial da liminar. Não podemos potencializar a separação de temas como se tivéssemos partes estanques no pronunciamento judicial, a ponto de desconhecer que, em sítio que não diz respeito ao
último elemento da decisão, houve crivo sobre certa matéria. A leitura da decisão liminar formalizada no Superior Tribunal de Justiça fez-me concluir que se
concedeu a medida para que houvesse o acesso dos profissionais representantes
dos envolvidos no inquérito ao que já se continha no mesmo inquérito ou nos
mesmos inquéritos. Indeferiu-se, sim – e o habeas se mostrou preventivo –, o
salvo-conduto. E não se concedeu por não se vislumbrar, em simples notícia de
jornal, risco efetivo à liberdade de ir e vir do Paciente.
676
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No Supremo, a impetração deste habeas deu-se no dia 11 de junho, e
sobreveio a temporária em 4 de julho. O que ocorreu aqui? Requereu-se, no
Tribunal Regional Federal, diante do fato novo, a concessão da medida acauteladora visando a afastar a prisão temporária? A resposta é negativa. Requereu-se
no Superior Tribunal de Justiça, mesmo diante da sinalização do Relator quanto
à relevância do que versado e de ausência do risco que veio a ser transmudado
em gravame? Não. Sinto-me muito lisonjeado, no que mais uma vez se acreditou
no taco do Supremo, porque, com queima de etapas, requereu-se o reconhecimento do direito à liberdade no habeas corpus aqui impetrado.
Houve, Presidente, o afastamento da temporária, isso em 9 de julho, e veio
à balha a preventiva em 10 de julho. O afastamento deste último ato de constrição ocorreu em 11 de julho, sendo que o prejuízo de habeas, proclamado no
Superior Tribunal de Justiça, data de 13 de agosto de 2008. É essa a recapitulação dos fenômenos verificados no campo jurisdicional.
Passo à análise, Presidente, considerado o Verbete 691 da Súmula do
Supremo. Não tivesse surgido o ato de constrição a alcançar a liberdade de ir e
vir do paciente, ato de constrição estampado na prisão temporária, dúvida não
teria sobre a inexistência de excepcionalidade.
Afasto, Presidente, o Verbete 691 e o faço porque o habeas corpus possui
envergadura maior quando verifico articulação procedente de prática de ato ilegal a cercear a liberdade de ir e vir, e reconheço, como não poderia deixar de
reconhecer, a existência de um órgão judiciário acima do autor do ato apontado
como de constrangimento.
Na última terça-feira, enfrentamos um caso, na Turma, que diria mais
à afeição para o afastamento do Verbete 691 da Súmula. Mas estávamos na
Primeira Turma, e não no Pleno. Estávamos sob a minha Presidência, e não sob
a Presidência de V. Exa. Por que o caso era mais favorável e também se teve a
declaração de prejuízo da impetração, ante a liminar que implementara, pelo
Superior Tribunal de Justiça? Porque a liminar que implementara datava – e
julgamos o habeas na última terça-feira – de 2007 e não de julho de 2008, como
ocorreu neste caso em apreciação. O habeas envolvia, na visão leiga e não na
visão técnica, também um banqueiro. Era o habeas em apreciação autuado sob
o número 93.364-5 e não o habeas autuado, como é o que estamos examinando,
sob o número 95.009-4.
Também verificamos, como não poderia deixar de ser – e vou veicular
o óbvio –, a diversidade quanto aos pacientes no habeas julgado sob a minha
Presidência – o Paciente era o cidadão Anis Abraão David – e já aqui o Paciente
é o cidadão Daniel Dantas.
A Turma, Presidente, contra o meu voto, em que pese à liminar que deferira em 2007, não conheceu da impetração, mas continuo fiel ao que venho
sustentando quanto à necessária compatibilização do Verbete 691 da Súmula do
Supremo com a Constituição Federal. E também haveria mais uma diferença:
naquele caso, tivemos o envolvimento não sei se da Operação Furacão I, II, III,
IV ou V e aqui há o envolvimento da Operação “Satiagraha”.
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677
Nada tenho, Presidente, confesso a V. Exa., quanto ao emprego de nomenclaturas consideradas operações empreendidas pela Polícia Federal. E diria
mesmo que, no campo do pragmatismo, esse emprego facilita a identificação das
operações, o acompanhamento pela sociedade.
Julgo o processo pelo que nele se contém. Processo, para mim, não tem
capa. Processo, para mim e para todos, tem apenas conteúdo.
Então, Presidente, sob o ângulo do Verbete 691, ante a dinâmica processual, ante a dinâmica dos atos alusivos à Administração Pública, ante a dinâmica da vida gregária, tenho que surgiu quadro de excepcionalidade a afastá-lo
como óbice à admissibilidade da impetração.
Reafirmo: se estivesse aqui a enfrentar a situação, inexistente o ato de
constrição concreto, decorrente da temporária, deixaria de afastar o Verbete
691, mas não é a hipótese.
Como fizeram meus Colegas, e nem sempre divirjo, assento a competência do Supremo. Mas surge um outro dado que, para mim, considerados os
pronunciamentos do Tribunal, deve ser levado em conta. Não posso conceber
que um habeas corpus preventivo seja redirecionado a mais não poder. Que se
torne liberatório e, uma vez alcançada a liberdade do paciente, havendo outros
atos subseqüentes de constrição, seja mais uma vez redirecionado contra esses
outros atos. Se o fizesse, teria de imaginar que, se perdurasse a tramitação, poderia servir futuramente para afastar a eficácia de uma sentença condenatória,
para afastar a eficácia de um acórdão prolatado por força de apelação e que
confirmasse essa mesma sentença condenatória, um acórdão prolatado, já em
sede extraordinária, pelo Superior Tribunal de Justiça, negando provimento ao
especial. E, aí, o transformaria em verdadeira panacéia, servindo, portanto, para
fulminar todo e qualquer ato judicial.
O que houve? Tivemos – se ultrapassada a questão, iremos ao mérito – um
longo ato que implicou o histórico das investigações verificadas até então, ato
do Juízo Federal que também resultou na determinação de busca e apreensão,
presente a Lei de Regência da temporária – e não interpreto o que se contém
no art. 1º, inciso III, a ponto de cogitar da temporária automática, em face do
crime – e o Juízo lançou, de forma correta ou não, nesse ato, as premissas para
chegar ao cerceio da liberdade de ir e vir do Paciente.
Fulminado o ato, verificada a busca e apreensão, ante elementos que, considerados suficientes a respaldarem a preventiva a teor do disposto no art. 312
do Código de Processo Penal, formalizou-se um novo título a resultar na prisão
do Paciente.
Diria que, ante esse novo título e o resultado alcançado – muito embora
no campo precário e efêmero, mas com projeção definitiva, em face da liminar de V. Exa. –, a rigor, surgiu um quadro a desafiar uma nova impetração no
Supremo, per saltum, com queima de etapas? Não. No Superior Tribunal de
Justiça? Também não, mas no próprio Tribunal a que vinculado o autor do ato
de constrição, o juiz federal.
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Por isso, creio que a óptica do Ministério Público Federal é a mais consentânea com a organicidade do Direito, com a dinâmica do Direito, com a jurisprudência do Tribunal, no que, repito, já não se está aqui a julgar a prisão decorrente
da temporária, mas a decorrente de um título novo.
Daí concluir que a impetração, tal como formalizada – e já a flexibilizamos para redirecioná-la, tendo em conta a temporária –, surtiu os seus efeitos,
não ensejando desdobramentos outros, muito menos – e seria uma supressão de
instância, talvez, não sei, mas considerado o voto do Relator, muito agradável ao
paciente – para ocasionar a supressão de instância.
Assento a competência do Tribunal e digo que esta impetração, por já ter
surtido todos os efeitos que poderia surtir, encontra-se prejudicada.
É como voto.
VOTO
(Sobre preliminar)
O Sr. Ministro Celso de Mello: Inteiramente corretas, Senhor Presidente,
as razões expostas pelo eminente Relator.
Também entendo que não houve, na espécie, supressão de instância,
mostrando-se plenamente legítimo, sob uma perspectiva de ordem processual, o conhecimento da presente ação de “habeas corpus”, inocorrendo,
ainda, de outro lado, situação configuradora de prejudicialidade, considerado
o conteúdo amplo e abrangente do próprio pedido formulado nesta ação de
“habeas corpus”.
É importante esclarecer, Senhor Presidente, que se revela processualmente viável, tendo em vista os estritos limites materiais delineados nesta
impetração, a conversão do “habeas corpus” preventivo em “habeas corpus”
liberatório.
A própria natureza do direito amparado pela ação constitucional de
“habeas corpus” justifica e plenamente legitima a fungibilidade desse relevantíssimo instrumento de proteção ao “status libertatis” das pessoas em geral,
autorizando, por isso mesmo, a conversão desse “remedium juris” – que foi
utilizado inicialmente, na espécie, em caráter preventivo – em pedido de índole
liberatória, se, como sucedeu no caso, consumar-se, no curso de processamento
do “writ”, a prisão receada pelo Paciente.
Essa compreensão do tema nada mais evidencia senão o alto significado
de que se reveste a proteção jurisdicional à liberdade de locomoção física do
indivíduo, quando iminente ou, então, quando atual a situação de injusto
constrangimento que se busca afastar com a utilização do “habeas corpus”.
No caso ora em exame, os limites temáticos da impetração, tais como
evidenciados na própria petição com que aparelhado o ajuizamento deste
“writ”, não só permitiam como justificavam a conversão, em liberatório, do
pedido de “habeas corpus” preventivo.
R.T.J. — 208
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Entendo, desse modo, não configurada a situação de prejudicialidade
vislumbrada pela douta Procuradoria-Geral da República.
Assinalo, ainda, que não tem qualquer pertinência nem aplicabilidade, à
espécie destes autos, o julgamento proferido, por esta Suprema Corte, no RHC
83.799-AgR/CE, pois, em referido caso, já fora concedida, por outro órgão
judiciário, a liberdade provisória postulada pelo Paciente, o que importara,
então, em total exaurimento do objeto daquele pedido de “habeas corpus”.
Igualmente incensurável, de outro lado, Senhor Presidente, o voto do
eminente Relator, no ponto em que justificou, com integral apoio na própria
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a possibilidade, inquestionável,
de superação da restrição fundada na Súmula 691/STF.
Como se sabe, esta Suprema Corte tem excepcionalmente afastado a
incidência da referida formulação sumular, sempre que a matéria em exame
revelar-se impregnada de alta significação jurídica, ou, então, nos casos em que
o ato impugnado caracterizar-se por sua evidente ilegalidade ou abusividade,
ou, ainda, quando a decisão questionada em sede de “habeas corpus” divergir,
frontalmente, da jurisprudência prevalecente no Supremo Tribunal Federal.
A não-aplicação da restrição fundada na Súmula 691/STF tem ocorrido
na prática processual desta Corte, como o evidenciam inúmeras decisões proferidas, quer em sede monocrática (HC 86.634-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE
MELLO – HC 87.353-MC/ES, Rel. Min. GILMAR MENDES – HC 88.050MC/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES – HC 88.129-AgR/SP, Rel. Min.
JOAQUIM BARBOSA – HC 88.569-MC/PE, Rel. Min. MARCO AURÉLIO –
HC 89.113-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 89.132-MC/RS, Rel.
Min. MARCO AURÉLIO – HC 89.414-MC/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO –
HC 90.112-MC/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO, v.g.) quer, ainda, em sede
colegiada (HC 84.014-AgR/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 85.185/
SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS
VELLOSO):
1. COMPETÊNCIA CRIMINAL. “Habeas corpus”. Impetração contra
decisão de Ministro Relator do Superior Tribunal de Justiça. Indeferimento
de liminar em “habeas corpus”, sem fundamentação. Súmula 691 do Supremo
Tribunal Federal. Conhecimento admitido no caso, com atenuação do alcance
do enunciado da súmula. Precedentes. O enunciado da Súmula 691 do Supremo
não o impede de, tal seja a hipótese, conhecer de “habeas corpus” contra decisão
do relator que, em “habeas corpus” requerido ao Superior Tribunal de Justiça,
indefere pedido de liminar.
(HC 87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO.)
É por isso, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte, reafirmando
esse entendimento, tem afastado a incidência da Súmula 691/STF, sempre que
a decisão questionada perante o Supremo Tribunal Federal refletir hipótese
de manifesta contrariedade à Constituição, à lei ou a diretriz jurisprudencial
predominante neste Tribunal (HC 89.025-AgR/SP, Rel. p/ o ac. Min. EROS
GRAU – HC 90.957/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
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R.T.J. — 208
Sendo assim, considerado o relevo jurídico dos fundamentos em que se
apóia a presente impetração, afasto a incidência, no caso, da Súmula 691/STF.
Acompanho, portanto, integralmente, Senhor Presidente, no exame das
questões prévias ora suscitadas, o douto voto proferido pelo eminente Relator,
pedindo vênia àqueles que dele divergem.
É o meu voto.
VOTO
(Sobre preliminar)
O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): Também me manifesto no
sentido da plena cognoscibilidade deste habeas corpus, tal como já o fizera por
ocasião do despacho liminar.
Antes, porém, gostaria, também como já fizeram os demais Colegas, de
destacar o brilho inexcedível do voto do Ministro Eros Grau, tanto no que diz
respeito à questão do conhecimento, quanto na questão de mérito. Realmente é
um voto que honra o Supremo Tribunal Federal.
Quanto à cognoscibilidade, no que diz respeito à Súmula 691, a matéria
é pacífica hoje no Tribunal, embora possamos ter variantes quanto à aplicação,
e demonstrou-o bem o Relator, em seguida o Ministro Menezes Direito, os demais Ministros já destacaram, o Ministro Peluso inclusive relembrou que liderou inicialmente a corrente que propunha a simples revogação da Súmula. Hoje,
até me penitencio, porque me inscrevi entre aqueles que, em razão do caráter
novo naquele momento da súmula, do seu novel lançamento, eu ponderei que
talvez devêssemos elaborar com distinguishing, fazendo as devidas distinções,
mas hoje vimos elaborando e construindo essa doutrina que faz esses devidos
temperamentos. Certamente temos um encontro marcado com essa discussão
em algum momento.
Também, quanto ao caráter preventivo, já o demonstrou bem o Ministro
Celso de Mello, que o pedido era amplo e só poderia sê-lo, até porque não se
sabia qual tipo de prisão poderia ser decretada. Era um tipo de prisão cautelar
qualquer que poderia ser decretada segundo as notícias que se avizinhavam.
Por outro lado – e aqui gostaria de fazer uma ponderação –, se nós, diante
de um malsucedido habeas corpus preventivo, depois optássemos por considerá-lo prejudicado para que se começasse a via-crúcis agora do habeas corpus
reparatório ou liberatório, certamente, estaríamos laborando no sentido da nãoefetividade de um instituto que certamente é dos mais eminentes deste arsenal
jurídico que a Constituição fornece ao indivíduo e ao cidadão.
De modo que me parece que temos inclusive que laborar, elaborar, densificar a doutrina da conversibilidade do habeas corpus preventivo em liberatório
para evitar exatamente esse tipo de sanha que se possa cometer.
De modo que me manifesto também nesse sentido.
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VOTO
O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, quando votamos na
preliminar sobre o conhecimento do habeas corpus, fizemos questão de destacar que estávamos considerando uma situação de natureza excepcional.
Pessoalmente, fiz sublinhar que tenho tido, ao longo do tempo, uma posição bem estrita com relação à aplicação da Súmula 691, mas que em circunstâncias especiais, de acordo com o precedente deste Pleno, nós temos temperado a
aplicação da súmula. E o fazemos pouco relevando que seja nas Turmas ou no
Pleno, porque, na nossa perspectiva, Senhor Presidente e Senhores Ministros,
os juízes têm a consciência do seu dever no que concerne à coerência dos seus
votos. E todas as vezes que nós nos deparamos com a necessidade de uma interpretação lastreada no temperamento da aplicação de certos dispositivos ou de
certas súmulas, nós somos compelidos imperativamente a considerar a excepcionalidade da situação.
E creio que foi exatamente essa perspectiva que nos levou, na sua maioria
bem expressiva, a considerar suplantado o verbete da Súmula 691. E o faríamos,
repito, com toda consciência e com toda tranqüilidade, pouco relevando que estivéssemos julgando nas Turmas ou no Pleno, mesmo porque os habeas corpus
que julgamos, e são muitos, são aos milhares, nas Turmas e no Pleno, temos o
dever de julgar retamente, na perspectiva do fato que nos é posto.
E particularmente nesse ângulo com que a questão se põe, este processo,
este habeas corpus é paradigmático porque ele reflete uma situação de grave
excepcionalidade, como disse antecedentemente, na consideração específica de
que surgiu um desrespeito evidente, claro, insofismável, insopitável com relação
à autoridade da Suprema Corte do Brasil.
E todas as vezes em que a autoridade da Suprema Corte do Brasil, pouco
importa o nome iuris que se possa aplicar a esta ou àquela situação, é ofendida,
agredida, malferida, impõe-se ao Pleno da Suprema Corte uma reação imediata,
uma reação dura, uma reação coerente, uma reação firme, de modo a que nós
possamos ter, pelo menos na minha avaliação, na minha compreensão, a certeza
de que estamos cumprindo coerentemente o nosso dever. E assim sempre fazemos e continuaremos a fazer, sem exceção, todos nós, uniformemente. Que a
convergência talvez tenha como lastro, como exemplo, a velha máxima que nessas
horas devemos aplicar: “ut unum sint”, que todos sejamos um. E é assim que somos um, se quisermos até invocar a velha e revelha lição de Teilhard de Chardin,
“tout ce qui monte, converge”. E nós convergimos na defesa intransigente da
coerência com que esta Suprema Corte há de manifestar-se com plenitude diante
dessas circunstâncias específicas que são postas ao nosso julgamento.
Vejo, Senhor Presidente, também com essa perspectiva, a situação de mérito, tal qual foi posta no voto do eminente Ministro Eros Grau, que, como já
disse, engrandeceu a Suprema Corte do Brasil.
682
R.T.J. — 208
A intervenção que foi feita pelo Ministro Cezar Peluso é extremamente
pertinente quando S. Exa. questionou a existência do fato novo no que concerne
à prisão preventiva, que foi dita uma evolução da prisão temporária anterior.
E o eminente Ministro Eros Grau teve a cautela, com sua acuidade, com
seu conhecimento dos autos, de indicar que, à fl. 925, estaria a resposta, ou seja,
a existência não de fato novo, mas de prova nova. E prova nova, evidentemente,
não se confunde com fato novo. E se fato novo não há e existe apenas prova
nova, é evidente que houve o quê? Uma substituição do nome in iuris do título
com a mesma substância, o que tipifica, a meu sentir, claramente, a perspectiva
que foi posta da decisão de V. Exa., no que concerne a uma tentativa oblíqua de
desrespeitar a decisão desta Suprema Corte.
Eu tenho certeza, Senhor Presidente, pelo menos na minha avaliação e na
compreensão dos fatos que foram postos ao nosso julgamento, que isso é suficiente para que eu conceda a ordem de habeas corpus na linha proposta pelo
eminente Ministro Relator na sua conclusão.
E quero também, Senhor Presidente, se V. Exa. e os eminentes Colegas me
permitirem, fazer uma referência que tenho por essencial.
É que no voto do eminente Ministro Eros Grau, S. Exa. faz uma referência explícita à questão da ética judicial, particularmente no que diz com a
tríplice condição que está nela embutida: a da neutralidade, a da independência
e a da imparcialidade.
Isso talvez seja uma lição primorosa para os juízes brasileiros, no sentido de que tudo isso se conforma com o prestígio das instituições judiciárias,
e o prestígio das instituições judiciárias começa pelo respeito às decisões da
Suprema Corte do Brasil.
Tenho certeza de que, além do limite da concessão deste habeas corpus,
esta Suprema Corte há de considerar, no tempo oportuno, também, a situação
do caso concreto, no que diz, especificamente, com esse desrespeito oblíquo,
pelo menos, à decisão que foi determinada pelo Presidente da Suprema Corte
do Brasil.
Com essa observação adicional, eu concordo com o eminente Ministro
Relator e também concedo a ordem na forma em que S. Exa. pôs na conclusão.
VOTO
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Também eu, Senhor Presidente, vou-me valer, além do brilhante voto do eminente Ministro Eros Grau, das achegas agora
trazidas porque, tal como o Ministro Menezes Direito, quando me manifestei
a respeito da preliminar, não tenho, a não ser em ocasiões excepcionalíssimas,
afastado a Súmula 691.
E a excepcionalidade, neste caso – aliás, foi muito bem realçada também
pela Ministra Ellen Gracie –, é no sentido de que, ao emitir um novo título de
nome, como acaba de reforçar o Ministro Menezes Direito, com o mesmíssimo
R.T.J. — 208
683
conteúdo, tem-se, na verdade, um descumprimento de decisão que havia sido
prolatada anteriormente por V. Exa.
Razão pela qual, como disse, anotando o voto do eminente Relator e com
as achegas do eminente Ministro Menezes Direito, acompanho o Relator.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, também acompanho o eminente Relator, pelas razões por ele aduzidas e também por aquelas
expendidas pelos demais Colegas.
E, conforme já adiantei em meu pronunciamento no que diz respeito à
preliminar, entendo que estamos diante de uma situação absolutamente excepcional, apta a superar a Súmula 691, estamos diante de um evidente constrangimento ilegal do Paciente.
Portanto, também concedo a ordem.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, também concedo a ordem.
Reitero que, no caso, o cerceio à liberdade dos pacientes se deu por abuso
de poder e ilegalidade conjugadamente. Daí por que, em sede preliminar, afastamos o óbice da Súmula 691 para assentar a competência deste Supremo.
Aqui, são dois pedidos de mérito: primeiro, acesso aos elementos de investigação; e segundo, anulação do decreto de prisão preventiva dos pacientes.
Concedo o habeas corpus, apenas lembro que é da nossa jurisprudência
que o acesso aos elementos de investigação se dá no momento em que a investigação topicamente considerada, pontualmente considerada se conclui e se
reveste de documentalidade. Quando a diligência é ultimada e revestida de documentalidade, vale dizer, reduzida a termo, é carreada para os autos do inquérito, aí, sim, se dá o franqueamento desses autos, a vista dos autos, tanto para as
partes quanto para os seus advogados.
Com essa ressalva, que não passa de um lembrete da nossa firme jurisprudência, concedo o habeas corpus, tal como o fez o eminente Relator.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, também concedo a ordem de habeas corpus, reconhecendo que o caso é de ilegalidade, mas não de
ilegalidade qualquer. É de ilegalidade que eu diria, para usar de eufemismo,
encorpada.
E começo, Senhor Presidente, por notar que um dos dois fundamentos originais do pedido de habeas corpus era exatamente a impossibilidade de acesso
dos ora Pacientes ao conteúdo dos autos do inquérito, cuja notícia tiveram por
jornais.
684
R.T.J. — 208
Esse fundamento já era suficiente para concessão da ordem, nos termos da
jurisprudência da Corte, que V. Exa. bem citou na primeira decisão, invocando,
em primeiro lugar, importantíssimo precedente do qual participei com longo
voto vencedor declarado, o do HC 87.827, do Rio de Janeiro, de que foi Relator
o nosso sempre inesquecível Ministro Sepúlveda Pertence.
Depois, eu mesmo tive oportunidade de reafirmá-lo em outro caso do Rio
de Janeiro, em que o paciente tomou conhecimento, pelos jornais, da existência
de procedimento investigatório que corria no Ministério Público Federal havia
dois anos. Foi-lhe assegurado, como não podia deixar de ser, no HC 88.190, do
qual fui Relator, o direito de acesso ao inquérito.
Após – e tudo isto consta do voto de V. Exa. –, este Plenário tornou a reiterar a garantia de acesso aos inquéritos, sem que isso autorize adiantar-se em
conhecer diligências de caráter sigiloso a que deva ainda proceder a autoridade
policial.
Não se trata de direito cuja efetivação tenda a impedir a autoridade policial
de realizar diligências novas, até de caráter sigiloso, ou de prejudicá-las. Não.
Trata-se apenas de prerrogativa de acesso amplo aos elementos já coligidos e
documentados.
Esse fundamento era, portanto, a meu ver, suficiente para a concessão da
ordem.
E aqui, Senhor Presidente, quero dizer que reli, por três ou quatro vezes,
as informações que o Meritíssimo Juiz prestou ao Ministro Eros Grau, cujo
nome foi consignado, no ofício subscrito por S. Exa., como Eros Grau Mello.
Acredito que isso não tenha sido uma ironia, senão erro do datilógrafo e distração de S. Exa.
Mas esse ofício, que reli por três ou quatro vezes, em nenhum momento
faz menção ao número do inquérito policial; em nenhum momento faz menção
à existência do inquérito. Traça interessantes e inteligentes considerações sobre
decisão tomada num outro caso, e cujos trechos transcreve, sem dizer, no entanto, se existia ou se não existia o inquérito.
E termina, Senhor Presidente, surpreendentemente, com a seguinte conclusão:
“Por outro lado, informações agora trazidas” – não diz nada – “às Cortes
Superiores denotam conhecimento que vai além da própria informação da imprensa
podendo” – ele informante – “já vislumbrar, s.m.j., violação de eventual sigilo.”
S. Exa. está aí dizendo que não pode informar aos Tribunais Superiores a
existência de inquérito, porque, se o fizesse, estaria violando o sigilo legal imposto ao procedimento.
O Sr. Ministro Celso de Mello: Ao informar que não pode informar, porque decretado, por ele próprio, regime de sigilo, esse magistrado federal buscou inviabilizar o controle jurisdicional de seus atos por parte desta Suprema
Corte, tentando criar, em sua Vara, um universo diferenciado, paradoxalmente
imune ao poder do Direito e infenso à supremacia da Constituição.
R.T.J. — 208
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O Sr. Ministro Cezar Peluso: Um universo seu, controlável apenas por ele,
e cuja legalidade está apenas na mão dele.
O Sr. Ministro Celso de Mello: O surpreendente comportamento desse
juiz federal, presente o contexto que ora se examina, parece justificar a avaliação de que tal magistrado, com referida conduta, teria pretendido transformar,
em um pequeno feudo, a Vara Criminal que dirige, colocando-a à margem da
autoridade da Constituição e da força das leis da República, subvertendo, assim,
as concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, sob cuja
égide se expõem, a controle, todos os atos estatais, inclusive aqueles praticados
por magistrados e Tribunais, que não se mostram imunes a essa fiscalização
jurisdicional...
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Do controle da legalidade da prática dos seus
atos.
O Sr. Ministro Celso de Mello: A recusa do magistrado, de qualquer magistrado ou Tribunal, em prestar informações, quando a ele requisitadas, pelo
Supremo Tribunal Federal, em sede de “habeas corpus”, representa comportamento insolente e insólito, além de constituir um gesto absolutamente inaceitável, que eu jamais presenciei em quarenta anos de atuação na área jurídica,
seja como membro do Ministério Público paulista, seja, agora, como Juiz desta
Suprema Corte.
Ninguém desconhece que se impõe aos órgãos judiciários de inferior
jurisdição o dever indeclinável de prestar informações, quando requisitadas
em processo de “habeas corpus”, notadamente nos casos em que essa requisição – que não constitui simples pedido nem mera solicitação, mas, ao contrário, representa determinação dirigida aos magistrados ou aos Tribunais em
geral – promanar do Supremo Tribunal Federal.
Esta Suprema Corte, ao julgar o RHC 58.749/MG, Rel. Min. SOARES
MUÑOZ, já advertia que a requisição de informações, quando ordenada
na via processual do “habeas corpus”, não pode deixar de ser atendida, pois
constitui obrigação incontornável do órgão a que se atribui, mediata ou imediatamente, situação de abuso de poder, de arbitrariedade ou de injusta coação.
O Supremo Tribunal Federal, no precedente referido, deixou assentado,
para nenhum magistrado ou autoridade pública alegar ignorância, que “O fornecimento, por parte da autoridade apontada como coatora, de informações
capazes de esclarecer o alegado na impetração constitui dever indeclinável,
máxime quando o paciente se acha preso e se faz representar por advogado de
ofício (...)” (RTJ 101/584, Rel. Min. SOARES MUÑOZ).
Tão grave é o descumprimento dessa obrigação jurídica, que a sua inexecução, total ou parcial, pode gerar, até mesmo, tal a excepcionalidade dessa
situação processual, a própria “requisição dos autos da ação penal” (RT
551/413, Rel. Min. RAFAEL MAYER), ou, ainda, consoante refletem julgados
de diversos Tribunais judiciários, a própria concessão da ordem de “habeas
corpus” (RT 413/362 – RT 477/334 – RT 482/401 – RT 483/361 – RT 504/435 –
RT 610/410, v.g.), acolhendo-se, no ponto, a lição de PONTES DE MIRANDA
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(“História e Prática do ‘Habeas Corpus’”, tomo II/32-33, § 103, item n. 1, 3ª
ed., 2007, Bookseller), para quem “a omissão em prestar informações em processo de ‘habeas corpus’ deve ser interpretada como tácita confirmação da
verdade do alegado na petição do impetrante” (grifei).
Esse entendimento – que sustenta a possibilidade de concessão do “writ”
constitucional, no caso de “Omissão ou retardamento injustificado das infor­
mações solicitadas em ‘habeas corpus’” (RT 477/334) – é também perfilhado
por eminentes doutrinadores (ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO
MAGALHÃES GOMES FILHO e ANTONIO SCARANCE FERNANDES,
“Recursos no Processo Penal”, p. 375, item n. 252, 5ª ed., 2008, RT), cuja lição
vale reproduzir:
(...) a falta ou retardamento injustificado na resposta ao pedido de infor­
mações conduz à presunção sobre a veracidade dos fatos atribuídos ao coator,
ou pelo menos reforça a idoneidade dos elementos trazidos pelo impetrante, autorizando a concessão da ordem de “habeas corpus”.
(Grifei.)
Nem se diga que, em sede de “habeas corpus”, as informações seriam
destituídas de significação e importância.
Tive o ensejo, em decisão proferida nesta Corte Suprema, de acentuar a
alta relevância das informações prestadas pelo órgão judiciário apontado como
coator, enfatizando, precisamente nesse tema, que “As informações prestadas
pelo órgão apontado como coator presumem-se verdadeiras. Eventual conflito
entre elas e as razões invocadas pelo impetrante do ‘habeas corpus’, desde que
desacompanhadas estas de qualquer elemento comprobatório de sua reali­
dade, deve resolver-se em favor dos esclarecimentos emanados da autoridade
pública, especialmente quando se tratar de um Tribunal de segunda instância”
(RTJ 147/219-220, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
É por isso, Senhor Presidente, que entendo grave o comportamento processual do magistrado federal em questão, pois – reafirmo – nunca presenciei,
em minha atuação profissional na área jurídica, que já dura 40 (quarenta) anos,
semelhante e inadmissível conduta.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Eu sou um pouquinho mais velho que V.
Exa.: tenho quarenta e um anos de magistratura.
O Sr. Ministro Celso de Mello: Reafirmo a minha observação: nunca presenciei, jamais me deparei com um comportamento judiciário, tal como este
perpetrado pelo magistrado federal, titular da 6ª Vara Criminal Federal de São
Paulo/SP.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Nem eu. É gravíssimo. Eu considero gravíssimo o fato, Ministro.
O Sr. Ministro Celso de Mello: É um comportamento altamente censurável e, por isso mesmo, inaceitável, não podendo ser admitido ou tolerado por
esta Suprema Corte, a quem não se pode opor – e é bom que isso fique muito
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claro – qualquer exceção de sigilo, quando em julgamento, por este Tribunal,
“habeas corpus” que objetive questionar a validade jurídica de decisão proferida no âmbito de processo ou de inquérito que tramite em segredo de justiça.
O regime de sigilo, que é excepcional (RTJ 139/712-713 – RTJ 162/805806, v.g.), não pode ocultar condutas eventualmente arbitrárias, nem encobrir
atos alegadamente eivados de ilegalidade ou viciados pelo abuso de poder,
ainda mais quando tais desvios – aos quais se atribui a mácula da prática autoritária – constituírem, eles próprios, objeto de julgamento em sede de “habeas
corpus”.
A invocação do regime de sigilo não pode sofrer distorções, a ponto de,
por seu intermédio, inviabilizar-se o próprio controle jurisdicional de atos
emanados do Poder Judiciário aos quais se imputa o vício da ilegitimidade
jurídica.
Comportamentos processuais, como esse imputado ao magistrado federal
em questão, não podem ser tolerados por esta Suprema Corte no exercício da
jurisdição constitucional das liberdades, notadamente porque, se admitidas
fossem tais condutas, restaria profundamente comprometido um dos postulados sobre os quais se estrutura o Estado democrático de direito e que se expressa na fórmula da proteção judiciária ou proteção judicial efetiva.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Acho que a Corte, diante desse fato, não pode
limitar-se a registrá-lo. A Corte – a menos que abra mão do respeito à sua autoridade como Corte suprema – não pode deixar passar in albis esse fato com o
mero registro. A Corte tem de tomar uma providência.
Continuo, Senhor Presidente. Em segundo lugar: a legalidade da prisão
provisória. V. Exa. demonstrou muito bem que nenhum dos fundamentos invocados por S. Exa., e que basicamente eram apenas dois, correspondia a qualquer
das hipóteses do art. 1º da Lei 7.960/89.
S. Exa. escreveu:
(...) Já, desde o princípio das investigações, tem-se aferido que Daniel
Valente Dantas voltar-se-ia, em tese, ao cometimento dos delitos, ora em averiguação, com a absoluta certeza da sua impunidade (...)
E, mais:
Como salientado em tópico precedente, o crime de corrupção ativa que teria
sido perpetrado por Humberto José da Rocha Braz e Hugo Chicaroni e que motivou a decretação de suas prisões preventivas, aparentemente guardaria liame com
as condutas de Daniel Valente Dantas.
Os vínculos desse investigado com aqueles que, aparentemente, em seu
nome, oferecem e entregam à autoridade policial altas somas em dinheiro (para
possivelmente afastá-lo, (...) fornecem subsídios ao juízo no sentido de que tais
pessoas (Hugo e Humberto) teriam atuado sob suposta orientação do primeiro
(Daniel Valente Dantas). Tal inferência, se de um lado impõe cautela na apreciação do pedido de decretação da prisão preventiva requerida pela autoridade
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policial e pelo Ministério Público Federal, de outro, aconselha a decretação de sua
prisão temporária como forma de se obter maiores elementos acerca do delito de
corrupção ativa (...)
Por certo, e agora é a segunda ou a terceira razão, a decretação da prisão
temporária de Daniel Valente e das pessoas a ele veiculadas não se justifica para
simples tomada de depoimentos, evidenciando-se sua impertinência sob fundamento de necessidade da audiência imediata dos investigados.
Supõe que doutro modo não pode tomar depoimentos, mas não há necessidade alguma de audiência dos investigados para confronto com a prova já produzida e com a que venha a ser obtida na busca e apreensão.
Noutras palavras, sustenta que é preciso que se deixem as pessoas presas
para que, com a prisão, se possa fazer confrontação, não sei bem de quê, com a
prova já produzida e com outras que virão a ser produzidas, não se sabe quando.
Estou cansando a Corte com essa leitura. Mas quero advertir, Senhor
Presidente, que esses mesmos fatos vão reaparecer no decreto da prisão preventiva e que, por isso, não podem ser considerados novos, nenhum deles, nem
sequer a primeira afirmação genérica de que o paciente tenderia, em tese, ao
cometimento de crimes, nem tampouco a segunda, da ligação com aquelas outras duas pessoas que teriam cometido outro crime, nem, ainda, com a pretensa
necessidade de caráter instrutório. Então, não havia por que não ser concedida
imediatamente ordem de habeas corpus, nos termos do pedido original.
Em seguida – e aqui me parece outro ponto relevantíssimo desta causa –,
no dia subseqüente ao cumprimento do alvará de soltura, S. Exa. decreta a prisão preventiva, e decreta-a invocando superveniência de fatos que justificariam
outro título à prisão. Vou abstrair, até porque o Ministro Celso de Mello provavelmente retomará esse tema, que a primeira ordem concedida, em resposta a
pedido de caráter amplo, já impedia que o magistrado, respeitando a eficácia da
decisão no que ela correspondia ao âmbito do pedido formal, que era amplo, de
salvo conduto contra qualquer ordem ou espécie de prisão. Isso já era suficiente,
mas vou abstrair a circunstância, para que V. Exa. Ministro Celso, se aprofunde
no assunto.
Ele invoca, então, a possibilidade de prosseguir no constrangimento, agora
a outro título jurídico, que seria o da prisão preventiva. E invoca a existência de
fatos novos. Só que não consigo, esforcei-me, mas não consigo enxergar existência de fatos novos. Ele disse, em primeiro lugar, justificando o decreto da prisão
preventiva, que o paciente seria detentor de grande poder econômico e, por isso,
haveria risco de fuga para o exterior.
Ora, ao que se presume, ele já era rico e poderia fugir para o exterior desde
o início do inquérito. Não adquiriu riqueza em dois dias após a primeira prisão.
Esse era fato, não velho, mas velhíssimo. E era o primeiro fundamento do decreto da preventiva.
O segundo, era o de que haveria risco de ocultação de vestígios. Se havia
risco de ocultação de vestígios, havia-o desde antes, porque não foi deduzido,
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nem invocado, nem sequer referido remotamente algum fato que justificasse súbito receio de ocultação de vestígios.
E, em terceiro lugar – e é aqui que me parece estar a parte mais substancial
da fundamentação da preventiva –, reporta-se à interferência eventual na instrução da causa, em decorrência do quê? Do mesmo fato que o decreto da prisão
provisória já considerara, ou seja, da ligação entre o paciente e as duas pessoas
que teriam cometido o crime de corrupção. Ora, essa ligação entre o Paciente e
as duas outras pessoas seria ligação antiga, que S. Exa. já havia reconhecido na
primeira decisão.
Foi por isso que indaguei ao eminente Relator, então, se havia algum outro
fato. E S. Exa. esclareceu, confortando minha conclusão provisória, que fato
novo não havia, senão que teriam surgido provas novas a respeito dessa ligação.
Mas quais seriam essas provas? Papéis apócrifos que faziam referências a não
entendi bem o quê. Mas, enfim, o simples fato de serem apócrifos, coisa que
a Constituição tem por desvalor jurídico, já seria o suficiente para não serem
invocados.
O que não consigo ver é como esses documentos, esses papéis apócrifos poderiam justificar o ato gravíssimo de descumprimento da ordem do
Presidente do Supremo Tribunal Federal. Isso é que é a gravidade do fato. O que
se evidencia no caso é que S. Exa., invocando as razões que acabo de examinar,
na verdade não quis submeter-se à ordem do Presidente do Supremo Tribunal
Federal. Não quis, como suposto dono do controle da legalidade daquele inquérito, que, de certo modo, considerava como coisa que só lhe concernia, atender a
uma ordem judicial de quem? Do Ministro Presidente da Suprema Corte!
O Sr. Ministro Celso de Mello: Cabe observar que essa injustificável
resistência do magistrado federal em questão, que simplesmente deliberou
subtrair-se à eficácia e à autoridade da decisão proferida pelo Presidente do
Supremo Tribunal Federal, comportaria, no plano estritamente processual, a
utilização, pelo ora paciente, do instrumento constitucional da reclamação,
que lhe permitiria dirigir-se, diretamente e em sede originária, a esta Corte,
para denunciar o desrespeito à ordem emanada deste Tribunal.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Embora a palavra seja extremamente forte
para quem não é do mundo jurídico, pois quem é do mundo jurídico sabe bem
que a palavra não tem o significado pejorativo que pode soar aos ouvidos dos
leigos, a figura que invoco aqui como figura típica é a da fraus legis, ou melhor,
da fraude à decisão. Não seria bem fraus legis, mas fraus decisionis. O que significa essa figura? Significa usar tipos lícitos, previstos no ordenamento, para
obter efeitos proibidos por norma cogente que não se quer seja aplicada. Foi
o que aconteceu. Usou-se da categoria lícita do decreto da prisão preventiva,
para obter o quê? Para obter o efeito prático da privação da liberdade que estava
assegurada pela eficácia de uma decisão, nada mais, nada menos, do que do
Presidente da Suprema Corte.
Então, Senhor Presidente, diante desse fato, evidentemente não poderia deixar de conceder a ordem. E, Senhor Presidente, me pesaria não fizesse nenhuma
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alusão a que, de tudo isso, retiro, em primeiro lugar, a triste verificação de que
parece estarmos a viver fenômeno, não sei se particular da vida brasileira, mas,
com certeza, também da vida brasileira, e que é, por parte dos agentes públicos
em geral, a falta da cultura da legalidade. Isso significa o quê? Significa que,
em alguns setores – graças a Deus, apenas em alguns poucos setores –, ainda
aqueles dotados do mais alto espírito público, profundamente interessados no
cumprimento dos deveres funcionais, acham que podem exercê-lo à margem do
ordenamento jurídico. Isto é, se é preciso perseguir o crime, perseguir a prática
criminosa, então não será preciso observar nem respeitar as limitações do ordenamento, porque as limitações do ordenamento atrapalham as investigações,
atrapalham a apuração dos crimes e atrapalham a punição dos que consideramos
desde logo culpados! Que isso contamine alguns setores do serviço público,
como diria Vieira, “não louvo, nem critico, admiro-me”, mas que isso constitua
parte da cultura da magistratura considero simplesmente inconcebível. A magistratura não pode – transformando-se em parte, seja esta autoridade policial,
seja esta membro do Ministério Público, que são funções tão dignas quanto a da
magistratura, mas diferentes – perder aquilo que a doutrina chama de imparcia­
lidade objetiva, quando não a própria imparcialidade subjetiva. O Judiciário não
foi criado para condenar. O Judiciário é criado, e a Constituição o quer assim,
para julgar. Condenará quando houver prova da culpa, e absolverá quando não
a encontrar.
Depois, Senhor Presidente, há ainda a observação, já de certo modo antecipada, quanto a esse grave fato da transgressão à ordem do Presidente do
Supremo Tribunal Federal.
E, em terceiro lugar, Senhor Presidente, que, violando o art. 36, III, da
Lei Orgânica da Magistratura, alguns magistrados, sob pretexto de defender a
liberdade, a autonomia e a independência jurisdicional, fazerem crítica pública à
decisão de um Ministro do Supremo Tribunal Federal e, em particular, à decisão
do Presidente do Supremo Tribunal Federal. Só para recordar:
Art. 36. É vedado ao magistrado:
(...)
III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo
pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos,
votos ou sentenças de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras
técnicas ou no exercício do magistério.
O que se viu, a respeito, foi crítica clara, ostensiva, aberta e pública, à
decisão tomada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. E o mais grave,
sob pretexto de defesa da independência jurisdicional que não reconheceram ao
Presidente do Supremo, como se o Presidente do Supremo não fosse parte da
magistratura e não tivesse, no exercício dessa independência, o direito de tomar
decisão cujo controle só poderia estar cometido a esta Corte. Os juízes, muitos
dos quais noviços, não são corregedores do Supremo Tribunal Federal, e não são
corregedores de ninguém, a não ser dos seus subordinados.
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No entanto, o que se viu foi crítica censória, grave, contra decisão jurisdicional do Presidente da Suprema Corte e contra deliberação de ordem administrativa, que S. Exa. podia ter tomado nos autos, como qualquer membro
de Tribunal pode fazê-lo, quando aí verifique eventual transgressão de caráter
funcional.
E mais, Senhor Presidente, acho que, além desta infração textual à norma
da Lei Orgânica da Magistratura, há, antes, infração a um outro dever funcional
que está acima dela: o de velar pelo prestígio da magistratura como um todo, e,
em particular, pelo prestígio e autoridade da Corte mais alta do País.
Quando, descumprindo deveres menores, qualquer magistrado sai a público para fazer críticas, sob este ou aquele pretexto, ao mais alto Tribunal do
País, não concorre para melhorar nem aprimorar a magistratura, mas apenas
para desprestigiar o conceito e a imagem pública que este Tribunal tem, ao longo
da história, sabido preservar.
Estas são as razões, Senhor Presidente, pelas quais concedo a ordem e
proponho à Corte que oficie o Conselho Nacional de Justiça, para saber em
que estado se encontram os procedimentos que deveriam ter sido abertos para
o exame do comportamento não jurisdicional do ilustre magistrado, tido como
autoridade coatora, e de todos os demais que se solidarizaram com S. Exa. a
pretexto de resguardar a independência da magistratura.
É como voto, Senhor Presidente.
VOTO
A Sra. Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, acompanho o eminente
Relator nos estritos limites em que S. Exa. colocou o seu voto, ou seja, para nulificar o segundo decreto de prisão.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, consigno, inicialmente, que o
reconhecimento da excepcionalidade a ponto de se ter como afastado o Verbete
691 da Súmula diz respeito à admissão do habeas corpus. Não está ligada a
compromisso prévio quanto ao julgamento da matéria de fundo. As coisas são
diversas. Afastamos o verbete, admitindo a competência do Supremo para apreciar o tema de fundo, para – como costumo dizer – abrir o embrulho.
Presidente, não encontrei, no processo revelador desta impetração, a cópia
da liminar, do ato que teria implicado, no âmbito do Tribunal Regional Federal
da 3ª Região, o indeferimento da medida acauteladora no habeas lá impetrado.
Então, Presidente – e isso é interessantíssimo para revelar o estágio em que vivemos, a quadra de perda de parâmetros, de abandono a princípios –, pedi ao
Gabinete que, oficialmente, entrasse em contato com o Regional Federal para
que passasse, por fac-símile, o ato de indeferimento da liminar. A resposta foi
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surpreendente. O Relator teria dito que não poderia passar. Que fique registrado
esse fato no meu voto.
Presidente, li com a máxima atenção, procedendo como aprendi ainda
no banco da Nacional de Direito, as peças elaboradas, ou seja, com régua e
esferográfica vermelha, sublinhando os trechos mais importantes. Realmente,
não está em jogo o merecimento do ato do Juízo Federal que implicou a busca
e apreensão, que implicou a determinação de feitura de diligências, que implicou a prisão temporária, já que teríamos até o fator tempo a fulminá-la, já
que ela está jungida a um prazo exíguo de cinco dias, como formalizado, e teríamos – como sustentei em voto – um título diverso. Mas, para que possamos
bem definir – segundo convencimento de cada qual e estamos aqui a atuar em
Colegiado – se houve ou não repetição dos fatos, na preventiva, que serviram de
base à temporária, indispensável é o exame dessa peça e da segunda peça. Devo
consignar, Presidente, que, poucas vezes, me defrontei com peças redigidas com
tamanha seriedade, com tamanha acuidade, com tamanho zelo como cumpre ao
Judiciário fazer.
As duas peças subscritas pelo Juiz Fausto Martin De Sanctis foram muito
bem elaboradas. Começo pela primeira e afasto a possibilidade de se cogitar de
atuação de ofício.
O início dessa peça revela representação, visando à decretação:
(...) de medidas assecuratórias consistentes nas Prisões Preventiva e
Temporária [conforme as pessoas envolvidas] das pessoas investigadas relacionadas, dando, como fundamentos norteadores de seu pedido, as razões deduzidas
nos itens 01 a 20 da exordial, ao argumento de haver provas de crimes de formação de quadrilha, evasão de divisas, “lavagem” de dinheiro e de sonegação fiscal por parte de dois grupos distintos, mas interligados para cometimento de
crimes, que integrariam as organizações criminosas, [em tese, ele está relatando,
Presidente, a representação] em tese, lideradas por Daniel Valente Dantas (...). A
Representação vem acompanhada de 01 (um) CD-R com arquivos lincados.
(Fl. 3.)
Consignou mais o Magistrado:
O Ministério Público Federal manifestou-se às fls.252/257 opinando pela
decretação: da prisão temporária das pessoas [mencionadas, aqui se lançou um
neologismo] elencadas no item 37 (fl. 271), da prisão preventiva das pessoas nominadas no item 38 (fls. 271/272), em razão da existência de “indícios suficientes
de autoria e de participação nos delitos de gestão fraudulenta de instituição
financeira(...), de operar instituição financeira sem autorização legal.”(...)
E essa peça prossegue chegando à análise, à fl. 19, da competência jurisdicional. Em seguida, à fl. 21, à análise das medidas assecuratórias já deferidas
pelo Juízo anteriormente. À fl. 22, à citação da doutrina de V. Exa. – por isso a
peça está bem redigida:
Anote-se que o compartilhamento das informações foi devidamente
cientificado ao Juízo da 5ª Vara Federal Criminal, assim, para referendar a
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regularidade da medida, valho-me, uma vez mais dos judiciosos – o respeito demonstrado por Vossa Excelência, pelo menos aqui nessa peça primeira – ensinamentos do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, já citado alhures, quando disserta
sobre prova derivada fazendo diferenciação desta com as provas obtidas autonomamente e em razão de descobertas inevitáveis, a saber:
Transcrita foi a doutrina de V. Exa., por todos nós sempre acolhida.
Prossegue a peça – que digo bem redigida, em bom vernáculo, em que
pese ao neologismo a que aludi, pela inexistência do verbo elencar – referindose a indícios de materialidade e autoria – Grupo Opportunity, histórico, fl. 27.
Adiante, tem-se a abordagem, a análise de comunicado do Conselho de
Controle de Atividades Financeiras (COAF).
Prossegue referindo-se aos outros atos suspeitos, à análise cuidadosa do
que estaria envolvido, não sei se com procedência ou improcedência.
A seguir, lança-se a identificação dos supostos responsáveis pelas práticas
delitivas com menção a vários autos de transcrição.
Continua-se a tese com o registro da atuação de Naji Nahas e pessoas a ele
vinculadas – fl. 67.
Prossegue-se no exame dos indícios de autoria e da materialidade – simples indícios, reportando-se a diversas pessoas.
Procede à análise da atuação de eventuais “doleiros” – fl. 83 do ato primeiro –, do vazamento de informações sigilosas e da suposta prática de corrupção ativa.
9. Conclusões
Até o momento, apurou-se indícios de que um suposto grupo, a princípio
liderado por Daniel Valente Dantas, teria sua atuação voltada às atividades ilícitas, por infração, em tese, aos delitos tipificados nos artigos. 288 (c.c. o artigo. 2,
alínea a, da Convenção de Palermo – introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 5.015, de 12.03.2004, c.c. a Lei nº 9.034/1995); (...)
Outro grupo, cuja atuação também é objeto de perquirição nos trabalhos de
investigação policial, seria comandado por Naji Robert Nahas(...)
As diligências empreendidas entre meados de 2006 até o presente momento
necessitam [o juiz admitiu] um maior aprofundamento para que possam ser elucidados todos os fatos que compõem o universo da investigação.
A cautela que se fez necessária [estou lendo a peça], aguardando-se conclusões de laudos periciais, além do contínuo monitoramento dos dados telemáticos e telefônicos, (...) justificou-se para bem delineamento destes últimos.
Contudo [e vem em negrito], pelos contornos de tudo o que até aqui se
apurou e diante do vazamento à imprensa e do suposto crime de corrupção em
face de autoridade policial federal, urge a tomada de medidas assecuratórias
para que, (...) não mais seja prejudicado o curso das investigações e que estas
possam ter um efetivo resultado.”
Chega-se ao campo relativo à prisão temporária. Vem o que interessa para
procedermos ao cotejo com os fundamentos da preventiva.
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10.2 Prisão temporária
A prisão temporária, de natureza cautelar, foi instituída pela Lei nº 7.960, de
21.12.1989, e tem a finalidade de garantir a investigação criminal realizada por intermédio de procedimento criminal, sendo utilizada para a apuração de delitos de
maior gravidade, entre estes os perpetrados contra o Sistema Financeiro Nacional
e os cometidos por quadrilha ou bando.
Para a sua decretação, faz-se necessária a imprescindibilidade para as
investigações criminais e [procedeu-se à interpretação teleológica da lei] que o
crime conste do rol de seu inciso III.
A Autoridade policial representou pela decretação da prisão temporá­
ria (...)
Mencionou-se que, em tese, essas pessoas estariam vinculadas ao paciente, registrando-se que se representou pela decretação dessa medida em relação a outras pessoas, e prosseguiu-se:
Como salientado em tópico precedente, o crime de corrupção ativa que teria sido perpetrado por Humberto José da Rocha Braz e Hugo Chicaroni e que
motivou a decretação de suas prisões preventivas, aparentemente guardaria liame
[aqui não se tinha dado que, de alguma forma, sinalizasse o liame, dado mais concreto] com as condutas de Daniel Valente Dantas.
Os vínculos desse investigado com aqueles que, aparentemente, em seu
nome, oferecem e entregam à autoridade policial altas somas em dinheiro (para
possivelmente afastá-lo, bem como sua irmã e outro familiar) (...)
Acrescentou-se:
Por certo, a decretação da prisão temporária [admitiu o colega] de Daniel
Valente Dantas e das pessoas a ele vinculadas, como também a Naji Robert
Nahas, não se justifica [realmente não se justifica] para simples tomada de depoimento do investigado, mas sua pertinência evidencia-se, além dos elementos
acima, pela necessidade da audiência imediata [foi o móvel da temporária] dos
investigados, para que seja possível confrontar com a prova já produzida e a
ser obtida com a medida de Busca e Apreensão. (...)
Observo que as pessoas a seguir [nomeadas ou] nominadas realizariam atividades supostamente ilícitas de interesse direto de Daniel (...) de molde a evitar
[foi a base da temporária] a troca de informações e a destruição da prova indiciária, com colheita célere de indispensáveis informações, viabilizando, desta
feita, a eficácia da investigação, apesar [repise-se] de conhecimento prévio.
Foi a base da temporária decretada. Mencionou-se a necessidade da prisão
temporária de Celso Roberto Pitta de Carvalho e, então, concluiu-se:
Para que as investigações tenham um bom andamento, é indispensável que
os supostos autores dos delitos sejam ouvidos imediatamente para que não
possam planejar e executar ações tendentes ao desfazimento de provas, impedindo, assim, o esclarecimento dos fatos. Desse modo, fica assegurado os seus
isolamentos [para evitar que, em integração, viessem, segundo a óptica do juiz,
a manobrar no sentido de esvaziar a investigação], para colheita de elementos
aptos à elucidação dos crimes e quebra da cadeia de informações mantida
entre alguns deles.
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Não se trata [portanto, consignou o juiz], pois, de medida midiática
(como insistentemente veicula-se acerca de investigações conduzidas pela Polícia
Federal), mas medida absolutamente indispensável para a apuração séria, criteriosa e circunspecta, com foco na sua eficácia.
Decretadas foram as temporárias. Nesse mesmo ato, determinou-se busca
e apreensão abrangente. Seguiram-se as deliberações finais: cópias para a
segurança do feito, digitalizado para disponibilização aos eventuais advogados dos investigados logo após a concretização de todas as medidas urgentes
implementadas.
Presidente, essa foi a base da temporária. Ocorreu entrelaçamento, levando em conta as premissas da prisão preventiva? A meu ver, não. A meu ver,
na preventiva, lançaram-se fatos novos, considerados os dados supervenientes,
presente a busca e a apreensão a que me referi, e fez-se ver:
Na residência de Hugo Chicaroni foram apreendidos cerca de R$ 1.280.000,00,
[é pouco crível que alguém tenha, em residência, importância nesse vulto] que
seriam utilizados para pagamento a título de propina a um dos signatários da
Representação Policial, qual seja, o Delegado da Polícia Federal Victor Hugo, para
que o investigado Daniel Valente Dantas fosse excluído da investigação, como teriam afirmado Hugo Chicaroni e Humberto Braz nos três encontros que mantiveram
no bojo da Ação Controlada (...)
E prosseguiu-se:
O Ministério Público Federal, em sua manifestação ofertada às fls. 12/23,
requer novamente a decretação da prisão preventiva de Daniel Valente Dantas e
pugna pela adoção da medida também em relação a Wilson Mirza Abraham (...)
Vem a outra parte:
A apreensão de grande quantia em dinheiro na residência de Hugo Chica­roni,
além das declarações deste investigado coligidas [na temporária não houve alusão]
no bojo do IPL nº 12.0233/2008 nas quais afiançou que quem teria coordenado a
entrega de valores a ele foi Humberto, que seria executivo do Banco Opportunity,
evidenciam ter Daniel Valente Dantas perpetrado o crime de corrupção ativa,
contando ainda com a participação do advogado Mirza (...). Em acréscimo, pontua
o órgão ministerial (...)
É o relatório.
Passou a decidir:
Ora, com os novos elementos acima retratados pela autoridade policial e
pelo órgão ministerial, não se pode deixar de analisar novamente [tinha analisado
e indeferido antes, sem precipitação, portanto, sem açodamento] a questão, a despeito da r. decisão do Eminente Ministro Gilmar Mendes [teve presente a decisão
de Vossa Excelência], que fez considerações apenas acerca [não poderia fazer considerações sobre outros elementos não existentes no ato da temporária] dos fundamentos da prisão temporária, conforme, aliás, restou registrado na decisão de
fls. 305/478 [que implicara o indeferimento do primeiro pedido de preventiva] dos
autos nº 2008.61.81.008936-1, consignando a necessidade de outros elementos. (...)
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Com a revelação de outros elementos, [consta do ato que estampou a preventiva] que fornecem subsídios equivalentes à Prisão (...)
Procedeu-se ao exame sob o ângulo do tratamento igualitário, passandose adiante, com enfoque que estaria a revelar que os dois envolvidos já presos
seriam autores materiais do crime do art. 336 do Código Penal, e o Paciente, o
autor intelectual.
Consignou-se:
Não se pode permitir que subsistam diferenças (...) [e aí citou uma passagem
interessante] das Ordenações Afonsinas (1446, Afonso V), Manuelinas (1521,
Manuel I) e Filipinas (1603, Filipe II), já consignavam, como causa de comutação
ou de perdão da pena de morte, o fato de o condenado ser “peritíssimo, e muito
insigne na sua arte: porque semelhante qualidade do homem, e que tem tal engenho não deve morrer”, devendo-lhe impor pena correspondente à sua nobreza. (...)
E afastou-se o tratamento diferenciado, dizendo-se que:
Todos devem merecer adequado tratamento, sem distinção, uma vez presentes os requisitos da Prisão Preventiva. (...)
Lançando-se:
Não há direito subjetivo a responder o processo em liberdade por parte de
pessoas que teriam atuado para obstruir a persecução penal. (...)
É essa uma situação contemplada no art. 312 do Código de Processo Penal
a obstaculizar o êxito na persecução criminal.
No caso, deve prevalecer o interesse público de uma apuração regular
sem as interferências, já comprovadas, de que lança mão o representado Daniel
Valente Dantas, conforme passa-se a aduzir.
Veio referência a dados obtidos a partir de quando? Das balizas da temporária do dia 4 referido?
(...) a partir de 08.07.2008, considerada a Busca e Apreensão, mencionandose a Operação Satiagraha, (...) [e mais uma vez], nas quais foram deferidas medidas de Busca e Apreensão, de Prisões Preventivas e Temporárias, de Quebras de
Sigilo Fiscal e Bancário de vários investigados (...)
No que tange a Daniel Valente Dantas [não houve esse exame quando da
temporária], foi possível aferir por meio das diligências de Busca e Apreensão
efetivadas [quando? Em data anterior à temporária? Não, em 8-7-08, – estou lendo
o ato que implicou a preventiva] tanto em sua residência quanto no endereço de
Hugo Chicaroni, fortes indícios do cometimento do delito tipificado [a corrupção
dos policiais] no artigo 333 do Código Penal (...)
E aí prosseguiu:
No endereço de Hugo Chicaroni foi apreendida [em que dia, dia anterior à
temporária? Não] no dia 08.07.2008 a quantia de R$ 1.280.000,00, num claro indicativo de que destinar-se-ia [tendo em conta as tratativas com o Delegado Victor
R.T.J. — 208
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Hugo] à complementação dos valores outrora entregues à Autoridade Policial
Federal (recebidos dentro do Procedimento de Ação Controlada em curso perante
este Juízo) visando-se o pleno êxito do intento de fazer cessar o andamento de
qualquer investigação perante o Poder Judiciário Federal em desfavor de Daniel
Valente Dantas, de Verônica Valente Dantas e de outro familiar, questão já retratada na decisão proferida em 04.07.2008. (...)
Temporária implementada sem esses dados que foram coligidos, repito, a
partir de Busca e Apreensão implementada no ato que a formalizou:
Até aquele momento [daí o cuidado do juiz de revelar, inclusive, a diferença
das situações jurídicas] pela análise dos elementos de prova existentes, podia-se
entrever que todas as tratativas levadas a efeito por Humberto e Hugo perante
Delegado de Polícia Federal que auxiliava nas investigações objeto das medidas assecuratórias em curso, tinham como beneficiários diretos Daniel Valente
Dantas, Verônica Valente Dantas e outro familiar. Tal circunstância, contudo, não
se afigurava suficiente [entrever, simplesmente entrever] a conferir a concretude
necessária ao acolhimento do pedido de prisão preventiva de Daniel, tanto é que
se fez constar daquele decisum (...)
Examinou-se a aparência de ligação das condutas de Hugo e de Humberto
com os interesses de Daniel:
Tal interferência, se de um lado impõe [consignou na decisão anterior indeferindo a] cautela na apreciação do pedido de decretação da prisão preventiva
requerido pela autoridade policial e pelo Ministério Público Federal, de outro,
aconselha a decretação de sua prisão temporária (...)
Não vislumbrou o Juízo, àquela altura, elementos para a preventiva e determinou diligências, a busca e apreensão, para lograr elementos mais robustos.
Continuou:
As questões aduzidas naquela ocasião estão agora superadas diante dos novos elementos de prova obtidos por meio das diligências de Busca e Apreensão
realizadas [quando? Em data posterior à temporária] no dia 8-7-2008 que conferem suporte necessário ao que já se verificou pelos contatos telefônicos e telemáticos objeto de monitoramento, nos quais Humberto teria supostamente agido a
mando de Daniel Valente Dantas (...)
Hugo Chicaroni ao ser inquirido nos autos do IPL nº 12.0233/08 [e foi juntando as peças para chegar ao respaldo do ato alusivo à preventiva] assim declarou:
“é amigo de um ex-Desembargador chamado Pedro Rotta; que, em determinada
ocasião Pedro Rotta apresentou ao declarante um advogado” (...)
E prosseguiu:
Que, neste mesmo dia, o declarante entregou ao Delegado Victor Hugo
a quantia de R$50.000,00 (...) somente conversaria com executivos [o delegado
disse] do Grupo Opportunity (...)
Que, há aproximadamente 10 dias, algumas pessoas ligadas ao Grupo
Opportunity levaram à casa do declarante (diversas entregas) [o próprio dizendo]
a quantia de R$ 865.000,00 (oitocentos e sessenta e cinco mil reais), os quais
deveriam ser entregues ao Delegado Victor Hugo; que, o declarante gostaria de
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salientar que somente a quantia supramencionada [e não um milhão duzentos e
oitenta mil, só os oitocentos e sessenta e cinco mil] foi entregue, por pessoas ligadas ao Grupo Opportunity, sendo que o restante do dinheiro apreendido em sua
residência era oriundo de serviços prestados pelo declarante à Empresa Frango
Forte (...).
Em outra declaração prestada no mesmo dia [o Juiz foi encaixando, como
disse, as peças] e na presença de seu advogado, Hugo Chicaroni revelou: “que,
em relação aos recursos que recebeu para pagamento ao Delegado Victor Hugo
informa que quem coordenou a entrega dos valores ao Declarante foi uma pessoa
de nome Humberto, executivo do Banco Opportunity”.
Então, fez ver o Juiz, autor do ato alusivo à preventiva:
O estreito vínculo entre Daniel Valente Dantas, Hugo Chicaroni e Hum­berto
Braz, se precedentemente às diligências encetadas a partir do dia 08 do corrente
mês não se afigurava plenamente apto à decretação de sua custódia preventiva,
neste momento ressai com clareza suficiente à reconsideração deste Juízo [que antes indeferira a preventiva] para o fim de determinar sua prisão preventiva diante
dos elementos de prova apresentados nesta data, por meio da Representação da
Polícia Federal e pela manifestação ofertada pelo Parquet Federal. (...)
Transcreveu, a seguir, a representação e foi adiante:
Na diligência de Busca e Apreensão efetivada na residência de Daniel
Valente Dantas foi apreendido manuscrito (cuja fotografia está inserida à fl. 05
da Representação da Autoridade Policial) intitulado “Contribuições ao Clube”
dando mostras de que em outra oportunidade já se valia do espúrio mecanismo
de corrupção ativa, na medida em que em tal documento observam-se as expressões “Contribuição para que um dos companheiros não fosse indiciado criminalmente”, forma de pagamento “Cash”, no valor de R$ 1.500.000,00 [e consignou o
juiz] (não se sabe em qual moeda), no ano de 2004, figurando como interlocutor
pessoa denominada “Pedro”.
Em outra folha manuscrita apreendida na residência de Daniel Valente
Dantas, com timbre do Hotel The Waldorf Astoria, pode-se ler a anotação: “usar
o assunto da polícia p/produzir notícia e influenciar na Justiça” (...)
E prosseguiu na análise:
Vislumbra-se, pois [já na conclusão], em tese, o crime de corrupção ativa
supostamente perpetrado por Daniel Valente Dantas, [que seria, pelos contornos,
o autor intelectual] Humberto José da Rocha Braz e Hugo Chicaroni, donde se
conclui também pela necessidade da decretação da prisão preventiva do primeiro
nominado (...)
Como já se afirmou na decisão (...) não houve apenas oferecimento de recursos à autoridade policial, mas entrega efetiva [de valores] (...)
Vale, uma vez mais, relembrar que Hugo Chicaroni relatou no mês de junho
do corrente ano [isso não compôs o ato alusivo à temporária] à autoridade policial,
no Procedimento de Ação Controlada, que “o pagamento a ser feito por Humberto
seria destinado a livrar Daniel Valente Dantas, seu filho e sua irmã da investigação e que a preocupação [está entre aspas] de Dantas seria apenas com o processo
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“na primeira instância”, uma vez que no STJ e no STF ele “resolveria tudo com facilidade” (...), dando mostras e sinais de ousadia e zombaria sem precedentes. (...)
Presidente, não tenho, em primeiro lugar, como dizer que essa decisão,
considerados os fundamentos lançados e que surgiram a partir de 8 de julho
de 2008, seria algo para suplantar a cassação, por V. Exa., da temporária. Há
elementos calcados em diligências efetivadas no dia 8 de julho de 2008, após a
formalização da temporária, conducentes, a meu ver, ao respaldo da preventiva.
Mais uma vez, fazendo-se referência a elementos de prova acrescidos pelas diligências efetivadas naquela data – documentos apreendidos e a versão de
Hugo –, fulminou-se:
Todos estes elementos dão pleno suporte às conclusões de que Daniel
Valente Dantas efetivamente teria determinado o pagamento de propina, figurando Humberto (...)
Lançam-se, supostamente, mão de práticas escusas (...)
E prosseguiu-se a análise da espécie:
Impõe sublinhar que o juízo de valor exarado sobre as condutas do investigado vinculou-se a fatos concretos, sendo insubsistente possuir Daniel Valente
Dantas domicílio certo e eventual vida pregressa imaculada. (...)
E decretou-se a prisão preventiva.
Presidente, li – já não me recordo de quem, de certo autor – que, no ofício
judicante, há mais coragem em ser justo, parecendo injusto, do que em ser injusto para salvaguardar as aparências de Justiça.
O ato último de constrição, considerada a liberdade de ir e vir, trouxe à balha elementos novos que surgiram com a busca e apreensão determinada quando
da decretação da temporária e que, portanto, não poderiam ter sido utilizados no
implemento dessa mesma temporária.
Quanto ao acesso ao inquérito, tenho precedentes na Corte, ligados à
Comissão Parlamentar de Inquérito, tenho precedentes ligados a inquéritos policiais, distinguindo entre elementos já anexados aos autos e diligências em curso.
Diligências em curso, costumo dizer, devem estar na gaveta e, aí, claro, não há
o direito, de possível envolvido, ao acesso, mas, a partir do momento em que se
procede à juntada de dados coligidos nas investigações, mediante as diligências,
aos autos do inquérito – a não ser que reine o mistério, como ocorre em alguns
países, inclusive da Europa, na fase de investigação –, os envolvidos têm o direito público subjetivo ao acesso a esses dados.
Peço vênia – e depois ainda dizem que sou progressista e liberal – para
conceder apenas parcialmente a ordem. Faço-o para tornar definitivo o ato praticado por V. Exa., visando – e isso para mim já estava contido na liminar do
Superior Tribunal de Justiça – ao acesso a tudo o que se contém nos autos do
inquérito.
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No mais, indefiro a ordem por entender que se lançou fundamentos diversos e que, portanto, não houve desrespeito à decisão de V. Exa. ao decretar-se a
prisão preventiva.
É como voto.
VOTO
O Sr. Ministro Celso de Mello: Senhor Presidente, o eminente Ministro
EROS GRAU, ao julgar o fundo da presente controvérsia jurídica, produziu
voto brilhante, denso e que representa pronunciamento jurisdicional impregnado de alta importância no curso do longo itinerário e da experiência histórica
desta Suprema Corte na defesa da preservação e da integridade do regime dos
direitos e garantias individuais que o ordenamento constitucional brasileiro
proclama em favor de qualquer pessoa.
O Plenário desta Corte superou a restrição fundada na Sumula 691/STF,
e o fez porque reconheceu que as decisões questionadas se mostram em aberto
confronto com a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal referente ao tema dos direitos e garantias fundamentais.
A leitura atenta das principais peças deste processo de “habeas corpus”
evidencia que ocorreram, no procedimento persecutório ora em exame, múltiplas transgressões à jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal
e ao regime dos direitos e garantias que a Constituição da República assegura a
qualquer pessoa sob investigação criminal ou processo penal.
Os elementos propiciados por este processo certamente permitirão um
valioso estudo de caso em torno das apontadas violações perpetradas contra
os pacientes, notadamente se confrontadas as decisões do juiz federal de primeira instância com os critérios prevalecentes na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, cuja orientação, em tema de persecução penal e de decretação
de prisão cautelar, repudia comportamentos arbitrários e insultuosos ao regime
dos direitos e garantias individuais, provenham tais abusos de onde provierem.
Ninguém ignora, exceto os cultores e executores do arbítrio, do abuso de
poder e dos excessos funcionais, que o processo penal qualifica-se como instrumento de salvaguarda das liberdades individuais.
É preciso que as autoridades públicas, neste País, notadamente aquelas
que intervêm nos procedimentos de investigação penal ou nos processos penais,
respeitem, observem e não transgridam limitações que o ordenamento normativo impõe ao poder do Estado.
Há a considerar, desde logo, a questão do regime de sigilo que se impôs
ao procedimento penal em referência.
Com efeito, o caso ora em exame, dentre outros aspectos de grande importância, põe em evidência, uma vez mais, situação impregnada de alto relevo jurídico-constitucional, consideradas as graves implicações que o regime
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de sigilo – necessariamente excepcional – impõe ao exercício, em plenitude,
do direito de defesa e à prática, pelo Advogado, das prerrogativas profissionais que lhe são inerentes (Lei 8.906/94, art. 7º, incisos XIII e XIV).
O Estatuto da Advocacia – ao dispor sobre o acesso do Advogado investido de mandato aos procedimentos estatais que tramitam em regime de
sigilo – assegura-lhe, como típica prerrogativa de ordem profissional, o direito
de examinar os autos, sempre em benefício de seu constituinte, e em ordem a
viabilizar, quanto a este, o exercício do direito de conhecer os dados probatórios
já formalmente produzidos no âmbito da investigação penal, para que se possibilite a prática de direitos básicos de que também é titular aquele contra quem
foi instaurada, pelo poder público, determinada persecução criminal.
Nem se diga, por absolutamente inaceitável, considerada a própria declaração constitucional de direitos, que a pessoa sob persecução penal (em juízo
ou fora dele) mostrar-se-ia destituída de direitos e garantias. Esta Suprema
Corte jamais poderia legitimar tal entendimento, pois a razão de ser do sistema
de liberdades públicas vincula-se, em sua vocação protetiva, a amparar o cidadão contra eventuais excessos, abusos ou arbitrariedades emanados do aparelho
estatal.
Cabe relembrar, no ponto, por necessário, a jurisprudência firmada pelo
Supremo Tribunal Federal em torno da matéria pertinente à posição jurídica
que o indiciado – e, com maior razão, o próprio réu – ostenta em nosso sistema
normativo, e que lhe reconhece direitos e garantias inteiramente oponíveis ao
poder do Estado, por parte daquele que sofre a persecução penal:
INQUÉRITO POLICIAL – UNILATERALIDADE – A SITUAÇÃO JU­
RÍDICA DO INDICIADO.
– O inquérito policial, que constitui instrumento de investigação penal,
qualifica-se como procedimento administrativo destinado a subsidiar a atuação
persecutória do Ministério Público, que é – enquanto “dominus litis” – o verda­
deiro destinatário das diligências executadas pela Polícia Judiciária.
A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que assistem
ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto de investigações.
O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitu­
cionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente
induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta
desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.
(RTJ 168/896-897, Rel. Min. CELSO DE MELLO.)
Não custa advertir, como já tive o ensejo de acentuar em decisão proferida no âmbito desta Suprema Corte (MS 23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE
MELLO), que o respeito aos valores e princípios sobre os quais se estrutura,
constitucionalmente, a organização do Estado Democrático de Direito, longe
de comprometer a eficácia das investigações penais, configura fator de irrecusável legitimação de todas as ações lícitas desenvolvidas pela Polícia
Judiciária, pelo Ministério Público ou pelo próprio Poder Judiciário.
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R.T.J. — 208
A pessoa contra quem se instaurou persecução penal – não importa se em
juízo ou fora dele – não se despoja, mesmo que se cuide de simples indiciado,
de sua condição de sujeito de determinados direitos e de senhor de garantias
indisponíveis, cujo desrespeito só põe em evidência a censurável (e inaceitável) face arbitrária do Estado, a quem não se revela lícito desconhecer que os
poderes de que dispõe devem conformar-se, necessariamente, ao que prescreve
o ordenamento positivo da República.
Esse entendimento – que reflete a própria jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal construída sob a égide da vigente Constituição – encontra
apoio na lição de autores eminentes, que, não desconhecendo que o exercício
do poder não autoriza a prática do arbítrio, enfatizam que, mesmo em procedimentos inquisitivos instaurados no plano da investigação policial, há direitos titularizados pelo indiciado, que simplesmente não podem ser ignorados
pelo Estado.
Cabe referir, nesse sentido, o magistério de FAUZI HASSAN CHOUKE
(“Garantias Constitucionais na Investigação Criminal”, p. 74, item n. 4.2,
1995, RT), de ADA PELLEGRINI GRINOVER (“A Polícia Civil e as Garantias
Constitucionais de Liberdade”, “in” “A Polícia à Luz do Direito”, p. 17, 1991,
RT), de ROGÉRIO LAURIA TUCCI (“Direitos e Garantias Individuais no
Processo Penal Brasileiro”, p. 383, 1993, Saraiva), de ROBERTO MAURÍCIO
GENOFRE (“O Indiciado: de Objeto de Investigações a Sujeito de Direitos”,
“in” “Justiça e Democracia”, vol. 1/181, item n. 4, 1996, RT), de PAULO
FERNANDO SILVEIRA (“Devido Processo Legal – Due Process of Law”, p.
101, 1996, Del Rey), de ROMEU DE ALMEIDA SALLES JUNIOR (“Inquérito
Policial e Ação Penal”, p. 60/61, item n. 48, 7ª ed., 1998, Saraiva) e de LUIZ
CARLOS ROCHA (“Investigação Policial – Teoria e Prática”, p. 109, item n. 2,
1998, Saraiva), dentre outros.
Impende destacar, de outro lado, precisamente em face da circunstância
de o indiciado (e com maior razão, o réu em juízo criminal) ser, ele próprio,
sujeito de direitos, que o Advogado por ele regularmente constituído tem direito de acesso aos autos da investigação (ou do processo) penal, não obstante
em tramitação sob regime de sigilo, considerada a essencialidade do direito de
defesa, que há de ser compreendido – enquanto prerrogativa indisponível assegurada pela Constituição da República – em perspectiva global e abrangente.
É certo, no entanto, em ocorrendo a hipótese excepcional de sigilo – e
para que não se comprometa o sucesso das providências investigatórias em
curso de execução (a significar, portanto, que se trata de providências ainda
não formalmente incorporadas ao procedimento de investigação) –, que
o acusado (e, até mesmo, o mero indiciado), por meio de Advogado por ele
constituído, tem o direito de conhecer as informações “já introduzidas nos
autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execu­
ção das diligências em curso (...)” (RTJ 191/547-548, Rel. Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE – grifei).
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703
Vê-se, pois, que assiste, àquele sob persecução penal do Estado, o direito
de acesso aos autos, por intermédio de seu Advogado, que poderá examinálos, extrair cópias ou tomar apontamentos (Lei 8.906/94, art. 7º, XIV), observando-se, quanto a tal prerrogativa, orientação consagrada em decisões
proferidas por esta Suprema Corte (HC 86.059-MC/PR, Rel. Min. CELSO
DE MELLO – HC 90.232/AM, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – Inq
1.867/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS 23.836/DF, Rel. Min. CARLOS
VELLOSO, v.g.), mesmo quando a persecução estatal esteja sendo processada
em caráter sigiloso, hipótese em que o Advogado do investigado (ou do indiciado ou do denunciado ou, ainda, do réu), desde que por este constituído,
poderá ter acesso às peças que digam respeito à pessoa do seu cliente e que
instrumentalizem prova já produzida nos autos, tal como esta Corte decidiu
no julgamento do HC 82.354/PR, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE (RTJ
191/547-548):
Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado pri­
mário no procedimento administrativo do inquérito policial –, é corolário e
instrumento a prerrogativa do advogado, de acesso aos autos respectivos, ex­
plicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94, art. 7º, XIV),
da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito
legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com
os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao
princípio da proporcionalidade.
A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia consti­
tucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo
menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não
lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o ob­
jeto do qual haja o investigado de prestar declarações.
O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já
introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitu­
des da execução de diligências em curso (cf. Lei 9.296, atinente às interceptações
telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência,
a autoridade policial, de meios legítimos para obviar inconvenientes que o co­
nhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa
acarretar à eficácia do procedimento investigatório.
(Grifei.)
Esse mesmo entendimento foi por mim reiterado, quando do deferimento de pleito cautelar deduzido em “habeas corpus” impetrado contra eminente Ministro desta própria Corte:
INQUÉRITO POLICIAL. REGIME DE SIGILO. INOPONIBILIDADE
AO ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO INDICIADO. DIREITO DE DEFESA.
COMPREENSÃO GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA. GARANTIA CONS­
TITUCIONAL. PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO ADVOGADO (LEI Nº
8.906/94, ART. 7º, INCISOS XIII E XIV). OS ESTATUTOS DO PODER NÃO PODEM PRIVILEGIAR O MISTÉRIO NEM COMPROMETER, PELA UTILIZAÇÃO
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DO REGIME DE SIGILO, O EXERCÍCIO DE DIREITOS E GARANTIAS FUN­
DAMENTAIS POR PARTE DAQUELE QUE SOFRE INVESTIGAÇÃO PENAL.
CONSEQÜENTE ACESSO AOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ DOCUMEN­
TADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE INCORPORADOS AOS AUTOS
DA INVESTIGAÇÃO PENAL. POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA AQUISI­
ÇÃO DA PROVA. PRECEDENTES (STF). DOUTRINA. MEDIDA CAUTELAR
DEFERIDA.
– O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias plenamente opo­
níveis ao poder do Estado (RTJ 168/896-897). A unilateralidade da investigação
penal não autoriza que se desrespeitem as garantias básicas de que se acha
investido, mesmo na fase pré-processual, aquele que sofre, por parte do Estado,
atos de persecução criminal.
– O sistema normativo brasileiro assegura, ao Advogado regularmente
constituído pelo indiciado (ou por aquele submetido a atos de persecução esta­
tal), o direito de pleno acesso aos autos de investigação penal, mesmo que sujeita
a regime de sigilo (necessariamente excepcional), limitando-se, no entanto, tal
prerrogativa jurídica, às provas já produzidas e formalmente incorporadas ao
procedimento investigatório, excluídas, conseqüentemente, as informações e
providências investigatórias ainda em curso de execução e, por isso mesmo, não
documentadas no próprio inquérito. Precedentes. Doutrina.
(HC 87.725-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 2-2-07.)
Os eminentes Advogados ALBERTO ZACHARIAS TORON e ALE­
XANDRA LEBELSON SZAFIR, em recentíssima obra – que versa, dentre outros temas, aquele ora em análise (“Prerrogativas Profissionais do Advogado”,
p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora) – , examinaram, com precisão, a questão
suscitada pela injusta recusa, ao Advogado investido de procuração (Lei
8.906/94, art. 7º, XIII), de acesso aos autos de inquérito policial ou de processo
penal que tramitem, excepcionalmente, em regime de sigilo, valendo rememorar, a esse propósito, a seguinte passagem:
No que concerne ao inquérito policial há regra clara no Estatuto do
Advogado que assegura o direito aos advogados de, mesmo sem procuração, ter
acesso aos autos (art. 7°, inc. XIV) e que não é excepcionada pela disposição cons­
tante do § 1° do mesmo artigo que trata dos casos de sigilo. Certo é que o inciso XIV
do art. 7° não fala a respeito dos inquéritos marcados pelo sigilo. Todavia, quando
o sigilo tenha sido decretado, basta que se exija o instrumento procuratório para
se viabilizar a vista dos autos do procedimento investigatório. Sim, porque inquéritos secretos não se compatibilizam com a garantia de o cidadão ter ao seu lado
um profissional para assisti-lo, quer para permanecer calado, quer para não se
auto-incriminar (CF, art. 5°, LXIII). Portanto, a presença do advogado no inqué­
rito e, sobretudo, no flagrante não é de caráter afetivo ou emocional. Tem caráter
profissional, efetivo, e não meramente simbólico. Isso, porém, só ocorrerá se o
advogado puder ter acesso aos autos. Advogados cegos, “blind lawyers”, poderão,
quem sabe, confortar afetivamente seus assistidos, mas, juridicamente, prestarse-ão, unicamente, a legitimar tudo o que no inquérito se fizer contra o indiciado.
(Grifei.)
Cumpre referir, ainda, que a colenda Segunda Turma do Supremo
Tribunal Federal, ao apreciar o HC 88.190/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO,
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705
reafirmou o entendimento anteriormente adotado por esta Suprema Corte (HC
86.059-MC/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 87.827/RJ, Rel. Min.
SEPÚLVEDA PERTENCE), em julgamento que restou consubstanciado em
acórdão assim ementado:
ADVOGADO. Investigação sigilosa do Ministério Público Federal. Sigilo
inoponível ao patrono do suspeito ou investigado. Intervenção nos autos.
Elementos documentados. Acesso amplo. Assistência técnica ao cliente ou
constituinte. Prerrogativa profissional garantida. Resguardo da eficácia das
investigações em curso ou por fazer. Desnecessidade de constarem dos autos do
procedimento investigatório. Habeas corpus concedido. Inteligência do art. 5°,
LXIII, da CF; art. 20 do CPP; art. 7º, XIV, da Lei 8.906/94; art. 16 do CPPM; e
art. 26 da Lei 6.368/76. Precedentes. É direito do advogado, suscetível de ser
garantido por habeas corpus, o de, em tutela ou no interesse do cliente envol­
vido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já documentados
em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia
judiciária ou por órgão do Ministério Público, digam respeito ao constituinte.
(Grifei.)
Cabe assinalar, neste ponto, um outro aspecto relevante do tema em
análise. Refiro-me ao postulado da comunhão da prova, cuja eficácia projetase e incide sobre todos os dados informativos, que, concernentes à “informatio
delicti”, compõem o acervo probatório coligido pelas autoridades e agentes
estatais.
Esse postulado assume inegável importância no plano das garantias de
ordem jurídica reconhecidas ao investigado e ao réu, pois, como se sabe, o
princípio da comunhão (ou da aquisição) da prova assegura, ao que sofre persecução penal – ainda que submetida esta ao regime de sigilo –, o direito de conhecer os elementos de informação já existentes nos autos e cujo teor possa ser,
eventualmente, de seu interesse, quer para efeito de exercício da auto-defesa,
quer para desempenho da defesa técnica.
É que a prova penal, uma vez regularmente introduzida no procedimento persecutório, não pertence a ninguém, mas integra os autos do respectivo inquérito ou processo, constituindo, desse modo, acervo plenamente
acessível a todos quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de
persecução penal por parte do Estado.
Essa compreensão do tema – cabe ressaltar – é revelada por autorizado
magistério doutrinário (ADALBERTO JOSÉ Q. T. DE CAMARGO ARANHA,
“Da Prova no Processo Penal”, p. 31, item n. 3, 3ª ed., 1994, Saraiva; DANIEL
AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES, “O Princípio da Comunhão da Prova”,
“in” Revista Dialética de Direito Processual (RDPP), vol. 31/19-33, 2005; FER­
NANDO CAPEZ, “Curso de Processo Penal”, p. 259, item n. 17.7, 7ª ed., 2001,
Saraiva; MARCELLUS POLASTRI LIMA, “A Prova Penal”, p. 31, item n. 2, 2ª
ed., 2003, Lumen Juris, v.g.), valendo referir, por extremamente relevante, a lição expendida por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (“O Juiz e a Prova”,
“in” Revista de Processo, n. 35, Ano IX, abril/junho de 1984, p. 178/184):
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E basta pensar no seguinte: se a prova for feita, pouco importa a sua origem. (...). A prova do fato não aumenta nem diminui de valor segundo haja sido
trazida por aquele a quem cabia o ônus, ou pelo adversário. A isso se chama o
“princípio da comunhão da prova”: a prova, depois de feita, é comum, não pertence a quem a faz, pertence ao processo; pouco importa sua fonte, pouco importa sua proveniência. (...).
(Grifei.)
Cumpre rememorar, ainda, ante a sua inteira pertinência, o magistério
de PAULO RANGEL (“Direito Processual Penal”, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8ª
ed., 2004, Lumen Juris):
A palavra comunhão vem do latim “communione”, que significa ato ou
efeito de comungar, participação em comum em crenças, idéias ou interesses.
Referindo-se à prova, portanto, quer-se dizer que a mesma, uma vez no processo,
pertence a todos os sujeitos processuais (partes e juiz), não obstante ter sido le­
vada apenas por um deles. (...).
O princípio da comunhão da prova é um consectário lógico dos princípios
da verdade real e da igualdade das partes na relação jurídico processual, pois as
partes, a fim de estabelecer a verdade histórica nos autos do processo, não abrem
mão do meio de prova levado para os autos.
(...) Por conclusão, os princípios da verdade real e da igualdade das partes
na relação jurídico-processual fazem com que as provas carreadas para os autos
pertençam a todos os sujeitos processuais, ou seja, dão origem ao princípio da
comunhão das provas.
(Grifei.)
É por tal razão que se impõe assegurar, aos investigados e aos réus
em geral, o acesso a toda informação já produzida e formalmente incorporada aos autos da persecução penal, mesmo porque o conhecimento do
acervo probatório pode revestir-se de particular relevo para a própria defesa
de qualquer deles.
É fundamental, no entanto, que os elementos probatórios já tenham sido
formalmente produzidos nos autos da persecução penal.
O que não se revela constitucionalmente lícito, segundo entendo, é impedir que o réu (ou indiciado, quando for o caso) tenha pleno acesso aos dados
probatórios, que, já documentados nos autos (porque a estes formalmente
incorporados), veiculam informações que possam revelar-se úteis ao conhecimento da verdade real e à condução da defesa da pessoa investigada ou processada pelo Estado, não obstante o regime de sigilo excepcionalmente imposto ao
procedimento de persecução penal.
O fascínio do mistério e o culto ao segredo não devem estimular, no
âmbito de uma sociedade livre, práticas estatais cuja realização, notadamente
na esfera penal, culmine em ofensa aos direitos básicos daquele que é submetido, pelos órgãos e agentes do Poder, a atos de persecução criminal, valendo
relembrar, por oportuno, a advertência de JOÃO BARBALHO feita em seus
R.T.J. — 208
707
comentários à Constituição Federal de 1891 (“Constituição Federal Brasileira –
Comentários”, p. 323/324, edição fac-similar, 1992, Senado Federal):
O pensamento de facilitar amplamente a defesa dos acusados conformase bem com o espírito liberal das disposições constitucionais relativas à liberdade individual, que vamos comentando. A lei não quer a perdição daqueles que
a justiça processa; quer só que bem se apure a verdade da acusação e, portanto,
todos os meios e expedientes de defesa que não impeçam o descobrimento dela
devem ser permitidos aos acusados. A lei os deve facultar com largueza, regularizando-os para não tornar tumultuário o processo.
Com a “plena defesa” são incompatíveis, e, portanto, inteiramente inadmissíveis, os processos secretos, inquisitoriais, as devassas, a queixa ou o de­
poimento de inimigo capital, o julgamento de crimes inafiançáveis na ausência
do acusado ou tendo-se dado a produção das testemunhas de acusação sem ao
acusado se permitir reinquiri-las, a incomunicabilidade depois da denúncia, o
juramento do réu, o interrogatório dele sob a coação de qualquer natureza, por
perguntas sugestivas ou capciosas, e em geral todo o procedimento que de qual­
quer maneira embarace a defesa.
Felizmente, nossa legislação ordinária sobre a matéria realiza o propósito
da Constituição, cercando das precisas garantias do exercício desse inauferível
direito dos acusados – para ela “res sacra reus”.
(Grifei.)
Tal como decidi no MS 24.725-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO
(Informativo/STF 331), cumpre enfatizar, por necessário, que os estatutos do
poder, numa República fundada em bases democráticas, não podem privilegiar o mistério.
A Assembléia Nacional Constituinte, em momento de feliz inspiração,
repudiou o compromisso do Estado com o mistério e com o sigilo, que fora tão
fortemente realçado sob a égide autoritária do regime político anterior (19641985), quando no desempenho de sua prática governamental.
Ao dessacralizar o segredo, como proclamou esta Corte Suprema (RTJ
139/712-713, Rel. Min. CELSO DE MELLO), a Assembléia Constituinte restaurou velho dogma republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio
democrático da publicidade, convertido, em sua expressão concreta, em fator
de legitimação das decisões e dos atos governamentais.
É preciso não perder de perspectiva que a Constituição da República
não privilegia o sigilo, nem permite que este se transforme em “praxis” governamental, sob pena de grave ofensa ao princípio democrático, pois, consoante
adverte NORBERTO BOBBIO, em lição magistral sobre o tema (“O Futuro da
Democracia”, 1986, Paz e Terra), não há, nos modelos políticos que consagram
a democracia, espaço possível reservado ao mistério.
Tenho por inquestionável, por isso mesmo, que a exigência de publi­
cidade dos atos que se formam no âmbito do aparelho de Estado traduz
conseqüência que resulta de um princípio essencial, a que a nova ordem
jurídico-constitucional vigente em nosso País não permaneceu indiferente,
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revestindo-se de excepcionalidade, por isso mesmo, a instauração do regime
de sigilo nos procedimentos penais, consideradas, para tanto, razões legítimas de interesse público, cuja verificação, no entanto, não tem o condão de
suprimir ou de comprometer a eficácia de direitos e garantias fundamentais
que assistem a qualquer pessoa sob investigação ou persecução penal do
Estado, independentemente da natureza e da gravidade do delito supostamente praticado.
As razões que venho de expor constituem o próprio fundamento de inúmeros julgamentos proferidos nesta Corte a propósito do tema, como se pode
ver, por exemplo, de decisão assim ementada:
PERSECUÇÃO PENAL INSTAURADA EM JUÍZO OU FORA DELE. REGIME DE SIGILO. INOPONIBILIDADE AO ADVOGADO CONSTITUÍDO
PELO INDICIADO OU PELO RÉU. DIREITO DE DEFESA. COMPREENSÃO GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA. GARANTIA CONSTITUCIONAL.
PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO ADVOGADO (LEI 8.906/94, ART. 7º,
INCISOS XIII E XIV). OS ESTATUTOS DO PODER NÃO PODEM PRIVILE­
GIAR O MISTÉRIO NEM COMPROMETER, PELA UTILIZAÇÃO DO REGIME
DE SIGILO, O EXERCÍCIO DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
POR PARTE DAQUELE QUE SOFRE INVESTIGAÇÃO PENAL OU ACUSA­
ÇÃO CRIMINAL EM JUÍZO. CONSEQÜENTE ACESSO AOS ELEMENTOS
PROBATÓRIOS JÁ DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE
INCORPORADOS AOS AUTOS DA PERSECUÇÃO PENAL (INQUÉRITO PO­
LICIAL OU PROCESSO JUDICIAL). POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA
AQUISIÇÃO DA PROVA. PRECEDENTES (STF). DOUTRINA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
– A pessoa que sofre persecução penal, em juízo ou fora dele, é sujeito
de direitos e dispõe de garantias plenamente oponíveis ao poder do Estado
(RTJ 168/896-897). A unilateralidade da investigação penal não autoriza que
se desrespeitem as garantias básicas de que se acha investido, mesmo na fase
pré-processual, aquele que sofre, por parte do Estado, atos de persecução
criminal.
– O sistema normativo brasileiro assegura, ao Advogado regularmente
constituído pelo indiciado (ou por aquele submetido a atos de persecução es­
tatal), o direito de pleno acesso aos autos de persecução penal, mesmo que su­
jeita, em juízo ou fora dele, a regime de sigilo (necessariamente excepcional),
limitando-se, no entanto, tal prerrogativa jurídica, às provas já produzidas e
formalmente incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas, conse­
qüentemente, as informações e providências investigatórias ainda em curso de
execução e, por isso mesmo, não documentadas no próprio inquérito ou processo
judicial. Precedentes. Doutrina.
(HC 93.767-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJE 178, de 19-9-08.)
Tenho sempre enfatizado, de outro lado, Senhor Presidente, nesta Supre­ma
Corte, em inúmeras decisões e julgamentos, que a submissão de uma pessoa à
jurisdição penal do Estado coloca em evidência a relação de polaridade conflitante que se estabelece entre a pretensão punitiva do poder público, de um
lado, e o resguardo à intangibilidade do “jus libertatis” titularizado pelo Réu,
de outro.
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A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente
vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas
leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o
processo penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu.
A eventual privação da liberdade individual do acusado requer, em conseqüência, que se lhe assegurem, em toda a sua plenitude, as garantias inerentes
ao “due process of law”. As virtualidades jurídicas que emergem da cláusula
constitucional do devido processo legal não podem ser ignoradas pelo aplicador da lei penal, que deverá ter presentes – ao longo da “persecutio criminis in
judicio” – todos os princípios, que, forjados pela consciência liberal dos povos
civilizados, proclamam, de um lado, a presunção de não-culpabilidade dos
acusados e garantem, de outro, o irrestrito exercício, com todos os recursos e
meios a ele inerentes, do direito de defesa em favor daqueles que sofrem uma
acusação penal.
O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do
Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Não
exageraria se ressaltasse a decisiva importância do processo penal no contexto
das liberdades públicas.
O processo, em sua expressão instrumental, representa o elemento concretizador das garantias individuais outorgadas ao acusado pelo sistema de
direito positivo. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu –
que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença
condenatória –, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão
judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe, ao órgão
acusador, o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta, ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defenderse e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos
probatórios produzidos pelo Ministério Público.
O processo penal condenatório delineia-se, nesse contexto, como estrutura jurídico-formal em cujo âmbito o Estado desempenha a sua atividade
persecutória. Nele antagonizam-se exigências contrastantes que exprimem
uma situação de tensão dialética configurada pelo conflito entre a pretensão
punitiva deduzida pelo Estado e o desejo de preservação da liberdade individual
manifestado pelo Réu.
Essa relação de conflituosidade, que opõe o Estado ao indivíduo, revelase, por isso mesmo, nota essencial e típica das ações penais tendentes à obtenção de provimentos jurisdicionais de caráter condenatório.
A persecução penal, cuja instauração é justificada pela suposta prática
de um ato criminoso, não se projeta nem se exterioriza como uma manifestação de absolutismo estatal. A “persecutio criminis” sofre os condicionamentos que lhe impõe o ordenamento jurídico. A tutela da liberdade representa,
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desse modo, uma insuperável limitação constitucional ao poder persecutório
do Estado.
A própria exigência de processo judicial já representa poderoso fator
de inibição do arbítrio estatal e de restrição ao poder de coerção do Estado. A
cláusula “nulla poena sine judicio” exprime, no plano do processo penal condenatório, a fórmula de salvaguarda da liberdade individual.
Com a prática do ilícito penal, acentua a doutrina, “a reação da socie­
dade não é instintiva, arbitrária e irrefletida; ela é ponderada, regulamentada,
essencialmente judiciária” (GASTON STEFANI e GEORGES LEVASSEUR,
“Droit Pénal Général et Procédure Penale”, tomo II/1, 9ª ed., 1975, Paris;
JOSÉ FREDERICO MARQUES, “Elementos de Direito Processual Penal”,
vol. 1/11-13, itens ns. 2/3, Forense).
Dentro desse contexto, assume relevo indiscutível o encargo processual,
que, ao incidir sobre o Ministério Público, impõe-lhe o ônus de comprovar os
fatos constitutivos sobre os quais assenta-se a pretensão punitiva do Estado.
A exigência de comprovação plena – e de modo inteiramente lícito (RHC
90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO) – dos elementos que dão suporte
à acusação penal recai, por inteiro, e com exclusividade, sobre o Ministério
Público. Essa imposição do ônus processual concernente à demonstração da
ocorrência do ilícito penal reflete, na realidade, e dentro de nosso sistema positivo, uma expressiva garantia jurídica que tutela e protege o próprio estado de
liberdade que se reconhece às pessoas em geral, tal como o Supremo Tribunal
Federal já teve oportunidade de proclamar:
(...) O PODER DE ACUSAR SUPÕE O DEVER ESTATAL DE PROVAR
LICITAMENTE A IMPUTAÇÃO PENAL.
(...)
Somente a prova penal produzida em juízo pelo órgão da acusação penal,
sob a égide da garantia constitucional do contraditório, pode revestir-se de efi­
cácia jurídica bastante para legitimar a prolação de um decreto condenatório.
Os subsídios ministrados pelas investigações policiais, que são sempre
unilaterais e inquisitivas – embora suficientes ao oferecimento da denúncia pelo
Ministério Público –, não bastam, enquanto isoladamente considerados, para
justificar a prolação, pelo Poder Judiciário, de um ato de condenação penal. É
nula a condenação penal decretada com apoio em prova não produzida em juízo
e com inobservância da garantia constitucional do contraditório. Precedentes.
– Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu de­
monstrar a sua inocência. Cabe, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema
de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político
brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza
os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-Lei 88, de 20-12-37, art. 20, n. 5).
Não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de
qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se – para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica – em elementos de certeza,
os quais, ao dissiparem ambigüidades, ao esclarecerem situações equívocas e
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ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar,
com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que poderiam conduzir qualquer magistrado ou
Tribunal a pronunciar o non liquet. (...).
(HC 73.338/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO.)
Cabe ressaltar, de outro lado, que a decretação da prisão cautelar de
qualquer pessoa não se expõe ao arbítrio dos magistrados e Tribunais (RTJ
135/1111), cujas decisões, além da necessária fundamentação substancial, hão
de revelar os fatos que concretamente justificam a indispensabilidade dessa
medida excepcional.
Ao ler as corretíssimas decisões com que Vossa Excelência, Senhor
Presidente, deferiu provimentos cautelares nesta sede processual, especialmente aquela proferida no dia 11-7-08, constato que, nelas, Vossa Excelência,
após referir os critérios que prevalecem na jurisprudência constitucional do
Supremo Tribunal Federal, pôs em evidência a ilegitimidade jurídica dos
fundamentos que deram suporte aos atos de decretação da prisão cautelar do
paciente em referência.
Tenho, igualmente, para mim, Senhor Presidente, que o magistrado federal, ao decretar as prisões cautelares do paciente em questão, considerados
os fundamentos nelas invocados, efetivamente transgrediu os critérios que a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal construiu em tema de privação
cautelar da liberdade individual.
Todos sabemos que a privação cautelar da liberdade individual é sempre
qualificada pela nota da excepcionalidade. Não obstante o caráter extraordinário de que se reveste, a prisão preventiva pode efetivar-se, desde que o ato
judicial que a formalize tenha fundamentação substancial, com base em elementos concretos e reais que se ajustem aos pressupostos abstratos – juridicamente definidos em sede legal – autorizadores da decretação dessa modalidade
de tutela cautelar penal (RTJ 134/798, Rel. p/ o ac. Min. CELSO DE MELLO).
É por essa razão que esta Corte, em pronunciamento sobre a matéria
(RTJ 64/77), tem acentuado, na linha de autorizado magistério doutrinário
(JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”,
p. 376, 2ª ed., 1994, Atlas; PAULO LÚCIO NOGUEIRA, “Curso Completo de
Processo Penal”, p. 250, item n. 3, 9ª ed., 1995, Saraiva; VICENTE GRECO
FILHO, “Manual de Processo Penal”, p. 243/244, 1991, Saraiva), que, uma
vez comprovada a materialidade dos fatos delituosos e constatada a existência de meros indícios de autoria (pressupostos da prisão preventiva) – e desde
que concretamente ocorrente qualquer das situações referidas no art. 312
do Código de Processo Penal (fundamentos da prisão preventiva) –, tornase legítima a decretação, pelo Poder Judiciário, dessa especial modalidade de
prisão cautelar.
Em minha análise dos atos decisórios ora questionados, verifico que os
fundamentos a eles subjacentes não se ajustam ao magistério jurisprudencial firmado pelo Supremo Tribunal Federal no exame do instituto da prisão
preventiva.
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Ao contrário, vislumbro, nas decisões ora impugnadas nesta impetração,
uma inadmissível antecipação punitiva do paciente em referência, o que claramente subverte a função processual da prisão cautelar.
Impõe-se advertir (e relembrar), por isso mesmo, que a prisão cautelar
(“carcer ad custodiam”) – que não se confunde com a prisão penal (“carcer ad
poenam”) – não objetiva infligir punição à pessoa que sofre a sua decretação.
Não traduz, a prisão cautelar, em face da estrita finalidade a que se destina,
qualquer idéia de sanção. Constitui, ao contrário, instrumento destinado a
atuar “em benefício da atividade desenvolvida no processo penal” (BASILEU
GARCIA, “Comentários ao Código de Processo Penal”, vol. III/7, item n. 1,
1945, Forense), tal como esta Suprema Corte tem proclamado:
A PRISÃO PREVENTIVA – ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA
CAUTELAR – NÃO TEM POR OBJETIVO INFLIGIR PUNIÇÃO ANTE­
CIPADA AO INDICIADO OU AO RÉU.
– A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo poder
público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou
a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases de­
mocráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem
processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia.
A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal –
não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se,
considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da ativi­
dade estatal desenvolvida no processo penal.
(RTJ 180/262-264, Rel. Min. CELSO DE MELLO.)
Isso significa, portanto, que o instituto da prisão cautelar – considerada a
função exclusivamente processual que lhe é inerente – não pode ser utilizado
com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da pretensão punitiva
do Estado, pois, se assim fosse lícito entender, subverter-se-ia a finalidade da
prisão preventiva, daí resultando grave comprometimento ao princípio da liberdade (HC 89.501/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
É por isso que esta Suprema Corte tem censurado decisões que fundamentam a privação cautelar da liberdade no reconhecimento de fatos que se
subsumem à própria descrição abstrata dos elementos que compõem a estrutura jurídica do tipo penal:
(...) PRISÃO PREVENTIVA – NÚCLEOS DA TIPOLOGIA – IMPRO­
PRIEDADE. Os elementos próprios à tipologia bem como as circunstâncias da
prática delituosa não são suficientes a respaldar a prisão preventiva, sob pena
de, em última análise, antecipar-se o cumprimento de pena ainda não imposta (...).
(HC 83.943/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – Grifei.)
Essa asserção permite compreender o rigor com que o Supremo Tri­
bunal Federal tem examinado a utilização, por magistrados e Tribunais, do
instituto da tutela cautelar penal, em ordem a impedir a subsistência dessa
excepcional medida privativa da liberdade, quando inocorrente hipótese que
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possa justificá-la, não cabendo invocar, para tanto, a gravidade em abstrato
dos crimes (RTJ 137/287 – RTJ 172/184 – RTJ 182/601-602, v.g.), ou a credibilidade das instituições (RTJ 180/262-264 – RTJ 193/1050, v.g.), ou, ainda, “A
boa ou má situação econômica do acusado (...)” (HC 72.368/DF).
Na realidade, a suposição – fundada em juízo meramente conjectural
(sem qualquer referência a situações concretas) – de que o paciente poderia interferir nas provas, ou evadir-se do território nacional, se mantido em
liberdade, constitui, quando destituída de base empírica, presunção arbitrária que não pode legitimar, como bem o demonstrou o eminente Senhor
Presidente do Supremo Tribunal Federal, a privação cautelar da liberdade individual de qualquer pessoa.
A mera afirmação, desacompanhada de indicação de fatos concretos, de
que o ora paciente, em liberdade, poderia frustrar, ilicitamente, a regular produção probatória revela-se insuficiente para fundamentar o decreto de prisão
cautelar, se essa alegação – porque fundada em juízo meramente especulativo –
deixa de ser corroborada por necessária base empírica (que deve ser referida
na decisão judicial), tal como tem advertido, a propósito desse específico
aspecto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 170/612-613,
Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 175/715, Rel. Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE, v.g.).
A absoluta invalidade jurídica das decisões do magistrado federal de
primeira instância foi bem realçada por V. Exa., Senhor Presidente, quando
deixou positivado que “o magistrado não indicou elementos concretos e indi­
vidualizados, aptos a demonstrar a necessidade da prisão cautelar, atendo-se,
tão somente, a alusões genéricas”.
V. Exa. também destacou, ao examinar as decisões de primeiro grau,
que, nelas, se fez menção ao fato de o crime imputado ao Paciente ser de natureza grave, aludindo, ainda, ao “significativo poder econômico” do Paciente
em referência, que “possui contatos com o exterior, ampliando a possibilidade
de evasão do território nacional”, eis que, ao mencionado paciente, não faltam
“coragem e condições para tumultuar a persecução penal”.
Daí a acertada conclusão de V. Exa., Senhor Presidente, ao suspender,
cautelarmente, a eficácia das decisões emanadas do juiz federal em questão:
Tais argumentos revelam-se especulativos, expondo simples convicção
íntima do magistrado, o qual externa sua crença na possibilidade de fuga do in­
vestigado em razão de sua condição econômica e pelo fato de ter contatos no exte­
rior, sem apontar um único fato que, concretamente, demonstrasse a real tomada
de providências pelo investigado visando à evasão.
A despeito da clara diretriz jurisprudencial que esta Suprema Corte
firmou nas matérias que venho de referir, o que se tem observado, Senhor
Presidente, é uma inadmissível resistência por parte de autoridades policiais
e judiciárias, que se recusam a respeitar os limites que delineiam a atividade
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persecutória do Estado, esterilizando, desse modo, de maneira inaceitável, as
garantias constitucionais estabelecidas em favor de qualquer pessoa.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): V. Exa. me permite?
O Sr. Ministro Celso de Mello: Pois não.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): Das notas que tenho aqui e,
apenas para reforçar essa sua argumentação, Ministro Celso de Mello: no dia 30
de abril de 2008, a Desembargadora Federal Cecília Mello – isso já foi dito –
despachou nos autos reconhecendo – portanto, a impetração se deu no dia 29 – a
sua prevenção, e, considerando a gravidade dos fatos noticiados pela imprensa,
requisitou informações a todas as varas criminais de São Paulo, capital. No dia
6 de maio de 2008, atendendo a ponderações que lhe foram encaminhadas pelos
juízes Hélio Egídio de Mattos Nogueira e Fausto Martin de Sanctis, a desembargadora Cecília Mello reconsiderou a sua decisão, negando a prevenção e determinando o encaminhamento dos autos à livre distribuição.
Aqui nós estamos vivenciando um fenômeno de inversão completa, inclusive da hierarquia judiciária, em que juízes de primeiro grau determinam
a desembargadores o que eles devem fazer. Isso nós devemos nos perguntar: o
que está a acontecer? V. Exa. tocou num ponto extremamente sensível, e que nós
precisamos tratar.
O Sr. Ministro Celso de Mello: Magistrados de jurisdição inferior e autoridades policiais não podem pautar a atuação dos outros tribunais e, notadamente, a do Supremo Tribunal Federal, muito menos frustrar a execução e o
cumprimento de determinações emanadas desta Corte.
O Supremo Tribunal Federal, Senhor Presidente, não pode tolerar abusos
contra o regime das franquias constitucionais nem vai admiti-los, porque, se
se omitir no desempenho desse encargo, estará renunciando à elevada missão
institucional que a Constituição da República lhe outorgou.
Já o disse, certa vez, Senhor Presidente, que o Supremo Tribunal Federal –
que é o guardião da Constituição, por expressa delegação do poder constituinte – não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se esta Suprema
Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada,
a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente
comprometidas.
O fato de alguém – independentemente de sua situação pessoal, social,
política, econômica ou funcional – ostentar a condição jurídica de pessoa submetida a atos de persecução penal, mesmo perante órgãos da Polícia Judiciária,
não lhe suprime nem lhe afeta a posição de sujeito de direitos e de titular de
garantias indisponíveis, cuja intangibilidade há de ser preservada pelos magistrados e tribunais, especialmente por este Supremo Tribunal Federal.
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É por isso, Senhor Presidente, que ninguém, absolutamente ninguém,
pode ser tratado como se culpado fosse, antes que sobrevenha, contra ele, condenação penal transitada em julgado.
Trata-se de efeito que deriva, de modo bastante expressivo, da presunção
constitucional de inocência, a que esta Suprema Corte tem dispensado tratamento conseqüente e plenamente compatível com o sistema jurídico existente
em nosso País, como se evidenciou no julgamento plenário da ADPF 144/DF,
Rel. Min. CELSO DE MELLO.
A necessária observância da cláusula constitucional inerente ao “due
process of law” representa, de um lado, como já assinalado, fator de proteção
aos direitos daquele que sofre a persecução penal e traduz, de outro, requisito
de legitimação da própria imposição de medidas restritivas de direitos ou de
sanções privativas de liberdade.
O fato, Senhor Presidente, é que o Ministério Público, as autoridades judiciárias e policiais não podem tratar arbitrariamente quem quer que seja,
negando-lhe, abusivamente, o exercício pleno de prerrogativas que resultam,
legitimamente, do sistema de proteção institucionalizado pelo próprio ordenamento constitucional e concebido em favor de qualquer pessoa sujeita a atos
de persecução estatal.
Em suma: o discurso judicial que se apóia, para efeito de decretação
da prisão cautelar, em tópicos retóricos, fundados em juízos conjecturais, de
índole meramente especulativa, culmina, porque eivado de pura generalidade,
por infringir os princípios proclamados pela ordem democrática na qual se
estrutura o Estado de direito, expondo, o magistrado ou Tribunal, com esse
comportamento – que revela linguagem típica dos partidários do Direito Penal
simbólico ou, até mesmo, do Direito Penal do inimigo –, uma visão autoritária
e nulificadora do regime das liberdades públicas consagrado em nosso sistema
constitucional.
Sendo assim, e com apoio nas razões expostas, peço vênia, Senhor
Presidente, para acompanhar, integralmente, o magnífico voto proferido pelo
eminente Ministro EROS GRAU.
É o meu voto.
VOTO
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: O presente habeas corpus, com requerimento de liminar, foi impetrado em 11 de junho de 2008 por Nélio Roberto Seidl
Machado e Alberto Pavie Ribeiro em favor de Daniel Valente Dantas e Verônica
Valente Dantas, em face de ato atribuído ao Superior Tribunal de Justiça, consistente no indeferimento de liminar pelo Relator do HC 107.514, Ministro Arnaldo
Esteves.
Segundo se colhe dos autos, o habeas corpus referido, de natureza preventiva, foi impetrado perante o STJ em 27 de maio de 2008, com vistas à obtenção
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de salvo conduto aos pacientes, para que não fossem atingidos por atos constritivos derivados de investigações encetadas pela Polícia Federal e relatadas
em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 26 de abril de 2008,
intitulada “Dantas é alvo de outra investigação da PF” e com o seguinte subtítulo: “Banqueiro e sócios são investigados por supostos crimes financeiros após
informações encontradas em computador”.
Naquela impetração, indicou-se que a matéria jornalística mencionara
serem Daniel Dantas e seus principais sócios e executivos “(...) alvo(s) de outra
investigação da Polícia Federal que começou com base na quebra de sigilo do
computador central do banco apreendido pelos policiais em setembro de 2004”.
Afirmaram os Impetrantes ao STJ, na esteira do que fora relatado na notícia,
o uso de artifícios para acesso aos dados do hard disk (HD) de computador do
Banco Opportunity, que já havia sido proibida por decisão do Tribunal Regional
Federal da 3ª Região, no julgamento da apelação relacionada ao Processo
2004.61.81.001452-5, de relatoria da Desembargadora Federal Cecília Mello e,
também, pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão da Ministra Ellen Gracie,
lançada em mandado de segurança.
Os impetrantes asseveraram que, diante da negativa dos Juízes Federais
de São Paulo a admitir a existência efetiva da investigação objeto da notícia, em
29 de abril de 2008, formularam pedido de habeas corpus ao Tribunal Regional
Federal da 3ª Região (HC 32.074). A Relatora, Desembargadora Federal Cecília
Mello, “Considerando a gravidade dos fatos noticiados pela imprensa (...)”
requisitou, em 30 de abril de 2008, informações a todos os juízes federais de
competência criminal da cidade de São Paulo. Nenhum deles, porém, admitiu a
existência de procedimento investigativo.
No dia 6 de maio de 2008, a Relatora, atendendo a ponderações que lhe foram encaminhadas pelos juízes federais de São Paulo, reconsiderou sua ordem e
o anterior reconhecimento de sua prevenção para o writ, encaminhando os autos
à livre distribuição, o que se deu à Desembargadora Federal Ramza Tartuce que,
em 20 de maio de 2008, negou a liminar.
A impetração ao STJ se voltou, portanto, ao ato da Desembargadora
Federal Cecília Mello consistente em “(...) chancelar ponderações de magistrados
de primeiro grau, os quais, em última análise, sustentam o canhestro direito de
não informar à Corte sobre quaisquer procedimentos que pudessem ter conteúdo
sigiloso.”, com isso negando-se ao advogado o direito de acesso aos autos do inquérito e, em conseqüência, o direito à plena defesa diante de eventual medida
constritiva da liberdade.
Em 29 de maio de 2008, o Ministro Arnaldo Esteves de Lima, Relator
do habeas corpus impetrado junto ao STJ, decidiu pela oitiva do MPF antes de
analisar a liminar, seguindo-se requerimento dos impetrantes, apresentado em
30 de maio de 2008 e reiterado em 3 de junho de 2008, para que o pleito liminar
fosse imediatamente analisado, sobrevindo, em 6 de junho de 2008, decisão do
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Ministro Arnaldo Esteves de Lima, tornando sem efeito seu despacho anterior
e analisando a liminar, findando por indeferi-la com as seguintes ponderações:
Em regra, é incabível habeas corpus contra decisão pela qual o relator indefere liminar – Súmula 691/STF. Excepcionalmente, quando evidente o abuso ou
ilegalidade, a atingir, direta ou potencialmente, a liberdade, mitiga-se tal princípio, conforme cediça jurisprudência.
O acesso do advogado, habilitado na forma legal, a processos criminais e
mesmo inquéritos em andamento, ainda que tramitem sob o manto do sigilo, visando a defesa de seu constituinte, configura, segundo precedentes, direito, pois
intimamente vinculado às garantias constitucionais da ampla defesa, contraditório, devido processo legal, essencialidade do advogado à prestação jurisdicional,
respeitando-se, naturalmente, os limites legais impostos, do sigilo, da intimidade,
pertinência dos fatos apurados ou em averiguação, com o exercício da advocacia,
no caso concreto etc.
Na hipótese, o contexto revela existir, em princípio, o chamado fumus boni
iuris, pois o referido jornal, de indiscutível credibilidade, veiculou notícia bem
objetiva, a justificar, no legítimo exercício do direito de defesa, que as pessoas
por ele nominadas, busquem, através de seus patronos, ter contato direto com as
eventuais apurações levadas a efeito pelas autoridades competentes, das mesmas
se inteirando, com o escopo de se defenderem. Mais que natural. É direito.
O periculum in mora, todavia, não se revela palpável, objetivo, a justificar o
deferimento, desde logo, do “salvo conduto”, pois a notícia jornalística, ainda que
preocupante para os Pacientes, o que é compreensivo, denota, no entanto, mera
possibilidade, ao expressar, no condicional, (...) “poderia levar à prisão (...)” – fl.
34 –, e não probabilidade.
A liminar ou o salvo conduto pressupõem, como se sabe, para o seu deferimento, a existência ou iminência da prática de coação ilegal, em detrimento da
liberdade, imediata ou mediata, conforme o caso, da locomoção, do ir, vir, ficar,
etc., de alguém.
Em suma, a ameaça de violência ou coação à liberdade, a que se refere
a garantia fundamental do art. 5º, LXVIII, deve se revelar objetiva, iminente,
plausível, não apenas hipotética, subjetiva, possível, valendo relembrar, no ponto,
ensinamento doutrinário, a propósito do mandado de segurança, segundo o qual,
em sua feição preventiva, o mesmo não tem cabimento contra o chamado “ato de
hipótese”, esta diretriz vale, mutatis mutandis, para o habeas corpus, também.
O contexto de fato, pelo menos nesta fase inicial, não indica a presença de
motivação convincente, a justificar o deferimento do “salvo conduto”, o qual fica,
assim, indeferido.
Na presente impetração, frisam os impetrantes que o Ministro Relator do
HC 107.514 reconheceu fumus boni juris, tendo, porém, afastado hipótese de
periculum in mora ante a mera probabilidade de prisão mencionada na matéria
jornalística, arrolando argumentos buscando demonstrar o justo receio dos pacientes de se verem tolhidos em sua liberdade de ir e vir.
O writ foi distribuído ao Ministro Eros Grau, o qual, em 12 de junho de
2008, solicitou informações ao Juízo Federal da 6ª Vara Criminal de São Paulo
para posterior análise do pedido cautelar.
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No dia 25 de junho de 2008, os autos foram remetidos ao Ministério
Público Federal, lá sendo recebidos em 26 de junho de 2008, opinando o
Parquet pelo não-conhecimento do writ, com aplicação da Súmula 691 do
Supremo Tribunal Federal. Caso se entendesse pelo conhecimento do pedido,
manifestou-se pela denegação da ordem, dando-se a devolução dos autos ao STF
em 8 de julho de 2008.
No mesmo dia 8 de julho de 2008, os impetrantes apresentaram reiteração
do pedido de exame da liminar, agora noticiando o fato de que a temida operação policial se efetivara, com a prisão temporária dos pacientes e de várias
outras pessoas que trabalham na principal sede das empresas que levam o nome
“Opportunity”, bem como a busca e apreensão de bens.
Esclareceram que, mais uma vez, buscaram perante o Juízo de Primeiro
Grau informações sobre as razões que determinaram as diligências verificadas,
sendo a análise do pedido, porém, postergada para o término das diligências
policiais, não obstante os meios de comunicação, a todo instante, noticiassem
sobre os fatos.
Destacaram que a mera possibilidade de prisão, identificada pelo Relator
do habeas corpus em curso perante o STJ, se tornou real, passando a indicar
a inexistência dos fundamentos legais que permitiriam a decretação da prisão
temporária e, também, reiterando que a investigação tem como base o acesso a
dados sigilosos existentes em HD do Banco Opportunity, cujo acesso fora anteriormente vedado.
Por tais motivos, requereram a expedição de liminar que permitisse o imediato acesso aos autos do inquérito policial e, também, que fosse concedida a liberdade aos pacientes, com extensão aos demais funcionários/acionistas/sócios
do “Opportunity Equity Partners” e do “Banco Opportunity” alcançados pelas
medidas coercitivas, segundo arrolaram.
Pela decisão de fls. 61/71, deferi parcialmente o pedido de medida liminar, para permitir aos pacientes e aos seus procuradores, de imediato, o
acesso aos autos dos processos autuados sob os números. 2007.61.81.0012852; 2008.61.81.008936-1; e 2008.61.81.008919-1, em curso perante a 6ª Vara
Criminal Federal da Seção Judiciária de São Paulo.
Para exame do pedido liberatório, requisitei ao Juízo da 6ª Vara Criminal
Federal da Seção Judiciária de São Paulo, ainda, cópia da decisão que decretou
a prisão temporária dos pacientes e as correspondentes medidas de busca e
apreensão, assim como outras informações que entendesse pertinentes.
Comunicada a decisão ao Juízo da 6ª Vara Criminal Federal da Seção
Judiciária de São Paulo (fls. 74/79), as informações foram prestadas em 9 de julho de 2008 pelo juiz federal em plantão judiciário, Luiz Renato Pacheco Chaves
de Oliveira, nos seguintes termos:
Inicialmente, cabe frisar que o acesso aos autos foi imediatamente garantido
em plantão, nos termos da decisão liminar de Vossa Excelência, sendo certo que
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719
até o presente momento não houve comparecimento de qualquer procurador ou
advogado constituído.
Tendo em vista a grande quantidade de volumes e apensos, bem como a
complexidade do processo, não é possível, ao menos de imediato, a prestação
das informações por Juiz de Plantão, razão pela qual entrei em contato com Juiz
natural Dr. Fausto De Sanctis o qual comunicou-se com a Presidente do Tribunal
Regional Federal da Terceira Região que, por sua vez, comprometeu-se a entrar
em contato direto com o Supremo Tribunal Federal. Além disso, o referido Juiz
natural do feito se prontificou em prestar as informações na primeira hora do dia
10 de julho de 2008, já que é feriado estadual, estando a Justiça Federal funcionando em regime de plantão. De toda sorte, encaminho, desde já, a íntegra da
decisão por meio eletrônico. A transmissão via fac-símile é inviável em virtude da
mesma contar com elevado número de laudas (175 folhas).
Informo que na data de ontem, ou seja, em 08 de julho, foi deferida pelo Juiz
Titular da 6ª Vara Federal Criminal, Dr. Fausto Martin De Sanctis, aos advogados
constituídos que compareceram em Secretaria, a entrega de uma cópia de excerto
da decisão relativa as prisões e buscas e apreensões, conforme certidão cuja segue,
também em meio eletrônico.
A íntegra da decisão e o acesso irrestrito aos autos não foi garantido de
pronto, na medida em que alguns endereços constantes da referida decisão e, consequentemente dos autos, continham endereços ainda não diligenciados. Portanto,
entendeu-se que a ciência de tais diligências pudesse prejudicar sua realização.
Por outro lado, o acesso ao excerto da decisão, do qual não constaram endereços ainda não diligenciados poderia garantir a ampla defesa e propiciar eventual
insurgência junto aos Tribunais.
Sendo estas as informações que reputo cabíveis, sem prejuízo do envio de
outras pelo Juiz natural do feito amanhã pela manhã, consigno protestos de elevada estima e consideração, me colocando a disposição para maiores esclarecimentos que Vossa Excelência entender pertinentes.
(Fls. 82/83.)
O Juízo da 6ª Vara Criminal Federal da Seção Judiciária de São Paulo também enviou a este Tribunal documentos constantes dos processos autuados sob
os números 2007.61.81.001285-2; 2008.61.81.008936-1; e 2008.61.81.008919-1,
inclusive o decreto de prisão temporária dos pacientes, os quais foram juntados
aos autos deste habeas corpus.
Os elementos então presentes nos autos permitiram o exame e o deferimento do pedido de liberdade apresentado em 8 de julho de 2008, fundado na
inexistência dos requisitos para o decreto de prisão temporária dos pacientes.
Na seqüência, diante da formulação de pedidos específicos, foi estendida
a ordem liberatória em favor dos demais destinatários do decreto de prisão
temporária.
Um novo pedido de liberdade formulado em favor de Daniel Valente
Dantas foi apresentado nos autos deste habeas corpus, agora tendo por ato coator a prisão preventiva determinada em 10 de julho de 2008 pelo juiz federal da
6ª Vara Criminal de São Paulo, nos autos n. 2008.61.81.009733-3, na seqüência ao
cumprimento de mandados de busca e apreensão.
720
R.T.J. — 208
Em referida decisão, lançada em face de representação da autoridade
policial, a ordem constritiva da liberdade do paciente se baseia na apreensão
de cerca de R$ 1.280.000,00 na residência de Hugo Chicaroni, em depoimento
deste e em documentos coletados na residência de Daniel Valente Dantas.
Segundo exposto, a quantia referida seria supostamente aplicada no pagamento de propina a um dos delegados por Hugo Chicaroni e por Humberto José
da Rocha Braz, conforme tratativas já iniciadas e pagamentos parciais já feitos,
em ação judicialmente controlada, para que Daniel Valente Dantas, Verônica
Valente Dantas e outro familiar fossem excluídos da investigação, com pleno
conhecimento do primeiro.
A nova decisão de encarceramento indicava que os novos elementos probatórios coligidos a partir de 8 de julho de 2008, quando deflagrada a operação
policial (autos ns. 2007.61.81.001285-2, 2007.61.81.011419-3 e 2007.61.81.010
208-7), permitiam a definitiva ligação entre Daniel Dantas, de um lado, e Hugo
Chicaroni e Humberto José da Rocha Braz, de outro.
Consta da decisão que não faria sentido a ordem de prisão preventiva direcionada apenas a Hugo Chicaroni e Humberto Braz, por crime de corrupção
ativa e, ao mesmo tempo, a plena liberdade de Daniel Valente Dantas, sob risco
de descrédito da justiça criminal, a consagrar verdadeira distinção entre pessoas
segundo sua posição social.
A ordem de prisão preventiva de Daniel Valente Dantas foi fundamentada
na conveniência da instrução criminal e na necessidade de assegurar a eventual
aplicação da lei penal “(...) porquanto tudo fará para continuar obstando regular
e legítima atuação estatal visando impedir a apuração dos fatos criminosos.”
Mais adiante, afirmou que a prisão “está justificada para conveniência da instrução penal e para assegurar a eventual aplicação da lei criminal dada a flagrante e
acintosa cooptação de terceiros para a prática delitiva, desafiando, desse modo,
o poder de controle e repressão das autoridades, revelando a finalidade primeira
e última de se sua atuação espúria, com potencialidade lesiva, habitualidade
atual e prospectiva de sua conduta, caso permaneça em liberdade.”
Também, reiterou referência ao fato de que Daniel Valente Dantas adota
postura discreta, sendo cauteloso em ligações telefônicas e troca de e-mails,
com isso buscando frustrar a persecução penal, concluindo que, “solto, possivelmente continuaria a empreender a prática das atividades delitivas, colocando em sério risco a ordem econômica, a ordem pública, justificando, assim,
a medida.”
Finalizou aduzindo não ser “possível olvidar que o requerido detém significativo poder econômico e possui contatos com o exterior, ampliando a possibilidade de evasão do território nacional, bem ainda porque poderia ocultar
vestígios criminosos que ainda se esperam poder apurar, autorizando, desta
feita, a decretação de Prisão Preventiva também para garantir a eventual aplicação de lei penal. Ficou claro que coragem e condições para tumultuar a persecução penal não falta ao representado.”.
R.T.J. — 208
721
Os Impetrantes justificaram a possibilidade de conhecimento do pedido
de revogação da prisão preventiva nos autos deste mesmo HC 95.009, também dando notícia de que o cumprimento do alvará de soltura expedido por
esta Presidência às 23h30 do dia 9 de julho de 2008 foi postergado pela Polícia
Federal, com a libertação dos pacientes apenas às 5h30 do dia 10 de julho de
2008, e de que o paciente foi intimado a comparecer no mesmo dia para interrogatório, enquanto, na verdade, se aguardava o decreto de prisão preventiva, estratégia utilizada para negar o cumprimento da libertação determinada pelo STF.
Em outro enfoque, sustentaram a ausência dos requisitos da prisão preventiva, pois os documentos necessários já haviam sido colhidos na instrução
do inquérito, impedindo concluir que Daniel Dantas poderia prejudicar seu
andamento.
Também, lançaram descrédito sobre o único elemento probatório documental apreendido na residência de Daniel Dantas, adotado para ligá-lo a Hugo
Chicaroni e Humberto Braz, ainda indicando não haver inovações no depoimento deste.
Mencionaram, prosseguindo, que a mera constatação do crime não permite a decretação da prisão preventiva, inexistindo fatos novos que justificassem o novo encarceramento, nada consentindo, em outro giro, concluir pela
possibilidade de evasão de Daniel Dantas do distrito da culpa.
Em nova decisão, lançada em 11 de julho de 2008, suspendi os efeitos da
decisão de prisão preventiva do paciente Daniel Valente Dantas, determinando
a expedição do correspondente alvará de soltura, sob o entendimento de que a
fundamentação lançada no decreto constritivo da liberdade não se configurava
suficiente para justificar a restrição do direito de ir e vir do Paciente.
Neguei, por outro lado, o pedido de revogação da prisão preventiva decretada em face de Hugo Chicaroni e Humberto José da Rocha Braz, sob o
entendimento de que a impetração, quanto a estes, esbarrava na inexistência de
impetração nas instâncias originárias, diferentemente do que ocorrera com o
paciente Daniel Valente Dantas,
Findo o recesso do mês de julho, os autos retornaram ao gabinete do
Ministro Relator, vindo aos autos, em 22 de agosto de 2008, o parecer da
Procuradoria-Geral da República, assim ementado pelo Subprocurador-Geral
da República Wagner Gonçalves:
Habeas corpus. Pedido preventivo convertido em liberatório. Impos­
sibilidade. Novo título: prisão temporária. Decisão satisfativa. Acesso aos autos.
Perda de objeto. Novo título: prisão preventiva. Sucessivas supressões de instân­
cias. Implicações.
1. Se advém ato jurídico novo, representado por um despacho de prisão
temporária (mais de 172 laudas), não se pode transformar, em questão tão complexa – crime contra o Sistema Financeiro Nacional, lavagem de dinheiro, cor­
rupção ativa etc, com inúmeros investigados – um habeas corpus de preventivo
para liberatório. Aliás, o ato não foi levado às instâncias ordinárias.
722
R.T.J. — 208
2. Não é o caso de flexibilização da Súmula 691 (STF), porque tal flexibilização só é possível quando a questão, levada às instâncias inferiores, foi indeferida liminarmente ou não restou apreciada. Além disso, não há teratologia,
ilegalidade ou abuso de poder.
3. Não pode essa Suprema Corte apreciar diretamente ato de juiz singular,
para dizer que tal ato não está fundamentado, sob pena de supressão de instâncias.
Na lição da Ministra Ellen Gracie: “Falece competência ao Supremo Tribunal
Federal para conhecer e julgar habeas corpus contra ato de juiz de 1º grau, sob
pena de supressão de instância, em completo dervirtuamento do ordenamento jurídico brasileiro em tema relativo à competência dos órgãos do Poder Judiciário,
notadamente da Suprema Corte.” (HC 93.462/DF, 2ª Turma, julgado de 10.6.2008)
4. Pode o juiz de 1º grau, de posse de elementos concretos e fatos novos,
após a realização de buscas e apreensões e oitiva de testemunhas, expedir mandado de prisão preventiva, no curso de uma ação de habeas corpus, providência
que se encontra no âmbito de sua competência e atribuições. No dizer do sempre
saudoso ex-Ministro Aliomar Baleeiro: “Prisão preventiva. Não há constrangimento ilegal se, depois da concessão de habeas corpus por defeito de fundamentação do primeiro despacho de prisão preventiva, o juiz expediu outro,
em boa forma processual, reportando-se a novos elementos de convicção de
que o paciente, acusado de receptação dolosa, dificulta a prova e pretendia fugir,
como, aliás, fugiu.” (HC 43.961/RS, 2ª Turma, DJ 15.6.1967). É o caso, mutatis
mutandis!
5. Cabe à 2ª Turma referendar ou não as decisões da ilustrada Presidência
expedidas com base no art. 13, inc. VIII, do RISTF. Precedentes dessa Corte.
6. Pelo referendum de todas as decisões que garantiram às partes e aos
advogados o acesso aos autos; que se reconheça a perda de objeto do mandamus,
que, convertido, passou a atacar prisão temporária, cujo prazo já transcorreu;
que se acate o pedido de reconsideração, para que essa respeitável 2ª Turma não
referende, data venia, a revogação do despacho da preventiva, por supressão de
instância. Além disso, o mesmo contém fatos novos e se encontra devidamente
fundamentado. E, por conseqüência, que se dê ciência ao juiz singular, para os
devidos fins.
(Fls. 1115/1153 – Grifos e destaques do original.)
Por fim, a Procuradoria-Geral da República requereu fosse o julgamento
afetado ao Plenário do STF.
Esse é o relatório que entendo pertinente para encaminhar meu voto, o que
passo a fazer.
1. Admissibilidade do exame da impetração
Como já havia afirmado quando da primeira decisão que exarei neste writ,
prepondera, nesta Corte, a jurisprudência no sentido da inadmissibilidade da
impetração de habeas corpus, nas causas de sua competência originária, contra
decisão denegatória de liminar em ação de mesma natureza, articulada perante
tribunal superior. O manejo do writ, perante o STF, como regra, pressupõe o
julgamento definitivo da mesma pretensão, no âmbito do tribunal superior (cf.
HC 76.347-QO/MS, Rel. Min. Moreira Alves, Primeira Turma, unânime, DJ de
8-5-98; HC 79.238/RS, Rel. Min. Moreira Alves, Primeira Turma, unânime, DJ
de 6-8-99; HC 79.776/RS, Rel. Min. Moreira Alves, Primeira Turma, unânime,
R.T.J. — 208
723
DJ de 3-3-00; HC 79.775/AP, Rel. Min. Maurício Corrêa, Segunda Turma, maioria, DJ de 17-3-00; e HC 79.748/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma,
maioria, DJ de 23-6-00).
Esse entendimento está representado na Súmula 691/STF, verbis: “Não
compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado
contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior,
indefere a liminar”.
Entretanto, o rigor na aplicação da Súmula 691/STF tem sido abrandado
por julgados desta Corte em hipóteses excepcionais em que: a) seja premente
a necessidade de concessão do provimento cautelar para evitar flagrante constrangimento ilegal; ou b) a negativa de decisão concessiva de medida liminar
pelo tribunal superior importe na caracterização ou na manutenção de situação
que seja manifestamente contrária à jurisprudência do STF (cf. as decisões colegiadas: HC 84.014/MG, Primeira Turma, unânime, Rel. Min. Marco Aurélio,
DJ de 25-6-04; HC 85.185/SP, Pleno, por maioria, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ
de 1º-9-06; e HC 88.229/SE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma,
maioria, DJ de 23-2-07; e as seguintes decisões monocráticas: HC 85.826-MC/
SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 3-5-05; e HC 86.213-MC/ES, Rel. Min.
Marco Aurélio, DJ de 1º-8-05).
É importante frisar que, na espécie, o pedido originalmente formulado incluía pretensão de salvo-conduto e de acesso aos autos de procedimento investigatório, ou seja, justamente por lhes estar sendo negada a própria existência do
inquérito, e, por isso, temendo a prática de atos constritivos contra os pacientes,
os impetrantes percorreram o caminho regular da impetração, começando pelo
Tribunal Regional Federal da 3ª Região e, daí, seguindo ao Superior Tribunal
de Justiça, em ambas as instâncias sendo o pleito initio litis negado, o que deu
ensejo à impetração deste habeas corpus junto ao STF.
Interessante recordar que o Ministro Relator postergou o exame da liminar
à vinda das informações do Juízo Federal, as quais foram efetivamente requisitadas em 20 de junho de 2008, data que consta do recibo de AR entregue à 6ª
Vara Criminal de São Paulo.
Antes que as informações fossem recebidas, em 25 de junho de 2008, o
Ministro Relator encaminhou os autos à Procuradoria-Geral da República, os
quais lá foram recebidos no dia seguinte e devolvidos a esta Corte em 8 de julho
de 2008, justamente a data em que deflagrada a operação policial que culminou
com as buscas e prisões questionadas. Do parecer ministerial consta a notícia
de que as informações do Juízo Federal da 6ª Vara Criminal de São Paulo foram
remetidas por fax ao Gabinete do Ministro Eros Grau enquanto os autos se encontravam na Procuradoria-Geral da República.
A indicar, de pronto, a certeza do constrangimento ilegal decorrente da
recusa de informações sobre o inquérito, bem como quanto à negativa de acesso
aos investigados e seus defensores, cabe transcrever a íntegra das informações
daquele Juízo Federal da 6ª Vara Criminal de São Paulo ao Ministro Eros Grau:
724
R.T.J. — 208
Em atenção à solicitação formulada no Ofício nº 3908/R, de 17.06.2008, recebido aos 23.06.2008, relativo ao Habeas Corpus nº 95009, em que figuram como
impetrantes Nélio Roberto Seidl Machado e Alberto Pavie Ribeiro, como pacientes
Daniel Valente Dantas e Verônica Valente Dantas, e, finalmente, como impetrado o Exmo. Ministro Arnaldo Esteves, relator do Habeas Corpus nº 107.514
junto à 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, passo a prestar informações solicitadas, como segue:
Inicialmente, cabe frisar que informações foram solicitadas a este juízo a
respeito das idênticas alegações dos impetrantes, bem ainda, por todos os juízes do
Fórum Federal Criminal de São Paulo, em razão de solicitação da Desembargadora
Federal Cecília Mello do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, quando a autoridade apontada como coatora seria apenas o juízo da 2ª Vara Criminal (Habeas
Corpus nº 2008.03.00.015482-6).
No pedido realizado junto àquela Corte Regional Federal, os impetrantes
sequer fizeram contar que haveria inquérito policial instaurado contra os pacientes, muito menos o número deste (autos nº 2007.61.81.001285-2), e tampouco que
tinha sido distribuído a esta 6ª Vara Federal Criminal.
Pelo teor do pedido dos impetrantes junto ao E.S.T.F., pode-se observar que
também perante o Superior Tribunal de Justiça os impetrantes já consignavam tais
informações, não retratadas perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Se já possuíam tal informação, porque haveriam de ocultar perante a Corte
Regional? Que informações fidedignas são essas que, a despeito de não figurarem na matéria jornalística com a precisão citada, fazem com que impetrem dois
Habeas Corpus perante nossas Cortes Superiores, direcionando os pedidos a esta
Vara Criminal?
Devem incialmente revelar como tiveram conhecimento de tais novos detalhes se nem mesmo a reportagem fornece essas informações, salvo quanto “já
ter contratado espiões particulares” o primeiro paciente (tudo conforme a notícia
da imprensa).
Ora, a existência eventual de informações de cunho estritamente sigiloso
pode ensejar manipulação de informações de interesse de quaisquer partes com o
objetivo de obtenção ilícita de informações por vias indiretas.
Nesse diapasão foram as informações prestadas junto ao Tribunal Regional
Federal da 3ª Região por este magistrado e por outro do Fórum Criminal, titular da
9ª Vara, Hélio Egydio de Matos Nogueira, e acabaram por acarretar nova reflexão
da Desembargadora Federal Cecília Mello que textualmente reviu sua própria
decisão.
A propósito, as seguintes informações prestadas por este juízo na ocasião
foram no seguinte sentido:
“Vossa Excelência solicitou informações de todas as Varas Criminais
da Subseção Judiciária Federal de São Paulo, não apenas do juízo impetrado
(que, conforme apontado no tópico da solicitação, figuraria apenas o da 2ª
Vara Federal Criminal), mas da 5ª Vara, bem como ‘(...){às demais Varas de
São Paulo/Capital especializadas em matéria penal’, ressalvando, quanto a
estas, o devido sigilo.
O Habeas Corpus interposto pelos impetrantes tem por lastro informação de um determinado veículo de imprensa, ou melhor, uma determinada matéria jornalística, que revelaria a existência de uma investigação
sigilosa, em curso, contra o primeiro paciente, a partir de dados de um disco
rígido obtidos por suposta ‘manobra jurídica’.
R.T.J. — 208
725
A solicitação, mediante Habeas Corpus baseado num suposto vazamento de informação sigilosa, remete-se a expediente semelhante ao impetrado por um determinado advogado que, tendo tomado conhecimento da
possível existência de procedimento contra o seu cliente, teria questionado
às Varas Criminais acerca da sua existência. Naquela ocasião, este magistrado decidiu:
“(...) No que tange aos procedimentos sigilosos, não há como atender ao requerente diante da própria natureza das eventuais diligências
em curso pois, do contrário, este juízo estará violando normal penal
proibitiva em evidente ofensa ao art. 10 da Lei nº 9.296, de 24.07.2006,
e ao próprio dispositivo citado pelo peticionário (art. 7º, XIII, da Lei nº
8.906, de 04.07.1994). Com relação aos feitos sem sigilo, diante da sua
inexistência com relação ao requerente, caberá dirigir-se ao distribuidor,
onde poderá obter a certidão negativa da Justiça Federal. Isto colocado
e cuidando de requerimento genérico, indefiro o pedido. Intime-se e
arquive-se.” (j. 11.11.2004).
Foi interposto Mandado de Segurança nº 2004.03.00.066217-6, cuja
Relatora foi a Desembargadora Federal Vesna Kolmar, que julgou extinto
o processo sem relação de mérito, nos termos do artigo 267, VI, do C.P.C.
De fato, s.m.j., o presente Writ parece mais uma tentativa na tomada
de conhecimento prévio de feitos eventualmente sigilosos, causando certa
perplexidade diante da imposição legal do segredo.
Com efeito, o artigo de lei citado (artigo 10 da Lei nº 9.296, de
24.07.2006), o Código Penal (artigos 153, §1º-A e 154), bem ainda a Resolução
nº 589, de 29.11.2007, do Conselho da Justiça Federal (artigo 5º) deixam
claro a obrigação do Magistrado na preservação do sigilo sob pena de incidência criminal.
A falta de concretude para o embasamento do Habeas Corpus resta
claro à medida que sequer se sabe ao certo a real autoridade coatora,
sendo de nota que a persistir o argumento genérico de violação de decisão
do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, com base em suposta matéria jornalística, demandaria a prestação de informações a todas as Varas
Criminais existentes no Estado de São Paulo e Mato Grosso do Sul.
A generalidade da questão poderia ensejar, no futuro, manipulação
de informações de interesse de quaisquer partes com o objetivo de obtenção
ilícita de informações por vias indiretas.
Ora, se ilegalidade existir, esta deverá, se o caso, ser objeto de manifestação jurisdicional no momento oportuno e com a via adequadamente
eleita, apontando-se a real autoridade coatora.
Vossa Excelência solicita informações “resguardando-se o devido
sigilo”, dando ensejo a todo tipo de interpretação quanto à possibilidade de
revelação ou não de informações, textualmente nominada pelo legislador,
como sigilosa, criando um sentimento de perplexidade deste magistrado
diante da gravidade, não do teor da matéria jornalística (que deverá ser objeto, se o caso, de futura apreciação judicial), mas da tentativa transversa de
obtenção de informações de procedimentos sob sigilo.
Expresso, ainda, a Vossa Excelência que, em assim agindo, não pretendo de modo algum imiscuir-me em questões que refogem à minha atividade jurisdicional, mas como forma de suscitar a análise de um tema que a
todos interessa, subjacendo à questão envolvida, neste momento, o interesse
público, diretamente, e o direito à defesa, indiretamente.”
726
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Como se percebe, a atuação dos impetrantes pode configurar tentativa de
obtenção de informações de eventuais procedimentos sob sigilo (não apenas de
inquérito policial, como curiosamente afirma), além mesmo da própria matéria
jornalística.
Qualquer informação sigilosa deste magistrado ou de qualquer outro implicaria na violação indevida com possibilidade de responsabilização.
Após assentar pedido com base em matéria de jornal, à medida que se dirigem às Cortes Superiores, agregam novos elementos inclusive sobre “inquérito
policial”, seu número e sua eventual distribuição a este juízo, de tal forma a causar
perplexidade, o que revela o desejo de obtenção, a qualquer custo, de informações
cobertas por sigilo.
Por outro lado, informações agora trazidas às Cortes Superiores denotam
conhecimento que vai além da própria informação da imprensa, podendo já vislumbrar, s.m.j., violação de eventual sigilo.
Na oportunidade, apresento a Vossa Excelência protestos de distinta consideração, colocando-me à disposição para esclarecimentos adicionais.
Fausto Martin de Sanctis
Juiz Federal
(Fls. 43/49 – grifos e destaques do original.)
Observe-se que não se contentou o Juiz da 6ª Vara Criminal Federal de
São Paulo em negar o acesso aos autos do inquérito policial aos investigados
e seus defensores, direito este, diga-se, que o Juízo monocrático, certamente
não poderia desconhecer, já que pacificamente assegurado nesta Corte, a
exemplo do que restou decidido nos autos do HC 88.190/RJ, Rel. Min. Cezar
Peluso, Segunda Turma, unânime, DJ de 6-10-06, do HC 87.827/RJ, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, unânime, DJ de 23-6-06, e do HC 88.520/
AP, Rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno, maioria, DJ de 19-12-07.
Indo além, opôs o inexistente segredo também ao Tribunal Regional
Federal da 3ª Região e ao Supremo Tribunal Federal, negando-se, aqui, a informar ao Ministro Relator a situação que de fato existia, qual seja, o pleno andamento do inquérito policial noticiado pelo jornal Folha de São Paulo, preferindo
tergiversar, perguntando-se como haveria a defesa obtido o número do feito e
tomado conhecimento de que tinha curso perante aquela Vara, como se estivesse obrigada a se conformar diante do abuso encetado e aguardar, resignada,
a futura prisão dos Pacientes, como realmente se verificou.
Esse não seria o papel esperado da defesa, não se coadunando a conduta do
Juiz subscritor das informações, de seu turno, com o cumprimento dos deveres
de seu cargo.
Em tal situação, plenamente configurada a instauração do inquérito e a
indevida negativa de acesso aos seus autos aos investigados, até mesmo negando sua existência, conseqüência lógica disso seria, evidentemente, o temor
de constrangimentos dele decorrentes, na forma de ordens de prisão e busca e
apreensão, justamente como findou acontecendo.
Buscando a defesa, desde o início, saber do inquérito e acessar seu con­
teúdo, conforme direito que reconhecidamente lhe assiste, bem como procuran­do
R.T.J. — 208
727
resguardar os Pacientes de atos constritivos sem prévio conhecimento do procedimento investigativo, tudo somado à devida análise dos pedidos nas instâncias
inferiores, outra não poderia ser a conduta desta Presidência que não analisar
livremente o pedido, convertendo o pleito preventivo em liberatório.
Conforme já fiz constar da decisão pela qual suspendi os efeitos do decreto
de prisão temporária, a providência se mostra plenamente possível a esta Corte nos
autos do mesmo habeas corpus de natureza preventiva inicialmente impetrado.
Com efeito, o ato temido pelos impetrantes, consistente na expedição de
medidas constritivas com base em investigações a cujos autos não conseguiam
ter acesso, se tornou real, o que afasta a equivocada idéia de que a prisão temporária configuraria fato novo, diverso daquele que ensejou a impetração.
A situação de haver o Juízo da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo decretado a prisão temporária em decisão de mais de 172 laudas, o que, no entendimento externado pela Procuradoria-Geral da República em sua manifestação
de fls. 1115/1153, evidenciaria a complexidade da matéria, não constitui empecilho à conversão operada e ao subseqüente exame em sede de liminar, nenhuma
relação se podendo vislumbrar, data venia, entre dita conversão e o número de
folhas de papel gastas pelo magistrado para decidir pelo encarceramento, nenhuma relevância merecendo, de outro lado, eventual dificuldade encontrada
pelo juiz plantonista em prestar as informações requisitadas.
Nesse quadro, considerando que a negativa de acesso aos autos do inquérito à defesa dos pacientes representava flagrante constrangimento ilegal, a
contrariar pacificada jurisprudência do STF, a isso somando-se a subseqüente
ordem de encarceramento decorrente dessa ilegalidade, plenamente válida se
afigurou a conversão do habeas corpus preventivo em liberatório e a superação
da Súmula 691 desta Corte, mostrando-se vagos os argumentos de subtração
do conhecimento da matéria às instâncias inferiores, as quais, como já exposto,
tiveram plena oportunidade de decisão e negaram a ordem pedida, abrindo ao
STF o exercício da competência que lhe cabe.
Dentro desse entendimento, decidi pela suspensão dos efeitos da ordem
de prisão temporária direcionada aos pacientes, posteriormente estendida aos
demais alvos da providência que se encontravam em idêntica situação, nisso
indicando a insubsistência dos argumentos apresentados pelo Juízo da 6ª Vara
Criminal de São Paulo e a absoluta desnecessidade da ordem constritiva, assim,
resumidamente, me manifestando:
No caso em exame, a fundamentação utilizada pelo decreto de prisão temporária – indubitavelmente a espécie mais agressiva de prisão cautelar – não é
suficiente para justificar a restrição à liberdade dos pacientes.
Com efeito, não se pode decretar prisão temporária com base na mera necessidade de oitiva dos investigados, para fins de instrução processual. O interrogatório constitui ato normal do inquérito policial, em regra levado a efeito com o
investigado solto, ante a garantia fundamental da presunção de inocência.
Nesse ponto, ressalto que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, prisão
com a exclusiva finalidade de interrogatório dos investigados, providência que,
728
R.T.J. — 208
grosso modo, em muito se assemelha à extinta prisão para averiguação, que grassava nos meios policiais na vigência da ordem constitucional pretérita.
Quanto ao pretendido confronto da prova que vier a ser obtida pela medida
de busca e apreensão com o depoimento dos investigados, nada consta da decisão
que justifique a necessidade de acontecer de imediato. Colhida a prova, poderá a
mesma ser confrontada a qualquer tempo, não só com os interrogatórios, como
com qualquer outro elemento anterior ou posteriormente coligido na investigação,
o que independe do encarceramento decidido pelo juízo de primeiro grau.
Evidencia-se, assim, uma patente violação a direitos individuais dos pacientes, caracterizada não apenas pela ausência de justa causa para a prisão temporária, decretada pelo Juízo da 6ª Vara Criminal Federal da Seção Judiciária de São
Paulo, mas, principalmente, pela manutenção da restrição à liberdade dos pacientes frente ao atual contexto fático.
Com efeito, ainda que justificável a prisão temporária decretada, é certo
que, no contexto atual, sua manutenção se revela totalmente descabida, nisso
considerando-se o tempo decorrido desde a deflagração da operação policial, suficiente para que todos os elementos de prova buscados fossem recolhidos. A propósito, observe-se o teor do ofício 176/2008 – STG, encaminhado hoje, às 12:24,
pelo Delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz ao juiz da 6ª Vara Criminal
Federal da Subseção Judiciária de São Paulo, dando conta de que apenas dois mandados de busca e apreensão pendiam de cumprimento.
2. Admissibilidade da análise do pedido de suspensão da prisão pre­
ventiva
A ordem de suspensão dos efeitos da prisão temporária, decidida em
9 de julho de 2008, foi efetivada mediante alvarás de soltura expedidos por
esta Presidência no final do mesmo dia e imediatamente encaminhados à
Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal de São Paulo,
através do Diretor-Geral do Departamento de Polícia Federal, Luiz Fernando
Corrêa, sendo os mesmos recebidos, para cumprimento, às 2h27 do dia 10 de
julho de 2008 (fl. 477).
Inexplicavelmente, já no dia 9 de julho de 2008, antes, portanto, de
ter conhecimento da ordem de soltura, delegado da Polícia Federal expedira
“Mandado de Intimação” a Daniel Valente Dantas para que comparecesse, no
dia 10 de julho de 2008, às 17h00, à sede da Superintendência da Polícia Federal
em São Paulo para prestar esclarecimentos (fl. 815), sobrevindo, porém, a prisão preventiva do referido investigado naquele mesmo dia, decretada, segundo
os fundamentos básicos da ordem, com fulcro na documentação apreendida na
operação policial desencadeada em 8 de julho de 2008.
Afigura-se, de início, estranho esse decreto prisional, mormente se considerado que, quando decretada a prisão preventiva de Hugo Chicaroni e
Humberto Braz, o próprio juiz federal da 6ª Vara Criminal Federal da Seção
Judiciária de São Paulo afirmara não haver elementos que justificassem igual
decreto no tocante a Daniel Dantas. Confiram-se, a propósito, os trechos correspondentes:
R.T.J. — 208
729
A autoridade policial representou pelas prisões preventivas de Daniel
Valente Dantas e das pessoas que a ele estariam reunidas em aparente organização criminosa, a saber: Verônica Valente Dantas, Danielle Silbergleid Ninio,
Arthur Joaquim de Carvalho, Carlos Bernardo Torres Rodenburg, Eduardo
Penido Monetiro, Dório Ferman, Itamar Benigno Filho, Norberto Aguiar
Tomaz, Guilherme Henrique Sodré Martins, Humberto José da Rocha Brás
e Luiz Eduardo Rodrigues Greenhalg.
Representou também pelas prisões preventivas de Naji Robert Nahas e de
pessoas que também a ele teriam se associado em suposta organização criminosa:
Fernando Naji Nahas, Carmine Enrique, Celso Roberto Pitta do Nascimento,
Miguel Jurno Neto, Lucio Bolonha Funaro, Marco Ernest Matalon, Antonio
Moreira Dias Filho e Roberto Sande Caldeira Bastos.
O Ministério Público Federal, em sua manifestação, postulou a decretação
da medida também em relação a Hugo Chicaroni.
Ficam, como já decidido precedentemente, indeferidos os pedidos de prisão preventiva dos investigados, à exceção de Humberto José da Rocha Braz
e Hugo Chicaroni. Estas custódias cautelares agora decretadas decorreram da
necessidade de postergar as prisões em flagrante em razão das medidas adotadas
na Ação Controlada que aconselharam o protelamento daquelas medidas.
A decretação da prisão preventiva, pela sua excepcionalidade, deve ser empregada tão-somente quando sua necessidade afigurar-se de tal modo imperativa
que o Poder Judiciário seja compelido à sua adoção, sob pena de comprometimento de toda a atuação persecutória estatal. In casu, esta hipótese resta plenamente atendida quando se detecta o espúrio modo de agir de Humberto José da
Rocha Braz e de Hugo Chicaroni.
A par das investigações empreendidas nestes autos e nos a eles dependentes, a conduta de Humberto José da Rocha Braz com a participação de Hugo
Chicaroni, no episódio envolvendo tratativas perante o Departamento de Polícia
Federal para contactar autoridade responsável por presidir as investigações supostamente em desfavor de Daniel Valente Dantas e de familiares seus, revela todo o
destemor e desrespeito às instituições regularmente constituídas no país. Ambos,
na esperança de pôr termo à investigação policial que supunham estar em curso
em detrimento de Daniel Valente Dantas e de seus familiares, demonstraram
profundo desprezo, além de terem subestimado, às instituições do Estado, nomeadamente a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e o Poder Judiciário.
Além disso, no diálogo mantido por Danielle Silbergleid Ninnio em
27.06.2008 textualmente é afirmado o pagamento de dinheiro para o encerramento de todos os procedimentos administrativos, “mas para os processos criminais fica muito mais difícil” (fl. 785 dos autos nº 2008.61.81.008919-1), revelando
que órgãos da administração pública (“FCC brasileira”, segundo do diálogo) também teriam sido objeto de atuação ilícita.
Humberto, diante do que se verificou (contatos telefônicos), teria supostamente agido a mando de Daniel Valente Dantas, mas, tal dedução, não confere,
por ora, suficiente suporte probatório à decretação da prisão preventiva deste investigado. (...)
(Fls. 461/462 – Destaques do original.)
Assim que cientificado da suspensão dos efeitos do decreto de prisão temporária de Daniel Valente Dantas e outros, de imediato, certamente, passou o
juiz federal da 6ª Vara Criminal da Seção Judiciária de São Paulo a elaborar o
730
R.T.J. — 208
decreto de prisão preventiva do primeiro, agora fazendo-o, alegadamente, com
base em “outros elementos”, nos seguintes termos:
(...) A prisão preventiva não tinha sido decretada na oportunidade pelo fato
de ser indispensável estabelecer o vínculo entre o representado Daniel Valente
Dantas e aqueles que, supostamente, a seu serviço, estariam corrompendo a autoridade policial.
Com a revelação de outros elementos, que fornecem subsídios equivalentes
à Prisão Preventiva de Hugo Chicaroni e de Humberto José da Rocha Braz, por
força do preceito da igualdade, não teria sentido permitir e decidir pela prisão
destes e deixar à margem outros, no caso Daniel Valente Dantas. Do contrário,
a justiça criminal correria risco de descrédito caso não sejam debeladas as desigualdades que, s.m.j., não podem subsistir no seu funcionamento, e este juízo
consagraria verdadeira distinção.
Aqueles que tiveram suas liberdades cerceadas, diante das prisões já decretadas, poderiam alegar situação de inferioridade ou de menor proteção. Em
outras palavras, invocariam diferenciação injustificada de tratamento, sentimento
experimentado de tratamento não igualitário, aliás, o que já sente o cidadão comum quanto à alegada desigualdade de repressão penal, a consciência de que a
injustiça é mais aguda e a justiça severa para as classes favorecidas (“preconceito
de classe”).
(...)
Todos devem merecer adequado tratamento, sem distinção, uma vez presentes os requisitos da Prisão Preventiva. Essa igualdade requer, assim, que não
haja condescendência com os comportamentos duvidosos que atinjam o resultado
de um processo criminal legítimo, jamais justificados “naquilo que todos fazem”,
devendo merecer pronto repúdio, não se admitindo clemências públicas despropositadas ou tratamento privilegiado ou leniente.
(...)
Há de se observar que para o indeferimento do pedido de prisão preventiva
de Daniel Valente Dantas outrora requerido pela autoridade policial, com manifestação favorável do Ministério Público Federal, este juízo reputou ausente seguro vínculo deste investigado com os representados Humberto e Hugo no tocante
às tratativas para a consumação do delito de corrupção ativa, objeto de apuração
nos autos da Ação Controlada sob nº 2008.61.81.008291-3.
Até aquele momento, pela análise dos elementos de prova existentes, podiase entrever que todas as tratativas levadas a efeito por Humberto e Hugo perante
Delegado de Polícia Federal que auxiliava nas investigações objeto das medidas assecuratórias em curso, tinham como beneficiários diretos Daniel Valente
Dantas, Verônica Valente Dantas e outro familiar. Tal circunstância, contudo,
não se afigurava suficiente a conferir a concretude necessária ao acolhimento do
pedido de prisão preventiva de Daniel, tanto é que se fez constar daquele decisum:
(...)
As questões deduzidas naquela ocasião estão agora superadas diante dos
novos elementos de prova obtidos por meio das diligências de Busca e Apreensão
realizadas no dia 08.07.2008 que conferem suporte necessário ao que já se verificou pelos contatos telefônicos e telemáticos objeto de monitoramento, nos quais
Humberto teria supostamente agido a mando de Daniel Valente Dantas, na medida em que teria sido a pessoa que efetivara contatos com autoridade policial,
R.T.J. — 208
731
oferecendo-lhe vantagem indevida para “determiná-la a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”, consistente em altas somas em dinheiro em espécie, cuja origem
deve ser objeto de perquirição.
Após proceder à transcrição do depoimento colhido de Hugo Chicaroni,
dando conta de que haveria agido no interesse do Grupo Opportunity, bem
como de que tinha conhecimento sobre ser Daniel Valente Dantas seu controlador, continuou o Juiz em sua decisão de prisão preventiva:
O estreito vínculo entre Daniel Valente Dantas, Hugo Chicaroni e Hum­
berto Braz, se precedentemente às diligências encetadas a partir do dia 08 do
corrente mês não se afigurava plenamente apto à decretação de sua custódia preventiva, neste momento ressai com clareza suficiente à reconsideração deste Juízo
para o fim de determinar sua prisão preventiva diante dos elementos de prova
apresentados nesta data, por meio da Representação da Polícia Federal e pela manifestação ofertada pelo Parquet Federal.
Transcrevo, a seguir, excerto da Representação Policial ao tecer considerações acerca do dinheiro apreendido na residência de Hugo Chicaroni reforçando a
hipótese de que efetivamente Daniel Valente Dantas era sabedor do oferecimento
de propina à Polícia Federal, como segue:
“a) as interceptações telefônicas e telemáticas comprovaram, no
curso da investigação, que Humberto Braz é o braço-direito de Daniel
Valente Dantas na organização criminosa; b) o pagamento ofertado por
Humberto Braz na reunião com o signatário tinha por propósito excluir
Daniel Dantas e seus familiares da investigação, ou seja, o beneficiado
direto do crime seria Dantas, e não Chicaroni e Braz e a pergunta elementar que se deve fazer quando se investiga um crime é a quem ele aproveita;
c) em telefonemas para o telefone do DPF Victor Hugo, interceptado com
autorização judicial sugerida pelo próprio, Hugo Chicaroni disse, em código, que o dinheiro do pagamento já estaria em sua residência; d) sendo o
homem de confiança e subordinado diretor de Dantas, não é nem minimamente crível que Humberto Braz, sem o consentimento de seu chefe: d1)
telefonasse ao DPF Victor Hugo propondo uma reunião, como de fato o
fez, apesar de a conversa não ter sido interceptada, por ainda não ter havido
autorização judicial; d2) adiantasse R$ 50 mil a Hugo Chicaroni para que a
importância fosse oferecida ao signatário como gratificação pelo primeiro
contato; d3) arriscasse-se a reunir-se com o DPF Victor Hugo e propor o
pagametno de um milhão de dólares para excluir Dantas e seus familiares
da investigação; d4) entregasse mais R$ 79.050,00 a Hugo Chicaroni para
que adiantasse novamente ao signatário; d5) finalmente, providenciasse um
milhão, duzentos e oitenta mil reais para abastecer o apartamento de Hugo
Chicaroni de dinheiro para o fim de que fosse posteriormente fosse entregue
ao DPF Victor Hugo”.
Na diligência de Busca e Apreensão efetivada na residência de Daniel
Valente Dantas foi apreendido manuscrito (cuja fotografia está inserida à fl. 05
da Representação da Autoridade Policial (intitulado “Contribuições ao Clube”,
dando mostras de que em outra oportunidade já se valia do espúrio mecanismo de
corrupção ativa, na medida em que em tal documento observam-se as expressões
“Contribuição para que um dos companheiros não fosse indiciado criminalmente”,
forma de pagamento “cash”, no valor de 1.500.000,00 (não se sabe em qual moeda),
no ano de 2004, figurando como interlocutor pessoa denominada “Pedro”.
732
R.T.J. — 208
Em outra folha manuscrita apreendida na residência de Daniel Valente
Dantas, com timbre do Hotel The Waldorf Astoria, pode-se ler a anotação: “usar
assunto da Polícia p/produzir notícia e influenciar na Justiça” (fls. 05/06), concluindo a autoridade policial, seu raciocínio no sentido de que estaria confirmada
“a produção de factóides pela quadrilha com vistas a manipular a imprensa, a fim
de gerar notícias favoráveis à organização criminosa, tudo para abastecer com
argumentos as inumeráveis manobras jurídicas de seus advogados”, mormente
porque no curso da investigação havia sido comprovado que o investigado “manteve pessoalmente e por meio de outras pessoas de sua organização contatos com
vários jornalistas, ocasiões nas quais são discutidos o teor das matérias a serem
publicadas na imprensa” (fl. 06).
Vislumbra-se, pois, em tese, o crime de corrupção ativa supostamente
perpertrado por Daniel Valente Dantas, Humberto José da Rocha Braz e Hugo
Chicaroni, donde se conclui também pela necessidade da decretação da prisão
preventiva do primeiro nominado, por afigurar-se medida essencial à conveniência da instrução criminal, porquanto tudo fará para continuar obstando regular e
legítima atuação estatal visando impedir a apuração dos fatos criminosos.
Prossegue o Juiz recordando argumentos utilizados no decreto de prisão
preventiva de Hugo Chicaroni e Humberto Braz, os quais também serviram,
reitere-se, para afastar a possibilidade de prisão preventiva de Daniel Valente
Dantas naquela oportunidade, findando com os seguintes trechos:
Todos estes elementos dão pleno suporte às conclusões de que Daniel
Valente Dantas efetivamente teria determinado o pagamento de propina figurando Humberto como o representante do Grupo Opportunity para a suposta perpetração do aludido crime. (...).
Ao contrário, a conduta de Daniel Valente Dantas afigura-se mais nítida ao
se verificar que se tivessem logrado sucesso no acordo pretendido, imenso e irreparável prejuízo às investigações teria advindo notadamente levando-se em conta
o objetivo de isentar pessoas das imputações que possivelmente sobre elas recaísse
para atribuí-las a terceiros, sem mensurar o dano já sentido diante do vazamento e
posterior publicação acerca da investigação.
Lançam-se, supostamente, mão de práticas escusas para obstruir, quando
não obstaculizar, o exercício normal e eficaz da persecução criminal. A prisão
preventiva também de Daniel Valente Dantas, in casu, está justificada para conveniência da instrução penal e para assegurar a eventual aplicação da lei criminal
dada a flagrante e acintosa cooptação de terceiros para a prática delitiva, desafiando, desse modo, o poder de controle e repressão das autoridades, revelando a
finalidade primeira e última de sua atuação espúria, com potencialidade lesiva,
habitualidade atual e prospectiva de sua conduta, caso permaneça em liberdade.
Os elementos coletados até o presente momento permitem ao juízo concluir
que Daniel Valente Dantas adota supostamente postura de extrema cautela ante
as ligações telefônicas e troca de e-mail’, mas com a idéia de inoperância dos
órgãos de controle, o que lhe possibilita aparentemente a persistência da prática
delitiva, além de possuir considerável poder de decisão, autonomia e representação em sua esfera de atuação, tentando frustrar a persecução penal de modo que,
solto, possivelmente constinuaria a empreender a prática das atividades delitivas,
colocando em sério risco a ordem econômica, a ordem pública, justificando, assim,
a medida.
(...)
R.T.J. — 208
733
Em remate, não é possível olvidar que o requerido detém significativo poder
econômico e possui contatos com o exterior, ampliando a possibilidade de evasão
do território nacional, bem ainda porque poderia ocultar vestígios criminosos que
ainda se esperam poder apurar, autorizando, desta feita, a decretação de Prisão
Preventiva também para garantir a eventual aplicação da lei penal. Ficou claro eu
coragem e condições para tumultuar a persecução penal não falta ao representado.
Observa-se que, afora o discurso puramente ideológico que envolveu
o juiz federal da 6ª Vara Criminal da Seção Judiciária de São Paulo quando
decidiu pela prisão preventiva de Daniel Valente Dantas, deixando claro que
a situação econômica favorável do mesmo configuraria motivo suficiente ao
encarceramento provisório, utilizou-se, basicamente, das mesmas constatações que fundamentaram as prisões preventivas de Humberto Braz e Hugo
Chicaroni, acrescentando o fato de se haver apreendido alta quantia em dinheiro
na residência deste e de se haver encontrado dois pedaços de papel na casa de
Daniel Valente Dantas, contendo anotações que absolutamente nada aparentam
dizer com o caso concreto.
Ora, soa nítido o verdadeiro concerto entre o delegado e o juiz federal,
saltando aos olhos evidente conluio voltado a, sob qualquer título, manter Daniel
Valente Dantas encarcerado. Utilizou-se o magistrado de argumentos de que, na
verdade, já dispunha quando decretou a prisão temporária, acrescentando suas
próprias convicções políticas e aspectos outros de mínima relevância para, burlando a ordem liberatória do Supremo Tribunal Federal, fazer o Paciente voltar
imediatamente ao cárcere e lá permanecer, como era de seu intento, revelando
conduta que não se coaduna com a serenidade e eqüidistância entre as partes
que informam o exercício da função jurisdicional.
Como já antes expus, caber lembrar que o pedido originalmente formulado no habeas corpus impetrado junto ao STJ, precedido de outro apresentado
ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, visava à obtenção de salvo-conduto
ante o desconhecimento dos autos do procedimento investigatório, não logrando
sucesso a defesa em ambas as instâncias inferiores. Reiterado o pedido junto
ao STF, restou aberta a possibilidade de exame da matéria nesta Corte, convertendo-se o habeas corpus preventivo em liberatório, o que permitiu a análise e
deferimento do pedido de acesso aos autos e de suspensão dos efeitos da prisão
temporária.
Visto que as mesmas investigações que ensejaram as impetrações deram
causa tanto à prisão temporária quanto à prisão preventiva de Daniel Valente
Dantas, a isso se acrescentando o prévio pedido de salvo-conduto que impedisse
a submissão dos Pacientes a medidas constritivas da liberdade nelas baseadas,
o mesmo entendimento que permitiu a conversão do pedido preventivo em liberatório ensejou o exame direto do pleito de liberdade ante o decreto de prisão
preventiva.
Aqui, também, nota-se não haver mínimo fundamento fático ou jurídico
na tese levantada pela Procuradoria-Geral da República em seu parecer, sobre
a existência de “sucessivas supressões de instâncias”. A prisão desde o início
734
R.T.J. — 208
temida pelos impetrantes aconteceu, primeiramente na forma temporária, sendo
afastada por esta Presidência e, imediatamente, restaurada pelo Juiz, agora sob
o rótulo de preventiva, mediante troca de títulos que, na essência, mascaravam
o intuito inicial de manutenção do paciente no cárcere.
Tampouco haveria lacuna a ser suprida pelo parecer do SubprocuradorGeral da República Wagner Gonçalves, dispensando-se a transcrição que fez
das quatro últimas folhas do decreto de prisão preventiva, vez que delas esta
Presidência sempre teve pleno conhecimento, tanto que fez transcrever, na
decisão que suspendeu seus efeitos, tópico constante de sua última página.
Confira-se:
Por mais que se tenha estendido ao buscar fundamentos para a ordem de
recolhimento preventivo de Daniel Dantas, o magistrado não indicou elementos
concretos e individualizados, aptos a demonstrar a necessidade da prisão cautelar,
atendo-se, tão-somente, a alusões genéricas.
Nesse sentido, observe-se, pontualmente, a menção ao fato de o crime imputado ao paciente ser de natureza grave e a necessidade de que a ordem pública
seja mantida, porque “(...) não é possível olvidar que o requerido detém significativo poder econômico e possui contatos com o exterior, ampliando a possibilidade de evasão do território nacional, bem ainda porque poderia ocultar vestígios
criminosos que ainda se esperam poder apurar, autorizando, desta feita, a decretação da Prisão Preventiva também para garantir a aplicação da lei penal. Ficou
claro que coragem e condições para tumultuar a persecução penal não falta ao
representado”.
Tais argumentos revelam-se especulativos, expondo simples convicção íntima do magistrado, o qual externa sua crença na possibilidade de fuga do investigado em razão de sua condição econômica e pelo fato de ter contatos no exterior,
sem apontar um único fato que, concretamente, demonstrasse a real tomada de
providências pelo investigado visando à evasão.
O mesmo se diga quanto à possibilidade de ocultação de vestígios que ainda
se espera poder apurar, quanto a esse tópico valendo, mais uma vez, remeter ao
que restou decidido quando do afastamento da prisão temporária, inteiramente
aplicável à prisão preventiva, oportunidade em que assentou-se:
“(...) é certo que, no contexto atual, sua manutenção se revela totalmente descabida, nisso considerando-se o tempo decorrido desde a deflagração da operação policial, suficiente para que todos os elementos de prova
buscados fossem recolhidos.”
Vê-se que, no entendimento do magistrado, a prisão preventiva teria como
base a possibilidade de interferir o investigado na colheita de provas outras que
apenas supõe possam existir, a configurar rematado absurdo, inaceitável em se
tratando de tão grave medida restritiva do direito de ir e vir.
Descabe criticar o açodamento da defesa, que haveria deixado de juntar a íntegra da ordem de prisão preventiva quando formulou o pedido de sua
revogação.
O insólito reencaminhamento de Daniel Valente Dantas ao cárcere, no
mesmo dia em que esta Presidência determinou sua soltura, não poderia despertar no ânimo dos defensores outro sentimento que não fosse o de perplexidade e
R.T.J. — 208
735
pressa na nova libertação, cabendo recordar que, em se tratando de concessão de
habeas corpus, dispensa-se até mesmo a apresentação de pedido específico, bastando que o magistrado tome conhecimento, por qualquer meio, de ilegalidade
ou abuso de poder que represente constrangimento à liberdade de locomoção.
3. Conclusão
Esclareço que o exame do pedido de revogação do decreto de prisão provisória não se encontra prejudicado, sendo simplista o argumento ministerial de
que tal se verificaria por já transcorrido o prazo de 5 dias de sua vigência e pelo
caráter satisfativo da decisão desta Presidência.
Cabe lembrar que os efeitos da ordem de encarceramento, direcionada não
apenas a Daniel Valente Dantas, mas a outras 23 pessoas, foram apenas suspensos pela liminar e pelas extensões deferidas, não cuidando o juiz federal da 6ª
Vara Criminal de São Paulo, pelo que se tem notícia, de revogá-lo.
Nessa situação, uma vez declarado prejudicado o conhecimento do Habeas
Corpus nesse tópico, como quer a Subprocuradoria-Geral da República, total
força constritiva da liberdade recuperaria o decreto de prisão temporária quanto
a todos os seus destinatários, devolvendo-lhe força executória que, até este momento, se encontra apenas suspensa, a configurar rematado absurdo.
Por todos esses motivos, reafirmo a competência do Supremo Tribunal
Federal para a análise do habeas corpus em questão, desde a data da impetração
e posteriormente, quando verificada a prisão temporária e a prisão preventiva,
também reiterando os argumentos que levaram a concluir pela indevida negação
ao direito de acesso aos autos e pela insubsistência dos dois decretos constritivos
da liberdade dos pacientes e dos demais investigados aos quais foram os pedidos
de extensão deferidos.
Logo, concedo a ordem, confirmando as liminares, para garantir aos investigados e seus defensores irrestrito acesso aos autos dos inquéritos, bem
como para tornar definitiva a ordem revocatória das prisões temporárias e da
prisão preventiva decretada em desfavor de Daniel Dantas.
É como voto.
VOTO
(Aditamento)
O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): Também me manifesto nesse
sentido. Tenho voto na matéria, vou fazer notas para agregar, apenas para fins
de juntada aos autos.
Na verdade, trata-se, talvez, de uma das decisões mais discutidas do
Supremo Tribunal Federal, atacada de forma bastante indevida, como foi demonstrado, exatamente porque se dizia que se tratava de um habeas corpus per
saltum quando, na verdade, havia aqui um habeas corpus preventivo, como foi
largamente demonstrado. Mas o tipo de prática que se desenvolveu neste caso
não é singular, não é única, infelizmente.
736
R.T.J. — 208
Tive oportunidade, recentemente, num outro caso de 2007, do qual também fiquei Relator para o acórdão, em vários processos, de suscitar indagações
sobre problemas que surgiam nesses processos, discussões várias sobre esses
processos, especialmente tentando envolver, indevidamente, o Relator na participação de atos suspeitos. No caso específico a que me refiro, de 2007, os
Senhores hão de se lembrar, se fez referência a um tal Gilmar de Melo Mendes
num inquérito. E, depois, se disse que o Gilmar Mendes, Ministro do Supremo
Tribunal Federal, estava envolvido nas práticas ilícitas. Disse-se que era um
vazamento indevido de informação. Depois, descobriu-se que não era um vazamento de informação, era uma notícia dada pelo Senhor François René, o
Diretor do Serviço de Informação da Polícia Federal, à época do Senhor Paulo
Lacerda. Hoje, ele continua empregado na Abin.
Na mesma ocasião, uma conversa minha com o Doutor Antônio Fernando
a propósito desses processos de 2007, uma conversa que mantivemos, ele no
Amapá e eu no Rio de Janeiro, ao meio dia, uma hora, uma hora e meia, em seguida fui para São Paulo e lá recebi o telefonema da jornalista Silvana de Freitas,
avisando que a Polícia Federal já informava o conteúdo das nossas conversas.
O que isso revelava em toda instância? Que havia duas práticas sistêmicas
aqui: uma, monitorar, ouvir o Relator dos processos; a outra, amedrontá-lo ou
atemorizá-lo de alguma forma, com algum tipo de informação inverídica.
O Sr. Ministro Celso de Mello: Senhor Presidente, mais do que uma prática
sistêmica, é uma prática criminosa.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): Criminosa.
Neste caso específico, também vem a notícia de monitoramento do meu
gabinete, trazida, inicialmente, por um jornalista da revista Veja e confirmada,
depois, pela Desembargadora Suzana Camargo, que falara com o juiz da 6º Vara
e dissera – a desembargadora – que recebia informes sobre o que se dizia no
meu gabinete. Portanto, havia a prática do monitoramento. Mas havia, também,
a prática do amedrontamento.
Surge, na mídia, a notícia de que assessores meus estiveram num restaurante com advogados do paciente, em 11 de junho, quando o processo tinha sido
distribuído ao Ministro Eros Grau. Notícia mentirosa, com o intuito exclusivo
de amedrontar, de criar constrangimento. Não lhe prestei atenção porque era
tão mentirosa, tão inverossímil, tão irresponsável que só blogs de péssima qualidade, de nenhuma credibilidade, e revista de péssima qualidade conseguiam
incorporar esse tipo de notícia.
Mas isso foi repetido a ponto de eu pedir uma representação ao Procura­
dor-Geral para que investigasse. É este o tipo de prática que se desenvolve,
lamentavelmente.
No caso específico, duas palavras apenas para encerrar. Concedida a ordem no dia nove de julho, feita a comunicação às vinte e três e trinta, os pacientes são libertados pelas nove horas da manhã, e já, alguns deles, intimados para
que permanecessem no local, para serem ouvidos no mesmo dia.
R.T.J. — 208
737
E aí, então, vejam os Senhores, às três horas da tarde já corria a informação de que o paciente fora novamente preso. Portanto, das nove até às três
horas. Mas é muito provável que toda a representação, o parecer do Ministério
Público e a decisão, tenha sido escrita exatamente entre onze e meia da noite e
nove horas.
Publica-se, então, na imprensa: “Queiroz dá o drible da vaca em Mendes”.
É disso que se trata, não é de nova fundamentação, era de fundamentação idêntica com o propósito inequívoco de desmoralizar esta Corte. Era disso que se
tratava.
Se houve “concertação”, parece que houve. Delegado, procurador e juiz.
Era disso que se cuidava. Buscava-se nova fundamentação. Claro que o computador hoje permite que se escrevam cem páginas e se coloquem lá argumentos
adicionais vários. Decisão com cem páginas não significa decisão fundamentada, já o disse bem o nosso Decano. Mas é disso que se cuida.
É preciso que esqueçamos o caso concreto, porque esta Corte é juíza, sim,
do caso concreto, mas quando ela decide, ela faz uma pedagogia dos direitos
fundamentais. Ela não pode ficar repetindo isso em todos os casos, até porque
ela não pode supervisionar todos os atos. É preciso que nós internalizemos,
nas instituições, práticas legalistas: dar vista dos autos, dar vista de inquérito.
Sonegar vista de inquérito? Isso é prática incondizente com qualquer elemento
básico do Estado de direito. Forçar Relator a retirar pedido de informação? Que
tipo de estrutura judiciária nós estamos criando? Juiz constrangendo Relator,
Relator de Tribunal Regional. Que tipo de tribunais regionais nós formamos?
Isso precisa ser claramente discutido.
Claro que não prestamos atenção a nomes. Evidente. Esta Corte acaba de
sumular a questão da progressão de regime num habeas corpus pedido por alguém que não era advogado sequer e estava recolhido à prisão.
Evidente que o déficit existente da assistência judiciária não é imputável ao
Judiciário. Nós todos estamos trabalhando, temos incentivado a instituição das
defensorias públicas, queremos que haja assistência judiciária. Agora, que há
uma sociedade com diferenças, é evidente, queremos melhorar isso.
E todos que já tiveram oportunidade e os que acompanham a atividade da
Presidência do Supremo sabem quão difícil é, no período de recesso, dar respostas a essa massa de casos. Nós decidimos, com os critérios da urgência, os diversos casos, dando a prioridade que a gravidade realmente demonstra e indica.
Mas eu queria, neste momento, apenas dizer aos Ministros, que fizeram já
diversas considerações, como se desenvolve esse tipo de prática. Inclusive nesse
depoimento que dei à Polícia Federal, não faz muito, a propósito desse inquérito no qual se investiga essa informação sobre o tal Gilmar de Melo Mendes e
Gilmar Mendes, eu disse que identificava uma prática muito comum, duas práticas, na verdade: grampear o Relator de processos importantes, fazer interceptação indevida e amedrontá-lo. Nesse mesmo processo aparecem interceptações
também de relatores no Tribunal Regional Federal.
738
R.T.J. — 208
Não surpreende, por isso, que haja este estado de medo, que pessoas suscetíveis a esse tipo de prática aceitem esse tipo de provocação e se curvem a
esse tipo de situação. Mas não é possível que o Judiciário nacional não reaja e
não denuncie esse tipo de prática. É preciso encerrar e espero que este caso seja
emblemático também neste sentido.
Creio que estamos virando uma página de tradição e abuso que se desenvolvia, inclusive com esse tipo de prática de juiz constranger o Relator no
Tribunal Superior. Como se pudesse haver uma inversão, uma subversão da
hierarquia judiciária.
Portanto, também me manifesto, no mérito, no sentido da concessão integral do habeas corpus, nos termos do voto do Relator.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, no início de meu voto, quanto à
matéria de fundo, disse que tentara conseguir cópia da liminar junto ao Tribunal
Regional Federal, ato que implicara o indeferimento do habeas lá impetrado.
Realmente, houve a recusa inicial, mas, agora, às dezenove horas e trinta minutos, acabei de receber o documento. Consigno o fato para fazer justiça ao
Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Procedeu-se como era dado esperar que
procedesse.
PROPOSTA
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, o Tribunal não vai oficiar
ao Conselho Nacional de Justiça?
O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, eu me pronuncio, com
todas as vênias, contra a proposta do Ministro Cezar Peluso.
Primeiro, eu não enxerguei, na linguagem do magistrado, nenhuma incontinência, nenhum insulto, não houve uma linguagem desrespeitosa.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Mas eu não falei do magistrado, Ministro.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Primeiro, eu estou dizendo isso. Segundo, eu
entendo que o art. 36 da Loman não respalda a proposta de V. Exa. – e vou ler –,
sem falar que é um diploma legislativo anterior à Constituição de 1988, e, portanto, em linha de princípio, de compatibilidade duvidosa com o atual Estatuto
da Magistratura no plano das garantias e vedações.
Art. 36. É vedado ao magistrado:
(...)
III – manifestar, por qualquer meio de comunicação [e eu entendo aqui meio
de comunicação social], opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou
de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos
judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do
magistério.
R.T.J. — 208
739
Eu entendo que, à luz desse específico dispositivo, o magistrado não se
expõe.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ministro, V. Exa. está cogitando de outro assunto. Eu me referi à manifestação dos juízes que fizeram manifesto e protesto
público contra a decisão do Ministro Presidente, e não a críticas que tivesse feito
o magistrado da causa.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Eu até diria, também no que toca a esses
magistrados, que fizeram uso de sua liberdade de expressão, naturalmente congregados por uma associação privada de todos eles.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não é caso de associação privada nenhuma;
fizeram-no em nome pessoal.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Sim, mas, Excelência, quem quer que seja
pode dizer o que quer que seja no Brasil de hoje.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Quem quer que seja, não, Ministro.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Se houver excesso no plano individual, há
meios jurídicos de corrigir isso.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Foi isso que eu sugeri.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Mas esta nossa Corte desencadear uma reação contra juízes, que se contam às centenas, eu me ponho contra. Eu acho que
nem é politicamente correto, nem é juridicamente adequado.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Isso não é tarefa desta Corte, Ministro. Isso
é tarefa legal e dever das corregedorias.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Porque, no fundo, é uma providência correcional, mas por iniciativa nossa. Eu não faria isso.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: E com um dado que, para mim, é fundamental. Partindo a iniciativa do Colegiado Maior do Supremo, ter-se-á sinalização sem dúvida alguma de que o resultado deve ser de punição no tocante aos
juízes.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Sem dúvida.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: E, penso, Presidente, que providências podem ser tomadas, mas sem que se estabeleça esse elo, considerada a atividade
judicante dos juízes e a atividade que porventura, como cidadãos, até mesmo,
tenham adotado. E diria – perdoe-me ser tão claro na colocação – que, talvez,
tenham ocorrido críticas de lado a lado.
Penso que não se pode adotar postura alguma que acabe por prejudicar os
próprios jurisdicionados. E iniciativa desta Corte nesse sentido, a meu ver, resultará em inibição até mesmo no ofício judicante.
Eu, por exemplo, votei de forma isolada e comecei o voto dizendo que
poucas vezes vi duas peças tão bem confeccionadas como as peças examinadas
pelo Tribunal. Fiquei isolado, e tudo indica que esse isolamento estampa que, me
740
R.T.J. — 208
posicionei de forma errada, de forma errônea. Houve a concessão da ordem.
Tivemos a exposição dos fatos e está na hora, até mesmo para que haja harmonia, considerados os diversos patamares do Judiciário, de encerrar-se essa
polêmica.
O Sr. Ministro Carlos Britto: No plano das idéias, agora, descambar para o
confronto não me parece prudente.
VOTO
(Sobre proposta)
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Senhor Presidente, quero observar
apenas que absolutamente não vejo, na proposta do Ministro Peluso, nenhuma
intenção de descambar para o confronto ou seja lá o que for. Acho, aliás, que
aqui nenhum Ministro descamba.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Há controvérsias sobre isso.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): De qualquer modo, o que me parece
que esteve sob consideração foi o comportamento da autoridade judiciária que,
aparentemente, não foi de todo adequado ao padrão de comportamento que se
reclamaria da autoridade judiciária.
Não estou, absolutamente, fazendo nenhuma afirmação a esse respeito,
quem a faria seria o órgão competente.
É só isso.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: V. Exa. me permite? Presidente, me permite
apenas um aspecto?
Essa providência, não sei se especificamente quanto a este ou àquele outro
acontecimento, essa iniciativa já foi tomada por Vossa Excelência, quando, na
última decisão proferida no habeas corpus, determinou fossem oficiados aos
diversos órgãos: o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a Corregedoria da 3ª
Região e o Conselho Nacional de Justiça.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: É exatamente isso que propus: que se oficie
para saber qual é o resultado; simplesmente isso. Estou apenas querendo saber
qual foi o resultado.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Eu sei que V. Exa. está munido das melhores
intenções, sem dúvida. No entanto, já decidimos no plano técnico.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Mas não mediante deliberação do Cole­
giado. O próprio Presidente poderá pedir ao Tribunal Regional Federal da 3ª
Região e ao Conselho Nacional de Justiça notícias sobre o resultado dos ofícios
encaminhados.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Se S. Exa. o fizer, não há motivo nenhum
para que eu insista na minha proposta.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Tenho receio de que saiamos do campo da
judicatura para ingressar no campo da política, da politização do conflito.
R.T.J. — 208
741
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ministro, existe, na carreira de magistrado,
que eu conheço profundamente há mais de quarenta anos, uma atividade legal
tão importante quanto todas as outras, e que se chama atividade de correge­
doria. Por isso é que existem órgãos de corregedoria. Se a atividade censória,
disciplinar, é alguma coisa inútil ou inconstitucional, a Corte deve decretar
hoje a extinção de todas as corregedorias! O que elas têm, na sua visão, por
objeto e por competência, seria o exercício de atividades incompatíveis com a
Constituição da República!
O Sr. Ministro Carlos Britto: Excelência, a atividade de correição tem
pressupostos que não coincidem com este episódio.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Se existe corregedoria, é para examinar atos
que, aparentemente, possam ser contrários aos deveres de magistrado!
O que se quer saber, no caso, é se, a juízo da corregedoria competente,
ocorreu isso ou não.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): Vou fazer o pedido de informações.
O Sr. Ministro Menezes Direito: Presidente, eu queria pedir a V. Exa. que
me permitisse manifestar o meu pensamento.
Eu estou em divergência com o entendimento manifestado pelo Ministro
Carlos Britto, porque entendo que, de fato, esta Corte tem o dever constitucional de requerer, como propôs o Ministro Peluso, no curso de um julgamento,
informações aos órgãos competentes para que eles informem, na medida em
que V. Exa. já remeteu para esses órgãos um pronunciamento nesse sentido, ou
esclareçam o andamento desse procedimento.
Quero lembrar, e farei depois referência específica para que conste do
meu voto, que há um antigo precedente desta Corte, lastreado em dispositivo do
nosso Regimento, mediante o qual esta Corte, no seu Pleno, decidiu especificamente sobre a censura a um Magistrado, Desembargador, e dos mais eminentes
de São Paulo.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Que foi Corregedor do Tribunal de Justiça
de São Paulo.
O Sr. Ministro Menezes Direito: Que foi Corregedor e que se manifestou
em sentido contrário a pronunciamento desta Corte.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Tenho sérias dúvidas quanto à constitucionalidade desse artigo do Regimento.
O Sr. Ministro Menezes Direito: Portanto, não é uma novidade, está lastreado em precedente.
Neste caso concreto, a proposta que foi apresentada pelo Ministro Peluso,
segundo eu depreendi, não foi a de que se oficiasse ao Tribunal para a instalação
de qualquer tipo de procedimento correcional. A proposta que foi feita, e com
742
R.T.J. — 208
a qual eu estou de acordo, integralmente de acordo, foi para que se solicitasse
informações sobre o andamento de uma providência que V. Exa. determinou
no curso do processo, no despacho que V. Exa. proferiu, na decisão que V. Exa.
proferiu no tocante ao deferimento da medida cautelar.
Eu só queria manifestar o meu pensamento nesse sentido.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Esse precedente é anterior a 1988.
O Sr. Ministro Menezes Direito: Não importa. Existe um precedente com
base em Regimento do Supremo Tribunal Federal.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Artigo que não foi agasalhado pela Carta.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Pois é. É anterior a 1988.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Mas, Ministro, ninguém está querendo aplicar pena a ninguém aqui.
O Sr. Ministro Celso de Mello: Senhor Presidente, a jurisdição censória,
que incide sobre temas pertinentes à disciplina judiciária, tem fundamento
constitucional, como claramente resulta do que dispõe a própria Constituição da
República (CF, art. 103-B, § 4º, III).
O Sr. Ministro Cezar Peluso: É coisa tão óbvia que não quis perder tempo
discutindo isso.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Realmente, tem fundamento constitucional, porque não há um órgão acima do Supremo para rever as decisões que profira. Realmente tem!
O Sr. Ministro Carlos Britto: Não é esse o caso.
O Sr. Ministro Celso de Mello: O eminente Ministro CEZAR PELUSO
não propõe a instauração de procedimento disciplinar. Apenas solicita que a
Presidência do Tribunal – como agora também esclarece o eminente Ministro
MENEZES DIREITO – oficie ao órgão correcional competente, solicitandolhe informações sobre quais providências já teriam sido adotadas.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Exatamente. Só isso.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Daí ter-se como deliberação do Tribunal é
uma verdadeira pressão para que se chegue a resultados positivos nos processos
instaurados. Vamos aguardar, e o Presidente, corporificando o próprio Tribunal,
poderá solicitar informações.
O Sr. Ministro Celso de Mello: Eu tenho impressão que o Ministro
CEZAR PELUSO salientou que, se o Presidente tomasse essa iniciativa, ele retiraria essa questão.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, peço a V. Exa. que consigne: se
é deliberação do Tribunal, fico vencido, porque entendo que o Tribunal não deve
deliberar a respeito.
R.T.J. — 208
743
A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, também nesta parte
pedirei vênia ao Ministro Cezar Peluso, mas acompanho a divergência.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Vamos estar divididos, vamos estar, até
mesmo, enfraquecidos, quando V. Exa. – repito – , personificando o Tribunal,
pode muito bem se dirigir aos órgãos buscando notícias, fazendo-o como
Presidente, não como Colegiado. Até parece que o Colegiado está pressionando
Vossa Excelência, mediante deliberação, para fazê-lo. Isso é incabível.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, como vários
Colegas anteciparam opinião, manifestaram na divergência, quero manifestar
que estou de acordo com a proposta do eminente Ministro Cezar Peluso, porque
se trata apenas de um pedido de informação.
Estou absolutamente convencido de que os honrados integrantes do CNJ
não se sentirão pressionados e saberão apreciar esta questão com a maior
isenção.
Portanto, manifesto minha adesão à proposta do eminente Ministro Cezar
Peluso.
EXTRATO DA ATA
HC 95.009/SP — Relator: Ministro Eros Grau. Pacientes: Daniel Valente
Dantas e Verônica Valente Dantas. Impetrantes: Nélio Roberto Seidl Machado e
outros. Coator: Relator do HC 107.514 do Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Preliminarmente, o Tribunal conheceu do habeas corpus, vencido em parte o Ministro Marco Aurélio, que também superava a Súmula
691, mas averbava a prejudicialidade quanto à prisão preventiva. No mérito,
o Tribunal concedeu o habeas corpus, nos termos do voto do Relator, vencido
parcialmente o Ministro Marco Aurélio. Votou o Presidente, Ministro Gilmar
Mendes. Ausente, justificadamente, porque em representação do Tribunal
Superior Eleitoral no exterior, o Ministro Joaquim Barbosa. Falaram, pelos
pacientes, o Dr. Nélio Roberto Seidl Machado e o Dr. Alberto Pavie Ribeiro e,
pelo Ministério Público Federal, o Procurador-Geral da República, Dr. Antonio
Fernando Barros e Silva de Souza.
Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Ricardo
Lewandowski, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Procurador-Geral
da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 6 de novembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
744
R.T.J. — 208
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 199.147 — RJ
Relator: O Sr. Ministro Nelson Jobim
Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Marco Aurélio
Recorrente: Texaco Brasil S.A. – Produtos de Petróleo — Recorrido:
Estado do Rio de Janeiro
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços –
Isenção – Crédito – Anulação – Regra versus Exceção. Consoante
dispõe o § 2º do art. 155 da Carta da República, a isenção ou a
não-incidência acarretam, em regra, a anulação do crédito referente a operações anteriores, devendo a exceção estar prevista
expressamente em lei.
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços –
Isenção – Crédito – Substituição tributária – Inteligência do § 2º
do art. 155 da Constituição Federal. Em Direito, descabe confundir institutos, expressões e vocábulos. O preceito da alínea b do
inciso II do § 2º do art. 155 da Constituição Federal não é afastado ante a circunstância de o contribuinte atuar, em fase toda
própria, inconfundível com a responsabilidade tributária direta,
como substituto tributário, cumprindo perquirir a existência ou
não de recolhimento do imposto, na primeira condição, quando
da saída final do produto.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal em desprover o recurso, nos termos do voto do Ministro
Maurício Corrêa, por maioria, em sessão presidida pelo Ministro Gilmar
Mendes, Vice-Presidente, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas.
Brasília, 16 de abril de 2008 — Marco Aurélio, Relator para o acórdão.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Nelson Jobim:
1. Os fatos
Texaco Brasil S.A. – Produtos de petróleo é fabricante de óleos lubrifi­cantes.
(...) possui dois estabelecimentos situados, um no Rio de Janeiro [São
Cristóvão] e outro em Duque de Caxias (...) que, conjugados, se destinam (...)
a integralização das operações de industrialização de seu produto final (...)
(Fl. 3, item 5).
R.T.J. — 208
745
Cada estabelecimento tem inscrição fiscal própria e autônoma, tanto fe­
deral como estadual (CGC: Rio de Janeiro, 33.337.122/0004-70; Duque de Caxias,
33.337.122/0141-87; ICMS: Rio de Janeiro, 81.612.072; Duque de Caxias, 80.
203.314; fl. 17).
1.1. Operação industrial
Descrevo o procedimento industrial:
(1) a Recorrente adquire, para o estabelecimento de São Cristóvão,
alguns insumos (aditivos e óleos básicos) “(...) e os beneficia através de sistema de mistura” (fl. 3, item 5, a);
(2) “o estabelecimento de São Cristóvão, uma vez terminada a primeira parte da operação, remete o produto obtido, que é ainda insumo,
para Duque de Caxias, para fase complementar do processo industrial” (fl.
3, item 5, b);
(3) “o estabelecimento de Duque de Caxias adiciona novas matérias
primas, obtendo (...) o óleo lubrificante, destinado à comercialização” (fl.
4, item 5, c).
1.2. Procedimento fiscal da Recorrente
Descrevo o procedimento fiscal da Recorrente:
(1) os insumos adquiridos pelo estabelecimento de São Cristóvão são
tributados (fl. 4, item 6);
(2) as empresas vendedoras debitam-se do valor do ICMS;
(3) a Recorrente, pelo estabelecimento de São Cristóvão, “apropriase dos respectivos créditos” 1 (fl. 4, item 6);
(4) o estabelecimento de São Cristóvão remete o insumo beneficiado
para o estabelecimento de Duque de Caxias.
A remessa é efetuada na forma denominada “transferência”2 , sem reco­
lhimento de imposto3 (Notas fiscais de fls. 17 a 21).
1
Lança os créditos no Livro de Registro de Entradas, conforme lhe autoriza o Decreto estadual
8.050/85 (art. 33, Livro I). “(...) por virem com destaque do ICMS, a autora apropria-se dos respectivos créditos, lançando-os em seu livro de registro de entradas, conforme lhe autoriza o Decreto
estadual n.º 8.050/85 (art. 33, Livro I)” [grifo da autora] (fl. 4).
2
3
Nota fiscal de fl. 17, item “nat. operação”, lê-se: “5.21 Trans. Prod. Estabelec.”.
Nota Fiscal de fl. 17 e demais, lê-se: “Sem incidência do ICMS, conf. art. 6 da Resolução 1578,
de 01.03.89”.
Resolução 1578, 1º-3-89, do RJ ( fl. 50):
“(...)
Art. 6º O imposto correspondente às operações internas com óleo lubrificante básico será
recolhido pelo fabricante de lubrificantes acabado, localizado no Estado, englobadamente com
o devido pela saída tributada deste último produto, ficando dispensado o pagamento quando a
saída se destinar a outra unidade da Federação.
746
R.T.J. — 208
(5) “o estabelecimento de Duque de Caxias, adiciona novas matérias
primas, (...)” e produz o óleo lubrificante (fl. 4, item 5, c), que é vendido.
Pelas vendas para o mercado interestadual, não há débito do ICMS.
Essa operação não está sujeita à incidência do imposto (CF, art. 155, § 2º, X, b4).
Quando a venda é para o mercado interno do Estado do Rio de Janeiro, a
Recorrente debita-se do ICMS devido pela operação.
Nessa operação interna, com incidência do ICMS, a Recorrente pretendia
compensar os créditos decorrentes das aquisições de insumos feitas pelo estabelecimento de São Cristóvão (ver n. 3, retro).
1.3. A conduta do Estado
A fiscalização estadual glosou a conduta da Recorrente na manutenção
dos créditos em sua contabilidade (Auto de Infração de 4-6-92, fl. 11).
A Fiscalização entendeu que os créditos oriundos da aquisição de insumos
pelo estabelecimento de São Cristóvão deveriam ser estornados.
O Estado não admitiu que a Recorrente mantivesse esses créditos para
utilização nas operações subseqüentes.
Determinou o estorno.
Leio, no auto de infração:
(...) As saídas do produto resultante da industrialização5 foram efetuadas
sem débito do imposto com amparo do procedimento estabelecido no art. 6º da
Res. 1578 de 01/03/89. O contribuinte não efetuou o estorno do crédito, apropriado
por ocasião da entrada correspondente e a mercadoria empregada na industrialização. (...)
(Fl. 11).
2. A ação
2.1. A inicial
A Recorrente ajuizou ação anulatória de débito fiscal (29-9-92, fl. 2).
Sustentou violação ao “(...) princípio constitucional da não-cumulatividade (art. 155, § 2º) (...)” (fl. 4).
Parágrafo único. Cabe ao fabricante de lubrificante a responsabilidade pela retenção e recolhimento do imposto relativo às operações internas, subseqüentes, realizadas por revendedor.”
4
“Art. 155. (...)
§ 2º (...)
X – não incidirá:
(...)
b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica.”
5
Refere-se à remessa do insumo produzido pelo estabelecimento de São Cristóvão para o estabelecimento da cidade de Duque de Caxias.
R.T.J. — 208
747
2.2. A contestação do Estado
O Estado alegou que o “procedimento adotado pela [Recorrente] lhe gerou um indevido crédito, pois (...) creditou-se de todo o imposto incidente sobre
a entrada da mercadoria, cuja saída não está sujeita ao ICMS” (fl. 26, item 1.2).
Fundamentou-se na CF (art. 155, § 2º, II, a6).
2.3. A sentença e o acórdão
A sentença julgou improcedente a ação.
O Tribunal a manteve.
Leio, no acórdão:
(...) o procedimento adotado pela (...) [Recorrente] lhe gerou um indevido
crédito, pois creditou-se de todo o imposto incidente sobre a entrada de mercadoria, cuja saída não está sujeita ao ICMS (...)
(...)
Inexistindo qualquer lesão para a Apelante, ou violação ao princípio da não
cumulatividade, quando é impedida de creditar-se do imposto incidente sobre a mercadoria, posteriormente dispensada do pagamento do imposto, e que por isso não
gera qualquer débito, qualquer ônus, a ser compensado com o crédito de entrada,
tudo com fundamento no art. 155, § 2º, inciso II, letra b da Constituição Federal (...).
(Fl. 124.)
2.4. Embargos declaratórios
A Recorrente embargou porque a ementa do acórdão não mencionou o inciso I, § 2º do art. 155 (fl. 127).
Pretendeu assegurar o prequestionamento da matéria, cuja alegação já encontrava na inicial (fl. 4).
Os embargos foram rejeitados.
Disse o acórdão que a violação ao referido dispositivo foi apreciada pela
sentença (fl. 80, § 2º) e ele – acórdão – adotou-a “como razões de decidir” (fl. 130).
3. Recurso extraordinário
A Recorrente fundamenta o extraordinário nas alíneas a e c do inciso III
do art. 102 da CF.
Sustenta:
(a) contrariedade ao art. 155, § 2º, I (princípio constitucional da não-cumulatividade do ICMS, fls. 135/6); e
(b) julgamento de validade da Lei estadual 1.423/89 em face da CF (fl. 136).
6
“Art. 155. (...)
(...)
§ 2º (...)
(...)
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações
seguintes.
(...)”
748
R.T.J. — 208
4. Contra-razões
O Estado recorrido alegou a inadmissibilidade do recurso extraordinário.
Sustentou que “a Constituição de 1988 não disciplinou o sistema de compensação do imposto, [pelo que] conclui-se que o direito ao crédito (...) decorreria de norma infraconstitucional” (fls. 144/145).
Referiu-se ao Convênio Confaz 66/88 e à Lei estadual 1.423/89.
O mesmo em relação ao inciso II do § 2º do art. 155 (fl. 145).
Afirma que a violação é indireta.
Sustentou, ainda, que a Recorrente, com a letra c, quer “ver discutida novamente a questão de mérito” (fl. 145).
No mais, quer a decisão seja mantida pelos seus próprios fundamentos.
Sustenta que a operação São Cristóvão–Duque de Caxias é uma operação
isenta, pelo que os créditos são anulados.
É inaplicável o sistema de compensação do art. 155, § 2º, I, da CF.
É pelo não-conhecimento do recurso.
5. Despachos
O recurso extraordinário não foi admitido na origem.
Leio:
(...)
Com relação (...) à alínea a, a decisão (...) deu correta interpretação (...) aos
dispositivos constitucionais (fl. 154).
(...)
(...) não há que se falar em invalidade da lei estadual (...), pois esta foi editada
em consonância com as normas constitucionais.
(Fl. 154.)
A Recorrente agravou.
O recurso foi admitido (AI 175.657-8, em apenso, fl. 134).
6. Procuradoria-Geral da República
A Procuradoria-Geral da República é pela inadmissibilidade (fls. 183/190).
Sustenta não ter havido ofensa direta à Constituição.
Afirma que a discussão da ofensa passa pelo “exame de normas infraconstitucionais (Convênio 66/88 e Lei Estadual 1.423/89 (...) envolvendo (...) interpretação de norma legal” (fl. 187).
Alega, ainda, que “a questão está a exigir reexame da prova” (fl. 188).
7. A controvérsia
Esta é a controvérsia:
(a) A sentença e o acórdão concluíram, com o Estado recorrido:
R.T.J. — 208
749
(a1) que, havia isenção nas operações entre os estabelecimentos de São
Cristóvão e Duque de Caxias;
(b1) e que, por isso, impunha-se o cancelamento dos créditos apropriados
quando das aquisições feitas pelo estabelecimento de São Cristóvão.
(b) a Recorrente sustenta:
(b1) que, não havia isenção, pois o imposto deveria ser recolhido quando da
saída do lubrificante acabado (vendas feitas por Duque de Caxias);
(b2) que, havia, isto sim, substituição tributária nas operações entre os estabelecimentos de São Cristóvão e Duque de Caxias.
(b2) e, conclui pelo direito de compensação que lhe asseguraria a Constituição (art. 155, § 2º, I).
É o relatório.
VOTO
(Antecipação)
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Senhor Presidente, antes de proferir o meu voto, gostaria de registrar que, ao examinar estes autos, tive alguma
dificuldade quanto ao relatório, ou seja, no que diz respeito à fixação nítida do
caso e também da controvérsia.
Em face dessa circunstância, tomei uma medida, digamos, não-regimental
e, talvez, heterodoxa. Convidei os Srs. Advogados do Recorrente e do Recorrido
para uma discussão em meu gabinete. Compareceram os advogados: o Sr.
Procurador do Estado do Rio de Janeiro, juntamente com seu Colega, e o Dr.
João Geraldo Piquet Carneiro, também com seu Colega. Conversamos durante
uma hora e quinze minutos sobre a questão jurídica e sobre os autos do processo.
Senhor Presidente, tanto o Sr. Procurador do Estado do Rio de Janeiro como
os Advogados do Recorrente foram muitos elegantes e compreensivos nesse debate, pois este relatório foi produzido a partir exatamente de observações feitas
pelos dois lados, principalmente pelo Sr. Procurador do Estado do Rio de Janeiro.
Então, eu gostaria de, publicamente, registrar a competência de ambos
os Advogados e também a compreensão que tiveram desta medida que resolvi
tomar, tendo em vista a circunstância de, em alguns casos, ter havido algumas
divergências entre a versão de fato do Relator e o que as partes sustentam. E eu
parto do pressuposto de que quem conhece mais o processo são, inclusive, as
partes, já que recebemos isto de terceira mão.
Reitero e ratifico a correção e elegância de ambos os Procuradores.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator):
1. A admissibilidade do recurso
Sintetizo.
750
R.T.J. — 208
O recurso extraordinário tem como fundamento as alíneas a e c (CF,
art. 102, III).
O recurso extraordinário foi inadmitido no Tribunal local (fl. 154).
O recurso extraordinário subiu, para melhor exame, em decorrência de
agravo de instrumento (despacho de fl. 134 dos autos em apenso, Rezek).
A Procuradoria-Geral da República é pela não-admissibilidade do recurso.
Sustenta não ter havido ofensa direta à Constituição:
a ofensa passa pelo “(...) exame de normas infraconstitucionais (Convênio
66/88 e Lei Estadual n.º 1.423/89 (...) envolvendo (...) interpretação de norma
legal (...)
(Fl. 187.)
Alega, ainda, que “a questão está a exigir reexame da prova” (fl. 188).
Examino.
Como observa a Recorrente, o despacho que inadmitiu o recurso extraordinário o fez por razões de mérito do recurso e não por razões processuais.
O despacho afirma que “a decisão recorrida não vulnerou preceitos constitucionais apontados, mas lhe deu correta interpretação” (fl. 154).
Isso é fundamento para o não-conhecimento do recurso extraordinário.
Não é fundamento para não-admissão do recurso extraordinário.
O recurso extraordinário questiona a exigência de “estorno de crédito cujo
resultado colocaria em questão o princípio da não-cumulatividade, (...) [em] violação ao (...) art. 155, § 2º, I” (fl. 5, do agravo de instrumento).
O recurso extraordinário não sustenta violação por parte da Resolução
1.578, que criou a substituição tributária para a comercialização de lubrificantes.
Não sustenta violação por parte do Convênio Confaz 66/88, que considerou “contribuinte autônomo” cada estabelecimento de uma mesma empresa.
O objeto do recurso extraordinário é um só:
a decisão recorrida contrariou o art. 155, § 2º, I, da CF, ao manter a “(...)
anulação do crédito do ICMS cobrado nas operações anteriores”, como aplicação
do art. 155, § 2º, II, b7 da CF e do art. 37, I8 , da Lei estadual 1.423/89, que reproduz
a proposição constitucional.
7
CF:
“Art. 155. (...)
(...)
§ 2º (...)
(...)
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
(...)
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;”
8
Lei estadual 1.423, 27-01-89:
“Art. 37. Salvo determinação em contrário da legislação, ocorre a anulação do crédito, quando:
R.T.J. — 208
751
Por ser uma mera reprodução, o debate não diz com a lei estadual, mas
com o texto constitucional.
Não tem razão o Estado quando sustenta que “a Constituição de 1988 não
disciplinou o sistema de compensação do imposto, [pelo que] conclui-se que o
direito ao crédito (...) decorreria de norma infraconstitucional” (fls. 144/145).
O inciso I, do § 2º do art. 155 é auto-aplicável.
Assegura, desde logo, a compensação do “que for devido em cada operação (...) com o montante cobrado nas anteriores”.
O direito ao abatimento independe de norma infraconstitucional.
Nasce do próprio texto.
Leio Geraldo Ataliba e Cléber Giardino:
O “abatimento” é, nitidamente, categoria jurídica de hierarquia constitucional: porque criada pela Constituição. Mais que isso: é direito constitucional reservado ao contribuinte do ICM; direito público subjetivo de nível constitucional,
oponível ao Estado pelo contribuinte do imposto estadual. O próprio texto constitucional que outorgou ao Estado o poder de exigir o ICM, deu ao contribuinte o
direito de abatimento. (...).9
Eis o que temos de decidir:
¿é correta, ou não, no caso, a aplicação da regra constitucional (art. 155, §
2º, II, b) que restringe o direito constitucional de abatimento do “(...) montante
cobrado nas [operações] anteriores (...)” (art. 155, § 2º, I)?
Ou, de outra forma:
¿O acórdão contrariou, ou não, o princípio da não-cumulatividade do
art. 155, § 2º, I?
O tema é a extensão da não-cumulatividade.
A questão não é de fato.
Os fatos são incontroversos.
A questão é sobre a aplicação, ou não, aos fatos aceitos e não negados por
ninguém, de regras constitucionais.
A matéria foi prequestionada.
Houve, inclusive, embargos declaratórios para explicitar que o fundamento do acórdão era, além da alínea b do inciso II, também o inciso I do § 2º
do art. 155, da CF (fls. 126/128).
Admito o recurso extraordinário pela alínea a do permissivo.
I – a operação ou prestação subseqüente for beneficiada por isenção ou não-incidência;
(...)”
9
ICM – Abatimento constitucional. Princípio da não-cumulatividade. In: Revista de Direito
Tributário, n. 29-30, jul./dez. de 1984. p. 116.
752
R.T.J. — 208
2. Mérito
2.1. Síntese
Lembro o caso.
A empresa contribuinte tem “dois estabelecimentos situados, um (...) [na
cidade do] Rio de Janeiro [São Cristóvão] e outro em Duque de Caxias”.
O estabelecimento de São Cristóvão adquire insumos de terceiros, que
recolhem ICMS.
A Recorrente se credita do valor.
Beneficia o produto em São Cristóvão.
Remete, por transferência, sem tributação, para sua filial de Duque de
Caxias.
As mercadorias são acompanhadas com nota fiscal onde se lê:
Sem incidência do ICMS, Conf. Art. 6 da Resolução 1578, de 02.03.89
(Fls. 17 a 211, amostragem).
A filial produz o óleo lubrificante.
Vende para o mercado interno do Estado do Rio de Janeiro.
Há incidência de ICMS.
A Recorrente pretende aproveitar, nessas operações de venda ou em outras, os créditos oriundos das compras de insumos feitas pelo estabelecimento
de São Cristóvão.
2.2. A questão
Esta é a questão:
¿é constitucional que a Recorrente seja obrigada a cancelar os créditos
oriundos das operações de compra de insumos pelo estabelecimento de São
Cristóvão, face a operação deste com o estabelecimento de Duque de Caxias?
Dito de outra forma:
¿é constitucional inviabilizar, pelo estorno efetivado, que a Recorrente
abata, do valor do ICMS devido pela venda de produto acabado, os créditos
decorrentes das operações da filial de São Cristóvão quando da aquisição de
insumos?
A solução está na caracterização da operação nominada de “transferência”.
Por essa fórmula, o estabelecimento de São Cristóvão remete produto para
o estabelecimento de Duque de Caxias, sem tributação.
2.3. A sentença
A sentença identifica a operação “transferência”, como uma hipótese de
substituição tributária.
R.T.J. — 208
753
Leio:
(...) diante da legislação estadual é atribuído ao produtor do óleo lubrifi­
cante acabado a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS referente às ope­
rações anteriores e subseqüentes com tal mercadoria, ficando desobrigados os
revendedores dos lubrificantes básicos, por ocasião da saída da mercadoria.
(Fl. 79.)
Prossegue a sentença:
(...) no regime de substituição tributária não é o contribuinte substituído,
mas o substituto responsável diretamente perante o Fisco a satisfazer o crédito
tributário.
E com relação ao crédito para compensação quando não há incidência do
imposto (...) “o mesmo deverá ser estornado” (...).
(Fls. 79/80.)
Faço, desde logo, uma observação.
Há uma contradição na sentença.
Primeiro ela afirma que “é atribuído ao produtor do óleo lubrificante acabado a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS referente às operações
anteriores” (fl. 79).
Nesta parte a sentença admite duas coisas:
(a) a incidência do tributo nas operações anteriores;
e
(b) a responsabilidade do produtor do óleo lubrificante acabado pelo recolhimento do tributo, “ficando desobrigado os revendedores dos lubrificantes
básicos”.
Ou seja, afirma a ocorrência de substituição tributária.
Na parte subseqüente, a sentença, sobre a compensação do crédito, afirma
que, “quando não há incidência do imposto (...) ‘o mesmo deverá ser estornado’ ”
(fls. 79/80).
A sentença afirma, para a operação São Cristóvão – Duque de Caxias, a
incidência do tributo e identifica, na hipótese, substituição tributária.
Após, a sentença afirma a não-incidência do tributo e não admite a compensação do crédito!
Há contradição.
É inválido o raciocínio.
2.4. O acórdão
Vejamos o acórdão.
754
R.T.J. — 208
Cita parecer do Ministério Público (fl. 74) em que a operação “em transferência” é vista, primeiro, como uma hipótese de exclusão de incidência e, após,
como substituição tributária!
Leio:
A Resolução (...) exclui da incidência do ICMS as operações internas com
óleo lubrificante básico, determinando o recolhimento do imposto pelo fabricante
do produto acabado e, tão só na sua saída (...) Vê-se, pois, que os revendedores desses lubrificantes não recolhem ICMs. Há mesmo uma substituição tributária (...).
(Fl. 123.)
E conclui o voto condutor:
(...) [a Apelante] é impedida de creditar-se do imposto incidente sobre a mercadoria, posteriormente dispensada do pagamento do imposto, e que por isso não
gera crédito da entrada, tudo com fundamento no art. 155, § 2º, inciso II, letra b (...).
(Fl. 124.)
Começa com exclusão de incidência e, após, afirma estar perante um caso
de substituição tributária!
De duas, uma.
Ou não há incidência de tributo e não se pode falar em substituição
tributária.
Ou há incidência de tributo e se pode falar em substituição tributária.
O que não pode haver é não-incidência e substituição tributária.
A não-incidência excluiu a substituição.
Não pode haver substituição tributária quando não há tributo a recolher.
O acórdão cai na mesma contradição da sentença.
Primeiro afirma que o vendedor do produto acabado substitui o vendedor
do produto básico no imposto devido por este.
Após, afirma que na operação entre os dois estabelecimentos (São Cris­
tóvão e Duque de Caxias) há “isenção ou não-incidência”.
E, por isso, concluiu o acórdão com a CF.
Art. 155. (...)
§ 2º (...)
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da
legislação;
(...)
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.
3. Análise
3.1. Fundamento do acórdão
R.T.J. — 208
755
Analiso.
A CF, até que fosse promulgada a lei complementar instituidora do ICMS,
autorizou os Estados a celebrarem convênio fixador das normas necessárias
para regular a matéria (ADCT, art. 34, § 8º10)
Os Estados, em 14 de dezembro de 1988, celebraram o Convênio ICM
66/88 (fls. 51/54).
O Convênio institui o caso em exame como fato gerador do imposto.
Leio:
Art. 2º Ocorre o fato gerador do imposto:
(...)
VI – na saída de mercadoria do estabelecimento extrator, produtor ou gerador, para qualquer outro estabelecimento, de idêntica titularidade ou não,
localizado na mesma área ou em área contínua ou diversa, destinada a consumo
ou a utilização em processo de tratamento ou de industrialização, ainda que
as atividades sejam integradas;
(Fl. 51.)
O Convênio previu, como base de cálculo para o caso, o valor da operação
(art. 4º, III11, fl. 52)
Além do mais, o Convênio considerou “autônomo cada estabelecimento
produtor (...) do mesmo contribuinte, ainda que as atividades sejam integradas e
desenvolvidas no mesmo local” (art. 2212 , fl. 53).
Essa é a razão pela qual os estabelecimentos de São Cristóvão e de Duque
de Caxias têm inscrição estadual própria e autônoma (ver lançamentos nas notas
fiscais de fls. 17 a 21).
Assim, as operações praticadas entre os estabelecimentos de São Cristóvão
e Duque de Caxias foram definidas como tributáveis.
10
CF
“Art. 34. (...)
§ 8º Se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a
lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o art. 155, I, b” (ver observação)
Obs.: A EC 3/93 alterou o dispositivo a que a regra se remete para art. 155, II, sem ter feito a
adaptação no art. 34.
11
12
Convênio ICM 66/88:
“Art. 4º A base de cálculo do imposto é:
(...)
III – na saída de mercadoria prevista nos incisos V e VI do art. 2º, o valor da operação;”
Convênio ICM 66/88:
“Art. 22 Considera-se autônomo cada estabelecimento produtor, extrator, gerador, inclusive de
energia, industrial, comercial e importador ou prestador de serviços de transportes e de comunicação,
do mesmo contribuinte, ainda que as atividades sejam integradas e desenvolvidas no mesmo local.
Parágrafo único. Equipara-se a estabelecimento autônomo o veículo utilizado no comércio ambulante e na captura de pescado.”
756
R.T.J. — 208
Em face disso, o Estado do Rio de Janeiro resolveu (CTN, art. 12813) atribuir ao “fabricante de lubrificante acabado” (estabelecimento de Duque de
Caxias) a responsabilidade pelo imposto devido na operação “com óleo lubrificante básico”, fabricado pelo estabelecimento de São Cristóvão (Resolução
1.578/89, art. 6º, fl. 50).
A remessa do insumo de São Cristóvão para Duque de Caxias era acompanhada por notas fiscais “em transferência” (fls. 17 a 21).
Como se tinha como tributável essa operação, ela se constituiu em uma
hipótese de substituição tributária.
Leio a Resolução 1.578/89, que tratou sobre o “ICMS relativo às operações
com petróleo”:
Art. 6º O imposto correspondente às operações internas com óleo lubrificante básico será recolhido pelo fabricante de lubrificantes acabados (...), englobadamente com o devido pela saída tributada deste último produto (...).
(Resolução 1.578/89, art. 6º.)
Pergunto:
¿essa regra dispõe sobre isenção ou não-incidência do tributo?
ou
¿dispõe ela sobre a postergação da exigência do tributo para o momento da saída do produto acabado?
Faço uma paráfrase do texto, para o caso:
O imposto correspondente às operações (...) [entre os estabelecimentos de
São Cristóvão e Duque de Caxias14] será recolhido pelo [estabelecimento de Duque
de Caxias15], englobadamente com o devido pela saída [do produto acabado] (...).
Há, na previsão legal, substituição tributária.
Aliás, a própria resolução fala, em diversos momentos, em substituição
tributária (arts. 3º, parágrafo único; 4º, parágrafo único; 7º e 8º; fl. 50).
Esta circunstância está amplamente reconhecida na própria contestação
do Estado (fls. 27 a 30).
É a substituição “para trás”.
O imposto passa a ser exigível de contribuinte que participa da cadeia produtiva em momento posterior à ocorrência do fato gerador.
13
CTN, Lei. 5.172, de 25-10-66:
“Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste Capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a
responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva
obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo
do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.”
14
= com óleo lubrificante básico.
15
= fabricante de lubrificantes acabado.
R.T.J. — 208
757
Este é o sentido da regra.
É a técnica do diferimento.
Leio Moreira Alves:
O diferimento nada mais é do que o adiamento da cobrança do imposto já devido.
(voto no RE 11.427/SP, 26-8-98, RTJ 130/351.)
Observo que, no caso, não está a Recorrente pretendendo manter crédito
relativo a operação em que houve o diferimento, pois não há crédito sem débito
do tributo.
As decisões mencionadas pelo Recorrido dizem respeito a essa hipótese,
que não é o caso dos autos.
Volto ao tema do diferimento.
No caso, o valor devido por uma operação com insumos é recolhido, “englobadamente”, com o imposto exigível na operação de saída do produto acabado, pelo outro contribuinte (subseqüente).
Não há nenhuma isenção, nem não-incidência.
Há postergação da exigibilidade do tributo, com substituição.
Não se pode invocar, como fez o acórdão, a regra constitucional (art. 155,
§ 2º, II, b), para considerar legítima a determinação de estorno do crédito.
Todos os créditos decorrentes de insumos adquiridos durante o processo
de produção geram direito a abatimento do valor do imposto devido pela venda
final.
Caso contrário, lesar-se-ia o direito constitucional ao abatimento e produzir-se-ia cumulação proibida.
Simulo:
(1) O estabelecimento de São Cristóvão adquire insumos tributados
por R$ 100,00.
A alíquota é de 18%.
Os vendedores debitam-se em R$ 18,00 e a Empresa credita-se no
valor de R$ 18,00;
(2) A empresa produz o lubrificante básico, que passa a valer, digamos, R$ 200,00;
(3) Transfere, por R$ 200,00, com diferimento, para Duque de Caxias.
Lá é produzido o óleo lubrificante acabado;
(4) O óleo é vendido por R$ 400,00.
Houve uma agregação de valor de R$ 200,00;
Aplica-se a mesma alíquota (18%).
O valor total do imposto é de R$ 72,00 (= 400,00 x 18%);
758
R.T.J. — 208
(5) Não admitido o abatimento dos R$ 18,00, creditados na 1ª fase,
teremos a incidência cumulada sobre a mesma base inicial de R$ 100,00
(= valor dos primeiros insumos adquiridos por São Cristóvão e tributado).
Sem o abatimento, o valor final e total do imposto seria de R$ 90,00 (18,00
da 1ª fase + 72,00 da venda final), ou seja, de 22,5% de R$ 400,00.
(6) Admitido o abatimento, o imposto da última fase será R$ 54,00
(= 72,00 – 18,00), que, somado ao da 1ª fase, chega a R$ 72,00, que é 18%
de R$ 400,00.
Esta análise demonstra a erronia do acórdão.
Na substituição tributária, o substituto assume a posição integral do substituído, pois recolhe imposto devido pela operação com este mantida.
Vou a Geraldo Ataliba:
(...) o regime jurídico aplicável à tributação será o regime do substituído e
não o regime do substituto. O substituto está pagando tributo alheio, vai pagar o
que deve o outro sujeito, nas condições pessoais dele: o substituído.
É imperativo – para que de substituição se cuide – que o regime jurídico
legal e constitucional aplicável seja o da outra pessoa.
(RDT 23-23/138.)
Se o recolhimento ou débito do imposto fosse pelo estabelecimento de São
Cristóvão, ele abateria os créditos relativos aos insumos (R$ 18,00) e respondia
pelo remanescente correspondente a R$ 18,00 (R$ 200,00 x 18% = R$ 36,00 –
R$ 18,00 = R$ 18,00).
O estabelecimento de Duque de Caxias se creditaria em R$ 18,00 e abateria esse valor do tributo devido na venda final (R$ 400,00 x 18% = 72,00 – 18,00
= R$ 54,00).
Percebe-se, claramente, a cumulação proibida se não admitido o abatimento do valor recolhido na primeira operação, no qual o substituído se creditou
(R$ 18,00 + R$ 72,00 = R$ 90,00).
Assim, admitindo que a operação entre São Cristóvão e Duque de Caxias
seja tributável, pela forma de substituição com diferimento, a decisão deve ser
reformada.
O substituto deve abater os créditos do substituído.
O substituto tem o direito de abater os créditos que o substituído abateria
se não houvesse o diferimento.
Repito: o substituto se encontra na mesma posição do substituído.
Deve, por esse fundamento, ser conhecido o recurso, com a reforma da
decisão.
3.2. Outro fundamento
Mas, vou a outro fundamento.
R.T.J. — 208
759
Volto a examinar a operação entre os estabelecimentos de São Cristóvão
e Duque de Caxias.
Pergunto:
¿ela se constitui em uma operação de circulação de mercadorias para
efeito de ser fato gerador do ICMS?
O Tribunal tem resposta a essa questão.
Leio, na Rp 1.355-3/PB (Oscar Corrêa, Pleno, 12-3-87):
(...) Inconstitucionalidade do art. 9º do Decreto 11.222, de 5-2-86, do Estado
da Paraíba.
Ao declarar estabelecimento autônomo para autorizar a incidência do ICM
estabelecimentos – engenhos, sítios e demais divisões fundiárias – da mesma
usina – unidade econômica – contrariou o art. 23, II, da CF, pois taxa o simples
deslocamento físico de insumos destinados à composição do produto final da
mesma empresa.
Disse Oscar Corrêa:
(...) se são estabelecimentos que integram na mesma unidade econômica,
como parte indistinta do mesmo processo de produção, e não extrapolam dessa
atividade integrada, não há considerá-los estabelecimentos autônomos para fim de
geração de atividade tributável pelo ICM.
(...)
Se podem e devem ser considerados estabelecimentos autônomos ao realizar operações com outras pessoas jurídicas (empresas, unidade econômicas diversas), não o podem ser nas transferências para outro estabelecimento da mesma
unidade econômica (juridicamente, empresa), da qual é apenas parte integrante –
no fenômeno da integração econômica – (...)
(...)
(...) não é aceitável que se distingam estabelecimentos do mesmo contribuinte, ainda que representando etapa do processo produtivo – e, por isso, em
circulação apenas física, ou para integração econômica – como se pudessem
agregar valor que o outro estabelecimento do mesmo contribuinte devesse considerar. O que há de aguardar é a operação de circulação de mercadorias – isto é,
quando, após percorrer o iter produtivo na unidade produtiva (a empresa), ainda
que integrando elementos (materiais, produtos semi-acabados), e de mais de um
estabelecimento – só aí então incida o imposto, porque só aí se verifica a operação
de mercadoria tributável.
Enquanto o produto se completa, se integra, com a participação de estabelecimentos de uma mesma unidade econômica (em geral, da própria empresa
jurídica) não há falar em operação de circulação de mercadorias.
A menos que o estabelecimento não remeta a outro da mesma unidade o seu
produto, mas o transfira a outra empresa – de outro proprietário – quando, então,
se terá verificado igualmente a operação sobre a qual incide a exação – e isto porque agiu como autônomo.
760
R.T.J. — 208
No mesmo sentido: RE 74.263 (Xavier Albuquerque, Segunda Turma, 2111-72); RE 75.026 (Djaci Falcão, Primeira Turma, 5-10-73) e RE 75.026-EDv
(Xavier de Albuquerquer, Pleno, 11-12-74); RE 93.523 e RE 94.120 (Cordeiro
Guerra, Segunda Turma, 24-8-82 e 14-9-82); Rp 1.181 (Rafael Mayer, Pleno,
26-9-84).
É exatamente o que se passa no caso.
A empresa, no estabelecimento de São Cristóvão, adquiria insumos.
Com esses insumos, produzia o lubrificante básico.
Remetia-o para o estabelecimento de Duque de Caxias.
Lá completava o ciclo.
Produzia o lubrificante acabado e o vendia no mercado.
A operação entre São Cristóvão e Duque de Caxias não se constituía na
circulação de mercadorias prevista como fato gerador do ICMS.
Era, como definiu a jurisprudência, uma mera circulação física.
Leio Baleeiro (RE 75.026-EDv):
Isso é o que, em economia, se chama “integração”: o produto final da
Empresa é processado em diferentes etapas por dois ou mais estabelecimentos
dela. A Empresa é uma só, embora tenha vários estabelecimentos ou unidades de
produção e comércio. O Banco do Brasil é um só, mas tem vários estabelecimentos (...)
Repito: – o ICM (...) pressupõe negócio jurídico, que transfira o domínio da
coisa duma para outra pessoa. Os estabelecimentos da mesma Empresa são uma
só pessoa.
Se admitirmos inteligência contrária, o ICM recai sobre o comodato, sobre
a saída que o ladrão deu à mercadoria roubada, ou aquela que resultou de ter sido
jogada no caminhão do lixo, (...) o produto avariado. (...).
Digo eu.
O que se passou, no caso, não é fato gerador do tributo.
A Recorrente tem direito a manter os créditos oriundos das operações
realizadas pelo estabelecimento de São Cristóvão com terceiros, na aquisição
de insumos.
A Recorrente tem o direito de compensar esses créditos nas operações que
realizar, como, por exemplo, na venda do lubrificante acabado no mercado do
Estado do Rio de Janeiro.
Poderá abater os créditos decorrentes das compras de insumos, que a ela
própria empresa fez, quando da primeira fase do ciclo produtivo (estabelecimento de São Cristóvão).
A decisão recorrida fundamentou-se em normas inconstitucionais ou não
mais vigentes:
R.T.J. — 208
761
o “(...) art. 22, do Convênio 66/88 (...)” (fl. 123, in fine, reproduzido pelo
art. 19 da Lei estadual 1.423, de 27 de janeiro de 198916).
Entendeu que a operação era tributável.
A seguir, entendeu que a Resolução 1.578 (art. 6º) havia procedido uma
exclusão de incidência.
Por isso, aplicou o art. 155, § 2º, II, b.
A Constituição assegura o direito de abatimento.
É o art. 155, § 2º, I.
O imposto é “não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada
operação (...) com o montante cobrado nas anteriores”.
A decisão recorrida contrariou esse dispositivo.
Os dois fundamentos levam à mesma conclusão.
Vejamos.
(a) Acolhido o entendimento do acórdão e do Estado recorrido que a operação entre os estabelecimentos (São Cristóvão – Duque de Caxias) seja tributável, com diferimento e substituição tributária, temos:
(a1) não houve nenhuma isenção ou não-incidência, mas, sim, substituição tributária, com diferimento da cobrança do imposto;
(a2) logo, há direito a manutenção dos créditos das operações realizadas pelo estabelecimento substituído.
(b) Acolhido o entendimento de que a operação se constitui em mera circulação física de mercadoria, realizada por uma mesma empresa, teremos:
(b1) não houve nenhuma isenção ou não-incidência. Não ocorreu,
isto sim, o fato gerador do imposto;
(b2) logo, há direito à manutenção dos créditos decorrentes de operações anteriores, pois a empresa poderá compensá-los nas operações
subseqüentes.
16
Convênio ICM 66/88:
“Art. 22. Considera-se autônomo cada estabelecimento produtor, extrator, gerador, inclusive de
energia, industrial, comercial e importador ou prestador de serviços de transportes e de comunicação, do mesmo contribuinte, ainda que as atividades sejam integradas e desenvolvidas no mesmo
local.
Parágrafo único. Equipara-se a estabelecimento autônomo o veículo utilizado no comércio ambulante e na captura de pescado.”
Lei estadual 1.423, 27-01-89:
“Art. 19. Considera-se contribuinte autônomo cada estabelecimento produtor, extrator, gerador,
inclusive de energia industrial, comercial, importador ou prestador de serviço de transporte e de
comunicação do mesmo contribuinte, ainda que as atividades sejam integradas e desenvolvidas
no mesmo local.
Parágrafo único. Equipara-se a estabelecimento autônomo o veículo utilizado no comércio ambulante e na captura de pescado.”
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R.T.J. — 208
Conheço do recurso.
Acolho o pedido da inicial.
Anulo o auto de infração e o crédito fiscal, objetos da ação (fls. 12 e 13).
Torno insubsistente a multa aplicada.
Inverto os ônus da sucumbência.
VOTO
(Confirmação)
O Sr. Alde Santos Júnior (Advogado): O Estado do Rio de Janeiro reitera
o fato de que não está provado, nestes autos, que a Recorrente comercializa seu
produto final no mercado interno.
O eminente Ministro Marco Aurélio, atendendo a um esclarecimento que
V. Exa. fez ao eminente Relator, quando sustenta que há relação reflexa, é porque
toda a questão depende da interpretação dessa resolução. É basicamente isso.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Em relação ao esclarecimento sobre matéria de fato, não é realmente o que está em jogo. O objeto da discussão é
o cancelamento do crédito. O fundamento do cancelamento nas decisões recorridas é que havia uma isenção. Demonstrei, claramente, que não há isenção, há
uma mera substituição tributária; e fui mais longe, no que diz respeito aos fundamentos, na análise da jurisprudência do Tribunal, que assim tem entendido.
Trata-se de ação anulatória movida pela Recorrente, Texaco S.A., contra
o Estado, no sentido de anular auto de infração que cancelou os créditos. O
raciocínio do Estado é no sentido de que a Texaco, via São Cristóvão, comprava insumos no mercado, óleos da Petrobrás etc., cuja operação era tributada. A Petrobras, vendedora do insumo, debitava-se do tributo e creditava
no estabelecimento de São Cristóvão. Produzia lá o lubrificante básico, com
a mistura desses produtos de insumos, e os transferia para Duque de Caxias.
Pela legislação vigente, essa operação seria tributável, mas o Estado do Rio de
Janeiro determinou que o recolhimento do tributo dessa operação seria feito
pela substituta, a Duque de Caxias, englobadamente, quando o estabelecimento
final vendesse os produtos no mercado. É o que está na resolução. O que fez o
Estado? Reconheceu a existência da substituição nessa operação – a sentença e
o acórdão –, porque, nessa operação final, seria recolhido o tributo devido na
operação anterior pelo substituto tributário: era o diferimento. Quem recolheria
o tributo seria o estabelecimento de Duque de Caxias, o qual operaria depois da
ocorrência do fato gerador. Não obstante essa situação, leu-se que na operação
entre São Cristóvão e Duque de Caxias havia uma isenção. E, porque havia uma
isenção, determinou-se o estorno do crédito. Por quê? Porque, na Constituição,
quando há não-incidência ou isenção numa operação, estorna-se o crédito. É o que
acontece, por exemplo, na venda interestadual de produtos: quando se vende lubrificante, há isenção porque o tributo é devido adiante, e, nessa hipótese, cancela-se
os créditos anteriores, ou seja, o Estado de destino não dá crédito para o Estado
R.T.J. — 208
763
de origem. Mas, no caso, demonstrei, nitidamente – reconhecido pela própria
sentença e também pelo acórdão nas duas premissas – que há substituição tributária. Ora, se há substituição tributária, há imposto, uma mera postergação,
um mero diferimento. Logo, não há que se aplicar a letra b, que manda estornar,
cancelar, ou não se aproveitarem os créditos, porque não houve a incidência do
imposto, o que não é o caso. Há uma mera substituição com o diferimento, ou
seja, o débito passou a ser do estabelecimento de São Cristóvão.
Fiz aquela análise em relação à questão dos estabelecimentos para mostrar
que, mesmo se a discussão tivesse sido em torno da orientação tradicional do
Tribunal, na linha de Baleeiro, seria necessário haver uma operação mercantil
entre dois estabelecimentos para se ter um fato gerador do ICMS. Essa tese não
é caso de isenção, de não-incidência, mas de não-configuração de fato gerador
do ICMS, porque é uma operação interna da empresa com a mera circulação
física de mercadorias, linguagem que vem bem antes do Ministro Oscar Corrêa.
Por isso, Sr. Ministro Maurício Corrêa, conheço do recurso para lhe dar
provimento.
EXTRATO DA ATA
RE 199.147/RJ — Relator: Ministro Nelson Jobim. Recorrente: Texaco
Brasil S.A. – Produtos de Petróleo (Advogados: João Geraldo Piquet Carneiro
e outros e Luiz Felippe Jordão e outros). Recorrido: Estado do Rio de Janeiro
(Advogada: Maria das Gracas R. Pereira de Andrade).
Decisão: Após o voto do Ministro Relator conhecendo do recurso e lhe
dando provimento, o julgamento foi adiado, em virtude de pedido de vista do
Ministro Maurício Corrêa. Falou, pela Recorrente, o Dr. João Geraldo Piquet
Carneiro e, pelo Recorrido, o Dr. Alde Santos Júnior. Ausente, justificadamente,
neste julgamento, o Ministro Celso de Mello.
Presidência do Ministro Néri da Silveira. Presentes à sessão os Ministros
Marco Aurélio, Maurício Corrêa e Nelson Jobim. Ausente, justificadamente, o
Ministro Celso de Mello. Subprocurador-Geral da República, Dr. Edinaldo de
Holanda Borges.
Brasília, 17 de agosto de 1999 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador.
VOTO
(Vista)
O Sr. Ministro Maurício Corrêa: A empresa Texaco Brasil S.A. – Produtos
de Petróleo ajuizou ação anulatória, visando desconstituir crédito tributário lançado em auto de infração com o seguinte teor:
O contribuinte efetuou operação de entradas de mercadorias destinadas à
revenda na mesma espécie e a emprego na industrialização, tendo feito o aproveitamento integral dos respectivos créditos de imposto pela ocasião de tais entradas.
As saídas do produto resultante da industrialização foram efetuadas sem débito do
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imposto com amparo do procedimento estabelecido no artigo 6º da Res. 1.578, de
01/03/89. O contribuinte não efetuou o estorno do crédito, apropriado por ocasião
da entrada correspondente e a mercadoria empregada na industrialização.
2. A Recorrente afirma possuir dois estabelecimentos industriais, um deles situado em São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro, e outro no Município
fluminense de Duque de Caxias, destinado a produção de óleo lubrificante básico, para o que esclarece o seguinte:
a) com relação a determinados insumos, tais como aditivos e óleos básicos, a empresa os adquire pelo estabelecimento situado no Rio de Janeiro (São
Cristóvão) e os beneficia através de sistema de mistura;
b) o estabelecimento do Rio de Janeiro, uma vez terminada a primeira parte
da operação, remete o produto obtido, que ainda é insumo, para Duque de Caxias,
para a fase complementar do processo industrial. Tal remessa em transferência, se
faz sem tributação, sob o comando legal do citado no art. 6º da Resolução Estadual
nº 1.578/89;
c) por fim, o estabelecimento de Duque de Caxias adiciona novas matériasprimas, obtendo o produto final, o óleo lubrificante, destinado à comercialização,
cuja venda para dentro do Estado é normalmente tributada pelo ICMS.
3. O estabelecimento de São Cristóvão adquire matéria-prima tributada,
para emprego na industrialização do produto, e em virtude dessa transação
credita-se dos valores respectivos, lançando-os no livro de registro de entradas de mercadorias, conforme lhe autoriza o Decreto 8.050/85, que aprovou o
Regulamento do ICMS. Por sua vez, a filial de Duque de Caxias, que complementa o processo industrial, coloca o produto em circulação e debita-se pelo
imposto consignado nas notas fiscais emitidas pela sua comercialização.
4. Sustenta que a exigência fiscal que determina o estorno desse crédito,
importa em violação ao princípio da não-cumulatividade de que trata o art. 155,
§ 2º, I, da Constituição Federal.
5. Alega que a filial da cidade do Rio de Janeiro foi autuada por infringência ao disposto no art. 37 da Lei estadual 1.423/89, que, ressalvando qualquer
determinação em contrário, manda que se anule o crédito fiscal quando o contribuinte praticar “operação ou prestação subseqüente beneficiada por isenção
ou não-incidência”.
6. Segundo preconiza, essa disposição (Lei 1.423/89, art. 37) não se aplica
ao caso em exame. Primeiramente, pelo fato de que a norma inferior não pode
sobrepor-se ao que determina a Constituição Federal; segundo, porque não se
trata de operação de circulação que envolva obrigatoriamente ato de comércio,
tendo em vista que a saída da mercadoria do estabelecimento de São Cristóvão
deu-se a título de transferência para a filial de Duque de Caxias, sem participação de outras empresas nessa movimentação.
7. O juízo de primeira instância (fls. 76/81), considerando legal o auto
de infração, julgou improcedente a ação. Interposta apelação (fls. 83/93), a 5ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou provimento ao recurso, em acórdão assim ementado:
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765
Ementa: Ação anulatória de autuação fiscal. O procedimento adotado, de
creditar-se de todo o imposto incidente sobre a entrada de mercadoria, cuja saída
não está sujeita a ICMS, sem o respectivo estorno, gera indevido crédito, a justificar a lavratura do Auto de Infração – Arts. 155, parágrafo 2º, II, b, da Constituição
Federal, Artigo 6º da Resolução 1.578/89 – Lei Estadual 1.423/89, e Convênio
ICMS 66/88. Improcedência da ação. Recurso desprovido.
(Fl. 122.)
8. Do voto condutor desse julgamento extraem-se os seguintes funda­
mentos:
(...) Efetivamente a decisão recorrida não está a merecer qualquer reforma,
pois sua fundamentação é juridicamente perfeita, em consonância com as razões
ofertadas pelo Apelado e, especialmente, pelos doutos pronunciamentos dos representantes do Ministério Público, que oficiaram nas duas Instâncias.
O Dr. José Antonio Leal, fl. 74, ao concluir seu parecer, analisou a questão
com precisão e afirmou:
“A resolução nº 1.578 exclui da incidência do ICMS as operações
internas com óleo lubrificante básico, determinando o recolhimento do imposto pelo fabricante do produto acabado e, tão só na sua saída (conforme
art. 6º do supramencionado Diploma Legal). Vê-se, pois, que os revendedores desses lubrificantes não recolhem ICMS. Há mesmo uma substituição
tributária, pois o fabricante substitui o contribuinte como sujeito passivo
principal da obrigação.
No Regime mencionado, não é o contribuinte substituído, mas o substituto, responsável e obrigado direto perante o erário a satisfazer o crédito
tributário. Sobre tal fato estipula o art. 155, § 2º, XII, b, da Carta Magna de
1988. Ora, o auto de infração está escorreito, não havendo qualquer erro de
ilegalidade.”
É de se acentuar, ainda, em aditamento que o art. 22, do Convênio 66/88
considera como autônomo cada estabelecimento ainda que as atividades sejam
integradas e desenvolvidas no mesmo local, pela mesma pessoa jurídica.
O que ocorreu, na espécie, originando o auto de infração é que o procedimento adotado pela Autora, ora Apelante, lhe gerou um indevido crédito, pois
creditou-se de todo o imposto incidente sobre a entrada de mercadoria, cuja saída
não está sujeita ao ICMS.
O art. 38, inciso II, do Livro I, do Regulamento do Imposto de Circulação
de Mercadorias, Decreto 8.050, de 3 de abril de 1985, em vigor por força do art. 80
da Lei nº 1.423/89, veda a utilização de crédito na entrada de mercadoria cuja saída
por qualquer razão, esteja desonerada do imposto.
Há que se acentuar, ainda, em desabono à tese da Apelante, que o art. 37, I,
da Lei 1.423/89, estabelece que:
“Salvo determinação em contrário da legislação, ocorre a anulação
do crédito, quando:
I – a operação ou prestação subseqüente foi beneficiada por isenção
ou não incidência.”
Inexistindo qualquer lesão para a Apelante, ou violação ao princípio da não
cumulatividade, quando é impedida de creditar-se do imposto incidente sobre
a mercadoria, posteriormente dispensada do pagamento do imposto, e que por
isso não gera qualquer débito, qualquer ônus, a ser compensado com o crédito
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da entrada, tudo com fundamento no art. 155, parágrafo 2º, inciso II, letra b, da
Constituição Federal e art. 39, inciso I, 3, do Livro I, do Regulamento do Imposto
sobre Circulação de Mercadorias do Estado do Rio de Janeiro, impunha-se a improcedência da ação.
(Fls. 123/4.)
9. Por admitir que o acórdão foi omisso quanto ao tema pertinente à nãocumulatividade tributária, a Recorrente opôs embargos de declaração, que não
foram acolhidos (fls. 126/130). Inconformada, interpõe o presente recurso extraordinário no qual alega ofensa ao princípio da não-cumulatividade do ICMS
(CF, art. 155, § 2º, I). Após repisar os fatos e fundamentos apresentados na peça
inaugural, impugna o acórdão recorrido na parte em que considerou válida a
aplicação do art. 37 da Lei estadual 1.423/89 à hipótese dos autos.
10. Sustenta ainda que a operação de transferência da mercadoria beneficiada da filial de São Cristóvão para a de Duque de Caxias não gera crédito
no estabelecimento destinatário, na forma do art. 6º da Resolução 1.578/89, segundo o qual a circulação de óleo lubrificante básico dentro do Estado ocorrerá
sem tributação até o momento da venda ao revendedor ou atacadista.
11. Entende a Recorrente que se trata de operações distintas, parcialmente
tributadas em diferentes estabelecimentos da mesma empresa e, por essa razão, se efetuasse o estorno do crédito do ICMS, acabaria arcando com os ônus
integrais do imposto pago na aquisição da matéria-prima pela filial de São
Cristóvão, além de responder pelo débito decorrente da operação posterior.
12. Ilustra o seu raciocínio com dados numéricos (fls. 5 e 89) que diz evidenciar violação ao princípio da não-cumulatividade, pouco importando a autonomia dos estabelecimentos definida no art. 22 do Convênio ICM 66/88, já que
as operações realizadas pelas suas filiais fogem à regra geral dessa ficção legal.
13. De outro modo, entende que a autonomia dos estabelecimentos seria
aplicável somente se lhe fosse possível debitar-se pelas saídas dadas em transferência e apropriar-se dos créditos pelas entradas.
14. Finalmente, aduz que a decisão impugnada, ao julgar válida a aplicação da Lei estadual 1.423/89, não logrou distinguir o diferimento da isenção e da
não-incidência, porquanto na espécie ocorreu tão-somente suspensão provisória
da incidência do tributo.
15. Como demonstrado, a empresa recorrente, fabricante de óleo lubrificante básico, possui dois estabelecimentos, um em São Cristóvão, na Capital, e
outro no vizinho Município de Duque de Caxias, os quais se destinam a integralizar o processo industrial. A filial de São Cristóvão adquire matéria-prima tributada e a beneficia através do sistema de mistura. Concluída essa fase, remete
o produto semi-acabado para a filial de Duque de Caxias, por meio de simples
guia de transferência. Esse estabelecimento prepara o produto final e procede à
sua venda, que dentro do Estado sofre a incidência do ICMS.
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16. É fato incontroverso que a transferência da mercadoria do estabelecimento situado em São Cristóvão para a filial de Duque de Caxias desonera a
incidência do ICMS. Tanto a autora quanto o Estado do Rio de Janeiro estão de
acordo com essa afirmação.
17. Com efeito, na hipótese de ocorrência do fato gerador do ICMS – saída
da mercadoria do estabelecimento comercial – a reserva legal não pode estar
dissociada da norma constitucional que vincula o imposto à sua circulação.
Disso resulta que a exação não incide sobre toda e qualquer operação de saída,
senão sobre aquela em que se verifica transmissão de posse ou propriedade.
Ressalto que, no ponto, o termo operação guarda o seu significado semântico
na acepção de ato mercantil; o vocábulo circulação é empregado no sentido
jurídico de mudança de titularidade e não de simples movimentação física do
bem, e à expressão mercadoria atribui-se a designação genérica de coisa móvel
que possa ser objeto de comércio por quem exerce mercancia com freqüência e
habitualidade.
18. Impende explicitar que a Constituição Federal conceitua a hipótese
de incidência do ICMS sobre a circulação de mercadoria em si mesma considerada, sendo que a utilização da expressão operação traduz o real objetivo
da Constituição em concebê-la como o movimento de mercadorias relativo aos
negócios jurídicos acerca de sua titularidade. Assim, enquanto se realiza o ciclo
produtivo, com a participação de estabelecimentos de uma mesma unidade econômica, em geral da própria empresa jurídica, não há que se falar em operação
de circulação de mercadoria, de conformidade com a jurisprudência desta Corte
(Rp 1.181/PA, RTJ 113/28; AI 131.941-AgR, RTJ 136/414; RE 100.892, DJU de
31-5-85; RE 113.090, RTJ 121/1271, entre outros julgados).
19. No caso dos autos, não ocorreu circulação de mercadoria com mu­
dança de titularidade, daí a impossibilidade de ser tributada a transferência,
para a filial de Duque de Caxias, da matéria-prima beneficiada pela filial de São
Cristóvão, visto que essa movimentação física não configura hipótese de incidência do tributo. Tratando-se de simples operação de transferência, não pode a
Recorrente valer-se do princípio da não-cumulatividade.
20. Por conseqüência, não se pode dizer que a filial da cidade do Rio de
Janeiro é substituta tributária daquela instalada em Duque de Caxias. Na substituição tributária o legislador sub-roga-se no substituto o contribuinte originário,
no dizer de Zelmo Denari (Curso de Direito Tributário, 3. ed. Forense, p. 206).
21. Note-se que a circunstância de as filiais da Recorrente possuírem inscrições próprias perante o fisco estadual e federal e de o Convênio ICMS 66/88
considerar autônomo cada estabelecimento produtor do mesmo contribuinte,
ainda que integradas suas atividades, não quer dizer que são tributáveis as
operações de transferência de mercadorias de uma filial para outra, visto que a
Resolução 1.578/89, em seu art. 6º, expressamente exclui da incidência do imposto as movimentações internas com óleo lubrificante básico, determinando
que o recolhimento do tributo se faça pelo fabricante do produto final, quando
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da sua saída do estabelecimento, o que está em consonância com esse diploma,
que tem força de lei complementar (ADCT-CF/88, art. 34, § 8º). O contribuinte
do imposto é a unidade industrial que promove a saída da mercadoria com mudança de titularidade e não aquela filial que apenas processou parte do produto.
22. Na espécie, segundo demonstrou a Recorrente, o estabelecimento de São
Cristóvão apropria-se dos créditos oriundos da aquisição de matéria-prima tributada e o de Duque de Caxias lança em sua escrituração contábil os débitos destacados nas notas fiscais de venda da mercadoria. Instaura-se, assim, a anomalia: a
filial de São Cristóvão credita-se do imposto pago na compra de mercadoria, que,
após beneficiada em parte, é levada para a de Duque de Caxias. Essa, por sua vez,
debita-se na totalidade do ICMS lançado nas notas fiscais de venda do produto
acabado, sem que tenha feito o lançamento do crédito da primeira operção.
23. Para sanar a irregularidade quanto à acumulação de créditos e à contabilização de débitos de mercadoria que não deu entrada no estabelecimento,
o crédito lançado pela filial de São Cristóvão deveria ser transferido para a de
Duque de Caxias, que, ao vender a mercadoria ao revendedor ou comerciante
atacadista, tornar-se-ia responsável perante o fisco pelo recolhimento do tributo.
24. Dispõe o art. 155, § 2º, inciso I, da Constituição Federal que o ICMS
“será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação
relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante
cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.”
25. Ora, o estabelecimento de Duque de Caxias, que conclui a elaboração
do produto industrial e procede à sua venda, lança em sua escrituração contábil
débitos do ICMS. Contudo, se não se aproveitar dos créditos lançados pela filial
de São Cristóvão por ocasião da compra da matéria-prima, não poderá realizar a
compensação de que trata o inciso I do § 2º do art. 155 da Constituição Federal,
pelo confronto dos débitos com os créditos, dado inexistir operação de circulação na hipótese de simples transferência de mercadoria entre filiais da mesma
pessoa jurídica.
26. Destacou o voto do eminente Relator que, “no caso, o valor devido
por uma operação com insumos é recolhido, ‘englobadamente’, com o imposto
exigível na operação de saída do produto acabado, pelo outro contribuinte (subseqüente). Não há nenhuma isenção, nem não-incidência. Há postergação da
exigibilidade do tributo, com substituição. Não se pode invocar, como fez o
acórdão, a regra constitucional (art. 155, § 2º, II, b), para considerar legítima a
determinação de estorno do crédito. Todos os créditos decorrentes de insumos
adquiridos durante o processo de produção geram direito a abatimento do valor
do imposto devido pela venda final. Caso contrário, lesar-se-ia o direito constitucional ao abatimento e produzir-se-ia cumulação proibida”.
27. Ora, de diferimento aqui não se trata, nem tampouco de isenção ou
não-incidência do tributo. O diferimento do imposto pressupõe entrada de mercadoria tributada com saída isenta, mas no caso em exame a saída da mercadoria
da filial de São Cristóvão para a de Duque de Caxias, por simples transferência,
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não gera incidência do ICMS; também não é o caso de isenção pela transferência de produtos não acabados entre as filiais de uma mesma empresa, porque
a dispensa do pagamento do tributo, presume a ocorrência de fato gerador, o
que não se dá no caso. Por outro lado, a não-incidência qualificada ou especial
(imunidade) constitui supressão da competência impositiva do poder de tributar conferido pela Constituição Federal. Todavia, o que se verifica nos autos é a
ocorrência de simples operação de remessa de mercadoria entre filiais, que não
se converte em incidência de ICMS, na forma prevista pela Carta Federal. Por
conseqüência, entendo, data venia, que não há diferimento com a “postergação
da exigibilidade do tributo, com substituição”, porque a substituição tributária,
quer para frente ou para trás, e o diferimento somente poderiam ocorrer se a
operação fosse tributável.
28. O diferimento, como é notório, “é ato pelo qual o poder público posterga para o futuro o lançamento do ‘tributo’ que deveria ser levado a termo anteriormente. Não é favor fiscal que reduza ou elimine, direta ou indiretamente,
o respectivo ônus. É procedimento que a administração tributária faz por conveniência própria, não por favorecimento ao contribuinte” (RE 112.098/SP, Néri
da Silveira, RTJ 137/1323). Desse modo, sendo postergação do lançamento do
tributo devido, “o diferimento não se confunde com a isenção ou a imunidade,
já que nele a obrigação tributária surge desde logo, ao realizar-se a operação de
circulação de mercadoria. O que não se perfaz, desde logo, é sua exigibilidade,
transferida para outra ocasião” (RE 112.098/SP, RTJ 137/1327). E, como ressaltado pelo Ministro Aldir Passarinho no RE 96.372/MG (RTJ 113/1162), “sequer
é possível dizer-se que o diferimento onera aquele que industrializa o produto,
se é certo que o ônus tributário é, de fato, transferido ao consumidor”.
29. Tem-se, por isso, que a técnica do diferimento pressupõe, sempre, a
ocorrência do fato gerador do tributo, por cuidar-se de postergação do seu
lançamento. Em hipótese em que não se dá o fato gerador, como na simples
transferência de produtos entre filiais de uma mesma empresa, não ocorre o
diferimento do tributo, posto não ter havido circulação de mercadoria, pressuposto para a incidência do ICMS: “o instituto do diferimento (...) apenas
transfere para momento posterior o recolhimento relativo a imposto cujo fato
gerador já ocorreu” (RE 102.354-6, Aldir Passarinho, DJ de 23-11-84).
30. Afastadas essas premissas e sendo certo que a transferência física do
produto, em fase de industrialização, de uma filiar para a outra não gera ICMS,
concluo que a recorrente não tem direito à manutenção dos créditos lançados
pelo estabelecimento situado na cidade do Rio de Janeiro. Primeiro, porque esta
não terá como lançar os débitos em sua escrituração contábil, possibilitando,
assim, a concretização do princípio da não-cumulatividade do ICMS, tendo em
vista que a operação subseqüente – circulação da mercadoria – foi efetivada
pelo estabelecimento de Duque de Caxias, que pôs à venda o produto acabado;
depois, porque como salientado pelo Relator, “o valor devido por uma operação com insumos é recolhido, ‘englobadamente’, com o imposto exigível na
operação de saída do produto acabado, pelo outro contribuinte (subseqüente)”,
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o que vem demonstrar que os créditos lançados pela filial de São Cristóvão/RJ
deveriam ter sido transferidos juntamente com o produto inacabado à filial de
Duque de Caxias, responsável tributário perante o fisco estadual, para que essa
fizesse jus, na operação subseqüente, aos benefícios da não-cumulatividade do
imposto.
31. Assim sendo, não vislumbro na espécie, que tenha havido isenção,
não-incidência (imunidade) ou diferimento e, por não se tratar de hipótese
de incidência do ICMS a simples transferência de produtos entre filiais de
uma mesma empresa, não se pode falar em substituição tributária a justificar
a manutenção do crédito lançado pela filial de São Cristóvão/RJ por ocasião da
aquisição dos insumos.
32. É correto que o art. 155, § 2º, inciso I, da Constituição Federal, garante
que o ICMS “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada
operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o
montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito
Federal”.
33. De fato, segundo tal preceito, a Recorrente teria direito de compensar,
na saída do produto acabado dentro do Estado do Rio de Janeiro, os créditos
lançados em sua contabilidade por ocasião da aquisição de insumos tributados.
34. Negar-lhe esse direito seria violar a norma constitucional. Dá-se, entretanto, que esse princípio tributário teria que ser realizado pela filial de Duque
de Caxias, responsável pelo recolhimento do tributo quando da venda da mercadoria ali finalmente industrializada (operação subseqüente), mediante aproveitamento do crédito adquirido pelo estabelecimento de São Cristóvão, por ocasião
da aquisição dos insumos para o processo de industrialização da primeira etapa.
35. Exatamente, por isso, entendo não ser possível a manutenção dos créditos lançados pela filial de São Cristóvão: a primeira operação (aquisição de
insumos) foi tributada; sobre a segunda, realizada em Duque de Caxias (venda
dos produtos acabados no Estado do Rio de Janeiro), incide o ICMS e é nessa
última operação que se faz a compensação com o montante cobrado na anterior,
o que não se concretizou.
36. O objeto do recurso extrordinário, entretanto, funda-se na simples
transferência do produto entre as filiais, fato jurídico do qual não decorre o fenômeno da circulação de mercadoria, no sentido técnico-jurídico-tributário, como
já por demais foi dito.
Ante essas circunstâncias, com a vênia do Ministro Nelson Jobim, não conheço do recurso extraordinário.
EXTRATO DA ATA
RE 199.147/RJ — Relator: Ministro Nelson Jobim. Recorrente: Texaco
Brasil S.A. – Produtos de Petróleo (Advogados: João Geraldo Piquet Carneiro
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e outros e Luiz Felippe Jordão e outros). Recorrido: Estado do Rio de Janeiro
(Advogada: Maria das Gracas R. Pereira de Andrade).
Decisão: Retirado de pauta por indicação do Ministro Relator. Segunda
Turma, 16-3-99.
Decisão: Por unanimidade, a Turma deliberou afetar ao Plenário o julgamento do feito. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Celso
de Mello.
Presidência do Ministro Néri da Silveira. Presentes à sessão os Ministros
Marco Aurélio, Maurício Corrêa e Nelson Jobim. Ausente, justificadamente, o
Ministro Celso de Mello. Subprocurador-Geral da República, Dr. João Batista
de Almeida.
Brasília, 29 de maio de 2001 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Nelson Jobim:
1. Os fatos
Texaco Brasil S.A. – Produtos de Petróleo é fabricante de óleos lubrificantes.
Possui
(...) dois estabelecimentos situados, um [na cidade do] Rio de Janeiro [São
Cristóvão] e outro em Duque de Caxias (...) que, conjugados, se destinam (...) à
integralização das operações de industrialização de seu produto final (...)
(Fl. 3, item 5.)
Cada estabelecimento tem inscrição fiscal própria e autônoma, tanto federal como estadual,
(a) Rio de Janeiro: CGC, 33.337.122/0004-70; ICMS, Rio de Janeiro,
81.612.072;
(b) Duque de Caxias: CGC, 33.337.122/0141-87; ICMS, 80.203.314.
(Fl. 17.)
1.1. Operação industrial
Descrevo o procedimento industrial:
(1) “a Recorrente adquire, para o estabelecimento de São Cristóvão,
alguns insumos (aditivos e óleos básicos) “(...) e os beneficia através de sistema de mistura” (fl. 3, item 5, a);
(2) “o estabelecimento de São Cristóvão, uma vez terminada a primeira parte da operação, remete o produto obtido, que é ainda insumo,
para Duque de Caxias, para fase complementar do processo industrial” (fl.
3, item 5, b);
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(3) “o estabelecimento de Duque de Caxias adiciona novas matérias-primas, obtendo (...) o óleo lubrificante, destinado à comercialização” (fl. 4, 5, c).
1.2. Procedimento fiscal da Recorrente
Descrevo o procedimento fiscal da Recorrente:
(1) os insumos adquiridos pelo estabelecimento de São Cristóvão são
tributados (fl. 4, item 6);
(2) as empresas vendedoras debitam-se do valor do ICMS;
(3) a Recorrente, pelo estabelecimento de São Cristóvão, “apropriase dos respectivos créditos17” (fl. 4, item 6);
(4) o estabelecimento de São Cristóvão remete o insumo beneficiado
para o estabelecimento de Duque de Caxias.
A remessa é efetuada na forma denominada “transferência”18 , sem
recolhimento de imposto (Notas fiscais de fls. 17 a 21).
(5) “o estabelecimento de Duque de Caxias adiciona novas matériasprimas, (...)” e produz o óleo lubrificante (fl. 4, item 5, c), que é vendido.
Pelas vendas para o mercado interestadual, não há débito do ICMS.
Essa operação não está sujeita à incidência do imposto (CF, art. 155, § 2º,
X, b19).
Quando a venda é para o mercado interno – dentro do território do Estado
do Rio de Janeiro –, a Recorrente debita-se do ICMS devido pela operação.
Nessa operação interna, com incidência do ICMS, a Recorrente compensou-se dos créditos decorrentes das aquisições de insumos feitas pelo estabelecimento de São Cristóvão (ver n. 3, retro).
1.3. A conduta do Estado
A fiscalização estadual glosou essa conduta da Recorrente – manutenção
dos créditos em sua contabilidade (auto de infração de 4-6-92, fl. 11).
A Fiscalização entendeu que os créditos, oriundos da aquisição de insumos pelo estabelecimento de São Cristóvão, deveriam ser estornados.
O Estado não admitiu que a Recorrente mantivesse esses créditos para
utilização nas operações subseqüentes.
17
Lança os créditos no Livro de Registro de Entradas, conforme lhe autoriza o Decreto estadual
8.050/85 (art. 33, Livro I). “por virem com destaque do ICMS, a autora apropria-se dos respectivos
créditos, lançando-os em seu livro de registro de entradas, conforme lhe autoriza o Decreto esta­
dual n.º 8.050/85 (art. 33, Livro I)” [grifo da autora] (fl. 4).
18
19
Nota fiscal de fl. 17, item “nat. operação”, lê-se: “5.21 Trans. Prod. Estabelec.”
“Art. 155. (...)
§ 2º (...)
X – não incidirá:
(...)
b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica.”
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773
Determinou o estorno.
Leio, no auto de infração, referindo-se à remessa do insumo produzido
pelo estabelecimento de São Cristóvão para o estabelecimento da cidade de
Duque de Caxias:
(...) As saídas do produto resultante da industrialização foram efetuadas sem
débito do imposto com amparo do procedimento estabelecido no art. 6º da Res. 1578
de 01/03/89. O contribuinte não efetuou o estorno do crédito, apropriado por ocasião
da entrada correspondente e a mercadoria empregada na industrialização. (...)
(Fl. 11.)
2. A ação
2.1. A inicial
Em face disso, a Recorrente ajuizou ação anulatória de débito fiscal (299-92, fl. 2).
Sustentou violação ao (...) princípio constitucional da não-cumulatividade
(art. 155, § 2º) (...) (fl. 4.)
2.2. A contestação do Estado.
O Estado contestou.
Alegou que o “(...) procedimento adotado pela [Recorrente] lhe gerou um
indevido crédito, pois (...) creditou-se de todo o imposto incidente sobre a entrada da mercadoria, cuja saída não está sujeita ao ICMS.” (fl. 26, item 1.2.)
Fundamentou-se na CF (art. 155, § 2º, II, a20).
2.3. A sentença e o acórdão
A sentença julgou improcedente a ação.
O Tribunal a manteve.
Leio, no acórdão:
(...) o procedimento adotado pela (...) [Recorrente], lhe gerou um indevido
crédito, pois se creditou de todo o imposto incidente sobre a entrada de mercadoria, cuja saída não está sujeita ao ICMS (...)
(...)
Inexistindo qualquer lesão para a Apelante, ou violação ao princípio da não
cumulatividade, quando é impedida de creditar-se do imposto incidente sobre
a mercadoria, posteriormente dispensada do pagamento do imposto, e que por
20
CF:
“Art. 155. (...)
(...)
§ 2º (...)
(...)
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações
seguintes.
(...)”
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isso não gera qualquer débito, qualquer ônus, a ser compensado com o crédito
de entrada, tudo com fundamento no art. 155, Parágrafo 2º, Inciso II, letra b da
Constituição Federal (...)
(Fl. 124.)
2.4. Embargos declaratórios
A Recorrente embargou porque a ementa do acórdão não mencionou o
inciso I, § 2º, do art. 155 (fl. 127).
Pretendeu assegurar o prequestionamento da matéria, cuja alegação já se
encontrava na inicial (fl. 4).
Os embargos foram rejeitados.
Disse o acórdão que a violação ao referido dispositivo foi apreciada pela
sentença (fl. 80, § 2º) e ele – acórdão – adotou-a “como razões de decidir” (fl. 130).
2.5. Recurso extraordinário
A Recorrente fundamenta o extraordinário nas alíneas a e c do inciso III
do art. 102 da CF.
Sustenta:
(a) contrariedade ao art. 155, § 2º, I (princípio constitucional da não-cumulatividade do ICMS, fls. 135/6); e
(b) julgamento de validade da Lei estadual 1.423/89 em face da CF (fl.
136).
2.6. Contra-razões
O Estado recorrido alegou a inadmissibilidade do recurso extraordinário.
Sustentou que a Constituição de 1988 não disciplinou o sistema de compensação do imposto, [pelo que] conclui-se que o direito ao crédito (...) decorreria de norma infraconstitucional (fls. 144/145).
Referiu o Convênio Confaz 66/88 e a Lei estadual 1.423/89.
O mesmo em relação ao inciso II do § 2º do art. 155 (fl. 145).
Afirma que a violação é indireta.
Sustentou, ainda, que a Recorrente, com a letra c, quer ver discutida novamente a questão de mérito (fl. 145).
No mais, quer que a decisão seja mantida pelos seus próprios fundamentos.
Sustenta que a operação São Cristóvão – Duque de Caxias é uma operação isenta, pelo que os créditos são anulados.
É inaplicável o sistema de compensação do art. 155, § 2º, I, da CF.
É pelo não-conhecimento do recurso.
2.6. Despachos
O recurso extraordinário não foi admitido na origem.
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775
Leio:
(...)
Com relação (...) à alínea a, a decisão (...) deu correta interpretação (...) aos
dispositivos constitucionais.
(...)
(...) não há que se falar em invalidade da lei estadual (...) , pois esta foi editada em consonância com as normas constitucionais.
(Fl. 154.)
A Recorrente agravou.
O recurso foi admitido (AI 175.657-8, em apenso, fl. 134).
2.8. Procuradoria-Geral da República
A Procuradoria-Geral da República é pela inadmissibilidade (fls. 183/190).
Sustenta não ter havido ofensa direta à Constituição.
Afirma que a discussão da ofensa passa pelo exame de normas infraconstitucionais (Convênio 66/88 e Lei estadual 1.423/89 (...) envolvendo (...) interpretação de norma legal (fl. 187).
Alega, ainda, que a questão está a exigir reexame da prova (fl. 188).
3. A controvérsia
Sintetizo a controvérsia:
(a) O Estado recorrido sustenta
(a1) ter havido isenção nas operações entre os estabelecimentos de
São Cristóvão e Duque de Caxias;
(a2) Por isso, impunha-se o cancelamento dos créditos apropriados
quando das transferências feitas para o estabelecimento de São Cristóvão.
(b) a Recorrente sustenta:
(b1) não ter havido isenção, pois o imposto fora ser recolhido quando
da saída do lubrificante acabado (vendas feitas por Duque de Caxias);
(b2) ter havido, isto sim, substituição tributária nas operações entre
os estabelecimentos de São Cristóvão – Duque de Caxias.
(b3) Conclui pelo direito de compensação dos créditos relativos às
aquisições feitas pelo estabelecimento de São Cristovão, quando da venda
do produto pelo estabelecimento de Duque de Caxias, como lhe asseguraria a Constituição (art. 155, § 2º, I).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Senhor Presidente, antes de proferir o meu voto, registro que, ao examinar estes autos, tive dificuldades na fixação nítida do caso e da controvérsia.
776
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Tomei uma medida, digamos, não-regimental e, inclusive, heterodoxa.
Convidei os Srs. Procuradores do Recorrente e do Recorrido para uma
discussão em meu gabinete.
Compareceram o Senhor o Procurador do Estado, Dr. Alde da Costa
Santos Júnior, juntamente com um seu Colega, e os Doutores João Geraldo
Piquet Carneiro e Guilherme Magaldi.
Conversamos durante uma hora e quinze minutos sobre o processo e as
questões jurídicas suscitadas.
Tudo foi gravado.
O Relatório que proferi foi produzido a partir de observações feitas pelos
dois lados, principalmente pelo Senhor Procurador do Estado.
Registro a competência dos Procuradores e Advogados e também a compreensão que tiveram quanto ao procedimento que adotei.
Tomei essa medida para evitar divergências entre a versão do relatório e a
das partes, quer quanto aos fatos, quer quanto à controvérsia.
Parto do pressuposto de que quem conhece mais o processo são as partes.
Lamento que o volume de trabalho não permita a utilização, amiúde, desse
procedimento.
Os resultados foram excelentes.
Atalhou-se e corrigiram-se vários pontos onde eu havia errado na minuta
do relatório que submeti aos representantes das partes.
Reitero a correção e elegância dos Procuradores e dos Srs. Advogados da
Recorrente.
Passo ao voto.
1. A admissibilidade
Examino a admissibilidade do recurso.
Sintetizo.
O recurso extraordinário tem como fundamento as alíneas a e c (CF,
art. 102, III).
O recurso extraordinário não foi admitido pelo Tribunal local (fl. 154).
O recurso extraordinário subiu em decorrência de agravo de instrumento
(Despacho de fl. 134 dos autos em apenso, Rezek).
A Procuradoria-Geral da República é pela não-admissibilidade do recurso.
Sustenta não ter havido ofensa direta à Constituição:
a ofensa passa pelo “(...) exame de normas infraconstitucionais (Convênio
66/88 e Lei Estadual n.º 1.423/89 (...) envolvendo (...) interpretação de norma legal (...)”
(Fls. 187.)
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Alega, ainda, que (...) a questão está a exigir reexame da prova (...) (fl. 188).
Examino.
Como observa a Recorrente, o despacho que não admitiu o recurso extraordinário o fez por razões de mérito do recurso e não por razões processuais.
O despacho afirma que (...) a decisão recorrida não vulnerou preceitos
constitucionais apontados, mas lhe deu correta interpretação (fl. 154.)
Isso é fundamento para o não-conhecimento do recurso extraordinário.
Não é fundamento para não-admissão do recurso extraordinário.
O recurso extraordinário questiona a exigência de “estorno de crédito cujo
resultado colocaria em questão o princípio da não-cumulatividade, (...) [em] violação ao (...) art. 155, § 2º, I” (fl. 5, do agravo de instrumento).
O recurso extraordinário não sustenta violação por parte da Resolução
1.57821, que instituiu a substituição tributária para a comercialização de lubrificantes.
Não sustenta violação por parte do Convênio Confaz 66/88, que considerou “contribuinte autônomo” cada estabelecimento de uma mesma empresa.
O objeto do recurso extraordinário é um só:
a decisão recorrida contrariou o art. 155, § 2º, I, da CF, ao manter a “(...)
anulação do crédito do ICMS cobrado nas operações anteriores”, como aplicação
do art. 155, § 2º, II, b22 , da CF e do art. 37, I23, da Lei estadual 1.423/89, que reproduz
a regra constitucional.
Por ser uma mera reprodução, o debate não diz com a lei estadual, mas
com o texto constitucional.
21
Resolução 1578, 1-3-89, do RJ ( fl. 50):
“(...)
Art. 6º O imposto correspondente às operações internas com óleo lubrificante básico será re­
colhido pelo fabricante de lubrificantes acabado, localizado no Estado, englobadamente com o
devido pela saída tributada deste último produto, ficando dispensado o pagamento quando a saída
se destinar a outra unidade da Federação.
Parágrafo único. Cabe ao fabricante de lubrificante a responsabilidade pela retenção e recolhimento do imposto relativo às operações internas, subseqüentes, realizadas por revendedor.”
22
CF.:
“Art. 155. (...)
(...)
§ 2º. (...)
(...)
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
(...)
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;”
23
Lei estadual 1.423, 27-1-89:
“Art. 37. Salvo determinação em contrário da legislação, ocorre a anulação do crédito quando:
I – a operação ou prestação subseqüente for beneficiada por isenção ou não incidência;
(...)”
778
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Não tem razão o Estado quando sustenta que (...) “a Constituição de 1988
não disciplinou o sistema de compensação do imposto, [pelo que] conclui-se
que o direito ao crédito (...) decorreria de norma infraconstitucional” (...) (fls.
144/145).
O inciso I, do § 2º do art. 155 é auto-aplicável.
Assegura, desde logo, a compensação do “que for devido em cada operação (...) com o montante cobrado nas anteriores (...)” (CF, art. 155, § 2º, I).
O direito ao abatimento independe de norma infraconstitucional.
Nasce do próprio texto.
Leio Geraldo Ataliba e Cléber Giardino:
O “abatimento” é, nitidamente, categoria jurídica de hierarquia constitucional: porque criada pela Constituição. Mais que isso: é direito constitucional reservado ao contribuinte do ICM; direito público subjetivo de nível constitucional,
oponível ao Estado pelo contribuinte do imposto estadual. O próprio texto constitucional que outorgou ao Estado o poder de exigir o ICM, deu ao contribuinte o
direito de abatimento. (...).24
Eis o que temos de decidir:
¿é correta, ou não, no caso, a aplicação da regra constitucional que anula o
“(...) crédito relativo às operações anteriores” quando houver isenção ou não incidência intercorrente25?
Ou, de outra forma:
¿é correta, ou não, no caso, a aplicação da regra constitucional restritiva do
direito constitucional de abatimento do “montante cobrado nas [operações] anteriores (...)” (CF, art. 155, § 2º, I)?
Ou, ainda, de uma terceira forma:
¿O acórdão contrariou, ou não, o princípio da não-cumulatividade do
art. 155, § 2º, I?
O tema é a extensão da não-cumulatividade.
A questão não é de fato.
24
ICM – Abatimento constitucional. Princípio da não-cumulatividade. In: Revista de Direito
Tributário, n. 29-30, jul./dez. de 1984. p. 116.
25
CF:
“Art. 155. (...)
(...)
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
(...)
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da ­legislação:
(...)
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;
(...)”
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779
Os fatos são incontroversos.
A questão é sobre a aplicação, ou não, aos fatos aceitos e não negados por
ninguém, de regras constitucionais.
A matéria foi prequestionada.
Houve, inclusive, embargos declaratórios para explicitar que o fundamento do acórdão era, além da alínea b do inciso II, também o inciso I, do § 2º,
do art. 155, da CF (fls. 126/128).
Admito o recurso extraordinário pela alínea a.
2. Mérito
Examino o mérito.
2.1. Síntese
Lembro o caso.
A empresa contribuinte tem “dois estabelecimentos situados, um (...) [na
cidade do] Rio de Janeiro [São Cristóvão] e outro em Duque de Caxias”.
O estabelecimento de São Cristóvão adquire insumos de terceiros, que
recolhem ICMS.
A Recorrente se credita do valor no estabelecimento de São Cristóvão.
Beneficia o produto em São Cristóvão.
Remete, “por transferência”, para sua filial de Duque de Caxias.
As mercadorias são acompanhadas com nota fiscal onde se lê:
(...) Conf. Art. 6 da Resolução 1.578, de 02.03.8926.
(Fls. 17 a 211, amostragem.)
A filial de Duque de Caxias produz o óleo lubrificante.
Vende para o mercado interno do Estado do Rio de Janeiro.
Há incidência de ICMS.
A Recorrente pretende manter os créditos oriundos das compras de insumos feitas pelo estabelecimento de São Cristóvão.
2.2. A questão
Esta é a questão:
26
É o que se encontra na Nota Fiscal de fls. 17 e demais.
Resolução 1578, 1-3-89, do RJ (fl. 50):
“(...)
Art. 6º O imposto correspondente às operações internas com óleo lubrificante básico será re­
colhido pelo fabricante de lubrificantes acabado, localizado no Estado, englobadamente com o
devido pela saída tributada deste último produto, ficando dispensado o pagamento quando a saída
se destinar a outra unidade da Federação.
Parágrafo único. Cabe ao fabricante de lubrificante a responsabilidade pela retenção e recolhimento do imposto relativo às operações internas, subseqüentes, realizadas por revendedor.”
780
R.T.J. — 208
¿é constitucional que a Recorrente seja obrigada a cancelar os créditos, no
estabelecimento de São Cristóvão, oriundos das aquisições de insumos, porque,
na “transferência” do óleo básico para o estabelecimento de Duque de Caxias, o
ICMS, dessa operação, é cobrado “englobadamente” nas operações de Duque de
Caxias com terceiros?
Ou, na seqüência:
¿é constitucional que a Recorrente seja obrigada, pelas vendas feitas pelo
estabelecimento de Duque de Caxias, a cancelar os créditos oriundos das operações de compra de insumos pelo estabelecimento de São Cristóvão tendo em vista
a operação deste com o estabelecimento de Duque de Caxias?
Ou, dito de outra forma:
¿é constitucional inviabilizar que a Recorrente mantenha e não abata, do
valor do ICMS devido pela venda de produto acabado, os créditos decorrentes das
operações da filial de São Cristóvão para a aquisição de insumos?
Friso que a questão não é abatimento de crédito pela operação São
Cristóvão – Duque de Caxias, porque, nessa operação, não houve recolhimento
do tributo.
Como não houve recolhimento do imposto, não há crédito.
A questão é restrita à manutenção e ao aproveitamento do ICMS que a filial de São Cristóvão se credita em decorrência da compra de insumos.
A solução está na caracterização da operação nominada de “transferência”.
Por essa fórmula, o estabelecimento de São Cristóvão remete produto para
o estabelecimento de Duque de Caxias.
O imposto devido por essa operação é satisfeito, “englobadamente” – diz
a Resolução 1.578/89 – pelo estabelecimento de Duque de Caxias, na “saída tributada” do óleo acabado.
2.3. A sentença
A sentença identifica a operação da “transferência” como uma hipótese de
substituição tributária.
Leio:
(...) diante da legislação estadual é atribuída ao produtor do óleo lubrifi­
cante acabado [Duque de Caxias] a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS
referente às operações anteriores e subseqüentes com tal mercadoria, ficando desobrigados os revendedores dos lubrificantes básicos [São Cristóvão], por ocasião
da saída da mercadoria.
(Fl. 79.)
Prossegue a sentença:
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781
(...) no regime de substituição tributária não é o contribuinte substituído,
mas o substituto o responsável diretamente perante o Fisco a satisfazer o crédito
tributário.
(...)
(Fl. 79.)
E, conclui, no parágrafo subseqüente:
(...)
E com relação ao crédito para compensação quando não há incidência do
imposto, é de ser lembrado o comentário do Prof. Yoshiaki Ichinara, (...):
“(...) No caso de operação isenta ou não incidência, se houve crédito
do ICMS destacado e devido na operação anterior, o mesmo deverá ser
estornado”
(...)
(Fls. 79/80.)
Faço, desde logo, uma observação.
Há uma contradição na sentença.
Primeiro ela afirma que
(...) é atribuída ao produtor do óleo lubrificante acabado a responsabilidade
pelo recolhimento do ICMS referente às operações anteriores (...)
(Fl. 79.)
Nesta parte, a sentença admite duas coisas:
(a) a incidência do tributo na operação anterior (São Cristóvão – Duque
de Caxias);
e
(b) a responsabilidade do produtor do óleo lubrificante acabado [Duque de
Caxias] pelo recolhimento do tributo, “ficando desobrigados os revendedores
dos lubrificantes básicos”.
Ou seja, a sentença afirma a ocorrência de substituição tributária.
Na parte subseqüente, a sentença, sobre a compensação do crédito, afirma
que, “quando não há incidência do imposto (...): (...) “o mesmo deverá ser estornado”. (...) (fls. 79/80.)
A sentença reconhece, para a operação São Cristóvão – Duque de Caxias,
a incidência do tributo e identifica, na hipótese, substituição tributária.
Após, a sentença afirma a não-incidência do tributo e não admite a compensação do crédito!
Há contradição.
É inválido o raciocínio.
782
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2.4. O acórdão
Vejamos o acórdão.
Cita parecer do Ministério Público (fl. 74) no que a operação “em transferência” é vista, primeiro, como uma hipótese de exclusão de incidência e, após,
como substituição tributária!
O parecer é contraditório.
Leio, no voto condutor:
A Resolução (...) exclui da incidência do ICMS as operações internas com
óleo lubrificante básico, determinando o recolhimento do imposto pelo fabricante
do produto acabado e, tão só na sua saída (...) Vê-se, pois, que os revendedores desses lubrificantes não recolhem ICMs. Há mesmo uma substituição tributária (...)
(...)
(Fl. 123.)
voto:
Após reproduzir essa parte do parecer do Ministério Público, conclui o
(...) [a Apelante] é impedida de creditar-se do imposto incidente sobre a mercadoria, posteriormente dispensada do pagamento do imposto, e que por isso não
gera qualquer débito, qualquer ônus, a ser compensado com o crédito da entrada,
tudo com fundamento no art. 155, § 2º, inciso II, letra b (...)
(Fl. 124.)
Começa com exclusão de incidência e, após, afirma estar perante um caso
de substituição tributária!
De duas, uma.
Ou, não há incidência de tributo e não se pode falar em substituição
tributária.
Ou, há incidência de tributo e se pode falar em substituição tributária.
O que não pode haver é não-incidência e substituição tributária.
A não-incidência excluiu a substituição.
Não pode haver substituição tributária quando não há tributo a recolher.
O acórdão cai na mesma contradição da sentença.
Primeiro, afirma que o vendedor do produto acabado substitui o vendedor
do produto básico no imposto devido por este, pela operação entre ambos.
Após, afirma que, na operação entre os dois estabelecimentos (São Cris­
tóvão – Duque de Caxias), há “isenção ou não-incidência”.
E, por isso, concluiu o acórdão pela aplicação do
Art. 155. (...)
§ 2º (...)
(...)
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783
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da
legislação;
(...)
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.
3. Análise
3.1. Fundamento do acórdão
Analiso.
A CF, até que fosse promulgada a lei complementar instituidora do ICMS,
autorizou os Estados a celebrarem Convênio para edição das normas de regulamentação da matéria (ADCT, art. 34, § 8º27)
Os Estados, em 14 de dezembro de 1988, celebraram o Convênio ICM
66/88 (fls. 51/54).
O Convênio institui o caso em exame como fato gerador do imposto.
Leio:
Art. 2º Ocorre o fato gerador do imposto:
(...)
VI – na saída de mercadoria do estabelecimento extrator, produtor ou gerador, para qualquer outro estabelecimento, de idêntica titularidade ou não,
localizado na mesma área ou em área contínua ou diversa, destinada a consumo
ou a utilização em processo de tratamento ou de industrialização, ainda que
as atividades sejam integradas;
(Fl. 51.)
O Convênio previu, como base de cálculo, para o caso, o valor da operação
(art. 4º, III28 , fl. 52).
Além do mais, o Convênio considerou (...) “autônomo cada estabelecimento produtor (...) do mesmo contribuinte, ainda que as atividades sejam integradas e desenvolvidas no mesmo local” (art. 2229, fl. 53).
27
CF:
“Art. 34. (...)
(...)
§ 8º Se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a
lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o art. 155, I, b” (ver observação)
Obs.: A EC 3/93 alterou o dispositivo a que a regra se remete para art. 155, II, sem ter feito a
adaptação no art. 34.”
28
29
Convênio ICM 66/88:
“Art. 4º A base de cálculo do imposto é:
(...)
III – na saída de mercadoria prevista nos incisos V e VI do artigo 2º, o valor da operação;”
Convênio ICM 66/88:
“Art. 22. Considera-se autônomo cada estabelecimento produtor, extrator, gerador, inclusive de
energia, industrial, comercial e importador ou prestador de serviços de transportes e de comunicação,
do mesmo contribuinte, ainda que as atividades sejam integradas e desenvolvidas no mesmo local.
784
R.T.J. — 208
Essa é a razão pela qual os estabelecimentos de São Cristóvão e de Duque
de Caxias têm inscrição estadual própria e autônoma (ver lançamentos nas notas
fiscais de fls. 17 a 21).
Por isso, as operações entre os estabelecimentos de São Cristóvão e Duque
de Caxias foram definidas como tributáveis.
Por serem definidas como tributáveis, o Estado do Rio de Janeiro resolveu
(CTN, art. 12830) atribuir ao “fabricante de lubrificante acabado” (estabelecimento de Duque de Caxias) a responsabilidade pelo imposto devido na operação
“com óleo lubrificante básico”, fabricado pelo estabelecimento de São Cristóvão
(Resolução 1.578/89, art. 6º, fl. 50).
A remessa do insumo de São Cristóvão para Duque de Caxias era acompanhada pelas notas fiscais “em transferência” (fls. 17 a 21).
Como o imposto era cobrado, “englobadamente”, na operação subseqüente com produto acabado –, as notas fiscais não fazem consignar o valor do
ICM (fls. 17 a 21, ver último campo da direita).
A operação era tributável, mas se constituia em uma hipótese de substituição tributária.
Leio a Resolução 1.578/89, que tratou sobre o “ICMS relativo às operações
com petróleo”:
Art. 6º O imposto correspondente às operações internas com óleo lubrificante básico será recolhido pelo fabricante de lubrificantes acabados (...), englobadamente com o devido pela saída tributada deste último produto (...).
(...)
Pergunto:
¿Essa regra, tal como nela se contém, dispõe sobre isenção ou não-incidência do tributo?
ou
¿Dispõe ela sobre a postergação da exigência do tributo pela operação com
produto básico para o momento da saída do produto acabado?
Faço uma paráfrase do texto da resolução, para o caso:
(Art. 6º) O imposto correspondente às operações (...) [entre os estabelecimentos de São Cristóvão e Duque de Caxias31] será recolhido pelo [estabelecimento de
Parágrafo único. Equipara-se a estabelecimento autônomo o veículo utilizado no comércio ambulante e na captura de pescado.”
30
CTN, Lei 5.172, de 25-10-66:
“Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste Capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a
responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva
obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo
do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.”
31
= com óleo lubrificante básico.
R.T.J. — 208
785
Duque de Caxias32], englobadamente com o devido pela saída [do produto acabado] (...).
Há, na previsão legal, substituição tributária.
Aliás, a própria resolução fala, em diversos momentos, em substituição
tributária:
Art. 3º, parágrafo único;
Art. 4º, parágrafo único;
Art. 7º;
Art. 8º
(Fl. 50.)
Essa circunstância está amplamente reconhecida na própria contestação
do Estado (fls. 27 a 30).
É a substituição “para trás”.
O imposto passa a ser exigível de contribuinte que participa da cadeia produtiva em momento posterior à ocorrência do fato gerador.
Este é o sentido da regra.
É a técnica do diferimento.
Leio Moreira Alves, no RE 111.427/SP:
O diferimento nada mais é do que o adiamento da cobrança do imposto já
devido.
(Voto em 26-8-98, RTJ 130/351.)
Observo que, no caso, não está a Recorrente pretendendo manter crédito
pela operação em que houve o diferimento.
Não há crédito porque não houve débito do tributo.
Repito.
Não está a Recorrente pretendendo crédito pela operação São Cristóvão –
Duque de Caxias.
O Recorrido, em Memorial, cita decisões que dizem respeito à pretensão
de crédito pela própria operação onde houve o diferimento33.
32
33
= fabricante de lubrificantes acabado.
RE 125.106 (Primeira Turma, Galvão):
“Ementa: (...) Produto contemplado com isenção do ICM. Decisão que concluiu pela legitimi­
dade do estorno do crédito incidente sobre a matéria-prima nele utilizada. (...)
(...)
Inexistindo imposto a pagar na saída, não há lugar para compensação, impondo-se, conseqüentemente, a anulação do crédito, por perda de objeto.
(...)”
RE 115.966, (Primeira Turma, Moreira Alves):
“Ementa: ICM. Isenção. (...)
(...)
786
R.T.J. — 208
Não é o caso dos autos.
Insisto.
O que a Recorrente pretende é o aproveitamento do crédito relativo à operação anterior à do diferimento, onde houve cobrança do imposto.
Está no próprio auto de infração em que foi autuado o estabelecimento de
São Cristóvão34:
Relato: O contribuinte efetuou operações de entradas de mercadorias destinadas à revenda na mesma espécie e a emprego na industrialização, tendo feito
o aproveitamento integral dos respectivos créditos de imposto por ocasião de tais
entradas. As saídas do produto resultante da industrialização foram efetuadas
sem débito do imposto35 com amparo do procedimento estabelecido no art. 6º
da Res. 1.578, de 1º/03/89. O contribuinte não efetuou o estorno do crédito,
apropriado por ocasião da entrada, correspondente à mercadoria empregada na
industrialização. É exigido, a título de estorno de crédito, o ICMS no valor de CR$
1.079.432.748,31 (...)
(Fl. 11.)
Essa determinação de estorno impede o aproveitamento dos créditos nas
saídas tributadas realizadas pelo estabelecimento de Duque de Caxias (fl. 11).
No caso, efetivamente, como está no auto de infração, “as saídas do produto” de São Cristóvão para Duque de Caxias “foram efetuadas sem débito do
imposto” (ver notas fiscais de fls. 17 a 21).
Esse foi o procedimento porque, nos termos da Resolução 1.578/89, o
valor devido pela operação São Cristóvão – Duque de Caxias é recolhido, “englobadamente”, com o imposto exigível na operação de saída do produto acabado – vendas feitas pelo estabelecimento de Duque de Caxias (contribuinte
subseqüente).
Não há nenhuma isenção.
Nem não-incidência.
Há postergação da exigibilidade do tributo, com substituição.
(...) se ICM é devido na primeira etapa e não o é na segunda, não pode evidentemente haver
cumulação, cujo pressuposto é que algo, sem dedução, se incorpore a algo maior, o que não ocorre
quando este inexiste.
(...)”
AI 189.787-AgR (Primeira Turma, Galvão):
“Ementa: (...)
(...)
(...) o diferimento do ICM não gera direito ao crédito do tributo (...)
(...)”
Obs.: A ementa se refere a crédito da própria operação diferida.
34
O número da inscrição, lançada no Auto de Infração – 81.612.072 –, bem como o endereço, é do
estabelecimento de São Cristóvão.
35
Refere-se à saída de São Cristóvão para Duque de Caxias.
R.T.J. — 208
787
Não se pode invocar, como fez o acórdão, a regra constitucional (art. 155,
§ 2º, II, b), para considerar legítima a determinação de estorno do crédito relativo à operação anterior àquela em que houve o diferimento.
Todos os créditos decorrentes de insumos adquiridos durante o processo
de produção geram direito a abatimento do valor do imposto devido pela venda
final tributável.
Caso contrário, lesar-se-ia o direito constitucional ao abatimento e produzir-se-ia cumulação proibida.
Simulo:
(1) O estabelecimento de São Cristóvão adquire insumos por R$ 100,00.
A alíquota é de 18%.
Os vendedores debitam-se em R$ 18,00 e São Cristóvão se credita
do imposto pago – R$ 18,00;
(2) A empresa produz o lubrificante básico que passa a valer, digamos, R$ 200,00;
(3) Transfere, por R$ 200,00, com diferimento, para o estabelecimento de Duque de Caxias.
Lá é produzido o óleo lubrificante acabado;
(4) O óleo – lubrificante acabado – é vendido por R$ 400,00.
Houve uma agregação de valor de R$ 200,00;
Aplica-se a mesma alíquota (18%).
O valor total do imposto é de R$ 72,00 (= 400,00 x 18%);
Vejamos o que passa se não se admitir o abatimento dos R$ 18,00, creditados na 1ª fase:
(1) R$ 18,00 são recolhidos na 1ª operação (18% sobre R$ 100,00 – à
compra de insumos pelo estabelecimento de São Cristóvão);
(2) mais R$ 72,00 são recolhidos na 3ª operação (18% sobre R$ 400,00 –
venda do produto acabado pelo estabelecimento de Duque de Caxias);
(3) total do tributo sobre a cadeira produtiva: R$ 18,00 + R$ 72,00 =
R$ 90,00
(d) R$ 90,00 correspondem a 22,5% de R$ 400,00, que é o valor
final do produto.
Não admitido o crédito dos primeiros R$ 18,00, ter-se-á, desta forma, a
incidência cumulada sobre a mesma base inicial de R$ 100,00.
Sem o abatimento, o valor final e total do imposto seria de R$ 90,00 (18,00
da 1ª fase + 72,00 da venda final), ou seja, de 22,5% de R$ 400,00.
Vejamos o que se passa se o crédito for admitido.
788
R.T.J. — 208
O estabelecimento de Duque de Caxias debita-se em R$ 72,00 (= 18% de
R$ 400,00) e abate o crédito de R$ 18,00.
O imposto da última fase, ao fim e ao cabo, será R$ 54,00 (= 72,00 – 18,00).
Por toda a cadeia produtiva, foram cobrados R$ 72,00, exatamente 18%
sobre R$ 400,00:
(a) R$ 18,00, na primeira operação;
(b) R$ 54,00, na terceira operação.
Como demonstrei, se o crédito de R$ 18,00 não for assegurado, o valor do
tributo, em vez de R$ 72,00, será de R$ 90,00, que é igual a 22,5% de R$ 400,00.
Esta análise demonstra a erronia do acórdão.
Na substituição tributária, o substituto assume a posição integral do
substituído.
Isso porque o substituto recolhe imposto devido pela operação com mantida com o substituído.
Vou a Geraldo Ataliba:
(...) o regime jurídico aplicável à tributação será o regime do substituído e
não o regime do substituto. O substituto está pagando tributo alheio, vai pagar o
que deve o outro sujeito, nas condições pessoais dele: o substituído.
É imperativo – para que de substituição se cuide – que o regime jurídico
legal e constitucional aplicável seja o da outra pessoa.
(RDT 23-23/138.)
Figuro a situação se não houvesse a substituição tributária, ou seja, se o recolhimento ou débito do imposto fosse pelo estabelecimento de São Cristóvão.
Teríamos o seguinte:
(a) Pela compra dos insumos, São Cristóvão credita-se de R$ 18,00,
debitado aos vendedores (18% sobre R$ 100,00);
(b) Pela operação com São Cristóvão – Duque de Caxias, no valor de
R$ 200,00, São Cristóvão debitar-se-ia de R$ 36,00 e abateria o crédito
de R$ 18,00, da operação anterior, o que importaria no imposto líquido de
R$ 18,00 (= 36,00 – 18,00);
(c) Duque de Caxias, por sua vez, creditar-se-ia dos mesmos R$
36,00 (18% de R$ 200,00).
(d) Na operação com o produto acabado, Duque de Caxias sobre o
débito de R$ 72,00 (= 18% sobre R$ 400,00) abateria o crédito de R$ 36,00
e recolheria R$ 36,00;
Vê-se, então, que o ICMS – sobre toda a cadeira – importaria em R$ 72,00:
18,00
+ 18,00
+ 36,00
72,00
R.T.J. — 208
789
Percebe-se, claramente, a cumulação proibida se não admitido o abatimento do valor recolhido na primeira operação, no qual o substituído se creditou
(R$ 18,00 + R$ 72,00 = R$ 90,00).
Assim, admitindo que a operação entre São Cristóvão – Duque de Caxias
seja tributável, pela forma de substituição com diferimento, a decisão deve ser
reformada.
O substituto deve abater os créditos do substituído.
O substituto tem o direito de abater os créditos que o substituído abateria
se não houvesse o diferimento.
Repito.
O substituto se encontra na mesma posição do substituído.
Tal não seria o caso se tivesse havido, na operação São Cristóvão – Duque
de Caxias, isenção ou não-incidência.
Se fosse o caso de não-incidência ou isenção, teríamos a “anulação do
crédito relativo às operações anteriores”, nos termos da regra especialíssima do
art. 155, § 2º, II, b, da Constituição.
Digo especialíssima porque somente em relação ao ICMS a isenção
ou não-incidência tem esse efeito sobre os créditos oriundos das operações
anteriores.
Lembro ao Tribunal que tal não se dá em se tratando de IPI.
No RE 212.484, o Tribunal examinou o caso dos produtores de Coca-Cola.
O xarope é produzido na Zona Franca de Manaus.
Está sujeito à isenção.
Na venda do produto acabado – refrigerante – os produtores podem abater
o valor do crédito que ocorreria se não tivesse havido a isenção.
Se não ficasse assegurado o abatimento do presuntivo crédito na operação
subseqüente, não teria havido isenção propriamente dita, mas mero diferimento
do pagamento do tributo para a referida operação subseqüente.
Lembro ao Tribunal que esse tratamento especialíssimo em relação ao
ICMS – no qual a isenção ou não-incidência acaba sendo um mero diferimento –
decorreu da Emenda Constitucional 23, de 1º de dezembro de 1983.
Essa emenda constitucional, conhecida por Emenda Passos Porto, foi a
fórmula encontrada pelos Estados para afastar a jurisprudência do Tribunal.
O Tribunal havia fixado que, na hipótese de isenção ou não-incidência,
haveria o abatimento do crédito da referida operação.
Está na ementa do RE 107.122 (Rafael Mayer, Primeira Turma, 1º-10-85):
(...) A interpretação dada pelo STF ao preceito do art. 23, II, da CF, anterior
à Emenda 23, tem como ínsito ao princípio da não-cumulatividade do ICM o direito ao creditamento, na operação subseqüente, da parcela isenta.
790
R.T.J. — 208
A Emenda Passos Porto – EC 23/83 – deu nova redação ao inciso II do
art. 23 da EC 1/69.
Acresceu ao texto de 1969 a expressão
(...), a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito de imposto para abatimento daquele incidente nas
operações seguintes.
Essa regra se manteve na Constituição de 1988.
É o art. 155, § 2º, II, b36.
O novo texto foi mais longe.
Além de vedar crédito relativo à própria operação isenta – vedação que se
encontrava na EC 23/83 – assegurou a anulação de todo e qualquer crédito relativo às operações anteriores.
A Emenda Passos Porto, literalmente, havia disposto que
(...) a isenção ou não-incidência (...), não [implicaria] crédito de imposto para
abatimento daquele incidente nas operações seguintes.
Ou seja, ela se restringia ao crédito da operação isenta ou não sujeita à
isenção.
Mas, tudo isso só ocorre se, e somente se, houver isenção ou não-incidência, o que não é o caso.
Concluo.
Acolho o entendimento do acórdão e do Estado recorrido sobre a operação entre os estabelecimentos São Cristóvão – Duque de Caxias ser tributável.
Não houve, por isso mesmo, nessa operação, nenhuma isenção ou nãoincidência.
Houve, sim, substituição tributária, com diferimento da cobrança do imposto para o estabelecimento de Duque de Caxias, na saída do produto acabado.
Logo, há o direito do estabelecimento substituto – de Duque de Caxias – à
manutenção dos créditos relativos às operações realizadas pelo estabelecimento
substituído – de São Cristóvão.
Caso contrário, ter-se-á cumulação indevida.
36
CF/88:
“Art. 155. (...)
(...)
§ 2º (...)
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
(...)
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.
(...)”
R.T.J. — 208
791
Registro que o auto de infração atacado nada tem com as operações realizadas pelo estabelecimento de Duque de Caxias.
As operações de Duque de Caxias tanto podem ser internas – no território
do Estado do Rio de Janeiro, como podem destinar produto acabado para outros
Estados.
As primeiras – internas – são tributáveis e o estabelecimento de Duque de
Caxias poderá abater o crédito.
Já, as segundas – que destinam produto a outros Estados – não estão sujeitas à incidência do ICMS (CF, art. 155, § 2º, X, b).
Nesta última hipótese, ter-se-á a aplicação da regra da “anulação do crédito relativo às operações anteriores” (CF, art. 155, § 2º, II, b).
Mas, não é o caso.
O caso está definido, expressamente, pelo auto de infração que é relativo
ao estabelecimento de São Cristóvão.
Nos termos do auto de infração,
(...) É exigido, a título de estorno de crédito, o ICMS no valor de CR$
1.079.432.748,31 (...), e multa no valor de CR$ 863.546.198,49 (...)
(Fl. 11, in fine.)
A causa da exigência do ICMS e da multa, no caso, é a falta de estorno dos
créditos oriundos das operações de aquisição de insumos pelo estabelecimento
de São Cristóvão.
O Fisco assim autuou porque, erradamente, entendeu que, na operação
subseqüente com Duque de Caxias, teria havido isenção ou não-incidência, o
que importaria na anulação dos créditos.
É essa a questão.
É esse o objeto da demanda.
Nada tem com as operações de Duque de Caxias.
Conheço do recurso.
Acolho o pedido da inicial.
Anulo o auto de infração e o crédito fiscal, objetos da ação (fls. 12 e 13).
Torno insubsistente a multa aplicada.
Inverto os ônus da sucumbência.
VOTO
O Sr. Ministro Maurício Corrêa: A empresa Texaco Brasil S.A. – Produtos
de Petróleo ajuizou ação anulatória, visando desconstituir crédito tributário lançado em auto de infração com o seguinte teor:
792
R.T.J. — 208
O contribuinte efetuou operação de entradas de mercadorias destinadas a
revenda na mesma espécie e a emprego na industrialização, tendo feito o aproveitamento integral dos respectivos créditos de imposto pela ocasião de tais entradas.
As saídas do produto resultante da industrialização foram efetuadas sem débito do
imposto com amparo do procedimento estabelecido no artigo 6º da Res. 1.578 de
01/03/89. O contribuinte não efetuou o estorno do crédito, apropriado por ocasião
da entrada correspondente e a mercadoria empregada na industrialização.
2. A Recorrente afirma possuir dois estabelecimentos industriais, um deles situado em São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro, e outro no Município
fluminense de Duque de Caxias, destinado à produção de óleo lubrificante básico, para o que esclarece o seguinte:
a) com relação a determinados insumos, tais como aditivos e óleos básicos, a empresa os adquire pelo estabelecimento situado no Rio de Janeiro (São
Cristóvão) e os beneficia através de sistema de mistura;
b) o estabelecimento do Rio de Janeiro, uma vez terminada a primeira parte
da operação, remete o produto obtido, que ainda é insumo, para Duque de Caxias,
para a fase complementar do processo industrial. Tal remessa em transferência se
faz sem tributação, sob o comando legal do citado no art. 6º da Resolução Estadual
nº 1.578/89;
c) por fim, o estabelecimento de Duque de Caxias adiciona novas matériasprimas, obtendo o produto final, o óleo lubrificante, destinado à comercialização,
cuja venda para dentro do Estado é normalmente tributada pelo ICMS.
3. O estabelecimento de São Cristóvão adquire matéria-prima tributada,
para emprego na industrialização do produto, e, em virtude dessa transação,
credita-se dos valores respectivos, lançando-os no livro de registro de entradas de mercadorias, conforme lhe autoriza o Decreto 8.050/85, que aprovou o
Regulamento do ICMS. Por sua vez, a filial de Duque de Caxias, que complementa o processo industrial, coloca o produto em circulação e debita-se pelo
imposto consignado nas notas fiscais emitidas na sua comercialização.
4. Sustenta que a exigência fiscal que determina o estorno desse crédito
importa em violação ao princípio da não-cumulatividade de que trata o art. 155,
§ 2º, I, da Constituição Federal.
5. Alega que a filial da cidade do Rio de Janeiro foi autuada por infringência ao disposto no art. 37 da Lei estadual 1.423/89, que, ressalvando qualquer
determinação em contrário, manda que se anule o crédito fiscal quando o contribuinte praticar “operação ou prestação subseqüente beneficiada por isenção
ou não-incidência”.
6. Segundo preconiza, essa disposição (Lei 1.423/89, art. 37) não se aplica
ao caso em exame. Primeiramente, pelo fato de que a norma inferior não pode
sobrepor-se ao que determina a Constituição Federal; segundo, porque não se
trata de operação de circulação que envolva obrigatoriamente ato de comércio,
tendo em vista que a saída da mercadoria do estabelecimento de São Cristóvão
deu-se a título de transferência para a filial de Duque de Caxias, sem participação de outras empresas nessa movimentação.
R.T.J. — 208
793
7. O juízo de primeira instância (fls. 76/81), considerando legal o auto de
infração, julgou improcedente a ação. Interposta apelação (fls. 83/93), a Quinta
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou provimento ao recurso, em acórdão assim ementado:
Ementa: ação anulatória de autuação fiscal. O procedimento adotado, de
creditar-se de todo o imposto incidente sobre a entrada de mercadoria, cuja saída
não está sujeita a ICMS, sem o respectivo estorno, gera indevido crédito, a justificar a lavratura do Auto de Infração – Arts. 155, parágrafo 2º, II, b, da Constituição
Federal, Artigo 6º da Resolução 1.578/89 – Lei estadual 1.423/89, e Convênio
ICMS 66/88. Improcedência da ação. Recurso Desprovido.
(Fl. 122.)
8. Do voto condutor desse julgamento, extraem-se os seguintes fundamentos:
(...) Efetivamente a decisão recorrida não está a merecer qualquer reforma,
pois sua fundamentação é juridicamente perfeita, em consonância com as razões
ofertadas pelo Apelado e, especialmente, pelos doutos pronunciamentos dos representantes do Ministério Público, que oficiaram nas duas Instâncias.
O Dr. José Antonio Leal, fl. 74, ao concluir seu parecer, analisou a questão
com precisão e afirmou:
“A resolução nº 1.578 exclui da incidência do ICMS as operações
internas com óleo lubrificante básico, determinando o recolhimento do imposto pelo fabricante do produto acabado e, tão só na sua saída (conforme
art. 6º do supramencionado Diploma Legal). Vê-se, pois, que os revendedores desses lubrificantes não recolhem ICMS. Há mesmo uma substituição
tributária, pois o fabricante substitui o contribuinte como sujeito passivo
principal da obrigação.
No Regime mencionado, não é o contribuinte substituído, mas o substituto, responsável e obrigado direto perante o erário a satisfazer o crédito
tributário. Sobre tal fato estipula o art. 155, § 2º, XII, b, da Carta Magna de
1988. Ora, o auto de infração está escorreito, não havendo qualquer erro de
ilegalidade.
É de se acentuar, ainda, em aditamento que o art. 22, do Convênio
66/88 considera como autônomo cada estabelecimento ainda que as atividades sejam integradas e desenvolvidas no mesmo local, pela mesma pessoa
jurídica.”
O que ocorreu, na espécie, originando o auto de infração é que o procedimento adotado pela Autora, ora Apelante, lhe gerou um indevido crédito, pois,
creditou-se de todo o imposto incidente sobre a entrada de mercadoria, cuja saída
não está sujeita ao ICMS.
O art. 38, inciso II, do Livro I, do Regulamento do Imposto de Circulação
de Mercadorias, Decreto 8.050, de 3 de abril de 1985, em vigor por força do art. 80
da Lei nº 1.423/89, veda a utilização de crédito na entrada de mercadoria cuja saída
por qualquer razão, esteja desonerada do imposto.
Há que se acentuar, ainda, em desabono à tese da Apelante, que o art. 37, I,
da Lei 1.423/89, estabelece que:
“Salvo determinação em contrário da legislação, ocorre a anulação
do crédito, quando:
794
R.T.J. — 208
I – a operação ou prestação subseqüente for beneficiada por isenção
ou não incidência.”
Inexistindo qualquer lesão para a Apelante, ou violação ao princípio da nãocumulatividade, quando é impedida de creditar-se do imposto incidente sobre a mercadoria, posteriormente dispensada do pagamento do imposto, e que por isso não
gera qualquer débito, qualquer ônus, a ser compensado com o crédito da entrada,
tudo com fundamento no art. 155, parágrafo 2º, inciso II, letra b, da Constituição
Federal e art. 39, inciso I, 3, do Livro I, do Regulamento do Imposto sobre Circulação
de Mercadorias do Estado do Rio de Janeiro, impunha-se a improcedência da ação.
(Fls. 123/4.)
9. Por admitir que o acórdão foi omisso quanto ao tema pertinente à nãocumulatividade tributária, a empresa opôs embargos de declaração, que não
foram acolhidos (fls. 126/130). Inconformada, interpõe o presente recurso extraordinário no qual alega ofensa ao princípio da não-cumulatividade do ICMS
(CF, art. 155, § 2º, I). Após repisar os fatos e fundamentos apresentados na peça
inaugural, impugna a decisão recorrida na parte em que considerou válida a
aplicação do art. 37 da Lei estadual 1.423/89 à hipótese dos autos.
10. Sustenta, ainda, que a operação de transferência da mercadoria beneficiada da filial de São Cristóvão para a de Duque de Caxias não gera crédito
no estabelecimento destinatário, na forma do art. 6º da Resolução 1.578/89, segundo o qual a circulação de óleo lubrificante básico dentro do Estado ocorrerá
sem tributação até o momento da venda ao revendedor ou atacadista.
11. Entende que, tratando-se de operações distintas, parcialmente tributadas em diferentes estabelecimentos da mesma empresa, se efetuasse o estorno
do crédito do ICMS, acabaria arcando com os ônus integrais do imposto pago na
aquisição da matéria-prima pela filial de São Cristóvão, além de responder pelo
débito decorrente da operação posterior.
12. Ilustra o seu raciocínio com dados numéricos (fls. 5 e 89) que diz evidenciar violação ao princípio da não-cumulatividade, pouco importando a autonomia dos estabelecimentos definida no art. 22 do Convênio ICMS 66/88, já que
as operações realizadas pelas suas filiais fogem à regra geral dessa ficção legal.
13. De outro modo, afirma que a regra da autonomia dos estabelecimentos
seria aplicável somente se lhe fosse possível debitar-se pelas saídas dadas em
transferência e apropriar-se dos créditos pelas entradas.
14. Finalmente, aduz que a decisão impugnada, ao julgar válida a aplicação da Lei estadual 1.423/89, não logrou distinguir o diferimento da isenção e da
não-incidência, porquanto na espécie ocorreu tão-somente suspensão provisória
da incidência do tributo.
15. Como demonstrado, a empresa recorrente, fabricante de óleo lubrificante básico, possui dois estabelecimentos, um em São Cristóvão, na Capital,
e outro no Município de Duque de Caxias, os quais visam integralizar o processo industrial. A filial de São Cristóvão adquire matéria-prima tributada e a
beneficia através do sistema de mistura. Concluída essa fase, remete o produto
R.T.J. — 208
795
semi-acabado para a filial de Duque de Caxias, por meio de simples guia de
transferência. Esse estabelecimento prepara o produto final e procede a sua
venda, que dentro do Estado sofre a incidência do ICMS.
16. É fato incontroverso que a transferência da mercadoria do estabelecimento situado em São Cristóvão para a filial de Duque de Caxias desonera a
incidência do ICMS. Tanto a Autora quanto o Estado do Rio de Janeiro estão de
acordo com essa assertiva.
17. Com efeito, na hipótese de ocorrência do fato gerador do ICMS – saída
da mercadoria do estabelecimento comercial – a reserva legal não pode estar
dissociada da norma constitucional que vincula o imposto à sua circulação.
Disso resulta que o tributo não incide sobre toda e qualquer operação de saída,
senão sobre aquela em que se verifica transmissão de posse ou propriedade. É
de ver-se que, no ponto, o termo operação guarda o seu significado semântico
na acepção de ato mercantil; o vocábulo circulação é empregado no sentido
jurídico de mudança de titularidade e não de simples movimentação física do
bem, e à expressão mercadoria atribui-se a designação genérica de coisa móvel
que possa ser objeto de comércio por quem exerce mercancia com freqüência e
habitualidade.
18. Impende explicitar que a Carta Federal conceitua a hipótese de incidência do ICMS sobre a circulação de mercadoria em si mesma considerada,
sendo que a utilização da expressão operação traduz o real objetivo da norma
constitucional em concebê-la como o movimento de mercadorias relativo aos
negócios jurídicos acerca de sua titularidade. Assim, enquanto se realiza o ciclo produtivo, com a participação de estabelecimentos de uma mesma unidade
econômica, em geral da própria empresa jurídica, não há que falar em operação
de circulação de mercadoria, de conformidade com a jurisprudência desta Corte
(Rp 1.181/PA, RTJ 113/28; AI 131.941-AgR, RTJ 136/414; RE 100.892, DJU de
31-5-85; RE 113.090, RTJ 121/1.271, entre outros julgados).
19. No caso dos autos, não ocorreu circulação de mercadoria com mu­
dança de titularidade, daí a impossibilidade de ser tributada a transferência,
para a filial de Duque de Caxias, da matéria-prima beneficiada pela filial de São
Cristóvão, visto que essa movimentação física não configura hipótese de incidência do tributo. Tratando-se de simples operação de transferência, não pode a
Recorrente valer-se do princípio da não-cumulatividade.
20. Por conseqüência, não se pode afirmar que a filial da cidade do Rio de
Janeiro é substituta tributária daquela instalada em Duque de Caxias. Na substituição tributária o legislador sub-roga o substituto no contribuinte originário,
no dizer de Zelmo Denari (Curso de Direito Tributário. 3. ed. Forense, p. 206).
21. Note-se que a circunstância de as filiais da Recorrente possuírem inscrições próprias perante o fisco estadual e federal e de o Convênio ICMS 66/88,
que tem força de lei complementar (ADCT-CF/88, art. 34, § 8º), considerar
autônomo cada estabelecimento produtor do mesmo contribuinte, ainda que
integradas suas atividades, não quer dizer que são tributáveis as operações de
796
R.T.J. — 208
transferência de mercadorias de uma filial para outra. Por sua vez, a Resolução
1.578/89, em seu art. 6º, expressamente exclui da incidência do imposto as
movimentações internas com óleo lubrificante básico, determinando que o recolhimento do tributo se faça pelo fabricante do produto final, na sua saída do
estabelecimento, o que está em consonância com o referido Convênio. Logo,
contribuinte do imposto é a unidade industrial que promove a saída da mercadoria com mudança de titularidade e não aquela filial que apenas processou parte
do produto.
22. Na espécie, segundo demonstrou a Recorrente, o estabelecimento de
São Cristóvão apropria-se dos créditos oriundos da aquisição de matéria-prima
tributada e o de Duque de Caxias lança em sua escrituração contábil os débitos
destacados nas notas fiscais de venda da mercadoria. Instaura-se, assim, a anomalia: a filial de São Cristóvão credita-se do imposto pago na compra de mercadoria, que, após beneficiada em parte, é levada para a de Duque de Caxias. Esta,
por sua vez, debita-se na totalidade do ICMS lançado nas notas fiscais de venda
do produto acabado, sem que tenha feito o lançamento do crédito da primeira
operação.
23. Para sanar a irregularidade quanto à acumulação de créditos e à contabilização de débitos de mercadoria que não deu entrada no estabelecimento,
o crédito lançado pela filial de São Cristóvão deveria ser transferido para a de
Duque de Caxias, que, ao vender a mercadoria ao revendedor ou comerciante
atacadista, tornar-se-ia responsável perante o fisco pelo recolhimento do tributo.
24. Dispõe o art. 155, § 2º, inciso I, da Constituição Federal que o ICMS
“será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação
relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante
cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.”
25. Ora, o estabelecimento de Duque de Caxias, que conclui a elaboração
do produto industrial e procede a sua venda, lança em sua escrituração contábil
débitos do ICMS. Contudo, se não se aproveitar dos créditos lançados pela filial
de São Cristóvão por ocasião da compra da matéria-prima, não poderá realizar
a compensação de que trata o inciso I do § 2º do art. 155 da Carta Federal, pelo
confronto dos débitos com os créditos, dado inexistir operação de circulação na
hipótese de simples transferência de mercadoria entre filiais da mesma pessoa
jurídica.
26. Destacou o voto do eminente Relator que, “no caso, o valor devido
por uma operação com insumos é recolhido, ‘englobadamente’, com o imposto
exigível na operação de saída do produto acabado, pelo outro contribuinte (subseqüente). Não há nenhuma isenção, nem não-incidência. Há postergação da
exigibilidade do tributo, com substituição. Não se pode invocar, como fez o
acórdão, a regra constitucional (art. 155, § 2º, II, b), para considerar legítima a
determinação de estorno do crédito. Todos os créditos decorrentes de insumos
adquiridos durante o processo de produção geram direito a abatimento do valor
do imposto devido pela venda final. Caso contrário, lesar-se-ia o direito constitucional ao abatimento e produzir-se-ia cumulação proibida”.
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797
27. É de ver-se, portanto, que aqui não se trata de diferimento, tampouco
de isenção ou não-incidência do tributo. O diferimento do imposto pressupõe
entrada de mercadoria tributada com saída isenta, mas, no caso em exame, a
saída da mercadoria da filial de São Cristóvão para a de Duque de Caxias, por
simples transferência, não configura hipótese de incidência do ICMS; também
não se cuida de isenção pela transferência de produtos não acabados entre as
filiais de uma mesma empresa, porque a dispensa do pagamento do tributo presume a ocorrência de fato gerador. Por outro lado, a não-incidência qualificada
ou especial (imunidade) constitui supressão da competência impositiva do poder de tributar expresso na Carta Federal. Todavia, verifica-se nos autos simples
operação de remessa de mercadoria entre filiais, o que não se constitui hipótese
de incidência do ICMS. Em conseqüência, entendo, data venia, que não há diferimento com a “postergação da exigibilidade do tributo, com substituição”,
porque a substituição tributária, quer para frente ou para trás, e o diferimento
somente poderiam acontecer se a operação fosse tributável.
28. O diferimento, como é notório, “é ato pelo qual o poder público posterga para o futuro o lançamento do ‘tributo’ que deveria ser levado a termo anteriormente. Não é favor fiscal que reduza ou elimine, direta ou indiretamente,
o respectivo ônus. É procedimento que a administração tributária faz por conveniência própria, não por favorecimento ao contribuinte” (RE 112.098/SP, Néri
da Silveira, RTJ 137/1323). Desse modo, sendo postergação do lançamento do
tributo devido, “o diferimento não se confunde com a isenção ou a imunidade,
já que nele a obrigação tributária surge desde logo, ao realizar-se a operação de
circulação de mercadoria. O que não se perfaz, desde logo, é sua exigibilidade,
transferida para outra ocasião” (RE 112.098/SP, RTJ 137/1327). Como ressaltado
pelo Ministro Aldir Passarinho no RE 96.372/MG (RTJ 113/1162), “sequer é
possível dizer-se que o diferimento onera aquele que industrializa o produto, se
é certo que o ônus tributário é, de fato, transferido ao consumidor”.
29. Tem-se, por isso, que a técnica do diferimento pressupõe, sempre, a
ocorrência do fato gerador do tributo, por cuidar-se de postergação do seu
lançamento. No caso, tratando-se de simples transferência de produtos entre
filiais de uma mesma empresa, não ocorre o diferimento do tributo, posto não
ter havido circulação de mercadoria. Vale ressaltar que “o instituto do diferimento (...) apenas transfere para momento posterior o recolhimento relativo a
imposto cujo fato gerador já ocorreu” (RE 102.354-6, Aldir Passarinho, DJ
de 23-11-84).
30. Afastadas essas premissas, concluo que a recorrente Texaco S.A. não
tem direito à manutenção dos créditos lançados pelo estabelecimento situado
na cidade do Rio de Janeiro. Primeiro, porque a filial de São Cristóvão não terá
como lançar os débitos em sua escrituração contábil, possibilitando, assim, a
concretização do princípio da não-cumulatividade do ICMS, tendo em vista que
a operação subseqüente – circulação da mercadoria – foi efetivada pelo estabelecimento de Duque de Caxias, que pôs à venda o produto acabado; depois, porque
798
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como salientado pelo Relator, “o valor devido por uma operação com insumos é
recolhido, ‘englobadamente’, com o imposto exigível na operação de saída do
produto acabado, pelo outro contribuinte (subseqüente)”, o que vem demonstrar
que os créditos lançados pela filial de São Cristóvão deveriam ter sido transferidos juntamente com o produto inacabado à de Duque de Caxias, responsável
tributário perante o fisco estadual, para que, na operação subseqüente, fizesse
jus aos benefícios da não-cumulatividade do imposto.
31. Assim sendo, não vislumbro na espécie que tenha havido isenção,
não-incidência (imunidade) ou diferimento e, por não se tratar de hipótese
de incidência do ICMS a simples transferência de produtos entre filiais de
uma mesma empresa, não há que falar em substituição tributária a justificar a
manutenção do crédito lançado pela filial de São Cristóvão por ocasião da aquisição dos insumos.
32. É correto que o art. 155, § 2º, inciso I, da Constituição Federal garante
que o ICMS “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada
operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o
montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito
Federal”.
33. De fato, segundo tal preceito, a Recorrente teria direito de compensar, na saída do produto acabado dentro do Estado do Rio de Janeiro, os
créditos lançados em sua contabilidade por ocasião da aquisição dos insumos
tributados.
34. Negar-lhe esse direito seria violar a norma constitucional. Dá-se,
entretanto, que esse princípio tributário teria de ser realizado pela filial de
Duque de Caxias, responsável pelo recolhimento do tributo na venda da
mercadoria ali finalmente industrializada (operação subseqüente), mediante
aproveitamento do crédito adquirido pelo estabelecimento de São Cristóvão,
por ocasião da aquisição dos insumos para o processo de industrialização da
primeira etapa.
35. Exatamente por isso, entendo não ser possível a manutenção dos créditos lançados pela filial de Cristóvão: a primeira operação (aquisição de insumos) foi tributada; sobre a segunda, realizada em Duque de Caxias (venda dos
produtos acabados no Estado do Rio de Janeiro), incide o ICMS e é nessa última
operação que se faz a compensação com o montante cobrado na anterior, o que
não se concretizou.
36. O objeto do recurso extraordinário, entretanto, funda-se na simples
transferência do produto entre as filiais, fato jurídico do qual não decorre o fenômeno da circulação de mercadoria, no sentido técnico-jurídico-tributário, como
já por demais foi dito.
Ante essas circunstâncias, com a vênia do Ministro Nelson Jobim, não conheço do recurso extraordinário.
R.T.J. — 208
799
DEBATE
O Sr. Ministro Maurício Corrêa: Senhor Presidente, com relação ao dito da
tribuna, que haverá um desequilíbrio, pois as outras empresas que comercializam no mesmo setor já gozam desse benefício, no memorial, encaminhado pelo
Estado do Rio de Janeiro – e, presumo, foi entregue para todos os eminentes Srs.
Ministros –, está claro que essa afirmação não é verdadeira, data venia. Então,
entre uma afirmação e outra, prefiro não optar, até segunda ordem.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): É irrelevante esse fato.
O Sr. Ministro Maurício Corrêa: Eu sei, mas estou me referindo ao dito da
tribuna. A afirmação que extraio disso...
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Não é matéria dos autos.
O Sr. Ministro Maurício Corrêa: Não, mas eu mesmo estou reconhecendo
isso. Foi afirmado da tribuna, por um lado, e o outro contestou. É isso que estou
dizendo. Agora, se um juízo de natureza meramente especulativa fizer esse reconhecimento, aí, sim, haverá, no meu modo de entender, um grande prejuízo
ao Estado.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): V. Exa. entende, então, ser a operação São Cristóvão/Duque de Caxias física? Ora, se é uma operação física, não é
nem hipótese de isenção, nem de incidência, porque não existe fato gerador. Só
se pode falar em isenção ou não-incidência se houver fato gerador. Não havendo,
não há que se falar no motivo do cancelamento do crédito.
O Sr. Ministro Maurício Corrêa: Ministro Nelson Jobim, não existe circulação de mercadoria entre uma filial e outra.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Eu sei disso.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Os dois, então, chegam à mesma conclusão.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Claro, é lógico. Ou seja, os dois
fundamentos dão na mesma. Na Turma, dei este fundamento também: mesmo
que se entendesse essa operação entre São Cristóvão e Duque de Caxias como
de circulação física da mercadoria não-econômica, mais uma razão para assegurar o crédito, porque serão mantidos. Agora, manter isso seria impossível. A
diferença fundamental é: aquelas com dois estabelecimentos, onde um produz
a primeira parte e o outro a última, estes vão estar completamente diferentes
daquele que tiver um estabelecimento que produza tudo. Ou seja, a primeira
produz a segunda parte, porque esses, com um estabelecimento, vão ter aproveitamento do crédito, porque não haveria tal circulação física que, curiosamente,
estaria determinando o estorno dos créditos.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: O voto do eminente Ministro Maurício
Corrêa parece remeter à velha discussão “da cana própria”, de Alagoas e
Pernambuco, na qual o Tribunal acabou por concluir pela inexistência do fato
gerador.
800
R.T.J. — 208
O Sr. Alde Santos Júnior (Advogado): Senhor Presidente, peço a palavra
pelo Estado do Rio de Janeiro para esclarecimento de matéria de fato.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): O Sr. Ministro Relator concorda?
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Se for matéria de fato.
O Sr. Alde Santos Júnior (Advogado): É absolutamente matéria de fato. E
o faço com todo o respeito, eminente Ministro Relator. A questão é a seguinte:
saber precisamente o objeto da autuação.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Isso não é matéria de fato, é argumento em cima do objeto. Onde está o objeto da autuação?
O Sr. Alde Santos Júnior (Advogado): Na inicial, o objeto da autuação é
saber se efetivamente houve, no estabelecimento “a”, a compensação, a utilização, o aproveitamento do crédito ou se simplesmente a manutenção do crédito.
Parece-me que essa questão é determinante para a conseqüência.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Senhor Presidente, não é matéria
de fato.
O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Não é matéria fática, estritamente matéria fática.
O Sr. Ministro Maurício Corrêa: Mas, Ministro, parece proceder.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Não é matéria de fato, mas jurídica.
A leitura foi feita.
O Sr. Ministro Maurício Corrêa: Se foi remetido o crédito, a situação é
diferente.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Mas veja: por que não foi remetido
o crédito? Porque este auto de infração determinou o estorno do crédito.
O Sr. Ministro Maurício Corrêa: Mas o auto de infração não tem nada a ver.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): Está dito aqui: auto de infração,
contribuinte efetuou a operação, isenta a posterior.
O Sr. Ministro Maurício Corrêa: Para estornar os créditos feitos pela primeira filial. Não tem nada a ver uma coisa com outra, claro que não tem. Não
está dizendo aí que foi objeto de remessa para a filial de Duque de Caxias a importância “x”.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Relator): O objeto remetido é este: é o
estorno.
EXTRATO DA ATA
RE 199.147/RJ — Relator: Ministro Nelson Jobim. Recorrente: Texaco
Brasil S.A. – Produtos de Petróleo (Advogados: João Geraldo Piquet Carneiro
e outros e Luiz Felippe Jordão e outros). Recorrido: Estado do Rio de Janeiro
(Advogada: Maria das Gracas R. Pereira de Andrade).
R.T.J. — 208
801
Decisão: Após o voto do Ministro Nelson Jobim (Relator), conhecendo
e provendo o extraordinário, e do voto do Ministro Maurício Corrêa, não conhecendo do recurso, pediu vista o Ministro Carlos Velloso. Falaram, pela
Recorrente, Texaco Brasil S.A. – Produtos de Petróleo, o Dr. João Geraldo
Piquet Carneiro, e, pelo Recorrido, Estado do Rio de Janeiro, o Dr. Alde Santos
Júnior, Procurador do Estado. Ausente, justificadamente, porque em representação do Tribunal, o Ministro Moreira Alves.
Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros
Néri da Silveira, Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos
Velloso, Ilmar Galvão, Maurício Corrêa, Nelson Jobim e Ellen Gracie. Pro­
curador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro.
Brasília, 13 de setembro de 2001 — Luiz Tomimatsu, Coordenador.
VOTO
(Vista)
O Sr. Ministro Carlos Velloso: A Recorrente, Texaco Brasil S.A., possui
dois estabelecimentos no Estado do Rio de Janeiro: um na cidade do Rio de
Janeiro, no Bairro de São Cristóvão, outro em Duque de Caxias, que “conjugados, se destinam (...) à integralização das operações de industrialização de seu
produto final”.
Está no relatório do eminente Ministro Jobim, Relator:
(1) a Recorrente adquire, para o estabelecimento de São Cristóvão, alguns
insumos (aditivos e óleos básicos) “(...) e os beneficia através de sistema de mistura” (fl. 3, item 5, a);
(2) “o estabelecimento de São Cristóvão, uma vez terminada a primeira
parte da operação, remete o produto obtido, que é ainda insumo, para Duque de
Caxias, para fase complementar do processo industrial” (fl. 3, item 5, b);
(3) “o estabelecimento de Duque de Caxias adiciona novas matérias-primas,
obtendo (...) o óleo lubrificante, destinado à comercialização” (fl. 4, item 5, c).
1.2. Procedimento fiscal da Recorrente
Descrevo o procedimento fiscal da Recorrente:
(1) os insumos adquiridos pelo estabelecimento de São Cristóvão são tributados (fl. 4, item 6);
(2) as empresas vendedoras debitam-se do valor do ICMS;
(3) a Recorrente, pelo estabelecimento de São Cristóvão, “apropria-se dos
respectivos créditos”37 (fl. 4, item 6);
(4) o estabelecimento de São Cristóvão remete o insumo beneficiado para o
estabelecimento de Duque de Caxias.
A remessa é efetuada na forma denominada “transferência”38 , sem recolhimento de imposto (Notas fiscais de fls. 17 a 21).
37
Lança os créditos no Livro de Registro de Entradas, conforme lhe autoriza o Decreto estadual
8.050/85 (art. 33, Livro I). “(...) por virem com destaque do ICMS, a autora apropria-se dos respectivos créditos, lançando-os em seu livro de registro de entradas, conforme lhe autoriza o Decreto
estadual nº 8.050/85 (art. 33, Livro I)” [grifo da autora] (fl. 4).
38
Nota fiscal de fl. 17, item “nat. operação”, lê-se: “5.21 Trans. Prod. Estabelec.”.
802
R.T.J. — 208
(5) “o estabelecimento de Duque de Caxias, adiciona novas matérias-primas, (...) e produz o óleo lubrificante (fl. 4, item 5, c), que é vendido.
Pela vendas para o mercado interestadual, não há débito do ICMS.
Essa operação não está sujeita à incidência do imposto (CF, art. 155, § 2º,
39
X, b ).
Quando a venda é para o mercado interno – dentro do território do Estado
do Rio de Janeiro –, a Recorrente debita-se do ICMS devido pela operação.
Nessa operação interna, com incidência do ICMS, a Recorrente compensou-se dos créditos decorrentes das aquisições de insumos feitas pelo estabelecimento de São Cristóvão (ver n. 3, retro).
1.3. A conduta do Estado
A fiscalização estadual glosou essa conduta da Recorrente – manutenção
dos créditos em sua contabilidade (Auto de Infração de 4-6-92, fl. 11).
A Fiscalização entendeu que os créditos, oriundos da aquisição de insumos
pelo estabelecimento de São Cristóvão, deveriam ser estornados.
O Estado não admitiu que a Recorrente mantivesse esses créditos para utilização nas operações subseqüentes.
Determinou o estorno.
Leio, no auto de infração, referindo-se à remessa do insumo produzido pelo estabelecimento de São Cristóvão para o estabelecimento da cidade de Duque de Caxias:
“(...) As saídas do produto resultante da industrialização foram efetuadas sem débito do imposto com amparo do procedimento estabelecido
no art. 6º da Res. 1578 de 01/03/89. O contribuinte não efetuou o estorno do
crédito, apropriado por ocasião da entrada correspondente e a mercadoria
empregada na industrialização. (...)”
(Fl. 11.)
2. A ação
2.1. A inicial
Em face disso, a Recorrente ajuizou ação anulatória de débito fiscal (29-992, fl. 2).
Sustentou violação ao
“princípio constitucional da não-cumulatividade [art. 155, § 2º]”
(Fl. 4.)
2.2. A contestação do Estado
O Estado contestou.
Alegou que o
“o procedimento adotado pela [Recorrente] lhe gerou um indevido
crédito, pois (...) creditou-se de todo o imposto incidente sobre a entrada da
mercadoria, cuja saída não está sujeita ao ICMS.”
(Fl. 26, item 1.2.)
Fundamentou-se na CF (art. 155, § 2º, II, a40).
39
“Art. 155. (...)
§ 2º (...)
X – não incidirá:
(...)
b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica.”
40
CF:
“Art. 155. (...)
(...)
§ 2º (...)
R.T.J. — 208
803
2.3. A sentença e o acórdão
A sentença julgou improcedente a ação.
O Tribunal a manteve.
Leio, no acórdão:
“o procedimento adotado pela (...) [Recorrente] lhe gerou um indevido crédito, pois se creditou de todo o imposto incidente sobre a entrada de
mercadoria, cuja saída não está sujeita ao ICMS (...)
Inexistindo qualquer lesão para a Apelante, ou violação ao princípio da não-cumulatividade, quando é impedida de creditar-se do imposto
incidente sobre a mercadoria, posteriormente dispensada do pagamento
do imposto, e que por isso não gera qualquer débito, qualquer ônus, a ser
compensado com o crédito de entrada, tudo com fundamento no art. 155,
Parágrafo 2º, Inciso II, letra b, da Constituição Federal (...)”
(Fl. 124.)
2.4. Embargos declaratórios
A Recorrente embargou porque a ementa do acórdão não mencionou o inciso I, § 2º do art. 155 (fl. 127).
Pretendeu assegurar o prequestionamento da matéria, cuja alegação já se
encontrava na inicial (fl. 4).
Os embargos foram rejeitados.
Disse o acórdão que a violação ao referido dispositivo foi apreciada pela
sentença (fl. 80, § 2º) e ele – acórdão – adotou-a “como razões de decidir” (fl. 130).
2.5. Recurso extraordinário
A Recorrente fundamenta o extraordinário nas alíneas a e c, do inciso III
do art. 102 da CF.
Sustenta:
“(a) contrariedade ao art. 155, § 2º, I (princípio constitucional da nãocumulatividade do ICMS (fls. 135/6); e
(b) julgamento de validade da lei estadual 1.423/89 em face da CF”
(Fl. 136.)
(...).
II
O eminente Relator, Ministro Nelson Jobim, deixou expresso que o recurso extraordinário poderia ser admitido pela alínea a.
Registrou, conforme foi dito, que a Recorrente tem dois estabelecimentos
no Estado do Rio: um, na cidade do Rio de Janeiro, no Bairro de São Cristóvão;
outro, em Duque de Caxias. O estabelecimento de São Cristóvão adquire insumos de terceiros, que recolhem ICMS. A Recorrente se credita do valor no
estabelecimento de São Cristóvão, onde o produto é beneficiado. Remete, em
seguida, “por transferência”, para a filial de Duque de Caxias, o produto beneficiado. A filial de Duque de Caxias produz, então, o óleo lubrificante e o vende
para o mercado interno do Estado do Rio de Janeiro, com pagamento de ICMS.
(...)
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações
seguintes.
(...)”
804
R.T.J. — 208
Indaga-se: é constitucional que a Recorrente seja obrigada a cancelar os
créditos, no estabelecimento de São Cristóvão, oriundos das aquisições de insumos, porque, na “transferência” do óleo básico para o estabelecimento de Duque
de Caxias, o ICMS dessa operação é cobrado “englobadamente” nas operações
de Duque de Caxias com terceiros? Ou seria constitucional que a Recorrente
fosse obrigada, pelas vendas feitas pelo estabelecimento de Duque de Caxias, a
cancelar os créditos oriundos das operações de compra de insumos pelo estabelecimento de São Cristóvão tendo em vista a operação deste com o estabelecimento de Duque de Caxias? Ou, noutras palavras: é constitucional inviabilizar
que a Recorrente mantenha e não abata, do valor do ICMS devido pela venda do
produto final, os créditos decorrentes das operações da filial de São Cristóvão
quando da aquisição de insumos?
O eminente Relator concluiu por conhecer do recurso e dar-lhe provimento.
III
O eminente Ministro Maurício Corrêa divergiu, não conhecendo do recurso. Na técnica atual, conheceu do recurso e negou-lhe provimento. S. Exa.,
entendendo que não se tem, na transferência do produto do estabelecimento do
Rio de Janeiro para o estabelecimento de Duque de Caxias, hipótese de incidência do ICMS, mas simples transferência de produtos entre filiais de uma mesma
empresa, concluiu que “não se pode falar em substituição tributária a justificar
a manutenção do crédito lançado pela filial de São Cristóvão/RJ por ocasião da
aquisição dos insumos.”
Acrescentou:
32. É correto que o artigo 155, § 2º, inciso I, da Constituição Federal, garante que o ICMS “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em
cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com
o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito
Federal”. Desse modo, a Recorrente tem direito de compensar, na saída do
produto acabado dentro do Estado do Rio de Janeiro, os créditos lançados
em sua contabilidade por ocasião da aquisição dos insumos tributados. Negar
esse direito seria descumprir a norma constitucional. Dá-se, entretanto, que
esse princípio tributário há que ser cumprido por sua filial de Duque de Caxias,
responsável pelo recolhimento do tributo perante o fisco pela venda da mercadoria
ali finalmente industrializada (operação subseqüente), mediante aproveitamento
do crédito adquirido pelo estabelecimento de São Cristóvão, por ocasião da aquisição dos insumos. Por essa razão, entendo não ser possível a manutenção dos
créditos lançados pela filial da Texaco situada em São Cristóvão/RJ: a primeira
operação (aquisição de insumos) foi tributada; sobre a segunda realizada em
Duque de Caxias (venda dos produtos acabados no Estado do Rio de Janeiro) incide o ICMS e é nessa última operação que se faz a compensação com o montante
cobrado na anterior. No entanto, o objeto do recurso extraordinário é a simples
transferência do produto entre as filiais, fato jurídico do qual não decorre o fenômeno da circulação de mercadoria, no sentido técnico-jurídico-tributário, como já
por demais foi dito, capaz de gerar direito a crédito fiscal.
R.T.J. — 208
805
Ante essas circunstâncias, com a vênia do Ministro Nelson Jobim, não conheço do recurso extraordinário.
Pedi vista dos autos e os trago, a fim de prosseguirmos no julgamento do
recurso.
Passo a votar.
IV
A questão exige, por primeiro, a fixação de duas premissas. Encaminho a
discussão para fixação da primeira: o ICMS submete-se a um estatuto constitucional: CF, art. 155, II, § 2º, incisos I a XII, § 3º, § 4º e § 5º. Ressai desse estatuto constitucional do ICMS a competência conferida aos Estados e ao Distrito
Federal para instituir esse tributo, certo que na Constituição, de modo rígido,
estão as normas básicas a que essas entidades políticas estão submetidas. A
principal delas é a que diz respeito à hipótese de incidência ou fato gerador do
imposto, inscrita no inciso II do art. 155 da Constituição: “operações relativas à
circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”. É dizer, a materialidade da hipótese de incidência
há de conter “operações” mercantis, operações relativas à circulação de merca­
dorias. Leciona Roque Carrazza: “A regra-matriz do ICMS sobre as operações
mercantis encontra-se nas seguintes partes do art. 155, II, da Constituição Fe­
deral: ‘Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre (...)
operações relativas à circulação de mercadorias (...) ainda que as operações se
iniciem no exterior’”. E acrescenta:
Este tributo, como vemos, incide sobre a realização de operações relativas
à circulação de mercadorias. A lei que veicular sua hipótese de incidência só será
válida se descrever uma operação relativa à circulação de mercadorias.
E conclui Carrazza que essa “circulação só pode ser jurídica (e, não, meramente física). A circulação pressupõe a transferência (de uma pessoa para outra)
da posse ou da propriedade da mercadoria. Sem mudança da titularidade da mercadoria, não há falar em tributação por meio de ICMS. Esta idéia, abonada pela
melhor doutrina (Souto Maior Borges, Geraldo Ataliba, Paulo de Barros Carvalho,
Cléber Giardino, etc.), encontrou ressonância no próprio Supremo Tribunal
Federal”. (CARRAZZA, Roque Antônio. ICMS. 8. ed. SP: Malheiros, 2002. p. 32).
Compreende a hipótese de incidência ou fato gerador do ICMS, portanto,
operações em torno de mercadorias e não sobre a mera circulação destas. A operação implica mudança da titularidade da mercadoria em razão de um negócio
jurídico, negócio jurídico esse que antecede ao fenômeno da circulação. É dizer,
a circulação é conseqüência de um negócio jurídico que faz com que a mercadoria mude de dono e por isso circule de um dono para outro. Anota Betina Treiger
Grupenmacher: “para que haja incidência do ICMS deve haver ‘circulação’ na
acepção jurídica do termo, ou seja, deve haver mudança de titularidade; não
806
R.T.J. — 208
basta a operação, impõe-se também que ocorra a circulação de mercadoria”,
que importa mudar de dono. (“Incidência do ICMS nas Transferências de Bens
entre Estabelecimentos de Empresas do mesmo Grupo”, Rev. Dialética de Dir.
Tributário, 10/54).
A lição da Profª. Betina é, na verdade, abonada por Geraldo Ataliba (“ICMS
na Constituição”, Rev. de Dir. Tributário, 57/90) e por Souto Maior Borges (Rev.
Forense, 250/122), além de Roque Carrazza, e demais autores mencionados linhas atrás.
V
No RE 74.852/SP, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, decidiu o Supremo Tri­
bunal Federal:
Imposto de Circulação de Mercadorias. Não incide sobre móveis e impressos, confeccionados por organização bancária, para uso próprio, quando remetidos a outros estabelecimentos da mesma pessoa jurídica. RE conhecido e provido.
(RTJ 64/538.)
No seu voto, o Ministro Trigueiro registra lição do Ministro Aliomar Bale­
eiro a dizer que é irrelevante, para a incidência do ICM, a natureza específica
da operação ou negócio jurídico, que dá causa à saída de mercadoria, que tanto
pode ser a venda ou a consignação como outro contrato ou ato jurídico. Todavia,
esclarece: “não pode ser, em nossa opinião, fato material ou físico: a simples
deslocação da mercadoria para fora do estabelecimento, permanecendo na propriedade e posse direta do contribuinte, seja para depósito, custódia, penhor,
comodato ou reparas. Se admitíssemos solução contrária, até o furto da mercadoria seria fato gerador do ICM (Direito Tributário, 4. ed. p. 202)” (RTJ 64/539).
Essa questão é pacífica, hoje, na jurisprudência do Supremo Tribunal Fe­
deral. Na Rp 1.181/PA, Rel. Min. Rafael Mayer, decidiu o Supremo Tribunal
Federal que “o simples deslocamento físico dos insumos destinados à composição do produto não constitui fato gerador do ICM”. (DJ de 8-11-84). No RE
100.892/MG, Rel. Min. Djaci Falcão, não foi outro o entendimento do Supremo
Tribunal Federal:
Ementa: I.C.M. Recolhimento por antecipação. Remessa de produtos,
mediante intermediação de filial ou agência comercial, para a Zona Franca de
Manaus, beneficiando-se a empresa da isenção conferida por lei. Da fábrica para o
estabelecimento comercial da mesma empresa, há mera transferência do produto
físico. Daí, entender o respeitável acórdão recorrido não ter cabimento o estorno
(cancelamento do crédito indevido).
Diante dessa colocação, não se configura negativa de vigência ao § 3º do
art. 3º, do Decreto-Lei 406/68.
Dissídio jurisprudencial não comprovado (Súmula 291).
Recurso não conhecido.
(DJ de 31-5-95.)
No mesmo sentido: RE 113.090/PB, Rel. Min. Djaci Falcão:
R.T.J. — 208
807
ICM. Não constitui fato gerador do ICM o deslocamento da cana própria
do estabelecimento produtor para o industrial da mesma empresa, por não haver,
no caso, circulação econômica e jurídica, mas tão-somente física. Precedentes do
STF. Rp 1.181, Rel. Min. Rafael Mayer; Rp 1.292, Rel. Min. Francisco Rezek; e Rp
1.135, Rel. Min. Oscar Corrêa. Recurso extraordinário não conhecido.
(RTJ 121/1271.)
Mais recentemente, no julgamento do AI 131.941-AgR/SP, Rel. Min.
Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal ratificou o entendimento (RTJ
136/414).
VI
Assim posta a questão, a primeira premissa a ser fixada, no caso sob julgamento, é esta: a transferência do produto inacabado do estabelecimento de
São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro, para o estabelecimento de Duque de
Caxias, no mesmo Estado, não constitui hipótese de incidência do ICMS.
VII
Segue-se a segunda premissa: quando o estabelecimento de Duque de
Caxias vende o produto acabado no mercado localizado no território do Estado
do Rio de Janeiro, esta operação está sujeita ao ICMS. Todavia, se essa mercadoria é vendida para o mercado interestadual, não há incidência do ICMS, na
forma do disposto no art. 155, § 2º, X, b, da Constituição Federal:
Art. 155. (...)
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
(...)
X – não incidirá:
a) (...)
b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica.
VIII
O que deseja a Texaco, ora Recorrente?
Sustentando ocorrer, na transferência do produto semi-acabado de seu
estabelecimento em São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro, para o seu estabelecimento de Duque de Caxias, diferimento do imposto, formula o seguinte
raciocínio:
1ª fase: O estabelecimento de São Cristóvão adquire insumos de terceiros
por 100. Os fornecedores pagam 18% de ICMS, portanto 18. São Cristóvão se
credita de 18.
2ª fase: O estabelecimento de São Cristóvão vende o produto parcialmente
acabado para o estabelecimento de Duque de Caxias. São Cristóvão se debita
do valor do ICMS, 18%, ou seja, 36. Duque de Caxias se credita desse valor, 36.
808
R.T.J. — 208
3ª fase: O estabelecimento de Duque de Caxias vende o óleo acabado para
revendedores pelo preço de 300. Debita-se de 18%, ou seja, 54.
Isso, entretanto, não poderia ocorrer. É que não há falar em diferimento do
imposto entre os dois estabelecimentos. O que ocorre, na transferência, é a nãoocorrência da hipótese de incidência do ICMS.
IX
O que poderia acontecer:
1ª fase: o estabelecimento de São Cristóvão adquire insumos por 100.
Fornecedores pagam 18% de ICMS, portanto, 18. São Cristóvão se credita de 18.
2ª fase: São Cristóvão transfere o produto parcialmente acabado para
Duque de Caxias. Não há incidência do ICMS, porque não ocorre a hipótese de
incidência deste. Duque de Caxias pode se creditar, apenas, de 18, vale dizer,
do crédito transferido pelo estabelecimento de São Cristóvão com o produto
semi-acabado.
3ª fase: Duque de Caxias vende o óleo para revendedores pelo preço de
300. Debita-se de 18%. Ou seja, 54.
No raciocínio da Recorrente, ou na primeira hipótese, pagaria Duque de
Caxias, no final, 54, mas teria um crédito de 36.
Na segunda hipótese, pagaria Duque de Caxias os mesmos 54, mas teria
um crédito de apenas 18, ou seja, o crédito transferido por São Cristóvão.
X
Correto, portanto, o entendimento do Ministro Maurício Corrêa quando
afirma que “não se pode dizer que a filial da cidade do Rio de Janeiro é substituta tributária daquela instalada em Duque de Caxias. Na substituição tributária o legislador sub-roga-se no substituto o contribuinte originário, no dizer de
Zelmo Denari (Curso de Direito Tributário, 3ª. ed. Forense. p. 206)”. No caso, o
contribuinte do imposto é, na verdade, o estabelecimento “que promove a saída
da mercadoria com mudança de titularidade e não aquela filial que apenas processou parte do produto”.
Acrescentou o Ministro Maurício Corrêa, ademais, que o “estabelecimento de São Cristóvão apropria-se dos créditos oriundos da aquisição de matéria-prima tributada e o de Duque de Caxias lança em sua escrituração contábil
os débitos destacados nas notas fiscais de venda da mercadoria. Instaura-se,
assim, a anomalia: a filial de São Cristóvão credita-se do imposto pago na compra de mercadoria, que, após beneficiada em parte, é levada para a de Duque de
Caxias. Essa, por sua vez, debita-se na totalidade do ICMS lançado nas notas
fiscais de venda do produto acabado, sem que tenha feito o lançamento do crédito da primeira operação”.
Certo é que, como retro falamos, o crédito escriturado pelo estabelecimento de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, deveria ser transferido para o
R.T.J. — 208
809
estabelecimento de Duque de Caxias. Este, ao vender o produto acabado, o óleo,
é o responsável pelo recolhimento do tributo. Nesse momento é que ocorrerá
a compensação inscrita no art. 155, § 2º, I, da CF, ocorrendo, pois, em tal momento, o fenômeno da não-cumulatividade. Isso porque, vale repetir, na transferência do produto semi-acabado de São Cristóvão para Duque de Caxias, não há
incidência do ICMS, dado inocorrer, com essa simples transferência, a hipótese
de incidência do tributo. Não há falar, por isso mesmo, em diferimento, porque
o diferimento pressupõe a ocorrência da hipótese de incidência do tributo, por
se tratar de postergação do seu lançamento.
Destarte, presente a primeira premissa mencionada – a transferência do
produto inacabado do estabelecimento de São Cristóvão, na cidade do Rio de
Janeiro, para o estabelecimento de Duque de Caxias, no mesmo Estado, não
constitui hipótese de incidência do ICMS – leva ao não-provimento do recurso
extraordinário.
XI
A segunda premissa – quando o estabelecimento de Duque de Caxias vende
o produto acabado no mercado interestadual, não há incidência do ICMS, na forma
do disposto no art. 155, § 2º, X, b, da Constituição – também implica conseqüência.
É que, nesta hipótese, caso de não-incidência, de imunidade tributária,
portanto, não haverá crédito para compensação com o montante devido nas
operações ou prestações seguintes (CF, art. 155, § 2º, II, a) e essa não-incidência
acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores (CF, art. 155,
§ 2º, II, b).
Ora, os insumos adquiridos pelo estabelecimento de São Cristóvão, na
cidade do Rio de Janeiro, serviram para preparar o produto a ser vendido tanto
no mercado localizado no Estado do Rio de Janeiro, quanto no mercado de outros Estados. O crédito, pois, de tais insumos somente poderia ser aproveitado
tratando-se do produto acabado vendido exclusivamente no mercado do Estado
do Rio de Janeiro. Todavia, não demonstrou a Texaco, Recorrente, quais os
créditos dos insumos utilizados num caso e noutro. Tem-se, pois, uma quaestio
facti que nem seria resolvida mediante o exame da prova, por isso que, ao que
tudo indica, essa separação jamais foi feita, tanto que nem mencionada pela
Recorrente.
A não-observância, entretanto, dessa circunstância fática inviabiliza a
pretensão da Autora recorrente, dado que, por força da citada cláusula constitucional – art. 155, § 2º, b – ter-se-ia a anulação do crédito relativo à operação
anterior, vale dizer, a operação realizada pelo estabelecimento de São Cristóvão,
quando adquiriu insumos que serviriam para o preparo de um produto que seria
vendido no mercado interno do Estado e no mercado interestadual.
Também por isso, o recurso extraordinário é de ser improvido.
810
R.T.J. — 208
XII
Do exposto, com a vênia do eminente Ministro Nelson Jobim, Relator,
conheço do recurso, mas lhe nego provimento, acompanhando o voto do não
menos eminente Ministro Maurício Corrêa.
DEBATE
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): Na condição de
Relator, o voto do Ministro Carlos Velloso é divergente, gostaria de lembrar
a estrutura e o núcleo da divergência com a posição assumida pelo Ministro
Velloso.
A questão básica é saber se há transferência, pois se trata de insumos produzidos em São Cristóvão, os quais são transferidos para Duque de Caxias, que
os industrializa, agrega valores a eles e os vende.
O Ministro Carlos Velloso – sustento que essa transferência não tem incidência.
Gostaria de observar que toda a jurisprudência, efetivamente referida pelo
Ministro Velloso, é anterior à Constituição de 1988.
O Ministro Carlos Velloso – Mas tem-se a situação jurídica da relatoria do
Ministro Marco Aurélio, já sob o pálio da CF/88.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): Essa é relativa à situação de 1967. A situação jurídica do Ministro Marco Aurélio, que é o Ag 131.941,
muito embora tenha sido julgada em 1991, envolvia evento ocorrido na vigência
de 67. Basta a leitura da ementa para se verificar essa situação.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ministro, neste ponto não houve alteração.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): É exatamente esse
ponto que quero examinar.
A Constituição Federal, até que fosse promulgada a lei complementar instituidora do ICMS, autorizou os Estados a celebrar convênio para a edição das
normas de regulamentação da matéria.
Os Estados, em 14 de dezembro de 88, celebraram o Convênio ICMS 66/88,
que instituiu o caso em exame como fato gerador do imposto. Leio:
“Art. 2º Ocorre o fato gerador do imposto:
VI – na saída de mercadoria do estabelecimento extrator, produtor ou gerador, para qualquer outro estabelecimento, de idêntica titularidade ou não, localizado na mesma área ou em área contínua ou diversa, destinada a consumo ou a
utilização em processo de tratamento ou de industrialização, ainda que as atividades sejam integradas;”
Ou seja, o convênio de dezembro de 88 dos Estados fez com que essa
transferência fosse tributável, ou seja, era fato gerador do imposto.
O Convênio previu, como base de cálculo, para o caso, o valor da operação
(art. 4º, III, fl. 52).
R.T.J. — 208
811
Além do mais, o Convênio considerou
“autônomo cada estabelecimento produtor (...) do mesmo contribuinte, ainda que as atividades sejam integradas e desenvolvidas no mesmo
local” (art. 22, fl. 53).
Essa é a razão pela qual os estabelecimentos de São Cristóvão e de Duque
de Caxias têm inscrição estadual própria e autônoma (ver lançamentos nas notas
fiscais de fls. 17 a 21).
Por isso, as operações entre os estabelecimentos de São Cristóvão e Duque
de Caxias foram definidas como tributáveis.
Por serem definidas como tributáveis, o Estado do Rio de Janeiro resolveu
(CTN, art. 128) atribuir ao “fabricante de lubrificante acabado” – estabelecimento de Duque de Caxias – a responsabilidade pelo imposto devido na operação
“com óleo lubrificante básico”, fabricado pelo estabelecimento de São Cristóvão
(Resolução 1.578/89, art. 6º, fl. 50).
Ou seja, estabelecendo a situação de que o responsável pelo pagamento do
tributo devido na transferência do insumo, do lubrificante básico para o estabelecimento produtor do lubrificante acabado, seria o estabelecimento, no caso, de
Duque de Caxias.
A remessa do insumo de São Cristóvão para Duque de Caxias era acompanhada pelas notas fiscais “em transferência” (fls. 17 a 21).
Como o imposto era cobrado, “englobadamente”, na operação subseqüente
com produto acabado – , as notas fiscais não fazem consignar o valor do ICM (fls.
17 a 21, ver último campo da direita).
A operação era tributável, mas se constituía em uma hipótese de substituição tributária.
Leio a Resolução 1.578/89, que tratou sobre o “ICMS relativo às operações
com petróleo”:
“Art. 6º O imposto correspondente às operações internas com óleo lubrificante básico será recolhido pelo fabricante de lubrificantes acabado, (...), englobadamente com o devido pela saída tributada deste último produto (...).”
(...)
Significa que São Cristóvão fazia o básico e enviava para Duque de Caxias,
que acabava o lubrificante. Na saída, o estabelecimento de Duque de Caxias vendia alguns para o mercado interno e outros para o mercado externo, ou seja, o
mercado interestadual. Nessa hipótese de venda para o mercado interestadual,
não tem incidência de imposto, porque o modelo é cobrança no destino e não na
origem, a diferença é fundamental.
Quero lembrar que a Lei Complementar 87/96, a que veio, depois, a substituir o convênio, previu da mesma forma.
Prevê a lei complementar:
Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que
para outro estabelecimento do mesmo titular;
812
R.T.J. — 208
A partir de 1988, o critério da transferência não foi o da jurídica, do domínio, como a doutrina vinha sustentando, mas, sim, a circulação física da
mercadoria, tanto é que ia para o mesmo estabelecimento, ou seja, “para outro
estabelecimento do mesmo titular” – art. 12, inciso I, da Lei Complementar
87/96 – Lei Kandir. Observem ainda que, para essa hipótese, o art. 11 dessa
mesma Lei estabelece esta linha de raciocínio, porque os define como estabelecimentos autônomos, ou seja, estabelecimentos porque o que vale é a circulação
física.
Pergunto:
Essa regra, tal como nela se contém, dispõe sobre isenção ou não-incidência
do tributo?
ou
Dispõe ela sobre a postergação da exigência do tributo pela operação com
produto básico para o momento da saída do produto acabado?
Faço uma paráfrase do texto da Resolução, para o caso:
“(Art. 6º) O imposto correspondente às operações (...) [entre os estabelecimentos de São Cristóvão e Duque de Caxias] será recolhido pelo
[estabelecimento de Duque de Caxias], englobadamente com o devido pela
saída [do produto acabado] (...).”
Há, na previsão legal, substituição tributária.
Aliás, a própria Resolução fala, em diversos momentos, em substituição
tributária:
“Art. 3º, parágrafo único;
Art. 4º, parágrafo único;
Art. 7º;
Art. 8º ” (Fl. 50.)
Esta circunstância está amplamente reconhecida na própria contestação do
Estado (fls. 27 a 30).
É a substituição “para trás”.
O imposto passa a ser exigível de contribuinte que participa da cadeia produtiva em momento posterior à ocorrência do fato gerador.
Este é o sentido da regra.
É a técnica do diferimento.
Leio Moreira Alves, no RE 111.427/SP:
“O diferimento nada mais é do que o adiamento da cobrança do imposto já devido. (...)”
(Voto em 26-8-98, RTJ 130/351.)
Observo que, no caso, não está a Recorrente pretendendo manter crédito
pela operação em que houve o diferimento.
Não há crédito porque não houve débito do tributo.
Repito.
Não está a Recorrente pretendendo crédito pela operação São Cristóvão –
Duque de Caxias.
O Recorrido, em Memorial, cita decisões que dizem respeito à pretensão de
crédito pela própria operação onde houve o diferimento.
Não é o caso dos autos.
Insisto.
O que a Recorrente pretende é o aproveitamento do crédito relativo à operação anterior à do diferimento, onde houve cobrança do imposto.
R.T.J. — 208
813
Quando São Cristóvão adquiriu insumos, os vendedores de insumos a
São Cristóvão recolheram o tributo, os quais debitaram-se do tributo e São
Cristóvão se creditou do tributo. Quando São Cristóvão enviou para Duque
de Caxias, a qual se creditou dos créditos anteriores que não foram abatidos
por São Cristóvão, porque o devido da operação seria pago englobadamente
lá adiante. O que o Recorrente pretende é o aproveitamento desses créditos
anteriores.
Está no próprio auto de infração em que foi autuado o estabelecimento de
São Cristóvão:
Relato: O contribuinte efetuou operações de entradas de mercadorias destinadas à revenda na mesma espécie e a emprego na industrialização, tendo feito
o aproveitamento integral dos respectivos créditos de imposto por ocasião de tais
entradas. As saídas do produto resultante da industrialização foram efetuadas
sem débito do imposto (...)
Quais são as saídas? A saída de São Cristóvão para Duque de Caxias. Eles
consideraram que não havia tributo e que tinha de cancelar o crédito, quando, na
verdade, o tributo seria pago na saída feita por Duque de Caxias. Esse é o ponto
fundamental do problema.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: V. Exa. me permite fazer uma indagação: a
base de incidência, considerada a saída do estabelecimento “B”, é total quanto
ao valor?
O Sr. Ministro Cezar Peluso: É o valor agregado.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): É o valor agregado,
todo ele, é o valor total. Aí, é aquela história. São Cristóvão vendeu para Duque
de Caxias, que vendeu para o mercado interno, incide sobre o todo.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Isso eu percebi. O estabelecimento do Mu­
nicípio do Rio de Janeiro – que, no caso, está em São Cristóvão – adquiriu o insumo, houve a incidência e ele se creditou. A saída do estabelecimento “A” para
o “B” envolve não isenção ou não incidência, mas diferimento.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): Não estou sustentando
isso, essa foi a nossa divergência.
O Ministro Carlos Velloso: Ministro, a nossa divergência está, em que
sustento a tese, com base na doutrina e na jurisprudência, de que não há
incidência.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não, Ministro, há a incidência, só que, por
um ato do Estado, o pagamento é global.
O Ministro Carlos Velloso: Ministro, não há incidência, a nossa divergência está nisto. Aliás, V. Exa. já decidiu nesse sentido, aqui. Sustento a tese de que
não mudou a situação com Constituição de 1967 e com a de 1988.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Pergunto – e já o fiz ao Ministro Nelson
Jobim – se a incidência, quanto à operação perpetrada pelo estabelecimento “B”,
814
R.T.J. — 208
ocorre considerado o valor total, incluindo, até mesmo, o preço do insumo. Se
é assim, cabe o creditamento, sob pena de se ter a satisfação do tributo, duplamente, sobre insumo.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): A nossa divergência
básica é essa: o Ministro Carlos Velloso entende que a transferência, a saída do
produto de São Cristóvão para Duque de Caxias não tem incidência.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ministro, se nessa operação final só houvesse o recolhimento sobre o valor acrescido no estabelecimento “B”, aí, claro,
não caberia o crédito.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): Não é o caso, porque o
nosso tributo não incide sobre o valor acrescido no sistema de crédito.
Ministro, vamos nos situar e o Senhor me corrija se não for isso. Entendo,
a teor da legislação estadual, do convênio, da própria resolução do Estado do
Rio de Janeiro que disciplina o insumo, inclusive a teor da Lei Complementar
87 – Lei Kandir, que estabelece ser essa transferência tributável. Essa é a nossa
divergência. O ponto básico, segundo argumento do Ministro Carlos Velloso, é
o que foi realizado pelo Estado do Rio de Janeiro, no auto de infração, foi o cancelamento de todos os créditos no estabelecimento São Cristóvão. O problema é
que os produtos que forem vendidos por Duque de Caxias e para fora do Estado,
neste o crédito desaparece, mas tem que ser mantido até que a operação seja demonstrada. É outro problema.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não está em discussão, porque a operação
é interna.
Agora, Ministro Carlos Velloso, veja como a situação não é de não-incidência. Eis o texto da norma da Resolução estadual 1.578:
Art. 6º O imposto correspondente às operações internas com óleo lubrificante básico será recolhido pelo fabricante de lubrificantes acabado, localizado no
Estado, englobadamente com o devido pela saída tributada deste último produto,
ficando dispensado o pagamento quando a saída se destinar a outra unidade da
Federação.
O vocábulo “englobadamente” diz respeito justamente à necessidade de se
apanhar aquele valor pelo qual o produto saiu do estabelecimento “A”. Então, se
há incidência total, a conta fecha com o creditamento, sob pena de se ter um plus
no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços.
O Ministro Carlos Velloso: Veja, primeiro, como quer a Recorrente:
1ª fase: O estabelecimento de São Cristóvão adquire insumos de terceiros
por 100. Fornecedores pagam 18% de ICMS, portanto, 18. São Cristóvão se credita de 18;
2ª fase: o estabelecimento de São Cristóvão vende o produto parcialmente
acabado para o estabelecimento de Duque de Caxias.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Com o diferimento.
R.T.J. — 208
815
O Ministro Carlos Velloso: Estou raciocinando com a Recorrente. São
Cristóvão se debita do valor do ICMS, 18%, ou seja, trinta e seis. Duque de
Caxias se credita desse valor.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não se debita, Ministro, porque há o
diferimento.
O Ministro Carlos Velloso: Ou não há incidência.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: O que parece se resolve na constitucionalidade ou não do Convênio 66 e da lei complementar.
Há uma velha questão no tribunal, que é o problema da cana própria de
Alagoas e Pernambuco. É a mesma coisa.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Em termos, porque, no tocante a Alagoas,
havia contribuintes individualizados sob o ângulo da inscrição.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Chamou-se o problema da cana própria porque o agricultor era também o usineiro.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): Ministro, vamos deixar claro que não há nenhuma pretensão, no caso, do que está em jogo não é o
creditamento, é um auto de infração que manda cancelar os créditos anteriores.
O Ministro Carlos Velloso: O que deseja a Recorrente?
A pretensão da Recorrente é esta: sustentando ocorrer, na transferência do
produto semi-acabado de seu estabelecimento em São Cristóvão, na Cidade do Rio
de Janeiro, para o seu estabelecimento de Duque de Caxias, diferimento do imposto, formula o seguinte raciocínio. Esse raciocínio é dela. Permita-me que leia?
1ª fase: o estabelecimento de São Cristóvão adquire insumos de terceiros
por 100. Os fornecedores pagam 18% de ICMS, portanto, 18. São Cristóvão se
credita de 18.
2ª fase: o estabelecimento de São Cristóvão vende o produto parcialmente
acabado para o estabelecimento de Duque de Caxias. São Cristóvão se debita
do valor do ICMS.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não há esse débito, mas o diferimento.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Isto está escrito na petição da Recorrente.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): Não é petição, mas
leitura do voto.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: A Texaco teria dado o tiro no pé.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): O objeto dessa discussão é um auto de infração, em que o Governo do Estado do Rio de Janeiro
mandou glosar os créditos dos dezoito reais, no exemplo referido, feitos em São
Cristóvão porque a saída de São Cristóvão para Duque de Caxias não era tributada. Isso é que está em discussão.
816
R.T.J. — 208
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, o próprio fisco não tem como
recolhido o tributo nessa transação do estabelecimento “A” para o estabelecimento “B”. Evoca instituto diverso do diferimento, a não-incidência, como se
se tratasse de não-incidência, para pretender a anulação, porque não haveria lei
prevendo o creditamento. O fisco glosou, a partir dessa premissa, olvidando que
se trata de diferimento, e o estabelecimento “B” recolhe o tributo por completo
e, ao fazê-lo, logicamente é considerado o preço do insumo. E se houve, na entrada do insumo, a incidência do tributo, cabe o creditamento.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Se não fossem dois estabelecimentos.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: V. Exa. pegou bem, sob pena de haver a
dupla incidência.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): É a mesma coisa.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Se não fizer o abatimento, altera a alíquota do
imposto no resultado final.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence; Pergunto ao Ministro Velloso: a sustentação de S. Exa. de que não ocorre a hipótese de incidência na transferência
São Cristóvão – Duque de Caxias, S. Exa. sustenta com base constitucional?
O Ministro Carlos Velloso: Exatamente.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: O problema envolve a constitucionalidade ou não, porque o convênio e a lei complementar...
O Ministro Carlos Velloso: O que precisa ficar acertado é que o convênio
somente poderia dispor a respeito daquilo que não existia. O que a Constituição
de 1988 criou?
O ICM sobre os serviços indicados no art. 155, II, aqueles serviços não
eram tributados pelo ICM, tanto que virou ICMS, então o convênio veio para...
Leio o ADCT:
§ 8º Se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição,
não for editada a lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata
o art. 155, I, b, os Estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, fixarão normas para regular
provisoriamente a matéria.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Entre elas a hipóteses de incidência.
O Ministro Carlos Velloso: Claro, mas isso já existia. O que não existia era
o ICM sobre os serviços.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): Ministro Velloso, diz
o art. 155, § 2º, II, b:
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da
legislação;
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;
R.T.J. — 208
817
No caso, temos uma operação tributada definida por lei, inclusive. Não diz
que a transferência de estabelecimento, apesar disso, é não-incidência, só diz
quando é o caso de isenção ou não-incidência.
O Ministro Carlos Velloso: Ministro, sustento a não-incidência com base
na Constituição.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): Onde diz que a transferência de estabelecimento...
O Ministro Carlos Velloso: Na doutrina que existe sobre o tema, inclusive
no entendimento do Supremo Tribunal Federal, tomado em vários votos.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): Anteriores à Cons­
tituição de 1988.
O Ministro Carlos Velloso: Penso que não se alterou. A constituição de
1988 não alterou nada, no ponto.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente e Relator): Foi exatamente a alteração da Emenda Passos Porto, tudo isso está na origem do problema da reação
dos Estados e aqui estaria criando mais uma hipótese que não estava prevista,
se o próprio Estado reconhece. Acho que a matéria está posta.
VOTO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, tenho voto escrito
sobre a matéria acompanhando o Relator.
Peço vênia ao Ministro Velloso, mas acompanho o Relator.
Requeiro a juntada do voto.
Senhor Presidente, o art. 6º da Resolução 1.578/89, que fundamenta o estorno dos créditos e que fora aplicado como fundamento do auto de infração,
constitui hipótese de diferimento, na medida em que determina que a tributação
correspondente às operações internas com óleo lubrificante básico deverá sujeitar ao pagamento o industrializador do lubrificante acabado, e não o industrializador ou vendedor do óleo básico.
Nesse contexto, não há propriamente desoneração por isenção ou mera
não-incidência do tributo. O que há é o deslocamento da responsabilidade pelo
pagamento do tributo para outro sujeito passivo, posicionado em outra etapa do
ciclo produtivo.
O estorno dos créditos relativos ao ICMS, nos termos do art. 155, § 2º, II,
a e b, da Constituição, pressupõe que a operação de circulação que implique
em saída de mercadoria seja isenta ou não-tributada. Não é o caso dos autos,
porquanto a operação supostamente isenta ou não-tributada classifica-se como
operação tributada pela técnica de diferimento.
Do exposto, dou provimento ao recurso extraordinário.
É como voto.
818
R.T.J. — 208
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, realmente essa questão,
sem trocadilho, oferece combustível para muita discussão, mas, seguindo a
perplexidade do Ministro Sepúlveda Pertence, quanto à constitucionalidade,
ou não, do convênio – porque o fato é que o convênio existe e atribui mesmo o
fato gerador à circulação de mercadoria entre estabelecimentos diversos –, vou
dar de barato pela constitucionalidade do convênio para acompanhar o Relator,
pedindo vênia ao Ministro Carlos Velloso.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, vejo com bons olhos o que
V. Exa. disse. Há, deveras, ofensa ao princípio da não-cumulatividade. O resultado final da operação, sem o abatimento, vai aumentar a alíquota do imposto.
Acompanho integralmente o voto de V. Exa.
EXTRATO DA ATA
RE 199.147/RJ — Relator: Ministro Nelson Jobim. Recorrente: Texaco
Brasil S.A. – Produtos de Petróleo (Advogados: João Geraldo Piquet Carneiro
e outros e Luiz Felippe Jordão e outros). Recorrido: Estado do Rio de Janeiro
(Advogada: Maria das Gracas R. Pereira de Andrade).
Decisão: Prosseguindo no julgamento, após o voto do Ministro Carlos
Velloso, que acompanhou a divergência aberta pelo Ministro Maurício Corrêa,
e dos votos dos Ministros Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Cezar Peluso, que
acompanhavam o Relator, pediu vista dos autos o Ministro Gilmar Mendes. Não
participou da votação o Ministro Eros Grau por suceder ao Ministro Maurício
Corrêa, que proferiu voto. Presidência do Ministro Nelson Jobim.
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros
Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen
Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros
Grau. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de
Souza.
Brasília, 15 de dezembro de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
VOTO
(Vista)
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Em virtude do decurso de tempo desde o
início do presente julgamento, em 17-8-99, ocasionado por sucessivos pedidos
de vista, peço licença para rememorar o presente caso.
Cuida-se de recurso extraordinário interposto por Texaco Brasil S.A. –
Produtos de Petróleo, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
R.T.J. — 208
819
Janeiro (TJ/RJ) que manteve auto de infração lavrado por autoridade tributária
do Estado do Rio de Janeiro.
Na espécie, a Recorrente ajuizou ação anulatória de débito fiscal contra
o Estado do Rio de Janeiro, em face do Auto de Infração 639674 (fl. 11). O
mencionado auto de infração foi lavrado em 4-6-92, em virtude da ausência
de estorno de créditos de ICMS, decorrentes da entrada de matérias-primas, na
transferência dos respectivos produtos, sem incidência de ICMS, para outro estabelecimento da Recorrente.
Segundo a inicial, a recorrente possui dois estabelecimentos para a produção de óleos lubrificantes: um na cidade do Rio de Janeiro (CGC 33.337.122/
0004-70; ICMS 81.612.072) e outro em Duque de Caxias (CGC 33.337.122/014187; ICMS 80.203.314).
O estabelecimento do Rio de Janeiro adquire determinados insumos,
como aditivos e óleos básicos, e beneficia-os por meio de sistema de mistura.
Após o beneficiamento, o estabelecimento do Rio de Janeiro transfere o produto
para aquele situado em Duque de Caxias, que adiciona novas matérias primas e
completa a fabricação de óleo lubrificante.
Tendo em vista que não incide ICMS na transferência de produtos do estabelecimento do Rio de Janeiro para o estabelecimento de Duque de Caxias, o
Estado do Rio de Janeiro exigiu o estorno dos créditos apropriados na entrada
de matérias-primas e, ante a manutenção dos referidos créditos, autuou o estabelecimento localizado na cidade do Rio de Janeiro, consoante o art. 37 da Lei
estadual 1.423/89.
O Juízo da 3ª Vara de Fazenda Pública da Capital/RJ julgou a ação improcedente, sob os seguintes fundamentos:
Infere-se, portanto, que diante da legislação estadual é atribuído ao produtor do óleo lubrificante acabado a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS
referente às operações anteriores e subseqüentes com tal mercadoria, ficando
desobrigados os revendedores dos lubrificantes básicos, por ocasião da saída da
mercadoria.
A própria Constituição Federal, no art. 155, parág. 2º, inciso XII, menciona
a substituição do contribuinte pelo fabricante como sujeito passivo principal na
obrigação de recolhimento do imposto. E em respeito à norma constitucional, há a
Resolução n° 1.578/89, acima transcrita. Como bem esclareceu o réu, às fls. 29, no
regime de substituição tributária não é o contribuinte substituído, mas o subsituto
responsável diretamente perante o Fisco a satisfazer o crédito tributário.
E com relação ao crédito para compensação quando não há incidência do
imposto, é de ser lembrado o comentário do Prof. Yoshiaki Ichihara, in “Direito
Tributário”, pág. 57, verbis:
“Sobre a questão diz o art. 155, § 2º, II, a e b, que, salvo legislação
determinando em contrário, no caso de isenção ou não-incidência da operação anterior não poderá ser creditado o ICMS, como se devido fosse e
para se compensar com o montante devido nas operações ou prestações
seguintes. No caso de operação isenta ou não-incidência, se houve crédito
820
R.T.J. — 208
do ICMS destacado e devido na operação anterior, o mesmo deverá ser
estornado.”
Nos termos do Convênio nº 66/89 (fls. 51/54), “considera-se autônomo cada
estabelecimento produtor, extrator, gerador, inclusive de energia, industrial, comercial e importador ou prestador de serviços de transporte e de comunicação
do mesmo contribuinte, ainda que as atividades sejam integradas e desenvolvidas
no mesmo local” (art. 22), o que significa dizer que a nova legislação do ICMS
efetivamente tributou a circulação de mercadorias na saída a qualquer título do
estabelecimento, inclusive as simples transferências (como alega a autora), ainda
que seja para outro estabelecimento do mesmo titular.
Infere-se, portanto, que não procede a afirmativa da autora de que a legislação estadual fere o princípio da não-cumulatividade previsto na Carta Magna,
art. 155, § 2º, inciso I, até porque há como ser feita a compensação entre os créditos e os débitos. Se houve saldo devedor, é pago o imposto. Em caso contrário, o
valor é transferido para o período seguinte.
Nos termos do que foi argumentado pelo Estado-réu e acolhido pela Curado­
ria da Fazenda Pública, às fls. 74, para efeitos fiscais, ainda que as operações sejam
praticadas pela mesma pessoa jurídica, in casu, a autora, quando englobarem
diversos ciclos econômicos, hão de ser consideradas praticadas por contribuintes
autônomos, inexistindo desrespeito ao princípio da não-cumulatividade.
Diante de todo o exposto, julgo improcedente o pedido, em se considerando
perfeito e intocável o auto de infração tido pela autora como ilegal, em conformidade com as razões que integram a presente decisão.
(Fl. 80.)
Interposta apelação pela Recorrente (fls. 83-93), a 5ª Câmara Cível negou
provimento ao recurso em acórdão que possui a seguinte ementa:
Ação anulatória de autuação fiscal. O procedimento adotado, de creditar-se
de todo o imposto incidente sobre a entrada de mercadoria, cuja saída não está sujeita a ICMS, sem o respectivo estorno, gera indevido crédito, a justificar a lavratura do Auto de Infração – Arts. 155, parágrafo 2º, II, b da Constituição Federal,
Art. 6º, da Resolução n° 1.578/89 – Lei Estadual 1.423/89, Convênio ICMS 66/88.
Improcedência da ação. Recurso Desprovido.
(Fl. 122.)
Rejeitados (fls. 130-131) os embargos de declaração opostos (fls. 126-128),
a Recorrente interpôs o presente recurso extraordinário, com fundamento nas
alíneas a e c do permissivo constitucional, por alegada violação do art. 155, § 2º,
I, da Constituição Federal, além de ter sido julgada válida a Lei do Estado do
Rio de Janeiro 1.423/89, em face da Carta Magna.
Inadmitido na origem (fls. 153-154), o apelo extremo subiu a esta Corte,
em razão de decisão da lavra do Min. Francisco Rezek, em sede de agravo de
instrumento (fl. 134, Apenso).
O Relator, Ministro Nelson Jobim, votou pelo provimento do recurso extraordinário, reconhecendo a manutenção dos créditos por dois fundamentos
alternativos: (i) seja pela configuração de substituição tributária “para trás” na
R.T.J. — 208
821
operação entre os estabelecimentos do Rio de Janeiro e de Duque de Caxias; ou
(ii) seja pela ausência de fato gerador na mencionada operação.
A propósito do primeiro fundamento, o Min. Nelson Jobim assentou:
Há, na previsão legal [art. 6º da Resolução 1.578/89] substituição tributária.
(...)
É a substituição tributária “para trás”.
O imposto passa a ser exigível de contribuinte que participa da cadeia produtiva em momento posterior à ocorrência do fato gerador.
Este é o sentido da regra.
É a técnica do diferimento.
Leio Moreira Alves:
“O diferimento nada mais é do que o adiamento da cobrança do imposto já devido” (voto no RE 11.427/SP, 26-8-98, RTJ 130/351).
Observo que, no caso, não está a Recorrente pretendendo manter crédito
relativo a operação em que houve o diferimento, pois não [há] crédito sem débito
do tributo.
As decisões mencionadas pelo Recorrido dizem respeito a essa hipótese,
que não é o caso dos autos.
Volto ao tema do diferimento.
No caso, o valor devido por uma operação com insumos é recolhido, “englobadamente”, com o imposto exigível na operação de saída do produto acabado,
pelo outro contribuinte (subseqüente).
Não há nenhuma isenção, nem não-incidência.
Há postergação da exigibilidade do tributo, com substituição.
Não se pode invocar, como fez o Acórdão, a regra constitucional (art. 155,
§ 2º, II, b), para considerar legítima a determinação de estorno do crédito.
Todos os créditos decorrentes de insumos adquiridos durante o processo de
produção geram direito a abatimento do valor do imposto devido pela venda final.
Caso contrário, lesar-se-ia o direito constitucional ao abatimento e produzir-se-ia cumulação proibida.
(...)
Assim, admitindo que a operação entre São Cristóvão e Duque de Caxias
seja tributável, pela forma de substituição com diferimento, a decisão deve ser
reformada.
O substituto deve abater os créditos do substituído.
O substituto tem o direito de abater os créditos que o substituído abateria se
não houvesse o diferimento.
Quanto ao segundo fundamento, o Ministro Nelson Jobim aduziu:
Mas, vou a outro fundamento.
Volto a examinar a operação entre os estabelecimentos de São Cristóvão e
Duque de Caxias.
Pergunto:
Ela se constitui em uma operação de circulação de mercadorias para
efeito de ser fato gerador do ICMS?
O Tribunal tem resposta a esta questão.
Leio na Rp 1.355-3/PB (Oscar Corrêa, Pleno, 12-3-87),
822
R.T.J. — 208
“(...) Inconstitucionalidade do art. 9º do Decreto 11.222, de 5-2-86, do
Estado da Paraíba.
Ao declarar estabelecimento autônomo para autorizar a incidência do
ICM estabecimentos – engenhos, sítios e demais divisões fundiárias – da
mesma usina – unidade econômica – contrariou o art. 23, II, da CF, pois
taxa o simples deslocamento físico de insumos destinados à composição
do produto final da mesma empresa.”
Disse Oscar Corrêa:
“(...) se são estabelecimentos que integram na mesma unidade econômica, como partes indistintas do mesmo processo de produção, e não extrapolam dessa atividade integrada, não há considerá-los estabelecimentos
autônomos para fim de geração de atividade tributável pelo ICM.
(...)
Se podem e devem ser considerados estabelecimentos autônomos ao
realizar operações com outras pessoas jurídicas (empresas, unidades econômicas diversas), não o podem ser nas transferências para outro estabelecimento da mesma unidade econômica (juridicamente, empresa), da qual é
apenas parte integrante – no fenômeno da integração econômica –
(...)
(...) não é aceitável que se distingam estabelecimentos do mesmo
contribuinte, ainda que representando etapa do processo produtivo – e, por
isso, em circulação apenas física, ou para integração econômica – como
se pudessem agregar valor que o outro estabelecimento do mesmo contribuinte devesse considerar. O que há de aguardar é a operação de circulação
de mercadorias – isto é, quando, após percorrer o iter produtivo na unidade
produtiva (a empresa), ainda que integrando elementos (materiais, produtos
semi-acabados), e de mais de um estabelecimento – só aí então incida o imposto, porque só aí se verifica a operação de mercadoria tributável.
Enquanto o produto se completa, se integra, com a participação de
estabelecimentos de uma mesma unidade econômica (em geral, da própria
empresa jurídica) não há falar em operação de circulação de mercadorias.
A menos que o estabelecimento não remeta a outro da mesma unidade
o seu produto, mas o transfira a outra empresa – de outro proprietário –
quando, então se terá verificado igualmente a operação sobre a qual incide
exação – e isto porque agiu como autônomo.”
No mesmo sentido: RE 74.263 (Xavier Albuquerque, Segunda Turma,
21-11-72); RE 75.026 (Djaci Falcão, Primeira Turma, 5-10-73) e RE 75.026EDv (Xavier Albuquerque, Pleno, 11-12-74); RE 93.523 e RE 94.120 (Cordeiro
Guerra, Segunda Turma, 24-8-82 e 14-9-82); Rp 1.181 (Rafael Mayer, Pleno,
26-9-84).
É exatamente o que se passa no caso.
A empresa, no estabelecimento de São Cristóvão, adquiria insumos.
Com esses insumos, produzia o lubrificante básico.
Remetia-o para o estabelecimento de Duque de Caxias.
Lá completava o ciclo.
Produzia o lubrificante acabado e o vendia no mercado.
A operação entre São Cristóvão e Duque de caxias não se constituía na circulação de mercadorias prevista como fato gerador do ICMS.
Era, como definiu a jurisprudência, uma mera circulação física.
R.T.J. — 208
823
Leio Baleeiro (RE 75.026-EDv):
“Isso é o que, em economia, se chama ‘integração’: o produto final
da Empresa é processado em diferentes etapas por dois ou mais estabelecimentos dela. A Empresa é uma só, embora tenha vários estabelecimentos
ou unidades de produção e comércio. O Banco do Brasil é um só, mas tem
vários estabelecimentos (...)
Repito: – o ICM (...) pressupõe negócio jurídico, que transfira o domínio da coisa duma para outra pessoa. Os estabelecimentos da mesma
empresa são uma só pessoa.
Se admitirmos inteligência contrária, o ICM recai sobre o comodato,
sobre a saída que o ladrão deu à mercadoria roubada, ou aquela que resultou
de ter sido jogada no caminhão do lixo, (...) o produto avariado.”
Digo eu.
O que se passou, no caso, não é fato gerador do tributo.
A recorrente tem direito a manter os créditos oriundos das operações realizadas pelo estabelecimento de São Cristóvão com terceiros, na aquisição de insumos.
A recorrente tem o direito de compensar esses créditos nas operações que
realizar, como, por exemplo, na venda do lubrificante acabado no mercado do
Estado do Rio de Janeiro.
Poderá abater os créditos decorrentes das compras de insumos, que a ela
própria empresa fez, quando da primeira fase do ciclo produtivo (estabelecimento
de São Cristóvão).
E o Ministro Nelson Jobim concluiu:
Os dois fundamentos levam à mesma conclusão,
Vejamos.
(a) Acolhido o entendimento do acórdão e do Estado-Recorrido que a operação entre estabelecimentos (São Cristóvão – Duque de Caxias) seja tributável,
com diferimento e substituição tributária, temos:
(a1) não houve nenhuma isenção ou não-incidência, mas, sim, substituição tributária, com diferimento da cobrança do imposto;
(a2) logo, há direito á manutenção dos créditos das operações realizadas pelo estabelecimento substituído.
(b) Acolhido o entendimento de que a operação se constitui em mera circulação física de mercadoria, realizada por uma mesma empresa, teremos:
(b1) não houve nenhuma isenção ou não-incidência. Não ocorreu, isto
sim, o fato gerador do imposto;
(b2) logo, há direito à manutenção dos créditos decorrentes de operações anteriores, pois a empresa poderá compensá-los nas operações
subseqüentes.
Conheço do recurso.
Acolho o pedido da inicial.
Anulo o auto de infração e o crédito fiscal, objetos da ação (fls. 12 e 13).
Torno insubsistente a multa aplicada.
Inverto os ônus da sucumbência.
Na ocasião, o Relator foi acompanhado pelos votos dos Ministros Cezar
Peluso, Carlos Britto e Joaquim Barbosa.
824
R.T.J. — 208
Por sua vez, o Ministro Maurício Corrêa abriu divergência para negar provimento ao recurso do contribuinte, apesar de reconhecer que não incide ICMS
na transferência de mercadorias entre dois estabelecimentos do mesmo contribuinte. Na oportunidade, o Ministro Maurício Corrêa asseverou:
Com efeito, na hipótese de ocorrência de fato gerador do ICMS – saída de
mercadoria do estabelecimento comercial – a reserva legal não pode estar dissociada da norma constitucional que vincula o imposto à sua circulação. Disso
resulta que a exação não incide sobre toda e qualquer operação de saída, senão
sobre aquela em que se verifica transmissão de posse ou propriedade. Ressalto
que, no ponto, o termo operação guarda o seu significado semântico na acepção de
ato mercantil; o vocábulo circulação é empregado no sentido jurídico de mudança
de titularidade e não de simples movimentação física do bem, e à expressão mercadoria atribui-se a designação genérica de coisa móvel que possa ser objeto de
comércio por quem exerce mercancia com freqüência e habitualidade.
Impende explicitar que a Constituição Federal conceitua hipótese de incidência do ICMS sobre circulação de mercadoria em si mesma considerada, sendo
que a utilização da expressão operação traduz o real objetivo da Constituição em
concebê-la como o movimento de mercadorias relativo aos negócios jurídicos
acerca de sua titularidade. Assim, enquanto se realiza o ciclo produtivo, com a
participação de estabelecimentos de uma mesma unidade econômica, em geral
da própria empresa jurídica, não há que se falar em operação de circulação de
mercadoria, de conformidade com a jurisprudência desta Corte (Rp 1.181/PA, RTJ
113/28; AI 131.941-AgR, RTJ 136/414; RE 100.892, DJU de 31-5-85; RE 113.090,
RTJ 121/1271, entre outros julgados).
No caso dos autos, não ocorreu circulação de mercadoria com mudança de
titularidade, daí a impossibilidade de ser tributada a transferência, para a filial de
Duque de Caxias, da matéria-prima beneficiada pela filial de São Cristóvão, visto
que essa movimentação física não configura hipótese de incidência do tributo.
Tratando-se de simples operação de transferência, não pode a Recorrente valer-se
do princípio da não-cumulatividade.
(...)
Na espécie, segundo demonstrou a Recorrente, o estabelecimento de São
Cristóvão apropria-se dos créditos oriundos da aquisição de matéria-prima tributada e o de Duque de Caxias lança em sua escrituração contábil os débitos
destacados nas notas fiscais de venda da mercadoria. Instaura-se, assim, a anomalia: a filial de São Cristóvão credita-se do imposto pago na compra de mercadoria, que, após beneficiada em parte, é levada para a de Duque de Caxias. Essa,
por sua vez, debita-se na totalidade do ICMS lançado nas notas fiscais de venda
do produto acabado, sem que tenha feito o lançamento do crédito da primeira
operação.
Para sanar a irregularidade quanto à acumulação de créditos e à contabilização de débitos de mercadoria que não deu entrada no estabelecimento, o crédito
lançado pela filial de São Cristóvão deveria ser transferido para a de Duque de
Caxias, que, ao vender a mercadoria ao revendedor ou comerciante atacadista
tornar-se-ia responsável perante o fisco pelo recolhimento do tributo.
(...)
Afastadas essas premissas e sendo certo que a transferência física do
produto, em fase de industrialização, de uma filial para a outra não gera ICMS,
R.T.J. — 208
825
concluo que a Recorrente não tem direito à manutenção dos créditos lançados
pelo estabelecimento situado na cidade do Rio de Janeiro. Primeiro, porque essa
não terá como lançar os débitos em sua escrituração contábil, possibilitando, assim, a concretização do princípio da não-cumulatividade do ICMS, tendo em vista
que a operação subseqüente –circulação da mercadoria – foi efetivada pelo estabelecimento de Duque de Caxias, que pôs à venda o produto acabado; depois, porque
como salientado pelo Relator, “o valor devido por uma operação com insumos é
recolhido, ‘englobadamente’, com o imposto exigível na operação de saída do produto acabado, pelo outro contribuinte (subseqüente)”, o que vem demonstrar que
os créditos lançados pela filial de São Cristóvão/RJ deveriam ter sido transferidos
juntamente com o produto inacabado à filial de Duque de Caxias, responsável
tributário perante o fisco estadual, para que essa fizesse jus, na operação subseqüente, aos benefícios da não-cumulatividade do imposto.
Assim sendo, não vislumbro, na espécie, que tenha havido isenção, nãoincidência (imunidade) ou diferimento e, por não se tratar de hipótese de inci­
dência do ICMS a simples transferência de produtos entre filiais de uma mesma
empresa, não se pode falar em substituição tributária a justificar a manutenção
do crédito lançado pela filial de São Cristóvão/RJ por ocasião da aquisição dos
insumos.
É correto que o artigo 155, § 2º, inciso I, da Constituição Federal, garante
que o ICMS “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada
operação relativa à circulação de mercadoria ou prestação de serviços com o
montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito
Federal”. Desse modo, a Recorrente tem direito de compensar, na saída do pro­
duto acabado dentro do Estado do Rio de Janeiro, os créditos lançados em sua
contabilidade por ocasião da aquisição dos insumos tributados. Negar esse
direito seria descumprir a norma constitucional. Dá-se, entretanto, que esse
princípio tributário há que ser cumprido por sua filial de Duque de Caxias, responsável pelo recolhimento do tributo perante o fisco pela venda de mercadoria ali
finalmente industrializada (operação subseqüente), mediante aproveitamento do
crédito adquirido pelo estabelecimento de São Cristóvão, por ocasião da aquisição
de insumos. Por essa razão, entendo não ser possível a manutenção dos créditos
lançados pela filial da Texaco situada em São Cristóvão/RJ: a primeira operação
(aquisição de insumos) foi tributada; sobre a segunda realizada em Duque de
Caxias (venda dos produtos acabados no Estado do Rio de Janeiro) incide o ICMS
e é nessa última operação que se faz a compensação com o montante cobrado na
anterior. No entanto, o objeto do recurso extraordinário é a simples transferência
do produto entre as filiais, fato jurídico do qual não decorre o fenômeno da circulação de mercadoria, no sentido técnico-jurídico-tributário, como já por demais
foi dito, capaz de gerar direito a crédito fiscal.
(Voto do Ministro Maurício Corrêa.)
Nesse mesmo sentido, manifestou-se o Ministro Carlos Velloso:
Compreende a hipótese de incidência ou fato gerador do ICMS, portanto, operações em torno de mercadorias e não sobre a mera circulação destas. A operação
implica mudança da titularidade da mercadoria em razão de um negócio jurídico,
negócio jurídico esse que antecede ao fenômeno da circulação. É dizer, a circulação é conseqüência de um negócio jurídico que faz com que a mercadoria mude de
dono e por isso circule de um dono para outro. (...)
826
R.T.J. — 208
Assim posta a questão, a primeira premissa a ser fixada, no caso sob julgamento, é esta: a transferência do produto inacabado do estabelecimento de
São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro, para o estabelecimento de Duque de
Caxias, no mesmo Estado, não constitui hipótese de incidência do ICMS.
(...)
Certo é que, como retro falamos, o crédito escriturado pelo estabelecimento de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, deveria ser transferido para o estabelecimento de Duque de Caxias. Este, ao vender o produto acabado, o óleo, é o
responsável pelo recolhimento do tributo. Neste momento é que ocorrerá a compensação inscrita no art. 155, § 2º, I, da CF, ocorrendo, pois, em tal momento, o
fenômeno da não-cumulatividade. Isso porque, vale repetir, na transferência do
produto semi-acabado de São Cristóvão para Duque de Caxias, não há incidência
do ICMS, dado inocorrer, com essa simples transferência, a hipótese de incidência
do tributo. Não há falar, por isso mesmo, em diferimento, porque o diferimento
pressupõe a ocorrência da hipótese de incidência do tributo, por se tratar de postergação do lançamento.
Destarte, presente a primeira premissa mencionada – a transferência do produto inacabado do estabelecimento de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro,
para o estabelecimento de Duque de Caxias, no mesmo Estado, não constitui hipótese de incidência do ICMS – leva ao não-provimento do recurso extraordinário.
A segunda premissa – quando o estabelecimento de Duque de Caxias
vende o produto acabado no mercado interestadual, não há incidência do ICMS,
na forma do disposto no art. 155, § 2º, X, b, da Constituição – também implica
conseqüência.
É que, nesta hipótese, caso de não-incidência, de imunidade tributária, portanto, não haverá crédito para compensação com o montante devido nas operações
ou prestações seguintes (CF, art. 155, § 2º, II, a) e essa não incidência acarretará a
anulação do crédito relativo às operações anteriores (CF, art. 155, § 2º, II, b).
Ora, os insumos adquiridos pelo estabelecimento de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro, serviram para preparar o produto a ser vendido tanto no
mercado localizado no Estado do Rio de Janeiro, quanto no mercado de outros
Estados. O crédito, pois, de tais insumos somente poderia ser aproveitado tratando-se do produto acabado vendido exclusivamente no mercado do Estado do
Rio de Janeiro. Todavia, não demonstrou a Texaco, recorrente, quais os créditos
dos insumos utilizados num caso e noutro. Tem-se, pois, uma quaestio facti que
nem seria resolvida mediante o exame da prova, por isso que, ao que tudo indica,
essa separação jamais foi feita, tanto que nem mencionada pela Recorrente.
A não-observância, entretanto, dessa circunstância fática inviabiliza a pretensão da autora recorrente, dado que, por força da citada cláusula constitucional – art. 155, § 2º, b – ter-se-ia a anulação do crédito relativo à operação anterior,
vale dizer, a operação realizada pelo estabelecimento de São Cristóvão, quando
adquiriu insumos que serviriam para o preparo de um produto que seria vendido
no mercado interno do Estado e no mercado interestadual.
(...)
Do exposto, com a vênia do eminente Ministro Nelson Jobim, Relator, conheço do recurso, mas lhe nego provimento, acompanhando o voto do não menos
eminente Ministro Maurício Corrêa.
(Voto do Ministro Carlos Velloso.)
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827
Pedi vista dos autos para melhor exame da controvérsia.
No caso, questiona-se a exigência de estorno de créditos de ICMS, obtidos
na aquisição de insumos, em razão de transferência de mercadorias beneficiadas
para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.
Inevitavelmente, a solução da controvérsia depende do tratamento tributário da mencionada transferência, de sorte a constatar se configura, ou não,
operação relativa à circulação de mercadorias, conforme descrito no art. 155, II,
da Carta Magna.
O eminente Relator, Ministro Nelson Jobim, admitiu a manutenção dos
créditos, independentemente de se entender que a transferência de bens entre
estabelecimentos de único contribuinte (i) configure substituição tributária para
trás ou (ii) não constitua fato gerador do ICMS.
De outra sorte, a divergência aberta pelo Ministro Maurício Corrêa, que
mereceu adesão pelo Ministro Carlos Velloso, entendeu que o art. 155, II, da
Constituição Federal, não incide nas operações entre estabelecimentos do
mesmo contribuinte, ante a ausência de operação de circulação, que pressupõe
a mudança de proprietário.
Sob a égide do regime constitucional anterior, este Supremo Tribunal
Federal firmara entendimento segundo o qual a mera circulação física das mercadorias não ensejaria a incidência do ICM, sendo indispensável negócio jurídico ou operação econômica.
Nesse sentido: RE 70.538/GB, Rel. Min. Thompson Flores, Pleno, maioria,
DJ de 1º-10-71; RE 70.613/SP, Rel. Min. Amaral Santos, Primeira Turma, unânime, DJ de 6-8-71; RE 74.363/SP, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, Segunda
Turma, unânime, DJ de 21-12-72; RE 74.852/SP, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro,
Primeira Turma, unânime, DJ de 10-11-72; RE 93.523/AM, Rel. Min. Cordeiro
Guerra, Segunda Turma, DJ de 24-9-82; RE 94.120/AL, Rel. Min. Cordeiro
Guerra, Segunda Turma, unânime, DJ de 12-11-82; RE 100.682/MG, Rel. Min.
Djaci Falcão, Segunda Turma, unânime, DJ de 31-5-85; RE 113.090/PB, Rel.
Min. Djaci Falcão, Segunda Turma, unânime, DJ de 12-6-87; e AI 131.941AgR/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, unânime, DJ de 19-4-91.
Entre os precedentes referentes à Constituição pretérita, registre-se o RE
75.026-EDv/RS, Rel. p/ o ac. Min. Cordeiro Guerra, DJ de 5-12-75, que possui
a seguinte ementa:
ICM. Para sua incidência não basta o simples deslocamento físico da mer­
cadoria do estabelecimento comercial, industrial ou produtor. Faz-se mister que
a saída importe num negócio jurídico ou operação econômica. Embargos conhe­
cidos e recebidos.
(RE 75.026-EDv/RS, Rel. p/ o ac. Min. Cordeiro Guerra, Pleno, maioria,
DJ de 3-12-75.)
828
R.T.J. — 208
Na oportunidade, discutiu-se a incidência do ICM na transferência de insumos produzidos por fábrica arrendada e transferidos para o estabelecimento
do arrendatário.
Vale destacar a lição do saudoso Min. Aliomar Baleeiro:
Na oficina alugada, o Embargante fez móveis que são de seu domínio e
posse. Leva-os para a obra do hotel, onde continuam a ser de sua propriedade e
posse. A saída foi física, mas juridicamente neutra, como as da Firestone quando
mandava para suas filiais, em outros Estados, peças, equipamentos, veículos e
materiais de consumo.
Isso é o que, em economia, se chama de “integração”: o produto final da
Empresa é processado em diferentes etapas é uma só, embora tenha vários estabelecimentos ou unidades de produção e comércio. O Banco do Brasil por exemplo,
é um só, mas tem vários estabelecimentos em todos os Estados e no estrangeiro. A
Cia. Souza Cruz é uma só, na Praça Pio X, Rio, mas tem fábricas na Guanabara e
nos Estados, assim como depósitos, plantações e agências em todo o Brasil.
Repito: – o ICM, a despeito da opinião contrária do prof. Flávio Novelli,
pressupõe negócio jurídico, que transfira o domínio da coisa duma para outra pessoa. Os estabelecimentos da mesma empresa são uma só pessoa.
Se admitirmos inteligência contrária, o ICM recai sobre comodato, sobre a
saída que o ladrão deu à mercadoria roubada, ou aquela que resultou de ter sido
jogada no caminhão do lixo, como exemplifica Rubens G. Sousa, o produto avariado. Recebo os embargos.
(Voto do Ministro Aliomar Baleeiro, RE 75.026-EDv/RS, Rel. p/ o ac.
Min. Cordeiro Guerra, DJ de 5-12-75.)
Na mesma linha, o Pleno desta Corte declarou a inconstitucionalidade de diversos dispositivos estaduais que previam a incidência de ICM no deslocamento
de matéria-prima entre o estabelecimento produtor e o industrial da mesma
unidade econômica:
Representação. Inconstitucionalidade. a) parágrafo único do art. 2º da Lei
5.106/83; b) locução na parte final do § 7º, do art. 1º do Decreto 2.393/82, na redação do Decreto 3.124/83; c) § 2º do art. 10 do Decreto 2.393/83; d) locução na
segunda parte do item 2 do § 1º do art. 14 do Decreto 2.393/83, na redação do
Decreto 3.124/83, todos do Estado do Pará.
Preceitos da legislação estadual que definem como fato gerador do ICM momento do processo produtivo no interior de uma mesma empresa agroindustrial,
representando o simples deslocamento físico dos insumos destinados a composição do produto. Contrariedade ao art. 23, II da Constituição e legislação complementar. Representação julgada procedente.
(Rp 1.181/PA, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ de 8-11-84.)
Representação. Decreto-Lei 66/79, art-16, § 4º, na redação da Lei 425/83, e De­creto 2.822/84, art. 6º, todos do Estado do Mato Grosso do Sul. Inconstitucionalidade. A legislação estadual que determina a incidência do ICM sobre a saída de
matéria prima da fase de produção para a de industrialização, dentro de um mesmo
estabelecimento, é inconstitucional, em face do art. 23-II da Carta da República.
Representação procedente.
(Rp 1.292/MS, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ de 9-6-86.)
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829
Representação. Inconstitucionalidade do art. 9. Do Decreto 11.222, de 5-286, do Estado da Paraíba. Ao declarar estabelecimento autônomo para autorizar
a incidência do ICM estabelecimentos – engenhos, sítios e demais divisões fundiárias – da mesma usina – unidade econômica – contrariou o art. 23, II, da CF,
pois taxa o simples deslocamento físico de insumos destinados a composição do
produto final da mesma empresa. Representação procedente.
(Rp 1.355/PB, Rel. Min. Oscar Corrêa, Pleno, DJ de 10-4-87.)
Na época, o ICM era regido pelo art. 23, II, da Carta de 1967/1969, com
redação dada pela Emenda Constitucional 23/83, nos seguintes termos:
Art. 23. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
II – operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais e comerciantes, imposto que não será cumulativo e do qual se
abaterá, nos termos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas
anteriores pelo mesmo ou por outro Estado. A isenção ou não-incidência, salvo
determinação em contrário da legislação, não implicará crédito de imposto para
abatimento daquele incidente nas operações seguintes.
No que se refere à Constituição de 1988, modificou-se o tributo em comento apenas para incluir os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ADI 1089/DF, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ de
27-6-97). Dispõe o art. 155, II, da Carta Magna:
sobre:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de
serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que
as operações e as prestações se iniciem no exterior;
A despeito da ausência de tratamento constitucional distinto que justificasse a revisão da jurisprudência mencionada, o Convênio 66/88 determinou a
respeito da hipótese de incidência do ICMS:
Art. 2º Ocorre fato gerador do imposto:
V – na saída de mercadoria, a qualquer título, de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular.
As referidas disposições foram repetidas no âmbito da LC 87/1996, nos
seguintes termos:
Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que
para outro estabelecimento do mesmo titular;
No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, editou-se a Lei 1.423/89, que determinava:
Art. 2º O fato gerador do imposto ocorre:
I – na saída de mercadoria, a qualquer título, do estabelecimento do contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular;
830
R.T.J. — 208
Examinando a questão no âmbito das atuais disposições constitucionais, o
Pleno desta Corte julgou inconstitucional a criação de hipótese de incidência do
ICMS, no âmbito do Convênio 66/88, a integração ao ativo fixo de bens produzidos no próprio estabelecimento, no julgamento do RE 158.834/SP. Rel. p/ o ac.
Min. Marco Aurélio, DJ de 5-9-03.
Na ocasião, o voto vencido do Ministro Ilmar Galvão indicava a possibilidade de a lei estadual definir hipótese de incidência do ICMS, inclusive sobre
as transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte:
O que importa saber, contudo, é se essa movimentação tem alguma relevância jurídica especial, diante do sistema tributário instituído pela Constituição,
que contribua para o esclarecimento do exato sentido da expressão – circulação de
mercadorias –, a qual, para a Recorrente, como se viu, pressupõe um ato jurídico
que implique a transferência de propriedade da mercadoria.
Sob esse aspecto, é de considerar-se que, conquanto o ICMS seja tributo
de competência dos Estados, o produto de sua arrecadação não cabe por inteiro a
estes, já que aos Municípios se destina expressiva parcela de 25%, a qual não lhes
é distribuída em partes iguais, já que, pelos menos ¾ dela o são em quotas proporcionais ao valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias
realizadas em seus respectivos territórios.
Dispõe, com efeito, a Constituição Federal, no art. 158, parágrafo único, verbis:
“As parcelas de receita pertencentes aos Municípios, mencionadas no
inc. IV (25% por cento do produto da arrecadação do ICMS), serão creditadas conforme os seguintes critérios:
I – três quartos, no mínimo, na proporção do valor adicionado nas
operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, realizadas em seus territórios.”
Decorrência lógica do texto transcrito é que a circulação de mercadorias,
no território de cada Município, ganhou nova valoração jurídica, já que passou a
constituir fato relevante para a determinação da respectiva quota de participação
no produto da arrecadação do ICMS, revestindo-se essa circunstância de razão
suficiente para que não se tenha por destituída de importância, para o direito tributário, a saída da mercadoria de um determinado estabelecimento produtor, industrial ou comercial, ainda que não implique transferência de propriedade.
Outro fator que, por igual, concorre para essa conclusão é a circunstância
de que a saída da mercadoria, nas condições apontadas, para estabelecimento da
mesma empresa situado em outro Estado, teria por conseqüência a perda, pelo
Estado de origem, do tributo devido pelas etapas do ciclo econômico ocorrido em
seu território.
Hamilton Dias de Souza, em trabalho que gentilmente nos fez chegar às
mãos quando já elaborado este voto (“o fato gerador do ICM e a participação dos
Municípios no produto da arrecadação do produto”), comunga nesse pensar, já
que observa (fl. 6), a propósito, que a tese de que o ICM incide apenas sobre atos
traslativos de domínio da mercadoria
“apresenta gravíssimo incoveniente: o de não permitir a arrecadação do ICM nos Municípios, e mesmo nos Estados, onde ocorrem os fatos
materiais que identificam a circulação física das mercadorias. A prevalecer tal corrente – acrescenta – um Município onde estiverem localizados
apenas estabelecimentos industriais que promovam saídas para outros
R.T.J. — 208
831
estabelecimentos da mesma empresa, situados em outros Municípios ou
Estados, terá suas receitas grandemente diminuídas, embora necessite arcar
com toda a infra-estrutura necessária à manutenção do parque industrial.
Isto porque, não havendo transferência de propriedade ou posse não haveria fato gerador e, em conseqüência, não seria arrecadado o tributo em seu
território.”
As situações descritas constituem exemplos que estão a demonstrar, de
modo inequívoco, que, pela tese da Recorrente – de que a circulação de mercadorias, pressuposto material da incidência do ICMS, é de ser entendida como
compreendendo tão-somente as operações de transferência de domínio ou de disponibilidade dos ditos bens –, não apenas a eficácia de importante regra de repartição das receitas tributárias, de interesse dos Municípios, mas também o direito
do Estado ao tributo incidente sobre as etapas do ciclo econômico cumprido pela
mercadoria em seu território, restariam seriamente comprometidos, a menos que
se instituísse sistema de controle e de compensação, entre Estados e Municípios,
dos mais intricados, tanto mais intricado quanto desinfluente para as empresas interessadas, já que a não-incidência do ICMS, sobre as operações de circulação de
mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa, em face do princípio
da não-cumulação, não teria o efeito de aliviar-lhe o ônus tributário.
(...)
Forçoso é admitir, portanto, por imperativo lógico, que a circulação de mercadorias referida no art. 155, I, b, da CF (atualmente art. 155, II, da CF/1988], não
pressupõe, com exclusividade, atos jurídicos conducentes à transferência de domínio dos ditos bens (circulação jurídica), correspondendo, ao revés, a um conceito,
mais amplo, de circulação econômica, que consiste na passagem da mercadoria
de uma etapa a outra do ciclo que se inicia na fonte primeira de produção e se
ultima na sua entrega ao consumidor final, conceito esse que, por razões óbvias,
abrange o de circulação jurídica e exclui o de simples circulação física (saída para
depósito, custódia, penhor, comodato ou reparos, cf. Baleeiro, op. cit., p. 205), que
não tem relevância para o direito tributário.
Em que pese a posição do Ministro Ilmar Galvão ter sido acompanhada
pelos Ministros Sepúlveda Pertence (Relator originário), Francisco Rezek,
Sydney Sanches e Néri da Silveira, prevaleceu a posição assentada pelo
Ministro Marco Aurélio, seguida pelos Ministros Maurício Corrêa, Carlos
Velloso, Moreira Alves, Celso de Mello e Octavio Gallotti e resumida na seguinte ementa:
ICMS – Convênio – Art. 34, § 8º, do ADCT – Balizas. A autorização prevista
no § 8º do art. 34 do Ato das Disposições Transitórias da Carta de 1988 ficou restrita à tributação nova do então art. 155, inciso I, alínea b, hoje art. 155, inciso II,
da Constituição Federal.
ICMS – Produção – Ativo fixo – Saída – Ficção jurídica. Mostram-se inconstitucionais textos de convênio e de lei local – Convênio 66/88 e Lei 6.374/89
do Estado de São Paulo – reveladores, no campo da ficção jurídica (saída), da integração, ao ativo fixo, do que produzido pelo próprio estabelecimento, como fato
gerador do ICMS.
(RE 158.834/SP. Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, Pleno, maioria, DJ de
5-9-03.)
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R.T.J. — 208
Ainda que o mencionado precedente se restringisse à incorporação ao ativo
fixo de bens produzidos no próprio estabelecimento, o STF não acolheu a orientação do Ministro Ilmar Galvão de estender a expressão “circulação” para além
da circulação jurídica (envolvendo a transferência de domínio), alcançando a
denominada circulação econômica (passagem da mercadoria nas fases de produção, sem necessitar alteração de titular).
Recentemente, no julgamento do RE 461.968/SP, Rel. Min. Eros Grau,
unânime, DJ de 24-8-07, que cuidava sobre a incidência de ICMS sobre o arrendamento mercantil de aeronaves, o Pleno confirmou este entendimento. Eis
a ementa do referido acórdão:
Recurso extraordinário. ICMS. Não-incidência. Entrada de mercadoria
importada do exterior. Art. 155, II da CB. Leasing de aeronaves e/ou peças ou
equipamentos de aeronaves. Operação de arrendamento mercantil.
1. A importação de aeronaves e/ou peças ou equipamentos que as componham em regime de leasing não admite posterior transferência ao domínio do
arrendatário.
2. A circulação de mercadoria é pressuposto de incidência do ICMS. O imposto – diz o art. 155, II da Constituição do Brasil – é sobre “operações relativas
à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações
se iniciem no exterior”.
3. Não há operação relativa à circulação de mercadoria sujeita à incidência
do ICMS em operação de arrendamento mercantil contratado pela indústria aeronáutica de grande porte para viabilizar o uso, pelas companhias de navegação
aérea, de aeronaves por ela construídas.
4. Recurso extraordinário do Estado de São Paulo a que se nega provimento
e recurso extraordinário de TAM – Linhas Aéreas S.A. que se julga prejudicado.
(RE 461.968/SP, Rel. Min. Eros Grau, Pleno, unânime, DJ de 24-8-07.)
Na oportunidade, consignou o Rel. Min. Eros Grau:
(...) Quando aeronaves e/ou peças ou equipamentos que as componham são
importadas em regime de leasing não se prevê a sua posterior transferência de
domínio do arrendatário.
Ora, essa circunstância importa em que não se verifique, no caso, circulação de mercadoria, pressuposto da incidência do tributo de que se cuida. O imposto – diz o art. 155, II, da Constituição do Brasil – é sobre “operações relativas
à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações
se iniciem no exterior”.
A circulação de que aqui se trata é circulação econômica, envolvendo transferência de domínio. Veja-se, por todos, Geraldo Ataliba:
“Circular significa, para o direito, mudar de titular. Se um bem ou
mercadoria muda de titular, ocorre circulação para efeitos jurídicos. [...]
Vê-se, portanto, que ‘circulação’, tal como constitucionalmente estabelecido
(art. 155, I, b), há de ser jurídica, vale dizer, aquela na qual ocorre a efetiva
transmissão dos direitos de disposição sobre mercadoria, de forma tal que
o transmitido passe a ter poderes de disposição sobre a coisa (mercadoria).”
R.T.J. — 208
833
Isso me parece inquestionável. Em recente decisão, o Ministro Sepúlveda
Pertence, ao negar provimento ao AI 605.950, DJ de 9-10-06, reafirmou entendimento do Plenário desta Corte que, no julgamento do RE 158.834, DJ de 23-10-02,
Relator o Ministro Marco Aurélio, considerou indevida a exigência de pagamento
de ICMS em operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do
mesmo contribuinte.
(Voto do Min. Eros Grau, RE 461.968/SP, Pleno, unânime, DJ de 24-8-07.)
Nesse mesmo sentido, decidiu a Primeira Turma:
I – Mandado de segurança: admissibilidade. Não se caracteriza o “mandado de segurança contra lei em tese”, se – como reconheceu no caso o acórdão
recorrido –, a norma legal questionada é de “eficácia concreta, direta e imediata”,
capaz, assim, de lesar direito líquido e certo do Impetrante.
II – ICMS: não incide sobre o deslocamento de mercadoria de um estabelecimento para outro da mesma empresa, sem a transferência de propriedade.
Precedente: RE 158.834, Pleno, 23-10-02, Rel. p/ o ac. Marco Aurélio, RTJ
194/979.
III – Recurso extraordinário: descabimento para o reexame de fatos: incidência da Súmula 279.
(AI 271.528-AgR/PA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ
de 7-12-06.)
Com efeito, a transferência de titularidade é indispensável para configuração de “operações relativas à circulação de mercadorias”, tal como prevista
na Constituição Federal (CARRAZZA, Roque Antônio. ICMS. 11. ed. São
Paulo: Malheiros, 2006. p. 43/43; BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário
Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 374/375; MELO, José
Eduardo Soares de. ICMS – Teoria e Prática. 9. ed. São Paulo: Dialética, 2006.
p. 11/14; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à
Constituição de 1967. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. p. 504).
Na realidade, a riqueza onerada pelo ICMS é exatamente o produto da
operação de transferência de domínio das mercadorias até chegar ao consumidor final, não o valor agregado ao bem em cada estágio do processo produtivo.
Conseqüentemente, as respectivas etapas do processo produtivo não são o
ponto de referência ou a base material de incidência do referido imposto, mas a
circulação, que pressupõe transferência de titularidade.
Daí que a acumulação de intermediários entre o produtor e o consumidor
final permita a múltipla incidência do ICMS, ao contrário da separação de fases
produtivas no interior da mesma fábrica.
Nesse sentido, não merece prosperar o amplo conceito de circulação
econômica defendido pelo eminente Ministro Ilmar Galvão no RE 158.834/
SP, para caracterizar a ocorrência do fato gerador nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, nada obstante seu
lastro em celebrada doutrina (cf. SOUZA, Rubens Gomes de. IVC, ICM e
Conferência de Bens Móveis ao Capital das Sociedades in Revista de Direito
834
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Público, v. 2, p. 139 (141 e seguintes); MARTINS, Ives Gandra. O Sistema
Tributário na Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 490; HARADA,
Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 432;
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 28. ed. São Paulo:
Malheiros, 2007. p. 387).
De fato, os dois fundamentos expostos pelo Ministro Ilmar Galvão na
oportunidade, quais sejam (a) facilitação da participação dos municípios e (b)
inexistência de prejuízo ao contribuinte, em face do princípio da não cumulatividade, não encontram respaldo no sistema constitucional.
Por um lado, data maxima venia, a participação dos Municípios no produto do ICMS não importa ampliação da hipótese de incidência do tributo.
Obviamente, a incidência do tributo é que determina e condiciona a participação
dos Municípios, não o contrário.
Por outro lado, a mecânica da não-cumulatividade tampouco consiste em
fundamento adequado para justificar a incidência do ICMS. Ressalte-se, ademais, os casos de bens incorporados ao ativo fixo e de estorno de crédito, como
o presente, refutam a ausência de prejuízo para os respectivos contribuintes.
A rigor, a aplicação dessa orientação permitiria a incidência do tributo em
todas as etapas do processo produtivo, independentemente de transmissão de
domínio ou do local onde ocorridas, o que não é razoável.
Evidentemente, o fato de o produtor concentrar ou separar geograficamente os estágios produtivos, por si só, não justifica tratamento tributário diferenciado. Entendimento contrário daria ênfase à mera movimentação física
das mercadorias em detrimento da operação jurídica que efetivamente suporta
o ônus do ICMS.
Nesse contexto, resta examinar se a ausência do fato gerador do ICMS na
transferência de produtos parcialmente beneficiados do estabelecimento do Rio
de Janeiro (CGC 33.337.122/0004-70; ICMS 81.612.072) para o estabelecimento
de Duque de Caxias (CGC 33.337.122/0141-87; ICMS 80.203.314) implica dever
do contribuinte, proprietário dos dois estabelecimentos, de estornar os créditos
obtidos na aquisição dos insumos.
Data venia, a disparidade de tratamento tributário em razão do número
de estabelecimentos de mesma titularidade para beneficiar as mercadorias não
é razoável.
Ora, se não há operação de circulação de mercadorias entre os estabelecimentos do Rio de Janeiro e de Duque de Caxias, como já demonstrado, a transferência de bens de um para o outro tem, essencialmente, a mesma natureza da
movimentação física entre dois prédios localizados na mesma fábrica. A única
diferença é a distância entre as duas unidades produtivas, que, por si só, não tem
o condão de anular créditos de ICMS.
Além disso, a exigência levantada pelo Ministro Carlos Velloso – que
condiciona a manutenção dos créditos de ICMS à demonstração de que as
operações seguintes não estariam isentas ou imunes – revela-se exacerbada,
pois cabe ao Fisco glosar apenas aqueles créditos que efetivamente restaram
R.T.J. — 208
835
anulados pelas operações posteriores. O ônus da prova é do Fisco, não do
contribuinte.
No caso, o fundamento do auto de infração lavrado foi a saída das mercadorias do estabelecimento do Rio de Janeiro para o do Duque de Caxias sem o
estorno dos créditos referentes aos insumos adquiridos.
No entanto, tal fundamento foi refutado ante a conclusão de que a simples
transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não
constitui “operação de circulação de mercadorias”.
Assim, a manutenção do auto de infração pressupõe que todos os créditos de insumo teriam sido anulados em decorrência de operações posteriores.
Evidentemente, não é adequado presumir, no presente caso, que todas as operações seguintes seriam isentas, imunes ou submetidas à alíquota zero.
Ressalte-se que nada impede que Fisco do Estado do Rio de Janeiro, verificando as mencionadas situações ou outras hipóteses, glose os créditos de insumos. Todavia, o fundamento invocado para exigir o estorno não é suficiente para
lavrar o auto de infração em apreço, razão pela qual deve ser desconstituído.
No ponto, peço vênia aos Ministros Maurício Corrêa e Carlos Velloso para
acompanhar o voto do Min. Nelson Jobim, Relator originário, reconhecendo
o direito do contribuinte de manter os créditos provenientes da aquisição de
insumos.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso extraordinário para julgar procedente a ação anulatória de débito fiscal ajuizada pela Recorrente, nos termos
do voto do Ministro Nelson Jobim.
É como voto.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, o tributo, em si, é plurifásico, não monofásico. Por isso mesmo, tem-se, no cenário, o princípio constitucional da não-cumulatividade. Vale dizer, o tributo recolhido em operação
anterior é alvo de crédito, considerada a operação subseqüente e a nova tributação. Caso não fosse assim, haveria o efeito cumulativo.
Vem-nos da Constituição Federal – considerada a escrituração da empresa, crédito e débito quanto ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços – uma regra muito clara e muito precisa:
Art. 155.
§ 2º (...)
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação: [não é o caso, não há previsão em contrário].
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;
A razão de ser do preceito mostra-se única: se não há a incidência subseqüente, logo, salvo se a lei dispuser em sentido diverso, não há que se cogitar do
creditamento, que visa – repito – evitar a cumulatividade.
836
R.T.J. — 208
No caso em exame, o quadro fático incontroverso está revelado no auto
de infração:
O contribuinte efetuou operação de entradas de mercadorias destinadas à
revenda na mesma espécie e à emprego na industrialização, tendo feito o aproveitamento integral dos respectivos créditos de imposto pela ocasião de tais
entradas.
(Sic.)
Não cabe discutir se está envolvida a transferência do produto de um estabelecimento para outro. Não, a questão básica não é essa. Prossegue o auto, e
vem, então, a pedra de toque, a meu ver, da definição deste julgamento, levando
em conta o princípio da não-cumulatividade:
As saídas do produto resultante da industrialização foram efetuadas sem
débito do imposto com amparo no procedimento estabelecido no art. 6º da Res.
1.578 de 01/03/89.
(Sic.)
Ora, se há saída do produto acabado sem incidência – não vamos também,
aqui, mesclar a situação da responsabilidade solidária, considerada a substituição tributária –, presente a revenda, no mercado a varejo, do produto, descabe
cogitar, sem lei prevendo-a, da manutenção do crédito anterior. Continuo a leitura do auto de infração:
O contribuinte não efetuou o estorno do crédito, apropriado por ocasião
da entrada correspondente e a mercadoria empregada na industrialização. É exigido, [considerada a alínea b do inciso II do § 2º do art. 155] a título de estorno
de crédito, o ICMS [Imposto já creditado anteriormente, porque, na saída do produto, não houve tributação, considerado aquele que o produziu] no valor de CR$
1.709.432.748,31 (um bilhão setenta e nove milhões quatrocentos e trinta e dois mil
setecentos e quarenta e oito cruzeiros e trinta e um centavos), conforme quadro
demonstrativo anexo e multa no valor de CR$ 3.546.198,44), face ao art. 59, VI,
da Lei 1.423/89.
(Sic.)
Em síntese, se, na entrada, houve recolhimento, com lançamento do crédito, mas, na saída, o produtor, como contribuinte de direito, nada recolheu,
esse contexto atraiu a incidência do disposto na alínea b do inciso II do § 2º do
art. 155.
É a situação concreta que acarreta – repito – a anulação do crédito relativo
a operações anteriores. A não se reconhecer isso, sem lei que afaste a incidência
do preceito – lei exigida pela parte final do inciso II –, o que se ocorrerá? Haverá
o creditamento também – e, então, a cumulatividade operará ao contrário, em
detrimento do próprio Estado – pelos revendedores finais. Não cabe confundir
a situação jurídica concreta da recorrente, como contribuinte de direito, com a
situação jurídica como substituta tributária quando se tem o ônus para os contribuintes de direito, que são os revendedores.
R.T.J. — 208
837
Penso que há de ser considerada a premissa maior do auto de infração: na
saída do produto, aperfeiçoado, aprimorado, não houve incidência. A Texaco
nada recolheu. Se assim procedeu, como contribuinte de direito, não podia deixar
de anular aqueles créditos anteriores, ante o mandamento da alínea b do inciso II
do § 2º do art. 155 da Constituição Federal. Creio que se trata de situação clara,
enquadrável na determinação de anulação do crédito contida na alínea b referida.
Se não houver a anulação, neste caso – é o auto de infração que revela –,
em que, na saída final, ela nada recolheu, se permanecer com o crédito lançado
na escrituração, estará sendo beneficiada à margem da previsão da alínea b do
inciso II do § 2º do art. 155 da Constituição Federal. Ela teria direito à manutenção do creditamento – teria sim – caso houvesse lei assim dispondo, conforme
exigido na parte final do inciso II. Mas a regra não é a manutenção do creditamento, quando a saída não sofre incidência. Isso é exceção. A regra é a anulação.
E foi justamente a falta dessa anulação que veio a ser glosada pelo Estado do
Rio de Janeiro.
Peço vênia ao Relator, Ministro Nelson Jobim, para concluir que os votos
proferidos pelos Ministros Maurício Corrêa e Carlos Velloso – perdoem-me
também V. Exa. e os que votaram nesse sentido – são consentâneos com a regra
constitucional.
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Há dúvida quanto a essa questão de fato?
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não. Está elucidada no auto de infração.
Ataca-se uma decisão na ação anulatória do auto. O que se sustenta é o direito
ao crédito. Mas, como há o direito à manutenção do crédito e não a anulação do
crédito se, na saída, como contribuinte de direito – não me refiro à qualidade
substituta tributária –, nada foi recolhido? Como fica, então, o preceito constitucional segundo o qual a isenção ou não-incidência do imposto – no caso, não
há a incidência – , na saída da mercadoria, salvo determinação em contrário da
legislação – não se tem legislação dispondo em contrário – acarretará – está em
bom vernáculo – a anulação do crédito relativo às operações anteriores?
Peço vênia para, no caso, entendendo que o Estado agiu à mercê do
que previsto na Constituição Federal, desprover o recurso da contribuinte, da
Texaco.
VOTO
(Retificação)
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, também peço vênia
para reformular o voto que já havia proferido na outra assentada e seguir a divergência iniciada pelo Ministro Maurício Corrêa.
EXTRATO DA ATA
RE 199.147/RJ — Relator: Ministro Nelson Jobim. Relator para o acórdão:
Ministro Marco Aurélio. Recorrente: Texaco Brasil S.A. – Produtos de Petróleo
(Advogados: João Geraldo Piquet Carneiro e outros e Luiz Felippe Jordão e
838
R.T.J. — 208
outros). Recorrido: Estado do Rio de Janeiro (Advogada: PGE/RJ – Maria das
Graças R. Pereira de Andrade).
Decisão: Renovado o pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes, justificadamente, nos termos do § 1º do art. 1º da Resolução 278, de 15 de dezembro
de 2003. Presidência do Ministro Nelson Jobim. Plenário, 22-2-06.
Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, desproveu o recurso, nos termos do voto do Ministro Maurício Corrêa, vencidos os
Ministros Nelson Jobim (Relator), Carlos Britto, Cezar Peluso e Presidente.
Reformulou seu voto o Ministro Joaquim Barbosa. Lavrará o acórdão o Ministro
Marco Aurélio. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen
Gracie (Presidente) e o Ministro Menezes Direito. Presidiu o julgamento o Mi­
nistro Gilmar Mendes (Vice-Presidente).
Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto,
Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes
Direito. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva
de Souza.
Brasília, 16 de abril de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
R.T.J. — 208
839
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 402.717 — PR
Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso
Recorrente: Ministério Público Federal — Recorrido: Davi Makarausky
Prova. Criminal. Conversa telefônica. Gravação clandestina, feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro.
Juntada da transcrição em inquérito policial, onde o interlocutor
requerente era investigado ou tido por suspeito. Admissibilidade.
Fonte lícita de prova. Inexistência de interceptação, objeto de
vedação constitucional. Ausência de causa legal de sigilo ou de
reserva da conversação. Meio, ademais, de prova da alegada inocência de quem a gravou. Improvimento ao recurso. Inexistência
de ofensa ao art. 5º, incisos X, XII e LVI, da CF. Precedentes.
Como gravação meramente clandestina, que se não confunde
com interceptação, objeto de vedação constitucional, é lícita a
prova consistente no teor de gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, se
não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, em juízo ou
inquérito, a favor de quem a gravou.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Celso de
Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, conhecer do recurso extraordinário, mas lhe negar provimento, nos termos do voto do Relator. Ausente, licenciado, o Ministro Joaquim
Barbosa.
Brasília, 2 de dezembro de 2008 — Cezar Peluso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Trata-se de recurso extraordinário interposto
contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e assim
ementado:
Processo penal. Inquérito. Gravações clandestinas. Possibilidade da jun­
tada. Prova. Fase inquisitorial. Sigilo das investigações. Necessidade.
1. Não há óbice para que o investigado em inquérito policial solicite a juntada de provas destinadas a demonstrar sua alegada inocência. 2. Em que pese as
gravações clandestinas de conversas particulares possam ser consideradas ilícitas – o que, em tese, inviabilizaria sua utilização como prova em ação judicial – na
fase investigatórias não é razoável desprezar a existência de elementos que visam
a contribuir para a correta elucidação dos fatos, mormente em face do princípio da
840
R.T.J. — 208
verdade real que norteia o processo penal. 3. Deve ser assegurado no transcurso do
procedimento o sigilo necessário à apuração dos delitos, revelando-se adequada a
restrição à publicidade do inquérito, sob pena de restar comprometido o resultado
das investigações. 4. Indeferido o pedido de extração de cópia dos autos.
(Fl. 149.)
O Ministério Público Federal recorre com base no art. 102, inciso III, a,
da Constituição da República, alegando-lhe ofensa ao art. 5º, incisos X e LVI.
Assevera terem sido violados os princípios de inadmissibilidade da prova
ilícita e da inviolabilidade da intimidade, porque, no curso das investigações, o
ora recorrido, indiciado pelo crime de corrupção de testemunhas (art. 343, parágrafo único, do Código Penal), efetuou gravações telefônicas de conversas que
manteve com testemunhas e a vítima do fato, tendo sido aquelas juntadas aos
autos do inquérito por determinação judicial (fl. 117).
Alega, em síntese, que a “gravação clandestina de conversas, sem o
consentimento do interlocutor, e que visa não apenas fazer prova em favor do
investigado, mas também incriminar terceiros, viola a garantia processual de
proteção à intimidade, a qual somente pode ser afastada por autorização judicial” (fl. 158).
Transcorreu in albis o prazo para contra-razões.
A Procuradoria-Geral da República é pelo provimento do recurso, uma
vez que “a determinação de juntada, no procedimento investigatório, de gravação clandestina realizada pelo próprio investigado, independentemente da
inoportuna discussão da inadmissibilidade da prova ilícita pro reo (o que, como
está no voto vencido, poderá ser examinado na instrução), impõe a inadequada
abertura do contraditório na fase pré-processual, perturbando a apuração da infração penal (CF art. 144, § 1º) e desconhecendo a posição do Ministério Público
como titular da ação penal” (fl. 179).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Inconsistente o recurso.
Como longamente já sustentei alhures1, não há ilicitude alguma no uso de
gravação de conversação telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, com a intenção de produzir prova do intercurso, sobretudo
para defesa própria em procedimento criminal, se não pese, contra tal divulgação, alguma específica razão jurídica de sigilo nem de reserva, como a que, por
exemplo, decorra de relações profissionais ou ministeriais, de particular tutela
da intimidade, ou doutro valor jurídico superior. A gravação aí é clandestina,
mas não ilícita, nem ilícito é seu uso, em particular como meio de prova.
1
TJSP, 2ª Câmara de Direito Privado, Ag. Inst. 257.223.
R.T.J. — 208
841
A matéria em nada se entende com o disposto no art. 5º, XII, da Constitui­
ção da República, o qual apenas protege o sigilo de comunicações telefônicas,
na medida em que as põe a salvo da ciência não autorizada de terceiro, em relação ao qual se configura, por definição mesma, a interceptação ilícita.
Esta, na acepção jurídica, vizinha à etimológica, na qual há idéia de subtração (< interceptus < intercipere < inter + capere), está no ato de quem, furtivamente, toma conhecimento do teor de comunicação privada da qual não é
partícipe ou interlocutor.
A reprovabilidade jurídica da interceptação vem do seu sentido radical de
intromissão que, operada sem anuência dos interlocutores, excludente de injuricidade, nem autorização judicial na forma da lei, rompe o sigilo da situação
comunicativa, considerada como proprium dos respectivos sujeitos, que, salvas
as exceções legais, sobre ela detêm disponibilidade exclusiva, como expressão
dos direitos fundamentais de intimidade e liberdade.
Talvez conviesse observar que tal reprovabilidade se prende, na origem, à
vulnerabilidade material relativa de que se revestem os canais de comunicação
mediada, como o telefone, o telégrafo e as correspondências, perante o caráter
restrito ou reservado que, em tese, esses instrumentos tecnológicos propõem às
expectativas dos usuários interlocutores. Há, em tais condutos comunicativos,
certa promessa de privatividade das interlocuções, que o sistema jurídico tem de
assegurar em respeito à intimidade (privacy) dos interlocutores. Noutras palavras, porque estes devam confiar em garantias jurídicas da reserva natural, mas
não absoluta, esperada do uso desses meios de comunicação, é que de regra o
ordenamento reprime a interceptação, enquanto ingerência indevida de terceiro
que devassa situação comunicativa reservada, porque alheia.
Ora, quem revela conversa da qual foi partícipe, como emissor ou receptor, não intercepta, apenas dispõe do que também é seu e, portanto, não subtrai,
como se fora terceiro, o sigilo à comunicação, a menos que esta seja recoberta
por absoluta indisponibilidade legal proveniente de obrigação jurídica heterônoma, ditada pela particular natureza da relação pessoal vigente entre os interlocutores, ou por exigência de valores jurídicos transcendentes.
Diz-se com efeito:
O que fere a inviolabilidade do sigilo é, pois, entrar na comunicação alheia,
fazendo com que o que deve ficar entre sujeitos que se comunicam privadamente
passe ilegitimamente ao domínio de um terceiro. Ou seja, a inviolabilidade do
sigilo garante, numa sociedade democrática, o cidadão contra a intromissão clandestina ou não autorizada pelas partes na comunicação entre elas... o objeto protegido pelo inc. XI do art. 5º da CF, ao assegurar a inviolabilidade do sigilo, não
são os dados em si, mas sua comunicação. A troca de informações (comunicação)
é que não pode ser violada por sujeito estranho à comunicação.2
2
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Sigilo das operações de instituições financeiras. In: Revista
do IASP, n. 9/162.
842
R.T.J. — 208
Tirante as situações excepcionais em que, no fundo, prepondera a exigência de proteção da intimidade, ou de outra garantia da integridade moral da
pessoa humana3, nenhuma consideração pode sobrepor-se à divulgação do relato
de conversa telefônica, cuja prova seja necessária à reconstituição processual da
verdade e, pois, à tutela de direito subjetivo do proponente, ou ao resguardo do
interesse público da jurisdição. Nesse sentido, já se ponderou:
Entre os valores de proteção da intimidade das pessoas e de busca da verdade nos processos, qual o valor mais nobre? A meu ver, o que diz respeito à
verdade. Foi-se o tempo em que o processo civil se contentava com a verdade
formal. À semelhança do processo penal, o civil também há de se preocupar com
a verdade material. Chega-se à verdade através da prova, cujo ônus incumbe ao
autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito. Mas existe fato de difícil prova!
A saber, da produção de prova. Impedir que alguém a produza, digamos, por meio
de gravação de conversas telefônicas, seria, a meu sentir, o mal maior.4
A objeção, consistente, é que, sendo sempre limitado pelas regras de exclusão, o direito à prova não basta por justificar a admissibilidade processual
da eficácia da gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, antes de se lhe demonstrar a licitude, porque, no confronto com outros direitos, não se poderia, sem tal demonstração
prévia, excluir nunca qualquer prova ilícita, que fosse a única possível no caso
concreto.5
Mas, com não ser ilícita à luz da Constituição, como já se viu, tampouco
o é no plano das normas subalternas, a cujo propósito soam irrespondíveis estas
razões do voto vencedor do Min. Eduardo Ribeiro, no REsp 9.012:
Cuida-se da utilização, como prova, de gravação de conversa telefônica
mantida pela autora com testemunha chamada a depor no processo. Inquina-se o
meio empregado de moralmente ilegítimo, vedado, pois, seu uso, como resulta do
disposto no artigo 332 do Código de Processo Civil.
Importante frisar que não se trata da interceptação da conversação alheia,
hipótese do RE 85.439 de que foi relator o Ministro Xavier de Albuquerque (RTJ
84/609). No caso em exame a prova foi apresentada por um dos interlocutores.
Tenho para mim que inexiste a pretensa ilegitimidade. Ilícita é a gravação de conversa alheia, o que envolve mesmo a prática de crime. Nenhum
3
Essa é a razão por que, em formal e expressa concordância com o ponto de vista aqui sustentado de que não caracteriza interceptação “a gravação clandestina de uma conversa feita por um
dos interlocutores, quer se trate de comunicação telefônica, quer se trate de comunicação entre
presentes”, a doutrina só vê ilicitude, até de cunho penal (art. 153 do CP), quando a divulgação da
conversa seja despida de justa causa e, como tal, se equipare à divulgação de conteúdo de documento particular ou de correspondência, e que possa produzir dano – subentenda-se, injusto – a
outrem (cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo:
RT, 2001. p. 198-199).
4
5
Do voto vencedor do Ministro Nilson Naves, no REsp 9.012/RJ.
Cf. TORQUATO AVOGLIO, Luiz Francisco. Provas ilícitas: interceptações telefônicas e gravações clandestinas. 2. ed. São Paulo: RT, 1999. p. 139.
R.T.J. — 208
843
impedimento existe, entretanto, a que um dos participantes da mesma queira
resguardar-se, mediante o registro fonográfico e, salvo justificáveis exceções, dele
se utilize como prova.
Dir-se-á que, de um modo ou outro, se estará violando o sigilo garantido às
comunicações telefônicas. O argumento, que já vi lançado, prova, entretanto, demais. A acolhê-lo, seria mister reconhecer que vedado aos próprios interlocutores
revelar o conteúdo da conversa, o que parece absurdo. Entretanto, se se admite
possa um deles transmiti-lo a terceiro, não se vislumbra porque não lhe seja dado
demonstrar, mediante o registro feito, que está a dizer a verdade.
Não vejo a diferença que possa haver, quanto à legitimidade do meio, entre a
divulgação de conversa mantida por telefone e a que se faz pessoalmente. Ora, não
será possível a alguém comprovar o respectivo conteúdo, por meio do testemunho
de um terceiro que estivesse presente? Por que, então, ter como ilegítimo valha-se
de um meio mais seguro que é a gravação?
Considero que, em regra, quando alguém mantém determinada conversação, seja pessoalmente, seja com o uso de meios eletrônicos, arrisca-se a ver a
mesma divulgada, o que configurará, quando muito, uma inconfidência, cujo grau
de censurabilidade não chega a tornar ilícita a prova.
Note-se que o sigilo da correspondência é igualmente resguardado. Entre­
tanto, seu uso como prova, ainda sem permissão do autor, é expressamente autorizado por lei (Lei 5.988/73, artigo 33 e Código de Processo Penal art. 233,
parágrafo único)...
Existem, é certo, exceções, algumas delas constituindo mesmo crime
(Código Penal, artigos 153 e 154). Não, se admitirá a divulgação sem justa
causa, de fatos que digam com a privacidade das pessoas. Caberá ao juiz avaliar.
Generalizar a proibição é que não me parece adequado.
Em suma, o que não se tolera é a indevida escuta de conversa telefônica
alheia, como não se admite a violação de correspondência. Não, a divulgação por
quem participou de uma, ou foi o destinatário da outra. E se a divulgação, em
regra, é tolerável, mais faça de modo a garantir a fidelidade ao que efetivamente
ocorre.
O que, em resumo, se sustenta é que, tida acaso por ilícita, em caráter absoluto, a gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores,
sem a ciência do outro, debaixo do pretexto de, em última instância, constituir
também violação do sigilo garantido às comunicões telefônicas, então deveria
predicar-se igual restrição ou interdição jurídica ao campo retórico da prova
oral, embora a custo do seu completo e absurdo aniquilamento.
É que, assim os depoimentos pessoais, como os testemunhais, soem exprimir o conteúdo de conversas entretidas, pelas partes e testemunhas, entre si, ou
com outras pessoas, significando sempre, nesses casos, reprodução e divulgação
do conteúdo da conversa entre presentes, ou até mantida por via telefônica, de
um dos interlocutores, sem prévio assentimento ou conhecimento do outro, com
resultado prático idêntico ao da semelhante revelação do teor de comunicação
telefônica gravada, e, como tal, suscetível de idêntico juízo teórico de reprovabilidade jurídica. Que diferença há, para fins de justificação da existência de suposto dever de sigilo que recairia também sobre os próprios interlocutores, entre
conversa mantida por telefone e a que se dá entre presentes? Ambas guardam
844
R.T.J. — 208
a mesma particularidade de serem, enquanto estão ocorrendo, comunicações
instantâneas, fugidias e desprovidas de vestígios materiais. E, qualquer que seja
a modalidade ou o meio técnico usado para tanto, a revelação de uma em nada
difere da revelação da outra, de modo que seria absurdo encontrar ilicitude num
caso e licitude noutro.
Ao depois, se a ninguém jamais ocorreu descobrir ilicitude à reprodução,
nos depoimentos judiciais de partes e de testemunhas, do relato de conversas telefônicas desvestidas de sigilo ou reserva legal, em que a parte, ou a testemunha,
tenha sido um dos interlocutores, seria despropósito jurídico não menor impedir
à parte, ou à testemunha, que demonstre, por meio de gravação, a fidelidade da
versão licitamente apresentada ao juízo por via oral. Ou seja, não parece sensato
impedir o uso de gravação que se traduza na prova cabal da veracidade daquilo
que, em juízo, afirme a parte, ou a testemunha, como objeto de conversa telefônica de que haja participado. Se é lícito, ou se não é, antes, dever mesmo, relatar
em juízo a verdade daquilo sobre que se conversou, é-o a fortiori trazer a juízo
gravação capaz de comprovar a fidelidade do relato ou conversa, cujo conteúdo
se invoque como verdadeiro!
Não é tampouco exato que esta Corte tenha, alguma feita, assentado coisa
diversa. No famoso caso da AP 307, a ementa oblitera e trai o sentido da decisão incidental sobre o tema, a cujo respeito se limitou o Tribunal a reconhecer
ilicitude à degravação do que se continha em disco apreendido sem as formalidades legais.6 Noutros, negou valor a interceptação clandestina,7 ou à que fizera
a polícia, com autorização judicial, mas antes do advento da Lei federal 9.296,
de 24 de julho de 1996.8 Tais precedentes foram, aliás, reexaminados, pelo colendo Plenário, que, embora contra dois ilustres votos, proclamou com nitidez
a distinção entre interceptação clandestina, objeto da vedação constitucional, e
gravação clandestina, que é a realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, a qual é prova lícita.9 Do voto do Min. Carlos Velloso, nesse
precedente, consta:
A Constituição, no ponto, está a proibir a interceptação das comunicações
telefônicas. É dizer: terceiro intercepta conversa, pelo telefone, de duas outras pessoas. Como não há direitos absolutos, esse direito cede ao interesse da justiça, ao
interesse social e ao interesse público. Portanto, essa proibição sofre exceção. A lei
estabelecerá os casos em que isso será possível.
No caso, Senhor Presidente, um dos interlocutores grava conversa havida
entre ambos; isso não se inclui na proibição referida no art. 5o, inciso XII. Em voto
6
Cf. RTJ 162/3 e, em especial, p. 244-245.
7
RTJ 122/60.
8
Pleno, HC 69.912/RS, Rel. p/ o ac. Min. Carlos Velloso, DJ de 26-11-93. É bom observar que,
por impedimento de um dos Ministros, tal acórdão acabou cassado, em mandado de segurança
não conhecido, mediante ordem de ofício de habeas corpus, tendo sido rejulgado o caso (cf. HC
69.912-0/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 25-3-94).
9
HC 75.338-8/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim. In: RTJ 167/206-222.
R.T.J. — 208
845
que proferi nesta Casa, lembrado pelo eminente Ministro Relator, Inq 657 – caso
“Magri” –, sustentei a tese no sentido de que não há ilicitude no fato de um dos interlocutores gravar a conversa havida entre ambos a fim de, por exemplo, realizar
prova dessa conversa.
Não menos explícito e minucioso foi, aí, o voto do Min. Sepúlveda Per­
tence:
Volta à Mesa uma questão que tem sido aventada diversas vezes no Plenário
e nas Turmas: o da compreensão, ou não, no art. 5o, XII, da Constituição Federal,
relativo ao sigilo de correspondência e, por extensão, ao sigilo das comunicações
telefônicas, das gravações de conversa telefônica por um dos interlocutores.
De minha parte, diversas vezes, entre elas na AP 307, deixei claro que, com
todas as vênias dos que pensam em contrário, a gravação por um dos interlocutores da conversa mantida com outrem nada tem a ver com o art. 5o, XII, que protege
o sigilo de comunicações telefônicas, assim como protege o sigilo de correspondência escrita na troca de cartas.
A meu ver, o problema há de ser enfrentado – fazendo abstração da inovação
tecnológica da telecomunicação – de acordo com os mesmos princípios da carta
missiva, objeto do art. 33 da Lei 5.988/73, chamada “Lei dos Direitos Autorais” diz:
“Art. 33. As cartas missivas não podem ser publicadas sem permissão
do autor, mas podem ser juntadas como documento, em autos oficiais.”
O art. 5o , XII – creio desnecessário demonstrá-lo e já o fez, aliás, há
pouco, o Ministro Carlos Velloso –, protege os interlocutores da ciência, por
terceiro, “à sorrelfa”, mediante a chamada interceptação telefônica, do que entre
os dois se conversou. Nada mais do que isso. Ali não se contém proibição de
que um dos interlocutores faça a prova da conversa de que participou: então o
que pode incidir é outro tipo de proibição – por exemplo, e aí o único reparo a
fazer ao voto anterior – não apenas de ordem moral, mas – o eminente Ministro
Relator já o lembrara de ordem jurídica, como as decorrentes dos deveres explícitos de sigilo que atingir a gravação, não por ter sido gravada, e sim por ter
sido revelada a outrem: é o caso do advogado, do médico, do confessor. E até em
outras relações não explicitamente protegidas com a obrigação legal do sigilo,
quando se possa invocar, na revelação da conversa e, a fortiori, na sua gravação,
traição a deveres nascidos da esfera da intimidade em que se tenha passado: aí
vem à tona outra garantia individual, a que protege a intimidade e impõe reserva
a todos que dela participem.
Nesse sentido firmou-se a jurisprudência da Corte, como se tira a limpo a
estoutros precedentes:
Constitucional. Penal. Gravação de conversa feita por um dos interlocuto­
res: licitude. Prequestionamento. Súmula 282-STF. Prova: reexame em recurso
extraordinário: impossibilidade. Súmula 279-STF. I – A gravação de conversa
entre dois interlocutores, feita por um deles, sem conhecimento do outro, com a
finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa, nada tem de ilícita,
principalmente quando constitui exercício de defesa. II – Existência, nos autos, de
provas outras não obtidas mediante gravação de conversa ou quebra de sigilo bancário. III – A questão relativa às provas ilícitas por derivação – “the fruits of the
poisonous tree” – não foi objeto de debate e decisão, assim não prequestionada.
Incidência da Súmula 282-STF. IV – A apreciação do recurso extraordinário, no
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R.T.J. — 208
caso, não prescindiria do reexame do conjunto fático-probatório, o que não é possível em recurso extraordinário. Súmula 279-STF. V – Agravo não provido.
(AI 503.617-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 4-3-05.)10
Gravação de conversa. Iniciativa de um dos interlocutores. Licitude.
Prova corroborada por outras produzidas em juízo sob o crivo do contraditó­
rio. Gravação de conversa. A gravação feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, nada tem de ilicitude, principalmente quando destinada a
documentá-la em caso de negativa. Precedente: Inq 657, Carlos Velloso. Conteúdo
da gravação confirmada em juízo. Agravo regimental no recurso extraordinário
improvido.
(RE 402.035-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 6-2-04.)
Interceptação telefônica e gravação de negociações entabuladas entre seqüestradores, de um lado, e policiais e parentes da vítima, de outro, com o conhecimento dos últimos, recipiendários das ligações. Licitude desse meio de prova.
Precedente do STF: HC 74.678, Primeira Turma, 10-6-97.
(HC 75.261, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 22-8-97.)11
É o que bastaria à subsistência da decisão ora impugnada.
Mas o caso apresenta ainda circunstância muito para advertir. É que o ora
Recorrido, na condição de investigado em inquérito policial, juntou aos autos
deste gravações clandestinas de conversas nas quais figurou como interlocutor,
para efeito de fazer prova de sua alegada inocência quanto ao suposto delito
investigado que se lhe imputaria. Tais elementos materiais não podiam, sob pretexto de ilicitude, ser desconsiderados nas investigações, pela razão breve, mas
decisiva, de que seu uso, no inquérito ou no processo, corresponde ao exercício
de ônus que constitui típico poder jurídico inerente às garantias constitucionais
do contraditório e da ampla defesa, elementares do justo processo da lei (art. 5o,
LIV e LV, da CF).
De modo que ainda quem professe tese da ilicitude da gravação de conversa telefônica por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, terá,
neste caso, onde seu uso, tido por excepcional ad argumentandum, seria legitimado por normas constitucionais, de lhe reconhecer, quando menos, caráter de
causa excludente de injuridicidade da ação e análoga à da legítima defesa. É o
que já proclamou esta Corte, em hipótese em certo sentido até mais singular,
onde se discutia a licitude do uso do teor de conversa telefônica por quem alegava ter sido vítima de crime cometido de um dos interlocutores, o qual desconhecia a gravação feita por terceiro com autorização do outro:
1. A hipótese, no caso, não é propriamente da utilização de interceptação
telefônica, mas, sim, da uti
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