Maria de Fátima Almeida Baia Livia Oushiro Ivanete Belém do Nascimento (organizadoras) Anais do XII e XIII Encontros dos Alunos de Pós-Graduação em Linguı́stica da USP Anais dos XII e XIII Encontros dos Alunos de Pós-Graduação em Linguı́stica da USP. São Paulo: Paulistana, 2012, p. 110–123. Acontecimento em “Tubarões Voadores” Carolina Tomasi∗ Resumo Com base na Semiótica Tensiva, este artigo focaliza uma história em quadrinhos (“Tubarões Voadores”, de Luiz Gê), que foi musicada por Arrigo Barnabé. Nosso objetivo é examinar como se dá o acontecimento nessa narrativa. A análise apoia-se na verificação dos enunciados verbal, visual e musical, abordando inicialmente a narrativa, marcada pela velocidade do “relâmpago passageiro”, razão pela qual percorremos os sentidos de tubarão, voador e voar a fim de estabelecer o andamento desse objeto semiótico. Justificam-se, então, as preocupações com o inesperado e com a tonicidade - elementos que se interseccionam com a música de Arrigo Barnabé. Ao final da análise, verificamos que, em “Tubarões Voadores”, há uma dissensão de linguagens, em que a sobreposição dos textos dos balões à música de Arrigo revela uma disputa entre os elementos verbais e musicais. Finalmente, examinamos as relações entre ética e estética; enquanto as falas seriam ordenadas pelo dever, pela ética, funcionando como elemento de preservação do sujeito na rotina do cotidiano, a música e o plano visual seriam ambos da ordem do acontecimento e, portanto, da ordem do estético. Brota do jogo de dever e querer a figura do destinador na fala dos balões, que salienta não haver espaço para o inesperado, o artı́stico (invasão de tubarões) se predominam de forma absoluta valores do mundo utilitário, pragmático. Palavras-chave: Semiótica Tensiva; Estética; Ética; Música; História em Quadrinhos. Introdução “Tubarões voadores”,1 segunda história em quadrinhos do livro Território de bravos (1993), de Luiz Gê, foi elaborada pelo artista plástico em 1983. Em 1984, Arrigo Barnabé lança o disco Tubarões voadores, em que a história de Luiz Gê aparece musicada como faixa 1 do vinil. O texto da história em quadrinhos (HQ), que contava apenas com as linguagens verbal e visual, ∗ Departamento de Linguı́stica da Universidade de São Paulo (DL-USP). Este trabalho faz parte da pesquisa de mestrado “A missividade: por uma gramática tensiva da Semiótica de HQs”, financiada pelo CNPq. E-mail: [email protected]. 1 Esta HQ sob análise encontra-se na ı́ntegra no livro Território de bravos, de Luiz Gê; ou disponı́vel em http://youtu.be/qTLlnY4WSSY. Acontecimento em “Tubarões Voadores” 111 passou a contar com a contribuição do músico. Na Apresentação do livro Território de bravos, Luiz Gê (1993:10), ator da enunciação,2 afirma: Nesta história, uma das intenções era desenhar a cidade de uma certa altura, não a do “voo de pássaro”, na qual a observamos inteira, ligeiramente de cima, nem de muito alto, visão que acaba por achatar tudo num “mapa”. Mas como no voo de um tubarão, numa altura em que ainda estamos dentro dela, se esgueirando por entre os prédios, altura em que uma cidade como São Paulo deve ser realmente vista. A visão que temos normalmente do chão é muito, digamos, pedestre, rasteira, sem grandeza, cotidiana demais; acaba por ser banal. Morase em um lugar que tem um espaço único sem que nos apercebemos disso. Já a verticalidade provoca essa atração do abismo. É como se houvesse um vazio, um vácuo, que necessitasse ocupação. Por isso o voo, que proporciona o caráter dinâmico da narrativa, através do ritmo de enquadramentos (destaque nosso). A partir dos elementos do enunciado acima citado, dois pontos podem ser destacados em “Tubarões voadores”: (i) no nı́vel discursivo, temos a presença de dois espaços: o rasteiro, cotidiano dos moradores da cidade de São Paulo, e o mediano (“voo dos tubarões”, que não é alto como o dos pássaros), ambos proporcionando uma visão do espaço dos habitantes da metrópole - tubarões e pessoas, portanto, passam a conviver no mesmo espaço; (ii) por meio do termo caráter dinâmico, utilizado pelo ator da enunciação na manifestação, podemos depreender a cifra tensiva que move a escolha do sujeito enunciador: a rapidez, a dinamicidade. O primeiro ponto a ser investigado, portanto, nesta análise será a escolha dos valores tensivos feita pelo enunciador. Voo do Tubarão: uma narrativa marcada pela velocidade do relâmpago passageiro Em “Tubarões voadores”, no nı́vel discursivo, assistimos a uma invasão da cidade de São Paulo por tubarões voadores. Sabemos que se trata da cidade de São Paulo por revelação do ator da enunciação. Nessa HQ, vários atores, 2 Segundo Greimas & Courtés (1983:35), “do ponto de vista da produção do discurso, pode-se distinguir o sujeito da enunciação, que é um actante implı́cito logicamente pressuposto pelo enunciado, do ator da enunciação: neste último caso, o ator será, digamos, ‘Baudelaire’, enquanto se define pela totalidade de seus discursos”. 112 Carolina Tomasi bem como figuras, desfilam aos nossos olhos, mostrando-nos uma hierarquia de valores que serão analisados no decorrer deste trabalho. Três figuras nos chamam a atenção na HQ de Luiz Gê: a metrópole, os habitantes da cidade e os tubarões. Tomemos, inicialmente, a figura do tubarão (escolhida em primeiro lugar por já constar do tı́tulo) e vejamos a definição do dicionário: 1. Designação comum aos peixes condrictes, elasmobrânquios e eusseláquios, de pequeno e médio porte, corpo fusiforme e fendas branquiais laterais; cação [são predadores, e grande parte das espécies não oferecem perigo ao homem; embora de discutida qualidade, sua carne é muito consumida]. 2. Empresário cúpido, sem escrúpulos, que só visa aos próprios lucros. 3. Pequeno monte ou serra. 4. Pessoa que tem vários empregos rendosos (Houaiss 2001). Para efeito deste trabalho, a acepção 1 (peixe predador) e a acepção 2 (empresário sem escrúpulos, que só visa aos próprios lucros) poderiam nos conduzir a um outro ponto de vista analı́tico, visto que poderı́amos, por meio do conector de isotopias3 (o termo tubarão), apontar uma pluri-isotopia,4 que nos permitiria também a passagem para o tema da exploração humana em uma metrópole. O adjetivo voador pode configurar a isotopia da fantasia (voo do tubarão), do “tirar os pés do chão”, da banalidade do cotidiano, que encaminharia os habitantes daquele espaço para fora do cotidiano, para um momento de estesia. O leitor pode verificar em “Tubarões Voadores” a presença de um destinador em vários enunciados: (1) “Pois no coração do prudente descansa a sabedoria” (frase proverbial bı́blica, Prov. cap. 14, versı́culo 33); (2) “pânico não resolve”; (3) “esta é a harmonia da vida”. Parece-nos que esse destinador recusa a ultrapassagem do cotidiano, isto é, refuta o voo momentâneo, a apreensão estética, visto que a prudência (da ordem da implicação) evitaria a junção de tubarão e homem (ver Fig.1). O contrário da prudência seria da ordem da concessão, que é o lugar privilegiado do voo para uma escapada do cotidiano. Para Zilberberg 3 Conector de isotopia é a “unidade do nı́vel discursivo que introduz uma ou várias leituras diferentes: o que corresponde, por exemplo, à ‘codificação retórica’ que C. Lévi-Strauss aponta em mitos que jogam ao mesmo tempo com o ‘sentido próprio’ e com o ‘sentido figurado’ ” (Greimas & Courtés 1983:72). 4 Na pluri-isotopia, é “o caráter polissêmico da unidade discursiva com papel de conector que torna possı́vel a superposição de isotopias diferentes” (Greimas & Courtés 1983:72). “Entende-se por pluriisotopia a superposição, num mesmo discurso, de isotopias diferentes” (Greimas & Courtés 1983:336). Acontecimento em “Tubarões Voadores” 113 Figura 1 Homem dentro do tubarão: conjunção (apaga-se a diferença entre sujeito e objeto). (2006:197), “passamos subitamente da ordem enfadonha da regra para a ordem tonificante do acontecimento”. Embora tubarões não voem, o enunciador os faz voarem. Vejamos agora as acepções de voador, presente no tı́tulo “Tubarões voadores”: 1. Que voa ou pode voar; voante, volante. 2. Que se coloca ou corre com enorme rapidez; rápido, veloz. 3. Aquele que voa. 4. Acrobata que salta de um trapézio para outro mais ou menos distante (Houaiss 2001). Dessas acepções, fiquemos com a 1 e 2. A acepção 1 nos leva ao verbete voar : 1. Sustentar-se ou mover-se no ar por meio de asas ou algum meio mecânico. 2. Deslocar-se velozmente pelo ar. 3. Elevar-se ou flutuar no ar; ascender, pairar. [...] 7. Correr ou deslizar com grande velocidade. 8. Ser impelido ou atraı́do com força. 9. Passar, decorrer rapidamente. 10. Ir para algum lugar com grande rapidez; correr. [...] 13. Desligar-se da realidade; elevar-se, vagar. 114 Carolina Tomasi Dessas acepções, fiquemos com a última, bem como com as 2, 3, 7, 9 e 10, visto que o próprio ator da enunciação, como vimos na introdução deste trabalho, informa-nos que o voo dos tubarões figurativiza a possibilidade de sair do chão para uma altura média, que nos permite ausentar-nos do cotidiano (ver acepção 13). A velocidade (ver acepção 2 das palavras voador e voar ) do voo dos tubarões, a mesma da apreensão estética, é como um “relâmpago passageiro” que se introduz no discurso da cotidianidade dos homens (cf. Greimas 2002:26). O enunciador vale-se aqui de um modelo espacial em que a altura média, o sair do chão, do espaço inferior, carrega a marca eufórica, enquanto manter-se no plano inferior, no rés da calçada da cidade, carrega a marca disfórica. Ainda não tratamos das duas outras figuras da HQ: a cidade e seus habitantes. A primeira remete-nos ao cotidiano, às ações comezinhas, banais, ao viver sem destaque, sem ênfase, que se opõe à estesia. E os habitantes são os sujeitos desse fazer banal, mergulhados que estão na continuação da continuação, um relaxamento estéril. Para Tatit (2001:178), toda situação retratada num texto é passageira e portanto sua significação depende das orientações sugeridas pelo processo de denegação que, afinal, apresenta os valores excluı́dos ou desvalorizados como horizontes para a evolução tensiva e narrativa da trama. No caso de nossa análise, no relaxamento do cotidiano, convocam-se os valores antes desprestigiados, isto é, os valores da continuação da continuação dão lugar aos valores da parada da continuação. O marasmo do cotidiano cede lugar a uma contenção quando do acontecimento da invasão dos tubarões voadores. A cifra tensiva do léxico voar instaura um andamento rápido no nı́vel profundo. A interrupção inesperada, porque veloz, “dessa periodicidade (parada da continuação) figurativiza a parada do tempo cotidiano e, simultaneamente, a cristalização do espaço” (Tatit 1999:199). Por exemplo, na Figura 1, a parada da continuação na narrativa que orienta a leitura para a dimensão do ser, cristalizando o espaço. A primeira aparição do tubarão voador marca pontualmente a fratura tanto no quadrinho de Luiz Gê, como na vida humana nele representada. A apreensão estética compreende um “breve lapso de tempo”; daı́ a cifra tensiva da aceleração,5 que inesperada e 5 Zilberberg (2006:198) afirma que o andamento do acontecimento é mais rápido do que o homem pode experimentar. Acontecimento em “Tubarões Voadores” 115 velozmente cristaliza um instante, um momento de distensão que perdura entre sucessivos programas narrativos meticulosos e banais6 que “traduzem a tensão da rotina diária” (Tatit 1999:200). O ataque dos tubarões distende as ações quotidianas. O efeito estético produzido pela surpresa do ataque dos tubarões vislumbra a possibilidade da plenitude da junção de sujeito e objeto. O estranhamento7 do voo dos tubarões (tubarões não voam) configura apenas uma criação discursiva que produz o efeito de sentido de pavor (excluı́mos aqui a possibilidade de terror). O Dicionário Houaiss (2001) define pavor como: 1. Grande susto ou temor. 2. Comoção, agitação, turbação; susto, espanto, medo, horror, terror. 3. Repulsão. A entrada dos tubarões voadores no campo visual do sujeito (atores da cidade) provoca avanço ou recuo diante do objeto. Todavia, há uma ativação do objeto tubarão que, subjetivado, “manifesta um querer recı́proco de conjunção entre os dois actantes, como se um tendesse ao outro, encontrandose a meio caminho” (Tatit 1999:201). A ativação do objeto, tubarões voando no espaço dos homens, e a passivação do sujeito (atores humanos) produzem um efeito de sentido de “emoção estética”.8 A acepção 2 da paixão pavor mostra-nos, pelas definições “comoção, agitação, turbação...”, as caracterı́sticas de tal emoção estética. Fiorin (1999:101–117) ressalta várias caracterı́sticas da experiência estética do acontecimento que vão ao encontro da análise deste trabalho. Na Tabela 1, a primeira coluna contempla as considerações teóricas extraı́das do artigo “Objeto artı́stico e experiência estética” do autor mencionado anteriormente, enquanto a segunda coluna contempla o nosso objeto de análise, com base em Greimas (2002). 6 Pessoas dentro de casa, movimento dos automóveis pela cidade. Todo discurso é criador de mundos, uma vez que a realidade é discursiva. Semioticamente, não há razão para distinguir mundo ficcional e mundo da realidade, pois ambos são efeitos de sentido discursivos. Um discurso, como o jornalı́stico, por exemplo, cria efeito de realidade e de verdade. Ora, todas as verdades são recortes do mundo produzidos pela linguagem. Não há razão para falar em mundo da realidade e mundo da fantasia. Tubarões voarem não é uma propriedade que opõe dois mundos, o ficcional e o da realidade, mas um discurso que provoca “efeito” de fantasia, enquanto tubarões “nadarem” provoca o efeito de simulação do mundo natural. 8 Cf. Zilberberg (2006:144–145). 7 116 Carolina Tomasi Tabela 1 Caracterı́sticas do objeto estético em análise Excertos retirados do artigo de Fio- Análise de “Tubarões voadores” rin (1999:101–117). com base no estudo do artigo citado e no texto de Greimas (2002), Da imperfeição. A experiência estética é um evento extra- Tubarões voadores englobados pela cotidiordinário englobado pela cotidianidade. anidade. A experiência estética é uma surrealidade Tubarões voando em São Paulo é uma englobada pela realidade. surrealidade englobada pela realidade. Nessa experiência estética, o tempo cessa No quadrinho 3, o tempo cessa (para), (para), o espaço fixa-se e ocorre um sin- o espaço fixa-se e ocorre um sincretismo cretismo entre sujeito e objeto, que estão entre tubarão e homem engolido (Figura disjuntos na temporalidade de todos os 1). No plano do conteúdo, há uma zona de dias. intersecção em que é difı́cil precisar onde começa o corpo do homem e onde começa o do tubarão: corpo de homem e corpo de tubarão confundem-se. Normalmente, tubarões ficam no mar, homens na cidade; são, portanto, disjuntos na temporalidade do cotidiano. Natureza do objeto estético. O objeto que se deu a perceber e que ganhou subjetividade na HQ é de natureza natural (animal do mar) e não cultural. O sujeito (atores-homens) afasta-se da re- O sujeito deixa a realidade da existência alidade enfraquecida e é absorvido pelo para viver durante o tempo dessa experimundo da ilusão. Há uma fusão do sujeito ência estética uma surrealidade, uma secom o objeto, como vimos. gunda vida (Cf. Fiorin 1999:101-117). Os atores-homens da cidade passam a con- Na fratura da cotidianidade, o sujeito, iniviver com atores de outro lugar, de outro cialmente ator pertencente ao dia a dia tempo. Alteram-se a actorialidade, a espa- da metrópole, libera-se desse cotidiano, vicialidade e a temporalidade do cotidiano. vendo um acontecimento extraordinário: a chegada dos tubarões voadores à cidade. Recepção do enunciatário. O enunciatário, ao ler “Tubarões voadores”, também se depara com uma leitura que configura um acontecimento extraordinário, fraturando a mesmice do cotidiano e instaurando outra realidade, que passa a ser vivida no momento da leitura dos quadrinhos (Cf. Fiorin 1999:107). Objeto estético modificador. Para Fiorin (1999:109), “é preciso modificar a ordem do mundo para torná-la mais expressiva”. Acontecimento em “Tubarões Voadores” 117 Trataremos a seguir do andamento do acontecimento em “Tubarões voadores”. Invasão do espaço: o andamento da HQ “Tubarões voadores” Zilberberg (2006:198) define, de acordo com Le Robert Micro, a palavra acontecimento: “aquilo que acontece e tem importância para o homem”. Para o Dicionário Houaiss (2001), acontecimento é 1. O que acontece; fato, ocorrência. 2. O que acontece ou se realiza de modo inesperado; acaso, eventualidade. 3. Pessoa ou fato digno de nota, que produz viva sensação [...]. Pelas definições, temos uma primeira pista para encontrar o andamento de “Tubarões voadores”: a invasão do espaço da cidade de São Paulo por tubarões voadores é a primeira indicação “da ordem do sobrevir, da subtaneidade, ou seja, do andamento mais rápido que o homem possa experimentar” (Zilberberg 2006:198). É de notar que não apenas esse acontecimento se dá de forma rápida, como também os próprios tubarões voadores já possuem essa caracterı́stica de rapidez. O adjetivo voador, como vimos na seção 3, conta, em uma de suas acepções, com as definições de rapidez, rápido, veloz. As escolhas do sujeito da enunciação recaem sobre um objeto veloz que se subjetiva, invade a cidade, com andamento acelerado, provocando no enunciatário o mesmo impacto que causou nos sujeitos, atores da cidade. A segunda pista está no fato de que todo acontecimento é carregado de importância para o sujeito; daı́ ser tônico. Zilberberg (2006:198) ressalta que “o sujeito, instalado na ordem racional, programada e compartilhada do conseguir [parvenir ], senhor de suas esperas sucessivas, vê-se desviado de seus caminhos habituais e projetado em sua devastação”. Tomando “Tubarões voadores”, verificamos que, antes da invasão (acontecimento), os sujeitos permaneciam mergulhados na ordem do racional. Eles tinham controle de suas esperas. O acontecimento dos tubarões quebra esse equilı́brio, o que só pode dar-se de forma rápida e tônica. 118 Carolina Tomasi Por um lado, o andamento e a tonicidade atuam em conjunto sobre o sujeito, mobilizando-o; por outro lado, o surgimento repentino de andamento e tonicidade causa “desmantelamento modal instantâneo” no sujeito, desarranjando-o. Zilberberg (2006:198) chama o acontecimento de semiose fulgurante, pois este último “arrebata para si todo o agir, não deixando ao sujeito nada além do suportar”. Passando para nosso objeto de análise, o evento tubarões arrebata para si as ações, e os sujeitos da cidade, impactados pelo acontecimento, são passivados. A seguir, examinaremos a música de Arrigo Barnabé que foi acrescida à HQ de Luiz Gê. A Música de Arrigo Barnabé na HQ “Tubarões voadores” A música9 “Tubarões voadores” de Arrigo Barnabé foi composta, como já dissemos, em 1984, com base no texto verbo-visual (“Tubarões voadores”) do artista plástico Luiz Gê. Trata-se de uma música dodecafônica, ou seja, que não tem uma tonalidade definida, e que se apropria dos doze semitons da escala, dispostos de maneira não hierarquizada. Segundo o Dicionário Houaiss (2001), dodecafonia é “um sistema musical baseado na divisão da oitava em doze meios-tons sem quaisquer relações tonais”. É diferente da canção em que encontramos uma relação da letra com a melodia, estudo desenvolvido por Tatit (1997, 1999) na área de semiótica da canção. No caso de nosso objeto, não é possı́vel estabelecer relação de junção, mas relação de dissensão10 entre os textos dos balões do quadrinho com a música de Arrigo. Vejamos o porquê: a música dodecafônica, não sendo considerada melodia, não é ritmada nem cantada, de forma que podemos verificar que o texto dos balões está sobreposto à música de Arrigo que vem no fundo; os balões dessa história em quadrinho simulam, portanto, a fala utilitária do cotidiano daquele espaço. Todavia, é de notar que há três frases que não pertencem à fala utilitária, mas contêm elementos musicais: 9 A música está disponı́vel em: www.cliquemusic.uol.com.br/discos/ver/turar~oesvoadores. Acesso em 20 de outubro de 2009. 10 Embora às vezes haja também o sentido de concorrência, optamos pela relação de disputa, dissensão, divergência. Acontecimento em “Tubarões Voadores” 119 • As frases (1) “tubarões voadores” e (2) “pânico não resolve nada” (Figura 1, no começo deste artigo; e Figura 2 a seguir) são faladas no ritmo da música e distorcidas por um modulador de voz ou, talvez, um sampler. Este último é um tipo de aparelho que imita sons, reproduzindo um som artificial, eletrônico. Por exemplo, pode-se imitar a voz humana, como no caso citado. • A terceira frase, a do quadrinho 20 (Figura 3), é melódica e ritmada: “afinal, esta é a harmonia da vida”. Figura 2 No balão: “Pânico não resolve nada”. Figura 3 No balão: “Afinal, esta é a harmonia da vida”. Outros aspectos constantes da descrição da música é que ela faz uso de figuras rı́tmicas aceleradas, breves e subsequentes. Além disso, é de notar que o sujeito da enunciação utiliza um recurso semelhante a um ostinato 120 Carolina Tomasi clássico, ou seja, é composto de um motivo rı́tmico repetitivo, ao qual são sobrepostas melodias dodecafônicas11 e contrapontos. No Dicionário Houaiss (2001), ostinato é figura melódica ou rı́tmica repetida obstinadamente ao longo de toda uma composição que serve de base a formas clássicas, como chacona, folia [...]; breve figuração melódica constantemente repetida durante uma composição; ostinarsi, persistir em um propósito insistentemente. Na música de Arrigo, temos um pseudo-ostinato, uma vez que a célula rı́tmica constante é executada alternadamente por diferentes sons reproduzidos por teclado e instrumentos de percussão: tambores e pratos. Estes últimos reforçam a pulsação acelerada em alguns trechos da música. Tal pulsação12 subjaz à música, ou seja, é a sua base rı́tmica e está estabelecida num andamento rápido. Com a ajuda de um metrônomo, constatamos que o andamento da música é allegro, considerado acelerado, porque se encontra em torno de 128 pulsações por minuto. Além disso, essa pulsação está presente em toda a cadeia musical, observando que os ataques dos tubarões na HQ são precedidos, como no filme de Spielberg, pelo motivo melódico inspirado na música-tema do filme Tubarão. Aqui, temos uma intertextualidade.13 É de notar uma quebra do andamento acelerado quando da intervenção da frase melódica “afinal essa é a harmonia da vida” em ritmo de valsa: o andamento desacelera-se e, nesse ponto, aproxima-se da canção em que há uma relação entre melodia e letra. Na música de Arrigo até o quadrinho 20, as frases são faladas e não há relação entre texto verbal e música. Basicamente, há uma cadeia musical que subjaz ao texto, que é constituı́do de fala utilitária tão somente. Todavia, no momento da valsa, instrumentos, ritmo, melodia e letra caminham juntos: é um momento pontual, sem duração; instaura-se uma parada da continuação na aceleração da música principal. A desaceleração introduzida por essa valsa (essa é a harmonia da 11 No caso da música sob análise, é de se observar que não há melodia cantada, mas há melodias executadas pelos instrumentos musicais. 12 Pulsação musical “é a unidade abstrata de medida do tempo musical a partir da qual se estabelecem as relações rı́tmicas” (Houaiss 2001). 13 No filme Tubarão, os atores-tubarões encontram-se em seu meio natural. O percurso desse sujeito figurativizado pelos tubarões é natural: o ato de engolir homens seria a forma fisiológica de matar a fome. Todavia, na história de Luiz Gê, a fome é da ordem da estesia. Nela, ocorre a inversão dos papéis de sujeito e objeto: os tubarões voadores viram sujeitos de um percurso paralelo ao percurso dos homens da cidade. Acontecimento em “Tubarões Voadores” 121 vida) é uma tentativa de reconstrução de um sujeito abalado pelo impacto do acontecimento estético acelerado dos tubarões voadores voando pela cidade. Logo após essa pontualidade descrita, recupera-se o andamento acelerado da música. A seguir, veremos a relação de disputa entre a música e a fala utilitária dos balões. Relação de dissensão entre a música e os textos dos balões No inı́cio deste artigo, comentamos sobre a presença na narrativa de um destinador ético cujo objetivo é desacelerar, devolver o comedimento que foi subtraı́do pela estesia do acontecimento (cf. Zilberberg 2006:198). No nı́vel discursivo, as frases utilitárias do destinador ético são aquelas que estão no fundo da música. Uma vez que as frases faladas por tal destinador não revelam relação entre melodia e letra, elas parecem concorrer com a música de Arrigo. A fala dos balões é ordenada pelo eixo do dever, da ética; tem a função de preservar o sujeito na rotina do cotidiano, é implicativa, preventiva, do bem; tal fala ética concorre com a música dodecafônica e o plano visual, ambos acelerados, concessivos, da ordem do acontecimento, do artı́stico, portanto. Tomamos como exemplo algumas dessas falas do destinador: “Qualquer movimento os atrai”, “De nada adianta fugir”, “Gritar não é recomendável”, “Por isso, feche portas e janelas, Joãozinho”, “Não adianta nada deixar a janela apenas entreaberta”, “As janelas devem ter grades”, “E as portas, trancas” [...] “Pois no coração do prudente descansa a sabedoria”. Todas as intervenções desse destinador revelam preocupação ética que procura restabelecer a ordem suprimida pelo acontecimento, como se quisesse devolver ao sujeito o controle da situação, repelindo a estesia. De um lado, então, temos a música dodecafônica e de outro, a simulação da fala: ambos em disputa. A música obstinadamente procurando se conservar no fundo à medida em que é diluı́da a fala sobreposta do destinador. Para tubarões voando, a “voz da experiência” no fundo recomenda que se “feche portas e janelas, Joãozinho”. É como se devesse proteger o espaço para que nenhum revés sobreviesse, não se podendo, desse modo, voar (a fuga do cotidiano). Todavia, embora haja trancas e cadeados nas janelas, 122 Carolina Tomasi os tubarões penetram assim mesmo, e a vida entra pela janela com seus acontecimentos e sobressaltos. A sintaxe da fantasia: [embora isso, aquilo]. Finalmente, tomemos a frase utilizada pelo destinador: “No coração do prudente descansa a sabedoria”, que é uma intertextualidade de um provérbio bı́blico. Todavia, na Bı́blia a frase é um pouco diferente: “a sabedoria descansa no coração prudente, mas também se faz sentir no meio dos insensatos”.14 Mantenedor da ordem, da banalidade do cotidiano, o destinador é sábio, de modo que tubarões não teriam vez no espaço, ou seja, qualquer voo além do tradicional seria de alto risco. A sabedoria, portanto, encontra morada na prudência, na ética, na implicação, na previsão da vida: “feche a janela”, “gritar não é recomendável”, “não adianta nada deixar a janela apenas entreaberta”, “as janelas devem ter grades”, “as trancas, cadeados”, “e os cadeados, fechos de segurança”. Mas talvez seja na concessão que a fantasia e o artı́stico encontrem seu espaço (“no meio dos insensatos”), podendo, nesse caso, os planos da expressão da música e do visual serem mais resistentes do que o plano da expressão da fala cotidiana. Abstract Taking as a reference the Tensive Semiotics, this paper focuses on a comic (Luiz Gê’s “Tubarões Voadores” - Flying Sharks), which was set to music by Arrigo Barnabé. Our purpose is to examine how events occur in this narrative. The analysis leans on the verification of verbal, visual and musical enunciations, approaching at first the narrative, which is marked by the quickness of the “ephemeral lightning flash,” reason why we run through the senses of the terms shark, flying and to fly in order to set the timing of this semiotic object. Concerns about suddenness and tonicity, elements that intersect Arrigo Barnabé’s music, are thus justified. At the end of the analysis, we verify that there is in “Tubarões Voadores” a dissent between languages in which an overlapping of texts in the speech bubbles and Arrigo’s music reveals a contest between verbal and musical elements. Lastly, we examine the connections between ethics and aesthetics; while speeches would be ordered by obligation, by ethics, acting as an element that preserves the subject in everyday routine, both music and visual field would lie in the realm of events and therefore in the realm of aesthetics. From the game played between obligation and desire, the figure of the addresser issues in the speech bubble. It is pointed out that there is no room for suddenness and art (invasion of sharks) when values of a utilitarian, pragmatic world prevail. Keywords: Tensive Semiotics; Aesthetics; Ethics; Music; Comics. 14 No provérbio bı́blico, a sabedoria não descansa apenas no coração do prudente (implicativo), mas também no coração do insensato, imprudente (concessivo). A sabedoria está, portanto, tanto no cotidiano quanto no artı́stico, no bem e no bom. Acontecimento em “Tubarões Voadores” 123 Referências Barnabé, Arrigo. Tubarões voadores, 1985. Disponı́vel em: www.cliquemusic.uol.com. br/discos/ver/turar~oesvoadores. Acesso em: 20 out. 2009. Fiorin, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2008. Fiorin, José Luiz. Objeto artı́stico e experiência estética. In: Landowski, Eric; Dorra, Raúl; Oliveira, Ana Claudia de. Semiótica, estesis, estética. 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