25ª Reunião Brasileira de Antropologia
- Saberes e Práticas Antropológicas - Desafios para o Século XXI -
Associação Brasileira de Antropologia - ABA
Goiânia-GO, 11 a 14 de Junho de 2006
SER "DE ORIGEM" POMERANA EM ITUETA:
ETNICIDADE E CONFLITO AO
LONGO DO SÉCULO XX
Ricardo Álvares da Silva
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Maio de 2006
25ª Reunião Brasileira de Antropologia - ABA
Ser "de origem" pomerana em Itueta: etnicidade e conflito ao longo do século XX
Ricardo Álvares da Silva - Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo
A partir de 1847 o governo da Província do Espírito Santo organizou diversas colônias de
imigrantes destinadas a elementos europeus, sendo que os pomeranos, a princípio, foram os mais
numerosos. Passados mais de 50 anos, parte destes imigrantes, ou seus descendentes, migraram
espontaneamente para a margem esquerda do rio Doce, na altura do atual município de Itueta,
em Minas Gerais, ocupando terras consideradas devolutas, embora pertencentes a indígenas
“botocudos”. Estas tardaram a ser ocupadas devido à resistência dos indígenas, à ocorrência de
doenças tropicais na região e, principalmente, por ser considerada “zona proibida” pela coroa
portuguesa, que temia o extravio dos metais preciosos pelo leito do rio Doce. Minimizados estes
“problemas” no início do Século XIX, inicia-se um lento processo de “ocupação” da região.
Contudo, a implantação da Estrada de Ferro Vitória a Minas, que adentra o território mineiro em
1905, contribui para sua aceleração. O objetivo deste trabalho, portanto, será refletir sobre as
circunstâncias históricas que propiciaram esta imigração espontânea, assim como sobre os
processos identitários deste grupo no confronto com indígenas, descendentes de italianos e
“nacionais”, e os conflitos daí advindos, destacando as especificidades culturais do grupo étnico
pomerano.
Introdução
Este é um primeiro ensaio sobre uma pesquisa que apenas se inicia. Como de praxe,
eventuais equívocos ou omissões serão mais bem investigados ao longo do desenvolvimento dos
trabalhos.
Estas reflexões iniciais surgiram no bojo de uma pesquisa histórica sobre o processo de
ocupação de três municípios mineiros na divisa com o Espírito Santo: Aimorés, Itueta e
Resplendor. Portanto, neste momento a indicação de elementos históricos a este respeito se
mostra presente ao longo de todo este breve trabalho, que tentará, mais que buscar explicações,
situar e contextualizar as características históricas e também culturais que proporcionaram os
processos migratórios de famílias “de origem pomerana” para a região de Itueta.
Agradeço à empresa Sete Soluções e Tecnologia Ambiental Ltda pelo apoio para sua
realização e apresentação nesta reunião. Ao historiador Marcos Rezende Silva agradeço pelo
2
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companheirismo ao longo dos primeiros trabalhos de campo que, embora não realizados com
este fim, proporcionaram as primeiras reflexões que ora trago a público.
Colonizando os Rincões do Espírito Santo
Visando situar a questão em suas linhas mais gerais, é importante esclarecer que a
Pomerânia era uma região européia independente, apesar dos contínuos conflitos com povos
vizinhos, até princípio do Século XIX, quando em 1817 foi anexada à Prússia, vindo a integrar a
“Confederação Germânica”. Posteriormente, em 1871, com a Unificação Alemã, passa a fazer
parte da Alemanha. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial seu território é fragmentado,
sendo que a maior parte passa a integrar a Polônia, outra menor a Alemanha Oriental e outra
ainda menor a Alemanha Ocidental. Desta forma, quando os primeiros pomeranos migraram
para o Espírito Santo, no início do processo de colonização, a Pomerânia fazia parte da Prússia.
Mais tarde, quando outras famílias adentraram o território capixaba, ela já era parte constituinte
da Alemanha, ao passo que hoje, porém, o território pomerano original encontra-se em grande
parte em solo polonês1.
Até meados do século XIX o Espírito Santo era parcamente povoado, caracterizado por
uma ocupação que se concentrava quase que exclusivamente em sua faixa litorânea,
principalmente ao sul do rio Doce.
Os capixabas preferiam manter-se na costa2. Por um lado, devido à presença histórica do
elemento indígena, sempre oferecendo brava resistência à penetração em seu território. Por
outro, devido à proibição do Império Português de que as matas do rio Doce fossem ocupadas,
numa tentativa de evitar o desvio dos valiosos minerais explorados em Minas Gerais e como
forma de garantir uma reserva de recursos florestais para sua futura utilização3. Além disso, os
capixabas foram criando um sistema de produção de farinha de mandioca, associado ao seu
comércio ao longo da costa, que lhes propiciava um retorno econômico suficientemente
satisfatório.
1
Sobre a história da Pomerânia, conferir RÖLKE, 1996 e JACOB, 1992.
2
Conferir ESPINDOLA, 2005.
3
Idem.
3
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Em 18474, entretanto, inicia-se, com o propósito de modificar esta característica, um
intenso processo de fomento e estímulo à imigração de elementos europeus para aquela província
do Império Brasileiro. A imigração européia de elementos não portugueses, em massa, para o
Espírito Santo tem início, portanto, naquele ano com a estruturação da Colônia Santa Izabel,
atual município de Domingos Martins. Nos anos seguintes são formadas as colônias de Rio
Novo, em 1855, encampada pelo governo em 1861; Santa Leopoldina, em 1857, e Castello, em
1880, dentre outras.
O incentivo à imigração, visando à ocupação do interior e da parte norte da Província
(Estado após 1889), transformou-se, desta forma, em uma política pública, sustentada por um
aparato administrativo próprio e por propagandas divulgadas na Europa. A escolha pelo
elemento europeu tem todo um simbolismo, sustentado por teorias raciais com forte influência à
época, conforme prática também adotada em outras regiões brasileiras.
A colonização do Espírito Santo, também neste ponto de maneira semelhante a outras
regiões, registrou inúmeras situações conflituosas, como o não cumprimento de promessas por
parte dos agentes de fomento da imigração. Os imigrantes (também os de origem italiana e
outras, vindos mais tarde) receberam terras inexploradas em meio a regiões de Mata Atlântica
situadas em regiões montanhosas, pouquíssimo apoio técnico, financeiro e pessoal
(equipamentos sociais de saúde, educação etc.), tendo sido praticamente abandonados à própria
sorte nas regiões interioranas do sul e posteriormente do norte do Espírito Santo. Muitos
morreram em função de doenças tropicais e devido à falta de adaptação a um ambiente
totalmente diferente do que estava acostumado em solo europeu. Não obstante, vencidas as
primeiras dificuldades de adaptação, vários prosperaram e os núcleos originais deram origem a
diversos municípios capixabas.
A memória social dos pomeranos de Itueta indica que os mesmos são descendentes de
imigrantes que desbravaram as regiões interioranas da porção central do Espírito Santo, ao sul do
rio Doce, em regiões como Santa Leopoldina, Itaranas, Itaguaçu e Laranja da Terra.
4
Em que pese a experiência anterior ocorrida em Viana, com a introdução de imigrantes açorianos no início do
século XIX, pois esta foi uma iniciativa isolada que não teve um cunho de uma política pública previamente
organizada e efetivamente duradoura.
4
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O processo de Migração para Minas Gerais
Até o primeiro quarto do século XX o trecho final do médio e inicial do baixo rio Doce,
na atual divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo, até então em litígio5, encontrava-se com sua
vegetação, composta principalmente por Mata Atlântica, bastante preservada, comparada com
outras regiões já intensamente exploradas6.
A região foi “tardiamente”7 colonizada e três fatores principais concorreram para isto.
Em primeiro lugar, o médio rio Doce foi considerado “zona proibida” pelo Império
Português, que assim visava evitar o desvio dos minerais que se encontravam em processo de
exploração nas cabeceiras de sua bacia (atual Ouro Preto, dentre outros municípios).
Paralelamente, doenças tropicais como malária, febre amarela e outras eram bastante
freqüentes na região, causando transtorno a viajantes e eventuais colonizadores8. Vários foram os
relatos a este respeito, como os de Saint-Hilaire, por exemplo, que associava as febres constantes
enfrentadas pelos viajantes aos vapores decorrentes da retenção da água da chuva nas várzeas do
rio Doce, que se evaporavam com o ressurgimento do sol.
Por fim, mas não menos importante, havia ainda a presença do elemento indígena,
classificado pelos portugueses através do termo genérico de “botocudos”, oferecendo brava e
histórica resistência à penetração dos exploradores portugueses em seu território9.
Esta lógica começa a ser quebrada com a escassez do ouro de aluvião na região
mineradora, sendo que com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, é
5
Minas Gerais e Espírito Santo disputaram, por mais de 150 anos, onde se definiria a divisa entre ambos. Ocorreram
batalhas físicas e judiciais a este respeito até que na segunda metade do século XX a questão se resolveu em grande
parte a favor de Minas Gerais.
6
Conf. ALMEIDA, 1959; ESPINDOLA, 2005 e PAULA, 1997.
7
Somente a partir do último quartel do Século XIX, se intensificando a partir do primeiro do XX, é que a região em
foco passou a ser colonizada, conforme se demonstra adiante.
8
Apesar de ser uma “zona proibida”, e antes mesmo de o sê-lo, diversas expedições colonizadoras adentraram o
território, desde 1550. Além disso, em suas “bordas” chegou-se mesmo a se constituir municípios. A respeito destes
aspectos, conf. SANT-HILAIRE, 1974 e ESPINDOLA, 2005.
9
Conf. SANT-HILAIRE, 1974; ESPINDOLA, 2005 e MATTOS, 1996, dentre outros.
5
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declarada “guerra justa” aos indígenas “botocudos” objetivando liberar a até então “zona
proibida” para exploração e colonização10.
Tendo praticamente dizimado os indígenas, e mantendo a maior parte dos que restaram
em aldeamentos, cerca de 100 anos mais tarde, em 1905, a “Maria Fumaça”, símbolo maior da
exploração intensiva de uma região àquela época, adentrava o solo mineiro do médio rio Doce,
através da Estrada de Ferro Vitória a Minas11. A Estação da Natividade do Manhuaçu, atual
Aimorés, primeira em território mineiro12, só foi inaugurada em 1907, ao passo que a segunda,
em Resplendor, em 190813. Pimenta14, primeiro presidente da então estatal Companhia Vale do
Rio Doce, assim se refere a este período:
“Indubitavelmente, a Estrada de Ferro Vitória a Minas tem sido, desde o início
de sua construção até o presente, o fator principal para o desbravamento e o
povoamento desse ubérrimo Vale. A penetração dessa ferrovia, pela mata a dentro,
inseparavalmente seguida pelo caudal do Rio Doce, representa um dos episódios mais
heróicos da história das construções ferroviárias brasileiras. Milhares de seus obreiros
foram sepultados no próprio leito da estrada, em construção, ou nas então recentemente
abertas clareiras das matas virgens, vitimados pelas endemias, ou pelas desavenças,
lutas e tragédias que se verificavam em um meio tão propício à violência e à
incompreensão. A malária foi, no entanto, o mais grave e sério obstáculo encontrado.
Era o terror dos que escavavam a terra para abrir estradas, e daqueles que se
embrenhavam nas florestas para se apossarem de terrenos devolutos.”
Com a implantação do acesso ferroviário, paralelamente ao extermínio e ou ao
aldeamento dos indígenas promovido durante todo o século XIX e início do XX, registra-se um
movimento migratório no sentido Espírito Santo - Minas Gerais, na região de divisa entre ambos
10
Conf. ESPINDOLA, 2005 e MATTOS, 1996.
11
Conf. ALMEIDA, 1959.
12
Na verdade a região passava por um processo de litígio entre Minas Gerias e Espírito Santo, que se arrastava a
mais de um século e que só viria a ser completamente resolvido, à favor dos mineiros, por volta da década de 1950.
13
Na atual Aimorés havia duas localidades, relativamente próximas: Barra do Manhuaçu e Natividade. Com a
construção da Estação Ferroviária, o nascente núcleo urbano se desloca para o entorno da mesma, mais próxima à
Natividade. No caso de Resplendor, o próprio nascimento de um núcleo urbano só teve início após a construção de
sua Estação Ferroviária. A este respeito, conf. PAULA, 1993.
14
Conf. PIMENTA, 1955.
6
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banhada pelo rio Doce. Esta migração, ocorrida principalmente entre 1916 e 1925, além de
contar com elementos de origem brasileira, contou também com imigrantes e ou descendentes de
imigrantes de origem européia, fundamentalmente italiana e pomerana.
Os pomeranos comumente mantêm uma prática ancestral intitulada morgadio15, em que a
herança da terra é transmitida a apenas um filho, normalmente o homem mais novo, evitando
desta forma o fracionamento excessivo da propriedade. Assim sendo, a busca de novas áreas
produtivas, por apossamento ou compra, era uma prática bastante comum entre os mesmos, o
que foi os impulsionando para as regiões interioranas do Espírito Santo e, posteriormente, para a
divisa deste com Minas Gerais.
Devido às dificuldades de transporte existentes na época, ainda que minimizadas pela
existência da estrada de ferro, e considerando-se, ainda, a relativa falta de recursos materiais por
parte dos imigrantes, o deslocamento dos pomeranos até o novo local de moradia costumava ser
bastante penoso. Os animais para transporte eram poucos e costumavam ser utilizados com os
móveis e outros utensílios domésticos, como roupas, artigos de cozinha etc., além daqueles
utilitários de trabalho. Desta forma, restava aos membros da família, principalmente aos adultos,
marchar à pé ao lado dos mesmos. Tal fato se dava, normalmente, até à estação ferroviária mais
próxima, na qual os objetos eram despachados via “Maria Fumaça” até a Estação de Aimorés, a
partir da qual voltavam a ser transportados por animais até o local de destino, inclusive com a
necessidade de travessia por balsas dos rios Manhuaçu e Doce, até sua margem esquerda.
Territorialização e Conflito
No Espírito Santo os pomeranos que migraram para Itueta geralmente habitavam regiões
altas, que se apresentavam difíceis para o exercício da agricultura, em função não apenas da
altitude em si, e do frio que ela representava, mas devido às formações rochosas que
predominavam por grande parte do território.
A imigração para regiões em processo recente de colonização, portanto, justifica-se não
apenas pelo processo de morgadio como também pela busca de novas áreas com condições mais
propícias para o desenvolvimento da agricultura.
15
Conf. ROCHE, 1968.
7
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Sobre este fenômeno, Roche16 observa:
“Não constitui um paradoxo o fato de que não apenas os meeiros (há pouco
tempo), mas os proprietários (há muito tempo), emigrem regularmente para a periferia
dos núcleos de colonização ou para as clareiras abertas em plena floresta? Ora, eles não
vão sempre de terra fria para terra quente, isto é das antigas colônias para as novas,
mas voltam por vezes destas para aquelas, do norte do rio Doce para o sul, seja para o
vale do Guandu, seja para a montanha, que foi o berço da colonização, numa
contradança que se torna mais difícil ainda compreender. As migrações rurais que
afetam um décimo dos habitantes das colônias, constituem, com efeito, um fenômeno
igualmente amplo e complexo. Para descrevê-lo com precisão recorremos aos registros
do Estado Civil e aos arquivos das comunidades luteranas, que são as fontes mais ricas e
mais preciosas, assim como às nossas observações e às declarações dos próprios
colonos. Não se pode dizer que haja migrações de “velhice”, uma vez que os mais
antigos estabelecimentos são, ao mesmo tempo, zona de emigração e de imigração; eles
obedecem todos ao ritmo que lhes determina sobretudo a necessidade de terras virgens
para instalar, quando de seu casamento, os filhos de colonos. É verdade que a
especulação intervém por vezes, mas infinitamente menos que o desejo de estabelecer
cada um dos filhos como proprietários, de que está imbuído todo colono que se respeite.
A estrutura agrária e social da pequena propriedade é pois uma das causas profundas
da instabilidade rural nas regiões exploradas há menos de cem anos, em alguns casos há
menos de trinta. A outra causa é, evidentemente, a conservação da agricultura sobre
queimadas, depauperantes, devastadoras, mas inevitáveis enquanto a conjuntura
permanecer a mesma.”
Não obstante, com a imigração para estas novas regiões em processo inicial de
colonização os pomeranos inicialmente enfrentam sérios conflitos ambientais.
Uma vez tendo chegado ao local de destino, novo período de grandes dificuldades e
privações se iniciava, e com ele as primeiras providências. Inicialmente, procuravam fazer a
primeira moradia, de forma improvisada, com os recursos da mata. Em seguida, providenciavase a abertura da primeira área de trabalho. Obedecendo às técnicas comuns à época, e ainda hoje
16
Idem, pág. 352.
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comumente utilizadas em regiões de expansão de fronteira agrícola, toda a vegetação existente
nesta área que seria destinada à utilização agropecuária era devidamente derrubada, em um
processo conhecido como coivara. Algumas poucas peças de madeira eram aproveitadas, fosse
para o fabrico de algum utensílio necessário para a propriedade, fosse mesmo como reserva de
combustível para utilização principalmente na cozinha. Todas as demais eram, posteriormente,
queimadas, sendo que para isso tomava-se o cuidado de fazer aceiros para evitar que o fogo se
alastrasse não apenas para o restante da área apossada como para áreas pertencentes aos
vizinhos17. A utilização deste tipo de técnica estava associada a um só tempo à necessidade de
deixar a área liberada para as atividades produtivas, valendo-se dos poucos recursos disponíveis,
e ao objetivo de promover sua adubação.
Além da abertura de áreas para a exploração agropecuária, também colaborou
significativamente neste processo as locomotivas a vapor da Estrada de Ferro Vitória a Minas,
abastecidas com as reservas florestais disponíveis na bacia do rio Doce, principalmente em seus
trechos médio e baixo.
Nestes primeiros momentos não ocorria a comercialização das madeiras, visto que ainda
não havia nenhuma atividade ligada à sua exploração comercial, a não ser na ferrovia, que
possuía suas próprias reservas.
No entanto, com o passar dos primeiros anos, madeireiros profissionais iniciaram uma
forte atuação na região, último estágio de intensa exploração da Mata Atlântica, através da
implantação de madeireiras e serrarias.
Estes madeireiros, além de explorarem áreas por eles adquiridas (ou “ocupadas”),
adquiriam espessas árvores existentes nas áreas dos colonos, muitas das vezes trocando as
mesmas pela regularização fundiária da posse18.
As primeiras roças plantadas visavam à subsistência não apenas da família como da
criação que se iniciava. Como o capital disponível para investimentos era reduzido, estas
criações normalmente se limitavam a galinhas e porcos (capados). Assim, eram cultivados
produtos como milho, feijão, cará, inhame, mandioca e arroz, dentre outros.
17
Mesmo com os cuidados devidos, incidentes deste tipo costumavam ocorrer, segundo relatos obtidos em campo.
18
Este aspecto foi relatado durante as entrevistas realizadas na região. Como as famílias não contavam com capital
suficiente para este tipo de investimento, ou seja, para pagar por serviços de agrimensura e cartoriais, objetivando a
legitimação de suas posses territoriais junto ao Governo Estadual, elas costumavam ceder áreas com vegetação para
as madeireiras, que em troca arcava com os custos de tal processo.
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A criação de gado, por sua vez, não ocorria de forma significativa. Em parte, em função
do que foi relatado anteriormente, ou seja, a falta de capital para investimento. Mas, por outro
lado, também devido à enorme dificuldade para o escoamento da produção, fosse de carne ou,
principalmente, tendo em vista que diária, de leite.
O centro consumidor mais próximo era Aimorés. No entanto, as dificuldades de
transporte, associada à falta de estradas e à morosidade do deslocamento através de animais pelo
menos até algum porto, de onde a mercadoria seguia em canoas, limitava enormemente o
intercâmbio comercial entre os produtores e os consumidores em potencial. Além disso, havia a
dificuldade decorrente da falta de domínio da língua portuguesa, principalmente pelos mais
velhos, o que dificultava o acesso aos mercados consumidores da região.
O enfrentamento de agentes transmissores de doenças tropicais, embora com incidência
muito menor quando comparado com períodos anteriores, também se mostrou problemático e
penoso para as famílias.
Ainda nesta seara ambiental, mais recentemente o conflito maior dos pomeranos tem sido
com as doenças provocadas pela exposição excessiva ao sol forte, visto que as áreas com
vegetação mais densa praticamente inexistem atualmente. Este tem sido um grave problema de
saúde pública em regiões do Espírito Santo com predominância de descendentes de alemães, não
sendo diferente, também, em Minas Gerais.
Quando os pomeranos migraram para MG, na região existia apenas o município de
Aimorés, sendo que mais tarde surgiram os municípios de Resplendor e Itueta. O rio Doce corta
o território dos três municípios. À sua margem direita os moradores da região deram o nome de
“sul”, enquanto que à esquerda coube a classificação de “norte”.
Suas sedes ficam na parte sul. Com exceção de Itueta, reconstruída em outro local
recentemente em função da formação do reservatório de uma usina hidrelétrica na região, mas
que até então possuía esta característica, ficam à margem deste importante curso d’água. Todos,
embora em épocas distintas, se consolidaram enquanto municípios na primeira metade do século
XX19, tendo Resplendor se emancipado de Aimorés e Itueta de Resplendor. Também é na parte
19
Aimorés em 1916, Resplendor em 1939 e Itueta em 1949.
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sul que passa a Estrada de Ferro Vitória a Minas, atualmente transportando quase que
exclusivamente minério de ferro20.
Existem descendentes de imigrantes pomeranos nestes três municípios mineiros, assim
como de alemães e italianos. Colonizadores considerados brasileiros também participaram do
recente processo de ocupação da região por não-indígenas, assim como, em número bem mais
reduzido, de outras etnias, como suíços e portugueses, por exemplo.
Ainda não foi possível identificar com precisão os fatores determinantes para isso, mas
fato é que os descendentes de pomeranos se radicaram na região norte, ao passo que os descentes
de italianos se concentraram na região sul. Embora se situem nos três municípios, foi no
município de Itueta que eles se concentraram em maior número.
Começaram a chegar à região por volta de 1916, sendo que este processo se estendeu,
com maior intensidade, até aproximadamente 1925. Entre 1922 e 1924, imigrantes alemães
masculinos vieram diretamente de Alemanha para a região, justamente na parte norte do atual
município de Itueta, estabelecendo-se às margens do rio Doce. Um ou dois anos depois suas
noivas chegaram, constituindo famílias com aspectos altamente contrastantes em relação aos
pomeranos. Enquanto estes últimos, por exemplo, eram predominantemente luteranos, falavam o
pomerod (língua pomerana, à qual se referem como “língua baixa”) e possuíam tradições
culturais bastante distintas em relação às festas de casamento (as mulheres se casavam de preto e
as festas duravam três dias, dentre outros aspectos) e à culinária, por exemplo, os imigrantes
alemães eram ateus ou presbiterianos, falavam o alemão (alguns se referem à mesma como
“língua alta”) e possuíam experiência de guerra (Primeira Guerra Mundial).
Os pomeranos, entretanto, se concentraram nas regiões mais interioranas da porção
“norte” do rio Doce. Nos primeiros anos, eram comum a presença de elementos indígenas na
região.
Almeida21, em um livro de memória sobre o "desbravamento das selvas do rio Doce" pela
Ferrovia Vitória a Minas relata uma passagem que deixa clara a presença e domínio de indígenas
Krenak, os últimos botocudos da região, na margem esquerda daquele rio ainda nos idos de
1905, quando o mesmo era um dos engenheiros responsáveis pela equipe de construção da
20
Também circula um trem de passageiros em cada sentido (Belo Horizonte/Vitória e vice-versa) por dia, além de
ocorrer o transporte eventual de alguma outra carga.
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Conf. Almeida, 1959, pág. 204.
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ferrovia. Ele relata uma passagem ocorrida em um dia de folga, em que resolveram tomar uma
embarcação e cruzar o rio Doce, munidos de diversas bugigangas como espelhos, pentes e contas
de vidro, além de mantimentos como farinha, milho e carne, até sua margem esquerda,
acompanhados de uma índia chamada Benedita, para manter contato com os krenak e acabar
com sua fama de arredios.
Desta forma, ao chegarem à outra margem, e mesmo com a presença da indígena
Benedita, que conhecia a língua dos Krenaks e gritava que os visitantes eram amigos dos
indígenas e lhes traziam presentes, foram recebidos a flechadas, não se consumando uma
tragédia porque as barrancas do rio não lhes proporcionaram um ângulo mais propício para
alvejar os invasores.
“(...) Os canoeiros atarantados com a gritaria, e de pavor causado pelo ataque
dos selvagens, parece haverem ficado lesos do raciocínio. Absorve-os a água e, cosidos
aos bordos, aterrados, ficam imóveis.
O ataque, de instante a instante, intensifica-se. As flechas coalham o rio e já
estaríamos ensangüentados, e quiçá mortos, se os agressores se houvessem postado na
ribanceira. Receavam, por certo, a nossa resistência e detrás das árvores afastadas se
escondiam e, porque a embarcação estava muito próxima da barranca, o campo de visão
lhes era duplamente desfavorável.
Na canoa, crescia a confusão e balbúrdia, a ponto de muitos já quererem
abandoná-la. Então, prognosticamos o sacrifício, a morte de todos pelas flechas dos
índios que, a cavaleiro da ribanceira, acometeriam de perto e, ainda, por afogamento
nas águas do caudal.
Pedimos-lhes, rogamos-lhes calma. Objetaram-nos. Atenderam-nos, em seguida,
com relutância.
- Por ventura alguém terá alguma arma de fogo?
- Tenho um revolver - respondeu o Sr. Buriche.
- Atire para o ar.
De pronto cessou o ataque após o estampido.
Desentorpecemos os canoeiros.
- Desencalhem a canoa. A custo obedeceram.
- Depressa remem, mupiquem. E os senhores deitem-se no fundo da embarcação.
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E esta, impelida pela força tresdobrada dos remadores, breve, estava a uns trinta
metros da praia.
Encorajam-se os bugres com a nossa retirada e de lugares mais chegados à
beirada lançam uma saraivada de setas, embora se conservem ainda ocultos na mata
cerrada. Flechas há que cravam as pontas na parte externa da canoa, após descreverem
parábolas admiráveis.(...)”
Havia aldeamentos destes indígenas na região, como em Pancas (município capixaba na
fronteira com Minas Gerais) mais ao norte e distante do rio Doce, em Cuparaque (também mais
distante da margem do rio Doce, para o interior do Estado de Minas Gerais, além do local
intitulado Crenaque, às margens do rio Doce em sua parte norte, mas após a sede do município
de Resplendor, provavelmente o maior de todos os aldeamentos destes indígenas. Desta forma,
era comum o trânsito dos indígenas entre estes locais, além de existirem outros que resistiram ao
aldeamento.
Portanto, cerca de uma a duas décadas depois, quando os pomeranos migraram para o
local, indígenas ainda perambulavam pela região. Migrantes chegados à região ainda criança,
narram o medo que sentiam dos indígenas e os sons assustadores que estes produziam, gerando
pânico aos membros das famílias.
Durante o governo de Getúlio Vargas, os pomeranos enfrentaram os efeitos da Campanha
de Nacionalização empreendida por seu governo.
Acostumados a utilizar a língua pomerod em seus contatos com outros membros do
grupo étnico, a língua alemã no processo de ensino, geralmente desenvolvido paralelamente à
preparação religiosa, e o português nos contatos com membros de outros grupos étnicos,
principalmente em se tratando de relações econômicas ou nas esferas oficiais dos mais diversos
órgãos estatais, por exemplo, os pomeranos se viram forçados a adotar a língua portuguesa como
língua oficial, principalmente no processo de ensino escolar22.
Posteriormente, durante o período da Segunda Guerra Mundial, ocorreu um dos mais
marcantes conflitos étnicos da região. Em 1942, grupos de homens armados, dizendo-se batepaus, espécie de policiais voluntários comumente existente à época, cometeram inúmeras
atrocidades com diversas famílias pomeranas na região, valendo-se da posição antagônica do
Brasil em relação à Alemanha na referida guerra. Famílias inteiras passavam as noites “no mato”
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Sobre toda esta problemática, conferir SEYFERTH, 1997 e BAHIA, 2001.
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para evitar as ações violentas destes grupos. Ainda assim, algumas mulheres sofreram violências
sexuais, homens foram espancados e um grande volume de bens foram saqueados. Rudio Pieper,
pomerano de Itueta, assim se referiu a este período durante uma entrevista:
“O meu avô perdeu tudo. Invadiram a casa dele e carregaram tudo que ele tinha.
Perdeu tudo que ele tinha. Mandaram os meninos arriarem os animais e carregaram
tudo. Tudo que eles puderam carregar, eles carregaram. Não sobrou nada.”
Ser “de origem” pomerana em Itueta
Por grupo étnico, entendo, com Barth, um tipo de organização social, baseado na autoatribuição (ou na atribuição por outros) de categorias étnicas, ou seja, aquelas que classificam
“uma pessoa em termos de sua identidade básica mais geral, presumivelmente determinada por
sua origem e seu meio ambiente. Na medida que os atores sociais usam identidades étnicas para
categorizar a si mesmos e outros, com objetivos de interação, eles formam grupos étnicos neste
sentido organizacional.” (BARTH, [1969] 1998, p. 193 e 194) Por sua vez, nas palavras de
Weber, grupos étnicos são “esses grupos que alimentam uma crença subjetiva em uma
comunidade de origem fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou dos
dois, ou nas lembranças da colonização ou da migração, de modo que esta crença torna-se
importante para a propagação da comunalização, pouco importando que uma comunidade de
sangue exista ou não objetivamente” (WEBER, 1971 [1921], p. 416 apud POUTIGNAT E
STREIFF-FENART, 1998, p. 37)
Portanto, pode-se dizer, como um primeiro exercício exploratório mais geral, que a
expressão “de origem”, neste caso específico pomerana, funciona como uma forma de apontar
quem está dentro e quem está fora do grupo étnico pomerano, claramente fundado em um
sentimento comum envolvendo as lembranças da colonização e da imigração.
Ser “de origem” pomerana em Itueta, hoje, mais do que a eventual comunhão de práticas
culturais específicas indica, desta forma, um passado ancestral comum, forjado no pioneirismo
dos antepassados no Espírito Santo e na própria região.
É a este aspecto que se pretende dedicar maior atenção ao longo do processo de pesquisa
recentemente iniciado.
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