Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio fotobiográfico PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA Novembro de 2014 Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio fotobiográfico Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural Orientadora: Adelaine LaGuardia PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA Novembro de 2014 A minha mãe, por toda a sua luta solitária que me fez chegar aqui. A Luis Mauricio, que me deu olhos para ver as luzes da cidade-mundo. AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam o melhor caminho para tamanha gratidão. A Manuel Graña Etcheverry, Manolo, mestre, amigo – o mais sábio entre os sábios, com um carinho sem fim, em seus 98 anos. À Adelaine LaGuardia, minha orientadora, pela confiança depositada em mim, desde as pesquisas de Iniciação Científica, e por ter aberto meus olhos para outros horizontes. À Eneida Maria de Souza, por sua generosidade, seus ensinamentos e seu permanente apoio. A todos os professores do curso de Letras da UFSJ. A Edmílson Caminha, pela entrevista a mim concedida e pelas excelentes indicações de leitura. À Eliane Vasconcellos, por suas preciosas pesquisas de mestrado e doutorado compartilhadas comigo. À Silvana Mendes, poeta de minha terra e minha mãe de coração. A minha irmã, que soube entender minha ausência, durante todos estes anos de estudos. A meu pai, pela amizade que aprendemos a cultivar. A Wesley, pelo auxílio técnico, tão útil a esta pesquisa, e pelas valiosas indicações. Aos amigos Aline Ângelo, Aline Silva, Deise, Denny, Edevaldo, Guilherme, Igor, Josi e Laís, pelo companheirismo, pela força e pelas discussões, sempre ricas, que mantemos. À UFSJ e seus funcionários, por todo o apoio que me deram. À Fundação Casa de Rui Barbosa e ao Instituto Moreira Salles, pelo cuidado com a Memória de nosso país. À CAPES, pelo compromisso com os pesquisadores e, em particular, pela bolsa que me concedeu, sem a qual, este trabalho não teria sido possível. RESUMO Nesta dissertação de mestrado, apresentamos um ensaio fotobiográfico sobre Dolores Morais Drummond de Andrade, mineira, nascida (aparentemente) no último ano do século XIX, que passou praticamente toda sua vida no Rio de Janeiro. Para a realização deste trabalho, que não pretende ser uma biografia convencional, nos baseamos, principalmente, em documentos e entrevistas. Analisamos todo esse material à luz dos estudos relativos ao trato de fontes primárias e das críticas biográfica e feminista. Palavras-chave: crítica biográfica; crítica feminista; Dolores Morais Drummond de Andrade; fotobiografia; gênero RESUMEN En esta disertación de maestría, presentamos un ensayo fotobiográfico sobre Dolores Morais Drummond de Andrade, mineira, nacida (aparentemente) en el último año del siglo XIX, que pasó prácticamente toda su vida en Río de Janeiro. Para la realización de este trabajo, que no pretende ser una biografía convencional, nos basamos, principalmente, en documentos y entrevistas. Analizamos todo ese material a la luz de los estudios relativos al trato de fuentes primarias y de las críticas biográfica y feminista. Palavras clave: crítica biográfica; crítica feminista; Dolores Morais Drummond de Andrade; fotobiografía; género SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12 OS BASTIDORES DA PESQUISA ................................................................... 20 SÃO JERÔNIMO, SANTA BÁRBARA .............................................................. 32 DOLORES, DOLARES, DONDOLÔ................................................................. 47 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 104 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 109 ANEXOS .........................................................................................................114 ENTREVISTAS ............................................................................................115 CARTAS ..................................................................................................... 133 UMA HISTÓRIA EM FRAGMENTOS .......................................................... 150 DE CARLOS PARA DOLORES ............................................................... 151 DE DOLORES PARA CARLOS ............................................................... 157 Dolores – um ensaio fotobiográfico Women will starve in silence until new stories are created which confer on them the power of naming themselves. Sandra Gilbert e Susan Gubar A mulher e a casa Tua sedução é menos de mulher do que de casa: pois vem de como é por dentro ou por detrás da fachada. Mesmo quando ela possui tua plácida elegância, esse teu reboco claro, riso franco de varandas, uma casa não é nunca só para ser contemplada; melhor: somente por dentro é possível contemplá-la. Seduz pelo que é dentro, ou será, quando se abra; pelo que pode ser dentro de suas paredes fechadas; pelo que dentro fizeram com seus vazios, com o nada; pelos espaços de dentro, não pelo que dentro guarda; pelos espaços de dentro: seus recintos, suas áreas. organizando-se dentro em corredores e salas, os quais sugerindo ao homem estâncias aconchegadas, paredes bem revestidas ou recessos bons de cavas, exercem sobre esse homem efeito igual ao que causas: a vontade de corrê-la por dentro, de visitá-la. João Cabral de Melo Neto Fig. 1 Retrato de Dolores feito pelo pintor russo D. Ismailovitch, 1943. Arquivo da família. INTRODUÇÃO De cuanto fue nos nutrimos. Gabriel Celaya Eis aqui um breve ensaio sobre a vida de Dolores Morais Drummond de Andrade, composto por fotografias, dados e algumas lembranças de pessoas que a conheceram. Desde já avisamos que nem sempre os ordenamos cronologicamente: não se trata de uma biografia convencional. O intuito é expor episódios e imagens, para que, com eles, cada um elabore seu próprio perfil de Dolores. Em outras palavras, os exibimos como se fossem pontos no espaço; ao leitor, cabe uni-los para conformar sua própria “aproximação poligonal” de algo altamente não linear como é a vida de uma pessoa. Cada qual, com sua história e sua visão de mundo, comporá seu contorno particular da nossa personagem. Como bem afirma Virginia Woolf, os fatos de uma vida não são como os da ciência e estão sujeitos a mudanças de opinião e, por sua vez, as opiniões, como os tempos, mudam.1 Advertimos também ao leitor do (quase inevitável) risco que corremos ao longo do trabalho de, constantemente, vincular a pessoa de Dolores à de Carlos Drummond de Andrade, seu companheiro de quase sete décadas. Na medida do possível, tentamos evitar essa contingência, mas, como se compreenderá, nem sempre o conseguimos, já que praticamente toda a documentação existente sobre ela foi compilada por ele. Podemos garantir, isso sim, que fizemos tudo o que ao nosso alcance esteve para que a figura de Carlos não ofuscasse a de Dolores. Como afirma a pesquisadora australiana Sue Mckemmish (2013), “a biografia só pode ser entendida – trazida à vida no presente – quando seu ‘objeto singular’ é posto em relação com outras pessoas – quando se define seu lugar nas redes intrincadas que compõem as vidas de outras pessoas” (p. 29). Tampouco podemos deixar de mencionar que analisamos a vida desta mulher - possivelmente nascida no último ano do século XIX (vide p. 37) - com 1 A arte da biografia, In: O valor do riso. 12 a visão das relações de gênero dos dias de hoje. Seja como for, é necessário ressaltar que nos esforçamos ao máximo por não cair na armadilha de tratar nossa protagonista pura e exclusivamente com os critérios e valores contemporâneos. O arcabouço teórico utilizado nesta dissertação é, em boa parte, formado por trabalhos relativamente modernos da crítica feminista, com ênfase na visão de gênero de Joan Scott (1995), para quem tal categoria “é uma forma primária de dar significado às relações de poder e é [também] um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” (p. 86). Também nos beneficiamos, direta ou indiretamente, dos estudos de Zahidé Muzart, Constância Lima Duarte, Adelaine LaGuardia, Eliane Vasconcellos, Rose Marie Muraro, Cida Golin, Regina Zilberman e Maria da Glória Bordini. Entre as referências teóricas, nos respaldamos principalmente em estudos sobre fontes primárias, relativos ao trabalho com arquivos literários. Em um de seus artigos sobre as escritoras brasileiras do século XIX, Constância Lima Duarte afirma que “a misoginia perdura, inclusive nos arquivos literários” (2011, p. 241). Tal assertiva nos leva a pensar que a memória, considerando-a como uma construção, compõe-se também de muitas ausências. Como encontrar essas ausências nos arquivos? Como desvendar se não os fatos, pelo menos seus indícios, no não-dito, no que não foi narrado? Segundo Luciana Heymann (2013), o arquivo é uma “metáfora do cruzamento entre memória, saber e poder; [é um] constructo político que produz e controla a informação, orientando a lembrança e o esquecimento; e, nas palavras de Foucault, como a lei do que pode ser dito” (p. 68). Ora, se buscarmos a figura de Dolores no acervo que o próprio Carlos Drummond de Andrade doou ao Arquivo-Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, pouco encontraremos. Tudo indica que o escritor, discreto como sempre foi, preferiu preservar a vida conjugal nos limites do privado. Por outro lado, não se pode deixar de notar o cuidado que o poeta itabirano teve de conservar e arquivar documentos relativos à vida de sua companheira, lidando aí com a “intenção biográfica”. Acreditamos que são duas as perguntas que um “arquivista”, um “arconte” faz, ao decidir tornar públicos eventos de sua vida, parte de sua história: por 13 que? para quem? A sociedade e as instituições normalmente não se interessam pela vida do homem comum, de forma que, se queremos buscar os pequenos eventos do cotidiano e a vida de pessoas mais discretas, anônimas, primeiro devemos passar pela Lei das pessoas notáveis. O “monumento”, o arquivo-fonte sempre encobrirá o “fragmento”, o qual só se deixa ver quando dessacralizamos o arquivo, quando vamos além de sua assinatura. Sendo Dolores uma personagem exclusivamente do mundo privado, por que torná-la pública? Analisando-os pela própria lógica tradicional do arquivo, quais eventos de sua vida mereceriam vir à luz? Como operar numa memória que se pauta em dois grupos, o dos mortais e o dos imortais, privilegiando estes e descartando aqueles? Para Fausto Colombo (1991), a seleção é [...] o âmbito que poderíamos chamar de ativação preventiva do esquecimento (cf. Botinelli-Colombo, 1983): trata-se, de fato, de decidir, diante de um conjunto de dados, eventos ou informações, quais devem ser privilegiados e quais podem ser abandonados ao possível cancelamento (p. 89). Assim, ao mesmo tempo em que se luta contra o esquecimento, o próprio esquecimento é instaurado. Nas palavras de Philippe Artières (1998), “a escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido que se quer dar a uma história” (p. 3). É, pois, nessa classificação, na seleção de acontecimentos que operam o biopoder, a biopolítica, na expressão foucaultiana, nesse grande campo de forças que é o arquivo. Durante esta pesquisa, o arquivo se mostrou como um espaço profícuo para reflexões sobre as relações e representações de gênero. O primeiro sintoma do esquecimento é o apagamento de algumas vozes, nos arquivos de grandes personagens da história. No documentário O fazendeiro do ar, dirigido por Fernando Sabino e David Neves, nos 11 segundos, que vão do minuto 2:54 ao 3:05, vemos Dolores, ao lado de Drummond, no sofá da sala de visitas. Ela fala, mas não ouvimos sua voz; ali, quem fala é o poeta: é, unicamente, a voz dele que deve ser deixada para a posteridade. A voz pública, que ecoa até nos lugares mais recônditos. Mas entendemos que a ausência de memória também é memória. E Dolores imprimiu seus rastros na vida de seu companheiro. Como expõe Isabel Travancas (2013), “um arquivo, ainda que possa parecer 14 resultado de um esforço individual, raramente o é. Há anônimos que nele participam, desde os membros da família até a própria equipe das instituições que os abrigam” (p. 234). Essa voz de silêncio nos levou a buscar nossa protagonista exatamente onde o arquivo se “anarquiva”. Foi como se ela mesma nos afirmasse: “Onde não estou, aí existo. Busquem minha voz onde ela se cala”. Diante de tal situação, é inevitável não mencionar o “mal de arquivo” que nos acometeu. O texto derridiano é clássico, mas vale repeti-lo: A perturbação do arquivo deriva de um mal de arquivo. Estamos com mal de arquivo (en mal d’archive). Escutando o idioma francês e nele o atributo “en mal de”, estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal, de uma perturbação ou disso que o nome “mal” poderia nomear. É arder de paixão, é não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva (DERRIDA, 2001, p. 118). É, pois, esse “mal d’archive” que problematiza o próprio arquivo, o desestabiliza e o indaga, em seus excessos ou em suas penúrias, embora também turve a visão do pesquisador. E o filósofo francês esclarece os sentidos que podem ser dados ao “mal de arquivo”, o que estaria ligado à ideia daquilo que é, ao mesmo tempo, veneno e antídoto, pensamento presente na sua obra: Nada é tanta perturbação e nem mais perturbador. A perturbação do que é aqui perturbador é sem dúvida aquilo que perturba e turva a visão, o que impede o ver e o saber, mas é também a perturbação dos assuntos perturbantes e perturbadores, a perturbação dos segredos, dos complôs, da clandestinidade, das conjurações meio privadas, meio públicas, sempre no limite instável entre o público e o privado, entre a família, a sociedade e o Estado, entre a família e uma intimidade mais privada que a família, entre si e si. A perturbação ou o que em inglês chamamos o “trouble” destas visões e destes assuntos, eu os nomeio com uma palavra francesa ainda intraduzível para lembrar ao menos que o arquivo reserva sempre um problema de tradução. Singularidade insubstituível de um documento a interpretar, a repetir, a reproduzir, cada vez em sua unicidade original, pois um arquivo deve ser idiomático, e ao mesmo tempo ofertada e furtada [sic] à tradução, aberta e subtraída [sic] à iteração e à reprodutibilidade técnica (p. 117-118). 15 Não podemos afirmar precisamente como esses dois sentidos para o mal de arquivo nos afetaram. O fato é que a busca incessante pela figura de Dolores nos conduziu até a formação deste novo arquivo, o ensaio fotobiográfico. Para compô-lo, passamos também pela seleção, classificação e ordenamento, trabalho que resultou no esboço de um sujeito, tal como já fora preconizado por Roland Barthes: dividido, difratado, disperso, espalhado numa dança. A própria pesquisa foi assim. Encontrávamos um pouquinho de Dolores aqui, um pouquinho acolá. Por vezes, nada encontrávamos, enfrentando, desse modo, a desordem, o vazio, o “arquivo do mal” de que trata Derrida. Mas de que outra forma seria o arquivo dos comuns? Verdadeiro “habitáculo à deriva”, na feliz imagem barthesiana, um vir a ser, rumo ao não lugar, sem promessa de fixação, sem promessa de sempre ser e sempre estar. Todo arquivo traz em si a ausência-presença de um povo menor, traz em si pequenos gestos que giram ao redor do centro, onde se localizam os grandes eventos, as medalhas de honra, as condecorações, diplomas, as vaidades, as máscaras, por assim dizer, daquele que o organizou. Ora, quando investigamos, por exemplo, uma cidade turística, seria justo e correto analisá-la apenas por seu centro histórico e outras atrações já preparadas para os olhos curiosos? Onde a periferia que corta a geografia dessa cidade? Onde o diálogo, as negociações, os sacrifícios, as concessões dentro dessa cidade?2 Com o trato de um arquivo literário não é diferente: ele é uma cidade letrada, de onde emanam a ordem e a lei, mas, se avançarmos um pouco mais nesse labirinto, 2 Curiosamente, tempos depois de escrever esta introdução, nos deparamos com o texto El advenimiento de Buenos Aires, de Jorge Luis Borges: “Me he referido ya a las dificultades que ofrece una definición de Buenos Aires; buena prueba de ello es la perplejidad que sentimos cuando llega un hombre de otro país y queremos mostrarle nuestra ciudad. ¿Qué ocurre entonces, qué nos ocurre a todos? Inevitablemente, instintivamente, le mostramos lugares inexpresivos o lugares que son típicos en sí mismos, pero no del alma general de Buenos Aires. De todos los paseos y plazas le mostramos el menos íntimo: el parque de Palermo; también le mostramos el centro, que es una suerte de tierra de nadie donde se congrega la gente de todos los barrios. Finalmente, ya que por obra del tango el suburbio de Buenos Aires ha logrado cierta nombradía en el mundo, le mostramos la Boca del Riachuelo, es decir un barrio sui generis, que también para nosotros es forastero. Los otros arrabales de Buenos Aires son casi iguales y poco importa su delimitación topográfica; están hecho de tierra, de llanura, de mucho cielo y ante todo de soledad. Nada de eso mostramos al amigo que visita nuestra república; lo llevamos a un suburbio muy populoso, a un suburbio movido, en el que hay algo que no encontramos en ningún otro: delicados y melancólicos tintes de crepúsculo y de agua. ¿Por qué obramos así? Yo entiendo que lo hacemos porque nos consta que Buenos Aires es incomunicable. Inútil sería mostrar el parque Lezama o tal o cual árbol memorable que hay en la Recoleta o los casi infinitos barrios modestos que integran la ciudad” (2003, p. 29). 16 é certo que encontraremos traços, pegadas de vozes silenciadas no reino das letras. E há que se instaurar um diálogo entre essas diversidades culturais que aí se apresentam. Façamos ainda uma ligeira análise de gênero sobre o que está nas entrelinhas dos arquivos. Tomemos como exemplo de arquivo o livro O pai, a mãe e a filha, de Ana Luisa Escorel. Nessa obra, a autora narra um gesto da maior importância entre dois grandes intelectuais brasileiros. O pai de Ana Luisa, Antonio Candido, recebe como presente das mãos de Sérgio Buarque de Holanda a máquina com que escreveu Raízes do Brasil. Sobre esse ato, Rachel Esteves Lima afirma, no artigo A máquina da memória em movimento: Nas mãos de Candido, a máquina com que foi presenteado funciona, pois, não apenas como um instrumento técnico para a datilografia, mas também como uma espécie de “guardacostas” (KAUFMANN, 1997, p.113) que lhe confere a segurança de trilhar, no campo da literatura, o mesmo caminho que Sérgio Buarque de Holanda acreditou ser capaz de conduzir à evolução do País, no terreno da política (LIMA, 2013, p. 37). Esse não é, de forma alguma, um gesto gratuito. Temos a máquina em que se gerou a obra Raízes do Brasil, sendo doada de um intelectual a outro. Herança cultural custodiada por varões. Teria dona Gilda de Mello e Souza usado também essa mesma máquina para dar vida a seus trabalhos de pesquisadora e grande pensadora que foi? Ao falar de Gilda de Mello, Lima ainda relata: [...] a mãe nos é apresentada como uma pessoa extremamente elegante, mas bastante recolhida e impaciente em relação aos desejos da filha. Não obstante, o cuidado com a criança se manifestava na dedicação com que ela se entregava a tarefas como as de cachear-lhe os cabelos, de costurar com o maior capricho as roupas que vestiam a filha e as suas bonecas, de tomar para si a responsabilidade de passar a ferro as rendinhas de seus vestidos, de levá-la às aulas de balé e de piano, de, finalmente, enxergando na menina um talento precoce que a levaria, no futuro, à profissão de designer, recolher e guardar os desenhos que ela fazia e que hoje ilustram sua autobiografia. Se o pai lhe transmitiu como legado o dom da palavra, é da mãe, que se empenhara em pioneiramente conferir dignidade intelectual a temas considerados de menor importância, como a moda e a fotografia, que Ana Luisa Escorel herda a atenção ao detalhe, a habilidade de costurar sua narrativa com descrições minuciosas... (p. 43). 17 É do pai, portanto, que a filha herda o dom da palavra. À figura materna cabe recolher os traços, os rabiscos soltos de Ana Luisa, o que não era palavra, embora pudesse ser considerado como um discurso. Talvez, isso explique a hierarquia do título desse livro-arquivo: o pai vem em primeiro lugar. A mãe, mesmo sendo, como sabemos, uma intelectual reconhecida, está ligada mais ao privado, ao cuidado das roupas, passando-as e costurando-as, “temas considerados de menor importância”. Com Dolores não foi diferente, nem com Mafalda Verissimo, nem com Leda Alves, Frigga Moog, Zélia Suassuna, Maria Lúcia Dourado e tantas outras que acompanharam, desde os bastidores, a vida de homens notáveis. Essas mulheres sempre estiveram em um canto, tecendo, silenciosamente, a própria vida. E é aí que devemos procurá-las: do outro lado das frestas, no dado escondido, no que foi calado entre “quatro paredes”, num canto à meia luz, no entre-lugar do balanço de uma cadeira.3 O arquivo, mesmo com os seus riscos, suas armadilhas, pode ser considerado uma representação das formas de vida em nossa sociedade. Assim sendo, fica latente a vontade de um projeto maior, que englobe também as relações de gênero, a serem analisadas dentro desse artefato cultural. Em que situação encontraríamos os maridos anônimos de escritoras consagradas? Algum deles se ocupou completamente de sua companheira, como o fizeram as esposas dos escritores, como o fez Dolores? O arquivo pode nos insinuar algumas respostas a esse respeito. Talvez, seja essa uma perspectiva para novos estudos.4 Além desta introdutória, este trabalho consta de quatro seções. Uma, contendo a motivação e os bastidores da pesquisa. Outra, em que expomos 3 Em entrevista concedida a Cida Golin, Ivone Montello, esposa do escritor Josué Montello, afirma: “Participo da produção literária do Josué com o meu silêncio à sua volta, em primeiro lugar, transmitindo a ele a paz e a tranquilidade de que necessita para escrever” (2002, p. 63). Uma vez mais, temos a figura do escritor custodiado por sua mulher. Dona Ivone também mostra como o papel das mulheres de escritores é multifacetado, ao fazer a seguinte declaração sobre o marido: “Ele fica no gabinete trabalhando, sossegado; sempre que é preciso ele me chama para resolver as coisas. Eu é que cuido de toda a vida dele, secretariando o dia inteiro” (op. cit., p. 63). Além de cuidar dos afazeres domésticos, essas mulheres se apresentam como secretárias, assessoras de seus esposos. Não deixa de ser sugestivo o fato de que, na pequena biografia desse escritor, disponível no site da Academia Brasileira de Letras, o nome de sua esposa não seja sequer mencionado uma única vez. 4 Aqui, nos parece apropriado citar o que afirma o intelectual uruguaio Hugo Achugar, em seu livro Planetas sin boca: “Más que el palimpsesto, el fragmento. El fragmento o el ensayo nunca terminado, nunca terminable, el ‘work in progress’, el eterno ‘ensayo en proceso’ de escribirse, modificarse, corregirse” (2004, p. 14). 18 alguns episódios da vida de Dolores, no período que vai do seu nascimento até 1925, ano de seu casamento com Carlos. Uma quarta, dedicada aos anos que vão de 1926 até sua morte, em 1994. E a última, de considerações finais, na qual destacamos algumas das reflexões feitas ao longo do trabalho e apontamos Dolores como uma figura que, preparando os bastidores para a criação literária de seu marido, testemunhou, mesmo que tangencialmente, a própria evolução de boa parte da literatura brasileira do século passado. Em suma, salientamos que a vida desta mulher nos traz o retrato de sua época (século 20), dos hábitos da sociedade de seu tempo e, enfim, a história de um povo; fornece-nos ainda “subsídios para uma história privada da literatura”, usando o título do livro de Cida Golin. 5 Ainda na seção das conclusões, mencionamos a forma como tratamos o arquivo literário de CDA. Também conformam esta dissertação três apêndices: um, com três entrevistas e os outros dois com cartas trocadas entre Dolores e Carlos e uma pequena história em fragmentos, composta por excertos retirados de toda a correspondência do casal (de 1950 a 1979). Avisamos que, em se tratando de um ensaio (i.e., de uma tentativa, um "experimento"), por momentos, nos permitimos a liberdade de sair do prosaico e incursionar no verso. 5 Segundo Cida Golin (2002), “Uma possível história privada da literatura [...] poderia se expandir para além da obra final do escritor, da intimidade literária: são objetos que não vêm à luz no texto final, os segredos da criação, a rotina da produção literária, os espaços criativos (o gabinete, a casa, a mesa), os inéditos, as práticas de leitura e recepção individuais, as cartas do autor, a opinião dos leitores. Os acervos literários tornam-se fontes privilegiadas desse percurso. Trata-se de uma história de múltiplas vozes, a do escritor e seus coadjuvantes – sua mulher, por exemplo –, investigando como a literatura, enquanto sistema simbólico, é vivido [sic] no cotidiano, no ambiente íntimo” (p. 39). 19 OS BASTIDORES DA PESQUISA Quando esta dissertação ainda era apenas um projeto, Pedro Augusto Graña Drummond me mostrou uma das tesouras de sua avó, e mencionou a Singer com a qual ela costurava para a família. Imediatamente, isso me remeteu à vida de minha própria avó. Entre linhas, pontos, agulhas, fita métrica, nós e arremates, tentei tecer o meu enredo, feito, todo ele, de retalhos. Sou neta de Maria Aurélia e também da máquina Singer. Desde criança, o barulho que acompanha minha memória, até hoje, até agora, no instante em que escrevo estas linhas, vem do contato dos pés de minha avó com o pedal da máquina de costura. Todos os dias, às sete da manhã, aquela mulher baixinha, ex-professora – abandonara o cargo para se casar –, branca, de olhos azuis, sentava-se, incansavelmente, no tamborete, e passava o dia costurando as fazendas de chita que revestiam os colchões de capim feitos por meu avô. Eu, sempre ali, por perto, brincando com os restos de pano que sobravam – eram muito úteis para que minhas bonecas não ficassem nuas – furando meus dedos na agulha, ouvindo estórias, escutando canções religiosas, que aquela costureira sempre cantava. Cresci nesse quarto de costura de um velho casarão rosa. No momento em que passei a entender um pouco mais as relações familiares, notei uma coisa muito simples, mas que já, há algum tempo, havia se revestido de valor para mim e transformado em fome de conhecimento, em matéria de pesquisas. Vi os cabelos de minha avó embranquecendo naquele trabalho de costura. Os colchões iam para as cidades próximas, a zona rural e hospitais. O dinheiro, que era pouco e bem medido, corria direto para o bolso do meu avô, sempre aquele que negociava com os clientes, na sala, depois da ordem: “Maria, põe café aqui pro compadre”. Maria levava o café e saía, silenciosa e discretamente. Para a neta, isso era uma tristeza, porque, se fosse a avó-favo-de-mel quem administrasse as finanças, seria bem mais fácil surrupiar-lhe as moedas de dez centavos para comprar doce de leite no botequim da rua. Mas, com o dinheiro no bolso do avô, a situação se complicava... 20 Há pouco tempo, estive em uma típica fazenda mineira, nos arredores de minha terra natal, e meus olhos se arregalaram quando vi um colchão revestido com aqueles panos coloridos que a vovó costurava. Qual foi minha surpresa! Perguntei à dona quem o havia feito e ela respondeu, imediatamente: “Foi o sô Jésus colchoeiro, ué, teu avô!”. Em um segundo, vi a imagem de minha avó, da máquina, do tamborete, vi a metamorfose daquela mulher costureira, a mais dócil, a mais paciente, mais discreta que já conheci, e o som das pedaladas soou forte na memória. Ali, naquele produto de mercado, estava o corpo da minha avó. No entanto, a “assinatura” era do senhor Jésus colchoeiro. Desculpe o leitor a pequena lembrança. Ela talvez explique muito de mim e, espero, do tema que há algum tempo estudo: a história das mentalidades femininas. No ano de 2012, a Festa Literária Internacional de Paraty rendeu uma maravilhosa homenagem aos 110 anos de Carlos Drummond de Andrade. Tive a oportunidade de estar presente no evento. Depois de ter assistido a várias apresentações, me dei conta de que, ao falar do escritor itabirano, apenas uma vez citou-se, rapidamente, o nome de Dolores, sua mulher. Caminhando pela cidade, comecei a pensar no papel das mulheres na formação da literatura universal, na sua participação no campo das artes, em geral. Perguntas foram se assomando ao pensamento. Em quê Nora Joyce teria contribuído para a obra de James Joyce? Aliás, quem foi Nora, além da musa que alimentou as fantasias eróticas daquele escritor Irlandês, como comprovam as cartas que ele lhe enviava? De que se ocuparia, por exemplo, Zélia Suassuna, enquanto Ariano estava concentrado em seu escritório? Parecia-me estranho que as mulheres, as secretárias dos escritores, tão íntimas do cotidiano deles ficassem assim às margens da biografia desses grandes homens.6 E quem foi Dolores 6 Há que se fazer menção ao livro “Carta a D. História de um amor”, do filósofo austríaco André Gorz (2012), em que o autor traça um perfil de si e de Dorine, sua companheira ao longo de 58 anos. Logo no início da carta, Gorz faz uma pergunta: “Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida?” (p. 5). Em outras partes da carta, o escritor revela a contribuição que a esposa deu a seu trabalho de escritório, como, por exemplo, no excerto a seguir: “[...] como em todos os empregos que tive em seguida, você assumia a sua parte no trabalho que eu tinha a fazer. Volta e meia, ia até o escritório, ajudar na tabulação e na classificação das dezenas de milhares de cartas que tinham restado. Você participava da redação das circulares em inglês. Nós estabelecíamos relações com os estrangeiros que vinham visitar o escritório, convidávamos para almoçar. Não 21 Morais Drummond de Andrade quando deixou de ser Dolores Dutra de Morais? Quem foi esta mulher que passou 62 anos ao lado de um ícone da nossa literatura? Era certo que tinha alguma história. Pelo dictum de Pascal, “Ninguém morre tão pobre a ponto de não deixar alguma coisa.” (BENJAMIN apud Didi-Huberman, 2011, p.133). Mas onde buscá-la? Se a encontrar, o que fazer de sua história? Abri um dos livros de um poeta que muito me agrada, Affonso Ávila, e pensei logo em Laís Correa de Araújo. Leio um e penso no outro. O caso de Dolores é diferente. Transcrevo aqui o poema que li, em Código de Minas (1963-1967), intitulado “Círculos familiares”: o sogro na situação o consogro na oposição o genro na coligação (na prebenda a parentela) o irmão na câmara federal o cunhado na câmara estadual o concunhado na câmara municipal (no cartório a parentela) o tio no senado o primo na cni o primirmão na cemig (no negócio a parentela) o marido na presidência o filho na previdência o sobrinho na prefeitura (na embaixada a parentela) o padrastro governador-do-estado o enteado ministro-de-estado o meioirmão secretário-de-estado (na empreitada a parentela) o avô na reação o pai na corrupção o neto na subversão (par-a-par a parentela) (p. 73-74). estávamos unidos apenas em nossa vida privada, mas também por uma atividade comum, na esfera pública” (p. 20-21). Com esse último livro, publicado na França em 2006, Gorz e Dorine se despedem da vida e entram na história. Em 22 de setembro de 2007, ambos se suicidam. Ao fazer essa breve autobiografia e biografia da esposa, em forma de carta, o filósofo nos mostra o quanto as pessoas mais discretas, que povoam a inevitável solidão de intelectuais notáveis, são importantes para que o trabalho do escritório possa ser levado ao público. Compartilhar a história de vida também dessas pessoas é fazer jus ao muito que elas doaram de si para o nascimento de obras nas quais habitam, ainda que de forma invisível. 22 Ao ler o poema, que muito veio a calhar, notei a obliteração da presença da mulher (ela aparece, por trás do marido, apenas no primeiro verso da quarta estrofe). Ora, é patente a crítica que o poeta faz ao sistema oligárquico de uma Minas ainda revestida de tradicionalismo, onde assuntos sobre política eram exclusivos de homens e o lugar da mulher era bem definido. No entanto, não devemos nos esquecer das mulheres pioneiras, que, desde a Colônia, trabalhavam no trato com o público e tiravam daí o seu sustento. Segundo Luciano Figueiredo (2007): “Negras de tabuleiro” foi a designação que acompanhou pelo Brasil colonial aquelas mulheres dedicadas ao comércio ambulante. Se aqui e ali há registro de que incomodavam as autoridades, seja porque fugiam com facilidade às medidas fiscalizadoras, seja porque sua conduta moral desagradava, foi nas Minas do século XVIII que sua atuação alcançou dimensões mais graves (p. 151). Elas não só trabalharam no espaço público como também contestaram o sistema, burlaram as leis. No século XIX, despontaram, no Brasil, inúmeras escritoras que fizeram duras críticas à sociedade, como, por exemplo, Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula, primeiro romance abolicionista e um dos primeiros escritos por mulher brasileira (MUZART, 2000), Nísia Floresta Brasileira Augusta, que reivindicou os direitos das mulheres, e tantas outras, como nos mostram os três volumes sobre as Escritoras brasileiras do século XIX, organizados por Zahidé L. Muzart. Escritos de Lima Barreto e Machado de Assis apresentam mulheres que produziam os discursos a serem proferidos pelos maridos, nos tribunais e em reuniões que versavam sobre política. Dessa forma, ao longo da história, a atuação da mulher se deu também no espaço público, apesar das duras críticas e repreensões que recebia, por romper com a doxa. Busquei logo depois o célebre ensaio Um teto todo seu, de Virginia Woolf, e reli uma passagem na qual já havia feito inúmeras anotações. É preciso transcrevê-la, para que o leitor não perca o fio da meada: Com os olhos da imaginação, vi uma senhora muito idosa atravessando a rua, apoiada no braço de uma mulher de meiaidade, sua filha, talvez, ambas tão impecavelmente calçadas e 23 recobertas de peles, que o vestir-se, à tarde, lhes deve ser um ritual, e as próprias roupas devem ser guardadas em armários com cânfora, ano após ano, durante todos os meses do verão. Elas atravessam a rua no momento em que as lâmpadas se acendem (pois o crepúsculo é sua hora favorita), como devem ter feito ano após ano. A mais velha está perto dos oitenta, mas se alguém lhe perguntasse o que a vida significou para ela, diria que recordava as ruas iluminadas para a Batalha de Bataclava, ou que ouvira os canhões dispararem no Hyde Park pelo nascimento do rei Eduardo VII. E se alguém lhe perguntasse, tentando definir exatamente a data ("Mas o que estava a senhora fazendo em 5 de abril de 1868, ou em 2 de novembro de 1875?"), ela faria uma expressão vaga e diria não conseguir lembrar-se de nada. Pois todos os jantares foram preparados; os pratos e os copos, lavados; as crianças, mandadas para a escola e mergulhadas no mundo. Nada resta de tudo isso. Tudo se evaporou. Nenhuma biografia ou história tem uma palavra a dizer a esse respeito. E os romances, sem que o pretendam, mentem de maneira inevitável. Todas essas vidas infinitamente obscuras permanecem por registrar, disse eu, [...]; e prossegui em pensamento pelas ruas de Londres, sentindo na imaginação a pressão do mutismo, o acúmulo de vidas não registradas, quer das mulheres nas esquinas com as mãos nas cadeiras e os anéis incrustados nos dedos inchados, que, ao falar, gesticulavam de um modo semelhante ao balanço das palavras de Shakespeare; quer das vendedoras de violetas e de fósforos e das velhas encarquilhadas paradas nos vãos das portas; ou das moças errantes cujo rosto, como ondas sob o sol e as nuvens, assinalam a chegada de homens e mulheres e as luzes bruxuleantes das vitrinas. [...] E há também a moça atrás do balcão — para mim tanto faz conhecer a verdadeira história dela como a centésima quinquagésima vida de Napoleão ou o septuagésimo estudo sobre Keats e seu uso da inversão miltoniana, que o velho professor Z e outros como ele estão agora redigindo (1985, p. 118-119). Tudo isso me levava, inevitavelmente, a Dolores. No Rio de Janeiro, em conversa com um de seus netos, mencionei a vontade de escrever algo sobre ela, um ensaio biográfico. Perguntei se isso seria possível, se havia algum material sobrevivente que falasse dela. A resposta foi favorável. Há cartas, fotos, receitas de culinária, máquina de costura, tesouras, bilhetes, um quadro lindo, pintado pelo russo D. Ismailovitch e... os bordados, as colchas no estilo patchwork. Eis aí o arquivo de Dolores se abrindo. Voltei para Minas com o pensamento borbulhando, imaginando o que poderia fazer com esse material. Sendo uma iniciante, aprendiz de pesquisadora, receei não estar à altura das circunstâncias. Apoiada pelos meus professores e, em especial, minha orientadora, comecei formalmente a pesquisa para esta dissertação. 24 No segundo semestre de 2013, parti para o Rio de Janeiro, levando na mala meu material de trabalho: um computador, um scanner, uma impressora, caderno de anotações, gravador e máquina fotográfica. Ao chegar ao apartamento da família Drummond, deparei-me com um material riquíssimo. Eram 183 cartas, arquivadas em pastas, algumas escritas a lápis, em papel manteiga, já mostrando a ação imperdoável do tempo. Tais missivas começaram a ser trocadas entre Dolores e Drummond, em 1950, um ano após o casamento de Maria Julieta, a filha do casal, com o escritor argentino Manuel Graña Etcheverry, e seguiram até 1979, data da última viagem de Dolores a Buenos Aires. Esse material é uma espécie de reportagem do cotidiano de Dolores e a família (Maria Julieta e Manolo e, posteriormente, os três netos, Carlos Manuel, Luis Mauricio e Pedro Augusto) na capital argentina, e de Drummond, no Rio de Janeiro. Assim, Dolores atuou também como uma biógrafa da própria família. Enquanto o marido narrava, muitas vezes, suas atividades públicas, a vida de amigos escritores, Dolores narrava, em boa parte das cartas, os acontecimentos familiares, de modo que, se, de um lado, contava-se sobre a doença de Bandeira e os últimos dias de Cecília Meireles, sobre a morte de algum literato e da vida política no país, de outro se falava da gripe e dos estudos dos netos, de suas traquinices, do trabalho de Maria Julieta, programas em família, enfim, o “tricô doméstico”. Compunham também o arquivo algumas fotos de Dolores, bilhetes de aniversário trocados pelo casal, colchas feitas por ela, cadernos de receitas, tesouras que ela usava para costurar, enfim, fragmentos de uma vida, lampejos de uma existência. No Arquivo-Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, busquei pelo acervo de Carlos Drummond de Andrade, encontrando aí, para minha grata surpresa, um fichário de receitas de Dolores, com seções separadas por adesivos coloridos. Toda essa organização traz a letra do poeta. Esse contato do escritor com os cadernos de culinária de Dolores e seus trabalhos manuais, possivelmente, tenha dado origem a poemas como “Visão de patchwork”, escrito em forma de receita, publicado no livro Viola de bolso III e “Poema culinário”, da seção intitulada Patchwork, de Poesia Errante. Ainda em busca de rastros, fiz uma pesquisa no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, onde encontrei inúmeras cartas que os pais de Dolores 25 enviavam de Belo Horizonte à filha, que residia no Rio de Janeiro, além de fotos da família e um Diploma de Economia do Lar, recebido por Dolores. Após uma análise, encomendei a cópia do material ao Instituto. Passei, assim, à digitalização das cartas do casal, organizando-as no computador e, depois de alguns dias de investigação, prossegui com as entrevistas aos familiares e conhecidos de Dolores. Voltei a Minas com todo esse material. O trabalho com fontes primárias requer paciência e experiência. A primeira me acompanha. A segunda, naturalmente, vai sendo adquirida, com o passar do tempo– começou com a pesquisa, financiada pelo CNPq, que desenvolvi, na graduação, sobre a obra da escritora Alfonsina Storni, durante minha Iniciação Científica. No trato com o arquivo de Dolores, tive algumas dificuldades; a pesquisa, com tempo marcado para terminar, se prolongava, a cada vez que me sentava para transcrever as cartas: garatujas infindáveis, a tinta da caneta, vencida pelo tempo, o papel manteiga, em que a escrita de frente e verso se mistura, palavras que ainda recusam qualquer tentativa de leitura, inclusive com o auxílio de tecnologia avançada. Mesmo assim, pude transcrever e organizar todas as cartas, material imprescindível para esta dissertação. Para fazer este ensaio fotobiográfico, foi preciso buscar a figura de Dolores nos “restos” do arquivo literário de Carlos Drummond de Andrade, naqueles elementos marginais e inclassificáveis, que se configuram mais como rastros, pegadas deixadas sobre esta “cidade letrada”, que é o arquivo, de onde emanam a lei e a ordem. Tais “restos” são lampejos que surgem nas trevas, as sobrevivências do arquivo. Segundo Didi-Huberman (2011), op. cit., Para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista (p. 52). Talvez, esses fragmentos, que povoam a periferia do arquivo, em seus rápidos lampejos, possam também lançar uma pequena luz sobre toda essa “cidade das Letras”, ainda que suas possíveis revelações sejam lacunares, em trapos, ainda que as luzes maiores os vençam. 26 Faz-se necessário observar que Dolores, sendo conhecida apenas como a “esposa do poeta”, uma pessoa “comum”, não teve, em princípio, nenhuma intenção em se arquivar, em guardar suas memórias. No entanto, como relata Maria Esther Maciel (2009): [...] não só os feitos, as conquistas e as tragédias das pessoas notáveis fazem uma biografia interessante. Marcel Schwob, no Prólogo ao seu livro Vidas Imaginárias (1896), já chamava a atenção para a avareza dos biógrafos que, ao suporem que só a vida dos grandes homens e mulheres pode nos interessar, dão-se o papel de historiadores e negligenciam a vida das pessoas comuns, discretas e anônimas (p. 400). Graças às conquistas da Nova História e das teorias dela advindas, hoje nos interessamos também pela escrita da vida do homem comum (DOSSE, 2009). E de quantos “homens comuns” se compõe a vida dos notáveis? “Acaso, não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?” (BENJAMIN, 1985, p. 226). No arquivamento da vida de um notável é possível ouvir ecos de uma voz emudecida. Sendo o arquivo de Dolores formado por fragmentos, não haveria outra forma de esboçar seu perfil biográfico senão por essas partículas isoladas, rápidos lampejos de vida. Toda a escrita deste ensaio seguiu um caminho que a própria biografada nos sugeriu, com suas colchas no estilo patchwork. Um retalho aqui, outro acolá, juntando-se eles para registrar ao menos uma centelha de vida, um suspiro, uma lágrima. Tal método também nos foi apresentado por Roland Barthes, ao trabalhar o conceito de biografema: [...] termo relativo à teorização e à prática de escrita de Roland Barthes, desenvolvida pelo autor em seu livro Roland Barthes por Roland Barthes. Refere-se ao conceito que responde pela construção de uma imagem fragmentada do sujeito, uma vez que são abolidos do discurso da memória o estereótipo da totalidade e o relato de vida como o registro de fidelidade e autocontrole... É ainda o que se deve conceder, numa biografia, aos detalhes, a “alguns gestos” e inflexões, manifestações alheias a princípios de ordem permanente e universal... (SOUZA, 2004, p. 34). A vida narrada através de “unidades estruturais”, uma espécie de caleidoscópio, onde, a cada vez que reorganizamos os mesmos fragmentos, temos uma nova 27 figura. Na impossibilidade de controlar a vida, em sua totalidade, optamos aqui por apresentar a imagem fragmentada de Dolores, desviando-nos, assim, dos princípios da ordem universal e de hierarquias. Ainda no que concerne à elaboração deste ensaio, outras dificuldades se apresentaram neste percurso. Segundo Eliane Vasconcellos (1999): O ser humano do sexo feminino aparece sempre subordinado: ela é esposa, filha, mãe e até mesmo a amante de algum homem. Em uma representação sintática da sociedade, o homem (marido, pai, amante) era sempre a oração principal e as mulheres, as variadas orações subordinadas que o seguiam. É no outro que é buscada a sua identidade (p. 121). Tal assertiva ficou ainda mais clara para mim enquanto escrevia este ensaio. A maior preocupação que tive neste trabalho foi a de evitar que a figura de Drummond se sobrepusesse à de Dolores. (A própria Maria Julieta Drummond de Andrade, após ter tido um poema de sua autoria atribuído ao pai em sua coluna do jornal carioca O Globo, assina simplesmente “Maria Julieta” em seu último livro). Naturalmente, durante a escrita, percebi que, para falar de Dolores, era necessário falar de Carlos. A partir de 1920, data do início do namoro, a vida dela começa a ser registrada por ele, um arquivista nato. Assim, na maioria dos documentos relacionados a Dolores, temos a marca deixada por Carlos (como se pode verificar nas fotografias usadas neste trabalho). Nas fotos a que tive acesso – nem todas colocadas no ensaio –, quase nunca Dolores está só; na maioria delas, Drummond está presente. Creio que, se escrevêssemos sobre Zélia Suassuna ou até mesmo Zélia Gattai, figura que se destacou publicamente, com suas obras literárias, teríamos que, em algum momento, buscar as suas identidades, respectivamente, em Ariano Suassuna ou em Jorge Amado. É preciso observar que, se, por um lado, falar das mulheres de escritores, sem falar deles, seria algo praticamente impossível; por outro, não seria demais afirmar que falar deles, sem mencioná-las e dar-lhes o justo reconhecimento, seria uma tarefa possível, porém inadequada. Sobre esta questão, sempre no contexto dos séculos passados, Vasconcellos (op. cit.) afirma: 28 Esta dependência feminina não termina nem depois da morte do marido. Na viuvez, tanto ele quanto ela encontram-se no mesmo estado, ambos se caracterizam pelo fato de terem perdido o respectivo parceiro. Mas, mesmo depois de morto, ele continua impondo a ela sua supremacia, pelo menos no campo linguístico. É comum referirmos a uma mulher como a viúva de X, mas só em situações muito raras, nós o mencionamos como o viúvo de fulana, pois o homem é identificado por seu próprio nome ou por sua atividade profissional [...] (p. 136). A todo o momento, tive em mente os riscos que correria, vendo-me sempre forçada a vincular a imagem de Dolores à figura de Drummond – não esqueçamos que, depois de namorar cinco anos, foram casados por mais de seis décadas. Nas próprias entrevistas que fiz para esta dissertação – algumas delas em anexo –, às vezes, o assunto se desviava da biografada e terminavase por falar de seu marido. Fato curioso é que essa dependência do nome do esposo não se resume apenas às mulheres que atuaram somente no lar. Em entrevista concedida a Rachel Esteves de Lima, publicada no livro Figurações do íntimo - Ensaios (2013), a professora e pesquisadora francesa Françoise Simonet-Tenant relata: “Quando acabei esse trabalho [sobre a relação entre Valéry e a música], na França, começaram a falar de uma escritora que tinha sido amante de Paul Valéry” (p.14-15). Posteriormente, a estudiosa cita o nome de Catherine Pozzi, que, para o público, mais que escritora, foi amante de Valéry... Como escapar a essa dependência? De minha parte, fiz o possível para colocar Dolores sempre em primeiro plano. Espero tê-lo conseguido. O leitor encontrará, nas próximas páginas, alguns coriscos de histórias, anedotas que trazem apenas um perfil da Dolores, a partir do que me foi contado por pessoas e pelo que encontrei em documentos. E, aqui, noto algo bastante curioso. Nas biografias acadêmicas que conheço, quase nunca se vê o “lado negativo” do biografado. Sempre me pergunto se esses seres de papel seriam mesmo assim, perfeitos, sem mácula. Mas, ao ter a oportunidade de lidar com a matéria, percebi que, raramente, os documentos de arquivos mostram coisas negativas a respeito dos seus arquivistas; com as lembranças daqueles que os conheceram, em geral, a situação não é diferente: selecionase o que é bom e o que se lembra de bom da vida das pessoas. Portanto, nem os documentos do arquivo, nem as entrevistas que fiz me possibilitaram 29 mostrar certas facetas de Dolores. Porém, o leitor não é ingênuo e poderá elaborar conjecturas, tirar suas próprias conclusões e, até mesmo, criar uma nova versão sobre o que aqui está escrito. Há ainda algo que devo mencionar, quanto ao uso das imagens. Gostaria que estas fossem observadas também como citações, como aquilo que está presente para reforçar o já dito, mas, bem além, deslocar o leitor para outros espaços, talvez até mesmo para dentro de si, assim como fazemos, diante das imagens de livros como Os Emigrantes, de Sebald, O Africano, de Le Clézio, ou Clarice – fotobiografia, de Nadia Gotlib, obras que, de certa forma, também nortearam esta pesquisa. É possível que as imagens selecionadas falem mais do que o texto escrito. Não que as fotografias tragam de volta o passado, pois elas são sempre um aqui e agora, um acontecimento novo aos nossos olhos. Em seu livro A câmara clara (1984), Roland Barthes afirma: A Fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano em uma foto). O efeito que ela produz em mim não é o de restituir o que é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de atestar que o que vejo de fato existiu. Ora, esse é um efeito verdadeiramente escandaloso. A Fotografia sempre me espanta, com um espanto que dura e se renova, inesgotavelmente. Talvez esse espanto, essa teimosia, mergulhe na substância religiosa de que sou forjado; nada a fazer: a Fotografia tem alguma coisa a ver com a ressurreição: não se pode dizer dela o que diziam os bizantinos da imagem do Cristo impregnada no Sudário de Turim, isto é, que ela não era feita por mão de homem, archeiropoietos? (p. 123-124). É dessa forma que devemos olhar as imagens aqui expostas, como se estas fossem uma ressurreição, um acontecimento novo, uma revelação, a cada momento. Fausto Colombo, em seu livro Os arquivos imperfeitos, relembra dois conceitos importantíssimos de Barthes, em relação à análise das imagens, da fotografia: o studium e o punctum, a saber: [...] o studium é o percurso que a imagem preestabelece para a leitura, o deslocamento do já acontecido, do já sido. Aceitar o studium significa conhecer na origem da foto a realidade que ela produz, deixar-se levar para dentro de uma lembrança concretizada e bloqueada pelo ícone. O punctum, em contrapartida, é o comparecimento do casual, do inesperado, e como tal conduz para além do studium; mas esse além ainda é 30 o real, que se deixou ocasionalmente impressionar (COLOMBO, 1991, p. 48). Para a seleção das fotos aqui utilizadas, os dois conceitos citados foram levados em consideração. Gostaria que os potenciais leitores deste ensaio pudessem também interpretar as imagens disponibilizadas, norteando-se pelos sentidos dados ao studium e ao punctum. Que se deixem, acima de tudo, impressionar pelo casual, pelo que vai além da fotografia, da pose (ensaiada?) dos corpos ali presentes. Em anexo, coloquei algumas (poucas) cartas de Dolores e Drummond. Aquelas são uma forma de dar voz à remetente, pois configuram uma espécie de diário, uma escrita de si e dos outros, e estas tampouco deixam de ser uma fonte de informações a respeito dela. Por fim, cabe frisar o aspecto político deste trabalho. Gosto de observar as coisas mínimas, as pequenas formas de vida, a história miúda do cotidiano, o povo menor que, em sua singeleza, revelam dados significativos de uma sociedade numa época determinada. Quanto ao teor desta narrativa, não posso precisar em que ponto saio do real e parto para a ficção, tampouco sei onde ambos se cruzam, ou até se é possível separá-los. Escolha o leitor os caminhos que lhe convierem. De minha parte, fico, daqui em diante, com as palavras de Didi-Huberman (op. cit.): Ver o horizonte, o além é não ver as imagens que vêm nos tocar. Os pequenos vaga-lumes dão forma e lampejo a nossa frágil imanência, os “ferozes projetores” da grande luz devoram toda forma e todo lampejo – toda diferença – na transcendência dos fins derradeiros. Dar exclusiva atenção ao horizonte é tornar-se incapaz de olhar a menor imagem (p. 115). Há aqueles que se alimentam de lampejos clandestinos. “Beleza siderante que é a de ‘ver isso, ao menos uma vez na vida’” (ROCHE, 1982 apud DIDIHUBERMAN, idem, p.47). 31 SÃO JERÔNIMO, SANTA BÁRBARA 1900 (?) - 1925 Estas memorias o recuerdos son intermitentes y a ratos olvidadizos porque así precisamente es la vida. Pablo Neruda Fig. 2 Foto de Dolores, sem data. Arquivo da família. São Jerônimo, Santa Bárbara!!! São Jerônimo, Santa Bárbara!!! São Jerônimo, Santa Bárbara!!!... Apavorados, ajoelhados no chão, e de mãos dadas, inclinando o corpo para frente e para trás, assim rezavam os filhos da família Dutra de Morais, quando trovões e relâmpagos cortavam o céu de Mar de Espanha, pequena cidade da Zona da Mata mineira. Entre essas muitas crianças, está Dolores Dutra de Morais. A modo de brevíssima introdução ao esboço de sua vida, eis aqui uma sequência de palavras que sugerem um perfil de Dolores: Mulher, acima de tudo. Filha de. Mãe de. Enfermeira. Costureira. Datilógrafa. Secretária de fábrica de sapatos. Profissão oficial: do lar. Pequenina. Compreensiva. Reservada. Silenciosa. Meiga. Tímida. Recatada. “Precavida, como a formiga 32 da fábula”. Constante. Fiel. Esposa do escritor. Força do poeta. Mulher ao lado. “Sempre sua”. Companheira da vida inteira. Idade incerta. Livro de receitas. Cozinha. Filas de açougues. Anjo do lar. Cadeira de balanço. Uisquinho. Palavras cruzadas. Revista Burda. Máquina Singer. Tesoura. Agulhas. Linha. Dedal. Penélope. Cinema de bairro. Música clássica. Mozart. E Beethoven. E Baudelaire. Sogra de. Avó de. Doceira. Boa risada. “Dondolô”, “Dolares”. Buenos Aires. Flâneur da Calle Florida. Antiquários. Santos antigos. São José. Santa Rita. Tapetes turcos, chineses, persas. Reumatismo. Vista fraca. Alheamento. O nada. Entre o nem ser, nem estar. Sábado, 2 de julho, 1994. Silêncio. Quarta-feira, 2 de julho, 2014, 20 anos depois. Por meio de substantivos e adjetivos, desenha-se o ser de papel, frio e pálido, sem sangue, com a face que nos olha, firme e sem expressão. Face manchada de tempo, de quem existiu, com carteira, assinatura e impressão digital. Lampejos de uma existência. Fig. 3 Carteira de Identidade de Dolores Morais Drummond de Andrade. Arquivo da família. 33 Como é de costume criar, para tudo, um começo... Fig. 4 Dona Maria das Dores Morais (Sinhá) e o Senhor Sevanir Dutra de Morais. Pais de Dolores, Ruy, Geraldo, Massilon, Álvaro, Galeno, José, Vitória, Maria, Ruth e Conceição. Lembrança da Lua de mel, em Poços de Caldas, Minas Gerais – 1891. Arquivo da família-Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. 34 Mas o tempo e a vida e os rostos nos escapam... Fig. 5 Dona Maria das Dores (Sinhá) e família, em Belo Horizonte, sem data. Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. O que dizer da senhora, no centro da foto, cercada de filhos e netos – carinhosamente chamada Sinhá? Redondinha e eficiente. Era sábia e ativa; antes do almoço, entrava no galinheiro e, indiferente à confusão que produzia entre as aves aflitas, ia agarrando galinha por galinha; tocava-as e separava-as. Identificava sem hesitação as que estavam chocas, isolando-as num cercado de arame, junto aos ninhos; recolhia os ovos e resmungava contra os galos de crista empinada. Depois entrava na cozinha onde o feijão, já cozido, esperava os temperos. Às onze horas, quando o alho e a cebola refogados recendiam, a sirena da fábrica, pontual, cortava o ar e todos sabiam que o almoço simples dos netos já estava pronto. Os adultos teriam também, às onze e meia, ensopadinho de carne com batata, taioba, jiló ou quiabo. Jantava-se cedo, e a comida, que se mantivera quente no forno, junto às brasas da manhã ainda acesas, era servida em pratos feitos, sobre a mesa da copa, que nunca vira toalha: apenas madeira de lei, usada, reluzente. Um último copo d’água do filtro de barro e o relógio de pêndulo batia seis horas, seis e meia. Uma última 35 areada na tampa de ferro do fogão (parecia de prata), um gole de café requentado. Só depois se acendia a lamparina que boiava num pequeno lago de azeite e devia iluminar o Sagrado Coração da sala, durante a noite. Mais um dia de dever cumprido, exato, regular, inglório, e tudo a postos para recomeçar na madrugada seguinte, com os galos, indefinidamente.7 O afeto entre mãe e filha Fig. 6 Dona Sinhá e Dolores, 18.01.1953, em Belo Horizonte. Arquivo da família. 7 Trechos das crônicas “Canto de galo” e “Antes, em Minas”, respectivamente dos livros O valor da vida (1982) e Um buquê de alcachofras (1980), de Maria Julieta Drummond de Andrade. 36 Das Dores e Dolores pelas ruas de Belo Horizonte Fig. 7 Dona Sinhá e Dolores, 23.04.1932. Arquivo da família. Quando nasceu Dolores, 1900, 1902, 1903? Sabe-se apenas que foi em um 19 de abril. Era Morais, era Moraes? Quem sabe?... (vide Fig. 3, p. 33, e Fig. 11, p. 41). Branca, esbelta, olhos escuros, bem redondos e vivos, cabelo ondulado e curto. Os primeiros capítulos de sua história foram, mais ou menos, assim: datilógrafa e secretária de uma fábrica de sapatos, em Belo Horizonte. 37 Fig. 8 Dolores, 1922. Arquivo da família. Ele, estudante do curso de farmácia, vivendo da mesada do pai. Magro, olhos claros, elegante, de terno preto e chapéu. Frequentador do Bar do Ponto e do Café Estrela. Apaixonam-se. Para o casal, tudo começa no ano de 1920, quando o contato entre rapazes e moças era rigorosamente controlado pelos pais ou os irmãos mais velhos delas, munidos de bengala, “coisa perigosíssima, porque não era ornamento, era para bater, caso o sinal fosse avançado”.8 Mas, para Dolores, tudo começa, efetivamente, no dia 30 de maio de 1925, data em que a união dos dois se formaliza, no papel, perante a sociedade (vide Fig. 9, p. 39, e Fig. 10, p. 40). Para a esposa, a garantia de um lar, da “proteção masculina” e “respeito social”, num tempo em que, para a mulher, “o matrimônio [...] se apresentava como a única perspectiva de vida” (VASCONCELLOS, 1999, p. 120). Ao homem, a segurança de uma companheira leal, obediente, a quem ele devia doutrinar9; em suma, alguém 8 Entrevista a Carlos Drummond de Andrade, por Leda Nagle, veiculada no “Jornal Hoje”, Rede Globo de Televisão, em novembro de 1980. 9 É interessante ver qual era, na época, a discussão sobre a mulher, no meio masculino. Em carta de 23 de agosto de 1925, Mário de Andrade escreve a Drummond: “Essa indulgência mútua que você bem conhece como base de paz e de que me falou na sua última carta já é um bom ponto de apoio. Mas você tem obrigação de ensinar isso a Dolores. Quer minha opinião 38 que se ocuparia, afinal, das coisas práticas do seu cotidiano. Uma época em que o casamento era levado muito a sério e significava laço vitalício. No Brasil, 30 anos depois, o desquite, que não dissolvia os vínculos conjugais e não permitia novos casamentos, era a única possibilidade de separação oficial dos casais. O divórcio só passou a fazer parte das leis brasileiras na década de 70 (BASSANEZI, 2007). Fig. 9 Bilhete de Carlos para Dolores, 30.05.1971. Arquivo da família. sincera sobre a mulher? Acho a mulher o mais incomparável vir-a-ser que tem neste mundo. A mulher é sempre um vir-a-ser até que encontre alguém que a faça ser. Isso quer naturalmente dizer que num casal tudo depende do marido. (...) o homem registra sentimentos pela inteligência pra cultivá-los (na arte, na filosofia, na vida) ao passo que a mulher registra os sentimentos pra efetivá-los melhor. Efetivá-los melhor sempre dentro da vida dela. Enfim: me parece que o homem é mais tardonho que a mulher ... e por isso adquire uma inteligência mais crítica. Daí o viver buscando o sentido da vida, criando artes aparentemente desinteressadas, filosofias e modos de viver. Ora a mulher tem mais instintivamente o sentido da vida não sei se por inteligência mais rápida ou se por sentimentos mais intensos e por isso mais iluminadores... Porém vem daí o ter uma inteligência mais aplicada e por isso eminentemente ativa, ao passo que a inteligência masculina é mais passiva, mais desprática, eminentemente artística. Você me conhece suficientemente pra saber que não estou fazendo literatura. É o que sinceramente penso atualmente e me vem da minha experiência. Ora você faça sua mulher ser, trabalhe ela, faça ela o quanto possível interessar-se ativamente na sua vida de dentro e de fora do lar e sobretudo na vida intelectual e moral de você sempre sem se esquecer da indulgência grande que sabe ter diante de si uma inteligência aplicada aos sentimentos.” Parece-nos que essa questão de “doutrinar” a mulher, de educá-la, para que possa acompanhar o trabalho intelectual de seu companheiro, é uma ideia da época, já que, como o próprio Mário sugere, a educação das mulheres era para o cuidado do lar e a dos homens, para a arte e a filosofia. E James Joyce, no dia 22 de agosto de 1912, em carta à sua companheira Nora, diz: “Quando voltarmos para Trieste, serás capaz de ler livros, se eu tos der? Então podíamos conversar os dois. Ninguém te ama como eu, e eu gostava de ler contigo os mais diversos poetas, dramaturgos e romancistas, servindo-te de guia. Só te darei a ler o que há de melhor na literatura.” 39 Fig. 10 Notícias sobre o casamento de Dolores e Carlos, 18.04.1925, 02.06.1925, 03.06.1925. Arquivo da família. 40 Fig. 11 Convite de casamento de Dolores e Carlos, 30.05.1925. Arquivo da família. Fig. 12 Dolores e Carlos, 26.01.42. Arquivo da família. Na época em que Dolores se casou, não era visto com bons olhos que a mulher tivesse uma ocupação remunerada e menos ainda quando o próprio 41 marido se encontrava desempregado, sendo sustentado pelo pai, pois a função de prover o lar cabia, exclusivamente, ao homem. Foi assim que Dolores, ao se casar, abandonou o emprego.10 E não só isso. Ela, antes mesmo do casamento, tomou uma providência que durou por toda a vida: omitiria sua verdadeira idade. Tudo indica que era mais velha do que o marido, e isso também não era socialmente aceitável. Desse modo, por uma questão de princípios, nunca declarava sua real data de nascimento. No entanto, lá pelos anos 80, quando teve que se operar de um nódulo frio na tireóide, acompanhada por Carlos, num consultório, indagada sobre sua idade e vendo que o caso era sério, com firmeza e dignidade, revelou ao médico o seu segredo, que ainda assim nos escapa. Suspeita-se que nascera um ano antes do século XX.11 Fig. 13 Bilhete de Carlos para Dolores, 19.04.1970. Arquivo da família. 10 “Segundo depoimento da professora Clirian Alquéres, amiga da família Drummond de Andrade, Dolores, esposa do poeta, abandonou o emprego (1925) para casar-se com Carlos que se encontrava desempregado. O casal passou a viver à custa do pai de Carlos [...]” (VASCONCELLOS, op. cit., p. 98). 11 Anexo I (p. 116-126): entrevista a Luis Mauricio Graña Drummond, no dia 04.12.2013. 42 O documento como ficção – um modo de subverter o que nos é apresentado como real Fig. 14 Verso da Carteira de Identidade de Dolores. Arquivo da família. Documentos com datas fictícias, uma história de amor, sem data, sem assinatura e sem fim, encontrada no arquivo de Dolores. A narrativa que termina em vírgula, ou não termina, fazendo jus ao título que lhe foi dado. Curiosamente, a moça da história é um ano mais velha do que o garoto e tem os “olhos morenos”. Dolores? 43 44 Fig. 15 Documento sem data. Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. Transcrição na página seguinte. 45 História simples que recomeça... Era pequeno, de cabelos amarelados e claros, já com uma indecisa tristeza nos modos e um ar de alheamento, de ausência. Ela, ao contrário, mais velha um ano, tinha, nos olhos morenos, duas fontes de alegria mal reprimida. Brincavam muito. Eram amiguinhos, queriam-se para marido e mulher, tinham sempre as mãos unidas, uma efusão ingênua. - “Quando eu for homem... você casa comigo?...” - “Caso, sim...” E, numa ingênua efusão, tinham as mãos unidas, olhos nos olhos, como bons amiguinhos. Aquilo durou uma infância. No colégio, ele sentia um certo rubor ao lembrar-se do idílio infantil e inconsequente. No colégio, ela rezava orações, fazia belos desenhos, crescia. Até que uma vez... O encontro foi num domingo de dezembro, um dezembro de férias, na casa de D. Mariazinha. Seria que os dois continuassem os mesmos? Não continuavam, mas os olhos dele se abriram para os olhos dela, e, fitando-se, a história recomeçou... Ele era romântico, e, sobre as suas roupas escuras, a cabeleira clara, em anéis, parecia uma coroa de ouro. Ela sabia versos, e a história se complicou com versos e romantismo... Regressaram aos estudos, cada um levando nozes, retratos. Os retratos envelheceram na ternura dos dois, foram destruídos, como nozes... Agora é de vez – pensaram. Mas a historia recomeçou ainda uma vez, nova e diferente. Viram-se numa grande cidade, dentro de um grande jardim, à beira de um pequeno lago. Os pais estavam presentes, 46 DOLORES, DOLARES, DONDOLÔ 1926 - 1994 Mirar el río hecho de tiempo y agua y recordar que el tiempo es otro río, saber que nos perdemos como el río y que los rostros pasan como el agua. Jorge Luis Borges Fig. 16 Fotos de Dolores em diferentes datas. Arquivo da família. Quando entrevistadas, as mulheres de escritores do século XX quase sempre relatam histórias semelhantes. Maria Lúcia Dourado, em conversa com Vera Regina Morganti (1994), revela que era a primeira leitora dos escritos de Autran Dourado, servindo-lhe também como datilógrafa. Com Dolores, não foi muito diferente. Segundo o próprio Drummond, ela, em 1924, datilografou os originais de Os 25 poemas da triste alegria12 e a seguir encadernou o trabalho, conferindo-lhe toda a aparência externa de um livro. Graças também a esse trato cuidadoso que Dolores deu à obra, hoje é possível conhecermos o “tom” 12 Essa obra acabou se perdendo, reaparecendo mais de 80 anos depois, no acervo de um bibliófilo carioca. Foi lançada em 2012, pela Cosac Naify, em edição fac-similar. As informações aqui colocadas foram retiradas da apresentação do livro, feita por Antonio Carlos Secchin. 47 do “quase livro do pré-poeta” de 1924, bastante diferente do poeta de Alguma Poesia. Datilógrafa, noiva, esposa, companheira. Em 1926, tendo Carlos conseguido um cargo de professor de Geografia, Dolores muda-se com ele de Belo Horizonte a Itabira. Mas não gostou nada da ideia de abandonar a capital mineira, assim descrita por Pedro Nava, em Beira-mar: Belo Horizonte era uma capital profundamente quieta e bem pensante. Amava o soneto, deleitava-se com sua operazinha em tempos de temporada, acatava o Santo Ofício que censurava por sua conta os filmes, suas moças liam Ardel, Delly, a Bibliothèque de ma Fille, a Collection Rose, não conversavam com rapazes e faziam que acreditavam que as crianças pussavam [sic] nas hortas entre pés de couve, raminhos de salsa, bertalha e talos de taioba. Havia uma literatura oficial. Os discursos de suas excelências eram obras antológicas [...] (1979, p.179). No dia em que chegou à fazenda, adoeceu, horrorizada de ver aquela “vida besta”, demasiado pacata. Voltou para a cidade, manifestando sintomas de “gravidez extra-uterina”. De tão mal que estava, foi transportada em padiola até Santa Bárbara, onde tomaria o trem para Belo Horizonte. Em carta de 31 de agosto de 1926, Drummond escreve a Mário de Andrade, contando-lhe sobre a doença de sua companheira: “trouxe Dolores para aqui, ela veio melhorando, melhorando e agora já está boa, pelo menos aparentemente. O médico de Itabira disse que era preciso operação, um segundo daqui disse: vamos ver, e um terceiro, meu amigo, disse que não era preciso. Agora ela já se levantou e sai a passeio comigo. Em Itabira esteve mal que você nem imagina: sem fala, sem vista e resignada a morrer. Que filho custoso, Mário!” De fato, a gravidez do primeiro filho foi bastante conturbada. No dia 19 de março de 1927, Dolores entra em um penoso trabalho de parto e no dia 21 dá à luz um menino, enorme e robusto, de nome Carlos Flávio. Asfixiado pelo cordão umbilical, viveu apenas meia hora. 48 Fig. 17 Fotos de Carlos Flávio e seu túmulo, Belo Horizonte, 21.03.1927, 08.1977. Arquivo da família. O próprio nome Dolores, que em espanhol significa “dores”, já lhe antecipava o sofrimento. Quase um ano depois, no dia 4 de março de 1928, na Rua Silva Jardim, número 117, nasce a única filha do casal, Maria Julieta, linda, quase robusta, manhosa e risonha. 49 “Dos dias em que, se o sol era forte, comia-se a merenda ao ar livre, ao redor da mesa comprida e baixinha. Aquela vez foi terrível: a mãe, sempre com ideias modernas, prepara sanduíche de tomate, manteiga e açúcar, e o pãozinho insólito, que ela pretendia mastigar com orgulho, acabou sendo objeto de escárnio geral, até mesmo da professora. Chorou muito ao chegar em casa, e no dia seguinte a mãe foi ao Jardim reclamar, mas já não era possível extrair do episódio o fundo de vinagre.”13 Fig. 18 Fotos de Maria Julieta, Dolores e Drummond, 1929. Arquivo da família. 13 Trecho retirado de “Faíscas”, seção “Memória”, da obra O valor da vida (1982), de Maria Julieta Drummond de Andrade. 50 “(Morangos com creme numa latinha redonda, supremo requinte materno, alguns anos depois. Como os tempos eram outros, as colegas já lhe invejavam a delícia rosabranca.)”14 Fig. 19 Maria Julieta e Dolores, 1932. Arquivo da família. Sendo dona de casa, com a filha e o marido para cuidar, Dolores passa a frequentar um curso da Escola de Economia no Lar 15 , promovido pela Companhia Força e Luz de Minas Gerais. Como se pode ver, na reprodução da página seguinte, eram aulas oferecidas especialmente para mulheres. 14 Idem O primeiro curso de Graduação de Economia Doméstica surgiu em 1952, com a implantação da primeira Escola Superior de Ciências Domésticas, na Universidade Rural do Estado de Minas Gerais, hoje Universidade Federal de Viçosa. No segundo semestre de 2014, a UFV passou a oferecer o curso de doutorado em Economia Doméstica, o único da América Latina e o primeiro do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade. (Ver https://www2.dti.ufv.br/ccs_noticias/scripts/exibeNoticia.php?codNot=20138). 15 51 O modo de sentar, bem comportado. Todas as damas de pernas cruzadas, mãos apoiadas no colo, vestidos longos, sapatos de salto. A moda da época, disciplinando os corpos. Fig. 20 Dolores – em pé, a terceira, da esquerda para a direita –, Belo Horizonte, 02.09.1933. Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. 52 Enquanto os homens recebiam seus diplomas de médicos, advogados, farmacêuticos e subiam em palanques, para discursos eleitorais, as mulheres recebiam diplomas como o de Economia no Lar. Segundo Vasconcellos (op. cit., p. 203), A educação feminina, na virada do século [do XIX para o XX], estava estreitamente relacionada com as atividades desenvolvidas pelo ‘belo sexo’. A mulher da classe social mais alta deveria aprender apenas algumas das chamadas prendas de sociedade: tocar piano, falar francês, bordar, costurar. A agulha se sobrepunha à caneta. Isto ocorria porque a mulher era formada para casar e não para manter-se (p. 203). Tal é o retrato da época. No entanto, vale lembrar que, já em 1879, algumas (poucas) mulheres cursavam o nível superior, a partir do Decreto nº 7.247, de 19 de abril daquele mesmo ano, da reforma Carlos Leôncio de Carvalho, pela qual se anexavam às Faculdades de Medicina as escolas de farmácia, obstetrícia, ginecologia e cirurgia dentária (VASCONCELLOS, op.cit., p. 216). “Facultava-se, então, nestas escolas, a inscrição para candidatos de ambos os sexos, devendo as mulheres ocuparem [sic] lugares separados nas salas de aula” (BERNARDES, 1983, apud VASCONCELLOS, op.cit. p. 216). Porém, ainda de acordo com esta pesquisadora, as mulheres que estudavam recebiam severas críticas da sociedade. Dolores, por sua vez, fez jus ao diploma. Futuramente, os três garotos, seus netos, teriam o gosto de vestir calças, camisas e pulôveres feitos pelas mãos da avó. Para o marido, em sua máquina Singer, fazia até as cuecas. De suas mãos, saíam deliciosos doces de banana, de abóbora. E a sopinha de feijão com macarrão, tão simples, mas ainda recordada pelo neto Luis Mauricio, com os olhos brilhando e um sorriso leve: “... aquela sopa de feijão com macarrão, que era ótima...”, ele diz. Certa vez, com mais de 30 anos, esse mesmo neto se intoxicou e chegou vomitando e aos gritos à casa de Dolores. E o fato é que “a vovó acordou, me deitou e me cuidou. No dia seguinte, ela fez pra mim sopa de arroz batida no liquidificador e em 24 horas eu fiquei bom. Ela cuidou de mim, acho que diria, melhor que uma mãe. Nos domingos, ela não fazia jantar, mas fazia uns sanduichinhos. Pegava o pão de forma, tirava as beiras e colocava um presuntinho e mais alguma coisa, enrolava tudo isso num 53 pano de prato úmido, colocava na geladeira e ficava bom; vinha acompanhado por uma laranjada, ou alguma coisa que ela preparasse.”16 Dolores fazia também grandes colchas de retalhos, do tipo patchwork, com figuras hexagonais ou quadradas. Algumas delas ainda estão com os netos. Os objetos de vovó, guardados carinhosamente, permanecem como uma lembrança familiar. Ao lado dos textos do avô, estão os tecidos da avó e ambos aquecem a memória dos que ficaram. O próprio “método patchwork”, usado em trabalhos manuais de Dolores, de certa forma é semelhante ao procedimento adotado neste ensaio, composto de “retalhos”, fragmentos de uma vida. Fotos, bordados, receitas, alguma breve informação no fim de uma carta, entrevistas, bilhetes, coisas esparsas, que, juntas, tentam tecer uma fagulha de vida, um sopro de existência, uma “colcha”. É justamente assim que os norteamericanos costumam confeccionar as colchas de retalhos, obras de memória, feitas com pedaços de tecidos que pertenceram à pessoa cuja vida é relatada nesse trabalho manual. O tecido como forma de sobrevivência. Observemos que, naqueles tempos, com frequência, essa atividade da costura, exclusiva de mulheres, era realizada concomitantemente a uma própria de homens: a da escrita ou da leitura.17 Enquanto as agulhas elaboram produtos manuais, que futuramente serão passados às mãos de filhos, netos, bisnetos, da máquina de escrever vai nascendo também um tecido outro, que, em pouco tempo, será legado ao público, a uma nação, ao mundo. Enquanto Penélope borda, Ulisses se entrega a aventuras, mais além, que serão contadas para a posteridade. Em entrevista a Vera Regina Morganti (op.cit.), Mafalda Veríssimo diz que fazia colchas de tricô enormes, enquanto Erico escrevia, e também participou de um curso para bordar lençóis de linho, tendo bordado todo o seu enxoval. Nydia Guimarães, mulher de Josué Guimarães, afirma que estava sempre ao lado do marido, enquanto ele escrevia. Bordava tapeçaria, para não conversar com ele. Dolores, por sua vez, chegou a eleger 16 Entrevista com Luis Mauricio Graña Drummond (p. 116-126). Implicitamente, a imagem da mulher que tece, enquanto o homem lê, aparece na crônica “Na varanda”, do livro Um buquê de alcachofras, de Maria Julieta Drummond de Andrade: “Um casal de velhinhos se senta na varanda, num começo de tarde chuvosa, e conversa. Sobre quê? Sobre tudo, sobre nada – não interessa. Estão sentados e conversam. Ela nem sequer faz algum trabalho manual, uma blusinha de crochê para a neta, um paninho para colocar debaixo da fruteira da sala; ele não tem nenhum jornal ou livro no colo” (p. 162). 17 54 uma cadeira de balanço 18 , para colocar no escritório de Carlos, ao lado da mesa de trabalho. Lá, em silêncio, fazia seus serões de costura. Era, de fato, como Mafalda e Nydia, uma espécie de anjo do lar, vivendo em seu cantinho, discretamente, sempre atenta, sempre zelosa. Era ela quem, a passos leves, entrava no escritório às dez da manhã, para levar uma laranjada, um café, um pedaço de queijo ao marido, enquanto ele fazia o “tricô das crônicas”. (Certa vez, Drummond chegou a declarar ao neto Luis Mauricio que não sabia fazer um café, algo bastante natural para aquela geração). Dolores enfrentava as enormes filas dos açougues e “era comum vê-la fazendo feira, toda semana, caladinha, recatada, acanhada", como disse, em entrevista, sua vizinha, dona Stella Pavan. Mesmo tendo empregadas – que usualmente a chamavam de “Dondolô” –, ela jamais se descuidava da direção do lar. Nenhum detalhe lhe escapava: disposição de móveis, adornos, quadros, etc. Por uma questão estética, gostava de santos barrocos. Sua casa no Rio tinha móveis antigos, os santos, uma virgem catalogada, comprada em Buenos Aires – Santa Rita. Fig. 21 Foto de Carlos Drummond de Andrade, ao lado de Santa Rita, sem data.19 18 Essa cadeira pode ser vista no início do vídeo O fazendeiro do Ar, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=UP66vBqmiNE 19 Disponível em: http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?tag=carlos-drummond-de-andrade. Acesso: 20.06.2014. 55 Edmílson Caminha, um dos maiores estudiosos da obra de CDA, afirma que “Dolores era muitas: mãe dedicada, avó compreensiva, dona de casa eficiente, amiga prestimosa, mas também, e de maneira especial, esposa de poeta, cumpridora do papel de coadjuvante de um homem público, de um escritor permanentemente assediado pela imprensa e pelo público. Assim, discreta e silenciosamente, soube viver à sombra do marido.”20 Fig. 22 Dolores, Edmílson Caminha e Drummond, Rio de Janeiro, 01.1984. Foto por Ana Maria Caminha. Arquivo Edmílson Caminha. Certamente, a recíproca não foi verdadeira: ele não viveu à sombra dela; no entanto, é também incontestável que, sem o apoio constante de Dolores, Carlos teria encontrado maiores dificuldades ao longo de sua carreira. 21 Por exemplo, não foram poucas as vezes em que ela atendia o telefone ou chegava à janela para dizer que ele não se encontrava. O marido estava, sim, no escritório, fazendo seu trabalho, em paz, e na tranquilidade garantida pela 20 Anexo II (p. 127-129): entrevista com Edmílson Caminha, concedida a mim, em 10.12.2013. Vejamos, por exemplo, o que o escritor Erico Verissimo fala sobre sua esposa, no livro Solo de Clarineta: “Mafalda amadurecia, transformando-se numa companheira compreensiva que me dava todo o apoio moral e o estímulo de que eu necessitava. Sem sua paciência, sua tolerância, seu bom-senso e seu bom-humor, minha carreira de escritor teria sido muito mais difícil do que foi ou talvez mesmo impossível” (1987, p. 264). 21 56 custódia da mulher. De fato, Dolores cuidava do tempo do marido. Não escrevia, mas cuidava do que ele escrevia, entendia o seu ofício.22 E é curioso o fato de que na obra dele existam apenas dois poemas para ela.23 Segundo seu genro, o escritor argentino Manuel Graña Etcheverry 24 , Dolores era muito econômica e, em tempos de inflação, sempre que podia trocava cruzeiros por dólares, fazendo, assim, sua pequena economia. Carlos, sendo também uma pessoa econômica, mas sem se importar com o assunto dos dólares, se divertia com a preocupação da mulher, a quem, carinhosamente às vezes chamava de “Dolares”. “Dolares” costumava guardar dinheiro em fronhas e envelopinhos. (De fato, após seu falecimento, os netos encontraram embrulhinhos com notas de denominações já sem curso legal). Era ela quem cuidava das finanças miúdas do lar, provendo as formas materiais de sobrevivência, e isso talvez explique esse seu modo mais cuidadoso de lidar com o dinheiro. A propósito de mulheres administrando o dia a dia de homens notáveis, nos permitimos mencionar o seguinte caso, transcrito do livro O casaco de Marx, de Peter Stallybrass (2012): “foi Marx quem escreveu sobre o funcionamento do dinheiro, mas eram sua mulher, Jenny, e sua criada, Helene Demuth, que organizavam as finanças da casa e faziam as visitas à loja de penhores.” E Dolores/Dolares, em seu árduo vai-e-vem cotidiano, como ela mesma afirmava, era “precavida como a formiga da fábula”. 22 Nesse sentido, o comportamento das mulheres de escritores se assemelha bastante. Dorine, a esposa de André Gorz, dizia ter se “unido a alguém que não podia viver sem escrever, e sabia que quem quer ser escritor precisa se isolar, tomar notas a qualquer hora do dia ou da noite; que seu trabalho com a linguagem continua mesmo depois de largar o lápis, e pode se apossar dele por completo, bem no meio de uma refeição ou de uma conversa. [Ela afirmava que] amar um escritor é amar que ele escreva. ‘Então escreva!’” (GORZ, 2012, p. 21). 23 “Anoitecer”, do livro A Rosa do Povo e “A companheira”, em Poesia errante, derrames líricos (e outros nem tanto, ou nada). 24 Anexo III (p. 130-132): entrevista com Manuel Graña Etcheverry, concedida a mim, em 11.11.2013. 57 Fig. 23 Bilhete de Drummond para Dolores, 25.12.1970. Arquivo da família. Fig. 24 Bilhete de Drummond para Dolores, 19.04.1971. Arquivo da família. 58 Fig. 25 Página do caderno de receitas de Dolores. Acervo de Carlos Drummond de Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. 59 A imagem inevitável da mulher na cozinha. Naquele tempo, era o lugar de onde ela podia falar de si, colocando em prática o que lhe fora ensinado. Fig. 26 Caderno de receitas de Dolores, Acervo de Carlos Drummond de Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. 60 Em boa parte dos Livros da Odisseia, Penélope não é vista; ela se recolhe. Está, provavelmente, em algum canto, tecendo a sua vida, a sua própria história, que é também a de outros. Tecer é uma forma de escrever a existência com linhas aveludadas. Aracne, a jovem tecelã, não contava e arquivava histórias por meio do que tecia? Aliás, texto é palavra variante de tecido... O ponto dado com elegância, o arremate, os nós, a trama, o enredo, o fio da meada, o novelo e a novela: a escrita elaborada de tantas outras formas... Fig. 27 Os bordados de Dolores, leitora número 1 da revista alemã Burda, de corte e costura. Arquivo da família. “DASDORES (assim se chamavam as moças naquele tempo) [...] Dasdores e suas numerosas obrigações: [...] velar pelos doces de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe o 61 máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido, ressoa pela casa toda. “Dasdores, as dálias já foram regadas hoje?” “Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para sua mãezinha.” Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil coisas...”25 Fig. 28 Pano de mesa feito por Dolores. Arquivo da família. 25 Excerto do conto “Presépio”, do livro Contos de Aprendiz, de Carlos Drummond de Andrade. 62 Fig. 29 Dolores, 1930, Arquivo da família. Em 1934, Dolores e a filha de seis anos permanecem em Belo Horizonte por um tempo, enquanto o marido está no Rio de Janeiro, à espera de ser nomeado no Gabinete de Gustavo Capanema, ministro de Educação e Saúde Pública, e procurando alguma casa para alugar. No fim do ano, arrumam as malas e partem para a capital. 63 Provavelmente, o Rio de Janeiro que encontraram... Fig. 30 O bairro de Ipanema, 1928. Atrás dos fotografados, a Avenida Vieira Souto. Ao longe, pode-se ver a Igreja de Nossa Senhora da Paz, recém-inaugurada. No fundo da foto, o Sumaré e também os muitos morros baixos de Ipanema, que foram derrubados. Arquivo de George dos Reis. 64 De Minas abissal para o mar aberto do Rio E a cabeça da filha, buscando o colo da mãe. Fig. 31 Drummond, Dolores e Maria Julieta, Rio de Janeiro, 1935. Arquivo da família. A família levava uma vida simples, de hábitos frugais. Horário para almoço e jantar. Comida mineira. Couve, um bifinho, ovo e o angu do marido que, como ele mesmo dizia, era sempre bom porque, ao ser alimento insosso, nunca estava ruim. E ela dava a ele um copo de leite, após o almoço. Mineiros... 65 Depois, a vida na casa da rua Joaquim Nabuco, 81 (segunda residência da família na então capital da República). A falta de água26, que nunca era uma novidade em Copacabana, e as goteiras, causadas pelos temporais de primeira classe, recolhidas com pinicos e baldes. No dia seguinte, o sol, sempre a postos, alheio a tudo o que se passou. Às cinco da manhã, a dona de casa já se movimentava: o café, o bolo e até o feijão de molho, tudo bem arranjado e a mesa pronta nos horários de costume. Certo dia, por volta de 1945, a filha Maria Julieta, tendo que ir a um acampamento de bandeirantes, deixa uns papéis com a mãe, com o rascunho de uma novela que havia escrito. A garota tinha apenas dezessete anos. Dolores, sempre atenta, sempre solícita, com sua perícia de datilógrafa, bateu tudo à máquina. Foi a primeira leitora de A busca – assim se chama a obra. Quando a filha voltou, mostrou os escritos ao pai, que os levou à Editora José Olympio, onde Rachel de Queiroz, consultada, aconselhou a publicação. Nasceu aí uma das mais jovens escritoras brasileiras. Dolores, nos bastidores, uma vez mais, é testemunha de parte da criação de nossa história literária. 26 As duas primeiras crônicas que CDA publica no “Correio da Manhã”, em 9 e 10 de janeiro de 1954, “A pipa” e “Relações de água”, ilustram o problema sistêmico da falta de água na cidade do Rio de Janeiro, em 1954, auge da crise de sua distribuição na capital, que só será sanada com a construção da estação de tratamento do Guandu, por Carlos Lacerda, quando governador do Estado da Guanabara (1960-1965). 66 Fig. 32 Dolores e Carlos, 1963. Arquivo da família. Mas, entre mãe e filha, além do carinho, havia certa tensão, como lembra o neto Luis Mauricio. Carlos e Maria Julieta tinham um mundo à parte, o mundo literário, coisa deles dois. Dolores aí praticamente não entrava. Segundo o genro Manuel Graña Etcheverry, Dolores nunca teria feito críticas literárias a Carlos. Maria Julieta, sim, o fazia e, eventualmente, ele, o genro, também o fez. No entanto, Dolores, em seu trabalho silencioso, de formiga, não foi talvez (implícita) personagem de uma história literária? Não Dulcinéia do Toboso, nem Beatriz de Dante, mas personagem de carne e osso. Acaso os leitores e as mulheres dos escritores ou os maridos das escritoras, que permanecem por ali, calados, próximos aos livros, não estariam bem acima do patamar de uma nota feita às margens de um manuscrito, uma palavra riscada, uma caricatura elaborada num momento de distração? Matéria para a crítica genética. Não era costume à época que a mulher questionasse o marido. E Dolores era uma representante da geração brasileira a que pertencia, como afirma Edmílson Caminha, em sua entrevista, na qual também relata, ao ser 67 questionado sobre a contribuição dela ao trabalho literário do marido: “Tenho a certeza de que Dolores foi fundamental na vida de Carlos, como o porto seguro de que ele necessitava, como ser humano e como artista. Sabiamente, ela o compreendia nos seus múltiplos papéis – de marido, de escritor e de homem que nunca perdeu a capacidade de amar. Inteligente que era, sabia dos relacionamentos extraconjugais de Carlos, mas optou por suportá-los, em nome da sobrevivência da família e da relação minimamente harmoniosa que deve prevalecer entre marido e mulher. Não tenho dúvida de que uma separação teria sido fatal para Drummond, pela ausência da pax domestica sem a qual não conseguiria viver nem escrever. Assim, a convivência com Dolores refletiu-se na obra de Carlos (não apenas pelo equilíbrio emocional que lhe proporcionava, como acabo de dizer), mas explicitamente, também, nos poemas em que faz alusão direta à companheira de toda uma vida. Namorador impenitente (o que só depõe em favor dele...), Drummond não teria conseguido viver sem Dolores.”27 Fig. 33 Maria Julieta, Dolores e Carlos, 1951. Arquivo da família. 27 Entrevista com Edmílson Caminha (p. 127-129). 68 Fig. 34 À esquerda, Manuel Bandeira; no centro, os noivos Pomona Politis e Thiago de Mello; à direita, Dolores e Carlos, padrinhos do casamento, 1951. Arquivo da família. Sobre as relações extraconjugais a que Caminha faz alusão, paira uma vaga reminiscência de algo que haveria sido contado (por Dolores?). Ela teria dito ao marido: “Pois sim, raparigas, raparigas... Fique com elas, mas não lhe dou mais filhos!” Como dissemos, isto não se constitui sequer em lembrança, nunca foi confirmado e, talvez, jamais o seja. O fato é que eles não tiveram mais filhos. Há também uma versão (tampouco confirmada) da cena em que um vaso de flores voa para cima do poeta, quebrando-lhe um braço... A filha, Maria Julieta, algumas vezes também criticaria o pai por sua infidelidade, de mais de 30 anos, em seu relacionamento com Lygia Fernandes, mulher mais jovem, que o itabirano conheceu, na década de 50. Segundo conta José Maria Cançado, em seu livro Os sapatos de Orfeu, quase todas as tardes, depois do trabalho, Carlos comparecia ao apartamento da companheira. Alguns de seus versos são dedicados a ela. Naqueles tempos, em que ter uma amante, de alguma forma, era socialmente aceitável (para os homens), tudo convergia para que não 69 houvesse mesmo a dissolução das famílias. E o que diziam as publicações das revistas a respeito das aventuras extraconjugais? Para o homem: [...] que atitude deve tomar um marido que se sabe enganado? Permanecer ao lado de quem o atraiçoa seria indigno de sua parte [...] Mesmo porque não se pode exigir de um marido que viva com uma mulher que lhe é infiel. Não pode haver harmonia num clima de indignidade. Num caso desses o pai tem que fazer da fraqueza das crianças a sua armadura de coragem para enfrentar sozinho as responsabilidades que deveriam ser desempenhadas a dois (O Cruzeiro, 28 de jan. 1956 apud Bassanezi, op. cit. p. 634). Para as mulheres: [Mantenha-se] no seu lugar de honra, evitando a todo custo cenas desagradáveis que só servirão para exacerbar a paixão de seu marido pela outra [...] [Esforce-se] para não sucumbir moralmente [...] levando tanto quanto possível uma vida normal, sem descuidar do aspecto físico [...] (O Cruzeiro, 04 de jun. 1960, apud Bassanezi, op.cit.. p. 635). E ainda: [...] sorrir e não fazer cenas para que o marido, a fim de fugir dessas cenas, não caia nos braços de outra e abandone de vez a casa (Jornal das Moças, 08 de mar. 1956, apud Bassanezi, op.cit. p. 635). Como vemos, a mulher que se separasse, ou que causasse a separação, não receberia da sociedade a mesma complacência dada ao homem. Conforme já foi dito, no ano de 1950, apenas o desquite era permitido, e este não dissolvia o casamento. Guimarães Rosa, por exemplo, após seu relacionamento extraconjugal com Aracy de Carvalho, teve seu desquite legalizado em abril de 1943, durante sua estada na Colômbia. Os dois se casaram por procuração no México, no dia 20 de agosto de 1948 (SCHPUN, 70 2011, p. 378-379). Nessa época, no Brasil, uma pessoa desquitada não podia assumir oficialmente outro laço conjugal. Assim, tiveram que se casar em terras estrangeiras. Em 13 de março de 1960 28 , Drummond, em carta para Dolores, que estava em Buenos Aires visitando a filha, dá a notícia da separação de Portinari e sua mulher Maria nestes termos: “Só uma notícia triste e que me chocou extremamente: Portinari e Maria se desquitando”. E Dolores responde, em carta de 17 de março de 196029: “Fiquei sofrida com o caso Portinari, devia esperar isto de todo casal, mas este tão amigo, tão eles mesmos.” Futuramente, quando, em 1970, a própria filha Maria Julieta e seu marido Manolo se separaram, Dolores, andando pela Avenida Santa Fe, em Buenos Aires, ao passar por ele, virando a cara, finge não vê-lo. Mas, pouco depois, tudo se acertou e reataram a amizade bonita e sincera que sempre tiveram.30 Não é preciso mais para dizer que ambos eram contra a dissolução do casamento, da família, etc. Um precisava do outro, ambos se apoiavam. Além disso, a esposa mineira era um dos poucos elos que levavam o marido ao seu passado, tão celebrado em sua poesia e na sua prosa, e ele também era ponte para o passado de Dolores. Como afirma o neto Luis Mauricio: “Apesar das coisas, foi um casal bem constituído, um típico casal da época, de classe média. Havia essas desavenças, essas coisas que, hoje em dia, não seriam toleradas por uma mulher, nem por um marido, enfim, mas era assim mesmo o tempo deles. Foi assim. Nunca se separaram, nem creio que tenham cogitado sequer essa ideia.” Em entrevista concedida a Leda Nagle, em 1980, quando questionado sobre a situação da mulher brasileira na época, o escritor não hesita em dizer: “Acho que a minha filha Maria Julieta ilustra bem esse esforço da mulher no sentido de ela se construir uma pessoa autônoma, independente, pensando pela própria cabeça e influindo na sua própria vida. As mulheres estão fazendo 28 Anexo IV (p. 141). Anexo V (p. 142). 30 Vale a pena mencionar o seguinte episódio para destacar o carinho constante que existiu entre Manolo e seus (ex) sogros. Certa vez, ao final dos anos 70, ele foi a um congresso na UFRJ apresentar um trabalho seu sobre o ritmo na poesia. Carlos e Dolores, um casal tão reservado, que quase não recebia visitas em casa, lhe enviaram um telegrama dizendo: “Fique conosco”. Mais ainda, como era costume nos tempos do casamento com Maria Julieta, eles lhe cederam o próprio quarto. 29 71 um grande trabalho nesse sentido. O que eu acho muito simpático. Até então, nós éramos proprietários da mulher. Hoje elas não são mais propriedades nossa. Isso é ótimo.” E sobre os movimentos de libertação do homem nos Estados Unidos, Drummond afirma: “Acho que o homem não precisa muito desse movimento. O homem precisa ceder alguns dos privilégios que ele sempre teve, para haver uma competição saudável, sobretudo no mercado de trabalho, entre o homem e a mulher. Isso é o que eu acho, uma vez que ela conquista a independência econômica, não se dobra mais a caprichos masculinos, nem a gente vai domesticá-la como se fosse um bicho, um gato. Acho que a coisa está caminhando para um equilíbrio bastante razoável nesse sentido” (RIBEIRO, 2011). 72 E havia o exemplo dos pais de Dolores – casados há 60 anos. A tradição não é uma vocação. É uma herança. Fig. 35 Pais de Dolores, foto frente e verso, 09.06.1951. Arquivo da família – Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. Em 1949, a filha Maria Julieta casa-se com o advogado e escritor argentino Manuel Graña Etcheverry. A partir dessa data, Dolores passa a ir regularmente a Buenos Aires, na maioria das vezes sozinha, pois o marido, além de não gostar de viajar, tinha que ficar no Rio, já que era funcionário 73 público. No mês de maio de 1950, tendo viajado à Argentina, pela primeira vez, ao saber da gravidez de Maria Julieta, Dolores já se põe a tricotar.31 Queria presentear o primeiro netinho com uma boa produção de agasalhos, para que ele enfrentasse garbosamente o frio cortante do inverno portenho. Todos os anos, Dolores tirava suas férias conjugais e da labuta diária, indo a Buenos Aires. Tal qual uma flanêuse, trocava pernas pela calle Florida, Avenida Santa Fe e por onde pudesse encontrar santos barrocos32, tapetes persas, turcos, chineses. Antiquários e leilões de móveis antigos: aí estavam ela e a filha. Passava algum tempo lá, com a vida bem diferente da que levava no Rio. Festas pomposas em navios brasileiros, cinema a qualquer dia, a qualquer hora, sem aquele rigor do cineminha dominical de bairro, das 14 horas, com o marido. Apresentações do mais alto nível no Teatro Colón33, no Grand Splendid, jantares na Embaixada do Brasil, em casa de conhecidos, passeios pelos arredores de Buenos Aires, exposições de arte. Fig. 36 À esquerda, Maria Julieta, Dolores e Manolo, Buenos Aires, 1963. Arquivo da família. 31 Anexo VI. Carta de 13 de maio de 1950 (p. 134). Anexo VII. Carta de 16 de setembro de 1965 (p. 146). 33 Anexo VIII. Carta de 04 de agosto de 1957 (p. 138). 32 74 E os netos foram chegando. As mãos da avó, tecendo; cartas sendo escritas, uma a uma, enviadas ao marido, no Brasil, iam relatando a infância das crianças: um dentinho de leite que caía, uma gripe, um tombo, as notas escolares, o desenvolvimento nas artes, nos idiomas, nada escapava àquela avó atenta. Contava-lhes estórias divertidas. Fã dos desenhos do netinho mais velho, mandava-os ao avô, dizendo: “É preciso aproveitar esse menino, Carlos!”. Nas cartas, descrevia o olhar, a emoção e o sorriso de cada um, em sua chegada ao aeroporto de Ezeiza34, um verdadeiro acontecimento para as crianças. Nessas tantas missivas que voavam de Buenos Aires ao Rio de Janeiro, Dolores tecia a história de sua família. Fig. 37 Manolo, Dolores, Carlos e o cão Puck, 09.1951. Arquivo da família. 34 Anexo IX. Carta de 23 de agosto de 1958 (p. 140). 75 Com um olho em Buenos Aires e outro no Rio de Janeiro, Dolores cuidava do Ministério Doméstico, como ela e Carlos brincavam de chamar a própria casa.35 Pague o leite e o jornaleiro, na data tal, ela pedia. “Caso Manolo queira trazer alguma coisa: as toalhas de banho estão em sua valise nova, no porta-malas e ainda há dois lençóis e uma toalha de rosto numa caixa, no armário de espelho de nosso quarto. Há também o travesseiro, que poderá vir numa bolsa de papel que o Banco de Crédito Real nos deu e que está também no mesmo armário embaixo, ao lado das gavetas. Há dois pares de sapatos Vulcabras, embaixo, no mesmo lugar, em caixas. E principalmente os copos de cerveja no bufê da sala de jantar. Se ele quiser trazer alguma coisa, poderá escolher.” Tudo em perfeita ordem. Tudo bem explicado, preciso, para não tomar o tempo do marido, que estaria ocupado com os trabalhos de escritório, trabalhos estes que garantiam ao casal uma vida um pouco melhor, em termos financeiros. Fig. 38 Da esquerda para a direita, a pintora argentina Mary Graña, sua cunhada Maria Julieta e Dolores, Buenos Aires, sem data. Arquivo da família. 35 Anexo X. Carta de 7 de julho de 1963 (p. 143). 76 Fig. 39 Carta de dona Sinhá para Dolores, 29.11.1952. (Depois da morte do marido, o capitão Sevanir, dona Sinhá vai viver em São Paulo, onde estavam alguns de seus filhos). Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. 77 Fig. 40 Carta de dona Sinhá para Dolores, 23.07.1953. Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. 78 Geralmente, Dolores viajava em agosto, que era o mês do aniversário do segundo neto, Luis Mauricio, e passava um mês em Buenos Aires. 36 Aquilo tudo era uma festa só: ela levava presentes, normalmente, piorras, discos e relógios, e as crianças gostavam dela, porque era boa e sempre carinhosa. Era uma alegria, quando ela abria a mala e apareciam os brinquedos! Por outro lado, botava medo nos meninos, enquanto dormia. “A vovó roncava alto.” Que terror! Fig. 41 Carlos Manuel, Drummond, Maria Julieta e Dolores, Buenos Aires, 1953. Arquivo da família. 36 Anexo XI. Carta de 27 de agosto de 1964 (p. 145). 79 Fig. 42 Da esquerda para a direita, Luis Mauricio, Maria Julieta, Carlos Manuel e Dolores, Buenos Aires, 24.09.1955. Arquivo da família. Fig. 43 Da esquerda para a direita, Pedro Augusto, Dolores e Luis Mauricio, à porta da casa da família, Arroyo 831, Buenos Aires, 1964. Arquivo da família. 80 No Rio, Dolores saía pouco e, quando o fazia, era em companhia das primas Pitu e Maria. Carlos, sempre ocupado com seus escritos, reservava os domingos para, religiosamente, almoçar com a esposa e ir ao cineminha de bairro, das 14 horas. E, quando Manolo ia de carro ao Rio de Janeiro, passeava com a sogra. Ela gostava de ver as construções de pontes e túneis novos. Queria acompanhar a metamorfose da cidade grande. Certa vez, numa Barra da Tijuca ainda pouco urbanizada, genro e sogra viram como se filmava a queda de um automóvel no mar. Eram cenas de Diamantes a gogó (1967), filme dirigido por Giuliano Montaldo. Fig. 44 Dolores e Carlos, por Alair Gomes, Rio de Janeiro, 1978. Acervo de Carlos Drummond de Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. 81 No apartamento da rua Conselheiro Lafaiete, para onde se mudaram em 1962, pelas noites, programas televisivos e, em particular, novelas distraiam o casal – ambos eram “noveleiros”, embora Carlos, geralmente, fosse um espectador “tangencial”. Em carta de 17.7.79, estando Dolores em Buenos Aires, Drummond narra parte da novela “Pai Herói” 37 , colocando sua companheira a par de tudo o que havia se passado: “A novela do ‘Pai Herói’ está pegando fogo. Imagine você que André (Tony Ramos) foi preso sob a acusação de haver matado e enterrado em lugar ermo sua mulher Karina. O júri absolveu-o por falta de provas, exatamente como ao primo Leopoldo Heitor: o cadáver encontrado não era o de Karina. Enquanto isso, esta, disfarçada com óculos escuros, assistia ao júri do coitado, e ninguém a reconhecia... Afinal, ela deu-se a reconhecer à primeira filha, no jardim público, aonde levara o filho de André e as duas crianças ficaram amigas para sempre. Rosa Maria Murtinho, a matusquela, apaixonou-se pelo malandro do Claudio Cavalcanti e resolveram viver juntos. Como este não aparecesse, ela subiu ao telhado e lá de cima começou a fazer uma porção de micagens, ameaçando atirar-se. Juntou gente, e o Corpo de Bombeiros salvou a situação. Aí o Cláudio apaixonou-se deveras pela maluca, e fez um filho em sua outra namorada, de puro entusiasmo pela primeira. O César continua cada vez mais mau caráter, a ex-babá sente remorso por haver abandonado a filha de Karina, mas promete não contar nada a ninguém se César lhe arranjar emprego. E o Baldaracci começa a ficar desmoralizado. Perdeu a demanda com o pai de Ana Preta, que agora está rico, enquanto ele, Baldaracci, se entrega à farra rasgada, e seu pai Colasanti se prepara para casar. Janette Clair é mesmo um gênio, né?” 37 Escrita por Janete Clair, exibida pela Rede Globo, de janeiro a agosto de 1979. 82 Sou mulher feita e refeita, fui triste, fui prisioneira, hoje sou frágil, sou livre, coleciono lutas e abandonos na pele cicatrizada. Maria Julieta Drummond de Andrade Fig. 45 Dolores, Rio de Janeiro, abril de 1981. Arquivo da família. Amante de palavras-cruzadas e fiel leitora de O Globo, pedia aos netos, assim que almoçavam depois da praia, para irem, ali mesmo, pertinho da Conselheiro Lafaiete, buscar o jornal, que, na época, ainda era vespertino. Os garotos, já cansados, curtindo as férias, se recusavam a fazer o que a avó pedia, mas nunca saíam vitoriosos, pois, sistematicamente, eram submetidos a uma certa chantagem psicológica: “Tudo bem, eu vou, mas se depois vocês souberem de uma velhinha que apareceu morta aí na rua...” Não havia outro remédio senão, é claro, atender ao pedido da vovó. 83 Fig. 46 Maria Julieta, Carlos e Dolores, no Hotel Fazenda Pedras Negras, em Rio Bonito, RJ, 10.1982. Arquivo da família. As fotos revelam certos detalhes, evocam momentos, fazem uma espécie de congelamento e mudo recorte do tempo. Falam muito. Calam muito. O retrato de outubro de 82 nada nos conta sobre uma história que, segundo Pedro Augusto, aconteceu no dia em que ele foi feito. Quando Carlos completou 80 anos, Dolores ficou comovida pela quantidade de homenagens que o companheiro havia recebido. Os repórteres queriam uma entrevista, uma palavra, ao menos. Fãs mandavam flores, doces, bebidas, presentes de toda ordem – a filha Maria Julieta dedicou-lhe seu livro O valor da vida, publicado nesse ano de 1982. Era a literatura em festa, em grande comemoração. 84 Fig. 47 Dolores e Carlos, na Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 05.11.1982. Arquivo da família. Na hora do almoço, a família sentada à mesa, para brindar o aniversário do dia, e uma cena que ficou marcada na memória de Pedro: Dolores se põe a chorar, dizendo que todos se lembravam do Carlos, todos procuravam por ele, queriam falar com ele e ninguém falava dela, ninguém se lembrava dela. Poderia se dizer que, nesse momento, Dolores revelou o sentimento da mulher que está sempre ao lado, girando em torno do centro, o anjo do lar, que aparece aqui e ali, sem que os outros percebam sua presença solitária. Um estar-ausente.38 38 Parece-nos que vem a propósito citar duas autoras. Simone de Beauvoir, no livro O segundo sexo afirma: “Não é permitido à mulher fazer uma obra positiva e, por conseguinte, fazer-se reconhecer como pessoa acabada. Por respeitada que seja, é subordinada, secundária, parasita. A grave maldição que pesa sobre ela está em que o sentido mesmo de sua existência não se encontra em suas mãos. Eis por que os êxitos e os malogros de sua vida conjugal têm muito mais gravidade para ela do que para o homem: este é um cidadão, um produtor, antes de ser um marido; ela é antes de tudo – e muitas vezes exclusivamente – uma esposa, seu trabalho não a arranca de sua posição; é desta, ao contrário, que ela tira ou não seu valor” (BEAUVOIR, 1990, p. 209-210). E Eliane Vasconcellos (op. cit.) assevera: “a mulher deveria saber, inteligentemente, usar a sua capacidade e seus dons, com discrição, em benefício do marido, respaldando-o nas letras e artes ou simplesmente na profissão que exercia” (p. 121). 85 Dolores deu à sua época o que esta lhe pediu. Se sua identidade só se (re)constrói a partir do sobrenome e da presença do marido, se sua existência foi completamente vinculada à do esposo, sua figura, mesmo de forma não explícita, deve ter deixado rastros na obra do poeta itabirano. É curioso observar que, ao falar da vida e obra de Drummond, os estudiosos poucas vezes citam o nome de Dolores. Vinte anos após sua morte, ela ainda continua uma presença-ausente. Fig. 48 Bilhete de Dolores para Drummond, 31.10.1979. Arquivo da família. “Carlos, meu grande amigo do coração: ouça estes formidáveis concertos para piano de Mozart e nunca se esqueça de sua companheira de todos os momentos. Um beijo de Dolores. 31.X.79.” Dolores apreciava os grandes compositores da música erudita e, como nos narra Pedro Augusto, “ela os reconhecia ao escutar suas obras na Rádio MEC”. E, conforme nos comenta Luis Mauricio, era leitora de Baudelaire (“conservei a linda edição francesa, com sua própria assinatura, de Les fleurs du mal, Payot & Cie; 10 x 7 cm, encapada em fazenda: um mimo!”). A avó dos meninos conhecia bem o peso de um nome consagrado e possuía senso de humor, como vemos no seguinte episódio. Certa vez, ao receber um amigo de seu neto Pedro, pregou-lhe uma boa brincadeira. Havia, entre os adornos da casa, a bela cabeça de um santo antigo. Sem cerimônia e com espírito brincalhão, dando umas piscadelas para o neto, a anfitriã deslumbrou seu jovem visitante, fazendo-lhe acreditar que era peça do Aleijadinho! E Dolores 86 era mesmo assim, subvertia a realidade, nas pequenas coisas. Referia-se a Jorge Luis Borges com apenas um nome: “Jorges” e, assim, a seu modo, mostrava ser também borgeana. Essa era, possivelmente, uma forma que tinha de criticar certas facetas da existência. Quando os netos eram ainda pequenos, Dolores lhes contava a história de Cafas-leão, mítico gigante que percorreu (e ainda percorre) gerações e gerações da família Drummond39, e fazia com que os garotos acreditassem que ela iria publicar nos Estados Unidos um livro sobre esse personagem, a um tempo, simpático e desastrado. As crianças levavam o caso muito a sério. E isso permanece no imaginário dos netos como uma boa lembrança. Drummond, em carta de 16 de agosto de 195640, dirige-se à companheira com estas palavras: “Dolores, onde estás, onde estás que não respondes? Escreves o teu romance e por isso não tens tempo de mandar algumas linhas para este velho companheiro?” A história ficou como uma anedota, uma brincadeira, mas, quem sabe, podia sim ter sido um desejo recôndito de Dolores. Porém, o que ela efetivamente usou para imprimir a memória de sua existência foi a máquina de costura, a agulha e a linha; e, na memória dos seus netos, a mesa posta, a decoração do lar, o seu carinho, por fim, coisas miúdas, de todo dia, que as atas da História não se interessam muito em arquivar. Como afirma Virginia Woolf (1985), no ensaio Um teto todo seu: “todos os jantares foram preparados; os pratos e os copos, lavados; as crianças, mandadas para a escola e mergulhadas no mundo. Nada resta de tudo isso. Tudo se evaporou. Nenhuma biografia ou história tem uma palavra a dizer a esse respeito” (p. 118). Voltemos a Dolores. Como nos contam seus netos, era de um natural bom humor, uma pessoa extremamente tolerante – “foi o único membro da família que jamais me censurou”, segundo Luis Mauricio. Mas também tinha caráter forte e seu lado, digamos assim, ranzinza. Na velhice, costumava repetir muitas vezes a mesma coisa. Disso bem sabem os faxineiros que certa vez limparam a fachada do prédio onde ela vivia: “Ô, moço, toma muito cuidado, não vai quebrar meu vidro!” “Não, dona, fique tranquila.” “Olha lá, toma cuidado com meu vidro, não vai quebrar, não!” Idem, idem, idem. Até que... só se viram 39 40 Vide o poema “Didática”, em Boitempo, de CDA. Anexo XII (p. 136). 87 cacos de vidro pelo chão. Dolores, é claro, não podia deixar de acrescentar: “Ah, tá vendo! Eu disse que vocês iam quebrar, eu disse!” Seus netos se lembram também de uma curiosa superstição de Dolores: toda vez que entrava em casa, tocava a carranca do São Francisco que ficava entre a porta do elevador e a da própria casa. Fig. 49 Dolores, Rio de Janeiro, circa 1980. Arquivo da família. Testemunha da experiência humana, em 1969, Dolores reuniu-se com Carlos, em frente à televisão, para ver a alunissagem de dois corajosos. Não bastassem as aventuras terrestres, agora o homem buscava a lua. O ambiente do lado de cá era de grande expectativa, com aquela transmissão ao vivo para o mundo inteiro! 88 Fig. 50 Bilhete com autocaricatura de Carlos para Dolores, Natal de 1969. Arquivo da família. Fig. 51 Bilhete de Dolores para Carlos, 31.10.1972. Arquivo da família. 89 Mais de uma década depois, com seus netos, no seu apartamento da Rua Conselheiro Lafaiete, Dolores assiste à primeira aterrisagem do ônibus espacial. No momento crucial, o telefone começa a tocar; ela atende e, sem prestar muita atenção ao interlocutor, lhe diz: “Ô, moço, não vê que estamos assistindo ao homem espacial!!!”, encerrando assim, sem mais, a chamada inconveniente. Outro episódio engraçado de sua velhice pinta de corpo e alma seu precavido espírito mineiro. Dolores, de formação católica, não foi praticante, na idade adulta. No entanto, conservou alguns vestígios dessa educação. Certa vez, quando soube da morte de um dos seus irmãos, pediu uma missa por sua alma, à qual assistiu com Maria Julieta. Quando o padre cita o nome do irmão falecido, também menciona o nome de outro irmão de Dolores, sumido do convívio familiar, há muitos anos. Maria Julieta, atônita, pergunta à mãe: “ué, ele também morreu?”, ao que Dolores responde: “Não, não sabemos, mas pelas dúvidas...” 90 Dolor. Sentimiento de pena y congoja. (Diccionario de la Real Academia Española) Fig. 52 Maria Julieta e Dolores (atrás, o retrato de Carlos, feito por Portinari), Buenos Aires, 1979. Arquivo da família. Não há como deixar de frisar, uma vez mais, os rastros deixados por Carlos nos documentos que nos levam a Dolores. Na foto acima, vemos o pai, a mãe e a filha. A figura paterna aparece em destaque, no alto, como se estivesse ali para proteger a família, desde um lugar privilegiado, desde um espaço reservado só para si. No fim da década de 70, quando a filha Maria Julieta começa a luta contra o câncer, Dolores, incansável, como sempre, apronta as malas e, sozinha, toma o avião para Buenos Aires. Mesmo com idade já avançada, ainda podia oferecer sua companhia e seus préstimos. Antes de Carlos também viajar à Argentina, ela o mantém informado, por meio de cartas. Escreve sobre o estado de ânimo de “Bruxinha” – apelido que os pais deram à filha – acompanhando a doente, passo a passo. Em carta de 26 de junho de 91 1979, Dolores descreve uma cena impactante, onde o corpo da filha aparece nu e mutilado, diante dos olhos da mãe: “Sexta-feira, foi um dia horrível para mim. Eu ainda não tinha visto a cicatriz: ela achava que me deveria mostrar mais tarde, bem mais tarde. De repente, depois do banho, ela me chamou e, abrindo a toalha, me disse: ‘Olha, olha bem!’ Nem sei como aguentei. Tudo estava O.K., muito melhor do que eu esperava. Mas, quando vi o peito mutilado, o mundo desabou sobre mim. Nunca passei por um momento assim. Mas reagi instantaneamente. ‘Que tal, mãe? Que tal, mãe?’ ‘Ótimo?’ A voz custou a vir, mas disse logo: ‘ótimo!’ ‘assim é que eu gosto de uma mãe durona como V.’ ‘Que dor, meu Deus! Que desgraça!’”41 Em 1981, a saúde de Dolores já estava bastante debilitada. Após ter passado por uma cirurgia de nódulo frio, não conseguia ir à rua; não comandava as pernas endurecidas e sentia algumas vertigens. E janeiro de 1982 chegou com uma novidade nada agradável para ela: tendo a circulação arterial afetada, andava com muita dificuldade. A compra de uma bengala foi inevitável. Fig. 53 Dolores e Plínio Doyle, o terceiro da esquerda para a direita, Rio de Janeiro, 05.11.1982. Arquivo da família. 41 Anexo XIII (p. 147). 92 No ano de 1983, Maria Julieta despede-se de Buenos Aires e de seu trabalho no Centro de Estudos Brasileiros, instalando-se, definitivamente, no Rio de Janeiro. Com a saúde um pouco frágil, devido ao tratamento a que se submetera, a filha acompanha a rotina dos pais. Chega a comentar com um dos filhos sobre alguns pequenos deslizes na memória de Dolores, que, às vezes, se confundia com a própria mãe, dona Sinhá. Fig. 54 Dolores, Maria Julieta e Carlos, Rio de Janeiro, 1984. Arquivo da família. 93 Como se não bastassem o peso da idade e seus problemas, a vida ainda reservava um duro golpe a Dolores: a perda de sua única filha. No dia 5 de agosto de 1987, no Rio de Janeiro, falece Maria Julieta. Fig. 55 Pedro Augusto, Dolores e Carlos, Rio de Janeiro, 5.08.1987, enterro de Maria Julieta.42 Doze dias depois, estava Dolores, novamente, no Cemitério São João Batista. Perdera a filha, e agora o marido. Sobreviveu aos dois. (A propósito, Luis Mauricio relembra o humor do avô, que costumava dizer: “A velhinha ainda me enterra!”). Dolores foi uma sobrevivente, em todos os sentidos que se pode dar a essa palavra. 42 Disponível em: http://fotos.noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2012/08/16/carlosdrummond-e-tido-como-um-dos-maiores-poetas-do-seculo-20.htm#fotoNav=5. Acesso: 25.06.2014. 94 A companheira A companheira da vida inteira, que a meu lado une o passado ao novo dia em harmonia, a sempre forte e meu suporte quando vacilo, porte tranquilo, voz de carinho no meu caminho, leal, paciente constantemente, simples, discreta força do poeta, quero-a no instante final – constante com sua mão acarinhando em gesto brando meu coração. Carlos Drummond de Andrade 95 Após a morte do marido, a casa da família já não era tão procurada. Como relata João, o porteiro do prédio onde Dolores viveu, era curioso ver como as pessoas só chamavam pelo “senhor Carlos”. “A dona Dolores, quase ninguém procurava, não.” Fig. 56 Dolores e Carlos (de barba, devido a um herpes). Acervo de Carlos Drummond de Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 09.1980. 96 ALHEAMENTO E tudo se torna esquecimento. Apagam-se, pouco a pouco, as formas, na engrenagem do tempo Fig. 57 Relógio de Dolores. Arquivo da família. 97 Os cheiros jamais se repetem, nem palavras... vozes... sons de passos pela casa Fig. 58 Aniversário de Dolores, Rio de Janeiro, 19 de abril de 198? Arquivo da família. A face encara, mil vezes, o espelho. “Quem é aquela a me perseguir?” 98 Mas que agulhas hão de coser, se já os fios se perderam? Fig. 59 Adorno para mesa, feito por Dolores. Arquivo da família. Um vento sopra ligeiro, levando, minando tuas feições. Dedos rabiscam no ar. É assim que teces, agora, tua mais fina obra. E já não podes falar de ti. Teus documentos gastos estão, exaustos de apresentação. 99 Leveza imperiosa. Primavera, outono, verão! O que vêm a ser, senão a notícia envelhecida de que coisas acontecem, indiferentes que são a teu alheamento... E, na doce concha dos sonhos, nem ser, nem estar. Nada a pesar nos ombros. Dormes o sono dos gatos, em profunda amizade com os raios que pingam do sol. AASS 100 “Muitos anos depois daquele 1984, voltei a ver Dolores, quando subi ao apartamento 701 da Conselheiro Lafaiete, ao encontro de Pedro. Levou-me ao quarto em que vivia a avó, aos cuidados de uma enfermeira. “Vovó, quem está aqui é um amigo do Carlos, o Edmílson, que veio visitá-la...” Ela não disse palavra, alheia a tudo e a todos, sequestrada de si mesma pelo mal que lança o doente no abismo da solidão e do nada. Preferia não tê-la visto assim, e guardar-lhe a memória da mulher pequenina, discreta e reservada, sem a qual Drummond não teria sido quem foi.”43 “Depois ela foi ficando mais e mais “em órbita”, até o momento em que não reconhecia ninguém; e foi triste porque terminou numa cama e, nos últimos meses, sendo alimentada por uma sonda pelo nariz. Uma condição de vida muito precária, ao ponto que, de vez em quando, ela caía e ligavam as enfermeiras, acompanhantes ou quem quer que estivesse lá; e nós a levávamos para a clínica; davam uns pontos na cabeça dela e aí o médico nos dizia: ‘não vamos interná-la, porque, senão, ela vai viver mais nesse estado e, claro, não queremos isso...’ De fato, quando ela morreu, foi um alívio, sobretudo para ela. Certamente, mais para ela do que para nós. O Edmílson te disse bem. Ela estava condenada ao nada.”44 43 44 Entrevista com Edmílson Caminha (p. 127-129). Entrevista com Luis Mauricio Graña Drummond (p. 116-126). 101 Fig. 60 Certidão de óbito de Dolores. Arquivo da família. 102 “Quando vim, fiz um sortimento muito grande. Sempre precavida como a formiga da fábula...”45 Fig. 61 Dolores, por Pedro Augusto Graña Drummond, Rio de Janeiro, 1981. Arquivo da família. 45 Anexo XIV. Carta de 20 de agosto de 1956 (p. 137). 103 CONSIDERAÇÕES FINAIS Qualquer um que tenha vivido uma vida, e deixado um registro dessa vida, não merece uma biografia?... Virginia Woolf Através de fotos, documentos, cartas e depoimentos de pessoas que a conheceram, tentamos aqui traçar um perfil de Dolores Morais Drummond de Andrade. Esta mineira, que praticamente nasceu com o século XX, o percorreu em sua quase totalidade: da província à cidade grande, Dolores acompanhou, de ponta a ponta, a evolução de um Brasil mormente rural ao país urbano dos nossos tempos. Ou seja, chegou a viver dias próximos aos da abolição da escravatura, anteriores aos do início da aviação, em que tempestades ainda aterrorizavam crianças, assim como os da liberação feminina, da aeronavegação comercial, da corrida espacial e até os do computador pessoal e a internet. Não seria exagerado afirmar que foi uma mulher ousada, já que, nos anos 20, época em que o trabalho feminino era praticamente restrito ao lar, ela chegou a ser enfermeira e secretária em fábrica. Educada sob os rígidos cânones finisseculares, como as mulheres de sua geração, foi basicamente preparada para o casamento e os afazeres domésticos e, a seu modo, ocupou o papel (secundário) que a elas cabia no matrimônio. O seu, com Carlos Drummond de Andrade, durou 62 anos. Dando o indispensável suporte cotidiano ao companheiro, silenciosamente, testemunhou o processo de criação literária do poeta e, também, mesmo que tangencialmente, a própria evolução de boa parte da literatura brasileira do século passado. Dolores foi aquela que, anos a fio, preparou os bastidores e o cenário que levaram seu marido ao reconhecimento do público. Seu projeto exclusivo de vida, como o de muitíssimas mulheres daqueles tempos, foi viver para a família e dedicar-lhe seu tempo integral. Firme em suas convicções e de temperamento quase estóico, além de entender as necessidades de Carlos, como homem de escritório que era, como figura pública, assediada constantemente, teve que suportar as suas infidelidades. Seria difícil imaginar 104 tal situação se invertêssemos os papéis. Nunca se ouviu dizer que Cecília Meireles, Clarice Lispector ou Cora Coralina, apenas a título de exemplo, houvessem tido relações extraconjugais. Isso era inimaginável e inaceitável pelo pensamento corrente na época. A infidelidade conjugal masculina era uma prática comum e até aceita na sociedade, reafirmava a hombridade e praticamente conferia ao marido o ar de boêmio e galanteador. Observamos, nesta dissertação, que os rastros da vida de Dolores estão dispostos de forma esparsa em fotografias, cartas, bilhetes e lembranças. E só pelas coisas pequenas o leitor terá acesso a essa personagem. Tal é o espólio deixado por ela, além de algum dinheiro guardado em fronhas, já sem valor corrente. A economia do lar, tão cara ao doutrinamento das mulheres, se resumiu em uma moeda que não paga nada, que não é aceita no mercado; mas a impressão digital de quem a guardou ficou gravada nela, como a marca das mãos do oleiro, em um jarro de cerâmica. Neste trabalho, não pontuamos nenhum grande evento, não revelamos nenhum segredo escandaloso, tal como apetece aos curiosos. A vida de Dolores foi absolutamente comum, de hábitos frugais e de uma rotina muito bem disciplinada. É claramente por isso que crítico algum dedicou-lhe um pouco de atenção, nem sequer para obter informações sobre Carlos. Em julho de 2014, completaram-se 20 anos de sua morte, mas, até o momento, esse fato não despertou a curiosidade de ninguém. Sua pequena “herança” aguarda por “herdeiros” que aceitem recebê-la. Como afirma Hugo Achugar (2004), em Planetas sin boca: Suele ocurrir, sin embargo, que hay herencias que se rechazan, que hay legados que despojan, que hay tradiciones que se cambian, que, en lugar de memorias, hay olvido. Entre otras cosas, por la sencilla razón de que el testamento supone la existencia de un sujeto – individual o colectivo – que lo enuncie y también, la existencia de un heredero – individual o colectivo – que acepte ser interpelado por el mencionado testamento (p. 30). Esta pesquisa quis mostrar-se também como um gesto. Desejamos que seu valor esteja no flash-back, no sentido de trazer perguntas e possíveis respostas sobre o passado, e no flash-forward, para usar uma expressão criada por Silviano Santiago (2006), apontando uma proposta para o futuro, a fim de 105 que se questione, de forma mais profunda, as culturas hegemônicas que ainda têm se mostrado resistentes a certos temas sensíveis, patentes na contemporaneidade. Não há centro sem margens, não há margens sem centro; ambos se cruzam, dialogam e, sobretudo, se digladiam. Ora, em termos das mencionadas culturas hegemônicas junto às minorias que elas determinam (e condenam), o trabalho aqui realizado talvez ajude a mostrar como ainda é difícil pensar o outro, este outro que é explicitamente negado, por meio da obliteração, da indiferença, da violência. Como falar de alteridade em um país que, em 1500, abrigava quatro milhões de índios, dos quais restam, hoje, aproximadamente 900 mil, vivendo no abandono, em condições paupérrimas, à mercê de uma política que fecha os olhos para tal realidade? Em que termos podemos pensar as relações de gênero, se ocupamos o sétimo lugar entre países com elevado número de vítimas de violência doméstica, sendo que, só na década passada, 45 mil mulheres foram assassinadas? Confiando ou não nas estatísticas, sabemos que esses números passeiam, sim, em nossa realidade e devem ser somados a outras cenas de violência que não constam nos dados oficiais. Nos meios de comunicação, todos os dias, nos deparamos com notícias sobre ataques homofóbicos e discursos que ferem a dignidade humana. E apesar dos esforços em nome da democracia, a globalização chegou apenas para alguns, melhor dizendo, para aqueles que têm poder aquisitivo para sustentá-la. Pregase muito que vivemos em um mundo sem fronteiras, quando ainda nos vemos diante delas, a todo o momento. E o que está em jogo, diante dessas fronteiras, é a vida, a vida do cidadão comum, que não pode se proteger por trás de altos muros com cercas elétricas, a vida dos discretos, dos anônimos que habitam a periferia da periferia. O “arquivo” desta parte periférica do mundo onde vivemos é perpassado por todas essas questões. Mas, sendo ele um campo de luta política, diversas forças atuam para construí-lo, escamoteá-lo, camuflá-lo. Como afirmaria Derrida (2001): “O arquivamento tanto produz quanto registra o evento” (p. 29). Falar de Dolores, por meio de rastros ligeiros deixados por ela, por meio do apagamento de sua voz, nos fez chegar aos temas expostos acima. Sua própria vida nos foi “narrada” por outro. Inicialmente, foi Carlos quem apontou o 106 caminho que nos conduziu à imagem que ele quis deixar de sua companheira. De acordo Leonor Arfuch (2009), pesquisadora argentina: O arquivo demonstra, admiravelmente, que o ‘direito de propriedade’ sobre a vida – como Sylvia Molloy argumentou recentemente em uma conferência em São Paulo – é relativo; que outros sempre terão sobre ela o direito, de palavra ou do olhar, do arquivamento ou da ficcionalização. Demonstra também que uma biografia, não somente a dos notáveis, oscila sempre num umbral difuso entre público e privado; entre o encobrimento, no sentido freudiano, e a revelação, tal como é perceptível no registro mais simples da conversação cotidiana (p. 378). As ideias de Arfuch e Molloy nos remetem ao conceito de “biopoder”, o poder sobre a vida, o controle da vida. Se os “subalternos” não falam, outros falam por eles. Agendas repletas de temas políticos são compostas, esforçam-se para trazer à baila o silêncio do outro, para quebrá-lo. Mas há que se perguntar o motivo desse silêncio; para quem os subalternos falariam?, quem os ouviria? Alguma instituição arquivaria suas vozes? É possível falar, alçar a voz, desde as margens? Reconhecemos que também nós estamos falando por alguém que não respondeu por si e, assim sendo, devemos ter incorrido em algum deslize. Podemos dizer que a nossa protagonista, de alguma maneira, atuou no processo de formação da história da literatura brasileira e quase diretamente na própria criação literária de um dos maiores escritores do século XX. Mas como saber sua opinião, seus sentimentos em relação a isso? Restam-nos algumas especulações, conjecturas apenas. Possivelmente, ainda seja necessário buscar por Dolores em outros cantos; Talvez, o que logramos aqui foi trazer apenas uma sombra dessa mulher. Como afirmou Borges, diante de um cemitério: Aquí bajo los epitafios y las cruces no hay casi nada. Aquí no estaré yo. Estarán mi pelo y mis uñas, que no sabrán que lo demás ha muerto, y seguirán creciendo y serán polvo. Aquí no estaré yo, que seré parte del olvido que es la tenue sustancia de que está hecho el universo (2007, p. 537). Todo ensaio biográfico tenta alcançar “o outro”, este ser que sempre nos escapa por entre as linhas. Mesmo se tivéssemos pesquisado além do que 107 estivemos em condições de investigar, teríamos conseguido alcançar Dolores? E quem estaria em condição de fazê-lo? Ela não continuaria sendo “parte do esquecimento que é a tênue substância de que está feito o universo”? De qualquer modo, esperamos, ao menos, que este trabalho e as dúvidas que ele despertou possam abrir algum caminho para estudos vindouros que deem conta de analisar as diversidades culturais presentes nos arquivos, bem como as relações travadas entre os corpos que os habitam. Ao longo dos meses desta pesquisa, a vida de Dolores, uma mulher comum, forte e sensível a um tempo, nos resultou sempre instigante. 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Eu acho que essa colcha que tem figuras hexagonais, se você observar, não tem duas repetidas. Outra coisa que eu lembro daquelas viagens é que nós tínhamos medo, porque ela roncava muito. Eu me lembro de outra coisa, já muito depois, pouco antes da morte dela, eu me intoxiquei, aqui no Rio de Janeiro, isso deve ter sido lá pra 85, 86, num verão que eu vim aqui, e eu passei muito mal, vomitei pela rua e cheguei lá, na casa deles, vomitando aos gritos, no banheiro; aí veio o Carlos Manuel e me disse: “¡boludo, los vas a despertar!” E eu disse: “¡¡¡Me estoy muriendo!!!”. O fato é que “a vovó acordou, me deitou e me cuidou. No dia seguinte, ela fez pra mim sopa de arroz batida no liquidificador e em 24 horas eu fiquei bom. Ela cuidou de mim, acho que diria, melhor do que uma mãe. Lembro-me, por exemplo, no período hippie, aquele drama, 1970, 69 e tal, e ela dizia assim “isso é uma bobagem, coisa de adolescente, coisa de jovem, é uma bobagem...” Ela tinha uma atitude muito mais liberal. Era muito compreensiva. Eu nunca briguei com ela, acho. Nenhum de nós três. Talvez, no fim, quando ela já estava meio em “órbita”, houve alguma desavença, assim, mas, quando ela estava lúcida... Bom, com mamãe havia alguma briga, de vez em quando, mas com netos, nunca. E ela nos mimava, dava presentes, fazia bolo. Pra mim, tinha doce de banana, doce de abóbora e, de noite, tinha pra gente aquela sopa de feijão com macarrão, que era ótima, e meio-dia, eu 116 me lembro que a gente chegava pregado da praia, almoçava e, lá pelas duas, se não me engano, saía O Globo, naquela época, era vespertino. E ela nos pedia pra gente ir, não precisava nem atravessar a rua, já estava na Conselheiro Lafaiete, pra comprar jornal. E nós estávamos exaustos de praia e tudo, e dizíamos que não. Aí, ela dizia: “Tudo bem, eu vou, mas se depois vocês souberem de uma velhinha que apareceu morta aí na rua...” Aí, a gente dizia: “Tá bom, vó, a gente vai”. Ela fazia sempre essa chantagem. E aí ela pegava o jornal e fazia as palavras-cruzadas dela. Era uma coisa de que ela gostava e era boa nisso, muito boa. Outra coisa que ela fazia era assistir novelas, de noite. Aí, o Carlos acompanhava, mas ele, assim, dava um pulo, de um minuto, voltava pro escritório. Com isso, ele sabia, mais ou menos, o que estava acontecendo. Já nos últimos anos, ele passou a ser mais carinhoso com ela. Ele a cobria com cobertor, quando ela adormecia assistindo a novela. É... não se via muito carinho entre eles... eu não me lembro muito. AASS: Mas, pelas cartas... LMGD: Pode ser, mas Carlos era pouco efusivo, e, sei lá, eu me lembro, por exemplo, de uma história de Dolores, parando um táxi, sendo que, aparentemente, alguém havia dado o sinal antes, e o Carlos: “Que isso, Dolores, que isso Dolores!” Tinha essas coisas. E, na recíproca, tampouco havia muito. Eu me lembro que, quando o Carlos morreu, no escritório dele, minutos depois de ele morrer, ela disse: “Que homem extraordinário!” Acho que foi a única vez que eu escutei um elogio. E ela velou o corpo dele toda a noite. Pedro e eu não aguentamos e fomos dormir no carro. AASS: “Ela ficou sozinha?” LMGD: Tinha um bêbado uruguaio, que dizia: “¡Drummond, te nos fuiste!” e segurava a mão do cadáver e dizia poemas e queria puxar o caixão. Nós não deixamos. Nem conhecíamos ele. Depois, chegou um pessoal aí, com a bandeira do Vasco, pra colocar. Não deixamos. E também com a bandeira da 117 Mangueira. É, o Carlos gostava do Vasco e também da Mangueira, porque ele ganhou com a Mangueira, mas não era pra colocar o... AASS: E ela contava histórias também... LMGD: Ela, de noite, nos contava as mesmas histórias que vinham da família do Carlos, do “Cafas Leão”.46 Ela e ele nos contavam. E eram tão gostosas as dela quanto as dele. E, no entanto, as poucas de que me lembro são as que o Carlos contava. Mas ela contava histórias, com o mesmo espírito, do gigante surrealista, meio atrapalhado, meio porco, e nos fazia acreditar que ela ia publicar um livro sobre Cafas Leão, nos Estados Unidos. Nós éramos crianças e acreditávamos. AASS: E ela ia mais a Buenos Aires do que o Carlos, não é? LMGD: O Carlos deve ter ido 5 vezes e ela talvez 20, não sei. Ia pro meu aniversário, ficava um mês. AASS: Pelas cartas, me parece que ela já chegou a ficar 3 meses lá. LMGD: Não acredito que Carlos ficasse três meses sem ela, não. Não, isso não acredito. LMGD: O que eu me lembro é que o Pedro levou lá [na casa de Dolores e Carlos] um amigo, esse Andrés, que esteve aqui, que mora na Suíça, que é músico; e aí ele viu uma cabeça de santo que tem lá na casa do Pedro, que era dela, e ela o fez acreditar, possivelmente brincando com o Pedro, que sabia da história, que era uma peça do Aleijadinho. E o cara ficou fascinado, porque, mesmo sendo muito jovem e da Argentina, ele sabia quem era o Aleijadinho. Dolores, convincentemente, enganou ele. Eu acho que ela deve ter dado umas piscadas de olho pro Pedro. 46 Refere-se ao gigante do poema “Didática”, de CDA. 118 AASS: Você via Dolores lendo? LMGD: Olha, talvez, um pouco. O jornal, certamente. Palavras-cruzadas, certamente. Eu tenho o livro dela Les fleurs du mal, numa edição pequenininha, muito bonita, assinado por ela. Eu acho que ela sabia francês. E ela lia os livros do Carlos, certamente. Sim, eu não sei o que ela lia. Pena que mamãe não está aqui. Também não sei que ideias políticas ela tinha. Não sei. Eu não diria que seria de esquerda, mas o que o Edmílson Caminha diz é verdade. Ela devia ter em mente ideias de justiça, de justiça social e tudo, apesar de que ela vinha de uma geração que estava muito próxima da Lei Áurea, de 88, de maneira que uns vestígios devem ter ficado, sobre negros e brancos, aquela coisa toda. Mas era uma pessoa com sentido de justiça. Isso, sim. O que não sei é se ela seguia o Carlos. O Carlos, por exemplo, teve um período de esquerda e tal, acompanhou o comunismo. Não sei se Dolores... Não sei se ela era um ser politizado. No fundo, mamãe também não era muito, nem papai que foi até deputado e tudo. A política não era uma coisa essencial, não fazia parte, digamos, da conversa na mesa, com as crianças, pelo menos. AASS: E a relação entre mãe e filha? LMGD: Havia certa tensão. Carlos e mamãe tinham um mundo à parte, que era um mundo literário, coisa deles dois. Dolores aí não entrava muito. Mas o que você pergunta ao Edmílson [Caminha] sobre a participação dela na obra do Carlos certamente não era só de caráter prático a importância. Em primeiro lugar, já que falamos de caráter prático, ela era a única que podia entrar no escritório do Carlos, quando ele estava escrevendo crônicas, de manhã. Isso era três vezes, por semana [na época do JB]. Ela entrava com um café, uma laranjada, um pedaço de queijo, alguma coisa, para entregar a ele. Ou seja, ela era uma esposa que se ocupava do marido... Ele, um dia, me disse que não sabia fazer um café. Ela se ocupou da casa. Eu acredito que, na questão dos móveis e tudo mais, era ela quem decidia: se colocava, onde, inclusive os quadros, é possível que fosse ela. O Carlos gostava dos quadros que Portinari tinha dado a ele e tal, mas eu acho que a questão estética possivelmente 119 ficasse por conta dela. Talvez, o Carlos comprasse, ela tivesse dito “compra esse sofá, ou isso ou aquilo”, mas eu tenho a impressão de que -como era o caso da mamãe, em casa- era ela quem ordenava. O Carlos não era um sujeito prático. Agora, ele, no escritório dele, sim, ele tinha uma foto da Cecília Meireles, do pai dele, a chave, isso deve ter sido ele que colocou. Ela se ocupava da casa, das empregadas e de toda a parte prática que o Carlos não tinha a menor ideia. AASS: Ela dava o suporte a ele... LMGD: Sim, mas o que eu estava para te dizer é que havia muito mais do que isso. Ela foi a mulher dele por tantos anos e, mesmo ele tendo sido infiel como parece que foi, ele nunca se separou e eles chegaram a viver tempos em que as pessoas já se separavam, de maneira que podia ter passado pela cabeça dele ou dela. De fato, meus pais se separaram, mas eu acho que o Carlos escolheu ela pra mulher dele e porque era a mulher adequada pra ele e acho que ele não teria se encontrado bem sem ela. E se ele gostava de outra ou de outras, não teriam sido certamente para viver com ele. E, ao parecer, ela terminou aceitando as coisas como elas foram. Eu não sei muito bem se é verdade, mas eu tenho em mente que alguém me disse duas coisas: uma, que, em algum momento de briga, pelas raparigas e tal, ela teria quebrado o braço dele com um vaso que lhe jogou em cima. E outra é que ela teria dito a ele: “tudo bem, mas não te dou mais nenhum filho.” AASS: E aquelas lembranças que ela tinha de Mar de Espanha, da infância dela? LMGD: Não sei bem de que família era, socialmente. Acho que menos que a família do Carlos. Mamãe ia passar férias com qual família? AASS: Com a família de Dolores 120 LMGD: Ah, é? Ela [Dolores] nos contava que, em dias de chuva forte, as crianças ficavam com medo e se ajoelhavam no chão, de mãos dadas, e ficavam assim, como aqueles, que avançam e recuam o corpo, no muro das lamentações: “São Jerônimo, Santa Bárbara, São Jerônimo, Santa Bárbara, São Jerônimo, Santa Bárbara”. E eu sei essa história de que ela teria sido uma das primeiras mulheres a trabalhar, senão a primeira a trabalhar fora de casa. Ela foi enfermeira, durante a primeira Guerra Mundial, ou trabalhou numa fábrica de sapatos. Isso eu não sei direito. AASS: E a questão da idade dela... LMGD: Bom, há documentos dela, com várias idades, todas menores ou iguais do que a do Carlos, porque, na época, não pegava bem que a mulher se casasse com um homem mais novo. Mas parece que, uma vez, lá nos anos 80, o Carlos conta numa carta - a gente pode procurá-la -, ele conta,dizia, que a acompanhou ao médico; a coisa era séria e o Carlos conta algo assim como que “essa mulher, que, durante tantos anos, guardou esse segredo, com toda a dignidade, disse pro médico, firme, a verdadeira idade dela”. A conclusão, segundo a mamãe - e eu acredito nela - é que ela é de 1900. AASS: E aquele caso engraçado que você me contou sobre a vidraça? LMGD: Bom, ela abria a casa, lá para as 5:30 da manhã; já começava a colocar o feijão de molho e acho que, às 7, a casa já estava fechada, de novo. Certo dia, cedo, uns operários estavam fazendo a limpeza do prédio, do lado de fora. Estavam pendurados nos andaimes, ela apareceu e disse: “ô, moço, toma muito cuidado, não vai quebrar meu vidro!” E eles: “não, dona, fique tranquila.” E, depois, ela atacou, de novo: “toma cuidado com meu vidro, não vai quebrar, não!”. Tantas vezes ela fez isso que, afinal, os caras se atrapalharam e acabaram quebrando a vidraça dela. E ela disse: “Ah, tá vendo! Eu disse que vocês iam quebrar, eu disse!”. 121 Lembro-me da primeira vez que o ônibus espacial aterrissou – antes os americanos amerissavam, com paraquedas; e os russos, também com paraquedas, caiam na Sibéria. Nunca tinha havido uma nave espacial que pousasse como um avião. Era o primeiro pouso e seria televisionado para o mundo todo. Estávamos todos assistindo, Pedro, ela (já bem velhinha) e eu; aí o telefone toca e ela diz: “ô, moço, não vê que estamos assistindo ao homem espacial!” E desligou o telefone na cara do sujeito. Uma história que eu me lembro da minha infância é a seguinte. Eu devia ter uns quatro anos, lá na calle Arroyo, desci e encontrei na calçada um envelope, com um monte de dinheiro, acho que eram 400 pesos, que devia ser muito dinheiro, nos anos 50 e poucos, 57 por aí. Aí, subi e me disseram que era da vovó. Pode ter sido, porque era muito dinheiro e eu não tinha condição de mexer com essa quantidade, ou porque, de fato, era dela, coisa de provinciana que guardava dinheiro num envelope... pode ter sido dela. Ela escondia dinheiro e parece que, depois de morta, foram encontradas denominações que já não tinham mais valor. E o Carlos a chamava de Dolares, porque ela comprava dólares. Mas essa coisa de esconder dinheiro, como algo compulsivo, assim, deve ter sido já da velhice avançada, porque ela já, segundo a mamãe, nos últimos tempos da vida da mamãe, ou seja, já com 86, 87, às vezes Dolores já achava que era a própria mãe dela. Eu discutia com a mamãe e dizia que eu via a Dolores completamente lúcida, mas é possível que ela tivesse umas escorregadas, sim. Bom, depois ela foi ficando mais e mais ”em órbita”, até o momento em que não reconhecia ninguém. E foi triste porque terminou numa cama e, nos últimos meses, sendo alimentada com uma sonda pelo nariz. Uma condição de vida muito precária, ao ponto que, de vez em quando, ela caía e ligavam as enfermeiras, acompanhantes ou quem quer que estivesse lá; e nós a levávamos para a clínica; davam uns pontos na cabeça dela e aí o médico nos dizia: “não vamos interná-la, porque, se não, ela vai viver mais nesse estado e, claro, não queremos isso...” De fato, quando ela morreu, foi um alívio, sobretudo para ela.Certamente, mais para ela do que para nós. O Edmílson te disse bem. Ela estava condenada ao nada. AASS: Com Manolo, ela se dava muito bem... 122 LMGD: Ela gostava muito do papai e ele gostava muito dela; havia uma simpatia recíproca, um carinho. E o papai, depois de separado da mamãe, quando as coisas se acertaram – havia já passado a raiva que, num primeiro momento, Dolores teve –, quando vinha ao Brasil, eles mandavam um telegrama pra ele, dizendo “fique conosco”. E é bem possível que, como nos tempos do casamento, eles cedessem até o quarto pro papai. Eu não tenho dúvida. AASS: Dolores gostava de tomar uísque, não é? LMGD: Esses foram hábitos que papai incorporou na família Drummond. Ele incorporou o uísque, a cervejinha, o vinho e certas culinárias, “los fiambres”, essas coisas que o papai gostava (e ainda gosta). Porque, digamos, eles eram moderados. Era uma comida saudável, mas sem muito brilho. E o papai incorporou alguns pequenos prazeres desse tipo, que foram (bem) aceitos. Eu cheguei a ver até o Carlos alto de álcool, no último ano novo que passamos juntos, se não me engano, de 86 pra 87. Ele deve ter começado com a cerveja, talvez tenha havido um vinho na mesa. Não, talvez uísque e uma cerveja, no jantar, e um champanhe e ele ficou meio bêbado. A gente saiu. Fomos à praia. E eu ia atrás dele, intuindo que ele ia cair, e todo mundo viu que ele estava bêbado, ao ponto que ele atravessou, meia noite e meia, devia ser, atravessou a Rainha Elizabeth, passando a Bulhões de Carvalho, atravessou ela correndo, no meio de um trânsito infernal e caiu na rua. Mamãe deu um grito, ficou desesperada, mas ele se levantou, continuou correndo e nada aconteceu. E os automóveis passavam a 80, 100 por hora. Mamãe ficou tão aborrecida que, quando voltamos da praia, chateada, ela foi embora com o Otávio [Alvarenga]. Aí, o Carlos, lá pelas 3 da manhã, estando eu na copa, chegou e me disse: “sei que eu estava um pouco alto, mas tudo estava sob controle”. Na verdade, não creio que estivesse tão sob controle... Ele estava andando, assim, vacilante, meio claudicante. Eu estava atrás dele, sentindo que ele ia cair a qualquer momento. 123 Quando Dolores morreu, uma senhora negra, dona Maria, que trabalhava no quinto andar e ia lá em casa – era amiga das empregadas, conversava comigo, com Dolores –, quando Dolores morreu, dizia, a dona Maria chegou para aquele quadro do Portinari, o retrato bonito de um negro, olhou pro Pedro e pra mim e disse: “Agora, que sua avó morreu, eu queria tanto ficar com esse negro aqui. Ele é tão bonito!” Tem um retrato da Dolores, feito por Ismailovitch. Você podia usá-lo. Ele fez um quadro do Carlos, que talvez esteja com a Lygia47 ou com uma irmã da Lygia, agora que ela morreu, e um da Dolores. Muito bonito. Você pode usar ele. É raro. Ninguém conhece. AASS: Você acha o meu trabalho pertinente? LMGD: Não vi teu trabalho. Eu acho que a ideia é boa. A ideia é um pouco audaciosa, mas está bem. Me chama a atenção que pra um curso de Letras... Mas está bom. Por que não? Por que tem que ser o escritor, sempre, né? AASS: Ele não se faz sozinho, não é? LMGD: Não. Ela deu o suporte prático, para que tudo acontecesse. E, além do mais, o carinho, a filha, e o filho, que morreu prematuramente, o que viveu meia hora, né? A vida inteira. Apesar das coisas, foi um casal bem constituído, um típico casal da época, de classe média. Havia essas desavenças, essas coisas que, hoje em dia, não seriam toleradas por uma mulher, nem por um marido, enfim, mas era assim mesmo o tempo deles. Foi assim. Nunca se separaram, nem creio que tenham cogitado sequer essa ideia e, de fato, quando papai e mamãe se separaram, pra vovó deve ter sido uma coisa chocante, porque ela, num primeiro momento, passou a não falar mais com o papai. Inclusive, eles se cruzaram, na Avenida Santa Fe, um dia aí qualquer, e ela fingiu estar olhando pra outro lado. Mas isso, por sorte, rapidamente se recompôs, sobretudo porque a relação entre papai e mamãe foi muito 47 Mulher com quem o Carlos se relacionou por mais de 30 anos. 124 amistosa, depois. Eles até viajavam, iam pra Europa e tal, de maneira que o Carlos e a vovó48 viram que o papai continuava sendo o bom pai de sempre e que mamãe e papai se precisavam, para terminar de criar os filhos, e ficaram amigos. De fato, mamãe, no leito de morte, sempre dizia que o homem bom que ela tinha conhecido era o papai. AASS: Dolores, antes de se casar, era uma mulher independente já, não? LMGD: Não sei se independente. Eu sei que ela teria trabalhado, fora de casa. É possível. É possível que tivesse uma vida não muito usual pra uma moça da época, de 20 anos, naquele tempo. Carlos a conheceu no ano 20 e se casaram em 25. E ela já trabalhava, etc. E o Carlos nem sequer era independente. Dependia do pai. Possivelmente, ele tenha pedido para ela parar de trabalhar, essas coisas próprias da época. Eu acho que ela era uma pessoa com inquietações. AASS: Era religiosa? LMGD: Eu acho que ninguém mais era religioso. Todos eles tiveram religião na sua infância e depois, digamos, vestigialmente, talvez, como os brasileiros, de uma maneira um pouco supersticiosa. Não sei. Ela gostava de santos barrocos. Mais por estética, porque eram bonitos. A casa dela tinha objetos bonitos. Mesas antigas, esses santos. Uma virgem catalogada. Era uma pessoa também que se dedicava muito a questões de culinária. Pra nós, fazia bolos, doces e tal. Ela, entre outras coisas, foi dona de casa. Fazia roupas para netos e pro marido. E pro marido, até as cuecas. Ela fazia na Singer dela. Era legal, quando ela abria a mala e apareciam os presentes. Quando chegávamos aqui, em dezembro, tinha o presente de chegada e o presente de natal. Eles levavam uma vida simples, horário para almoço e jantar. Uma comida simples, mineira. Tinha o angu do Carlos, que ele dizia que era bom, porque, como não tinha gosto, nunca estava ruim. Couve, um bifinho, ovo. E ela dava a 48 Vale observar a forma carinhosa que os netos usam para se referir a Dolores. Com o avô, usavam (e usam) o primeiro nome. 125 ele um copo de leite, depois do almoço. Tinha o copo da Dolores, na geladeira, coberto com o pratinho, que era para o copo estar sempre geladinho. Era o copo dela, pra beber água. Aos domingos, ela não fazia jantar, mas fazia uns sanduichinhos. Pegava o pão de forma, tirava as beiras e colocava um presuntinho e mais alguma coisa, enrolava tudo isso num pano de prato úmido, deixava na geladeira, e ficava bom; vinha acompanhado por uma laranjada ou alguma coisa que ela preparasse. A Dolores falava espanhol, mais que o Carlos. Ela se aventurava. Eu me lembro que, em vez de dizer Borges, ela dizia Jorges. Ela era mais audaciosa que o Carlos, que devia ter certo pudor. O Carlos falava em castelhano imitando o papai, o que era muito engraçado. 126 Com Edmílson Caminha (e-mail, 10.12.2013) Escritor, jornalista e professor de literatura brasileira, Edmílson Caminha nasceu em Fortaleza (CE). Foi, durante 22 anos, consultor legislativo da Câmara dos Deputados, em Brasília (DF). A amizade com Carlos Drummond de Andrade e Dona Dolores, que por diversas vezes o receberam no apartamento da Rua Conselheiro Lafaiete, estendeu-se a Maria Julieta, a Manuel Graña Etcheverry e aos filhos Carlos Manuel, Luis Mauricio e Pedro Augusto. Entre os livros que publicou, destacam-se "Drummond, a lição do poeta" (2002) e "Em memória de Drummond" (2012). AASS: Socialmente, como você definiria o jeito de Dolores? (Cordial, amável, gentil, conversadora/lacônica, simpática, etc.?) EC: Era, sim, cordial, amável, gentil, não muito simpática (devido à timidez, acho), e, também por consequência, de poucas palavras. Quando, em janeiro de 1984, minha mulher (Ana Maria) e eu visitamos o casal no apartamento da Conselheiro Lafaiete, ela quase não falou, limitando-se a acompanhar nossa conversa com Carlos. Se tivesse, porém, de destacar-lhe uma só virtude, escolheria a discrição. Mais do que tudo, pareceu-me discreta, ciente da condição de esposa de um grande escritor, um poeta importante, uma celebridade, pode-se dizer. AASS: Lembra-se do que Ana Maria e você conversaram com ela? Diria que, na presença do Carlos, ela participava menos da conversa com vocês? EC: Como já disse, ela praticamente não se manifestou: à minha direita, no aconchegante sofá da sala de visitas, mais ouviu do que falou, atenta à longa entrevista que o poeta me concedeu. Talvez, na intimidade da família, sem a presença de estranhos, ela se sentisse mais à vontade para participar das conversas, para dizer o que pensava. AASS: Na sua opinião, do ponto de vista prático, qual foi a contribuição de Dolores para o trabalho literário do Carlos? Como conhecedor da obra de CDA, 127 de que modo você diria que essa convivência, de mais de 60 anos, se refletiu na obra dele? EC: Tenho a certeza de que Dolores foi fundamental na vida de Carlos, como o porto seguro de que ele necessitava, como ser humano e como artista. Sabiamente, ela o compreendia nos seus múltiplos papéis – de marido, de escritor e de homem que nunca perdeu a capacidade de amar. Inteligente que era, sabia dos relacionamentos extraconjugais de Carlos, mas optou por suportá-los, em nome da sobrevivência da família e da relação minimamente harmoniosa que deve prevalecer entre marido e mulher. Não tenho dúvida de que uma separação teria sido fatal para Drummond, pela ausência da pax domestica sem a qual não conseguiria viver nem escrever. Assim, a convivência com Dolores refletiu-se na obra de Carlos (não apenas pelo equilíbrio emocional que lhe proporcionava, como acabo de dizer), mas explicitamente, também, nos poemas em que faz alusão direta à companheira de toda uma vida. Namorador impenitente (o que só depõe em favor dele...), Drummond não teria conseguido viver sem Dolores. AASS: Qual a sua impressão geral sobre Dolores? (Era uma dona de casa, uma “esposa de poeta”?) EC: Era muitas: mãe dedicada, avó compreensiva, dona de casa eficiente, amiga prestimosa, mas também, e de maneira especial, esposa de poeta, cumpridora, como já afirmei, do papel de coadjuvante de um homem público, de um escritor permanentemente assediado pela imprensa e pelo público. Assim, discreta e silenciosamente, soube viver à sombra do marido. AASS: O que diria de Dolores em relação às mulheres do tempo dela? Politicamente, você acha que Dolores pensava como o Carlos? EC: Ao mesmo tempo em que me pareceu uma típica representante da geração brasileira a que pertencia – de mulheres educadas para o matrimônio (e para a submissão ao marido), para a maternidade e para os afazeres 128 domésticos –, Dolores também se punha à frente do seu tempo. Segundo me contou o neto Pedro Augusto, foi das primeiras mulheres a trabalhar fora de casa, em Belo Horizonte, sob os olhos de uma sociedade conservadora, plena de discriminações e de preconceitos. Quanto à política, não faço ideia, sinceramente, das opiniões de Dolores. Creio que, assim como Carlos, era defensora da dignidade humana, das liberdades individuais, do direito que todos os homens e mulheres têm à vida, à saúde, à educação, ao trabalho e à cidadania plena. Muitos anos depois daquele 1984, voltei a ver Dolores, quando subi ao apartamento 701 da Conselheiro Lafaiete, ao encontro de Pedro. Levou-me ao quarto em que vivia a avó, aos cuidados de uma enfermeira. “Vovó, quem está aqui é um amigo do Carlos, o Edmílson, que veio visitá-la...” Ela não disse palavra, alheia a tudo e a todos, sequestrada de si mesma pelo mal que lança o doente no abismo da solidão e do nada. Preferia não tê-la visto assim, e guardar-lhe a memória da mulher pequenina, discreta e reservada, sem a qual Drummond não teria sido quem foi. 129 Com Manuel Graña Etcheverry (gravação, 11/11/2013; transcrição e tradução de AASS) Nascido em Córdoba, Argentina, em 1915. Advogado, deputado nacional aos 30 anos, filólogo e escritor. Há mais de 60 anos traduz e publica a poesia brasileira. MGE: Dolores cuidava muito do tempo do Carlos. Assim, por exemplo, quando alguém o chamava, por telefone, ela sempre dizia: “Carlos não está. Está viajando, ainda que já se soubesse que Carlos não gostava de viajar. Desse modo, ela preservava o tempo dele, de maneira que ele podia trabalhar tranquilo sem interrupções. Evidentemente, Carlos atendia pouco a Dolores, de maneira que, quando fui... Eu gostava de levá-la pra passear, muitas vezes sozinho, eu com ela; a levava de carro. Ela gostava muito de ver as pontes e os túneis novos que eram construídos no Rio. Assim, uma vez, vimos como se filma a queda de um automóvel desde uma altura até o mar. Um filme que se chamava algo assim como Diamantes... Diamantes a gogó. O certo é que eu, nesse sentido, fiz muito pela satisfação de Dolores. Ela não se animava a sair nunca sozinha, sem Carlos, e Carlos não podia atendê-la, porque estava em seus escritos. Eu, nesse sentido, tenho gosto de dizer, de tê-la entretido bastante. Uma vez, inclusive, quando eu fazia pequenas viagens, podia ir com Dolores e assim a levei a Ouro Preto, onde estava Pedro, e saímos do hotel e ela passou a noite em frio, porque não conseguiu fechar a janela, não tinha força e, além disso, não animou a me chamar, nem a alguém que pudesse ajudá-la. Saímos com ela, de manhã, para caminhar e... quando nós vivíamos já na Rua Arroyo, ela, um dia, estava gripada, doente, resfriada e eu lhe preparei uma bebida que consistia em vinho fervido com açúcar e canela e com um pouco de conhaque. Quando já estava bem espesso, isso lhe faria suar toda a noite, ia lhe fazer bem, ela estava na sua cama e eu me sentei ao lado dela, para lhe dar o líquido e não sei que diabos fiz que entornou no peito da pobre Dolores. Um dia, me ocorreu, não sei por que diabos, eu tinha pescado esses moluscos que se tiram as pernas no mar, e me ocorreu fazê-los, cozinhá-los, na casa de Dolores, e Dolores ficou furiosa, porque disse que eu havia bagunçado a cozinha toda. Eu fiquei com raiva, querendo voltar pra 130 Buenos Aires. Outra coisa mais que podia dizer dela... Quando eu me separei de Maria Julieta, eu também era um pouco inocente, porque pensei que o fato de que eu me separasse não afetava o resto da família, como, em definitiva, não afetou, mais tarde. Mas aí estávamos na Rua Santa Fé e, quando ela me viu, virou a cara, eu fiquei profundamente ferido, mas, depois, pouco a pouco, ainda que Maria Julieta e eu estivéssemos separados, éramos amigos e muito ligados, de tal modo que Carlos fazia questão de que, se eu fosse ao Rio, tinha que me hospedar na casa dele. Dolores, como Carlos, todas as semanas escrevia uma carta a Maria Julieta e era sempre a Juju, filhinha e Manolo. Tinha uma letra muito clara e boa. AASS: Como Dolores pode ter contribuído para a obra de CDA? MGE: Cuidando do tempo dele. Ela não escrevia, mas cuidava do que ele escrevia. É curioso porque Carlos só fez um poema para Dolores. Dolores era muito econômica e, como na época, havia inflação, no Brasil, sempre que ela podia trocar “cruzeiros” por dólares, ia fazendo sua economia, comprando dólares. E Carlos se divertia com isso, que não lhe importava, ainda que fosse muito econômico. Não chamava Dolores de Dolores, senão Dolares. Dolores tinha uma vida perfeitamente normal, mesmo que tivesse... Parece-me que Carlos não foi um marido muito fiel, não. Mas o que passou entre eles não transcendeu, de maneira que, se houve problemas entre o casal, te digo que não chegava até nós, mas Maria Julieta se deu conta das cosas que Carlos fazia e o repreendia. Carlos ficava envergonhado, sem dizer absolutamente nada. Aguentava a repreensão, que Maria Julieta defendia a mãe, nesse sentido. Dolores se preocupava muito por Maria Julieta. Sempre que havia algum viajante de Rio pra Buenos Aires, ela mandava algo, mandava comida, objetos, louças, vestidos, uma quantidade de coisas. Preocupava-se muito com o cuidado das crianças. AASS: Como era a relação de Maria Julieta com Dolores? 131 MGE: Parece-me que Maria Julieta foi um pouco injusta com Dolores. Evidentemente, Maria Julieta preferia o pai e não a mãe. Parece-me que isso era visível. Nós, muitas vezes, comentamos isso de que ela cuidava mais de Carlos. Que eu saiba, Dolores nunca fez críticas literárias a Carlos, isso o fazia Maria Julieta e eventualmente eu também o fiz. Dolores era muito afetuosa, nunca a vi repreendendo nem a Carlos, nem a Maria Julieta. 132 CARTAS ¿Qué mejor modelo de autobiografía se puede concebir que el conjunto de cartas que uno ha escrito y enviado a destinatarios diversos, mujeres, parientes, viejos amigos, en situaciones y estados de ánimos distintos? Ricardo Piglia, Respiración artificial 133 Rio, 13 maio 1950. Minha mulherzinha distante: Talvez pela sugestão da intensa vida social que V. está levando em Córdoba, vou por minha vez ensaiando os passos no mundanismo. Hoje à noite, jantarei em casa dos Gondim de Oliveira, da direção do “Cruzeiro”, em companhia de outros ilustres intelectuais, para tratar da fundação de uma revista infantil que a dona da casa financiará. A direção da revista caberá a Lucia Machado, e há grandes projetos e esperanças49. O que houver contarei a V. Pela manhã, fui ver a defesa da tese de Afonso Arinos, na Faculdade Nacional de Direito. Examinador: Casasanta, Sampaio Dória, Valadão e outros. Verdadeira sessão de tortura, em que os examinadores, vestidos de preto como abutres, dão bicadas na carne do candidato, o qual se senta num local parecido com o banco dos réus. O suplício durou 5 horas, e o Afonso Arinos saiu-se bastante bem, apesar de ter passado a noite em claro, de nervosia. A nosso lado entre as espectadoras, Hannah tinha as mãos geladas e pensava em quebrar a cara dos examinadores. O resultado só se saberá depois de examinados (ou torturados) outros candidatos, entre os quais o Aguinaldo Costa. Gostei muito de receber ontem uma carta de V. e outra hoje. É uma boa medida esta sua, de não esquecer o companheiro distante. Ontem à noite a Rádio do Ministério transmitiu o conto do túmulo e da flor, e achei a irradiação bem boa, chegando às vezes rir como se tratasse de coisa feita por outra pessoa e que achasse engraçada. Tive que fazer um bocado de força durante o dia para que meus admiradores da Rádio, ao apresentar o conto, não falassem na pedra do caminho; eles achavam isso indispensável, mas afinal desistiram. 49 No dia 4 de junho de 1950, Carlos escreve, em seu diário, já citado: “Almoço em casa dos Gondim de Oliveira, da revista Cruzeiro. Projeto de criação de uma revista moderna, dirigida por Lúcia Machado de Almeida. Sinto o interesse de ganhar a vida fora do círculo paternalista da burocracia. Mas a dona de casa mantém comigo uma conversa de caráter moral e religioso que me deixa pensativo. Acho que não será propriamente do meu gênero fazer uma revista assim.” 134 E nossa querida Bruxinha, como vai depois da confirmação do bebê? Está suficientemente compenetrada? Não era preciso dizer que V. está fazendo tricô para o futuro neto, pois V. havia de fazê-lo mesmo sem essa expectativa. E de saúde – tudo bem? Responda-me se está necessitando de um suprimento financeiro, para que eu dê um jeito. Muitos abraços a Manolo, merci pelos retratinhos de Bernardo (os negativos que mandei revelar seguirão depois do dia 18) e a ternura profunda do seu velho e nostálgico Carlos 135 Rio, 16 agosto 1956. Dolores, onde estás, onde estás que não respondes? Escreves o teu romance e por isso não tens tempo de mandar algumas linhas para este velho companheiro? Ou aderiste aos programas sociais do casal Graña, e todo tempo é pouco para as parties? Um punhado de notícias: Estamos sem leite, sem açúcar, com pouco pão e alguma água. O governo, de braços cruzados, espera que a situação se normalize sem aumento de preço. – Fui à casa de Capanema pelo aniversário; reunião melancólica de poucos amigos do ex- leader. – Coisica- ***, vista em casa de Aníbal, tem uma cara estranhíssima de freira espanhola, e deixou-se ficar sentada no escritório, enquanto a nova geração se esbaldava. – Manir, de passagem pelo Rio, telefonou. – O maestro *** ofereceu-me em embrulho de presente, o seu método de piano encadernado. As 50 crônicas deram-me um telegrama misterioso de Araxá, assinado “Niopaulo”, que acabei identificando como Niomar e Paulo. Vou fazer um texto para um calendário da Ford, sobre um domingo no Rio, e mais 6 legendas de estampas, por 10 mil cruzeiros, que tal? Nada de S. Paulo em matéria de livros. Continuo aguardando instruções sobre os já chegados. Guilherme Figueiredo vai para aí, mas em setembro. Espero V. no fim do mês? Abraços e afetos para Bruxinha, Manolo, Toto e Abissa (está aqui o quadro de Reis Jr., à espera de portador). A saudade (meio triste, por falta de notícias) do teu Carlos 136 Baires – 20.8.56 Está terminando sua paz, Carlos. A viajante já prepara a mochila para o regresso: Dia 1° de setembro, sábado, pela Cruzeiro do Sul. O almoço será a bordo e a aterrissagem será às 3 horas, mais ou menos. V. se queixa da falta de cartas e elas têm ido bem frequentemente. Agora, não as ponho mais nos buzones 50 : Vou à agencia de Esmeralda com Charcas. – Hoje, cedinho, lá estive para deixar duas cartas com desenhos para V. e para Seu Reis, presentes de Carlos Manuel. O garoto está desenhando febrilmente e eu, que sou sua fã número 1, fico encantada com os debuxos do pintorzinho. Veja só como é extraordinário “A Arca de Noé”. Faz tudo com uma rapidez atômica. Hoje, no Jardim da Infância, vai começar a aprender a ler e a escrever, coisas de sua maior ambição. – O irmãozinho está em casa, resfriado, e com uma pontinha de febre. – Já lhe contei como foi recheada a semana passada com cinco feriados: circo, cinemas, teatros, museus, parques, etc. – Estou horrorizada com a miséria carioca. Quando vim, fiz um sortimento muito grande. Sempre precavida como a formiga da fábula... Enfim, tenhamos fé em Deus e no nosso grande general. A temperatura está ótima e os agasalhos são quase dispensáveis. Maria Julieta continua dando milhões de aulas no Centro. Tola como alguém que conheço a longos anos. Não adianta falar, nem lhe mostrar o espelho. À parte de tanto trabalho tem uma vida bem agitada – doméstica e social. Agora, com o fato de ela ter que cuidar dos meninos todas as manhãs e duas tardes por semana, ela está bem mais perto deles e resolve muito bem e com mais paciência e humanidade todos os problemas infantis. E tudo segue o ritmo habitual sereno e agradável. Manolo está bem e muito preocupado com os quilos a mais que adquiriu, libertando-se do fumo. Trabalha pela manhã e à tarde e vai ao golf, aos sábados e domingos. – Espero que os honorários da Ford sejam fraternalmente repartidos. Que tal? Os Graña lhe enviam carinhos e saudades e eu o meu longínquo abraço. Dolores 50 Plural de “buzón”, caixa colocada em lugares públicos, onde as pessoas depositam suas correspondências. 137 Baires – 4.VIII.57 Carlos querido: Outro dia chegou sua boa e noticiosa carta. Deus queira que tudo corra bem aí: V. com saúde, pensando na gente e a casa em ordem. O povinho portenho vai muito bem. Todos saudáveis e sempre com saudade de V. Carlos Manuel, quinta-feira, tirou o primeiro dente. O outro já estava grandão, atrás. Dei um puxãozinho e pronto. Sem sangue e sem choro. À noite, pôs o dente numa almofada para “El Rei Ratón51” vir buscá-lo para o castelo encantado. O rei veio e deixou os pesos, como se usa na terra. O garoto quando, manhãzinha, encontrou as cinco notinhas novinhas ficou deslumbrado e dava gritos de alegria. Quarta-feira houve a festa de aniversário do filho de Fernando. À tarde para as crianças; à noite para os pais. Uma reunião muito agradável, com quase todo o mundo da Embaixada. Khachaturian 52 , ontem, no Colón, regeu suas próprias composições, comum sucesso extraordinário. Conte-me de V., da sua vidinha, de seus trabalhos e da casa. Convém dizer a Clair para ter muito cuidado quando lavar os cristais, limpar os armários e encerar a casa. Não retirar nem a televisão, nem a vitrola do escritório e colocar mesinhas em pé e não deitadas, como ela tem feito. Os Graña sempre ativos em trabalhos e em sociedade. Os meninos saíram agora, 10 ½ horas, com Catalina. Foram à festa de aniversário do irmão da Babá e só regressarão logo à noite. Saíram loucos de prazer cada um levando cuidadosamente seu regalo53 para o aniversariante. O frio de quinta-feira, 1,8 abaixo de zero foi uma coisa horrível. Que ardor e que dureza nos pés, santo Deus! Hoje, à noite, jantar num bodegón e sexta-feira os Graña recebem, num jantar americano, vários casais amigos, em homenagem aos Guirand, que seguem para a Europa, dia 11. 51 Trata-se da lenda do “Ratoncito Pérez”. Quando a uma criança lhe caía um dente, este era jogado no telhado, levado pelo “Rey Ratón” e trocado por algumas moedas. 52 Compositor armênio do século XIX. 53 Em português, significa “presente”. 138 Todos lhe enviam carinhos. O meu é o maior e a minha saudade também é muito grande. Sua de sempre Dolores 139 23.VIII.58 Carlos: Este bilhete ligeiro é para dizer-lhe que o voo foi tranquilo e a aterrissagem à hora exata. A família Graña compareceu ao aeroporto alegre e bem disposta. Os garotos estavam encantados e os presentes foram recebidos debaixo da maior alegria. Os olhos de C.M. ao receber o relógio brilhavam de uma maneira rara. Abissa ficou tão emocionado que se pôs triste com o presente fechado na mãozinha direita. Ambos estão ótimos; Maria Julieta e Manolo também. O dia está morno e cheio de sol e o apartamento muito acolhedor. Todos lhe enviam muitas saudades. Deus queira que seus achaques estejam terminados. Um grande abraço de Dolores 140 Rio, 13 de março 1960. Dolores querida: espero que a estas horas uma carta de V. esteja cruzando os ares para me contar como foi a viagem e dando notícias daí. É tão grande o silêncio da casa e tão vazia anda ela, que só uma cartinha boa poderá animá-la. Conte-me como vai o nosso povinho e como é a cara do jovem Pedro; também quero saber se os olhos e o reumatismo vão melhorando. Eu nada fiz até agora de especial, e me limitei a pôr em ordem as gavetas e estantes. Ainda vejo e ouço os dois capetinhas trançando pela casa e lembro o que há de bom na presença de crianças. Tem caído uma chuva tristonha, as ancilas se portam com discrição, e nada há mais a registrar. Só uma notícia triste e que me chocou extremamente: Portinari e Maria se desquitando54. Parece que a petição já entrou em juízo, e que a indefectível Pomina deu notícia na sua seção. Rodrigo, a par do assunto, disse-me que o motivo da separação foi o João Cândido55, que ao completar 21 anos, mandou procuração para se casar com uma jovem carioca. Maria se opunha energicamente a isso, enquanto o Candinho seria mais tolerante. Comentando o caso, Rodrigo me ponderou que a situação de Maria é mais triste que a de Portinari; este ainda tem os irmãos que lhe são devotados, enquanto ela ficará sem marido e sem filho. É realmente uma coisa de amargurar a gente. Quando V. volta? Gostaria que não demorasse, para recomeçar logo o tratamento e fazer companhia ao velho rabugento mas que lhe quer um grande bem, e que lhe manda um beijo com toda a ternura. Carlos 54 Segundo o Museu Casa de Portinari, “após 30 anos de casamento, Portinari separa-se de Maria, que, assumindo mais que o papel de esposa, ajudava-lhe com os problemas do cotidiano, deixando-o livre para dedicar mais tempo ao seu trabalho. Mesmo separados, Maria continua a prestar-lhe assistência.” Para mais informações, ver: http://museucasadeportinari.org.br/candido-portinari/linha-dotempo/de-1958-a-1962 55 Filho do casal Portinari. 141 17-III-60 Carlos, my dear Hoje, chegaram suas cartas. Todos aqui vão bem e saudosos de V. Pedrinho56, o assunto da temporada, está gordinho e esperto, com seus olhos claros e seu cabelo cor de cenoura. Ontem começou com um novo horário – comida de 4 em 4 horas, cinco vezes ao dia. Sai todas as manhãs à praça e dorme bem às noites. Toto já recomeçou a vida escolar. Agora sai mais tarde e volta mais cedo. Está muito entusiasmado com os novos livros e a nova professora. Abissa 57 , que recebera o irmãozinho com encantos especiais, de repente se pôs agressivo, ameaçando de bater no pobrinho. Vivia dentro do carrinho e usando tudo que era dele. Afinal, confessou ao Pai que “tudo agora é para o Pedro e ninguém me liga mais.” Hoje, está mais acessível, depois da conversa que Manolo e Bruxinha58 tiveram com ele. Quanto às brigas***. Por determinação materna, enérgica e prepotente, as prebendas e as pancadas acabaram-se por encanto, graças a Deus, as revistas passam pelas quatro mãos, sem protesto. Fiquei sofrida com o caso Portinari, devia esperar isto de todo casal, mas este tão amigo, tão eles mesmos. Marcarei minha ida na próxima semana e logo lhe comunicarei. E V. como vai? Está trabalhando muito? E as crônicas? Um abraço de nós seis. O coração inteirinho da sua Dolores 56 O terceiro neto de Dolores. Apelido do segundo neto, Luis Mauricio. 58 Apelido que os pais colocaram em Maria Julieta. 57 142 7.VII.63 Querido Carlos: Fiquei verdadeiramente comovida com o poema de Abgar. Que coisa linda, hein? O seu gesto carinhoso com a família do 6° andar também me pôs orgulhosa do marido cavalheiresco que me tocou. Pedrinho já está bem, graças a Deus. Esteve dez dias com febre, foi uma gripe muito forte. E nesses dias da doença do garotinho nossas andanças tiveram uma trégua. Sexta-feira, foi o ato cívico dos escolares do país, comemorando o nove de julho59. Foi antecipado pela semana de férias que vem agora. Uma coisa simples e rápida. Terminou com a oração de C.M. Estava muito bem feitinho o trabalho e o diretor gostou bastante. O garoto foi treinado no colégio e em casa. Falava claro, alto e pausadamente. Mas na hora, o pobre falou baixo e depressa. Claro que foi muito aplaudido, principalmente pelos colegas de turma que não cessavam de aplaudi-lo. O pior foi quando fomos cumprimentar o orador. O professor elogiou como sendo um ótimo aluno, “pena que dissesse tão depressa o discurso”. Isto bastou para mortificar o pobre menino. Tentamos convencê-lo de que estava tudo muito bem, quando ele nos disse: “Eu tinha a impressão que estava sonhando alto, e estava com muita vergonha, no sonho...” O puchero 60 de ontem estava muito bom e muito bem. 6 casais brasileiros e mais a Sra. Dolega. O apartamento está uma beleza com sua nova decoração. O tapete da sala de jantar, comprado no turco, onde comprei os meus, é uma coisa linda. Persa antigo, rosado com *** floridos dos lados e em toda a volta, mede 3x4 e custou apenas 300.00 em nossa moeda. Foi uma compra excelente que Bruxinha fez. Hoje, é um dia morto pelas eleições61: tudo fechado. 59 Data em que se comemora a proclamação de Independência da Argentina. Prato à base de carne, cenoura, batata, cebola, milho, linguiça, repolho e ovos. 61 O vencedor dessas eleições foi Arturo Illia, da Unión Cívica Radical del Pueblo (UCRP), também derrocado por um golpe militar, em 1966. 60 143 Amanhã, a grande festa a bordo, com um programa cuidadosamente escolhido. Caviar russo, vinhos franceses e grandes prazeres para os convidados. Gostei de ver a sua sociabilidade, recebendo os poucos amigos. Continue, meu caro. A temperatura tem estado agradável. Com o termômetro tangenciando os 20°. Já lhe disse que os dois fardos com as compras seguiram sexta-feira pelo Loide. Não conseguimos saber o nome e o endereço do comandante. Logo que o tenha lhe direi. Os castiçais já estão prontos, só faltam as cúpulas que mandei fazer de pergaminho. As armações irão comigo. A medida do pote de vidro é para a florista preparar umas flores secas para colocar dentro. É de um efeito lindo, imitando os enfeites da era vitoriana. Quero ver mais algumas coisinhas, se o dinheiro der. E V. como vai de saúde? E os trabalhos, as saídas e o ministério doméstico? Dê saudades a Pitu, Maria e Ruth. Todos mandam abraços para V. Um beijo e todo coração de sua Dolores 144 Meu querido Carloca tão distante. Ontem, foi o início da festa de aniversário de Luis Mauricio, com seu telegrama chegando cedinho. Manhãzinha, foi o café com bolo e uma vela enorme, ao som de “Parabéns a V.” Houve um almoço na sala nobre, com a presença de Tia Mary. Sábado a reunião de 12 amigos, com lanche e brincadeiras. O tempo aqui é que está muito camarada, com um sol aconchegante e uma temperatura de 22°. Tenho saído sempre com Bruxinha – de manhã e a tarde, pela cidade e pelos antiquários. V. conseguiu fazer o pagamento das ações do Belgo Mineiro? Já recebi os 105.000 cruzeiros, convertidos a pesos, que já estão sendo gastos. Um cisco no olho direito de Carlos Manuel foi retirado, logo, no Hospital Alemão. Estava incomodando demais ao pobrezinho. Agora, me conte de V. – de sua saúde, do trabalho, da casa, da vida. E Lita tem olhado direito tudo? Como foi a ida da passadeira? Ando muito bem de saúde: gripe, olhos e tudo mais curado. Todos aqui vão bem e mandam saudades a V. Um beijo e todo o amor de sua Dolores 27.VIII.64 145 16/9/65 Carloca muito amado. Semana calma, com carta chegada ontem. Manolo foi a Concepción e a Córdoba. Saiu domingo, à tarde, e chegou hoje tarde da noite. – Pedro novamente com a garganta tomada, pobrezinho. Hoje, tem médico para resolver o problema – se opera ou não as amígdalas. Logo, irei à Cruzeiro para marcar minha viagem. Esta Cia. e a Varig fizeram um convênio e mudaram todos os horários. Vejamos qual o dia da semana que tem Convair para o Rio. Falo logo, em seguida. – Fiz a primeira compra e fiquei reduzida a zero. Uma peça boa, que, certamente, V. vai gostar: uma Sta Rita, peça de catálogo, que a acompanha. O tapete ficará para a próxima “estação de águas”. O que vimos com as medidas mais ou menos, Bukaro, bonito mesmo. Saía pela bagatela de 400 dólares. Bruxinha me empresta, mas não tenho coragem de semelhante investimento! E foi o mais barato. Aí, talvez custaria o dobro, conforme os que Gilda adquiriu. – V. como vai? A saúde, o trabalho, a casa e tudo mais? O quinteto portenho envia saudades a V. – Nem sei por que o dr. Mitchell não telefonou. Ele foi tão gentil oferecendo os préstimos. E depois ele já esteve duas vezes aí em casa. Será que ele não vai trazer os copos? Tem um apartamento pequeno em Figueiredo Magalhães com Copacabana, um prédio novo. Eu quero muito bem a V. Mando-lhe carinhos, abraços, beijos e todo o meu coração cheiinho de saudade. Sua de sempre Dolores 146 147 Ver transcrição na página seguinte. 148 Querido Carlos: Tudo aqui vai marchando direitinho. Bruxinha vai melhorando, mas se cansando bastante com as suas idas diárias aos médicos. E ela é quem guia. Dura, durona. Sexta-feira, foi um dia horrível para mim. Eu ainda não tinha visto a cicatriz: ela achava que me deveria mostrar mais tarde, bem mais tarde. De repente, depois do banho, ela me chamou e, abrindo a toalha, me disse: “Olha, olha bem!” Nem sei como aguentei. Tudo estava O.K., muito melhor do que eu esperava. Mas, quando vi o peito mutilado, o mundo desabou sobre mim. Nunca passei por um momento assim. Mas reagi instantaneamente. “Que tal, mãe? Que tal, mãe?” “Ótimo?” A voz custou a vir, mas disse logo: “ótimo!” “assim é que eu gosto de uma mãe durona como V.” Que dor, meu Deus! Que desgraça! Mas a doente reage perfeitamente, se movimentando, dando ordens, trabalhando. Aquelas crises depressivas vão escasseando, felizmente. O cobalto, as massagens, o remédio e os carinhos que recebe de todos muito contribuem para suas melhoras. Mas sobretudo é a ficha da pobre menina. Tem feito vida normal, dando ordens telefônicas ao Centro 62 , olhando a casa e atendendo as inúmeras chamadas ao telefone. – o resultado do Papa-Nicolau, só no fim da semana que vem. – Domingo saiu para jantar fora com o amado, toda linda, linda mesmo, inclusive com os dois peitinhos postiços que arrumou a última hora. E se sentiu “divina”. Greta63 perdeu o 3º filhinho, que era mofino e que ela rejeitara. 48 horas depois da faceta, teve um sétimo. Grande, mas morto. O veterinário chamado disse que é normal: é que ela teve contato com o gato por duas vezes, e na 2ª conseguiu se fecundar um ausente. Agora, no apartamento ela e os bichinhos são os preferidos. E V. como vai? O trabalho, as andanças? Lemos sua crônica sobre as professoras. Muito boa. – Manolo tem sido extraordinário. Um beijo e o grande carinho de Dolores. 26/ VI / 79 62 Dolores refere-se ao Centro de Estudos Brasileiros, mantido pelo Itamarati, em Buenos Aires, instituição onde Maria Julieta dava aulas e que, posteriormente, dirigiu. 63 Gata da família Graña Drummond. 149 UMA HISTÓRIA EM FRAGMENTOS 150 DE CARLOS PARA DOLORES Encontrei-me com seu marido e, embora ele não confessasse, estava com cara de ter saudades. Carta de 22 de abril,1950 Depois que V. se mudou do Brasil, o que aconteceu de melhor, para mim, foi a sua carta. Carta de 25 de abril, 1950 Mande-me uma carta boa e longa, com muito carinho, o que será um modo de estar presente. Carta de 25 de abril, 1950 Aqui, há muitas saudades, Dolores. Vicejam pela casa toda, e eu próprio sou um canteiro delas. Carta de 3 de maio, 1950 Os bichinhos iniciaram uma temporada de sono hibernal, e dormem por todos os cantos da casa; é uma forma de ter saudades. Carta de 3 de maio, 1950 Sinto muita falta de V., de nossos serões no escritório, de nossos cineminhas e de nossas rusgas. Carta de 5 de maio, 1950 E adeus, dona Dolores dos meus pecados e dos meus carinhos. Carta de 5 de maio, 1950 151 Eu imaginava que a vida não me reservava mais desses momentos intensos, em que tudo se transfigura, e o mais íntimo vem à tona, quando de repente recebo uma notícia que me deixa completamente comovido e bobo. Carta de 7 de maio, 1950 Venha imediatamente, porque a falta é enorme, e triste a vida do solteirão. Carta de 7 de maio, 1950 Confio muito no velho tacto de enfermeira, assistente social e grande criatura humana de minha mulher. Carta de 10 de maio, 1950 Estamos modorrando por aqui, à espera do seu regresso (V. voltará ainda este mês? duvido...) Carta de 10 de maio, 1950 Querida, mande um beijo para seu velho fan e companheiro, para amenizar este mundo de saudades. Carta de 10 de maio, 1950 É uma boa medida esta sua, de não esquecer o companheiro distante. Carta de 13 de maio, 1950 Não era preciso dizer que V. está fazendo tricô para o futuro neto, pois V. havia de fazê-lo mesmo sem essa expectativa. Carta de 13 de maio, 1950 Estava tão mal acostumado com as cartas frequentes que, segunda e terça, vendo o carteiro de mãos vazias, me senti roubado. Carta de 18 de maio, 1950 152 Se V. se fizer muito envaidecida com a confissão de que estou com muitas saudades, então fique. Carta de 18 de maio, 1950 A casa toda é uma grande saudade de você. A poltrona do escritório, que V. elegeu para os serões de costura, anda erma e desconsolada. E a gatinha que providenciei para encher estas férias conjugais não é a mesma coisa, embora também arranhe às vezes. Carta sem data Sou um animal doméstico e só me entendo bem com os velhos afetos. Pode tomar isto como uma declaração de amor, é. Carta de 23 de agosto, 1955 Está um frio úmido lá fora, e eu quero me aquecer um pouco em sua companhia. Carta de 28 de agosto, 1955 Divirta-se bastante, querida, para suportar depois com paciência a misantropia deste seu velho companheiro, que vive por aqui roendo as saudades. Carta de 28 de agosto, 1955 Já me habituei a ser um solitário a dois, e a outra parte da minha solidão me faz muita falta. Carta de 4 de setembro, 1955 Aqui não há novidades, só que tudo é um pouco chato na sua ausência. Carta de 24 de julho, 1956 Fico lembrando nossos serões domésticos, às vezes perturbados por brigas em torno da T.V., mas afinal de contas de uma rotina tão agradável. Carta de 28 de julho, 1956 153 Dolores, onde estás, onde estás que não respondes? Escreves o teu romance e por isso não tens tempo de mandar algumas linhas para este velho companheiro? Carta de 16 de agosto, 1956 Saudades aqui são mato, mas a vida é normal. Carta de 8 de agosto, 1957 Dolores, sou um bobo que não sei ir ao cinema sozinho. Carta de 11 de agosto, 1957 Aqui está o seu velho companheiro, a remoer o realejo das saudades – única notícia que tenho para te dar. Carta de 16 de agosto, 1957 Esta semana, ofereci-me (em homenagem também a V.) a 5a sinfonia de Beethoven, pela Filarmônica de Hamburgo, regida por um dr. Joseph Keilberth, e espero adquirir a 9a para festejar devidamente o seu regresso. Carta de 18 de agosto, 1957 E V., querida, tem mesmo sentido falta das implicâncias deste seu velho companheiro, e de nossos serõezinhos tranquilos? Eu tenho V. na lembrança e fico esperando que este agosto comprido acabe de passar, para que voltemos a ser um só. Carta de 18 de agosto, 1957 Li com alegria aquele trecho de sua carta: “amanhã, preparativos para o regresso”. A folhinha está mesmo reclamando essa providência, e posso assegurar que V. será recebida com carinho. Carta de 22 de agosto, 1957 154 Saudades de uma certa senhora, dona do meu coração, que há um mês, está longe de mim, e a quem espero com ansiedade abraçar carinhosamente até o fim de agosto. Carta de 22 de agosto, 1957 Escrever para V. tem sido uma de minhas raras distrações, na casa vazia e no dia trivial, em que não acontece nada, além do trabalho miúdo. Carta de 11 de setembro, 1958 Que bom você estar de volta ao lar brasileiro, onde há um grande vazio difícil de suportar! Mais uma vez verifiquei que sou homem de solidão a dois, não de solidão absoluta. Carta de 21 de setembro, 1958 Saudades, muitas saudades de minha mulherzinha, a quem, com todas as minhas implicâncias e rabugices de Drummond e de velho, quero um bem infinito. Carta de 30 de junho, 1963 Eu, em matéria de doença, tenho apenas a da saudade, no coração vazio. Carta de 3 de julho, 1963 Há muitas saudades andando por este 7° andar, e o objeto delas é você. Carta de 11 de julho, 1963 Para você o imenso carinho do seu rabugento mas amoroso velhote, que te ama por toda a vida. Carta de 6 de setembro, 1964 Sábado que vem estarei recebendo o meu amor com toda a ternura; talvez você não me reconheça, tão roxo que estou de saudades! Carta de 25 de janeiro, 1965 155 Tenho pensado com muito carinho na boa companheira distante. O beijo de velha ternura de seu jovem namorado. Carta de 27 de agosto, 1965 Você já se imaginou esposa de um poeta com nome de rua, ou de uma rua com nome de poeta? Carta de 5 de setembro, 1965 Este nosso papinho postal ainda é a melhor maneira de vencer a saudade. Carta de 10 de setembro, 1965 Neste sétimo andar, a notícia única é a falta de companheira do poeta, que torna a vida silenciosa e saudosa. Carta de 27 de setembro, 1967 A gente está sentindo falta de uns serões diante da TV e dos nossos uisquetes. Companheira de mais de 50 anos não se esquece de uma hora para outra, viu? Carta de 14 de março, 1978 Você é ainda sempre uma grande companheira humana e dedicada, com admirável capacidade de ação na hora certa. Carta de 7 de julho, 1979 156 DE DOLORES PARA CARLOS Tenho sentido muitas saudades do meu violeiro. Carta de 12 de setembro, 1955 Está terminando sua paz, Carlos. A viajante já prepara a mochila para o regresso. Carta de 20 de agosto, 1956 Quando vim, fiz um sortimento muito grande. Sempre precavida como a formiga da fábula... Carta de 20 de agosto, 1956 Todos lhe enviam carinhos. O meu é o maior e a minha saudade também é muito grande. Sua de sempre. Carta de 4 de agosto, 1957 O seu santo nome é citado aqui a granel. Sinto uma grande saudade de V. Carta de 7 de agosto, 1957 Que delícia V. sentir saudades de sua velha! Carta de 13 de setembro, 1959 Suas cartas têm causado um grande bem a esta sua companheira. Carta de 21 de setembro, 1959 Carloca, amado mio: ando com saudades de V. e sentindo falta de nosso convívio. Carta de 26 de junho, 1963 Gostei de ver a sua sociabilidade, recebendo os poucos amigos. Continue, meu caro. Carta de 7 de julho, 1963 157 Chegou agorinha sua carta do dia 5. V. é um amor, é o amor dos amores. Carta de 12 de julho, 1963 Sou insaciável – sem dinheiro e vendo coisas desvairadamente. Carta de 12 de julho, 1963 V. fará isto para mim, meu benzinho de candura, amarrado pela cintura? Carta de 30 de agosto, 1965 Marido muito amado e todo o meu bem querer: o que me importa que V. pese um pouco mais, um pouco menos. De qualquer forma eu gosto muito de V... Carta de 5 de setembro, 1965 Veja só o assanhamento de sua velha companheira. Carta de 5 de setembro, 1965 Eu quero muito bem a V. Mando-lhe carinhos, abraços, beijos e todo o meu coração cheiinho de saudades. Carta de 16 de setembro, 1965 De mim, V. tem o coração inteirinho, a grande ternura e todo o carinho. Carta de 21 de setembro,1965 Tome cuidado com a saúde, durma cedo e trabalhe parcimoniosamente. Carta de 11 de setembro, 1967 Todos mandam saudades para V. e eu todo o meu amor e o meu melhor pensamento, para o muñeco ausente e sempre presente. Carta de 21 de setembro, 1967 Eu, meu velho amigo, dou para V. o meu coração inteirinho, a saudade vasta e toda a minha ternura. Carta de outubro, 1967 158