As Vítimas-Algozes
Quadros da
Escravidão
Joaquim Manuel de Macedo
Em 1883, a obra Os Escravos é lançada. Consta
de compilação de poemas de Castro Alves. É um
livro póstumo, poeta baiano da 3ª geração
Romântica, de escrita apaixonada e grandiosa,
estilo pleno de metáforas inovadoras para a época.
Castro Alves representa uma terceira opinião na
discussão abolicionista que acontecia então e
dividia o país em torno da questão racial.
Mesmo com Leis que proibiriam o tráfico de
escravizados desde 1831, era constante a chegada
de pretos sob essa condição.
O aumento alarmante da quantidade de africanos
– o contingente numérico – começa a incomodar
as elites... Leis subsequentes eram feitas sem
efeito realizável, nem para o aplicador, tampouco
para o aplicado...
No Haiti, por volta de 1852, uma rebelião de
escravizados dizima todos os brancos da Ilha.
Este é o primeiro exemplo para os pretos, o
grande exemplo para os brancos.
A notícia se espalha rapidamente para os padrões
da época... Então o Brasil, último país a se ver
livre da escravidão começa, seriamente, a discutir
o processo.
Surgem então as três facções majoritárias na
discussão abolicionista.
A primeira delas é a vertente Escravocrata.
Acreditavam na Escravidão como meio
econômico. Eram os fazendeiros mais rudes, com
costumes colonizadores ainda arraigados em
suas concepções e práticas sociais. Eram maioria
e por tanto a parte mais importante a ser
convencida.
A segunda vertente sofre uma dicotomia. A partir
de conceitos similares, duas formas de abolir a
escravidão começaram a se debater para ver quem
seria posta em prática.
Baseando-se em conceitos Ilumimistas (Igualdade
– Liberdade – e Fraternidade), o Estado Brasileiro é
erigido. Mesmo assim, na prática, o país é agrário e
praticamente feudal em sua estrutura
organizacional.
Esse ideal Iluminista inspira homens como Castro
Alves, na Literatura, e José do Patrocínio, no
jornalismo e na política, a discutirem além da
abolição. A reparação de uma camada, de um povo.
Esta era uma das correntes abolicionistas... Mais
romântica, mais crente no homem...
A outra era uma corrente que também se baseava
em ideais iluministas... Inclusive no surgimento do
Liberalismo, na globalização do mercado... Era a
elite exportadora de fato, mais culta e mais viajada.
Esta corrente defendia claramente a abolição,
porém com um fim menos altruísta, queriam
libertar os escravizados por julgarem estar já
fazendo mal economicamente e socialmente.
Alegavam que as escravaturas eram dispendiosas
demais em sua manutenção. Já existiam máquinas,
então, ‘por que não libertar os “escravos” e sermos
indenizados pelo ato para garantir a economia e o
funcionamento do país, da pátria...?’...pois era
assim que pensavam.
- O povo viu que ter lutado pela independência não
mudou em nada sua condição...
Ainda somos um país que age hipocritamente...
Ainda continuamos a assimilar da forma mais
bizarra as diversas teorias e práticas estrangeiras...
Ainda hoje debatemos cotas..., debatemos
reparação para diversos setores da sociedade
brasileira... Este livro pontua o começo de um
processo longo, doloroso, cercado de manipulações
e revelador de uma máquina, de uma máquina
organizada, operante, que atua em nosso país...
E precisamos descobrir quem (ou o quê) move esta
máquina.
R. Mendes
Tragédia no Lar
Na senzala, úmida, estreita,
Brilha a chama da candeia,
No sapé se esgueira o vento
E a luz da fogueira ateia.
Junto ao fogo, uma Africana,
Sentada, o filho embalando,
Vai lentamente cantando
Uma tirana indolente,
Repassada de aflição.
E o menino ri contente...
Mas treme e grita gelado,
Se nas palhas do telhado
Ruge o vento do sertão.
Se o canto pára um momento,
Chora a criança imprudente...
Mas continua a cantiga...
E ri sem ver o tormento
Daquele amargo cantar.
Ai! triste, que enxugas rindo
Os prantos que vão caindo
Do fundo, materno olhar,
E nas mãozinhas brilhantes
Agitas como diamantes.
Os prantos do seu penar...
E a voz como um soluço lacerante
Continua a cantar:
“Eu sou como a garça triste
Que mora à beira do rio.
As orvalhadas da noite
Me fazem tremer de frio.
A cantiga cessou... Vinha da estrada
A trote largo, linda cavalhada
De estranho viajor.
Na porta da fazenda eles paravam,
Das mulas boleadas apeavam
E batiam na porta do senhor.
Figuras pelo sol tisnadas, lúbricas,
Sorrisos sensuais, sinistro olhar,
Os bigodes retorcidos,
O cigarro a fumegar,
O rebenque prateado
Do pulso dependurado,
Largas chinelas luzidas,
Que vão tinindo no chão,
E as garruchas embebidas
No bordado cinturão.
A porta da fazenda foi aberta;
Entraram no salão.
Por que tremes, mulher? A noite é calma,
Um bulício remoto agita a palma
Do vasto coqueiral,
Tem pérolas o rio, a noite lumes.
A mata sombras, o sertão perfumes,
Murmúrio o bananal.
Por que tremes, mulher? Que estranho crime,
Que remorso cruel assim te oprime
E te curva a cerviz?
O que nas dobras do teu vestido ocultas?
É um roubo que talvez aí sepultas?
É seu filho... Infeliz...
Ser mãe é um crime, ter um filho – roubo
Amá-lo uma loucura! Alma de lodo
Para ti – não há luz.
Tens a noite no corpo, a noite na alma,
Pedra que a humanidade pisa calma,
- Cristo que verga à cruz!
Na hipérbole do ousado cataclisma
Um dia Deus morreu... fuzia um prisma
Do Calvário ao Thabor!
Viu-se então de Palmyra os pétreos ossos,
De Babel o cadáver de destroços
Mais lívidos de horror.
Era o relampejar da liberdade
Nas nuvens do chorar da humanidade,
Ou Sarça do Sinai,
- Relâmpagos que ferem de desmaios...
Revoluções, vós deles sois os raios,
Escravos, esperai!...
................................................
Leitor, se não tens desprezo
De vir descer às senzalas,
Trocar tapetes e salas
Por um alcoice cruel,
Vem comigo, mas... Cuidado...
Que o teu vestido bordado
Não fique no chão manchado,
No chão do imundo bordel.
Não venhas tu que achas triste
Às vezes a própria festa.
Tu, grande, que nunca ouviste
Senão gemidos da orquestra...
Por que despertar tua alma,
Em sedas adormecida,
Esta excrescência da vida
Que ocultas com tanto esmero?
E o coração – tredo lodo.
Fazes de ânfora doirada
Negra serpe, que enraivada,
Morde a cauda, morde o
dorso,
E sangra às vezes piedade,
E sangra às vezes
remorso?...
Não venham esses que negam
A esmola ao leproso, ao pobre,
A luva branca do nobre
Oh! senhores, não mancheis ...
Os pés lá pisam em lama,
Porém as frontes são puras
Mas vós nas faces impuras
Tendes lodo, e luz nos pés.
Porém vós, que o lixo do oceano
A pérola de luz ides buscar,
Mergulhadores deste pego
insano
Da sociedade, deste tredo mar,
Vinde ver como resgam-se as entranhas
De uma raça de novos Prometeus,
Aí vamos ver guilhotinadas almas
Da senzala nos vivos mausoléus.
-Escrava, dá-me teu filho!
Senhores, Ide-lo ver:
É forte, de uma raça bem provada,
Havemos tudo fazer.
Assim dizia o fazendeiro, rindo,
E agitava o chicote...
A mãe que ouvia
Imóvel, pasma, doida, sem razão!
À Virgem Santa pedia
Com prantos por oração;
E os olhos no ar se erguia
Que a voz não podia não.
-Dá-me teu filho! Repetiu fremente
O senhor, de sobrolho carregado.
- Impossível!...
- Que dizes, miserável?!
Perdão senhor, meu filho dorme...
Inda há pouco o embalei, pobre inocente,
Que nem sequer pressente
Que ides...
- Sim, que o vou vender!
-Vender?!... Vender meu filho?!
Senhor, por piedade, não...
Vós sois bom... Antes do peito
Me arranqueis o coração!
Por piedade, matai-me! Oh!É impossível
Que me roubem da vida o único bem!
Apenas sabe rir... É tão pequeno!
Inda não sabe me chamar!... Também
Senhor, vós tendes filhos... Quem não tem?
Se alguém quisesse os vender
Havíeis muito de chorar,
Havíeis muito de gemer,
Diríeis a rir – Perdão?
Deixai meu filho... Arrancai- me, antes o
coração
Cala-te,miserável!Meus senhores,
O escravo podeis ver...
E a mãe em pranto aos pés dos mercadores
Atirou-se a gemer.
-Senhores! Basta a desgraça
De não ter pátria nem lar,
De ter honra e ser vendida,
De ter alma e nunca amar!
Deixai à noite que chora
Que espere ao menos a aurora,
Ao ramo seco uma flor;
Deixai o pássaro ao ninho,
Deixai à mãe o filhinho,
Deixai à desgraça ao amor.
Meu filho é-me a sombra amiga
Neste deserto cruel...
Flor de inocência e candura,
Favo de amor e mel!
Seu riso é minha alvorada,
Sua lágrima doirada
Minha estrela, minha luz!
É da vida, o único brilho...
Meu filho! é mais... é meu filho...
Deixai-mo em nome da cruz!...
Porém nada comove os homens de pedra,
Sepulcros onde é morto o coração.
A criança do berço ei-los arrancam
Que os bracinhos estende e chora em vão!
Mudou-se a cena. Já vistes
Bramir na mata o jaguar,
E no furor desmedido
Saltar, raivando atrevido,
O ramo, o tronco estalar,
Morder os cães que o morderam...
De vítima feita algoz,
Em sangue e horror envolvido
Terrível, bravo feroz?
Assim a escrava da criança ao grito
Destemida saltou
E a turba dos senhores aterrada
Ante ela recuou.
Nem mais um passo, covardes!
Nem mais um passo, ladrões!
Se os outros roubai as bolsas,
Vós roubais os corações!...
Entram três negros possantes,
Brilham punhais traiçoeiros...
Rolam por terra os primeiros
Da morte nas contorções.
................................................................
Um momento depois a cavalgada
Levava a trote largo pela estrada
A criança a chorar.
Na fazenda o azorrague então se ouvia
E aos golpes – uma doida respondia
Com frio gargalhar!...
Recife, julho de 1865 – Castro Alves
Judas queimado em Sábado de Aleluia
Debret
. Única solução possível para tais malhações
inesperadas: uma emancipação gradual dos
escravos com plena indenização para seus senhores
por parte do governo,
. Ameaça de cisão ideológica na classe
dominante,
. A necessidade de decretar ela mesma CONCESSÃO - a emancipação, antes que tal
pudesse se dar por meios mais cruentos, antes que
a nefasta influência de tais vítimas-algozes e de
ameaçadoras senzalas pudesse macular de modo
irremediável fazendas e sobrados brancos. “nossas
casas, nossas fazendas” – prefácio.
Estrutura & Estratégia
.Escrito em Parábolas - com mensagem edificante –
função apelativa- que propõem ao leitor uma única
conduta possível – monossemia, Livro Didático.
.É em direção ao documento e não à ficção que
Macedo procura encaminhar os seus quadros da
escravidão.
.O que justifica a ação narrada não é o enredo ou
o caráter dos personagens, mas a tese
emancipacionista e a afirmação de um perigo
negro crescente.
Teorias & Disfarces
A obra apresenta-se “sorrateiramente” humanista.
Há de notar a (des)construção de conceitos:
Darwinismo, Iluminismo...
Porém...
Há um “agenciamento” sobre a imagem do negro.
Vitimização da Elite
(Branca/proprietária/Eurocêntrica)
A oposição revela-se além da condição étnica.
Triplo Registro Histórico
1.Do esforço de coesão de uma camada social por
meio de uma literatura com alto índice de
exemplaridade e baixo de ficcionalidade;
2.De um temor senhorial crescente; e
3.Do cotidiano de “escravos” domésticos e rurais e
do crescimento da resistência negra, diretamente
proporcional ao desse pânico branco de seus
Simeões, feiticeiros e mucamas.
A culpa é do outro...
. Tese de que a junção do mundo dos brancos com o
mudo dos negros macularia personagens brancos.
. É necessário, então, criar e identificar esse outro
traidor [ escravo – não proprietário – estrangeiro ]
para que se possa afirmar, por contraste, a
superioridade e generosidade como traços
característicos dos senhores, fazendeiros e
herdeiros.
. Por isso que os personagens negros agem sempre
de dentro da casa.
Contra esse imenso mal procurai um recurso e
acreditareis ter achado dois em extremos opostos.
Um: vencer a maldade dos escravos pelo mimo do
trato e pela caridade e beneficência perseverantes:
engano; o ressentimento lógico e natural da escravidão
faz cedo ou tarde da protegida ingrata, que nunca
lembra os benefícios, antes escusa o esquecimento
deles, quando ao impulso do vício, da ambição
calculista, ou do desejo de abater a senhora, levanta os
olhos para o senhor, e desafia a sua sensualidade.
Outro: a severidade compressora e até mesmo cruel
para desanimar o atrevimento e conter a audácia: novo
engano, e pior que o outro: a compressão provoca a
reação, a crueldade, a vingança feroz, e além da
inconveniência do meio haveria em tal caso para os
senhores um peso da consciência, a ofensa da lei de
Deus e da humanidade na atribulação dos escravos.
Fora desses dois improfícuos recursos, nenhum mais: se
fizésseis instruir vossos escravos na religião dos seus
deveres, instrui-los-íeis também e necessariamente na
religião de seus direitos de homens, e teríeis educado e
preparado a resistência inteligente dos oprimidos.
Não há recurso pois: aquele imenso mal é, como outros
muitos, conseqüência irrecusável da escravidão e só
acabará com ela.
Paulo Borges, portanto, havia descido ao último grau da
ignomínia, e era já ostensivamente o amante de Esméria,
e trancava assim o caminho da prudência, e do
arrependimento por onde podia chegar à reconciliação
com a mãe de seus filhos.
Teresa afetava indiferença ou desprezo: ninguém lhe
ouvia jamais uma queixa, ou uma imprecação; mas
recolhida à solidão do seu gabinete, abraçava-se com os
filhos e por eles chorava noites inteiras.
O contágio supre o contacto imediato: a
escravidão influi sempre de perto ou de longe
maleficamente sobre a vida das donzelas,
perturbando e envenenando a educação dessas
pobres vítimas.
Agora a outra hipótese, que se realiza na regra
geral.
A negra escrava que aí vai passando
desapercebida, mal julgada e não temida,
espanta, alvoroça, aterra, quando a reflexão
pesa e avalia sua influência tenebrosa e fatal.
A regra é esta: toda família que não é indigente
ou pobre possui uma, algumas ou muitas
escravas, e uma dessas escravas é mucama da
filha, da menina da família e companheira
assídua da infeliz donzela, condenada às
infecções da peste da escravidão.
Em muitas casas a escrava mucama dorme perto do leito da
menina, senhora-moça, ou à porta do seu quarto. Em algumas
famílias esta prática imprudentíssima é banida; mas em todo caso a
mucama escrava toma conta da roupa da senhora-moça, ajuda-a a
despir-se e a vestir-se, é a conselheira do seu toucador, e na
costura a executora das modas dos seus vestidos, confidente
obrigada dos segredos das imperfeições do seu corpo que se
disfarçam, e das belezas de suas formas que se fazem sobressair.
A mucama escrava se recomenda pois à menina, e ganha toda sua
confiança pela importância delicada, e até certo ponto confidencial,
do mister que desempenha no toucador; a mucama, embora
escrava, é ainda mais do que o padre confessor e do que o médico
da donzela: porque o padre confessor conhece-lhe apenas a alma, o
médico ainda nos casos mais graves de alteração da saúde
conhece-lhe imperfeitamente o corpo enfermo, e a mucama
conhece-lhe a alma tanto como o padre, e o corpo muito mais do
que o médico.
A senhora-moça torna-se por isso muitas vezes dependente e quase
escrava da sua mucama escrava.
Compreendeis bem toda a extensão dos abusos, dos males, das
conseqüências perniciosas e até mesmo desastrosas, e às vezes
fatais e irremediáveis, que podem provir e que têm provindo da
influência das mucamas escravas sobre a educação, a moralidade, a
vida, o destino das donzelas?...
Educai como puderdes, o melhor e o mais santamente que é possível,
vossa filha; a par dessa educação que corrige os defeitos, aprimora
as qualidades, semeia e cultiva virtudes, a despeito dos mestres que
ensinam zelosos, a despeito de vossa esposa que solícita vigia, estará
ao pé de vossa filha uma hora só, alguns minutos apenas em cada
dia, uma escrava, e de sobra uma só, a sua mucama que com a
palavra, o gesto, o elogio, a lisonja, a indiscrição, a petulância, e a
protérvia dos seus vícios, dos vícios próprios da sua miserável
condição de escrava, comprometerá, arruinará o grande empenho do
vosso amor, plantará no coração de vossa filha a ciência do mal,
muito antes do prazo em que o mundo lha devia ensinar.
MACEDO, Joaquim Manuel de. As vítimas-algozes: quadros da
escravidão. 4. ed. São Paulo: Zouk, 2005. p.126, 127.
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