Falstaff e a Vontade de Vida
 Primeiro grande personagem de Shakespeare, onde a influência de
Marlowe está esmaecida em favor de um vitalismo encontrado na
Mulher de Bath de Chaucer. (Canterbury Tales)
 Falstaff é um Sócrates cômico; sábio que ao falar sorri
acolhedoramente.
 Apreendendo o ceticismo de Montaigne, Shakespeare fez de
Falstaff mais do que cético. Falstaff ensina como livrar-se das
amarras da sociedade, porém devota um único vínculo não-livre
em sua relação com o seu pupilo, príncipe Hal. Acompanhemos
esse “vitalismo” de Sir John:
Falstaff e a Vontade de Vida
Em plena batalha em Henrique IV parte 1, Fastalff se pergunta:
“A honra pode restituir uma perna? Não. Ou um braço? Não. Pode
acabar com a dor de uma ferida? Não. Então a honra não pode fazer
uma cirurgia? Não. O que é a honra? Uma palavra. O que há na palavra
“honra”? O que é essa “honra”? Vento. Que pechincha! Quem a tem?
Aquele que morreu na quarta-feira. Ele a sente? Não. Ele a ouve? Não.
Ela é imperceptível, então? Certo, para os mortos, com certeza. Mas ela
não vive com os vivos? Não. Por quê? A calúnia não permitiria. É por
isso que não quero nem um pouco dela.”
Falstaff e a Vontade de Vida
 Livre de quase todas as imposições que o cerca, Falstaff sofre do
récem-coroado Henrique V, seu aprendiz e protetor Príncipe Hal,
uma das falas mais duras de Shakespeare, uma verdadeira
sentença de morte:
 Quando vê o triunfo de Hal em Londres, Falstaff exclama: “Deus
te proteja, meu doce menino!”
 E obtém como resposta: “Não te conheço, velho,
Vai rezar.
Como caem mal as cãs a um palhaço bobo!
Muito tempo sonhei com um homem destes,
Inchado pelos excessos, tão velho, e tão profano;
Mas, acordado, renego do meu sonho.”
Rosalinda e a Persuasão
 Rosalinda é uma das mais talentosas e sábias das heroínas de
Shakespeare. No mundo quase utópico de “Como Gostais”, a
floresta de Arden, sem nenhum empecilho à sua liberdade,
Rosalinda realizará todos os seus intentos, mostrando-nos o poder
exorbitante da persuasão.
 Rosalinda está muito acima de Orlando na escala social e em
inteligência, porém, escolhendo-o como parceiro, propõe-se a
ensiná-lo como cortejá-la. (disfarçada de Ganimedes). Os bobos
Toque e Jaques, que Shakespeare reserva falas importantes,
Rosalinda simplesmente esmaga-os com sua retórica. Vamos ver
um exemplo...
Rosalinda e a Persuasão
Jaques: “Lindo jovem, desejo conhecer-te mais de perto.
Rosalinda: Dizem que sois um sujeito melancólico.
Jaques: De fato, prefiro isso a rir.
Rosalinda: As pessoas que se entregam a excesso, em qualquer caso, se tornam
detestáveis, sendo muito mais passíveis de censura do que os bêbedos.
Jaques: Ora! É bom a gente ficar triste e não dizer nada.
Rosalinda: Nesse caso é bom também ser poste.
Jaques: Não possuo nem a melancolia do sábio, que é emulação, nem a do músico,
que é fantástica, nem a do cortesão, que é simples orgulho, nem a do soldado, que
é ambiciosa, nem a do jurista, que é política, nem a das mulheres, que não passa de
faceirice, nem a dos namorados, que abrange todas elas; trata-se de uma melancolia
muito minha, composta de muitos simples, extraída de vários objetos, mais
propriamente a súmula de tudo o que contemplei em minhas viagens e que, por
mim sempre ruminada, me envolve na mais caprichosa das tristezas.”
Rosalinda e a Persuasão
E a sublime conclusão de Rosalinda...
Rosalinda: “Um viajante! Pois tendes razões de sobra para serdes triste;
receio muito que houvésseis vendido vossas terras para ver a dos outros;
Ter visto muito e nada possuir, equivale a ter olhos ricos e mãos pobres.
Jaques: Mas ganhei experiência.
Rosalinda: Experiência essa que vos deixa triste; preferira um bobo que
me alegrasse a uma experiência que me entristecesse. Viajar para isso!”
Rosalinda e a Persuasão
 Como Falstaff, Rosalinda toma o papel de educadora, e
desempenha-o com todo prazer. Apaixonada que sente
perfeitamente o absurdo da situação, dotada de uma harmonia
interna sobrenatural, Rosalinda mostra-nos como aceitar a
realidade de uma outra pessoa.
Overhearing
 Shakespeare descobriu vários dispositivos para dotar
seus
personagens
de
profundida
psicológica
incalculável. Cada um de seus grandes personagens é
um completo labirinto. Como isso foi possível?
 Seus personagens “ouvem” minuciosamente seus
próprios pensamentos, o que altera decisivamente a
próxima cadeia de pensamentos e ações, mostrandonos o próprio operar da razão. Acompanhemos esse
movimento:
Overhearing em Hamlet:
“Intenções são escravas da memória; Se o fado guia o amor, ou este o fado.
São fortes, mas têm vida transitória;
Se o grande cai, não mais possui amigos,
Qual fruto verde que se ostenta, duro, Sobe o pobre, e não tem mais inimigos.
E há de cair quando ficar maduro.
E tanto o amor à morte se escraviza
É fatal que esqueçamos de nos dar
Que amigos tem quem deles não precisa;
Que a nós mesmos temos de pagar:
Quem na dor prova o amigo que é tratante
Aquilo que juramos na paixão,
Prepara um inimigo nesse instante.
Finda a mesma, perdeu a ocasião.
Mas, para terminar como o começo,
A violência das dores e alegrias
Cada fato é à idéia tão avesso,
Destrói as suas próprias energias.
Que os planos ficam sempre insatisfeitos;
Onde há prazer, a dor põe seu lamento; As idéias são nossas, não os feitos.”
Se a mágoa ri, chora o contentamento.
O mundo não é firme, e é bem frequente
O próprio amor mudar constantemente;
E ainda está para ficar provado
Overhearing
 Nas últimas linhas deste trecho apreendemos muito do niilismo
de Hamlet: “Cada fato é à ideia tão avesso” - o que se pretente
realizar não têm necessariamente relação com o que se realiza. O
desejo é a todo momento aniquilado pelo destino. Ao incorporar
essa sabedoria, Hamlet hesita em praticar a vingança que
prometera ao fantasma de seu pai.
 Há uma pergunta que não cessa: O que sei? Segue-se uma
exposição do que se sabe, porém, relevando a atualização dos
novos atos engendrados nesse ínterim já que: “As ideias são
nossas, não os feitos”. Há um lapso essencial entre mundo e
mente, irreparável. Hamlet detém um poder espantoso de pensar
bem, porém é constrangido por esse próprio poder. Sua argúcia o
enclausura.
 Essa notória força centrífuga de construção da subjetividade pode
ser vista em todas as grandes obras de Shakespeare.
Opacidade Estratégica
 Shakespeare seria um mestre do distanciamento. Distanciamento
de que? Das peças de moralidade e de cultura popular. Da falta de
sensibilidade musical, da linguagem grosseira, duma métrica
arrastada e declamatória que fingia paixão. De atores amadores,
etc.
 Porém, Shakespeare descobriu mais um elemento para aprofundar
imensamente o efeito de suas peças, algo que obstrui o raciocínio
do público, ao suprimir as motivações ou os princípios éticos que
desencadeiam as ações que se seguem. Mais uma de suas técnicas
de distanciamento. Vamos ver como ela opera:
Opacidade Estratégica em Otelo
 A fonte para a obra Otelo é a obra homônima de Giambattista
Giraldi (conhecido como Cinthio) que escreve: “Sem levar em
conta a lealdade que tinha jurado a sua esposa nem a amizade, a
fidelidade e os favores que devia ao Mouro […] o perverso alferes
[Iago] apaixonou-se perdidamente por Desdêmona e dirigiu todos
os seus pensamentos para a tentativa de seduzi-la”
 Porém, Shakespeare suprime essa clara intenção de Iago em
seduzir Desdêmona, contida em sua fonte. No Otelo de
Shakespeare, as intenções do ódio são destiladas em várias
motivações, ou, até mesmo em nenhuma:
Opacidade Estratégica em Otelo
Iago: “Acredito que Cássio a ame
E é muito provável que ela o ame também.
E o Mouro, embora eu não o suporte,
É de uma natureza constante, amorosa, nobre
E ouso pensar que para Desdêmona
Será o mais terno marido. Mas eu também a amo.
Não por pura luxúria – muito embora
Confesse a culpa desse grande pecado –
Mas para saciar minha sede de vingança,
Pois tenho p´ra mim que o Mouro lascivo
Saltou em minha sela, e esse pensamento
Como mineral venenoso, me corrói as entranhas”
Opacidade Estratégica
 O que era uma motivação clara na fonte se tornou inúmeras,
sendo que nenhuma é totalmente convincente.
 Por mais que Iago tente justificar seu ódio, é nítida a fraqueza de
um princípio cabal que motiva sua ação. Daí o feliz comentário de
Coleridge: “a caça ao motivo com imotivada malignidade.”
 Ao ser desvendado como o terrível arquiteto de toda a tragédia
desenrolada, Iago, em sua última e cruel frase na peça declara:
“Não me pergunteis nada. O que sabeis, sabeis. De agora em
diante não direi mais nenhuma palavra.” A opacidade do motivo
será um elemento retórico usado em todas as grandes tragédias de
Shakespeare.
Conclusão: Shakespeare e o δαίμων
 Já ouvimos dizer que o que torna um autor imortal é sua
capacidade de articular o seu mundo particular com a
universalidade da condição humana.
 Shakespeare fez disso um tema ubíquo de sua produção, em
vários níveis: vê-se um contínuo entrelaçamento do sagrado
com o profano, cotidiano e místico, concretude e sonho.
 Os poderes sobrenaturais da imaginação e da inspiração
dramática são tão explorados, que vale a pena fazermos
uma pequena visita a Platão…
Shakespeare e o δαίμων
Trecho da obra Simpósio de Platão:
203a - “O Daemon interpreta e leva aos homens o que é próprio dos
seres-humanos e traz aos homens o que é próprio dos deuses. As
orações e os sacrifícios de uns, os mandamentos de outros e as
recompensas pelos sacrifícios! Situado entre uns e outros, preenche
este espaço intermédio, de maneira a manter unidas estas duas
partes de um todo. É dele que procede a arte divinatória, bem como,
as artes sacerdotais relativas aos sacrifícios, às iniciações, aos
encantamentos e a toda magia em geral. Os deuses não se
aproximam dos homens, e é por intermédio deste Daemon que os
deuses estabelecem comunicação com os homens, seja durante a
vigília, seja durante o sono. O homem que conhece estas coisas é de
caráter daemoniaco, inspirado, enquanto o homem que tem
engenho para fazer outra coisa, arte ou ofício, não passa de um
artífice. Os Daemons são em grande número, de muitas espécies e,
um deles, é Eros.”
Shakespeare e o δαίμων
 Shakespeare detém, ao longo de toda sua obra, uma
plena consciência de sua atividade transcendente,
mágica, a ponto de poder abandoná-la a seu bel prazer,
como faz Próspero, grande mago, ao quebrar sua
varinha mágica, em A Tempestade.
 Porém, ao mesmo tempo, retrata a realidade nua e
crua das distintas profissões, da vida campestre da sua
infância, e da linguagem popular, em cada meandro de
sua produção.
Shakespeare e o δαίμων
 O teatro apresenta dois elementos complementares:
uma mágica guiada pela imaginação, que faz a todos
transcenderem às coerções da realidade, e o outro,
totalmente humano que tem a ver com os trabalhos
duros e com a transformação do mundo real.
 A presença do comum em meio do extraordinário é
chave para o entendimento do sucesso de Shakespeare,
em seu tempo e ainda hoje. Nunca a porta da vida
comum seria fechada, mesmo nos momentos de maior
êxtase metafísico.
Shakespeare e o δαίμων
 É no sentido platônico que a obra de Shakespeare é
demoníaca: Ela está “Situada entre uns e outros
[mortais e deuses], preenche este espaço intermédio, de
maneira a manter unidas estas duas partes de um
todo.”
 Shakespeare caminha através da fronteira da
imaginação, alargando-a, e sem dúvida ferindo-a, ao
introjetar nela a crueza da realidade do mundo. A
sabedoria situa-se a meio termo entre a inspiração e o
prosaico.
"Um dia, quando não houver mais Grã-Bretanha, quando não
houver mais os Estados Unidos, quando pois, não existir mais a
língua inglesa, ainda sim, haverá Shakespeare. Falaremos
Shakespeare."
Machado de Assis
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A Arte Demoníaca de Shakespeare