GEOGRAFIA POLÍTICA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS Da Guerra Fria à Uni-Multipolaridade Como reconhecido por todos os analistas da cena internacional, a ordem mundial alterou-se radicalmente com os resultados da Segunda Guerra Mundial, quando dois processos de magnitude mundial atingem o núcleo e a periferia desse sistema. Primeiro, devido à configuração geopolítica que resultou dos acordos do pós-guerra (Conferência de Yalta), quando as duas maiores potências (circunstancialmente) aliadas no conflito estabeleceram os termos da partilha das suas respectivas esferas de influências. A União Soviética ampliou o seu domínio e estendeu-o até o centro da Europa (incluindo a porção oriental da Alemanha), enquanto os EUA assumiam o controle estratégico da porção ocidental do continente, do Atlântico e de boa parte da Bacia do Pacífico, após infligir ali uma pesada derrota às forças japonesas. Com o novo equilíbrio de poder envolvendo essas duas superpotências constituía-se, assim, essa nova ordem, desta feita de natureza bipolar, uma configuração geopolítica inédita na história das relações políticas entre as nações do mundo. Guerra Fria • Guerra da Coréia (1953) • Os países não-alinhados (1955) • Invasão da Hungria (1956) • Guerra de Suez (1956) • Crise dos Mísseis (1962) • Guerra do Vietnã (1966) • Invasão da Tchecoeslováquia (1968) • América Latina – golpes Outro aspecto que deve ser destacado nesse período do pós-guerra é a intensificação da crise e, na prática, o colapso do antigo e desgastado sistema colonial, processo estimulado pela combinação da ruína econômica e militar das metrópoles e pela rápida politização dos movimentos internos de diversos países, sobretudo no continente africano. Para alguns desses países, estavam dadas as condições para deflagrarem os seus movimentos de libertação nacional, mesclando-os mais ou menos explicitamente com projetos políticos inspirados no crescimento da influência do socialismo. Como resultado desses movimentos de emancipação, mais intensos durante os anos sessenta, a ONU que se consolidara no seu papel de estrutura funcional desse novo sistema, passou de 51 países-membros, quando da sua criação em 1945, para 120, em 1970. A criação da ONU em 1945 expressou a dupla face dessas transformações na política internacional. A primeira, porque representou a mais importante experiência de institucionalização desse sistema que superava desse modo a sua natureza de simples concertação interestatal. A segunda porque essa institucionalização mantinha e explicitava o novo equilíbrio de poder, no qual ficava preservado o papel proeminente das grandes potências, ao lado do reconhecimento formal do princípio que assegura a igualdade entre todos os estados soberanos, independentemente do seu poder. O Mundo em 1945 – segundo a ONU Países fundadores da ONU Outros territórios dependentes Países filiados à ONU após a criação do órgão Estados sob tratado especial com membro da ONU Territórios que em 1949 estavam sob administração da ONU Estados não-membros Territórios administrados pelo mandato da Liga das Nações Fonte:Organização das Nações Unidas Adesão à ONU (número de países) 60 57 50 43 40 32 30 25 23 20 10 7 5 0 40 - 50 50 - 60 60 - 70 70 - 80 Décadas 80 - 90 90 - 00 2000 - 05 Tomando o contexto político mundial do período 1945-1970 como sendo emblemático da constituição do que denominamos de uma ordem mundial contemporânea, cabe sublinhar alguns dos pressupostos e características predominantes dessa ordem, tentando apreender, ao menos, a sua peculiar natureza essencialmente bipolar e os contornos da sua transição atual. Os clássicos da teoria das relações internacionais modernas expressam um razoável consenso quanto aos seus pressupostos essenciais e, de modo geral, formularam as suas teorias justamente no ambiente político que se constituiu a partir dos anos trinta do século passado. Para eles, uma ordem internacional é a expressão das relações entre estados soberanos que operam as suas políticas externas com um duplo objetivo: em primeiro lugar, para assegurar – acima de tudo – os seus próprios interesses nacionais e; em segundo, para operar politicamente com vistas à manutenção de um equilíbrio de poder para, com ele, lograr operar em relativa segurança as suas políticas exclusivas ou aquelas compartilhadas com os seus aliados circunstanciais ou permanentes. Durante esse período de quatro décadas de características sem precedentes na história humana, o mundo como um todo esteve submetido às incertezas e aos riscos de um quadro de equilíbrio estratégico-militar que, na hipótese de que pudesse ser rompido por uma das partes, poderia ser desencadeado um conflito armado de proporções inéditas, envolvendo o emprego de artefatos termonucleares de enorme capacidade de destruição, cujas escala e conseqüências para toda a humanidade jamais foram devidamente estimadas por qualquer especialista. Daí que, do ponto de vista da história moderna das relações internacionais baseadas em um sistema de estados e em princípios como o equilíbrio do poder, a explosão das duas bombas atômicas pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em 1945, constituem eventos que simbolizam o início de uma nova era para o mundo. Alçada a um novo patamar com a tecnologia nuclear, a corrida armamentista entre as potências significava desta feita, pela primeira vez, a possibilidade concreta de que em um eventual conflito entre elas a própria sobrevivência da espécie estaria ameaçada. O ápice dessa corrida nuclear e das tensões ocorreu entre o início dos anos cinqüenta o final dos anos sessenta, durante o qual se sucederam diversos episódios que abalaram seriamente a estabilidade internacional e a segurança coletiva na escala mundial. Em 1949 a União Soviética promovia com sucesso o primeiro teste da sua bomba nuclear. Em 1951 os EUA testaram o seu primeiro artefato termonuclear, ou a bomba de hidrogênio, seguidos pela União Soviética, em 1952. Neste mesmo ano, a Grã-Bretanha entrará nesse clube e, em 1957 já possui também a sua bomba de hidrogênio, seguida pela França (1960 e 1968) e pela China (1964 e 1967). Dentre todas elas, a Europa Ocidental foi a que mais duramente sofreu os efeitos diretos dessas rivalidades, já que as fronteiras entre as áreas sob o domínio dos dois pólos de poder foram estabelecidas justamente na sua porção centro-oriental (mais uma vez), repartindo a Alemanha em duas (incluindo a sua antiga Capital, Berlim) mediante limites fortificados e com as tropas militares de cada lado postadas de forma agressiva nesse palco de tensões e conflitos potenciais. A Europa também representou o pretexto e o foco das preocupações das duas grandes potências, quando estas estruturaram as alianças militares correspondentes a cada um dos blocos antagônicos, a OTAN e o Pacto de Varsóvia. Finalmente, será nesse continente que cada um dos lados também instalará ali parte relevante do seu poder de fogo, com destaque para os artefatos nucleares posicionados em mísseis de médio alcance e direcionados para atingir não apenas o continente europeu, como também parte da Ásia e a América. Episódios como a guerra da Coréia, de 1952 a 1954, a Revolução Cubana, em 1959, a chamada crise da Baía dos Porcos em Cuba (tentativa da URSS de instalar ali uma bateria de mísseis), em 1962, a guerra do Vietnã (1968-1975) e a eclosão de inúmeros movimentos nacionais de descolonização na África e na Ásia, são representativos das situações nas quais as fricções de intensidades variadas se repetiram, envolvendo boa parte das regiões do mundo, especialmente nas bordas dos respectivos sistemas político-territoriais de influência de cada um das potências mundiais. A maioria dos analistas dessa ordem internacional atribui justamente a essa permanente e eficaz política de contenção praticada sistematicamente pelas superpotências, a relativa estabilidade mundial durante os anos da vigência da Guerra Fria, pois, diferentemente de outros períodos históricos, nos quais o equilíbrio de poder e a estabilidade sempre dependeram dos movimentos nem sempre previsíveis de um grupo de grandes potências européias com projetos políticos em geral pouco convergentes, nesse caso, os riscos globais de um confronto nuclear terminaram por se constituir, paradoxalmente, na melhor garantia da paz, conforme assinala Raymond Aron: “Sem dúvida o efeito mais visível do armamento termonuclear foi dissuadir as duas superpotências de chegar à guerra total, incitando-as à moderação, obrigando-as a respeitar mutuamente seus interesses vitais. A tese otimista da paz pelo terror (ou pelo menos, a limitação das guerras pelo medo ao apocalipse termonuclear), fundamenta-se na experiência da humanidade desde o fim da Segunda Grande Guerra.” Apesar dessa aparência de inflexibilidade, abrangência, eficiência, estabilidade e perenidade demonstrada pela ordem bipolar sustentada no período da Guerra Fria, ela também estava sujeita, como as outras que a precederam, às forças de dissolução associadas à imprevisibilidade da dinâmica da política internacional, sempre presentes ao longo da história dos estados modernos. No caso em particular, como podem e devem ser procurados e examinados os pontos vitais de vulnerabilidade e ineficiência desse sistema internacional ou, posto em outros termos, as suas linhas de fratura mais expostas, e as suas próprias contradições que o desgastariam nas suas áreas vitais e acabariam por conduzi-lo, afinal, a um irreversível processo de desestabilização e à sua posterior bancarrota? A questão crucial é que em sistemas desse tipo há um preço a pagar, imposto pelo sistemático funcionamento dessa lógica: a cada passo nessa expansão, tenderão a crescer na mesma proporção os desafios representados pelo controle e a gestão dos territórios, populações e sistemas culturais e políticos crescentemente diversificados. Agrava esse quadro, o fato de que esse crescimento também ampliará as distâncias entre a periferia e o hard core desses mega-impérios. Especialmente em sistemas comandados por uma explícita política de poder, ou seja, pela preponderância da força militar, é previsível que o exercício de um controle permanente em territórios remotos requererá uma logística complexa e de grande escala, em condições, portanto, de enfrentar os movimentos centrífugos, ou seja, as reivindicações por autonomia de todos os tipos, as rebeliões, ou mais explicitamente as revoltas separatistas, muitas delas ocorrendo justamente nas bordas do seu largo espaço de domínio. Em suma, para arranjos político-territoriais com tais características é praticamente inescapável que a sua expansão e manutenção promovam, ao mesmo tempo, o desenvolvimento das contra-forças e dos fatores que poderão um dia minar as suas bases, conduzindo-os ao declínio e à sua própria dissolução. Em segundo, em nenhum sistema internacional sob a hegemonia de uma ou mais potências a sua expansão e consolidação resultou no desaparecimento das chamadas médias potências ou potências regionais, fato que demonstra, em última hipótese, que a construção e a manutenção de um equilíbrio entre os principais pólos de poder possam ter que conviver com um eventual e indesejável processo de descentralização que poderá expressar-se mediante a dissonância ou a aspirações e projetos de “autonomia estratégica” de uma ou mais delas. Guardadas as devidas proporções, uma potência média envolvida em um projeto de construção da sua autonomia no interior de um sistema marcado pela inflexibilidade, não deixa de representar, no presente, o papel equivalente ao de um reino, de um principado ou de uma “província rebelde” no âmbito dos antigos impérios. Daí que seria praticamente impossível para uma ordem internacional contemporânea – como a bipolar, por exemplo - evitar que pudessem florescer nas suas fímbrias e bordas experiências de diversos tipos e intensidades, compreendendo novos e antigos estados de expressão média, e que de algum modo estivessem envolvidos com projetos nacionais de projeção do poder nos seus respectivos contextos regionais. Trata-se de processo que revela, mesmo que muitas vezes de forma sutil, a forte tendência de desenvolver um movimento policêntrico nas camadas inferiores àquela na qual operam com exclusividade as potências de primeira ordem. Em terceiro, é lógica e empiricamente improvável que uma ordem internacional contemporânea como a bipolar, que era formada por uma grande, hierarquizada e diversificada constelação de estados soberanos (muitos dos quais com a independência recém-conquistada), pudesse ser estruturada e comandada à moda dos antigos sistemas de tipo imperial, isto é, a partir de um nível máximo de rigidez que pudesse se refletir horizontalmente – em toda a extensão do espaço político mundial – e verticalmente – em todas as camadas da hierarquia de poder político dos estados. A rigor, uma estrutura de rigidez absoluta como essa só poderia ser concebida enquanto um modelo teórico puramente imaginário, pois nenhum sistema político – nacional ou internacional – desse tipo teria condições reais de existência. Ainda que fosse possível uma experiência em que ele pudesse ali ser eventualmente testado, construindo-o intencionalmente em uma situação-limite de máxima contração, ou seja, segundo a lógica e os elementos típicos de um estado unitário, hiper-centralizado e absolutamente totalitário, por exemplo, os resultados demonstrariam a ocorrência de condições nas quais se manteriam ou seriam alavancados movimentos de natureza excêntrica e de diversas intensidades nessa estrutura, na qual as fissuras não tardariam a se fazer presentes. Em síntese, esse hipotético modelo político-territorial não prosperaria, pois a natureza intrinsecamente diversa e dinâmica dos arranjos político-culturais locais e regionais se encarregaria com o tempo de inviabilizá-lo, na prática. Caso se tentasse transpor esse modelo para os sistemas internacionais, demonstrar-se-ia ainda mais evidente a sua inadequação teórica e prática, pois nesses casos a inspiração e a força motriz dos movimentos excêntricos e a ocorrência das inevitáveis fissuras na sua estrutura político-territorial, derivarão não apenas de princípios e aspirações de autonomia sob diversas formas, mas em um nível superior de complexidade, da própria soberania dos estados. Martin Wight sintetiza de forma simples e contundente esse movimento: “Eles eram militarmente ineficazes, mas enquanto os blocos comunista e ocidental estivessem em equilíbrio no que se refere ao poderio atômico, eles poderiam esperar, de alguma forma, manejar o equilíbrio de poder. Censuravam, contudo, mais o imperialismo ocidental, que haviam experimentado, do que o imperialismo soviético, que só conheciam por dele terem ouvido falar. Tinham a tendência de identificar as potências ocidentais com o passado, e as potências comunistas, com todas as suas falhas, com o futuro, ao qual eles próprios pertenceriam. Eram também revolucionários, reivindicavam uma mudança no status quo, pois guardavam rancor da diferença cada vez maior entre os padrões de vida deles próprios e da minoria privilegiada da espécie humana que vivia na América do norte e na Europa Ocidental, que constitui um sexto da população mundial, mas que possui um terço da riqueza. Isto lhes deu uma comunhão de perspectiva com as potências comunistas contra o Ocidente conservador, além de um duplo padrão para julgar as duas grandes potências, o que acabou por se tornar mais um fator na guerra fria.” A primeira é que na história das relações entre política e território, talvez nenhum outro período tenha ilustrado de forma mais eloqüente a predominância de um generalizado quadro de disjunções entre fronteiras políticas e fronteiras étnicoculturais. Nesse processo, grupos étnicos de todos os tipos e inúmeras comunidades tribais primitivas africanos que jamais haviam colocado para si próprios o imperativo de se constituírem em comunidades políticas nacionais territorialmente definidas, mediante fronteiras precisas (naquele seu significado que possuem para o estado soberano europeu clássico), acabaram sendo segregadas ou confinadas – com o emprego de mecanismos explícitos de coerção externa - em compartimentos territoriais diversos e sob o domínio de uma ou mais administrações coloniais. Com isso, segundo a sua lógica e de modo arbitrário, o domínio colonial implantou na África uma particular configuração geopolítica que se sobrepôs de modo cruel a uma diversidade cultural que abrangia 700 grupos étnicos e 1.200 línguas. Segundo Michel Foucher, que elaborou um notável estudo sobre esses e outros temas relacionados às questões fronteiriças em todo o mundo, mais da metade de todas as fronteiras da África e da Ásia foram implantadas pela Inglaterra e pela França, as duas mais importantes potências coloniais de todos os tempos e quase 90% do total desses traçados na África foram feitos entre 1895 e 1910, ou seja, em um período de apenas quinze anos. A segunda reforça a nossa convicção de que todas as fronteiras nacionais são artificiais por excelência, uma qualidade que lhes é intrínseca, e que é demonstrada sistematicamente pelos fatos que acompanham a história da constituição dos estados soberanos e das relações que estes estabelecem entre si – o sistema de estados ou o sistema internacional – um processo que indica a predominância da natureza política das fronteiras ou, mais especificamente, da sua natureza geopolítica. Logo, que elas constituem linhas e zonas com estabilidade e perenidade relativas e, por vezes, provisórias, pois sempre serão o resultado dos direitos conquistados (a maior parte deles pela violência das guerras) adquiridos ou acordados por dois ou mais estados. Por conseguinte, as fronteiras são configurações ao mesmo tempo jurídicas e geopolíticas por excelência, pois os seus traçados sempre dependerão de resultados mutuamente acordados mediante tratados específicos. Em suma, sejam elas rígidas, fortificadas, flexíveis, porosas ou abertas, as fronteiras tendem a manter esse seu significado primordial para o exercício da soberania dos estados nacionais. Colonização da África Descolonização da África Asia divided: conflict in the middle of the nineteenth century Fonte: World Bank, 2009 Essa identidade terceiro-mundista que de certo modo opunha-se à lógica de poder do sistema bipolar fortaleceu-se e a original estratégia política desse grupo de países culminou com a realização da importante Conferência Afro-Asiática de Bandung, em 1955, na qual foi explicitada essa posição frente às questões políticas e de desenvolvimento em geral no mundo e, sobretudo, foram lançadas ali as raízes do que viria a se constituir no movimento dos países não-alinhados (fundado em 1962) e na criação do chamado Grupo dos 77 na política internacional. Outro evento que provocou um forte abalo nos fundamentos desse sistema foi representado pela revolução socialista na China, país que em 1949, tornou-se uma República Socialista, após mais de uma década de guerra civil com forte conteúdo ideológico. Apesar de tratar-se ainda de um país pobre e basicamente camponês, muitos analistas da cena internacional rapidamente observaram que pela sua grande dimensão territorial, população numerosa, força militar expressiva e um regime político altamente centralizado, estava emergindo uma nova potência regional na Ásia com amplas possibilidades – e certamente com aspirações políticas - de atuar de modo decisivo no cenário internacional. Assim, enquanto em uma das frentes de atuação, concentrava-se em um claro esforço de posicionar-se de forma autônoma face às duas potências hegemônicas, em outra, explicitava sem rodeios os seus objetivos de hegemonia no seu espaço geopolítico regional. Neste caso, e em um movimento que tirava evidente proveito da sua vantagem comparativa diante do Japão - o seu proverbial oponente na região e que havia sido praticamente destruído pela guerra – a China projetou rapidamente as suas políticas de poder no Sudeste Asiático, envolvendose diretamente na Guerra da Coréia (1952-1954) e na Guerra do Vietnã (1968-1975), em ambas alinhando-se incondicionalmente às forças comunistas. No primeiro evento, postou-se ao lado da URSS em apoio aos comunistas do norte, enfrentando as tropas norte-americanas e seus aliados, ali enviadas sob o manto institucional do Conselho de Segurança da ONU. No segundo, apoiou abertamente a frente popular liderada pelos comunistas, forjada nas lutas nacionais de libertação contra a França e, em seguida, contra a intervenção norte-americana. Países Não-Alinhados A origem do Movimento pode ser encontrada na Conferência ÁsiaÁfrica realizada em Bandung, Indonésia, em 1955. A convite dos primeiros-ministros da Birmânia (hoje Mianmar), do Ceilão (hoje Sri Lanka), da Índia, da Indonésia e do Paquistão, dirigentes de 29 países, quase todos ex-colônias dos dois continentes, reuniram-se para debater preocupações comuns e coordenar posições no campo das relações internacionais. O primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru, juntamente com os primeiros-ministros Sukarno (da Indonésia) e Gamal Abdel Nasser (Egito), presidiu a sessão. No encontro, líderes do então assim chamado Terceiro Mundo puderam compartilhar as suas dificuldades em resistir às pressões das grandes potências, em manter a sua independência e em opor-se ao colonialismo e ao neocolonialismo. Os acontecimentos dessa época revelam que estava em curso um duplo movimento de largo espectro e longa duração e que seria capaz de moldar a configuração básica das relações internacionais contemporâneas. O primeiro, é aquele representado pela acelerada mundialização dos processos especificamente econômicos, políticos, político-territoriais e estratégico militares, decorrente do alargamento, sem precedentes na história, do número e da capacidade de ação dos estados-nações a partir dos anos cinqüenta. O segundo, é aquele associado à formidável diferenciação do espaço político mundial que apesar da sua rigidez, decorrente de uma ordem bipolar nos aspectos essenciais da repartição e do equilíbrio de poder vigentes, tornou-se viável pelo desenvolvimento simultâneo de uma estrutura razoavelmente hierarquizada e nem sempre coordenada, graças, sobretudo, à existência de uma órbita próxima ao centro, ocupada pelas potências médias e regionais e por outra – periférica - ocupada por mais de uma centena de novos estados, a maioria dos quais com as suas independências recém-conquistadas. Além disso, a combinação entre as histórias regionais particulares e esse processo de mundialização hierarquizada produziu, também, uma nova regionalização do mundo, do ponto de vista econômico e políticoterritorial. Ela impulsionou mudanças baseadas em antigas relações de solidariedade, de competição ou de animosidades entre grupos, nações, dinastias e impérios, e que foram substituídas por aquelas vinculadas à nova configuração política mundial, na qual passou a predominar, além das grandes potências com o seu antagonismo estrutural, uma constelação de estados soberanos com as suas novas redes de relações políticas que serão a expressão, em cada caso, dos seus alinhamentos e das posições e prioridades estratégicas nas suas respectivas regiões. Esse processo de mudanças vai intensificar-se nos anos setenta, marcados por um conjunto de eventos de grande repercussão internacional. Em 1972 ocorre a primeira alteração de monta na antiga e rígida estrutura do sistema bipolar com a celebração do acordo bilateral – diplomático, político e comercial - entre os EUA e a China, um evento que tem sido considerado como um dos mais notáveis das relações internacionais contemporâneas, já que representou a aproximação das duas grandes potências com notórias rivalidades no plano regional asiático e pavimentou, assim, o longo caminho da distensão política mundial e da integração chinesa na economia mundial, processos que se intensificariam a partir da década seguinte. O terceiro é simbolizado pelo início das negociações entre as duas grandes potências visando o controle e a limitação das suas armas nucleares, em um explícito movimento na direção de uma distensão – a détente - nessa ordem internacional, desde o início da Guerra Fria. Sob esse aspecto, deve-se registrar o importante papel da ONU nesse processo, com diversas iniciativas, como a criação da Comissão de Energia Atômica, em 1946 e da Agência Internacional de Energia Atômica, em 1956, culminando pelo Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, em 1968, que passou a vigorar em 1970. É nesse novo ambiente, que a partir de meados da década, os EUA e a União Soviética iniciam as negociações bilaterais visando à redução dos seus respectivos arsenais (o SALT), inaugurando o período da chamada “coexistência pacífica” entre as duas potências em especial durante o governo de Richard Nixon nos EUA. O quarto pode ser associado ao notável crescimento econômico da Europa Ocidental, impulsionado principalmente pelo apoio norte-americano na sua reconstrução do pós-guerra - o Plano Marshall – e pelos efeitos positivos da constituição do Mercado Comum Europeu, formalizado em 1957. Neste caso, os papéis políticos proeminentes da França e da Alemanha foram decisivos, motivadas que estavam, sobretudo, por uma estratégia comum que visava superar a sua secular rivalidade no continente e, ao mesmo tempo, estabelecer uma audaciosa articulação política e econômica que lhes assegurasse condições para construir, no futuro, um projeto próprio na sua região de referência. Em outros termos, definia-se ali um projeto particularmente europeu que, malgrado as limitações impostas pela sua sensível posição de fronteira entre os dois principais pólos de poder (ou especialmente por isso), pudesse vir a se constituir mais tarde em um caminho próprio de autonomia estratégica. O quinto é representado, como já mencionado, pelo surgimento de novas potências médias e a sua projeção política e estratégica nas respectivas regiões, fato que confirmou uma tendência que se esboçara desde os anos cinqüenta e que é um aspecto destacado do já citado processo de diferenciação do espaço político mundial. Além da China, no Sudeste Asiático, devem ser registrados os casos da Índia, da Turquia, da África do Sul e do Brasil, um grupo de países que pela sua expressão econômica, importância política ou político estratégica, ou mesmo pela combinação dessas vantagens comparativas, passou a exercer papéis de liderança regional, chegando alguns deles a capitanear processos futuros de constituição de blocos regionais de comércio ou de integração mais ampla. É inegável, portanto, que diversas nações e regiões do mundo (a Europa, o Japão e alguns países do Sudeste Asiático e da América do Sul, principalmente) que souberam tirar proveito de uma situação internacional onde elas pouco contavam em termos dos encargos estratégico-militares de manutenção da ordem, puderam beneficiar-se da nova onda de investimentos de capitais industriais a partir dos anos sessenta e iniciar ciclos mais ou menos dinâmicos de desenvolvimento econômico e de modernização em geral. Esse processo de transformações da ordem mundial contemporânea teve a sua culminância com os eventos políticos que abalaram os seus pilares durante os anos oitenta e particularmente na passagem para os anos noventa. Como temos tentado apontar nesta breve análise da sua evolução, é mister que especialmente em se tratando dos fenômenos da política internacional, a observação e a análise dos mais decisivos vetores de mudanças que nela operam não se restrinjam aos momentos da sua plena manifestação, ou eclosão, como se estivéssemos diante dos eventos sísmicos que subitamente atingem a crosta terrestre. Na modalidade de evento dessa amplitude também deve ser incluída a propagação dos impactos causados pela entrada em cena de um novo ator na política internacional, que está associado aos primeiros sinais do que se poderia hoje denominar sociedade civil internacional, um dos fenômenos mais significativos das transformações dessa passagem de século e de milênio. Algumas características desse processo têm sido exaustivamente apontadas pelos analistas da nossa época. Trata-se da emergência de grupos e movimentos políticos que estão estreitamente relacionados à consolidação da democracia nos países centrais do mundo ocidental ou capitalista a partir dos anos sessenta – principalmente - e como decorrência, do fortalecimento das suas próprias sociedades civis nacionais, processo que de modo geral se expandirá para a periferia desse sistema durante os anos oitenta e noventa. Ao mesmo tempo, a revolução das comunicações de massa na escala mundial contribuiu para que esse processo envolvesse a disseminação de valores políticos (que Kant chamaria de civilizacionais) que, ao transpor as fronteiras nacionais, viessem a constituir valores universais – como a própria democracia e os direitos humanos, por exemplo - que formaram a base comum que ainda hoje impulsiona esse novo e ampliado ator político coletivo que passou a atuar crescentemente sob a forma de um movimento transnacional. Uma das suas raízes pode ser encontrada, ainda nos anos setenta, nos movimentos de parcelas variadas das sociedades nacionais de contestação ao envolvimento dos seus países com as guerras, nos quais se tornaram emblemáticas as jornadas de protesto dos estudantes norteamericanos contra a guerra do Vietnã. No final da década de setenta, ampliou-se também consideravelmente na Europa o sentimento de rejeição à corrida armamentista – sobretudo a nuclear – envolvendo especialmente a juventude da Alemanha, da França e da Inglaterra. Esse sentimento plasmou nos jovens desses países um vigoroso movimento pela paz em três anos seguidos (de 1980 a 1982), com jornadas memoráveis envolvendo milhões de participantes provavelmente os maiores movimentos de massa da época - e com objetivos políticos abrangentes: o desarmamento em geral, a retirada imediata dos mísseis nucleares da Europa e especialmente da Alemanha e a autonomia dos países do continente frente à rivalidade das duas grandes potências. Ao eleger os riscos globais da ameaça nuclear como o seu foco principal, essa mobilização estava expressando, também, a ampliação de uma consciência ecológica que já se esboçara na Conferência Mundial de Meio Ambiente promovida pela ONU em Estocolmo, em 1976, e que se consolidaria na década seguinte como mais um dos temas globais que deram impulso à atuação dessa nova sociedade civil na escala mundial. Na esteira desse formidável movimento pela paz dos jovens europeus, nascia na Alemanha o Partido Verde, considerada a primeira organização política no mundo com tais características e, ao mesmo tempo, surgiram as Organizações Não-Governamentais no Continente e nos EUA, cujo campo de atuação se concentraria principalmente nos temas do meio ambiente e dos direitos humanos. Nos países integrantes das regiões de influência direta dos EUA, como a América do Sul e o Sudeste Asiático, diversos movimentos a partir do final dos anos setenta foram deflagrados pelas sociedades civis nacionais tendo como foco a democratização dos seus respectivos regimes políticos, processo nos quais se destacaram países como o Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Coréia do Sul, Indonésia, Filipinas e Tailândia. Tais movimentos expressavam, no seu conjunto, uma extraordinária experiência política que significava, no fundo, a tentativa de reversão de uma estrutura de domínio estratégico-militar e de controle políticoideológico conduzido por essa grande potência nessas regiões periféricas do mundo, estabelecida na esteira da armação geopolítica do pós-guerra, enquanto parte da sua sofisticada estratégia de contenção face à ameaça comunista. A Crise da Ordem Bipolar e a Transição para a Ordem Global Esse ambiente de efervescência da política internacional do final dos anos setenta e ao longo dos oitenta atingiu duramente o chamado mundo socialista sob a esfera de influência direta da União Soviética. Nessa grande potência, em especial, a ascensão ao poder de um grupo liderado por Mikchail Gorbachov estava disposto a iniciar reformas políticas e econômicas estruturais – a Glasnot e a Perestroika - que fossem capazes de promover um processo de acelerada modernização do país e que era, a seu ver, a única alternativa que lhes restava para enfrentar as crescentes ameaças de declínio e de dissolução, representadas, sobretudo, pelos movimentos centrífugos das suas diversas repúblicas, regiões e povos diversos, os descontentamentos da população com as crises de abastecimento e as condições de vida, a ausência de liberdades políticas e o atraso e a crise de setores vitais da sua economia, como era o caso da agricultura. O auge da crise e a conseqüente dissolução desse sistema envolveram primeiramente a sua órbita de influência direta, conhecida como o Leste Europeu. Iniciou-se pela Iugoslávia, uma república federativa socialista sui generis integrada por cinco antigas nacionalidades dos Bálcãs que se associaram após a Segunda Guerra Mundial, e que foi violentamente abalada e desintegrada pelas rivalidades entre as diversas facções após a perda do seu líder histórico, Joseph Tito. Na Polônia, fortalecia-se a mobilização política nacional, em torno das aspirações de autonomia, simbolizada no chamado movimento operário Solidariedade, nascido nos estaleiros de Gdanski e, posteriormente, concretizada na eleição de Lech Valessa para Presidente do país. Na Tcheco-Eslováquia e na Hungria também eram registrados diversos movimentos de descontentamento com os seus respectivos regimes políticos e o domínio soviético, enquanto que na Romênia, seu burlesco e decadente governo ditatorial agonizava a olhos vistos. Estimulados pela abertura política e a crise da principal potência do Bloco, os movimentos nacionais de contestação a esses regimes alcançaram níveis incontroláveis a partir de 1988, quando se transformaram rapidamente em mobilização de multidões que forçaram os seus governos a promover diversas e infrutíferas tentativas de reformas políticas. Sem poder contar com o apoio de Moscou e carentes de qualquer forma de legitimidade interna, caíram um após o outro, engolfados que foram por uma fulminante, abrangente e pacífica onda de rupturas políticas e ideológicas sem precedentes na história política mundial, no qual se tornaram emblemáticos – por toda a sua carga de significados históricos e políticos – eventos como o colapso da Alemanha Oriental, a queda do Muro de Berlim, a retirada das tropas do Pacto de Varsóvia e o início da reunificação alemã, em 1989. Os dois anos seguintes foram marcados pelo aprofundamento do quadro de crise da União Soviética, até o seu colapso formal, em dezembro de 1991. Fracassava, assim, a tentativa (tardia) de implantar as reformas estruturais e com isso, desintegrava-se a enorme federação socialista de 15 repúblicas e regiões e que envolvera durante setenta anos mais de uma centena de povos em um território com 22 milhões de Km2. Com isso, a federação russa volta a ocupar a sua antiga posição geopolítica na Eurásia e, ao mesmo tempo, todo o sistema de estadosnações inicia a sua lenta e complexa transição do socialismo para a economia de mercado. Um grupo de antigos e novos liberais norte-americanos mais entusiasmados com esses acontecimentos decidiu tornar público de imediato a sua justificada euforia, e isso foi feito de forma emblemática pela rápida manifestação de um dos mais conhecidos e controvertidos desses scholars, o norte-americano Francis Fukuyama. Ainda em 1989, o ano-chave desses eventos, ele publicou um paper na revista The National Interest (The End of History?) mais tarde transformado em livro, no qual expõe a sua interpretação sobre o conjunto das transformações especificamente no campo dos valores e das instituições políticas que estavam de algum modo afetando o mundo como um todo. No lado oposto desse campo de debates, os intelectuais de esquerda em geral, e especialmente os marxistas ortodoxos, declararam-se perplexos e, alguns deles, preferiram calar-se, interromper ou refrear a sua reflexão e a sua até então intensa produção. O exemplo de Immanuel Wallerstein é típico desse comportamento. Afinal, trata-se de intelectual altamente criativo, discípulo das idéias de Fernand Braudel e com uma extensa e qualificada obra sobre o capitalismo contemporâneo e que havia, por exemplo, proposto e desenvolvido os notáveis conceitos de economia-mundo e de sistema-mundo. Ao que tudo indica, entretanto, ele não possuía essas mesmas virtudes acadêmicas no campo das análises das sempre complexas e imprevisíveis questões da política. Basta mencionar que menos de uma década antes do colapso do socialismo real, ele afirmava que sendo o capitalismo e a burguesia forças combinadas e mundiais, a sua destruição deveria envolver a criação de um movimento político operário de escala transnacional. Como vimos, superada a Guerra Fria, as idéias liberais renovaram-se, os seus intelectuais de modo geral abandonaram o esquematismo do velho liberalismo realista, mas eles ainda evitam as utopias da paz universal kantiana. Esse novo liberalismo é certamente mais universalizante e pacifista que aquele dos clássicos e esse analista renovado é, sobretudo, um atento observador da crescente complexidade de um mundo que além de mais globalizado, demonstra a crescente importância das instituições para o funcionamento de uma ordem democrática interna e que se projeta de forma crescentemente abrangente nas relações externas. O seu mais conhecido e prestigiado representante na atualidade é Joseph Nye, autor de diversos livros e papers que têm sido publicados regularmente em revistas de grande prestígio da área como a Foreign Affairs. Ele aprofunda a noção dos neo-realistas de que na atualidade há uma forte tendência de que se aproximem mais as relações entre o que se desenvolve no interior das sociedades nacionais democráticas e no âmbito específico das políticas internacionais. Além disso, põe em relevo a enorme complexidade atual da nova ordem mundial que combina a atuação de macro-processos como a globalização econômica e o crescimento nas últimas décadas de um sistema que integra os estados e os novos atores políticos. Sustenta por isso que para melhor compreender esse novo mundo, é preciso “inverter” as postulações sacralizadas e os desgastados modelos realistas, que permanecem presos à antiga tríade que comandaria as relações internacionais: “Os estados não são os únicos atores importantes – os atores transnacionais a operarem através das fronteiras são igualmente intervenientes importantes; a força não é o único instrumento significativo – a manipulação econômica e a utilização de instituições internacionais são os instrumentos mais importantes; a segurança não é um fim dominante – o bem estar é o objetivo dominante. Podemos apelidar este mundo anti-realista de interdependência complexa”. A análise das novas formas assumidas pela política internacional e a emergência de uma ordem global na virada dos anos oitenta para noventa, também foram temas examinados por diversos autores da chamada Escola Construtivista, cuja característica principal é a sua conhecida tendência universalista de raiz kantiana e a sua oposição geral ao realismo. Sob certo aspecto, o próprio Joseph Nye e muitos outros analistas da atualidade, como o prestigiado Robert Keohane, também poderiam ser considerados como representantes das diversas vertentes do que se denomina genericamente de construtivismo. De modo geral, os seus integrantes distinguem-se pela dedicação ao estudo dos temas relacionados à complexidade dos mecanismos de regulação internacional e, dentre eles, especialmente aqueles edificados nos últimos anos no âmbito das instituições multilaterais ou supranacionais. Sob a liderança intelectual de James Rosenau, um intelectual que pode ser considerado como o seu pioneiro, ainda no início dos anos noventa, um grupo desses especialistas publicou dois trabalhos que são considerados os mais representativos desse pensamento sobre a ordem internacional. Na apresentação da sua segunda coletânea, publicada em 1992, era evidente o entusiasmo de Rosenau com os novos tempos que vislumbrava para as relações internacionais: “No momento em que as hegemonias declinam, as fronteiras (e os muros que as selam) desaparecem, quando nas cidades de todo o mundo as praças estão repletas de cidadãos que desafiam as autoridades, quando as alianças militares perdem sua viabilidade (para mencionar apenas algumas das muitas mudanças que estão transformando a política mundial), as perspectivas da ordem e da governança mundiais tornaram-se um tema transcendente... Sente-se que o curso da história chegou a um ponto de mutação, oportunidade para que o movimento no sentido da cooperação pacífica, da expansão dos direitos humanos e da elevação dos padrões de vida são pouco menos evidentes do que as perspectivas de um agravamento dos conflitos de grupos, a deterioração dos sistemas sociais e das condições ambientais“. Por essa percepção, uma nova ordem global requer um novo sistema de regulação que certamente envolveria aqueles que se encontram em funcionamento, como os estados nacionais e as suas constituições e as instituições multilaterais e as suas regras, mas também o estabelecimento de formas alternativas de concertação política internacional que sejam capazes de incluir os novos atores globais e os seus temas diversos, como as organizações não-governamentais e, por exemplo, os direitos humanos e o meio ambiente. Essa governança global, ele argumenta, também é necessária para assegurar o funcionamento do novo sistema político mundial, já que no caso dos governos nacionais, uma parte da sua autoridade tem sido transferida para as entidades sub-nacionais e, quanto às instituições internacionais, elas certamente não se encontram preparadas para assumir os novos desafios colocados pela globalização. Para ele, a transição atual pode ser examinada em seu duplo significado: se ela for observada unicamente em seus aspectos sistêmicos tradicionais, isto é, como sendo ainda um prevalecente sistema anárquico de estados soberanos, poder-se-á concluir que estaria havendo apenas uma mudança de forma, isto é, que os estados na atual conjuntura apenas teriam diminuído a sua agressividade potencial no relacionamento com os demais e demonstrando, assim, uma maior disposição para a cooperação entre eles. Inversamente, se o sistema for examinado naquilo que possui de inovador, observar-se-á uma mudança de qualidade nessa ordem, decorrente da menor ênfase na “competência dos estados, na globalização das economias nacionais, na fragmentação das sociedades em subgrupos étnicos, religiosos, políticos, lingüísticos e de nacionalidade, no advento dos temas transnacionais que levam à criação de autoridades desse nível...”. São processos que estariam induzindo – ou conduzindo - os estados para um novo tipo de comportamento, com uma atuação, de certo modo, menos impositiva. A pedra de toque da análise dos construtivistas, portanto, é a sua compreensão de que independentemente da forma definitiva assumida pela nova ordem mundial, o sistema internacional clássico baseado exclusivamente nas relações inter-estatais encontra-se em declínio e é imperativo substituí-lo por formas de governança que correspondam mais adequadamente às novas exigências globais. Não se trata, como poderia parecer à primeira vista, de imaginar um sistema no qual os estados fossem alijados ou substituídos por outras organizações públicas ou privadas, ou mesmo submetidos a um hipotético “governo mundial”. Eles continuariam sendo os atores mais relevantes da política internacional, mas tendo que atuar cada vez mais em um ambiente institucional mundial governado por uma abrangente e complexa teia de instituições, normas jurídicas, compromissos e, além disso, com a atuação de uma “sociedade civil” que se movimentaria de forma cada vez mais organizada - e ruidosa - em torno especificamente das questões dessa escala (global). Mark Zacher, um outro especialista desse grupo, ressalta que um dos fatos incontestáveis da atualidade é que os estados já se encontram há algum tempo enredados em sistemas diversos de controle, ou em formas diversas de constrangimentos que limitam consideravelmente as suas soberanias: : “De uma perspectiva puramente legal, os estados mantém, ainda, o direito soberano de não estarem obrigados por qualquer acordo internacional apoiado pela maioria ou até mesmo por todos os outros estados. No entanto, na prática, eles se encontram cada vez mais emaranhados em uma rede de interdependência e de arranjos regulatórios ou de colaboração, da qual geralmente não se podem livrar. Esse quadro confirma o julgamento de Harold Jacobsen de que ‘a analogia apropriada para descrever o sistema político global contemporâneo é a de estados presos em redes de organizações internacionais’....E igualmente não é mais válido descrever o sistema internacional em termos de bolas de bilhar colidindo umas com as outras, a não ser que se imaginem essas bolas ligadas por cordões de resina, limitando o seu movimento em qualquer direção. Na verdade, o sistema internacional, como o processo de transformação histórica, pode ser descrito como viscoso.” A esse respeito, e na linha de análise do autor, podemos acrescentar que segundo dados da ONU, entre 1946 e 2003 foram firmados pelos estados mais de 50.000 Tratados Internacionais, sendo que 32 deles constituem grandes acordos multilaterais, celebrados, em sua maioria, na última década e meia e abrangendo as áreas dos direitos humanos, desarmamento, meio ambiente, saúde humana, refugiados políticos, legislação marítima, direito penal, corrupção, crime organizado e terrorismo. Como se pode ver, são tratados que refletem claramente os temas típicos dessa nova ordem. A ONU e o Equilíbrio do Poder Assembléia Geral: 193 países-membros Conselho de Segurança: 15 membros Permanentes com direito de veto: 5 (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França); Proposta de Reforma do CS: 25 países-membros, sendo 11 permanentes O Conselho de Segurança das Nações Unidas é um órgão da Organização das Nações Unidas cujo mandato é zelar pela manutenção da paz e da segurança internacional. É o único órgão do sistema internacional capaz de adotar decisões obrigatórias para todos os Estados-membros da ONU, podendo inclusive autorizar intervenção militar para garantir a execução de suas resoluções. O Conselho é conhecido também por autorizar o desdobramento de operações de manutenção da paz e missões políticas especiais. O Conselho de Segurança é composto por 15 membros, sendo 5 membros permanentes com poder de veto: os Estados Unidos, a França, o Reino Unido, a Rússia (ex-União Soviética) e a República Popular da China. Os demais 10 membros são eleitos pela Assembleia Geral para mandatos de 2 anos. Uma resolução do Conselho de Segurança é aprovada se tiver maioria de 9 dos quinze membros, inclusive os cinco membros permanentes. Um voto negativo de um membro permanente configura um veto à resolução. A abstenção de um membro permanente não configura veto. Existem discussões sobre a reformulação do Conselho de Segurança, que apresenta um desequilíbrio em seus membros na nova ordem mundial. O desequilíbrio de forças se deve, principalmente, à ausência do Japão e da Alemanha (respectivamente, terceira e quarta maiores economias do planeta), nações que, por terem sido derrotadas na Segunda Guerra Mundial, ficaram fora do núcleo do Conselho. Alemanha, Brasil, Japão e Índia formaram o G-4 e apresentaram uma proposta para expandir o Conselho para 25 membros, com mais cinco permanentes além dos atuais. Os novos membros permanentes seriam assim divididos: Dois membros da Ásia (Japão e Índia); Um membro da América Latina (Brasil); Um membro da Europa Central (Alemanha); Um membro da África. Nos últimos anos, um grupo de autores nos EUA, liderados por Robert Keohane, tem procurado aprofundar essa visão que pode ser genericamente identificada com o construtivismo, mas que seria mais propriamente uma espécie de neo-construtivismo. Eles apontam, por exemplo, a importância das fortes tendências atuais de articulação entre as novas instituições democráticas que estariam moldando tanto as políticas nacionais como as internacionais. Para esses analistas, é evidente que se encontra em curso em boa parte dos países democráticos do mundo e nas suas relações internacionais, o que chamam de um novo institucionalismo político, que tem sido basicamente ilustrado, por exemplo, pela multiplicação e a eficácia das normas jurídicas que regulam as relações entre os estados, as empresas e as organizações em geral, bem como pela criação ou a consolidação de instituições jurídicas multilaterais, a exemplo das Cortes de Justiça internacionais e, especialmente, a européia que é tomada como emblemática nesse caso. Em síntese, para os adeptos dessa visão sobre a ordem internacional a partir das suas tendências de globalização, tanto pela sua evolução ao longo das últimas décadas, quanto pelo conjunto de mudanças em curso naquela conjuntura, estavam dadas as premissas e as condições políticas e institucionais básicas para a construção de uma nova concertação na qual pudesse edificar-se um sistema de governança global que fosse capaz de assegurar níveis mais elevados de gestão dessa ordem, vis-a-vis aqueles referenciados exclusivamente ao antigo sistema de estados, fossem eles bipolares ou multipolares. Essa euforia e o otimismo decorrentes daquele clima de “pós-guerra” e da aparentemente incontestável vitória do liberalismo ocidental e das teorias construtivistas nas relações internacionais, não eram compartilhados por alguns analistas daquela conjuntura, fossem eles velhos ou novos realistas ou construtivistas menos entusiasmados que os seus colegas mais radicais. Esse era o caso de Samuel Huntington, um dos mais prestigiados analistas internacionais do seu país e que se tornaria o mais polêmico dentre o grupo dos céticos com relação a esse novo cenário mundial. Ainda no calor dos eventos do colapso da Guerra Fria, ele veio a público para contrariar essa tendência de otimismo e apontar com grande convicção (como fizera o seu conterrâneo Isahia Bowman oitenta anos antes) os novos e potenciais cenários de crises e de riscos para o Ocidente e especialmente os EUA na nova ordem internacional que apenas se esboçava. Em 1993, ele publicou um paper na revista Foreign Affairs (The Clash of Civilizations) que teve repercussão equivalente ao de Halford Mackinder em 1904, em parte pela originalidade e ousadia das suas análises e também porque os leitores estavam diante de um intelectual, que reconhecidamente conservador, possuía sólida experiência adquirida em muitos anos de pesquisas sobre as relações internacionais. Estimulado pelos comentários críticos e pelo apoio às suas idéias, o autor transformou aquele artigo em livro, que foi publicado em 1996. Em trabalho anterior Huntington mostrara-se de acordo com a idéia de que com o fim da Guerra Fria, o mundo ingressara (ou reingressara) em uma ordem multipolar. Diversamente da antiga moldura das relações internacionais, entretanto, ele detecta uma qualidade nova na política mundial, na qual os fatores político-culturais ou civilizacionais adquiriram, pela primeira vez, uma importância extraordinária na história da humanidade, ou seja, emergira nessa transição um mundo ao mesmo tempo multipolar e multicivilizacional. Nesse cenário, ele adverte, o fato do Ocidente e das idéias liberais que lhes correspondem mostrarem-se vitoriosos (uma crítica a Fukuyama) em um contexto mais geral, não o livra das ameaças de outras regiões e povos do mundo que, segundo ele não se engajarão em conflitos movidos pelos valores e as ideologias que estavam implícitas ou explícitas na confrontação entre os EUA e a União Soviética, mas pelos seus respectivos e particulares conjuntos de valores, ressentimentos ou pela simples resistência ao avanço ocidental sobre o mundo e as suas culturas e civilizações. Para ele, ao contrário das expectativas de paz duradoura desses anos, as incertezas e os perigos representados pelas tendências de desintegração e re-agregação, os conflitos locais e nacionais de natureza étnica e religiosa, a violência e as práticas de genocídio, tudo isso agravado pela demonstrada incapacidade da ONU e da única superpotência de assegurarem a ordem nas diversas regiões do mundo, são todos os acontecimentos que, combinados, rapidamente compuseram um cenário que apenas confirmava as suas sombrias previsões no seu paper de três anos atrás. Além do mais, argumenta, esse quadro de insegurança e de potencial anarquia estava agravado pelo fato de que apesar dos estados que emergiram nesse PósGuerra Fria ainda se comportarem basicamente em torno de objetivos de poder e de constituir os atores principais nos assuntos mundiais, eles enfrentam condições extremamente adversas nessa nova ordem, já que passaram a ser submetidos às novas e poderosas forças da globalização e a ter assim as suas soberanias expostas continuamente aos desgastes das pressões internacionais, principalmente aquelas provenientes das grandes empresas e dos organismos supranacionais. Nesse novo cenário, aumentam os riscos potenciais e reais à segurança individual e coletiva, pois o enfraquecimento dos estados em geral impede-os de enfrentá-los de modo efetivo, tolhidos que se encontram nos seus espaços de manobra e nas condições de ação na política externa. Enfim, os estados encontram-se agora diante de inevitável redução do seu poder e, portanto, da sua antiga e proverbial capacidade de ordenar e regular em geral ou, no limite, de oferecer a indispensável proteção às populações ou de prevenir e solucionar os conflitos nos seus respectivos territórios e nas suas regiões de influência. Por essa sua via de análise, agrava esse quadro o fato de que em muitos casos, a política externa dos estados também estaria sendo moldada por valores culturais e civilizacionais51, isto é, eles agora tenderão a adotar um novo comportamento e a estabelecer as suas estratégias de alinhamentos e antagonismos não apenas em função dos seus clássicos cálculos de poder, mas também, dos laços de solidariedade que mantêm com os demais no sistema internacional. Sob essa perspectiva, portanto, o mundo estaria mais precisamente transitando de um sistema bipolar para um sistema claramente multipolar e multicivilizacional, no qual, de um lado, posicionar-se-ia o Ocidente (que ele considera em declínio) e, de outro, o resto do mundo em expansão e crescentemente organizado a partir dos valores e objetivos das suas seis ou sete civilizações atualmente dominantes. Não há, portanto, elementos que sustentem o clima de otimismo reinante em círculos da elite ocidental, à qual ele dá o nome de Cultura de Davos, que denota uma compreensão a seu ver parcial e equivocada, baseada no pressuposto de que os homens de empresa, governo e instituições - e a sua cultura - que ali se reúnem anualmente representariam de fato a complexidade cultural do mundo contemporâneo.