GEOGRAFIA POLÍTICA E RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Da Guerra Fria à Uni-Multipolaridade
Como reconhecido por todos os analistas da cena internacional, a ordem
mundial alterou-se radicalmente com os resultados da Segunda Guerra
Mundial, quando dois processos de magnitude mundial atingem o núcleo e a
periferia desse sistema. Primeiro, devido à configuração geopolítica que
resultou dos acordos do pós-guerra (Conferência de Yalta), quando as duas
maiores potências (circunstancialmente) aliadas no conflito estabeleceram os
termos da partilha das suas respectivas esferas de influências.
A União Soviética ampliou o seu domínio e estendeu-o até o centro da Europa
(incluindo a porção oriental da Alemanha), enquanto os EUA assumiam o
controle estratégico da porção ocidental do continente, do Atlântico e de boa
parte da Bacia do Pacífico, após infligir ali uma pesada derrota às forças
japonesas. Com o novo equilíbrio de poder envolvendo essas duas
superpotências constituía-se, assim, essa nova ordem, desta feita de natureza
bipolar, uma configuração geopolítica inédita na história das relações políticas
entre as nações do mundo.
Guerra Fria
• Guerra da Coréia (1953)
• Os países não-alinhados (1955)
• Invasão da Hungria (1956)
• Guerra de Suez (1956)
• Crise dos Mísseis (1962)
• Guerra do Vietnã (1966)
• Invasão da Tchecoeslováquia (1968)
• América Latina – golpes
Outro aspecto que deve ser destacado nesse período do pós-guerra é a
intensificação da crise e, na prática, o colapso do antigo e desgastado
sistema colonial, processo estimulado pela combinação da ruína econômica
e militar das metrópoles e pela rápida politização dos movimentos internos
de diversos países, sobretudo no continente africano.
Para alguns desses países, estavam dadas as condições para deflagrarem
os seus movimentos de libertação nacional, mesclando-os mais ou menos
explicitamente com projetos políticos inspirados no crescimento da
influência do socialismo. Como resultado desses movimentos de
emancipação, mais intensos durante os anos sessenta, a ONU que se
consolidara no seu papel de estrutura funcional desse novo sistema,
passou de 51 países-membros, quando da sua criação em 1945, para 120,
em 1970.
A criação da ONU em 1945 expressou a dupla face dessas transformações
na política internacional. A primeira, porque representou a mais importante
experiência de institucionalização desse sistema que superava desse
modo a sua natureza de simples concertação interestatal.
A segunda porque essa institucionalização mantinha e explicitava o novo
equilíbrio de poder, no qual ficava preservado o papel proeminente das
grandes potências, ao lado do reconhecimento formal do princípio que
assegura a igualdade entre todos os estados soberanos,
independentemente do seu poder.
O Mundo em 1945 – segundo a ONU
Países fundadores da ONU
Outros territórios dependentes
Países filiados à ONU após a criação do órgão
Estados sob tratado especial com membro da ONU
Territórios que em 1949 estavam sob administração da ONU
Estados não-membros
Territórios administrados pelo mandato da Liga das Nações
Fonte:Organização das Nações Unidas
Adesão à ONU
(número de países)
60
57
50
43
40
32
30
25
23
20
10
7
5
0
40 - 50
50 - 60
60 - 70
70 - 80
Décadas
80 - 90
90 - 00
2000 - 05
Tomando o contexto político mundial do período 1945-1970 como sendo
emblemático da constituição do que denominamos de uma ordem mundial
contemporânea, cabe sublinhar alguns dos pressupostos e características
predominantes dessa ordem, tentando apreender, ao menos, a sua peculiar
natureza essencialmente bipolar e os contornos da sua transição atual.
Os clássicos da teoria das relações internacionais modernas expressam um
razoável consenso quanto aos seus pressupostos essenciais e, de modo geral,
formularam as suas teorias justamente no ambiente político que se constituiu a
partir dos anos trinta do século passado.
Para eles, uma ordem internacional é a expressão das relações entre estados
soberanos que operam as suas políticas externas com um duplo objetivo: em
primeiro lugar, para assegurar – acima de tudo – os seus próprios interesses
nacionais e; em segundo, para operar politicamente com vistas à manutenção de um
equilíbrio de poder para, com ele, lograr operar em relativa segurança as suas
políticas exclusivas ou aquelas compartilhadas com os seus aliados circunstanciais
ou permanentes.
Durante esse período de quatro décadas de características sem precedentes na
história humana, o mundo como um todo esteve submetido às incertezas e aos
riscos de um quadro de equilíbrio estratégico-militar que, na hipótese de que
pudesse ser rompido por uma das partes, poderia ser desencadeado um conflito
armado de proporções inéditas, envolvendo o emprego de artefatos termonucleares
de enorme capacidade de destruição, cujas escala e conseqüências para toda a
humanidade jamais foram devidamente estimadas por qualquer especialista.
Daí que, do ponto de vista da história moderna das relações internacionais
baseadas em um sistema de estados e em princípios como o equilíbrio do poder, a
explosão das duas bombas atômicas pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki, no
Japão, em 1945, constituem eventos que simbolizam o início de uma nova era para
o mundo. Alçada a um novo patamar com a tecnologia nuclear, a corrida
armamentista entre as potências significava desta feita, pela primeira vez, a
possibilidade concreta de que em um eventual conflito entre elas a própria
sobrevivência da espécie estaria ameaçada.
O ápice dessa corrida nuclear e das tensões ocorreu entre o início dos
anos cinqüenta o final dos anos sessenta, durante o qual se sucederam
diversos episódios que abalaram seriamente a estabilidade internacional e
a segurança coletiva na escala mundial.
Em 1949 a União Soviética promovia com sucesso o primeiro teste da sua
bomba nuclear. Em 1951 os EUA testaram o seu primeiro artefato
termonuclear, ou a bomba de hidrogênio, seguidos pela União Soviética,
em 1952. Neste mesmo ano, a Grã-Bretanha entrará nesse clube e, em
1957 já possui também a sua bomba de hidrogênio, seguida pela França
(1960 e 1968) e pela China (1964 e 1967).
Dentre todas elas, a Europa Ocidental foi a que mais duramente sofreu
os efeitos diretos dessas rivalidades, já que as fronteiras entre as áreas sob o
domínio dos dois pólos de poder foram estabelecidas justamente na sua
porção centro-oriental (mais uma vez), repartindo a Alemanha em duas
(incluindo a sua antiga Capital, Berlim) mediante limites fortificados e com as
tropas militares de cada lado postadas de forma agressiva nesse palco de
tensões e conflitos potenciais.
A Europa também representou o pretexto e o foco das preocupações das duas
grandes potências, quando estas estruturaram as alianças militares correspondentes
a cada um dos blocos antagônicos, a OTAN e o Pacto de Varsóvia. Finalmente, será
nesse continente que cada um dos lados também instalará ali parte relevante do seu
poder de fogo, com destaque para os artefatos nucleares posicionados em
mísseis de médio alcance e direcionados para atingir não apenas o continente
europeu, como também parte da Ásia e a América.
Episódios como a guerra da Coréia, de 1952 a 1954, a Revolução Cubana, em 1959,
a chamada crise da Baía dos Porcos em Cuba (tentativa da URSS de instalar ali
uma bateria de mísseis), em 1962, a guerra do Vietnã (1968-1975) e a eclosão de
inúmeros movimentos nacionais de descolonização na África e na Ásia, são
representativos das situações nas quais as fricções de intensidades variadas
se repetiram, envolvendo boa parte das regiões do mundo, especialmente nas
bordas dos respectivos sistemas político-territoriais de influência de cada um
das potências mundiais.
A maioria dos analistas dessa ordem internacional atribui justamente a essa
permanente e eficaz política de contenção praticada sistematicamente pelas
superpotências, a relativa estabilidade mundial durante os anos da vigência
da Guerra Fria, pois, diferentemente de outros períodos históricos, nos quais
o equilíbrio de poder e a estabilidade sempre dependeram dos movimentos
nem sempre previsíveis de um grupo de grandes potências européias com
projetos políticos em geral pouco convergentes, nesse caso, os riscos
globais de um confronto nuclear terminaram por se constituir,
paradoxalmente, na melhor garantia da paz, conforme assinala Raymond
Aron:
“Sem dúvida o efeito mais visível do armamento termonuclear foi dissuadir
as duas superpotências de chegar à guerra total, incitando-as à moderação,
obrigando-as a respeitar mutuamente seus interesses vitais. A tese otimista
da paz pelo terror (ou pelo menos, a limitação das guerras pelo medo ao
apocalipse termonuclear), fundamenta-se na experiência da humanidade
desde o fim da Segunda Grande Guerra.”
Apesar dessa aparência de inflexibilidade, abrangência, eficiência,
estabilidade e perenidade demonstrada pela ordem bipolar sustentada no
período da Guerra Fria, ela também estava sujeita, como as outras que a
precederam, às forças de dissolução associadas à imprevisibilidade da
dinâmica da política internacional, sempre presentes ao longo da história
dos estados modernos.
No caso em particular, como podem e devem ser procurados e examinados
os pontos vitais de vulnerabilidade e ineficiência desse sistema
internacional ou, posto em outros termos, as suas linhas de fratura mais
expostas, e as suas próprias contradições que o desgastariam nas suas
áreas vitais e acabariam por conduzi-lo, afinal, a um irreversível processo
de desestabilização e à sua posterior bancarrota?
A questão crucial é que em sistemas desse tipo há um preço a pagar, imposto pelo
sistemático funcionamento dessa lógica: a cada passo nessa expansão, tenderão a
crescer na mesma proporção os desafios representados pelo controle e a gestão
dos territórios, populações e sistemas culturais e políticos crescentemente
diversificados. Agrava esse quadro, o fato de que esse crescimento também
ampliará as distâncias entre a periferia e o hard core desses mega-impérios.
Especialmente em sistemas comandados por uma explícita política de poder, ou
seja, pela preponderância da força militar, é previsível que o exercício de um
controle permanente em territórios remotos requererá uma logística complexa e de
grande escala, em condições, portanto, de enfrentar os movimentos centrífugos, ou
seja, as reivindicações por autonomia de todos os tipos, as rebeliões, ou mais
explicitamente as revoltas separatistas, muitas delas ocorrendo justamente nas
bordas do seu largo espaço de domínio.
Em suma, para arranjos político-territoriais com tais características é praticamente
inescapável que a sua expansão e manutenção promovam, ao mesmo tempo, o
desenvolvimento das contra-forças e dos fatores que poderão um dia minar as
suas bases, conduzindo-os ao declínio e à sua própria dissolução.
Em segundo, em nenhum sistema internacional sob a hegemonia de uma ou mais
potências a sua expansão e consolidação resultou no desaparecimento das
chamadas médias potências ou potências regionais, fato que demonstra, em última
hipótese, que a construção e a manutenção de um equilíbrio entre os principais
pólos de poder possam ter que conviver com um eventual e indesejável processo de
descentralização que poderá expressar-se mediante a dissonância ou a aspirações e
projetos de “autonomia estratégica” de uma ou mais delas.
Guardadas as devidas proporções, uma potência média envolvida em um projeto de
construção da sua autonomia no interior de um sistema marcado pela inflexibilidade,
não deixa de representar, no presente, o papel equivalente ao de um reino, de um
principado ou de uma “província rebelde” no âmbito dos antigos impérios.
Daí que seria praticamente impossível para uma ordem internacional contemporânea
– como a bipolar, por exemplo - evitar que pudessem florescer nas suas fímbrias e
bordas experiências de diversos tipos e intensidades, compreendendo novos e
antigos estados de expressão média, e que de algum modo estivessem envolvidos
com projetos nacionais de projeção do poder nos seus respectivos contextos
regionais.
Trata-se de processo que revela, mesmo que
muitas vezes de forma sutil, a forte tendência de
desenvolver um movimento policêntrico nas
camadas inferiores àquela na qual operam com
exclusividade as potências de primeira ordem.
Em terceiro, é lógica e empiricamente improvável que uma ordem
internacional contemporânea como a bipolar, que era formada por uma
grande, hierarquizada e diversificada constelação de estados soberanos
(muitos dos quais com a independência recém-conquistada), pudesse ser
estruturada e comandada à moda dos antigos sistemas de tipo imperial,
isto é, a partir de um nível máximo de rigidez que pudesse se refletir
horizontalmente – em toda a extensão do espaço político mundial – e
verticalmente – em todas as camadas da hierarquia de poder político dos
estados.
A rigor, uma estrutura de rigidez absoluta como essa só poderia ser
concebida enquanto um modelo teórico puramente imaginário, pois
nenhum sistema político – nacional ou internacional – desse tipo teria
condições reais de existência.
Ainda que fosse possível uma experiência em que ele pudesse ali ser
eventualmente testado, construindo-o intencionalmente em uma situação-limite
de máxima contração, ou seja, segundo a lógica e os elementos típicos de um
estado unitário, hiper-centralizado e absolutamente totalitário, por exemplo, os
resultados demonstrariam a ocorrência de condições nas quais se manteriam
ou seriam alavancados movimentos de natureza excêntrica e de diversas
intensidades nessa estrutura, na qual as fissuras não tardariam a se fazer
presentes.
Em síntese, esse hipotético modelo político-territorial não prosperaria, pois a
natureza intrinsecamente diversa e dinâmica dos arranjos político-culturais
locais e regionais se encarregaria com o tempo de inviabilizá-lo, na prática.
Caso se tentasse transpor esse modelo para os sistemas internacionais,
demonstrar-se-ia ainda mais evidente a sua inadequação teórica e prática, pois
nesses casos a inspiração e a força motriz dos movimentos excêntricos e a
ocorrência das inevitáveis fissuras na sua estrutura político-territorial, derivarão
não apenas de princípios e aspirações de autonomia sob diversas formas, mas
em um nível superior de complexidade, da própria soberania dos estados.
Martin Wight sintetiza de forma simples e contundente esse movimento:
“Eles eram militarmente ineficazes, mas enquanto os blocos comunista e ocidental
estivessem em equilíbrio no que se refere ao poderio atômico, eles poderiam
esperar, de alguma forma, manejar o equilíbrio de poder. Censuravam, contudo,
mais o imperialismo ocidental, que haviam experimentado, do que o imperialismo
soviético, que só conheciam por dele terem ouvido falar. Tinham a tendência de
identificar as potências ocidentais com o passado, e as potências comunistas, com
todas as suas falhas, com o futuro, ao qual eles próprios pertenceriam.
Eram também revolucionários, reivindicavam uma mudança no status quo, pois
guardavam rancor da diferença cada vez maior entre os padrões de vida deles
próprios e da minoria privilegiada da espécie humana que vivia na América do norte
e na Europa Ocidental, que constitui um sexto da população mundial, mas que
possui um terço da riqueza.
Isto lhes deu uma comunhão de perspectiva com as potências comunistas contra o
Ocidente conservador, além de um duplo padrão para julgar as duas grandes
potências, o que acabou por se tornar mais um fator na guerra fria.”
A primeira é que na história das relações entre política e território, talvez nenhum
outro período tenha ilustrado de forma mais eloqüente a predominância de um
generalizado quadro de disjunções entre fronteiras políticas e fronteiras étnicoculturais.
Nesse processo, grupos étnicos de todos os tipos e inúmeras comunidades tribais
primitivas africanos que jamais haviam colocado para si próprios o imperativo de se
constituírem em comunidades políticas nacionais territorialmente definidas, mediante
fronteiras precisas (naquele seu significado que possuem para o estado soberano
europeu clássico), acabaram sendo segregadas ou confinadas – com o emprego de
mecanismos explícitos de coerção externa - em compartimentos territoriais diversos
e sob o domínio de uma ou mais administrações coloniais.
Com isso, segundo a sua lógica e de modo arbitrário, o domínio colonial implantou
na África uma particular configuração geopolítica que se sobrepôs de modo cruel a
uma diversidade cultural que abrangia 700 grupos étnicos e 1.200 línguas.
Segundo Michel Foucher, que elaborou um notável estudo sobre
esses e outros temas relacionados às questões fronteiriças em todo
o mundo, mais da metade de todas as fronteiras da África e da Ásia
foram implantadas pela Inglaterra e pela França, as duas mais
importantes potências coloniais de todos os tempos e quase 90%
do total desses traçados na África foram feitos entre 1895 e 1910,
ou seja, em um período de apenas quinze anos.
A segunda reforça a nossa convicção de que todas as
fronteiras nacionais são artificiais por excelência, uma
qualidade que lhes é intrínseca, e que é demonstrada
sistematicamente pelos fatos que acompanham a história da
constituição dos estados soberanos e das relações que estes
estabelecem entre si – o sistema de estados ou o sistema
internacional – um processo que indica a predominância da
natureza política das fronteiras ou, mais especificamente, da
sua natureza geopolítica.
Logo, que elas constituem linhas e zonas com estabilidade e
perenidade relativas e, por vezes, provisórias, pois sempre
serão o resultado dos direitos conquistados (a maior parte
deles pela violência das guerras) adquiridos ou acordados
por dois ou mais estados.
Por conseguinte, as fronteiras são configurações ao mesmo
tempo jurídicas e geopolíticas por excelência, pois os seus
traçados sempre dependerão de resultados mutuamente
acordados mediante tratados específicos.
Em suma, sejam elas rígidas, fortificadas, flexíveis, porosas
ou abertas, as fronteiras tendem a manter esse seu
significado primordial para o exercício da soberania dos
estados nacionais.
Colonização da
África
Descolonização da África
Asia divided: conflict
in the middle of the
nineteenth century
Fonte: World Bank, 2009
Essa identidade terceiro-mundista que de certo modo opunha-se à lógica de poder
do sistema bipolar fortaleceu-se e a original estratégia política desse grupo de
países culminou com a realização da importante Conferência Afro-Asiática de
Bandung, em 1955, na qual foi explicitada essa posição frente às questões políticas
e de desenvolvimento em geral no mundo e, sobretudo, foram lançadas ali as
raízes do que viria a se constituir no movimento dos países não-alinhados (fundado
em 1962) e na criação do chamado Grupo dos 77 na política internacional.
Outro evento que provocou um forte abalo nos fundamentos desse sistema foi
representado pela revolução socialista na China, país que em 1949, tornou-se uma
República Socialista, após mais de uma década de guerra civil com forte conteúdo
ideológico. Apesar de tratar-se ainda de um país pobre e basicamente camponês,
muitos analistas da cena internacional rapidamente observaram que pela sua
grande dimensão territorial, população numerosa, força militar expressiva e um
regime político altamente centralizado, estava emergindo uma nova potência
regional na Ásia com amplas possibilidades – e certamente com aspirações
políticas - de atuar de modo decisivo no cenário internacional.
Assim, enquanto em uma das frentes de atuação, concentrava-se em um
claro esforço de posicionar-se de forma autônoma face às duas
potências hegemônicas, em outra, explicitava sem rodeios os seus
objetivos de hegemonia no seu espaço geopolítico regional. Neste caso,
e em um movimento que tirava evidente proveito da sua vantagem
comparativa diante do Japão - o seu proverbial oponente na região e que
havia sido praticamente destruído pela guerra – a China projetou
rapidamente as suas políticas de poder no Sudeste Asiático, envolvendose diretamente na Guerra da Coréia (1952-1954) e na Guerra do Vietnã
(1968-1975), em ambas alinhando-se incondicionalmente às forças
comunistas.
No primeiro evento, postou-se ao lado da URSS em apoio aos
comunistas do norte, enfrentando as tropas norte-americanas e seus
aliados, ali enviadas sob o manto institucional do Conselho de
Segurança da ONU. No segundo, apoiou abertamente a frente popular
liderada pelos comunistas, forjada nas lutas nacionais de libertação
contra a França e, em seguida, contra a intervenção norte-americana.
Países Não-Alinhados
A origem do Movimento pode ser encontrada na Conferência ÁsiaÁfrica realizada em Bandung, Indonésia, em 1955. A convite dos
primeiros-ministros da Birmânia (hoje Mianmar), do Ceilão (hoje Sri
Lanka), da Índia, da Indonésia e do Paquistão, dirigentes de 29
países, quase todos ex-colônias dos dois continentes, reuniram-se
para debater preocupações comuns e coordenar posições no
campo das relações internacionais.
O primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru, juntamente com os
primeiros-ministros Sukarno (da Indonésia) e Gamal Abdel Nasser
(Egito), presidiu a sessão. No encontro, líderes do então assim
chamado Terceiro Mundo puderam compartilhar as suas
dificuldades em resistir às pressões das grandes potências, em
manter a sua independência e em opor-se ao colonialismo e ao
neocolonialismo.
Os acontecimentos dessa época revelam que estava em curso um duplo
movimento de largo espectro e longa duração e que seria capaz de
moldar
a
configuração
básica
das
relações
internacionais
contemporâneas. O primeiro, é aquele representado pela acelerada
mundialização dos processos especificamente econômicos, políticos,
político-territoriais e estratégico militares, decorrente do alargamento, sem
precedentes na história, do número e da capacidade de ação dos
estados-nações a partir dos anos cinqüenta.
O segundo, é aquele associado à formidável diferenciação do espaço
político mundial que apesar da sua rigidez, decorrente de uma ordem
bipolar nos aspectos essenciais da repartição e do equilíbrio de poder
vigentes, tornou-se viável pelo desenvolvimento simultâneo de uma
estrutura razoavelmente hierarquizada e nem sempre coordenada,
graças, sobretudo, à existência de uma órbita próxima ao centro, ocupada
pelas potências médias e regionais e por outra – periférica - ocupada por
mais de uma centena de novos estados, a maioria dos quais com as suas
independências recém-conquistadas.
Além disso, a combinação entre as histórias regionais particulares e
esse processo de mundialização hierarquizada produziu, também, uma
nova regionalização do mundo, do ponto de vista econômico e políticoterritorial.
Ela impulsionou mudanças baseadas em antigas relações de
solidariedade, de competição ou de animosidades entre grupos, nações,
dinastias e impérios, e que foram substituídas por aquelas vinculadas à
nova configuração política mundial, na qual passou a predominar, além
das grandes potências com o seu antagonismo estrutural, uma
constelação de estados soberanos com as suas novas redes de
relações políticas que serão a expressão, em cada caso, dos seus
alinhamentos e das posições e prioridades estratégicas nas suas
respectivas regiões.
Esse processo de mudanças vai intensificar-se nos anos setenta,
marcados por um conjunto de eventos de grande repercussão
internacional. Em 1972 ocorre a primeira alteração de monta na antiga e
rígida estrutura do sistema bipolar com a celebração do acordo bilateral –
diplomático, político e comercial - entre os EUA e a China, um evento que
tem sido considerado como um dos mais notáveis das relações
internacionais contemporâneas, já que representou a aproximação das
duas grandes potências com notórias rivalidades no plano regional
asiático e pavimentou, assim, o longo caminho da distensão política
mundial e da integração chinesa na economia mundial, processos que se
intensificariam a partir da década seguinte.
O terceiro é simbolizado pelo início das negociações entre as duas grandes
potências visando o controle e a limitação das suas armas nucleares, em um
explícito movimento na direção de uma distensão – a détente - nessa ordem
internacional, desde o início da Guerra Fria. Sob esse aspecto, deve-se registrar o
importante papel da ONU nesse processo, com diversas iniciativas, como a
criação da Comissão de Energia Atômica, em 1946 e da Agência Internacional de
Energia Atômica, em 1956, culminando pelo Tratado de Não-Proliferação de Armas
Nucleares, em 1968, que passou a vigorar em 1970.
É nesse novo ambiente, que a partir de meados da década, os EUA e a União
Soviética iniciam as negociações bilaterais visando à redução dos seus
respectivos arsenais (o SALT), inaugurando o período da chamada “coexistência
pacífica” entre as duas potências em especial durante o governo de Richard Nixon
nos EUA. O quarto pode ser associado ao notável crescimento econômico da
Europa Ocidental, impulsionado principalmente pelo apoio norte-americano na sua
reconstrução do pós-guerra - o Plano Marshall – e pelos efeitos positivos da
constituição do Mercado Comum Europeu, formalizado em 1957. Neste caso, os
papéis políticos proeminentes da França e da Alemanha foram decisivos,
motivadas que estavam, sobretudo, por uma estratégia comum que visava superar
a sua secular rivalidade no continente e, ao mesmo tempo, estabelecer uma
audaciosa articulação política e econômica que lhes assegurasse condições para
construir, no futuro, um projeto próprio na sua região de referência.
Em outros termos, definia-se ali um projeto particularmente europeu
que, malgrado as limitações impostas pela sua sensível posição de
fronteira entre os dois principais pólos de poder (ou especialmente por
isso), pudesse vir a se constituir mais tarde em um caminho próprio de
autonomia estratégica.
O quinto é representado, como já mencionado, pelo surgimento de
novas potências médias e a sua projeção política e estratégica nas
respectivas regiões, fato que confirmou uma tendência que se esboçara
desde os anos cinqüenta e que é um aspecto destacado do já citado
processo de diferenciação do espaço político mundial.
Além da China, no Sudeste Asiático, devem ser registrados os casos da
Índia, da Turquia, da África do Sul e do Brasil, um grupo de países que
pela sua expressão econômica, importância política ou político
estratégica, ou mesmo pela combinação dessas vantagens
comparativas, passou a exercer papéis de liderança regional, chegando
alguns deles a capitanear processos futuros de constituição de blocos
regionais de comércio ou de integração mais ampla.
É inegável, portanto, que diversas nações e regiões do mundo (a
Europa, o Japão e alguns países do Sudeste Asiático e da América do
Sul, principalmente) que souberam tirar proveito de uma situação
internacional onde elas pouco contavam em termos dos encargos
estratégico-militares de manutenção da ordem, puderam beneficiar-se
da nova onda de investimentos de capitais industriais a partir dos anos
sessenta e iniciar ciclos mais ou menos dinâmicos de desenvolvimento
econômico e de modernização em geral.
Esse processo de transformações da ordem mundial contemporânea
teve a sua culminância com os eventos políticos que abalaram os
seus pilares durante os anos oitenta e particularmente na passagem
para os anos noventa.
Como temos tentado apontar nesta breve análise da sua evolução, é
mister que especialmente em se tratando dos fenômenos da política
internacional, a observação e a análise dos mais decisivos vetores de
mudanças que nela operam não se restrinjam aos momentos da sua
plena manifestação, ou eclosão, como se estivéssemos diante dos
eventos sísmicos que subitamente atingem a crosta terrestre.
Na modalidade de evento dessa amplitude também deve ser incluída a
propagação dos impactos causados pela entrada em cena de um novo ator
na política internacional, que está associado aos primeiros sinais do que se
poderia hoje denominar sociedade civil internacional, um dos fenômenos
mais significativos das transformações dessa passagem de século e de
milênio. Algumas características desse processo têm sido exaustivamente
apontadas pelos analistas da nossa época.
Trata-se da emergência de grupos e movimentos políticos que estão
estreitamente relacionados à consolidação da democracia nos países
centrais do mundo ocidental ou capitalista a partir dos anos sessenta –
principalmente - e como decorrência, do fortalecimento das suas próprias
sociedades civis nacionais, processo que de modo geral se expandirá para
a periferia desse sistema durante os anos oitenta e noventa.
Ao mesmo tempo, a revolução das comunicações de massa na escala
mundial contribuiu para que esse processo envolvesse a disseminação de
valores políticos (que Kant chamaria de civilizacionais) que, ao transpor as
fronteiras nacionais, viessem a constituir valores universais – como a
própria democracia e os direitos humanos, por exemplo - que formaram a
base comum que ainda hoje impulsiona esse novo e ampliado ator político
coletivo que passou a atuar crescentemente sob a forma de um
movimento transnacional.
Uma das suas raízes pode ser encontrada, ainda nos anos setenta, nos
movimentos de parcelas variadas das sociedades nacionais de
contestação ao envolvimento dos seus países com as guerras, nos quais
se tornaram emblemáticas as jornadas de protesto dos estudantes norteamericanos contra a guerra do Vietnã.
No final da década de setenta, ampliou-se também consideravelmente
na Europa o sentimento de rejeição à corrida armamentista – sobretudo a
nuclear – envolvendo especialmente a juventude da Alemanha, da França
e da Inglaterra.
Esse sentimento plasmou nos jovens desses países um vigoroso
movimento pela paz em três anos seguidos (de 1980 a 1982), com
jornadas memoráveis envolvendo milhões de participantes provavelmente os maiores movimentos de massa da época - e com
objetivos políticos abrangentes: o desarmamento em geral, a retirada
imediata dos mísseis nucleares da Europa e especialmente da Alemanha
e a autonomia dos países do continente frente à rivalidade das duas
grandes potências.
Ao eleger os riscos globais da ameaça nuclear como o seu foco principal,
essa mobilização estava expressando, também, a ampliação de uma
consciência ecológica que já se esboçara na Conferência Mundial de
Meio Ambiente promovida pela ONU em Estocolmo, em 1976, e que se
consolidaria na década seguinte como mais um dos temas globais que
deram impulso à atuação dessa nova sociedade civil na escala mundial.
Na esteira desse formidável movimento pela paz dos jovens europeus,
nascia na Alemanha o Partido Verde, considerada a primeira organização
política no mundo com tais características e, ao mesmo tempo, surgiram
as Organizações Não-Governamentais no Continente e nos EUA, cujo
campo de atuação se concentraria principalmente nos temas do meio
ambiente e dos direitos humanos.
Nos países integrantes das regiões de influência direta dos EUA, como a
América do Sul e o Sudeste Asiático, diversos movimentos a partir do final
dos anos setenta foram deflagrados pelas sociedades civis nacionais
tendo como foco a democratização dos seus respectivos regimes
políticos, processo nos quais se destacaram países como o Brasil,
Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Coréia do Sul, Indonésia, Filipinas e
Tailândia.
Tais movimentos expressavam, no seu conjunto, uma extraordinária
experiência política que significava, no fundo, a tentativa de reversão de
uma estrutura de domínio estratégico-militar e de controle políticoideológico conduzido por essa grande potência nessas regiões periféricas
do mundo, estabelecida na esteira da armação geopolítica do pós-guerra,
enquanto parte da sua sofisticada estratégia de contenção face à ameaça
comunista.
A Crise da Ordem Bipolar e a Transição para a Ordem Global
Esse ambiente de efervescência da política internacional do final dos
anos setenta e ao longo dos oitenta atingiu duramente o chamado mundo
socialista sob a esfera de influência direta da União Soviética.
Nessa grande potência, em especial, a ascensão ao poder de um grupo
liderado por Mikchail Gorbachov estava disposto a iniciar reformas políticas
e econômicas estruturais – a Glasnot e a Perestroika - que fossem
capazes de promover um processo de acelerada modernização do país e
que era, a seu ver, a única alternativa que lhes restava para enfrentar as
crescentes ameaças de declínio e de dissolução, representadas,
sobretudo, pelos movimentos centrífugos das suas diversas repúblicas,
regiões e povos diversos, os descontentamentos da população com as
crises de abastecimento e as condições de vida, a ausência de liberdades
políticas e o atraso e a crise de setores vitais da sua economia, como era o
caso da agricultura.
O auge da crise e a conseqüente dissolução desse sistema envolveram
primeiramente a sua órbita de influência direta, conhecida como o Leste
Europeu. Iniciou-se pela Iugoslávia, uma república federativa socialista
sui generis integrada por cinco antigas nacionalidades dos Bálcãs que se
associaram após a Segunda Guerra Mundial, e que foi violentamente
abalada e desintegrada pelas rivalidades entre as diversas facções após
a perda do seu líder histórico, Joseph Tito.
Na Polônia, fortalecia-se a mobilização política nacional, em torno das
aspirações de autonomia, simbolizada no chamado movimento operário
Solidariedade, nascido nos estaleiros de Gdanski e, posteriormente,
concretizada na eleição de Lech Valessa para Presidente do país. Na
Tcheco-Eslováquia e na Hungria também eram registrados diversos
movimentos de descontentamento com os seus respectivos regimes
políticos e o domínio soviético, enquanto que na Romênia, seu burlesco e
decadente governo ditatorial agonizava a olhos vistos.
Estimulados pela abertura política e a crise da principal potência do
Bloco, os movimentos nacionais de contestação a esses regimes
alcançaram níveis incontroláveis a partir de 1988, quando se
transformaram rapidamente em mobilização de multidões que forçaram
os seus governos a promover diversas e infrutíferas tentativas de
reformas políticas.
Sem poder contar com o apoio de Moscou e carentes de qualquer forma
de legitimidade interna, caíram um após o outro, engolfados que foram
por uma fulminante, abrangente e pacífica onda de rupturas políticas e
ideológicas sem precedentes na história política mundial, no qual se
tornaram emblemáticos – por toda a sua carga de significados históricos
e políticos – eventos como o colapso da Alemanha Oriental, a queda do
Muro de Berlim, a retirada das tropas do Pacto de Varsóvia e o início da
reunificação alemã, em 1989.
Os dois anos seguintes foram marcados pelo aprofundamento do quadro
de crise da União Soviética, até o seu colapso formal, em dezembro de
1991. Fracassava, assim, a tentativa (tardia) de implantar as reformas
estruturais e com isso, desintegrava-se a enorme federação socialista de
15 repúblicas e regiões e que envolvera durante setenta anos mais de
uma centena de povos em um território com 22 milhões de Km2.
Com isso, a federação russa volta a ocupar a sua antiga posição
geopolítica na Eurásia e, ao mesmo tempo, todo o sistema de estadosnações inicia a sua lenta e complexa transição do socialismo para a
economia de mercado.
Um grupo de antigos e novos liberais norte-americanos mais
entusiasmados com esses acontecimentos decidiu tornar público de
imediato a sua justificada euforia, e isso foi feito de forma emblemática
pela rápida manifestação de um dos mais conhecidos e controvertidos
desses scholars, o norte-americano Francis Fukuyama.
Ainda em 1989, o ano-chave desses eventos, ele publicou um paper na
revista The National Interest (The End of History?) mais tarde
transformado em livro, no qual expõe a sua interpretação sobre o conjunto
das transformações especificamente no campo dos valores e das
instituições políticas que estavam de algum modo afetando o mundo como
um todo.
No lado oposto desse campo de debates, os intelectuais de esquerda
em geral, e especialmente os marxistas ortodoxos, declararam-se perplexos e,
alguns deles, preferiram calar-se, interromper ou refrear a sua reflexão e a sua
até então intensa produção. O exemplo de Immanuel Wallerstein é típico desse
comportamento.
Afinal, trata-se de intelectual altamente criativo, discípulo das idéias de Fernand
Braudel e com uma extensa e qualificada obra sobre o capitalismo
contemporâneo e que havia, por exemplo, proposto e desenvolvido os notáveis
conceitos de economia-mundo e de sistema-mundo. Ao que tudo indica,
entretanto, ele não possuía essas mesmas virtudes acadêmicas no campo das
análises das sempre complexas e imprevisíveis questões da política.
Basta mencionar que menos de uma década antes do colapso do socialismo real,
ele afirmava que sendo o capitalismo e a burguesia forças combinadas e
mundiais, a sua destruição deveria envolver a criação de um movimento político
operário de escala transnacional.
Como vimos, superada a Guerra Fria, as idéias liberais renovaram-se,
os seus intelectuais de modo geral abandonaram o esquematismo do
velho liberalismo realista, mas eles ainda evitam as utopias da paz
universal kantiana.
Esse novo liberalismo é certamente mais universalizante e pacifista
que aquele dos clássicos e esse analista renovado é, sobretudo, um
atento observador da crescente complexidade de um mundo que além
de mais globalizado, demonstra a crescente importância das instituições
para o funcionamento de uma ordem democrática interna e que se
projeta de forma crescentemente abrangente nas relações externas.
O seu mais conhecido e prestigiado representante na atualidade é
Joseph Nye, autor de diversos livros e papers que têm sido publicados
regularmente em revistas de grande prestígio da área como a Foreign
Affairs. Ele aprofunda a noção dos neo-realistas de que na atualidade há
uma forte tendência de que se aproximem mais as relações entre o que se
desenvolve no interior das sociedades nacionais democráticas e no âmbito
específico das políticas internacionais.
Além disso, põe em relevo a enorme complexidade atual da nova ordem
mundial que combina a atuação de macro-processos como a globalização
econômica e o crescimento nas últimas décadas de um sistema que integra
os estados e os novos atores políticos. Sustenta por isso que para melhor
compreender esse novo mundo, é preciso “inverter” as postulações
sacralizadas e os desgastados modelos realistas, que permanecem presos
à antiga tríade que comandaria as relações internacionais:
“Os estados não são os únicos atores importantes – os
atores transnacionais a operarem através das fronteiras
são igualmente intervenientes importantes; a força não é o
único instrumento significativo – a manipulação econômica
e a utilização de instituições internacionais são os
instrumentos mais importantes; a segurança não é um fim
dominante – o bem estar é o objetivo dominante. Podemos
apelidar este mundo anti-realista de interdependência
complexa”.
A análise das novas formas assumidas pela política internacional e a
emergência de uma ordem global na virada dos anos oitenta para noventa,
também foram temas examinados por diversos autores da chamada Escola
Construtivista, cuja característica principal é a sua conhecida tendência
universalista de raiz kantiana e a sua oposição geral ao realismo.
Sob certo aspecto, o próprio Joseph Nye e muitos outros analistas da
atualidade, como o prestigiado Robert Keohane, também poderiam ser
considerados como representantes das diversas vertentes do que se
denomina genericamente de construtivismo. De modo geral, os seus
integrantes distinguem-se pela dedicação ao estudo dos temas
relacionados à complexidade dos mecanismos de regulação internacional
e, dentre eles, especialmente aqueles edificados nos últimos anos no
âmbito das instituições multilaterais ou supranacionais.
Sob a liderança intelectual de James Rosenau, um intelectual que
pode ser considerado como o seu pioneiro, ainda no início dos anos
noventa, um grupo desses especialistas publicou dois trabalhos que
são considerados os mais representativos desse pensamento sobre a
ordem internacional. Na apresentação da sua segunda coletânea,
publicada em 1992, era evidente o entusiasmo de Rosenau com os
novos tempos que vislumbrava para as relações internacionais:
“No momento em que as hegemonias declinam, as
fronteiras (e os muros que as selam) desaparecem, quando nas
cidades de todo o mundo as praças estão repletas de cidadãos
que desafiam as autoridades, quando as alianças militares perdem
sua viabilidade (para mencionar apenas algumas das muitas
mudanças que estão transformando a política mundial), as
perspectivas da ordem e da governança mundiais tornaram-se um
tema transcendente... Sente-se que o curso da história chegou a
um ponto de mutação, oportunidade para que o movimento no
sentido da cooperação pacífica, da expansão dos direitos humanos
e da elevação dos padrões de vida são pouco menos evidentes do
que as perspectivas de um agravamento dos conflitos de grupos, a
deterioração dos sistemas sociais e das condições ambientais“.
Por essa percepção, uma nova ordem global requer um novo sistema de
regulação que certamente envolveria aqueles que se encontram em
funcionamento, como os estados nacionais e as suas constituições e as
instituições multilaterais e as suas regras, mas também o estabelecimento
de formas alternativas de concertação política internacional que sejam
capazes de incluir os novos atores globais e os seus temas diversos, como
as organizações não-governamentais e, por exemplo, os direitos humanos
e o meio ambiente.
Essa governança global, ele argumenta, também é necessária para
assegurar o funcionamento do novo sistema político mundial, já que no
caso dos governos nacionais, uma parte da sua autoridade tem sido
transferida para as entidades sub-nacionais e, quanto às instituições
internacionais, elas certamente não se encontram preparadas para
assumir os novos desafios colocados pela globalização.
Para ele, a transição atual pode ser examinada em seu duplo significado: se
ela for observada unicamente em seus aspectos sistêmicos tradicionais, isto
é, como sendo ainda um prevalecente sistema anárquico de estados
soberanos, poder-se-á concluir que estaria havendo apenas uma mudança
de forma, isto é, que os estados na atual conjuntura apenas teriam
diminuído a sua agressividade potencial no relacionamento com os demais
e demonstrando, assim, uma maior disposição para a cooperação entre
eles. Inversamente, se o sistema for examinado naquilo que possui de
inovador, observar-se-á uma mudança de qualidade nessa ordem,
decorrente da menor ênfase na “competência dos estados, na globalização
das economias nacionais, na fragmentação das sociedades em subgrupos
étnicos, religiosos, políticos, lingüísticos e de nacionalidade, no advento dos
temas transnacionais que levam à criação de autoridades desse nível...”.
São processos que estariam induzindo – ou conduzindo - os estados para
um novo tipo de comportamento, com uma atuação, de certo modo, menos
impositiva.
A pedra de toque da análise dos construtivistas, portanto, é a sua
compreensão de que independentemente da forma definitiva assumida
pela nova ordem mundial, o sistema internacional clássico baseado
exclusivamente nas relações inter-estatais encontra-se em declínio e é
imperativo substituí-lo por formas de governança que correspondam mais
adequadamente às novas exigências globais. Não se trata, como poderia
parecer à primeira vista, de imaginar um sistema no qual os estados
fossem alijados ou substituídos por outras organizações públicas ou
privadas, ou mesmo submetidos a um hipotético “governo mundial”.
Eles continuariam sendo os atores mais relevantes da política internacional, mas
tendo que atuar cada vez mais em um ambiente institucional mundial governado
por uma abrangente e complexa teia de instituições, normas jurídicas,
compromissos e, além disso, com a atuação de uma “sociedade civil” que se
movimentaria de forma cada vez mais organizada - e ruidosa - em torno
especificamente das questões dessa escala (global). Mark Zacher, um outro
especialista desse grupo, ressalta que um dos fatos incontestáveis da atualidade
é que os estados já se encontram há algum tempo enredados em sistemas
diversos de controle, ou em formas diversas de constrangimentos que limitam
consideravelmente as suas soberanias:
:
“De uma perspectiva puramente legal, os estados mantém,
ainda, o direito soberano de não estarem obrigados por qualquer
acordo internacional apoiado pela maioria ou até mesmo por todos
os outros estados. No entanto, na prática, eles se encontram cada
vez mais emaranhados em uma rede de interdependência e de
arranjos regulatórios ou de colaboração, da qual geralmente não
se podem livrar. Esse quadro confirma o julgamento de Harold
Jacobsen de que ‘a analogia apropriada para descrever o sistema
político global contemporâneo é a de estados presos em redes de
organizações internacionais’....E igualmente não é mais válido
descrever o sistema internacional em termos de bolas de bilhar
colidindo umas com as outras, a não ser que se imaginem essas
bolas ligadas por cordões de resina, limitando o seu movimento em
qualquer direção. Na verdade, o sistema internacional, como o
processo de transformação histórica, pode ser descrito como
viscoso.”
A esse respeito, e na linha de análise do autor, podemos acrescentar
que segundo dados da ONU, entre 1946 e 2003 foram firmados pelos
estados mais de 50.000 Tratados Internacionais, sendo que 32 deles
constituem grandes acordos multilaterais, celebrados, em sua maioria,
na última década e meia e abrangendo as áreas dos direitos
humanos, desarmamento, meio ambiente, saúde humana, refugiados
políticos, legislação marítima, direito penal, corrupção, crime
organizado e terrorismo. Como se pode ver, são tratados que refletem
claramente os temas típicos dessa nova ordem.
A ONU e o Equilíbrio do Poder
 Assembléia Geral: 193 países-membros
 Conselho de Segurança: 15 membros
 Permanentes com direito de veto: 5 (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França);
 Proposta de Reforma do CS: 25 países-membros, sendo 11 permanentes
O Conselho de Segurança das Nações Unidas é um órgão da
Organização das Nações Unidas cujo mandato é zelar pela manutenção
da paz e da segurança internacional. É o único órgão do sistema
internacional capaz de adotar decisões obrigatórias para todos os
Estados-membros da ONU, podendo inclusive autorizar intervenção
militar para garantir a execução de suas resoluções. O Conselho é
conhecido também por autorizar o desdobramento de operações de
manutenção da paz e missões políticas especiais.
O Conselho de Segurança é composto por 15 membros, sendo 5
membros permanentes com poder de veto: os Estados Unidos, a
França, o Reino Unido, a Rússia (ex-União Soviética) e a República
Popular da China. Os demais 10 membros são eleitos pela Assembleia
Geral para mandatos de 2 anos.
Uma resolução do Conselho de Segurança é aprovada se tiver maioria
de 9 dos quinze membros, inclusive os cinco membros permanentes.
Um voto negativo de um membro permanente configura um veto à
resolução. A abstenção de um membro permanente não configura veto.
Existem discussões sobre a reformulação do Conselho de Segurança, que
apresenta um desequilíbrio em seus membros na nova ordem mundial. O
desequilíbrio de forças se deve, principalmente, à ausência do Japão e da
Alemanha (respectivamente, terceira e quarta maiores economias do
planeta), nações que, por terem sido derrotadas na Segunda Guerra
Mundial, ficaram fora do núcleo do Conselho. Alemanha, Brasil, Japão e
Índia formaram o G-4 e apresentaram uma proposta para expandir o
Conselho para 25 membros, com mais cinco permanentes além dos
atuais. Os novos membros permanentes seriam assim divididos:

Dois membros da Ásia (Japão e Índia);

Um membro da América Latina (Brasil);

Um membro da Europa Central (Alemanha);

Um membro da África.
Nos últimos anos, um grupo de autores nos EUA, liderados por Robert
Keohane, tem procurado aprofundar essa visão que pode ser
genericamente identificada com o construtivismo, mas que seria mais
propriamente uma espécie de neo-construtivismo. Eles apontam, por
exemplo, a importância das fortes tendências atuais de articulação entre as
novas instituições democráticas que estariam moldando tanto as políticas
nacionais como as internacionais.
Para esses analistas, é evidente que se encontra em curso em boa parte
dos países democráticos do mundo e nas suas relações internacionais, o
que chamam de um novo institucionalismo político, que tem sido
basicamente ilustrado, por exemplo, pela multiplicação e a eficácia das
normas jurídicas que regulam as relações entre os estados, as empresas e
as organizações em geral, bem como pela criação ou a consolidação de
instituições jurídicas multilaterais, a exemplo das Cortes de Justiça
internacionais e, especialmente, a européia que é tomada como
emblemática nesse caso.
Em síntese, para os adeptos dessa visão sobre a ordem
internacional a partir das suas tendências de globalização, tanto pela
sua evolução ao longo das últimas décadas, quanto pelo conjunto de
mudanças em curso naquela conjuntura, estavam dadas as
premissas e as condições políticas e institucionais básicas para a
construção de uma nova concertação na qual pudesse edificar-se
um sistema de governança global que fosse capaz de assegurar
níveis mais elevados de gestão dessa ordem, vis-a-vis aqueles
referenciados exclusivamente ao antigo sistema de estados, fossem
eles bipolares ou multipolares.
Essa euforia e o otimismo decorrentes daquele clima de “pós-guerra”
e da aparentemente incontestável vitória do liberalismo ocidental e
das teorias construtivistas nas relações internacionais, não eram
compartilhados por alguns analistas daquela conjuntura, fossem eles
velhos ou novos realistas ou construtivistas menos entusiasmados
que os seus colegas mais radicais. Esse era o caso de Samuel
Huntington, um dos mais prestigiados analistas internacionais do seu
país e que se tornaria o mais polêmico dentre o grupo dos céticos
com relação a esse novo cenário mundial.
Ainda no calor dos eventos do colapso da Guerra Fria, ele veio a público
para contrariar essa tendência de otimismo e apontar com grande
convicção (como fizera o seu conterrâneo Isahia Bowman oitenta anos
antes) os novos e potenciais cenários de crises e de riscos para o
Ocidente e especialmente os EUA na nova ordem internacional que
apenas se esboçava.
Em 1993, ele publicou um paper na revista Foreign Affairs (The Clash of
Civilizations) que teve repercussão equivalente ao de Halford Mackinder
em 1904, em parte pela originalidade e ousadia das suas análises e
também porque os leitores estavam diante de um intelectual, que
reconhecidamente conservador, possuía sólida experiência adquirida em
muitos anos de pesquisas sobre as relações internacionais. Estimulado
pelos comentários críticos e pelo apoio às suas idéias, o autor transformou
aquele artigo em livro, que foi publicado em 1996.
Em trabalho anterior Huntington mostrara-se de acordo com a idéia de
que com o fim da Guerra Fria, o mundo ingressara (ou reingressara) em
uma ordem multipolar. Diversamente da antiga moldura das relações
internacionais, entretanto, ele detecta uma qualidade nova na política
mundial, na qual os fatores político-culturais ou civilizacionais
adquiriram, pela primeira vez, uma importância extraordinária na
história da humanidade, ou seja, emergira nessa transição um mundo
ao mesmo tempo multipolar e multicivilizacional.
Nesse cenário, ele adverte, o fato do Ocidente e das idéias liberais
que lhes correspondem mostrarem-se vitoriosos (uma crítica a
Fukuyama) em um contexto mais geral, não o livra das ameaças de
outras regiões e povos do mundo que, segundo ele não se engajarão
em conflitos movidos pelos valores e as ideologias que estavam
implícitas ou explícitas na confrontação entre os EUA e a União
Soviética, mas pelos seus respectivos e particulares conjuntos de
valores, ressentimentos ou pela simples resistência ao avanço
ocidental sobre o mundo e as suas culturas e civilizações.
Para ele, ao contrário das expectativas de paz duradoura desses anos,
as incertezas e os perigos representados pelas tendências de
desintegração e re-agregação, os conflitos locais e nacionais de
natureza étnica e religiosa, a violência e as práticas de genocídio, tudo
isso agravado pela demonstrada incapacidade da ONU e da única
superpotência de assegurarem a ordem nas diversas regiões do
mundo, são todos os acontecimentos que, combinados, rapidamente
compuseram um cenário que apenas confirmava as suas sombrias
previsões no seu paper de três anos atrás.
Além do mais, argumenta, esse quadro de insegurança e de potencial anarquia
estava agravado pelo fato de que apesar dos estados que emergiram nesse PósGuerra Fria ainda se comportarem basicamente em torno de objetivos de poder e
de constituir os atores principais nos assuntos mundiais, eles enfrentam condições
extremamente adversas nessa nova ordem, já que passaram a ser submetidos às
novas e poderosas forças da globalização e a ter assim as suas soberanias
expostas continuamente aos desgastes das pressões internacionais,
principalmente aquelas provenientes das grandes empresas e dos organismos
supranacionais.
Nesse novo cenário, aumentam os riscos potenciais e reais à segurança individual
e coletiva, pois o enfraquecimento dos estados em geral impede-os de enfrentá-los
de modo efetivo, tolhidos que se encontram nos seus espaços de manobra e nas
condições de ação na política externa.
Enfim, os estados encontram-se agora diante de inevitável redução do seu poder e,
portanto, da sua antiga e proverbial capacidade de ordenar e regular em geral ou,
no limite, de oferecer a indispensável proteção às populações ou de prevenir e
solucionar os conflitos nos seus respectivos territórios e nas suas regiões de
influência.
Por essa sua via de análise, agrava esse quadro o fato de que em muitos casos,
a política externa dos estados também estaria sendo moldada por valores
culturais e civilizacionais51, isto é, eles agora tenderão a adotar um novo
comportamento e a estabelecer as suas estratégias de alinhamentos e
antagonismos não apenas em função dos seus clássicos cálculos de poder, mas
também, dos laços de solidariedade que mantêm com os demais no sistema
internacional.
Sob essa perspectiva, portanto, o mundo estaria mais precisamente transitando
de um sistema bipolar para um sistema claramente multipolar e multicivilizacional,
no qual, de um lado, posicionar-se-ia o Ocidente (que ele considera em declínio)
e, de outro, o resto do mundo em expansão e crescentemente organizado a partir
dos valores e objetivos das suas seis ou sete civilizações atualmente dominantes.
Não há, portanto, elementos que sustentem o clima de otimismo reinante em
círculos da elite ocidental, à qual ele dá o nome de Cultura de Davos, que denota
uma compreensão a seu ver parcial e equivocada, baseada no pressuposto de
que os homens de empresa, governo e instituições - e a sua cultura - que ali se
reúnem anualmente representariam de fato a complexidade cultural do mundo
contemporâneo.
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Apresentação Curso Pós - Geografia Política e Geopolítica