Conexões imagéticas vocabulares (inquietações fundamentais na arte de todas as épocas, por meio da pintura e da narrativa, a partir de doze quadros e de doze aberturas de romances livremente entrelaçados) Oscar D’Ambrosio Agosto 2009 Paradigmas de Literatura e Arte “Surge da distância entre aquilo que o artista deseja do mundo e aquilo que o mundo é.” Hilda Hilst “É a diferença entre aquilo que o artista deseja e o que ele alcança.” Marcel Duchamp 1. Poder O Cristo amarelo - Gauguin - 1889 Ernest Hemingway (1898-1961) O sol também se levanta (1926) “Robert Cohn fora campeão de boxe na categoria dos pesos médios em Princeton. Não pensem que esse título me impressione. Mas significava muito para Cohn. Ele dava pouca importância ao boxe, que, de fato, desagradava-lhe, mas aprendera-o com esforço, apenas para contrabalançar o complexo de inferioridade e a timidez que sentira, porque o tratavam como judeu em Princeton. Sentia uma satisfação íntima em saber que poderia derrubara quem quer que o provocasse. Mas, sendo muito tímido e ótimo rapaz, nunca travava luta fora do ginásio. Robert era um astro entre os discípulos de Spider Kelly. Este ensinava seus jovens alunos a lutarem como pesos leves, que pesassem 48 ou 93 kg. No caso de Robert Cohn, o sistema pareceu dar resultado. O rapaz era realmente ligeiro, e tão bom que Spider não tardou em fazê-lo medir-se com gente mais forte do que ele. Seu nariz ficou irremediavelmente achatado, o que contribuiu para a aversão de Cohn pelo boxe, mas produziu-lhe uma satisfação estranha, e isso, sem dúvida, melhorou o seu nariz. Durante o último ano em Princeton, Robert lera demais e passou a usar óculos. Nunca encontrei um só de seu seus colegas que se lembrasse dele, ou de que tivesse sido campeão de boxe.” 2. Morte O enterro do Conde Orgaz – 1588 - El Greco Samuel Beckett (1906-1989) Malone morre (1952) “Logo enfim vou estar bem morto apesar de tudo. Talvez mês que vem. Vai ser abril ou maio. O ano ainda é uma criança, mil sinaizinhos me dizem. Quem sabe esteja errado, quem sabe consigo chegar até o dia da festa de São João Batista ou até mesmo o 14 de julho, festa da liberdade. Qual o quê, sou bem capaz de durar até a Transfiguração, me conheço bem, ou até a Assunção. Mas não acredito, não acho que estou errado em dizer que estas festas vão ter que passar sem mim, este ano. Tive essa sensação, faz dias que venho tendo, e acredito nela. Mas em que difere daquelas que fazem de mim gato e sapato desde que me conheço por gente? Não, esse é o tipo de armadilha em que não caio mais, meu desejo pitoresco passou. Podia morrer hoje, se quisesse, apenas fazendo um pequeno esforço, seu eu pudesses querer, seu eu pudesse fazer um esforço. Mas não me custa nada me deixar morrer, quietinho, sem precipitar as coisas. Alguma coisa deve ter mudado. Não vou forçar nenhum dos pratos da balança, nem para cá, nem para lá. Vou ser neutro e inerte.” 3. Transformação Chuva, vapor e velocidade: o grande caminho de ferro – Turner - 1844 Franz Kafka (1883-1924) A metamorfose (1916) “Quando certa manhã Gregor Samsa despertou, depois de um sono intranqüilo, achou-se em sua cama convertido em um monstruoso inseto. Estava deitado sobre a dura carapaça de suas costas, e ao erguer um pouco a cabeça viu a figura convexa de seu ventre escuro, sulcado por pronunciadas ondulações, em cuja proeminência a colcha mal podia agüentar, pois estava visivelmente a ponto de escorregar até o solo, Inúmeras patas, lamentavelmente esquálidas em comparação com a grossura comum de suas pernas, ofereciam a seus olhos o espetáculo de uma agitação sem consistência. -- Que me aconteceu?” 4. Conhecimento Eu amo a America e a América me ama – Joseph Beyus - 1974 J. M. Coetzee (1940) À espera dos bárbaros (1980) “Nunca vi nada assim: dois pequeninos discos de vidro, com aros de arame, suspensos diante dos olhos. Será que é cego? Poderia compreender se estivesse querendo esconder os olhos cegos. Mas não é o caso. Os discos são escuros, parecem opacos do Aldo de fora, contudo consegue enxergar através deles. Diz que de trata de uma nova invenção.” 5. Guerra Davi com a cabeça de Golias – Caravaggio - 1605 Alexandre Dumas (1802-1870) Os três mosqueteiros (1844) “Na primeira segunda-feira de abril de 1625, a cidade de Meung, onde nasceu o autor do Romance da Rosa, parecia viver uma revolução. Era como se os huguenotes a tivessem transformado numa segunda La Rochelle. Muitos homens, vendo que as mulheres fugiam para a rua principal, e ouvindo gritar as crianças na soleira das portas, apressavam-se em vestir a armadura de peito e, reforçando a falta de coragem com um mosquete ou um companheiro, dirigiam-se para a hospedaria de Franc Meunier, diante da qual uma multidão barulhenta e curiosa aumentava a cada instante. Naquele tempo os sustos eram freqüentes, e poucos dias se passavam sem que alguma cidade registrasse um evento do gênero. Os nobres guerreavam uns com os outros; o rei fazia guerra ao cardeal; o espanhol fazia guerra ao rei. Além dessas guerras, disfarçadas ou públicas, havia também os ladrões, os mendigos , os huguenotes, os lobos e os lacaios, que faziam guerra a todo mundo. Os burgueses armavam-se contra os ladrões, os lobos, os lacaios; muitas vezes contra os nobres e os huguenotes; às vezes contra o cardeal e o espanhol.” 6. Fazer Artístico: Tocador de Pífaro – Manet - 1866 Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) Machado de Assis (1839-1908) “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um ator defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.” 7. Justiça Retirantes – Portinari - 1944 Henry Fielding (1707 – 1754) Tom Jones (1749) “Um autor deve considerar-se não como um cavalheiro que oferece um banquete particular ou uma caridade, senão como quem dirige uma casa pública de refeições, na qual são bem-vindas todas as pessoas em troca do seu dinheiro. No primeiro caso, é sabido que o anfitrião proporciona as iguarias que bem entende; as quais embora indiferentes ou absolutamente desagradáveis ao paladar dos convivas, não podem ser criticadas; antes, pelo contrário, a boa educação obriga-os, exteriormente, a aprovar e elogiar o que quer que lhes seja colocado pela frente. Ora, o contrário sucede ao dono de uma casa de refeições. Os homens que pagam o que comem insistirão em satisfazer o seu paladar, por mais delicados e fantástico que seja; e, se alguma coisa lhes for desagradável, reivindicarão o direito de censurar, insultar e livremente maldizer o seu almoço”. 8. Mulher Mulher no banho – Degas - 1886 Theodore Dreiser (1871 – 1945) Carolina (1901) “Quando Carolina Meeber tomou o trem da tarde para Chicago, toda a sua bagagem consistia em uma pequena mala, uma pasta de imitação barata de pele de jacaré, um ligeiro lanche numa caixa de papel e uma bolsa amarela, de couro, que continha sua passagem, uma tira de papel com o endereço da irmã, à rua West Van Buren, e quatro dólares. Foi em agosto de 1889. Tinha dezoito anos de idade, era viva, tímida, cheia de ilusões da juventude e da ignorância.” 9. Lar Santana, a Virgem e o Menino – Leonardo da Vinci – 1508/10 Julio Cortázar (1914 – 1984) “Casa tomada”, em Bestiário (1951) “Gostávamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (hoje que as casas antigas sucumbem à mais vantajosa liquidação de seus materiais), guardava as recordações de nossos bisavós, o avô paterno, nossos pais e toda a infância.” 10. Casamento O beijo – Klimt – 1907/08 José Lins do Rego (1901 – 1957) Menino de engenho (1932) “Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã acordei com um enorme barulho na casa toda. Eram gritos e gente correndo para todos os cantos. O quarto de dormir de meu pai estava cheio de pessoas que eu não conhecia. Corri para lá, e vi minha mãe estendida no chão e meu pai caído por cima dela como um louco. A gente toda que estava ali olhava para o quadro como se estivesse em um espetáculo. Vi então que minha mãe estava toda banhada em sangue, e corri para beijála,quando me pegaram pelo braço com força. Chorei, fiz o possível para livrar-me. José Lins do Rego Menino de engenho ... Mas não me deixaram fazer nada. Um homem que chegou com uns soldados mandou então que todos saíssem, que só podiam ficar ali a polícia e mais ninguém. Levaram-me para o fundo de casa, onde os comentários sobre os fatos eram os mais variados. O criado, pálido, contava que ainda dormia quando ouvira uns tiros no primeiro andar. E, correndo para cima, vira o meu pai com o revólver na mão e minha mãe ensangüentada. “O doutor matou a D. Clarisse!” Por quê? Ninguém sabia compreender. 11. Relação Pais e Filhos Paul como arlequim – Picasso - 1924 Albert Camus (1913 – 1960) O estrangeiro (1942) “Hoje mamãe morreu. Ou talvez, ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.” 12. Amor O grande vido – A noiva despida por seus celibatários – Marcel Duchamp – 1915/1923 Dalton Trevisan (1925) A polaquinha (1985) “Bobinha, de mim já não falo. Me enxugava no banheiro. Puxa, que susto. -- Está nascendo cabelo... Um por um, tentei arrancar – doía muito. Confessei a medo para minha irmã. -- Lá embaixo. -- Ela se acalmou. -- Sua tonta, é assim mesmo. Quando veio a primeira vez, bem me apavorei. -- Estou sangrando. Acho que vou morrer. Dalton Trevisan A polaquinha Correndo a toda hora ao banheiro. -- Estou me esvaindo... De novo, minha irmã: -- Agora você sabe. O que é moça. Daqui a um mês. Todo mês. Me ensinou a usar toalhinha, ainda o tempo da talhinha. Esquecida horas no banheiro, lavando, lavando. Para a mãe não ver. O seio aflorando, o biquinho doendo – de sete novenas fiz promessa. -- Meu Deus, me acuda. Se aperto o biquinho, sai leite?” OBRIGADO ! Oscar D’Ambrosio Oscar D'Ambrosio é jornalista (pela ECA-USP), mestre em Artes pela Unesp, crítico de arte, integrante da Associação Internacional de Críticos de Arte e Coordenador de imprensa da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp. Autor de livros como Os pincéis de Deus e O Van Gogh feliz: vida e obra do pintor Ranchinho de Assis) e textos sobre artes e artistas plásticos. Entrevistou 300 autores para o programa Perfil Literário da Rádio Unesp FM. www.artcanal.com.br/oscardambrosio htttp:/aci.reitoria.unesp.br/radio/perfil_literario