Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839. Filho de um operário mestiço de negro e português, Francisco José de Assis, e de D. Maria Leopoldina Machado de Assis, aquele que viria a tornarse o maior escritor do país e um mestre da língua, perde a mãe muito cedo e é criado pela madrasta, Maria Inês, também mulata, que se dedica ao menino e o matricula na escola pública, única que freqüentará o autodidata Machado de Assis. Aos 16 anos, publica em 12-01-1855 seu primeiro trabalho literário, o poema "Ela", na revista Marmota Fluminense, de Francisco de Paula Brito. A Livraria Paula Brito acolhia novos talentos da época, tendo publicado o citado poema e feito de Machado de Assis seu colaborador efetivo. Publica seu primeiro livro de poesias em 1864, sob o título de Crisálidas. Em 1867, é nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial. Agosto de 1869 marca a data da morte de seu amigo Faustino Xavier de Novais, e, menos de três meses depois, em 12 de novembro de 1869, casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais. Nessa época, o escritor era um típico homem de letras brasileiro bem sucedido, confortavelmente amparado por um cargo público e por um casamento feliz que durou 35 anos. D. Carolina, mulher culta, apresenta Machado aos clássicos portugueses e a vários autores da língua inglesa. Sua união foi feliz, mas sem filhos. A morte de sua esposa, em 1904, é uma sentida perda, tendo o marido dedicado à falecida o soneto Carolina, que a celebrizou. Seu primeiro romance, Ressurreição, foi publicado em 1872. Com a nomeação para o cargo de primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, estabiliza-se na carreira burocrática que seria o seu principal meio de subsistência durante toda sua vida. No O Globo de então (1874), jornal de Quintino Bocaiúva, começa a publicar em folhetins o romance A mão e a luva. Escreveu crônicas, contos, poesias e romances para as revistas O Cruzeiro, A Estação e Revista Brasileira. Sua primeira peça teatral é encenada no Imperial Teatro Dom Pedro II em junho de 1880, escrita especialmente para a comemoração do tricentenário de Camões, em festividades programadas pelo Real Gabinete Português de Leitura. Na Gazeta de Notícias, no período de 1881 a 1897, publica aquelas que foram consideradas suas melhores crônicas. Em 1881, com a posse como ministro interino da Agricultura, Comércio Obras Públicas do poeta Pedro Luís Pereira de Sousa, Machado assume o cargo de oficial de gabinete. Publica, nesse ano, um livro extremamente original , pouco convencional para o estilo da época: Memórias Póstumas de Brás Cubas -- que foi considerado, juntamente com O Mulato, de Aluísio de Azevedo, o marco do realismo na literatura brasileira. Extraordinário contista, publica Papéis Avulsos em 1882, Histórias sem data (1884), Vária Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1889), e Relíquias da casa velha (1906). Dizem os críticos que Machado era "urbano, aristocrata, cosmopolita, reservado e cínico, ignorou questões sociais como a independência do Brasil e a abolição da escravatura. Passou ao longe do nacionalismo, tendo ambientado suas histórias sempre no Rio, como se não houvesse outro lugar. ... A galeria de tipos e personagens que criou revela o autor como um mestre da observação psicológica. ... Sua obra divide-se em duas fases, uma romântica e outra parnasiano-realista, quando desenvolveu inconfundível estilo desiludido, sarcástico e amargo. O domínio da linguagem é sutil e o estilo é preciso, reticente. O humor pessimista e a complexidade do pensamento, além da desconfiança na razão (no seu sentido cartesiano e iluminista), fazem com que se afaste de seus contemporâneos." Publicado em 1896, Várias Histórias é um exemplo perfeito da maestria com a qual Machado de Assis desenvolveu o conto, produzindo tesouros que estão entre os mais preciosos da Literatura Brasileira. Antes de mergulhar em suas narrativas, portanto, necessário se faz entender um pouco da técnica do autor em tal forma artística. Machado de Assis notabilizou-se por dominar a análise psicológica, dissecando a alma humana em busca de sua essência, que muitas vezes é dilemática, ou seja, expressa o conflito e muitas vezes a conciliação entre elementos opostos. É muito comum em suas narrativas depararmo-nos com ações que, mesmo tendo uma determinada inspiração, revelam também o seu oposto, como no caso do usurário (pessoa extremamente apegada a bens materiais, a lucro e a dinheiro) de Entre Santos, que, em pleno desespero por causa da possibilidade da perda de sua esposa, faz uma promessa fervorosa que tanto revela seu amor à mulher quanto seu apego à noção de lucro, pois se perde em delírios diante da cifra de orações que se propõe a rezar. Dessa forma, a complexa visão machadiana sobre o homem vai muito além do que os seus contemporâneos faziam. Reforça essa superioridade a intensidade que imprime ao caráter psicossocial, entendendo a personalidade humana como fruto de forças da sociedade, principalmente aquelas que valorizam o status, o prestígio social. É um elemento ricamente abordado em obras-primas como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Assim, os contos de Várias Histórias constituem rico material para um estudo da psicologia do homem e de como ele se comporta no grupo em que vive. Vemos neles a análise das fraquezas humanas, norteadas muitas vezes pela preocupação com a opinião alheia. Em inúmeros casos as personagens fazem o mesmo que nós: mentem, usam máscaras, para não entrar em conflito com o meio em que estão e, portanto, conviver em sociedade. O pior é que levam tão a sério essa máscara que chegam até a enganar a si mesmas, acreditando nela como a personalidade real. Por causa desses elementos temáticos, notamos uma peculiaridade nos contos machadianos. Esse gênero, graças à sua brevidade, dá, por tradição, forte atenção a elementos narrativos. Não há espaço, pois, para digressões, tudo tendo de ser rápido e econômico. No entanto, no grande autor em questão o mais importante é o psicológico, o que permite caminho para características marcantes do escritor, como intertextualidade, metalinguagem e até a digressão, entre tantas, tornando a leitura muito mais saborosa. Foco narrativo A historia narrada em terceira pessoa. Existe a presença onisciente do autor, que usa desta onisciência na narração e descrição dos fatos. O uso constante de uma voz onisciente importante para dinamizar o relato da historia acentuando os momentos dramáticos do texto e conflitos internos dos personagens, fortalecendo seu epílogo. Sem essas características o texto tornar-se-ia monótono, pois a primeira leitura saberíamos de antemão seu desfecho. Também através deste recurso, o autor vai situando o leitor durante o curso da historia, ilustrando fatos e Inter textualizando a narrativa. Embora a trama gire em torno de 4 personagens principais Vilela, Camilo, Rita e a cartomante (incógnita), existem outros personagens que não participam diretamente na trama, mas suas participações são determinantes no enredo da história. A morte da mãe de Vilela, que é uma personagem secundária tem papel fundamental no envolvimento amoroso dos personagens Camilo e Rita. O autor analisa e enfatiza psicologicamente todos os personagens preconizando seus conflitos internos bem como seus temores. Está o tema do triângulo amoroso e do adultério, já presente nas Memórias (Brás Cubas, Virgília, Lobo Neves). Os amigos de infância Camilo e Vilela, depois de longos anos de distância, reencontramse. Vilela casara-se com Rita, que mais tarde seria apresentada ao amigo. O resto paixão, traição, adultério. A situação arriscada leva a jovem a consultar-se com uma cartomante, que lhe prevê toda a sorte de alegrias e bemaventuraças. O namorado, embora cético, na iminência de atender a um chamado urgente de seu amigo Vilela, atormentado pela consciência, busca as palavras da mesma cartomante, que também lhe antecipa um futuro sorridente. Dois tiros queima-roupa ao lado do cadáver de Rita o esperavam. A vitória do ceticismo coroa o episódio. Conto que surpreende pela excelente estrutura narrativa, dividida em três partes. Na primeira, introdutória, fica-se sabendo que Rita, dotada de espírito ingênuo, havia consultado uma cartomante, achando que seu amante, Camilo, deixara de amá- la, já que não visitava mais sua casa. Desfeito o mal-entendido, faz-se um flashback que vai explicar como se montou tal relação. Camilo era amigo, desde longínqua data, de Vilela. Tempos depois, este se casa com Rita. A amizade estreita a intimidade entre Camilo e Rita, ainda mais depois da morte da mãe dele. Quando sente sua atração pela esposa do amigo, tenta evitar, mas, enfim, cai seduzido. Até que recebe uma carta anônima, que deixava clara a relativa notoriedade da sua união com a esposa do seu amigo. Temeroso, resolve, pois, evitar contato com a casa de Vilela, o que deixa Rita preocupada. Terminada essa recapitulação, vai-se para a parte crucial do conto. Camilo recebe um bilhete de Vilela apenas com a seguinte mensagem: Vem já, já. Seu raciocínio lógico já faz desconfiar que o amigo havia descoberto tudo. Parte de imediato, mas seu tílburi (espécie de carruagem de aluguel que equivaleria, hoje, a um táxi) fica preso no trafego por causa de um acidente. Nota uma estranha coincidência: está parado justamente ao lado da casa da cartomante. Depois de um intenso conflito interior, decide consultá-la. Seu veredicto dos mais animadores, prometendo felicidade no relacionamento e um futuro maravilhoso. Aliviado, assim como o tráfego, parte para a casa de Vilela. Assim que foi recebido, pôde ver, pela porta que lhe aberta, além do rosto desfigurado de raiva de Vilela, o corpo de Rita sobre o sofá. Seria, portanto, a próxima vítima do marido trado. Note neste conto sua estrutura em anticlímax, pois tudo nele (já a partir da citação inicial da famosa frase de Hamlet: há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia) nos prepara para um final em que o misticismo, o mistério imperaria. No entanto, seu final o mais realista e lógico, já engendrado no próprio bojo do conto. Reforça esse aspecto o ritmo da narrativa, que é lento em sua maioria, contrastando com seu desfecho, por demais abrupto. E não se esqueça da presença de um quê de ironia nesse contraste entre corpo da narrativa e o seu final. O conto Entre Santos, de Machado de Assis, trata-se de uma narrativa dentro de outra narrativa, que em determinado momento do caminho para mais outra. Um discreto narrador em terceira pessoa abre, já no primeiro parágrafo, dá espaço para um narrador em primeira pessoa, testemunha de um acontecimento surpreendente. Enquanto era capelo na igreja de São Francisco de Paula, pode surpreender, numa noite, o diálogo entre santos que durante o dia eram estátuas no templo. Discutiam o caráter humano, deslindado nas pessoas que vinham rezar diante deles. S. João Batista e S. Francisco de Paula eram os autores dos comentários mais ácidos em relação ao gênero humano. Um deles faz questão de lembrar uma adultera que vinha pedir ajuda para se afastar de tal relacionamento, mas que, enquanto orava, rememorava momentos ardorosos, o que diminua a fé, a ponto de fazê-la abandonar o recinto sem nem mesmo completar seu pedido. Tudo isso se contrapõe aos comentários de São Francisco de Sales. Para reforçar a sua teoria de que não se deve perder a esperança no ser humano, conta a história de um avaro que cai no desespero quando sua esposa desenvolve erisipela (doença que se manifesta pela inflamação da pele). Apesar de o pensamento corrente de que a sua agonia seria provocada pelo receio de despesas funerárias, na verdade movido por amor. E para conseguir a graça da salvação, pede a intermédio do narrador divino, oferecendo em troca uma perna de cera. No entanto, seu raciocínio rápido se transfere para a ida da moeda que iria custar tal artefato. Passa então a pensar em pagar em espécie mesmo. Mas, sovina como era, tal contribuo seria por demais custosa. Apesar disso, uma opinião que não chega a formular por completo, deixando-a no limbo de sua mente. Até que salta para um postulado um tanto cômodo: acredita, iludindo-se convenientemente, que o espiritual é mais importante do que o material, por isso se propõe a, no lugar da moeda, rezar 300 padres-nossos. Nesse ponto, o seu caráter materialista entranha-se com o espiritualista, pois imagina ser muito mais lucrativo rezar 300 padres-nossos e 300 ave-marias. De 300 passa para 1000, mas, ao invés de expressar e, portanto, efetuar sua promessa, perde-se, maravilhado, diante de cifra tão alta. Note nesse conto o esquema da narrativa. Um narrador lembra uma história que foi contada por um padre e que acaba relatando a história narrada por um santo. Essa trama dentro de trama lembra um outro tipo de texto que também usava esse mesmo procedimento e que também apresentava histórias mirabolantes: As Mil e Uma Noites. Repare também a postura dos santos, que se assemelha de Machado de Assis, na medida em que são devassadores da alma humana. Tal atividade inspira ou o descrédito próximo da impaciência diante de nossas fraquezas, assim como uma atitude de tolerância misturada com esperança. Podese acreditar que Machado tenha, em sua carreira, assumido um pouco das duas. Finalmente, observe como o conto consegue apresentar o caráter dilemático da mente humana pela maneira como o avaro lida com sua promessa. Mostra extremo materialismo ao entregar-se ao fervor espiritualista, conseguindo, talvez cínica, talvez inconscientemente, conciliar esses opostos. O presente escrito tem como propósito analisar criticamente o conto Uns braços, de Machado de Assis, buscando identificar nesse microcosmo da narrativa machadiana elementos que evidenciem uma perspectiva Realista. Dentre esses elementos, enfatizaremos a análise psicológica das personagens e a desconstrução do discurso romântico. Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, em 05/11/1885, já na maturidade do escritor, e, posteriormente em 1893, no volume de contos intitulado Várias Histórias, o conto em análise se constitui em uma urdidura engenhosa, que envolve o leitor, conduzindo-o a uma atmosfera de romance, que, ao término da trama se dissolve, evidenciando a oposição entre a fantasia e a realidade, e a conseqüente prevalência da moral socialmente estabelecida e das instituições sobre os sonhos e as pulsões humanas. Tratemos de forma resumida, sob o risco evidente de simplificação, do enredo de Uns braços. Inácio, rapaz de 15 anos, filho de um barbeiro, é colocado pelo pai como estagiário de Borges. Este vive maritalmente com D.Severina, e abriga Inácio em sua casa, irritando-se constantemente com as distrações do moço. A verdade é que Inácio se apaixona por D. Severina; se encanta especialmente com os braços da jovem senhora. Quando percebe os olhares de Inácio, a mulher passa ao conflito: ele ainda é muito jovem, ela é uma mulher comprometida. Mas são apenas olhares. Em um domingo Borges sai de casa, e D. Severina observa que Inácio dorme suavemente na rede. O rapaz está a sonhar com ela e, neste instante se dá uma incrível coincidência: ao sonhar com o beijo de D. Severina, Inácio é realmente beijado pela mulher. Depois do ato impulsivo, D. Severina passa a se reprimir pelo que fizera e passa a tratar o rapaz secamente e a cobrir os braços com um xale. Inácio, ainda mais distraído da realidade com seus sonhos, não percebe a mudança da senhora. Após uma semana, Borges irá dispensá-lo sem nenhum sinal de rudez, embora não permita que Inácio se despeça de Severina, alegando que ela estaria com muita dor-de-cabeça. Os anos se passam e Inácio nunca teve sensação igual à daquele beijo, que para ele não passara de um sonho. Dentro da tradição Realista, o conto privilegia o cenário doméstico da família burguesa, na segunda metade do século XIX: “Passava- se isto na Rua da Lapa, em 1870.”. O episódio em questão suscita a temática do adultério feminino, ainda que de forma extremamente sutil, se comparado àqueles relatados em Madame Bovary (1857) ou em O Primo Basílio (1878). A herança de Flaubert também se evidencia no tema da leitura e do devaneio romântico. Assim como Emma Bovary, o personagem Inácio alimenta uma visão de mundo romântica a partir da leitura de folhetins: “Inácio passava-os [os domingos] todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. [...]Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham.” Essa cena da leitura culmina com o sono e com o sonho de Inácio, que se concretizará sem que ele perceba. Curiosamente, ao contrário das narrativas fundadoras da escola realista, em Uns Braços não é a mulher quem se desprende da realidade a partir da imersão em um universo romântico, mas o rapaz. Desse modo, à superficialidade de Inácio contrapõe-se a profundidade da personagem feminina. A análise psicológica, como traço Realista, se evidencia na exploração do conflito de D. Severina. A descrição física da personagem é o ponto de partida para revelar o caráter ambíguo típico da mulher machadiana: “Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.” O fato de não se poder defini-la como sendo bonita ou feia, os cabelos presos, o lenço escuro e a ausência de adornos apontam para a sexualidade reprimida de mulher casada, condição sintetizada pelo paradoxo dos “vinte e sete anos floridos e sólidos”. A sensualidade e a feminilidade mascaradas pela solidez do papel social atribuído à mulher da época. Esse equilíbrio aparente é rompido quando D. Severina percebe os olhares de Inácio: "Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada). E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim." O monólogo interior revela que a protagonista vai, gradualmente, admitindo a idéia de estar sendo admirada pelo rapaz, passando, inclusive a comprazer-se pelo fato de ser desejada (ou desejável). Nesse sentido, não temos em D. Severina a constituição linear das heroínas românticas, dada a sua volubilidade. Ademais, não está ela apaixonada pelo jovem, o qual, longe de qualquer idealização, sequer é visto como homem. De certo modo, a protagonista apaixona-se por si própria ao descobrir sua feminilidade. Conto em que o protagonista rememora a um interlocutor a história de Otília, cobiçada dama da sociedade que costumava desenganar todos que tentavam estabelecer uma relação com ela. O narrador lembra que chegou a fazer uma aposta com seu grande amigo, sócio de uma banca de advocacia, para ver quem angariaria o coração da mulher. A primeira consequência é o final da amizade tão forte e o autoexílio do companheiro em um grotão do país, onde acabara morrendo cedo. A outra consequência é o narrador perder o controle de seus sentimentos. No entanto, apesar da maneira diferente com que o tratava, destacando-o dos demais pretendentes, deseja deste apenas amizade. Houve um momento em que o quadro parecia ter mudado. Primeiro, o narrador havia ficado abatido com a morte de seu pai. Otília conforta-o, o que os aproxima. Pouco depois, era o tio dela, praticamente um tutor, quem falece. Com a equivalência garantida pela dor, o apaixonado imagina ter caminho aberto para o casamento. Mas seu pedido é recusado. Some por alguns dias, um pouco por despeito, um pouco porque mergulhado em compromissos burocráticos referentes à morte do seu parente. Quando volta, encontra uma carta de Otília, instando que a amizade se reatasse. Promete, em troca, não se casar com ninguém. E tudo fica nesse pé, até que a dama adoece, definhando aos poucos. Dois dias antes de morrer, casa-se com o narrador. O único abraço que se dão foi durante o último suspiro dela, como se quisesse não o aspecto corporal da união, mas algo próximo do espiritual. O conto A Causa Secreta um dos mais fortes de Machado de Assis. Sua estrutura narrativa lembra um pouco a de A Cartomante, com início abrupto, flashback e retomada do eixo em direção ao desfecho. Machado faz talvez um de seus melhores "desenhos psicológicos". Revela-nos a personalidade de um sádico, capaz de realizar "boas ações" desde que estas lhe permitam o exercício de seu prazer. A descrição da tortura a que submete um rato página antológica na literatura brasileira. Em 3 pessoa, o narrador onisciente constitui uma notável caracterização psicológica em que revela, ao fazer o estudo do personagem Fortunato, o pince do prazer que conseguido na contemplação da desgraça alheia. O motivo do conto explicar o verdadeiro sentido do termo "sadismo". Conta a estória de dois homens que, após um salvar a vida do outro e passar-se algum tempo, tornam-se sócios. Mas pouco a pouco um deles vai demonstrando tendências sádicas, torturando animais, fato que atordoa a esposa. Quando ela morre, Fortunato, o sádico, presencia o amigo beijar a testa da mulher e derreter-se em choro, saboreando o momento de dor do amigo que lhe traíra. Um conto naturalista. Ainda que a ambientação seja burguesa, os personagens parecem ratos de laboratório, uma analogia bastante explorada pelo autor na cena mais forte do texto em que o personagem Fortunato tortura um rato, cortando-lhe as patas lentamente, revelando todo o sadismo (patologia) que até então estivera oculto de todos, inclusive dos leitores. A análise do conto A Causa Secreta, mostra que na perfeita normalidade social de Fortunato - um senhor rico, casado e de meia-idade, que demonstra interesse pelo sofrimento, socorrendo feridos e velando doentes - reside, na verdade, um sádico, que transformou a mulher e o amigo num par amoroso inibido pelo escrúpulo. Este escrúpulo, que gera o sofrimento do par, a causa secreta do prazer de Fortunato e de sua atitude de manipulação de que o rato, no conto, símbolo (Garcia, o protagonista, estaca perante a representação do horror. Fascinado perante o gesto frio de Fortunato, Garcia não faz sequer um gesto. Apenas contempla o sócio torturar lentamente um rato. Cortes meticulosos, pata a pata, precediam a queima do mesmo no fogo. O lento ritual prolongava o prazer. O narrador no subsumi a cena em poucas palavras, mostrando-a por inteiro ao leitor). Assim, de um narrador onisciente, nos principia o relato de um triangulo amoroso, trama comum a diversas faces machadianas, enriquecida aqui de uma novidade incomum nas demais, o sadismo. Começa-se com a informação de três pessoas, uma calma (Fortunato), outra intrigada (Garcia) e ainda uma terceira, tensa (Maria Luisa). Garcia havia visto pela primeira vez Fortunato durante a apresentação de uma peça de teatro, um dramalhão cosido a facadas. Este dava uma atenção especial as cenas, quase como se se deliciasse. Vai embora justo quando a obra entra em sua segunda parte, mais leve e alegre. Mais tarde, Garcia volta a vê-lo quando do episódio de um esfaqueado, para o qual Fortunato dedica atenção especial durante o seu estagio critico, tornando-se frio, indiferente quando a vítima melhora. Fica, portanto, seduzido pelo mistério sobre a explicação, a causa secreta de um comportamento estranho (no se deve esquecer que a postura de Garcia assemelha-se, guardadas as devidas proporções (já que no dotado de onisciência), aos santos de Entre Santos, pois dotado da capacidade de prestar atenção personalidade humana. , pois, quase um álter ego de Machado de Assis). Tempos depois, passam a se encontrar constantemente no mesmo transporte, o que solidifica uma amizade. a oportunidade para que o homem misterioso convide o amigo para conhecer casa e esposa. Estreitada a relação, duas consequências surgem. A primeira a identificação entre Garcia e Maria Luisa, mulher do amigo. A sorte que não se desenvolve nada mais do que isso. A segunda a clínica que os dois homens vão abrir em sociedade. Nela, Fortunato vai-se destacar como um médico atencioso, principalmente para os doentes que se encontram no pior estágio de sofrimento. E para aprimorar suas técnicas, pelo menos o que confessa a cônjuge, o personagem dedica-se a dissecar animais. Chocada com o sofrimento dos bichos, Maria Lusa pede intervenção a Garcia, que faz com que Fortunato não praticasse mais tal ato, pelo menos, ao que parece, na clínica, tão perto da esposa. A narrativa torna-se mais critica quando Fortunato flagrado vingando-se de um rato que supostamente teria roído documentos importantes: de forma paciente vai cortando as patas e rabo do bicho e aproximando do fogo, com cuidado para que o animal não morresse de imediato, possibilitando, assim, o prosseguimento do castigo. Maria Luisa havia pedido para Garcia interromper aquela cena, que foi a que justamente provocou o início do conto. A partir dai, encaminhamo-nos para o desfecho. A mulher desenvolve tuberculose. quando seu marido dedica-lhe atenção especial, extremada no momento terminal, ao qual ela não resiste. O final do texto crucial para a total compreensão da história. Velando o corpo fica Garcia, enquanto Fortunato dorme. Em certa hora da noite, este acorda e vai até o local onde está a defunta. Vê Garcia dando um beijo naquela que amou. Ia dar um segundo beijo, mas não aguentou, entregando-se as lágrimas. Fortunato, ao invés de ficar indignado com a possibilidade de triângulo amoroso, aproveitou aquela dor deliciosamente longa. Descobre-se, assim, o seu caráter sádico. interessante notar como o autor deslinda aqui um comportamento doentio que norteia ações que aos olhos da sociedade podem parecer da mais completa bondade e dedicação ao próximo. Uma temática muito comum em Machado de Assis a ideia de que a aparência opõe-se radicalmente a essência. Este é um conto alegórico que apresenta a história de Maria Regina, sofredora de um dilema, pois não consegue decidir-se entre dois homens, Miranda e Maciel. Este se apresenta como cheio de vivacidade, alegria, mas que logo se transforma em futilidade, pois está apegado a aspectos mundanos, como fofocas e moda. Aquele é mais velho e, portanto, mais sério e circunspeto. Não tem a vivacidade do primeiro, mas é uma companhia de mais conteúdo, que não enfastia. É um conflito que lembra Esaú e Jacó. No final a heroína se perde nos sonhos, em que vê, como uma metáfora de sua situação, a encantadora imagem de uma estrela dupla que se aparenta com um único astro. Termina por ouvir uma voz fantástica que lhe diz: É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dois astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá... Fica a tese de que a conciliação de opostos é impossível e a busca da perfeição, conciliadora dessas contradições, só faz mergulhar na angústia da indecisão. Outro conto que apresenta o esquema de história dentro de história. Em meio à degustação de doces, começa a discussão sobre quem é mais curioso: o homem ou a mulher? Um dos convivas apresenta uma narrativa com um quê de enigmático e que vem de um livro apócrifo (livro que não é reconhecido pela Igreja e que, portanto, está fora da Bíblia) da Bíblia. É um relato que inverte a história de Adão e Eva. Primeiro porque apresenta a criação do Universo como fruto da ação do Diabo Deus é que ia consertando as falhas provocadas pela malignidade. Dentro desse aspecto está a criação do homem e da mulher. Na forma crua, estavam dominados por instintos ruins. O toque divino atribui-lhes alma, tornando-os sublimes, sendo levados para o Paraíso. Inconformado com a destruição de sua obra, mas impossibilitado de entrar no campo divino, convence sua criação dileta, a serpente, a tentar Adão e Eva a comerem o fruto proibido. De pronto o animal o atende, mas, por mais que insistisse, não obteve sucesso. Satisfeito com tal proeza de caráter, Deus conduz os dois para o caminho da glória. Termina assim o relato que deixa incrédulos entre a plateia, a maioria achando que tudo não passava de brincadeira do seu narrador. No entanto, o comentário final de um dos convivas é bastante interessante: Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor, se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na verdade, uma coisa primorosa. Além de o conto apresentar o oposto (mais uma vez a visão dilemática machadiana!) de uma questão, ou seja, uma outra história da criação, há uma ideia já desenvolvida, por exemplo, em Dom Casmurro: a graça de nossa existência está justamente na imperfeição em que se processa. Outro conto que trata das fraquezas humanas. Trata-se da história de Rangel, homem de sonhos gigantescos e ações minúsculas, quase nulas. Tanto que alcança a meia idade sem ter casado, pois sempre procurava uma mulher de posição. É mais uma personagem machadiana, pois, preocupada com status, prestígio social, não enxergando o prejuízo que tal comportamento trazia para si mesma. Até que flagramo-la em um encontro de amigos. Tentará seu último golpe, considerado pelo narrador um amor de outono, dessa vez sobre a jovem Joana. Mas, típico de seu comportamento, vacila muito entre a idéia e a ação. Até que surge um furacão em meio à festa: Queirós. Chega de forma repentina e da mesma maneira consegue a atenção e o carisma de todos os presentes, menos do protagonista, que sente um misto de ciúme e inveja, piorado quando seu alvo afetivo, Joana, torna-se mais uma das conquistas do novo conviva. Derrota fragorosa, que fica clara quando o protagonista mergulha no choro no instante em que está sozinho, de volta à sua casa. É o resultado da inércia inutilizando toda uma vida. O conto O Enfermeiro está, certamente, entre os melhores contos de Machado de Assis. Narrado em primeira pessoa a um interlocutor imaginário, a história do último enfermeiro do rabugento coronel Felisberto, que esgana seu indócil paciente. Sofre o drama de consciência, intensificado pela herança do pecúlio do velho, mas a culpa arrefece quando se v reconhecido por sua dedicação extrema. São todos exemplos maduros do realismo machadiano. O narrador nos relata a história de uma vez em que tinha ido trabalhar como enfermeiro para um riquíssimo senhor de nome Felisberto. Era tão rico quanto ranheta, o que havia motivado os inúmeros pedidos de demisso de enfermeiros anteriores. Por causa disso, o narrador tratado pelo padre da pequena cidade interior em que estão com toda a atenção, já que quase a última esperança. Corre a seu favor o fato de o senhor estar muito doente e, portanto, beira da morte. Por sorte, o protagonista se mostra como o mais paciente que já havia sido contratado, o que angaria alguma simpatia do velho. Mas a lua-de-mel durou pouco tempo: logo o doente mostrou o seu gênio e começou a tratar rispidamente o enfermeiro. De primeira, aguentou, até que atingiu seu limite e pediu demissão. Surpreendentemente, o oponente amansou, pedindo desculpa e confessando que esperava do enfermeiro tolerância para o seu gênio de rabugento. As pazes voltaram, mas por pouco tempo. A tortura retoma, até o momento em que o idoso atira uma vasilha d’água que acerta a cabeça do enfermeiro. Este, cego com a dor, voa sobre o velho, terminando por matá-lo esganado. Começa então o processo mais interessante do conto. O narrador reme-se de remorso, mas começa a arranjar desculpas em sua mente para arejar sua consciência (trata-se de uma temática muito comum em Machado de Assis. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas ela já havia aparecido, num capítulo em que o narrador a metaforizava. Quando fazemos coisas erradas, como se nossa consciência ficasse numa casa sufocada, com todas as portas e janelas fechadas. Então inventamos desculpas, muitas vezes nos enganamos mesmo, lembramos de outros fatos, como se fosse possível, por meio de uma boa ação, real ou inventada, compensarmos falhas, ou seja, abrir a janela da casa e arejar a consciência): o velho tinha um aneurisma em estágio terminal que iria estourar a qualquer hora mesmo. No entanto, para complicar sua situação, quase que como uma ironia, o testamento do velho declara que o enfermeiro era o único herdeiro. O protagonista mergulha num conflito interior, que pensa eliminar doando a fortuna, mais uma maneira de tentar arejar a consciência. Quando as pessoas vem elogiar sua paciência com um velho tão insuportável, resolve elogiá-lo o máximo possível em público, como maneira de ocultar para a opinião alheia todo vestígio do crime. O pior que acaba até se iludindo, eliminando de toda a sua consciência qualquer resto de crise. Nem sequer se livra, pois, da herança. Chega a fazer doações, como recurso de, digamos, arejamento de consciência. Fica, portanto, a ideia de que muitas vezes o universo de valores internos (o enfermeiro foi criminoso ao assassinar Felisberto) não corresponde ao de valores externos (uma cidade inteira o elogia pela paciência e dedicação a um velho rabugento). E o mais incrível que, mesmo sabendo do seu próprio universo interno e, portanto, da verdade, o narrador ilude a si mesmo. A literatura machadiana encara esse processo como comum no ser humano. É um conto de lição cruel, mas realista, ao narrar as mudanças por que passou uma paixão no espaço de 18 anos. Evaristo e Mariana mantiveram uma relação tórrida e descabelada, entrando em crise no momento em que, por pressões, ela estava para se casar com Xavier. Diante do amante, nosso protagonista, jura que a união oficial não ia diminuir a intensidade do enlace que, clandestinamente, estabeleciam. Pouco depois, por meio de flashback, sabemos que Mariana havia tentado suicídio, provavelmente em nome do sentimento que tinha por Evaristo, conflitante com a união que iria contrair. Este é impedido de vê-la. Parte, então, para a Europa num quase autoexílio, desligando-se quase que por completo das coisas do Brasil. Sem grande explicação, 18 anos depois sente necessidade de voltar à pátria. Ao chegar, visita Mariana, encontrando-a mergulhada na dor de ter o marido, Xavier, doente terminal. É o que o impede de um contato mais aprofundado. Com a morte do moribundo, fica sabendo por meio de várias pessoas da intensidade do amor que havia entre o casal, o que já tinha sido indicado pela dor dela quando do último suspiro do esposo. Pouco depois, flagra-a voltando da igreja e percebe que ela fez de conta que não o havia visto. Uma paixão tão fulminante fora esmagada pelo tempo, pois terminava de forma tão fria, ela evitando-o, ele encarando o fato num misto de indiferença e chiste. Conto de temática alegórica e grandiosa. Além disso, sua estrutura aproxima-o por demais do teatro. Trata-se do diálogo entre Ahasverus e Prometeu. A primeira personagem recebera a maldição de, por menosprezar Cristo em seu calvário, vagar pelo mundo sem encontrar abrigo e ser desprezada até que o último homem desaparecesse. Sua longevidade, portanto, deu-lhe uma experiência massacrante sobre o gênero humano. A segunda personagem pertence à mitologia clássica e havia criado o homem, sendo, portanto, condenada pelos deuses a ter uma águia comendo seu fígado por toda a eternidade. Diante dessa revelação, Ahasverus fica indignado e faz com que Prometeu volte para o seu castigo, de onde havia escapado. No entanto, a entidade mitológica declara que faria de Ahasverus o início de uma nova espécie, mais forte do que a anterior, que estava findando na figura do rejeitado, que agora se tornaria o rei dessa nova raça. Diante desse futuro grandioso, Ahasverus mergulha em devaneios, feliz com sua nova condição, esquecendo até o fato de estar morrendo para realizá-la. Como observam duas águias que voavam por ali, ainda na morte mostra um enorme apego à vida. Conto metalinguístico que em alguns aspectos antecipa as sondagens introspectivas e intimistas da prosa modernista. É a história de um cônego que se dedicava à escritura de um sermão. Tem sua tarefa interrompida porque não conseguia achar um adjetivo que se ligasse adequadamente ao substantivo que havia colocado em seu texto. Esforçava-se, mas a palavra não vem. Enquanto o protagonista espairece, para descansar a mente e buscar inspiração, o narrador mergulha no cérebro da personagem, defendendo a ideia de que as palavras têm sexo. Assim, o substantivo, masculino, que é nomeado como Sílvio, está procurando um adjetivo, feminino, designado Sílvia. É interessante nesse ponto como todo o universo de elementos que povoam nossa mente sonhos, impressões, sensações, lembranças é bem metaforizado ao ser apresentado como os obstáculos que o casal tem de suplantar até que finalmente consiga efetuar o seu encontro. Concretizada a união, o estalo mental surge para o cônego. Finalmente conseguia dar prosseguimento a redação de seu sermão, terminando-o.