A viagem da mula sem cabeça Um conto de Jorge de Palma Embora este “conto” tenha meu nome como autor, não posso dizer que é exclusivamente de minha autoria. Os fatos me foram contados por um amigo, o Josivaldo, num bar, durante uma cervejada. Com a simplicidade de quem não teve muito contato com o mundo literário, ele falou: “Eu conto os fatos, que foram verídicos, você escreve, publica e depois, a gente divide os lucros”. Em seguida fez o relato do que vou narrar. João da Silva, aposentado de quase setenta anos tinha uma paixão na vida: o seu carro. Era um veículo de marca comum, um Corsa, mas João zelava muito dele e o estimava, porque o carro nunca apresentava problemas mecânicos graves e assim ele gastava pouco com oficina. Mantinha-o sempre bem limpo, sem ferrugens e com pneus novos. Usava o veículo para pequenos passeios ou então para levar a mulher ao médico, para suas consultas costumeiras, porque, ao contrário do carro, e devido à idade, ela sempre apresentava alguns problemas na máquina humana. Na maior parte do tempo, João mantinha o carro na garagem de sua casa, bem trancada com um cadeado. Por isso foi grande a sua surpresa, naquela manhã de outono, quando viu o cadeado estourado e não encontrou o veículo no lugar de costume. “Roubaram o meu carro”, pensou e decidiu procurar a polícia. Fez um boletim de ocorrência, mas não botou muita fé de que o Corsa seria encontrado. Dois dias depois João recebeu um telefonema. Um desconhecido lhe disse que encontraria o carro a centenas de quilômetros de sua cidade. Em seguida lhe deu o endereço exato de onde estaria o Corsa e até agradeceu cinicamente, pelo uso do veículo. Com raiva, mas ao mesmo tempo esperançoso, João pediu apoio a um filho que também tinha um carro e poderia dirigir até lá. O filho, por sua vez, mais precavido, lembrou-se que tinha um amigo investigador, que estava de férias. Por isso o convidou para a viagem, prometendo uma gratificação. Assim, os três viajaram juntos, aproveitando o “passeio” e para encurtar a estória, encontraram o carro no lugar prometido. João ficou feliz ao ver o carro intacto e com as chaves no volante. Fez uma vistoria geral e notou que estava tudo em ordem. O policial foi mais cauteloso, olhou pneus, lataria, por baixo do veículo, nas partes internas das portas, no porta-malas e constatou que até os assentos estavam em ordem. -Vai ver, eles usaram o carro apenas para uma viagem – disse João -Podem ter usado para trazer drogas, para fazer algum assalto, ou para transportar alguém foragido – comentou o policial e acrescentou – provavelmente deu tudo certo para eles e abandonaram o carro sem arranhões ou buracos de bala. - E, apesar de tudo, devem ter bom coração – afirmou João, porque tiveram a atenção de informar onde estava o carro. Mas o policial ainda comentou: -É muito estranho, porque depois de roubar o carro anotaram seu endereço e encontraram seu telefone na lista. Muito estranho… O investigador ligou para a delegacia onde trabalhava e pediu informações. Não havia nada sobre o carro, a não ser o fato de que tinha sido furtado. Para voltar, eles decidiram que João voltaria com o filho, enquanto o policial dirigia o Corsa. A viagem transcorreu sem problemas. Finalmente, João colocou o seu carro na garagem e foi dormir feliz. A felicidade teve a duração de uma noite. Na manhã seguinte, ele teve novamente um choque ao notar que o carro tinha sido levado. Ficou desgostoso da vida. Quase chorou. Mas desta vez não teve que esperar muito. Naquela mesma manhã recebeu outro telefonema anônimo. Por isso chamou novamente seu filho e o investigador: - Disseram que o carro está aqui mesmo na cidade, ali na Avenida Brasil, quase no centro – explicou João. Encontraram o carro no local indicado. Colada ao volante estava uma nota de cem reais, com um bilhete dizendo: “Muito obrigado, desculpe o incômodo”. Desta vez eles notaram que um dos assentos do veículo estava rasgado e, no assoalho, havia um pó branco. E quem ficou branco e, depois, vermelho de raiva, foi o investigador: - Que droga, era droga mesmo ! Eu não usei a cabeça e fiz o papel de “mula”, a verdadeira mula sem cabeça! O carro tinha sido usado para trazer e não para levar a droga. E o policial não se conformava de ter dirigido o veículo por centenas de quilômetros transportando cocaína. O Josivaldo, que me contou estes fatos, não recebeu um tostão até agora pelos direitos autorais. Se alguém quiser fazer uma doação...