1 O autor Jorge de Palma é filho de Carmo de Palma e de Adelina Candian de Palma. Nasceu em Iracemápolis-SP, em 20 de dezembro de 1952. Trabalhou muitos anos como jornalista, atuando nos jornais: Diário de Limeira, Diário de Pernambuco, Diário de Americana, O Liberal (Americana) e Tododia (Americana), entre outros. Reside em Americana-SP. Contato pelo e-mail: [email protected] 2 Outros livros do autor: Dois olhos, duas vidas Escritos do Zé Pirata Guerra em Exu O homem que andava de costas Muito além do terror e da vingança Reencontro com meus versos esquecidos 3 4 Na palma da mão E assim começou a escrever: Ao ler o conto “Cantiga de Esponsais” um clássico, de Machado de Assis, que descreve os derradeiros momentos de um músico o qual sabia tocar maravilhosamente, mas não conseguia criar uma melodia sequer, Sartel sentiu uma punhalada no fígado. Era a personificação de si mesmo. Houve tanta dor, tanta desesperança, que achou que teria o mesmo fim melancólico do músico. Com 60 anos, vivendo em um mundo mais moderno, desabou. Sempre fora capaz de escrever muito bem. Sabia o português, conhecia gramática e até tinha revisor ortográfico no computador. Fazia atas como ninguém. Até reportagens chegou a escrever quando necessário. O grande problema era criar uma estória. Lia todos os livros quantos fossem possível. Mas não sabia criar os enredos, as intrigas, as 5 revelações , como os grandes escritores. Percebera com o tempo, que para escrever um livro teria que criar várias personagens. Algumas teriam que ser más. Nos livros e nos filmes de ação, quanto mais maldosos forem os "bandidos" mais se justificam as ações dos "mocinhos". Quanto mais sofrimento os maus impingirem aos bons, mais satisfatório é o sabor da vingança no final. E Sartel não se via criando uma coisa assim. Sartel poderia ser descrito como um velho amigável. Hoje em dia, com a moderna tecnologia e leitura pela internet, por Pdf, Epub e outros formatos, poderíamos de pronto inserir a sua imagem ou fazer um link. E todos veriam Sartel como ele realmente é, um velho simpático. Por isso é inútil descrevê-lo. Como acontece com todos os seres humanos, ele envelheceu. Arrependeu-se do que fez, e principalmente, do que não fez. (Ah, aquela moça... Se eu tivesse...) Mas se recuperou a tempo e guardou consigo o que tinha de mais importante: as suas lembranças. Só se arrependia de não ter registrado tudo e feito um backup porque ultimamente, sua 6 mente lhe pregava peças. Mesmo aquilo que tinha escrito há muito tempo, em um computador, não tinha sido registrado, porque a empresa onde trabalhou, estava atrasada e só se informatizou completamente, mantendo todos os arquivos na internet a partir do ano 199.... Por isso ele guardava a mágoa de não ter escrito nada. Nada criado, nada gravado, nada que se pudesse dizer ser um livreto de sua autoria. Ultimamente passava muito tempo no notebook, sua última aquisição. No começo se empolgou com a Internet e o tal de Facebook. A princípio pisou no acelerador, para conseguir amigos. Chegou aos 450. Achava isso importante, para o caso de ter que comunicar alguma coisa impressionante. Mas depois ficou de saco cheio. "Nada se cria, tudo se compartilha", constatou ao ver que tudo era cópia de mensagens de auto ajuda, ou de cunho religioso. As fotos e as ilustrações, sim, eram legais. Mas o resto era resto. Deixando a introdução, Sartel só começou a perceber alguma coisa estranha no dia em que, como em todas as suas folgas, foi tomar uma 7 cerveja no bar da esquina, da Cidade A, onde morava. O leitor sabe que em todo bairro, existe um bar de esquina. Pois foi justamente naquele bar, que ele começou a sentir a sensação de que alguma coisa estava diferente. Uma impressão profunda forçava a que ele se dirigisse para o cemitério de sua cidade natal, a cidade B. Sartel vivia acabrunhado com o seu relacionamento com a esposa. Como não tinha com quem discutir, ela era a última esperança. Discutia por tudo e por nada. Um exemplo era a toalha da mesa. Quando comprou uma mesa com superfície plastificada, para a cozinha, ele imaginou que teria paz. O que sempre o perturbou foi que, ao fazer o seu prato, derrubava alguma coisa na toalha. Ficava chateado com aquela mancha horrível. Com a mesa plastificada, era só passar um pano úmido. Mas a esposa insistia em colocar a toalha na mesa nova e daí vinha a desavença. Com o tempo Sartel descobriu não tinha raiva da mulher, nem da mesa, nem da toalha. Tinha raiva de si mesmo por tomar bebida alcoólica e derrubar coisas ao preparar o prato, 8 principalmente quando se tratava de macarrão ao molho. Mas a bem da verdade, isso acontecia mesmo quando não bebia. Sartel se empolgou certa vez ao ler a estória da tábua. Uma família tradicional fazia lanches há muitos anos. Eram os lanches mais gostosos da região. Quando uma grande empresa multinacional quis comprar a empresa, a família vendeu e passou a receita. Mas o lanche nunca foi igual ao o original. Só depois de muito tempo é que a multinacional descobriu que a família preparava o lanche em uma mesa, que nada mais era que o tronco de uma arvore centenária. Todo o sabor do lanches estava concentrado ali, no tronco da árvore morta. Por isso, com as técnicas modernas, o lanche nunca seria igual Sartel se empolgou com a estória. Um dia, contou-a, empolgado para Mariana, e ela respondeu:. -Esta certa a multinacional. Imagine quantos micróbios se acumularam naquele tronco de árvore... O certo é cortar carnes e legumes em base de vidro, plástico ou aço, que é muito mais higiênica. 9 A resposta de Anamaria foi inteligente, mas não foi romântica e serviu como mais uma argumentação do contra. Naquela tarde, de folga, com a mulher na cozinha e para não brigar por causa da toalha, ou por causa da tábua, ele decidiu ir até o bar da esquina. Foi então que veio aquela vontade louca de ir ao cemitério de sua cidade natal. Ele nunca foi dessas coisas, de sentimentalismos. Mas como sentiu forçoso ter de viajar, de ir até o cemitério, telefonou para Anamaria. Ela atendeu imediatamente e quando ele explicou o seu desejo e perguntou se ela queria acompanhá-lo a resposta foi imediata. -Eu vou, mas você sabe que dia é hoje? -Não faço a mínima ideia - respondeu Sartel, -Pois é o aniversário de nascimento de seu pai. O comentário de Anamaria o chocou profundamente. O pai de Sartel havia falecido há mais de 20 anos. A imagem que ele tinha na mente era uma foto tirada em um momento festivo. Quanto a datas, nunca se preocupou nem mesmo com seu próprio aniversário. Vivia 10 esquecendo. Para Sartel, o importante eram fatos e não datas. Sempre achou que o importante em uma vida não era esse ou aquele dia, mas sim a soma de todos eles. Mas Anamaria não era assim. Ela lembrava os aniversários de nascimento e de outros eventos da maioria de familiares e amigos. Por isso, quando ela disse que era aniversário do pai de Sartel, involuntariamente, ele teve uma crise de choro. Fosse lá o efeito do pouco álcool que havia ingerido, fosse a lembrança do pai, fosse a sensação estranha de sentir vontade de ir ao cemitério. A verdade é que chorou como não tinha feito quando o pai morreu. Com Anamaria ao lado, viajou 40 quilômetros para chegar ao cemitério. Quando se aproximava da Cidade B, sua mente viajou, e ele começou a rir. Anamaria perguntou o que estava acontecendo e ele disse que eram os fantasmas do passado. Na verdade eram fantasmas, do tipo do tipo Gasparzinho. Sartel se viu novamente com nove anos, rodeado de crianças, que iam assistir a mais uma das peraltices do Gazuza. O menino, com 11 mais ou menos a mesma idade do grupo, vivia de "experiências". Naquele dia, afirmou que ia subir em uma árvore e pular de paraquedas. Mas como não tinha o paraquedas, levou um guarda-chuva. Pediu a todos que, quando ele pulasse, batessem palmas e gritassem: "Muito bem, que grande feito!" Quando pulou, o guarda-chuva se revirou todo e Gazuza se arrebentou no chão. Como estava combinado, os coleguinhas aplaudiram e sintetizaram: "Bem feito! Bem feito!" Sartel soube ainda mais algumas coisas sobre Gazuza. A última “experiência" era que ele estava procurando uma garrafa transparente para soltar gases intestinais. Ele queria saber a cor do pum... Antes de chegar ao túmulo de seus avós, Sartel, começou a ver, nas fotografias, muita gente conhecida. Eram seus amigos, vizinhos, moradores da cidade, que haviam falecido nos últimos 30 ou 40 anos. Sentiu paz. Sentiu alegria em "revê-los". Foi então que teve a ideia de criar o "Cemitério Virtual". Bastaria fotografar todos os túmulos, focando principalmente as fotos e as informações sobre 12 os mortos. Depois seria só inserir tudo em um site. Quem não quisesse ir o cemitério, poderia simplesmente entrar na internet e digitar: www.cemitériodacidadeB.com.br. Acreditando que os falecidos vivem quando alguém pensa eles, Sartel ainda teve a ideia de inserir no site algumas histórias para que os mortos fiquem mais vivos. Além disso os sepultados seriam globalizados com o cemitério virtual. Ao chegar ao túmulo dos avós, revolveu-se em um mundo de lembranças. Se viu novamente criança, acompanhando a vó, no caminho para aquele mesmo cemitério. Na estrada, que naquele tempo era de terra, eles iam caminhando quando a vó perguntou: -Você sabe por que não tem o mesmo sobrenome que os seus primos? O menino Sartel não sabia. Então a vó explicou; -Quando meu casei com seu avô, José Sartel, tudo parecia maravilhoso. Nós dois éramos jovens e achávamos que o mundo tinha tudo de bom. Foram seis meses de felicidade e eu fiquei grávida de seu pai. Mas um dia, um grupo de ciganos apareceu na vila, vendendo coisas. 13 Sempre acontecia isso e a gente não estranhava. A gente acabava se misturado e trocando ideias. Foi quando uma cigana pegou a minha mão e disse que ia ler a minha sorte. Não me preocupei porque era feliz e acreditava no futuro. Naquele momento, Sartel deu um fundo suspiro. Ao lembrar o que a vó contou a seguir ele estremeceu. A vó prosseguiu: Ao ver a minha mão, a cigana foi incisiva e disse que eu perderia a minha felicidade no rio, em seis meses. -E o que aconteceu, vó? -Aconteceu, que eu fui lavar roupa no rio e perdi a minha aliança. A água a levou e também a minha felicidade.... -Mas foi só uma aliança.... -Sim, mas um mês depois, o seu avô morreu de um infarto do coração, antes de seu pai nascer... -Credo, vó, mas o que tem isso a ver com os meus primos. E ela contou: Foi então que me casei como o J.B. e tive outros filhos. Eles são seus primos, mas não têm o sobrenome de seu pai. 14 - Mas vó, e se a cigana insistir e a gente não quiser saber do destino. -Você dá a costa da mão.... Sartel entendeu. Seria como dar as costas para o destino. Agora ao ver a foto da vó, no túmulo, sentia uma inveja ao lembrar como ela sabia contar uma história. Mas não pode conter o riso ao ver a foto do avô, que não era o seu avô de verdade. Devia ser aposentado para viver tão tranquilamente. Por isso Sartel tinha a impressão de vê-lo sempre na rua, jogando conversa fora. O J.B. era terrível e foi um dos precursores da "tolerância zero" uma vertente do humor. Uma vez, caminhava na rua principal do povoado, quando um amigo perguntou: -E aí JB. o que acontece? -Eu estou voltando do enterro do M.C. E o interpelante replicou admirado: -Mas o M.C. Morreu? J.B. respondeu sem pestanejar: -Não, enterramos ele vivo! De outra feita, J.B. se encontrou com Nho Barbino, o homem de um braço só. Também 15 devia ser aposentado porque sempre tinha algum dinheiro no bolso e vivia se trabalhar. Estavam em um açougue e apareceu um inseto. J.B pegou o inseto e disse que apostava X em dinheiro que o engoliria. Nho Barbino duvidou e bancou a aposta. J,B. pegou o inseto, enfiou-o na boca, deu uma mastigada rápida e o engoliu. Depois disse: -Isso é para você deixar de ser idiota. - E apanhando o dinheiro do Nho Barbino, saiu rapidamente do local. Sartel nunca soube se o avô realmente engoliu o inseto Mas a cada dia admirava mais o homem que era, mas não era o seu avô. Depois disso houve uma tragicomédia. Só pode ser descrita assim porque J.B. era quem ele era. Por muitos anos, o Coríntians Futebol Clube não conseguia ganhar do Santos F.C. Pois bem, o J.B. era corintiano roxo. No dia em que o Coríntians "quebrou o tabu". Houve uma grande festa na então já Cidade B. Todo mundo correndo pelas ruas e soltando fogos. J.B. também participou. Soltou tantos fogos, 16 que um dos "rojões" estourou em sua mão. Foi tão grave que teve que ser conduzido para o hospital da cidade vizinha, mais desenvolvida. Quando voltou, sabendo que ele havia perdido um dedo da mão direita, Sartel foi visitá-lo. Ao ntrar no quarto do avó, com a cara triste e preocupado, ouviu quando J.B, disse bem firme: -Não fique preocupado, meu neto. Se o Corintians ganhar de novo, eu não faço contas de perder mais um dedo.... Agora, ao ver a foto do avô no túmulo, Sartel tinha novamente vontade de rir. E a ideia do Cemitério Virtual ganhou mais força. Realmente poderiam ser acrescentadas histórias, para manter os mortos mais vivos.... Ao regressar à cidade A, estranhamente Sartel se sentiu mais feliz. Parecia mais livre. Era como se não estivesse mais tão só. Havia alguma coisa dentro de si, que ele não sabia explicar. Mas o deixava mais confiante. Naqueles dias, Sartel estava relendo "Demian". de Hermann Hesse" . Não se sentia com a marca dos cainistas, mas lembrava-se de que, quando lera o livro pela primeira vez, 17 sentira força. Era jovem, aprendeu hipnotismo com o monsenhor L.F.A. Estudou auto sugestão com o seu amigo Al e chegou a sentir que tinha alguma força mental. Hipnotizou amigos para experiências. Mas era muito jovem e a força da mãe foi maior. À base de chineladas, teve que abandonar tudo, para não se passar como O Bruxo de B. Nunca fora muito religioso. Acreditava na mente, mas não tinha certeza das coisas espirituais. Teria mesmo o chamado ao cemitério provindo de seu pai, ou Anamaria teria pensado nisso com tanto desejo, que ele se sentira chamado. Não importava. Estava feliz. Não se sentia só. Ao mesmo tempo passou a se recordar do pai, quase que diariamente, até que se lembrou de uma foto antiga. Era de seu pai, solteiro, morando na Capital, trajando um terno preto e um chapéu de feltro. Magro e alto parecia personagem de algum filme. Com quem estaria aquela foto? Sartel guardou as lembranças para si. Mas alguns dias depois, uma prima que estava doente, faleceu. Como sempre acontece nestas 18 ocasiões especiais, reúnem-se parentes dos mais diversos locais. Depois do funeral, já em sua casa, Anamaria contou a Sartel que havia ganho dois "presentes" da irmã dele, que veio da cidade B. Mostrou-lhe então duas fotos. Uma era um close de seu pai com o rosto sereno. A outra era a foto do pai com o chapéu de feltro.... Anamaria disse que o presente era para ela e guardou as fotos. Sartel estava tão boquiaberto, tão surpreso com a feliz coincidência, que nem sequer argumentou nada. Levantou-se com os olhos lacrimejando e foi para seu quarto... Não se importava que a foto ficasse nas mãos de Anamaria. O que importava é que a tinha visto novamente e que estava em casa. “Vou trabalhar mais feliz”, pensou, e continuou relendo "Demian". Novamente sentiu o poder da força. Quando chegou em casa, naquela tarde, as fotos de seu pai estavam literalmente coladas na tela de seu notebook. Anamaria as colocara ali. Por que? Ele não perguntou. Pegou a foto olhou com carinho. Sentiu que havia uma conspiração cósmica a seu favor. E, de repente, teve um estalo. Já 19 sabia o que fazer. Lembrou-se da avó. Não daria a costa para o destino. Estava tudo ali, na palma de sua mão. E assim começou a escrever... 20 A musa disse não A ilusão visitou-o ainda criança. Um dom vindo de Deus para que certas pessoas produzam beleza para encantar as demais. Jean tornou-se poeta. Poeta da cabeça aos pés. Iludiu-se aos quinze anos. E tudo passou a ser poesia. Não fechou mais o dicionário. As palavras tinham vida e ele juntava-as emocionado, dizendo ao final de cada verso: Uma nova família. Criou famílias e mais famílias. Era um Deus criando seu mundo e sorria, chorava, gritava com o que as famílias diziam. Inspirou-se em tudo e produziu pilhas e mais pilhas de folhas versejadas. Enamorava-se ora de uma moça, ora de outra, mas a grande paixão era a poesia. Era ciumento; as querias só para si. Poucos viram seus versos, mas quem os viu entusiasmou-se. Que grande poeta era o Jean! 21 Um dia ele conheceu aquela moça. Examinoua esteticamente como fazia com seus versos e chegou a uma conclusão: Era uma pequena deusa. Só não a adjetivou de deusa, sem o "pequena", porque a sua grande paixão era a poesia. Contudo, a moça era uma perfeição. Sua admiração foi amentando e finalmente Jean apaixonou-se por uma obra que não era sua. Aquela moça fugia de seu mundo mas ele a queria nele. E ela, unicamente ela passou a ser a sua fonte de inspiração. Produzia agora os melhore versos de sua vida e agradecia á pequena deusa por isso. Mas com o tempo o platonismo não foi suficiente. Jean descobriu que além de poeta era homem e como homem queria aquela mulher. Mas ela disse: Não. Jean fugiu. Fugiu e voltou. Insistiu, mas ela disse não. Usou tudo quanto é ardil que empregam os enamorados. Tudo em vão. Resolveu fazer um grande poema: a maior obra de sua vida, na qual mostraria toda a sua capacidade literária e o seu imenso amor pela pequena deusa. 22 Trabalhou durante três dias, sem descanso, sem comida, sem bebida. Perdeu três quilos de peso e produziu três quilos de poesia. Era como se o seu próprio corpo estivesse se transportando para o papel. A moça nem leu... O pior veio depois. A pequena deusa casou-se. Casou-se com um moço rico. Jean ficou abobalhado. Ele, como todo grande poeta não corria atrás do dinheiro. Não podia compreender isso... Contudo, o impacto foi tão grande que seu mundo desmoronou. Em uma noite, ajuntou todos os seus escritos e levou-os para o fundo do quintal. Durou várias horas fazendo isso. Nos seus olhos brilhava faíscas doidas. Lá no fundo do quintal ficou aquela montanha de poesia. Todo o seu mundo estava ali. Voltou para dentro de casa e surgiu com um galão de gasolina. Fez então tudo apressadamente. A noite se iluminou numa enorme e fulgurante fogueira poética. Jean viu as folhas se contorcendo uma a uma no meio das chamas e chorou. Chorou como um deus que destrói o seu mundo. 23 Sua grande ambição virou cinzas e as cicatrizes sararam um dia. O mundo ficou sem conhecer um grande poeta. Jean fez tudo para se transformar-se em um homem comum. Um homem como os outros, que correm atrás do dinheiro. Venceu. Tornou-se um grande fabricante de armas bélicas. Natureza erótica O vento soprou descompassadamente como um coração descontrolado e os galhos das árvores foram se empurrando uns aos outros até que lá no centro da floresta os últimos galhos derrubaram folhas verdes no lago azul. Todos ficaram sabendo que Léia vinha banhar-se. O lago empurrou rapidamente as suas águas sujas e ficou mais limpo do que nunca, deixando transparecer no fundo as pedras azuis que o tornavam daquela cor e os peixes que 24 nele viviam. Léia vinha banhar-se e toda a floresta temia que um dia ela não viesse mais. Por isso, o vento, depois das primeiras lufadas, soprava de mansinho, empurrando de leve a menina moça para o meio da floresta, enquanto as árvores dançavam ao canto dos passarinhos. Há algum tempo era assim. Léia nascera à beira da floresta e os primeiros passos que dera foram em direção a ela. Tudo mudou para aquela floresta triste onde só entravam homens com espingardas e machados nas mãos. Léia não tinha espingarda, nem machado. A floresta encantou-se. Quando Léia conheceu o lago, ele não era tão bonito. Mas depois, conforme a menina ia crescendo e sua beleza se acentuando, ele também foi ficando cada vez mais belo. Agora, Léia já era mais moça que menina e a floresta não sabia mais o que fazer para agradar a sua amada humana. Quando a moça começou a tirar a roupa, o sol afogueou-se, o vento deu uma lufada rápida de inda e vinda, as árvores balançaram-se em regozijo e os pássaros erraram o canto. 25 Os pés de Léia penetraram as águas do lago, que lançou pequenas ondas de prazer. Eram pés pequenos e tão delicados que não pareciam capazes de sustentar o peso de um corpo. Depois vieram as pernas, mais rosa que bonze, com graciosa firmeza. O lago lançou ondas maiores. Por fim possuiu-a completamente quando nele penetraram as outras partes do corpo. De repente, um ruído estranho, que toda a floresta percebeu, menos Léia. A floresta aquietou-se em suspeita. Havia mais alguém por ali. Um vulto esgueirava-se cautelosamente por entre as árvores. Era um moço loiro. Não trazia espingarda, nem machado, mas a floresta inquietou-se. O moço aproximou-se do lago, despiu-se entrou devagarinho na água para surpreender a moça que brincava distraidamente. A floresta estava tensa. Foi quando Léia percebeu a presença do moço. Deu um gritinho de susto e exclamou: -Oh, André! Que susto você me deu! Ele sorriu e disse: - Léia, este lugar é lindo, mas você não vai 26 sentir falta dele. Nós vamos morar numa cidade linda, cheia de coisas diferentes, que você nunca viu, mas sei que vai gostar. - Está bem, mas como você chegou até agui? - Ora, bobinha, eu a segui sem que você percebesse. Vim para apressá-la porque o seu pai já arrumou nossa bagagem e vamos partir logo. Então o sol esmaeceu; o vento soprou angustiado e algumas árvores que rodeavam o lago caíram sobre ele. E o lago azul ficou vermelho... 27