Guerra em Exu Jorge de Palma O autor Jorge de Palma é filho de Carmo de Palma e de Adelina Candian de Palma. Nasceu em Iracemápolis-SP, Brasil, em 20 de dezembro de 1952. Trabalhou muitos anos como jornalista, atuando nos jornais Diário de Limeira, Diário de Pernambuco, Diário de Americana, O Liberal (Americana) e Tododia (Americana), entre outros. Reside em Americana-SP, Brasil Contato pelo e-mail: [email protected] Guerra em Exu No dia 31 de outubro de 1977, cheguei ao Recife, após uma viagem de três dias. Vinha desiludido com a vida e ao mesmo tempo com novas esperanças, uma vez que em São Paulo tivera dissabores. Recife representava algo novo. Mesmo com pouco dinheiro no bolso tinha expectativas de conhecer aquilo que já vira nos calendário turísticos: Recife das igrejas seculares, dos velhos sobrados e modernos edifícios, do sarapatel, da galinha-de-cabidela, da carne-de-sol, do Pátio de São Pedro, da Praia de Boa Viagem, das cirandas, do frevo, do Carnaval enfim, todo um mundo novo para mim. Desembarcando no então Terminal Rodoviário de Santa Rita, percorri pela primeira vez a rua do mesmo nome, pela qual passaria milhares de vezes. Ali decidi entrar em uma das inúmeras pensões. Severino, um jovem magrinho e que depois se mostraria um bom amigo, olhou-me por detrás de um pequeno balcão e sorriu me atendendo servilmente. Depois de cobrada a importância de três dias de pouso ele indicou-me o quarto, um cubículo, dividido por madeira, com apenas um metro e meio de largura, por três de comprimento, onde cabia uma cama de solteiro e uma pequena mesa. Naquele quartinho comecei vida nova. Só não imaginava a estranha história com a qual acabaria me deparando. Nas próximas horas, aproveitei para conhecer as proximidades da pensão. Estive no famoso Mercado de São José, que guardava, ainda na época, os traços originais de sua construção. Planejado pelo arquiteto francês Luiz L. Walter, foi construído à imagem e semelhança do Graniele de Paris. Com 377 compartimentos, era formado por dois pavilhões, onde se vendia de tudo desde alimentos, utensílios até artesanato e outras expressões da arte folclórica do Nordeste. Quando voltei à hospedaria, encontrei Severino conversando com um rapaz alto e magro, de cabelos encaracolados, pele morena, barba bem feita e um bigode bem aparado. -Este é o Carlos Amaro, ele é seu vizinho de quarto – disse Severino. Estendi a mão para Carlos e ele retribuiu, falando no sotaque nordestino, acentuando as primeira sílabas e reforçando os “erres”. -Muito prazer, espero que fique bom tempo por aqui. Assim terá oportunidade de conhecer bem o Recife. -Pretendo ficar mesmo! - respondi. E ele replicou: -Pois então, se precisar de mim para qualquer coisa, pode contar comigo. Ficamos por ali conversando mais algum tempo e depois, enquanto subia para meu quarto, ele continuou conversando com Severino. Pela nossa conversa fiquei sabendo que ele trabalhava nos escritórios de uma firma exportadora. Era solteiro e se encontrava no Recife há alguns anos. Mais tarde, no pequeno quarto, passei a ler o jornal que havia comprado durante o passeio pelo bairro São José e uma reportagem chamou-me a atenção. Segundo o texto, o prefeito de Exu, José Aires de Alencar, ou Zito Alencar , como era mais conhecido, defendia-se de uma série de acusações de crimes e acusava membros da família Sampaio de serem os provocadores e praticantes dos crimes a ele imputados. Mal sabia eu que dentro de alguns dias estaria pesquisando o assunto. Mas foi exatamente o que aconteceu. Em busca de um emprego, acabei entrando no prédio do velho Diário de de Pernambuco, o jornal mais antigo em circulação na América Latina. Ao sair dali já fazia parte de seu quadro de repórteres. Mas voltando ao dia primeiro de novembro, quando o futuro ainda era incerto para mim, encontrava-me no quarto, preparando-me para dormir, quando ouvi ruídos no quarto ao lado. Era Carlos chegando. Revivendo as emoções do dia, o sono demorou a chegar e, de vez em quando ouvia Carlos remexer-se na cama, pois a divisão de madeira não isolava os sons do quarto ao lado. Já era mais de meia noite quando ouvi Carlos resmungando: “Você de novo!”, pareceu-me ouvi-lo dizer. Várias outras palavras foram pronunciadas a seguir, mas ele falava baixo e eu não pude entender o sentido. Porém, depois ele ficou mais exaltado e elevou a voz: -Vai embora seu demônio. Eu já disse que tenho nada com você. Naquele momento ouvi forte ruído, como se ele tivesse dado um murro na divisão de madeira. Assustei-me, porém fiquei quieto e depois tudo se tornou silêncio, até que adormeci. No dia seguinte encontrei Carlos na hora do almoço. Ele me convidou para almoçarmos numa lanchonete nas proximidades e lá fomos nós. Conversamos sobre diversos assuntos como as festas de fim de ano no Recife, o carnaval, que já tinha sido rotulado como o melhor do mundo, mas agora estava em decadência, apesar de manter ainda as suas tradições, etc. Pareceu-me que ele não se referiria ao fato ocorrido durante a noite contudo, depois de algum tempo disse: -Espero que você não tenha se assustado ontem à noite. Tive um pesadelo e acabei esmurrando a parede. -Ah sim – repliquei – confesso que me espantei um pouco, mas isso não tem importância porque eu tenho sono pesado e logo adormeci. Ele sorriu e não disse nada. Então, para continuar o assunto perguntei: -Mas que sonho foi esse? Parece que você viu o diabo... O sorriso morreu em sua boca. Por um momento ele ficou tenso e nada disse como se tivesse receio de falar. Depois, um tanto forçado, sorriu novamente e comentou: -Pois é, a gente tem cada sonho besta. Eu sonhei mesmo com o bicho. Sabe eu acho que não é bom assistir muitos filmes de terror. Concordei com ele e logo em seguida mudamos de assunto. Nos dias seguintes não encontrei-me mais com Carlos. Ele havia viajado para Alagoas, a serviço da firma e só voltaria em dezembro. Famílias em guerra Um mês depois, trabalhando no Diário de Pernambuco, e sentia ambientado em meu local de trabalho e numa quinta-feira à noite, o chefe de reportagem me chamou e e apresentou a um homem dizendo: -Este moço é membro da família Sampaio. O pessoal dele está reunido e quer fazer algumas declarações para a imprensa. Vá com ele e leve bastante papel, porque vai ser uma reportagem arretada. E foi assim que, de repente me vi em um automóvel, rumando pela Avenida Conde da Boa Vista, para meu primeiro contato com a família Sampaio. O carro não rodou muito porque o encontro seria em um bar-restaurante na própria avenida. Os Sampaio estavam bebendo e conversando mas tão logo fomos apresentados, todos se dirigiram a um apartamento onde poderiam falar com mais liberdade. Expulsos de Exu, eles estabeleceramse no Recife, onde possuíam estabelecimentos comerciais. Agora, depois de uma entrevista de José de Alencar à imprensa pernambucana os Sampaio estavam exaltados e queriam contar as suas versões dos fatos. Na realidade, aproximavam-se as eleições e Zito Alencar que em 1949 havia iniciado a guerra entre as duas famílias, ao assassinar o patriarca da família Sampaio, regressara a Exu depois de ficar muito tempo escondido em outros estados nordestinos. Ao se pronunciar à imprensa, ele provocou novamente a ira dos Sampaio. E foi assim que tomei meu primeiro contato com aqueles que participavam de uma guerra que já havia feito dezenas de mortos de ambos os lados. Naquela entrevista em que participaram Maurício Sampaio, Avelar Sampaio, Vitor Bacoral Soares e outros integrantes da família Sampaio, eles me contaram coisas horríveis como por exemplo o caso de um membro da família que foi assassinado e enterrado em uma cova rasa no município de Exu. O crime só foi descoberto porque um cão, farejando comida, acabou aparecendo com um braço do defunto na boca. Aquela entrevista me fez também procurar mais dados sobre Exu. Foi quando fiquei sabendo que a povoação a se formar com a amizade entre vaqueiros da Fazenda Torres, que ficava na circunvizinhança e a tribo Ançu. Onde os ídios viviam, no outro lado da encosta do Araripe, havia fontes e o terreno era propício à agricultura. Mudaram-se os fazendeiros para o local e logo depois os padres e jesuítas instalaram-se fundando um abrigo e uma capelinha em homenagem ao senhor Bom Jesus dos Aflitos. Em 1734, estava constituído o núcleo da população. Outro dado, só para ilustrar, é que em Exu nasceu o rei do baião, Luiz Gonzaga. Em primeiro de dezembro a reportagem foi publicada e foi justamente naquele dia que voltei a encontrar Carlos. -Fiz a pergunta porque sabia que ele nascera em Exu e acompanhara de perto certos acontecimentos convivendo mesmo com alguns membros das famílias envolvidas. -De fato – comentou ele – muitas coisas aqui são verídicas, mas é lógico que os Sampaio tentaram mostrar-se santos, pois só falaram dos crimes imputados aos Alencar, mas não citaram nada do que eles também fizeram. Tive que concordar com ele e continuamos a falar sobre o assunto. Já fazia alguns dias que Carlos tinha voltado mas eu ainda não tivera oportunidade de conversar com ele. Entretanto, em noite anteriores ouvira estranhos ruídos em seu quarto. Conclui que o seu demônio continuava perturbando-o em seus sonhos, mas como ele não tocou no assunto, achei melhor não falar também. Estávamos no momento sentados a uma mesa de um bar do Pátio de São Pedro, assistindo às tradicionais cirandas pré-natalinas. Eu estava admirado, pois em São Paulo só conhecia as cirandas infantis. Mas Pernambuco é um dos poucos estados do Brasil onde a gente vê esta dança folclórica em que participam os adultos. Ali, no Pátio de São Pedro, crianças pobres e ricas, velhos, moças e rapazes dão-se as mãos e durante horas dançam em círculo, enquanto o cirandeiro canta bonitos versos populares. Lembro-me de uma composição que ouvi naquele dia: “Hoje cedo no Recife Um moço me perguntou Se na ciranda qu´eu estou Tem muita moça bonita E eu lhe respondi Tem loira, mulata, morena Que a morte mata E depois fica com pena”. Carlos olhava para tudo aquilo como quem já se acostumara a ver a mesma coisa ano após ano. Mas eu notei que ele não estava muito calmo. Parecia inquieto e ao mesmo tempo sonolento. Vendo que os estava observando, comentou: -Sabe, Jorge, já que você está mesmo interessado e Exu, eu me lembrei de que há muitos anos li uma boa reportagem sobre o assunto. Não sei mesmo se foi no Diário que eu vi, mas lembro-me que o jornalista contava resumidamente toda história ocorrida lá nos últimos 30 anos . Seria bom você procurar no arquivo por esta reportagem e assim já teria meio caminho andado. -De fato é uma boa ideia – disse eu – acho que amanhã mesmo vou fazer isso, mas tem mais uma coisa que eu queria falar com você. Eu queria saber como é Exu, pois ainda não tive oportunidade de ir até lá. -E nem vale a pena – retrucou ele – a viagem é uma tristeza e lá só há um punhado de casas e tristes recordações. Não, não vale a pena... Notei que ele ficou pensativo e ao mesmo tempo uma pergunta nasceu em meu cérebro: “Tristes recordações... para todos ou só para ele?” Mas não disse nada a respeito. Ficamos por ali bebericando mais um pouco e assistindo as cirandas. De repente Carlos ficou pálido. Segui seu olhar e notei que ele dirigia os olhos esbugalhados para a roda de ciranda. Balbuciou algumas palavras que não entendi; olhou para mim em seguida e vendo meu espanto, perguntou: -Você acredita em demônio? -Acho que não – respondi. -Pois eu estou vendo um... -Mas é o diabo mesmo ou você está falando figurativamente? -Acho que estou maluco, mas é o diabo mesmo. Olhei para a mesma direção que ele, mas não vi nada de anormal. O cirandeiro continuava cantando e as pessoas dançavam em círculos de mãos dadas. -Onde está o diabo – perguntei incrédulo. Bastante assustado ele respondeu com outra pergunta: -Você está vendo aquele rapaz de azul e aquela moça de amarelo? -Sim, estou vendo mas não vejo nada de espantoso. -Eles estão de mãos dadas com alguém? -Com pessoas normais, ora bolas, ela está segurando a mão de um velho e com a direita tenta alcançar o moço que lhe estende a mão esquerda. -Quer dizer então que há um espaço entre eles? -Sim – repliquei – mas não estou entendendo onde você quer chegar. -Neste espaço caberia outra pessoa? continuou perguntando ele. -Sim. -Pois então, ali está o diabo que eu estou vendo. É ele que segura a mão direita da moça e a esquerda do moço. Ele está brincando de ciranda. -Quase dei uma gargalhada, mas me contive. Ainda não conhecia Carlos profundamente e não saberia dizer qual a sua reação se zombasse do que ele estava falando. No entanto fiquei olhando para ele com uma expressão que por certo, denotaria dúvida ou incredulidade. Depois disse: -Você não está zombando de mim? Ele me olhou sério. -Não, não estou, mas agora já não tem importância. Ele foi embora. Olhei para a roda de pessoas que brincavam e agora havia uma diferença. O moço de azul e a moça de amarelo estavam de mãos dadas... Voltamos a seguir para a pensão e naquela noite, pelo menos até 3 horas da madrugada, a visão do diabo não mais perturbou Carlos, pois durante todo o tempo eu fiquei ouvindo uma história incrível que ele me contou e que confesso, meu deu muito o que pensar. Na tarde seguinte eu estava novamente na redação do Diário. Lá mais de 30 repórteres e fotógrafos aguardavam as pautas do dia para iniciar o trabalho. Lembro-me que um deles comentou algo sobre um incêndio, mas não dei maiores atenções. Tinha, para aquele dia, uma boa reportagem sobre os favelados do Coque um dos mais pobres e problemáticos bairros do Recife e estava apenas aguardando a escala de um fotógrafo para me acompanhar. Tão logo isso foi resolvido, saí a trabalho e só voltei mais tarde, quando me pus a escrever o que havia apurado. Lembro-me que naquele momento um colega escrevia apressadamente uma nota sobre um incêndio que destruíra o depósito de uma firma exportadora e cujos prejuízos remontavam a mais de 10 milhões de cruzeiros, conforme o dinheiro da época. Durante a tarde também ouvira no rádio da perua do Jornal, algo a respeito deste incêndio. Conforme a note havia uma vítima que, até aquele momento, não havia sido identificada. Para inteirar-me do assunto perguntei ao colega ao lado: -Já identificaram a vítima? -Sim - respondeu-me ele – é um tal de Carlos Amaro, funcionário da empresa. O que senti naquele momento foi inexprimível. Pensei ter ouvido mal e repeti a pergunta. Devia ter uma expressão angustiada porque meu colega parou de escrever e deu-me mais atenção. -Carlos Amaro – repetiu e perguntou – era amigo seu? -Sim, era meu amigo, mas como aconteceu isso? -As causas do incêndio ainda não foram apuradas. Pode ter sido um curtocircuito, como ocorre sempre. -E ele, como pode ser morto assim? -Ele estava no depósito, conferindo uma lista de mercadorias. O incêndio deve ter inciado do lado da porta e o encurralado. O interessante é que o corpo ficou quase que totalmente queimado, com exceção do peito e da mão direita onde ele apertava um crucifixo. Deve ter passado momentos horríveis este seu amigo. Senti-me mal. O que tinha comido na hora do almoço parecia não querer mais parar no estômago. Levantei-me apressadamente e sai correndo. Não voltei mais ao jornal naquele dia. Fiquei vagando como um bobo pelo centro da cidade, até que entrei em um barzinho e tomei uma bebida forte. Depois fui para a pensão. Ali o ambiente era constrangedor. Carlos era muito conhecido e amigo de todos. Os comentários eram os ais diversos e Severino, além de triste parecia mesmo meio assustado. -Dá para entender uma coisa destas? perguntou olhando para mim. -A morte é sempre um mistério – repliquei. -Sim – disse ele – mas é que estou com umas ideias na cabeça. Um dia ele me contou uma história estranha e agora ela não me sai do pensamento, pois acho que pode haver uma relação, mas ao mesmo tempo julgo que é uma idiotice minha. -Eu também sei da história, Severino, mas estou em dúvida e não sei o que pensar. -Então ele lhe contou? Sim, Carlos havia me contado sua história na noite passada e agora eu a estava reconstruindo mentalmente. Não posso afirmar que suas palavras foram exatamente estas, mas tentarei dar uma visão global de tudo o que ele me contou. A história de Carlos Há anos este medo me acompanha. Vejo em cada sombra, em cada chama, o rosto zombeteiro desta criança a me ludibriar, a me amaldiçoar a caçoar de mim. Vejo chispas de fogo em seus olhos, palavras obcenas saírem de sua boca e me contraio, fujo mas para onde? Ele me persegue a cada instante e se torna bonito, às vezes. Tem então a aparência de um anjo e seu sorriso é algo celestial, mas de repente se torna malicioso, seu rosto se transfigura e eu me perco em desespero. Ele gargalha, dá saltos, cambalhotas e me xinga de “cabra safado”. Depois lança-me chispas de fogo que a cada dia são maiores, parecendo querer me engolir. Eu já tentei agarrá-lo, mas ele sobe pelas paredes pendura-se no telhado e fica rindo de mim. Depois desaparece em qualquer sobra para reaparecer, quando menos espero, em qualquer outro lugar. Há anos isso ocorre. Tudo por causa daquele dia em que fui fraco e deixei que o desejo me dominasse. Era uma tarde ensolarada como tantas outras em Exu e eu aguardava ansiosamente por Mariana a bela morena que morava na mesma rua onde nasci e cresci. Ela apareceu de repente, toda de amarelo, com um vestido leve e um alvo sorriso, mostrando uma fileira de dentes perfeitos. Seu sorriso tinha mesmo um leve toque de sensualidade e eu não podia vê-la sem ficar excitado, com uma vontade louca de beija-la inteirinha. Tão logo se aproximou beijei-a apaixonadamente, mas ela se afastou dizendo: -Cuidado Carlos, estamos no meio da rua. De fato estávamos no meio da rua e sorrindo de mãos dadas fomos até o calçamento de minha casa. Já há mais de um mês estávamos de namoro e eu sabia que naquele dia teria de acompanhá-la a uma sessão de Umbanda. A mão dela metera-lhe na cabeça que ela tinha mediunidade, ou sei lá que outro dote religioso e, por ser muito mística, Mariana ia, todas as sextasfeiras até um “terreiro” num local ao sul da pequena cidade, para ali receber as entidades. Naquele dia fui com ela e o que vi não gosto nem de comentar. Durante algumas horas foi um tal de baixar espíritos em uns e outros e as mais diversas cenas aconteceram, como pessoas rolando pelo chão, falando coisas inteligíveis . Instrumentos de couro, atabaques ou pandeiros, não sei bem, marcavam o ritmo durante todo o tempo. Eu olhava para tudo bastante interessado e ao mesmo tempo cético. O que queria realmente é que acabasse logo para que pudesse passar mais uns momentos a sós com Mariana. Quando a sessão terminou já devia ser mais 23 horas e resolvemos voltar para casa. As pessoas foram saindo todas e nós ficamos ainda mais um pouco enquanto Mariana se despedia de seus amigos. Depois, em vez de se dirigir para a porta da frente, ela saiu pelos fundos, que dava para um descampado e ali, a sós, pude abraçá-la e dar-lhe um longo beijo. Estávamos abraçados quando, de repente, ela estremeceu. Revirou os olhos e começou a balbuciar palavras estranhas enquanto gesticulava como se conversasse com alguém. Depois jogouse para trás e só não caiu de costas ao chão porque amparei-lhe a queda. Tentei levantá-la, mas ela tinha uma força incrível. Deitada no chão, tremiase toda, mostrando as penas morenas, bonitas e bem torneadas. Tentei ajudá-la a levantar-se mais uma vez, mas ela deu-me um de seus sorrisos, que desta vez pareceu-me mais sensual do que nunca e recusou-se a levantar. Recomeçou a contorcer-se. Lutei, lutei comigo mesmo para não me aproveitar dela durante o que julgava ser um ataque doentio, ou induzido por sugestão pelo que ocorrera durante a sessão do “terreiro”. Mas naquele momento ela passou a tremer e a retorcer-se mais agarrandome com força. Rolei com ela no chão do sertão. Não tenho noção exata de quanto tempo ficamos ali. Quando acordei ela estava chorando para suas roupas rasgadas e sujas. Devia se mais de meia noite, mas o ambiente estava claro, pois do céu, uma lua cheia e límpida iluminava tudo. -O que aconteceu? - perguntou-me com voz embargada -Você não se lembra – retruquei. -Não, não me lembro. -Mas faz uma ideia, não – disse zombeteiro. -Eu só me lembro de quando ele chegou – disse ela , séria. -Ele quem? -Exu – respondeu e, levantando-se, saiu correndo. Tentei alcançá-la, mas ela continuou correndo e gritando: “Vá embora”. Desisti da perseguição e fui andando para casa. Lá, meus pais dormiam sossegadamente. Tomei um banho e fui para cama. Porém, naquela noite não consegui mais dormir, pois a visão do que acontecer repetia-se milhares de vezes no meu cérebro. No dia seguinte levantei-me cedo e bastante preocupado. Estava fazendo testes para obter emprego em uma empresa do Recife e teria que viajar. Procurei ver Mariana, mas não consegui. Defronte à sua casa tudo estava quieto, e embora eu esperasse por mais de meia hora, nem ele e nem sua mãe saíram à rua. Por fim resolvi bater à porta e a mãe dela atendeu. -Bom dia, Carlos. -Bom dia, dona Ermínia respondi e continuei – olha, eu vou viajar hoje e gostaria de saber como está a Mariana. Ontem à noite nós tivemos um problema e gostaria de saber se ela está bem. -Ah sim, ela me contou que recebeu a visita de uma entidade espiritual enquanto estava com você, mas agora ela está bem. Ela está dormindo. -Está bem, eu vou tomar o ônibus daqui a pouco, mas a senhor diz pra ela que daqui a alguns dias estarei de volta e venho procurá-la. Viajei para Recife mais tranquilo, pois certamente Mariana não contara para sua mão tudo o que acontecera e isso, talvez não tivesse maiores consequências. Mas estava enganado. Na semana seguinte ela não mais quis me ver e depois disso comecei a passar mais tempo no Recife do que em Exu, o que tornou difícil o nosso encontro. Uma única vez que a encontrei na rua, ela passou a correr tão logo me viu. Eu não entendia sua atitude e passei a sofrer muito, pois o que sentia por ela era um grande amor, tanto que, depois disso nenhuma mulher me interessou. Três meses depois soube que ela estava grávida e numa noite, enquanto tomava um aperitivo num boteco, um amigo aproximou-se de mim e disse: -Escuta Carlos, acho que tu precisa tomar cuidado. Andam comentando por ai que a Mariana tá prenha e que foi tu quem fez ela porque era com você que ela saia. Eu não tenho nada com isso, mas como sou seu amigo, vim te avisar porque o irmão dela é u pistoleiro desses contratados para fazer serviço de morte. Dizem que ele estava refugiado na Paraiba e agora está vindo para cá porque a mãe dela o chamou. Se eu fosse tu me mandava daqui, logo , logo”. Fiquei aturdido e depois me decidi. Fui até a casa de Mariana. Dona Ermínia abriu a porta e logo em seguida fechou. Logo depois ouvi Mariana gritando: -Vai embora daqui. Vai embora daqui eu não quero ver você. A criança não é sua. Vendo que não adiantava insistir, fui embora e, no dia seguinte embarquei para o Recife. Agora já estava fixo no meu emprego, e não podia voltar a Exu constantemente, pois muitas vezes viajava para a firma, indo mesmo até o sul do país. Procurei esquecer Mariana, mas nunca consegui. Os meses passaram-se e uma noite estava dormindo, no quarto de hotel, em São Paulo quando tive um pesadelo incrível. Revi novamente Exu com suas casas pobres e as ruas de terra. Havia gente correndo e um homem dava tiros para todos os lados como se estivesse louvo. Ao mesmo tempo outra imagem aparecia. Era a de um menino deitado num berço, sorrindo e seus olhos brilhavam como fogo. Mariana olhava para ele assustada. De repente saiu correndo também e ao atingir a rua, uma bala disparada pelo pistoleiro a atingiu no peito. Naquele momento eu revi seu rosto lindo como sempre fora e parecia que ela queria dizer alguma coisa. Fez várias tentativas e depois, num sopro de voz,murmurou: -Carlos, Carlos, volte e mate o menino. Ele é filho do diabo. Naquele momento acordei assustado. Meu corpo estava totalmente molhado de suor e as imagens do sonho estavam bem nítidas na minha mente. Eu fechava os olhos e revia novamente toda a cena: o tiroteio, os olhos de fogo e Mariana implorando a morte da criança. Continuei o meu trabalho fazendo contatos com várias firmas, mas durante todo o tempo que estava em São Paulo, não tive mais sossego. A cada instante revia Mariana à beira da morte. Voltando para Recife, pedi uns dias de licença e fui para Exu. Precisava saber a verdade e se tudo não passara de um simples pesadelo. Mas não fora. Mariana realmente estava morta e os comentários na cidade eram os mais desencontrados. Uns diziam que seu irmão se embriagara e depois de muitos tiros acertara-lhe o peito, matando-se a seguir. Outros, porém, disseram que ele não tinha bebido nada naquela noite, mas que gritava ter visto o demônio e ficara como um louco, tendo os olhos totalmente queimados, dando tiros às cegas. Procurei o delegado e a explicação dele também não foi satisfatória: -O que sabemos – disse ele – é uma declaração de dona Ermínia. Ela disse que seu filho se queimou com o fogareiro ficando cego e depois, louco e enraivecido, saiu atirando pela rua e uma das balas atingiu Mariana. Depois ele deu cabo de sua vida, com um tiro na cabeça. O que aconteceu dentro da casa , realmente nós não sabemos, mas a morte de Mariana e o suicídio isto sim, foi testemunhado por várias pessoas”. -E dona Ermínia e a criança? perguntei. Ora, eles continuam morando na mesma casa, mas dona Ermínia está muito abatida. Ela quase não sai mais à rua e parece ter muito medo de tudo e de todos. Quando à criança, é muito bonita. Eu mesmo vi quando estive fazendo as diligências necessárias para arquivar o caso. Nada mais tinha a comentar com ele. Sai da delegacia e me dirigi para a casa de dona Ermínia. Ao me atender ela tentou bater a porta, mas eu a impedi. Ela estava com uma aparência horrível. Parecia ter envelhecido muito desde a última vez que a vi. -Vai embora – gritou – você não tem nada a ver com a nossa vida. -Tenho sim, o menino é meu filho – retruquei para ver a reação dela. Ele não é é seu filho, é filho do... - mas sua voz morreu na garganta e ela não disse mais nada. -Filho de quem ? - peguntei -Não interessa, mas ele não é o seu filho. Estávamos discutindo, mas eu jã havia tomado uma resolução. Queria ver o menino. Precisava tirar aquela dúvida que me atormentava. Dona Ermínia tentou impedir a todo custo que eu me aproximasse do berço, mas eu a empurrei com força e avancei em direção a um pequeno quarto. Ali estava ele! Era lindo, o mais lindo menino que já vi. Era meu filho, eu tinha certeza. Seu olhos negros vivos e brilhantes pareciam me reconhecer. Senti uma vontade imensa de acariciálo, de beijá-lo e de embalá-lo em meus braços. Mas naquele instante dona Ermínia aproximou-se de mim, como uma fera lutando para defender seu filhote. Tinha uma faca na mão... -Vai embora, já disse, esse menino é meu neto e você não tem direito algum. Vai embora, senão o mato. Bastante a contragosto retirei-me da casa. Estava confuso. Eu revia o menino lindo e robusto como um anjo e ao mesmo tempo via Mariana morrendo e pronunciando aquelas palavras horríveis. Revia também aquela noite enluarada e a canção ao som de atabaques voltava aos meus ouvidos. Afastando-me da casa ouvi um riso estranho. “Essa mulher deve estar louca”, imaginei e rumei para minha casa. No dia seguinte enviei algum dinheiro para dona Ermínia, para ajudála nas despesas e voltei para o Recife, mas daí o inferno começou. Desde então o menino me persegue. Já se passaram sete anos e embora no início eu pensasse que tudo não passava de uma alucinação agora sei que não é isso. É algo muito mais real do que sonhos e imaginação. Voltei muitas vezes a Exu e perguntei pela velha e o menino, mas as informações eram imprecisas. Uns diziam que eles deixaram a cidade. Outros, que estão pelas redondezas, mas ninguém sabia ao certo. Uma vez encontrei um velho que me disse coisas horríveis. Contou-me que viu certa vez a velha e o menino andando pelo sertão e enquanto a criança carregava uma cobra nas mãos, alguns animais ferozes os seguiam. -De outra feita – disse ele – enquanto havia um tiroteio entre membros de duas famílias em uma fazenda das redondezas, eu vi o menino dando horríveis gargalhadas. Parece que ele gosta de fogo e sangue... Procurei esquecer tudo isso e colocar um manto no passado, mas ele não deixou. De início, raramente, durante as noites. Aparecia de repente, quando eu menos esperava e senta-se aos pés da cama. Sorria para mim como se fosse um menino bonzinho e depois me dava cutucões nos dedos dos pés. Depois dava uma gargalhada e desaparecia. Uma noite apareceu com uma cobra e jogou-a em minha cama. Seus olhos às vezes serenos e límpidos, mas depois se tornavam duas bolas de fogo e com tal intensidade que um dia, uma toalha que eu tinha nas mão incendiou-se. Várias vezes tentei agarrá-lo mas ele desaparecia gargalhando. Agora passou a aparecer até mesmo durante os dias em qualquer lugar. Não me dá mais sossego. Está me enlouquecendo. O que ele quer de min, não sei, mas tenho a impressão que ele quer me matar... De volta à guerra Isto foi o que Carlos me contara na noite anterior e agora estava morto. Pensei muito no assunto, mas confesso que não cheguei a conclusão alguma. Quis continuar pesquisando o caso de Exu, porém depois de alguns dias houve mudanças no meu horário de trabalho e meu tempo livre passou a ser escasso. Depois, aos poucos fui perdendo o interesse, uma vez que já tinha uma visão global sobre o assunto e, talvez até soubesse demais... O que aconteceu com o filho de Carlos nunca fiquei sabendo, mas alguns repórteres, meus amigos, que em Exu estiveram tempos depois, me informaram que lá não estava acontecendo nada de anormal, isso se assassinatos pudessem ser considerados como fatos dentro da normalidade. Soube também que Zito Alencar foi morto com dois tiros na cabeça no dia 12 de maio de 1978, defronte a uma farmácia, no centro de Exu. Segundo os jornais, naquela sexta-feira, ele se encontrava em uma caminhonete C-10, acompanhado de José Adilsom de Souza, João Alves Bezerra e Fernando Alencar, quando apareceu um sujeito moreno, forte e baixo, trajando calça preta e camisa azul, empunhando um revólver calibre 38. Ele fez dois disparos atingindo o prefeito no ouvido e no rosto, matando-o instantaneamente. Chovia muito e não foi possível reconhecer o pistoleiro, que correu para uma matagal distante 50 metros perseguido pelos acompanhantes de Zito, que deram-lhe 12 tiros. O pistoleiro reagiu, atirando três vezes e atingindo em uma das orelhas de João Alves. Quase dez dias depois, um pistoleiro e presidiário, Gerson Ferreira, o “Joinha” foi acusado como o homem que matou Zito Alencar. Entre 40 detentos, colocados em fila no presídio de Juazeiro (BA) ele foi reconhecido por pessoas que presenciaram o assassinato. Recolhido em regime de prisão albergue, o pistoleiro apenas dormia no presídio e na sua ficha constava que ele se ausentou na quarta-feira, dia 10 de maio, somente apresentando-se na segunda-feira, dia 15. Além destas mortes e de muitas outras, resquícios da guerra entre as duas famílias nada de sobrenatural aconteceu em Exu. Pelo menos que eu saiba.