1 A SOCIEDADE CIVIL E A ESFERA PÚBLICA NA PERSPECTIVA DA ÉTICA DO DISCURSO DE JÜRGEN HABERMAS Eduardo Barbosa Vergolino – Graduando em Filosofia Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP Para os gregos, o homem é um ser social e necessita de leis e normas para viver socialmente organizado, o que gerou uma cultura de debate em torno da formulação e reformulação destas leis e normas. Trata-se de um processo discursivo que tem como objetivo principal a captação de consensos, por menor que seja o grupo envolvido, visando uma aplicação das leis pelos indivíduos da sociedade Entretanto, nem sempre o debate seguiu regras éticas coerentes para a universalização da lei ou norma. A esfera pública, na perspectiva habermasiana, se define, justamente, a partir e em função deste debate contínuo entre os cidadãos do Estado. Para Jürgen Habermas, a esfera pública é a rede comunicacional entre os agentes sociais que surge a partir da tematização e da problematização dos problemas encontrados pelo povo. Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pública tem que reforçar a pressão exercida pelos problemas, ou seja, ela não pode limitar-se a percebe-los e a identifica-los, devendo, além disso, tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los de modo convincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar (HABERMAS, 1997, p. 91). Portanto, é necessário que a população esteja em permanente comunicação para a elaboração de consensos. Para tanto, os problemas que antes se viam apenas discutidos no interior da esfera pública privada (família), agora entram na esfera pública, passam pelo crivo do agir comunicativo e espalhando-se atingem todos capazes de formar opiniões. Assim formam-se consensos que influenciam diretamente o trabalho do poder político. O debate, porém, necessita ser realizado conforme uma série de critérios para se estabelecer a validade e a veracidade do consenso obtido na esfera pública. Estes 2 critérios estão embasados na Teoria do Agir Comunicativo que é a base lingüística para o entendimento entre os indivíduos. O primeiro critério chama-se agir comunicativo. Para o cidadão concretizar sua participação efetiva dentro da rede comunicacional da esfera pública necessita de condições básicas. São estas, ter o direito à educação de qualidade, à saúde, ao lazer, à moradia digna e ao trabalho. Sem estas condições o cidadão pode ficar facilmente susceptível a manipulação daqueles que utilizam a ignorância alheia para ascenderem em seus objetivos muitas vezes antiéticos e inescrupulosos. O Estado deve desenvolver uma política que garanta à todos esses direitos básicos ao cidadão para o mesmo, ao formar sua opinião, se sentir à vontade para defendê-la de forma argumentativa e possa assim ter todas as possibilidades de agir comunicativamente e fazer parte da esfera pública. Falamos de agir comunicativo, isto é, da racionalidade comunicativa do indivíduo orientada para o entendimento mútuo entre os participantes do discurso. Participação esta desatrelada de uma perspectiva egoísta ou orientada aos interesses particulares. Falamos então de agir comunicativo quando agentes coordenam seus planos de ação mediante o entendimento mútuo lingüístico, ou seja, quando eles os coordenam de tal modo que lançam mão das forças de ligação ilocucionárias próprias dos atos de fala (HABERMAS, 2004, p. 118). O segundo critério, bastante relevante da Teoria do Agir Comunicativo, é o agir estratégico. Este possui basicamente a mesma fundamentação do agir comunicativo, entretanto, visa especificamente a manipulação do ouvinte para a obtenção de fins préestabelecidos. O uso desta forma de comunicação é claramente observável em discursos políticos no mundo todo. O político, a fim de obter votos e eleger-se faz uso de meios de persuasão. O agir comunicativo estratégico está ligado diretamente ao uso do ato de fala ilocucionário na sua forma “perversa”. O ato de fala ilocucionário transforma-se em perlocucionário, pois utiliza uma racionalidade teleológica. “Em contextos estratégicos de ação, a linguagem funciona, em geral, segundo o modelo de perlocuções. Aqui, a comunicação lingüística é subordinada aos imperativos do agir racional orientado a fins” (HABERMAS, 2004, p. 123). Podemos afirmar então, que o mundo da vida infestado pelo agir comunicativo estratégico é baseado numa relação entre os indivíduos 3 de observação mútua. Aumentam, assim, as chances de estabelecerem relações nas quais “os outros do discurso” aceitam as pretensões dos “donos do discurso” como válidas e verdadeiras. Quando visamos a esfera pública brasileira, percebemos uma constante e forte influência dos meios de comunicação na formação dos consensos acerca da realidade social, econômica e cultural do país. Segundo Lucia Aragão, [...] haveria atualmente dois processos concomitantes ocorrendo na sociedade: de um lado, a pluralização e, do outro, a massificação das formas de vida; um processo de equalização entre os homens e outro de impotência dos indivíduos face à complexidade do sistema (2002, p. 212). Esses dois processos podem afetar energicamente o rumo das potencialidades comunicativa e democrática da sociedade como um todo. Eis o momento da sociedade civil que luta contra a massificação dos indivíduos, e conseqüentemente, busca organizar os consensos debatidos na esfera pública. Para Habermas, a sociedade civil cultiva a comunicação que ocorre entre as organizações não governamentais, instituições sem fins lucrativos e o Estado. Esta comunicação tem por objetivo solucionar, de forma mais coesa e forte, as reivindicações e os problemas sociais. O núcleo da sociedade civil, formado por ONG’s, associações e organizações livres, é a base de receptação dos discursos da esfera pública formados no mundo da vida. Essas organizações captam os discursos sobre os problemas sociais e os transformam em discursos consensuados na esfera pública política, gerando processos deliberativos e decisivos. Só com essas tomadas de posição é que a sociedade civil transforma os problemas sociais particulares em questões de interesse geral no quadro da esfera pública. No entanto, para exercer sua função social da melhor forma possível, a sociedade civil necessita que os direitos fundamentais sejam respeitados e preservados. Direitos esses que são: a proteção da privacidade, a personalidade, liberdade de crença, liberdade de opinião e de reunião, sigilo do telefone e da correspondência, assim como o direito à proteção da família. São direitos fundamentais que Habermas defende de forma 4 intensiva, pois a ausência deles impedirá a formação da esfera pública e, dificultará o desenvolvimento do processo decisivo de articulação das reivindicações populares. De acordo com Habermas, se o Estado ou qualquer outra instituição sufocar a comunicação pública espontânea, a esfera pública ficará deformada e conseqüentemente fará com que a sociedade civil não consiga exercer sua função social. Quanto mais for destruída a força de socialização que é o agir comunicativo, mais fácil será tornar a massa popular alienada entre si, fiscalizável e isolada. Portanto, a liberdade do indivíduo é essencial para o desenvolvimento de uma esfera pública atuante e de uma sociedade civil ética voltada para o bem comum da sociedade. Esta sociedade civil, para os indivíduos, tem um papel social diferente do estado e da economia. Possui também os seguintes componentes essenciais para sua emancipação e desenvolvimento junto à esfera pública. a) Pluralidade, ou seja, a união das diversidades de grupos e famílias, associações voluntárias, cuja autonomia permite uma variedade de trabalhos em função das formas de vida existentes no mundo. b) Publicidade, com o intuito de agregar a cultura e divulgar o trabalho. As instituições de cultura e comunicação fazem o papel de expandir os horizontes do trabalho realizado por determinada instituição social. c) A vida privada como base do domínio do desenvolvimento livre do indivíduo no aspecto moral e de autodesenvolvimento. A vida privada necessita da liberdade para seu desenvolvimento saudável e sua formação individual dentro de um caráter próprio de cada cultura e região geográfica. d) A legalidade, um dos componentes básicos da sociedade civil. Ela é uma estrutura de leis gerais e direitos básicos, necessária para organizar a pluralidade de instituições sociais. Desta forma, com o respaldo das leis, as organizações podem atuar de forma segura no âmbito social exercendo seu papel fundamental de apoio à luta das classes menos favorecidas da sociedade (Cf. COHEN e ARATO, 2001, p. 395). 5 Para Habermas, estes componentes são de suma importância para o desenvolvimento da sociedade civil, pois sem um desses componentes as organizações se tornariam fragilizadas. É o que acontece em países ou regiões onde a democracia e os direitos básicos são suprimidos, ou seja, países ditatoriais ou até mesmo em regiões onde o coronelismo é de forte influência. Sendo assim, em áreas onde a democracia não é bem difundida e respeitada, a sociedade civil, por meio de suas organizações livres e instituições, não consegue exercer o seu papel fundamental que é o de trabalhar a opinião na esfera pública, visando informar a esfera pública política quais são as necessidades mais urgentes para as quais a sociedade busca solução. Nos tempos modernos a sociedade civil encontra vários empecilhos para o seu desenvolvimento. O problema da pseudodemocracia nos países ditos desenvolvidos, a falta de condições de sobrevivência nos países subdesenvolvidos, a má forma de governar na qual o povo é excluído, etc., todos esses problemas podem ocorrer em várias camadas da sociedade fazendo com que se torne cada vez mais difícil a organização e a luta do povo ante o Estado controlador. Movimentos sociais, iniciativas de sujeitos privados e de foros civis, uniões políticas e outras associações, numa palavra, os agrupamentos da sociedade civil, são sensíveis aos problemas, porém os sinais que emitem e os impulsos que fornecem são, em geral, muito fracos para despertar, a curto prazo, processos de aprendizagem no sistema político ou para reorientar processos de decisão (HABERMAS, 1997, p. 106). Portanto, a sociedade civil como estrutura que capta da esfera pública os problemas sociais, não possui força suficiente para levar as reivindicações ao ponto de exercerem qualquer tipo de influência nas decisões do Estado para o público. Sendo assim, a única esfera que sai perdendo é a própria sociedade, que não possui conhecimento de sua força para reivindicar seus direitos. Afora esta concepção de sociedade civil como dimensionada pelo fator cultural e pelo Estado, atualmente a globalização exerce uma força muito forte em diversos segmentos sociais, alguns teóricos estudiosos da sociedade civil ainda acreditam na possibilidade de ocorrer uma reconstrução da sociedade civil. Possivelmente pela constante utilização do termo sociedade civil em diferentes sentidos fez-se com que a idéia de sociedade civil esteja cada vez mais ambígua e duvidosa na atualidade. Quando é articulada pelos indivíduos da sociedade, a vontade 6 de reconstruir ou defender a sociedade tende a aumentar a mobilização social. Porém, essa imagem não é adequada para se tomar por base para a autoreflexão crítica ou para uma orientação das limitações mais importantes da ação coletiva que se visa fazer. O que se necessita, na verdade, é uma concepção da sociedade civil que se possa refletir nos núcleos de novas instituições coletivas e articular projetos embasados nessas instituições que podem contribuir, e muito, para a emergência de sociedades mais democráticas e mais livres do poder econômico e estatal. Mesmo que trabalhemos as melhores teorias do passado sobre sociedade civil, elas não podem cumprir esta tarefa hoje em dia. Sem dúvida, as teses que se referem à decadência da esfera pública e à transformação do ambiente social em novas formas de manipulação, controle e dominação, correspondem como a experiência dos países capitalistas avançados e desenvolvidos. O ponto de vista otimista dos teóricos defensores da sociedade civil vêem em todas as partes: um público democrático, solidário e com formas de autonomia livre. No entanto, os teóricos esquecem que para se verificar a aplicação de determinada teoria é necessário, antes de mais nada, analisar a sociedade atual com todos os seus problemas e suas relações sociais. É o que faz muito bem Luhmann, “Pero cuando las opiniones de un analista que se ajusta fuertemente a la realidad de la sociedade existente, [...], empiezam a parecerse a las de los críticos más radicales [...]” (COHEN e ARATO, 2001, p. 476). Então, os defensores da sociedade civil, cujos olhos estão fechados para os fenômenos negativos da sociedade, nos mostram ou nos deixam crer que estão submetidos a uma forte influência ideológica. A ética do Discurso em sua forma mais legítima se efetiva no espaço comunicativo das esferas públicas e da sociedade civil, mais especificamente nas relações comunicativas entre os indivíduos agentes do discurso. A relação entre o falante e o ouvinte deve seguir regras e normas para um entendimento comum, em que nenhuma parte saia ofendida ou lesada. Dois princípios importantíssimos para a fundamentação da ética do discurso são o princípio “U” e “D”. O princípio “U” relaciona-se a questão da universalização do proferimento lingüístico. “[...] uma norma só vale como justificada quando é “igualmente boa” para cada um dos concernidos” (HABERMAS, 1989, p. 89). A proposta de universalização, colocada por Habermas, nos mostra o quão importante é a 7 intenção da universalização do discurso. Nós só poderemos então tomar como válidas as proposições que tenham em sua formulação uma possibilidade real de assentimento de todos os possíveis afetados e participantes do discurso. Sem este princípio os indivíduos poderiam tomar como válidas proposições negativas para possíveis afetados. Portanto, “o princípio-ponte possibilitador do consenso deve, portanto, assegurar que somente sejam aceitas como válidas as normas que exprimem uma vontade universal [...]” (HABERMAS, 1989, p. 84). Já o princípio “D” relaciona-se com o grupo real, enquanto o princípio “U” relaciona-se com o ideal. O princípio do discurso “D” diz: “Só podem reclamar validez as normas que encontrem (ou possam encontrar) o assentimento de todos os concernidos enquanto participantes de um Discurso prático” (HABERMAS, 1989, p. 116). Ou seja, é no princípio “D” que efetiva-se a relação ética entre os participantes. Jamais uma norma poderá ser tomada como válida se um dos participantes disser não. Pois assim já estará fora do processo de universalização tanto no campo prático como no ideal. Tendo assim de ser reformulada para conquistar sua pretensão de validez. A esfera pública na perspectiva da ética do Discurso de Jürgen Habermas busca aprimorar e efetivar um diálogo que vise o comum acordo das relações intersubjetivas dos indivíduos participantes do Discurso. Após um longo e exaustivo debate dentro da esfera pública, a sociedade civil (ONG’S, sindicatos, igrejas, associações de moradores, instituições filantrópicas, entre outras) organiza o consenso entre os indivíduos e o lança para a esfera pública política tomar as devidas decisões. Este é o processo segundo o qual a sociedade como um todo pode aprimorar suas idéias e conquistar mudanças reais no espaço público. O constante diálogo entre os indivíduos capazes e conscientes das necessidades plurais da comunidade, deve ser o mais coeso e sincero, além de democrático, nas suas pretensões e formulações. 8 Referências bibliográficas ARAGÃO, Lúcia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. COHEN, Jean L. & ARATO, Andrew. Sociedad Civil y Teoría Política. Trad. Roberto Reyes Mazzoni. México: Carretera Picacho-Ajusco, 2001. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Trad. De Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. vol. II ___________ . Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. 9 LIMITES DA EXISTÊNCIA: ESTAMOS MESMO VIVENDO? A CRISE DA MODERNIDADE NA EXPRESSÃO DA VIDA PRIVADA Cátia Cilene Lima Rodrigues ∗ Bruno Leonardo dos Santos Correia ∗ Rafael Pacharoni ∗ Introdução “ It´s the sense of touch. In a real city, you walk. You brush past people. People bump into you. In L.A., nobody touches you. We are always behind this metal and glass. I think we miss that touch so much. That we crash into each other just so we can feel something”. 1 (Graham, personagem de Don Cheadle, na fala que inicia o filme “Crash – no limite”, logo após um pequeno acidente de batida de carro) A proposta de escrever um texto analítico sobre a crise da Modernidade a partir do filme “Crash – no limite” nos envolveu após a realização de um trabalho acadêmico, em que com os conteúdos discutidos na disciplina “Ética e Cidadania II” deveria-se realizar uma reflexão teoricamente fundamentada sobre o filme. A discussão tomou corpo com a proposta de continuação do trabalho, com possibilidade de pesquisa bibliográfica que ampliasse a fundamentação dando maiores e melhores subsídios para a seguinte análise preliminar da Modernidade a partir da expressão cinematográfica especificada. Sendo assim, num processo a “seis mãos” e contribuição de diferentes perfis, fomo-nos questionando sobre a situação em que a humanidade se encontra na atualidade, sobretudo em grandes centros urbanos, no que se referia a vida. Sem ∗ Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia Social da Religião, Professora de “Ética e Cidadania” na Universidade Presbiteriana Mackenzie. ∗ Estudante de Educação Física na Universidade Presbiteriana Mackenzie. ∗ Técnico em Administração de Empresas e Estudante de Educação Física na Universidade Presbiteriana Mackenzie. 1 “É o sentido do tato. Numa cidade de verdade, você anda, esbarra nas pessoas, elas topam com você. Em Los Angeles, ninguém toca em você. Estamos sempre atrás de metal e vidro. Acho que sentimos muita falta do toque. Damos encontrões uns nos outros só para sentirmos alguma coisa” (tradução livre) 10 necessitar esforço para a pesquisa empírica, abrindo os jornais do dia podemos facilmente concluir: a humanidade atravessa uma severa crise, em que os valores morais estão sendo desconstituídos por acelerados processos de mudança, mas sem que propostas eficazes para a dignidade e qualidade de existência sejam veiculados. Há um embrutecimento árduo na sensibilidade social, nas relações interpessoais, há uma ausência de altruísmo ou da capacidade de simples empatia pelo outro. Paradoxalmente, os distúrbios de ordem emocional são cada vez maiores e em mais acentuados graus. E são muitos os seres humanos que gostariam de alterar tal processo, contudo sentem-se atados ou impotentes diante da estrutura social que o dilui na solidão da sua existência. Corrupção política e social, altos índices de criminalidade, organizações terroristas com ou sem ideais, jovens agressores, torcidas organizadas que atacam-se como inimigas – e não como adversárias. Bombas, ataques militares a zonas civis, candidatos a cargos públicos representativos que gastam mais nas campanhas do que poderão ganhar em salários durante o mandado, caso eleitos. A sua vizinha que lhe quer – por força quase física – convencer que a conversão a determinada religião é sua única possibilidade de salvação; isso, claro, após ter mantido o mesmo comportamento com as últimas outras quatros diferentes religiões para as quais já se convertera. A vida prática cotidiana, os jornais, até as novelas discutem o tema: a humanidade experimenta uma crise ética. Aí encontra-se a relevância e urgência do tema que nos propomos a discutir no presente texto: a crise da Modernidade na expressão da vida privada é uma das questões filosóficas mais importantes do homem contemporâneo para sua afirmação existencial e para a própria viabilização da vida humana. Sendo a arte uma das formas mais antigas utilizadas pelo ser humano para comunicar sentimentos, pensamentos e emoções, enfim, para manifestar e compartilhar impressões e opiniões da sua realidade, sua análise pode ser meio de compreensão dos conflitos humanos. Ao compreender a arte como produção ou criação de objetos com estrutura e significado, com a propriedade de apreender a realidade e apontar por meio de processos cognitivos uma visão do mundo, pode-se concluir que a arte em si tenha a capacidade de provocar uma depuração do caráter moral – do autor ou da situação 11 apontada 2 . Transpondo a linguagem verbal ou mesmo a realidade do dia a dia, a obra artística causa o impacto emocional necessário ao despertar do senso moral na direção da síntese da consciência – essência para a reflexão sobre valores. Deste modo, delineia-se tanto alvo, como caminho que pretendemos percorrer: com o objetivo de analisar, discutir e relacionar as problemáticas éticas da Modernidade Ocidental, presentes no cotidiano público e privado das pessoas, sobretudo em grandes aglomerados sociais, nos dispomos a realizar revisão bibliográfica que suporte o enquadramento panorâmico da questão para, então, apontarmos observações preliminares com relação a apresentação que a referida película ganhadora Oscar de melhor filme de 2006 faz sobre tal realidade, “Crash”, dirigida por Paul Haggis. Para tanto, pensamos em subdividir o artigo em alguns eixos. Primeiro, acreditamos ser de fundamental importância para a compreensão da atual crise a revisão histórico-sequencial do mundo ocidental desde as bases das antiguidade clássica, a fim de se perceber a formação ética ocidental, bem como os fatores determinantes da ruptura dos valores que caracterizam o atual momento histórico. A partir de tal abrangência, nos dedicaremos a uma breve apresentação de questões teóricas que descrevem e definem a Modernidade, bem como as problemáticas de tais características para da cidadania, para a ética e, sobretudo, para a existência concreta humana. Por fim, com suporte teórico de Giddens, Berger, Dupas, Chauí e J.J.Queiroz, entre outros autores, realizaremos uma análise da condição humana angustiante na Modernidade através do filme “Crash – no limite”. O filme conta, entre histórias da realidade privada, como a vida social vinculase em rede, demonstrando tal tese com ilustrações de como uma atitude isolada de um sujeito social reproduz consequências (nem sempre intencionais) a terceiros, demonstrando a relação entre a esfera privada – ou das escolhas éticas – e a esfera social – dos desdobramentos para a cidadania e política – da realidade humana. De forma criativa e sensata, sem ridicularizações piegas, aponta angústias e motivos para a tomada de decisão na vida prática, discutindo com poesia e seriedade a questão das escolhas frente o conflito de interesses pessoais diante do que é politicamente correto. De certo modo, aponta que não há mocinhos ou bandidos, há seres humanos: contraditórios, angustiados, buscando vida boa e justa. 2 O Psicólogo russo Vygotsky trabalha e fundamenta tal tese em “Psicologia da arte”, editado pela Martins Fontes, 1998. 12 São vários dramas privados que se cruzam e se influenciam na relação coletiva de partilha do mesmo espaço político. O investigador honesto, de origem muito pobre e dificuldades com a mãe viciada em drogas, que acaba vendendo o resultado de uma investigação, em troca da ficha limpa do irmão caçula, que têm cometido pequenos furtos e roubos. O preocupado e dedicado pai de família que é político corrupto. A mulher da alta sociedade, abastada financeiramente e aparentemente sem preocupações graves, mas que está sempre irritada, humilhando com arrogância e preconceito os menos favorecidos, acaba percebendo sua solidão e como sua vida é vazia, e encontra na empregada sua única amiga. Cineasta negro bem sucedido, após reincidentes abusos morais, tem um surto emocional, pondo em risco a própria vida. Policial novato, idealista e correto, solicita afastamento do parceiro preconceituoso, mas acaba assassinando à queima roupa um negro, motivado pelo terror imaginário ao diferente e desconhecido. O latino-descendente que sai do subúrbio de violência para bairro mais seguro a custa de árduo trabalho, continua sendo vítima de discriminação por sua ascendência. Policial branco, com dificuldades financeiras para solucionar os problemas de saúde do pai, abusa reativamente de negros ricos ou em postos de poder, mas é o único a colocar-se em risco para salvar a vida de uma mulher acidentada – e negra. Imigrante persa, comerciante, assustado com a violência, pede à filha, americana, que compre uma arma para sua defesa pessoal, mas é acusado pelo vendedor que insinua que ele seja terrorista; tendo o seu estabelecimento invadido e depredado, culpabiliza o chaveiro latino a quem ele mesmo proibiu de consertar a porta, e tenta matá-lo. Ladrão de carros encontra furgão abandonado e, ao entrega-lo a seu receptor, descobre que no veículo há contrabando humano: orientais ilegais destinados ao serviço escravo; decide libertar e não vender as pessoas. Imigrante oriental bem inserido sócio e economicamente é, na realidade, contrabandista de seres humanos. Nestes apontamentos, observamos no decorrer das várias situações apresentadas criticamente no filme que a modernidade caracterizada pela desconstrução de certezas, gera insegurança por sua falta de referenciais morais confiáveis e universais como uma linguagem de valores e regras válidas a todos neste contexto de globalização. Neste caos de fragmentos e dúvidas, principalmente pelo sentimento de falta e de vazio existencial, ações radicais e não raras vezes de violência reativa ao medo do aniquilamento, passam a ser frequentes e dão a tônica dos relacionamentos, talvez 13 fundamentando a tese do diretor, pela frase inicial do filme após uma batida de automóveis (crash): a agressão é uma resposta a falta de contato pois, na ausência de um contato humano positivo, o ser humano que é um ser social e simbólico, aceita o contato destrutivo apenas para ainda se sentir humano – ainda que, objetivamente, isto o leve pelo caminho da destruição e, sem pessimismos, possível extinção. I. Constituição dos Valores Ocidentais: Da Antiguidade Clássica à Constituição da Modernidade Sinteticamente, poderia-se definir valores como o conjunto de critérios de preferência que é utilizado na determinação de uma escolha ou de um comportamento pessoal. Assim, os valores estão na base de toda e qualquer atitude da vida, desde o que comer no desjejum até em qual aplicação financeira se irá investir as economias, dada a realidade e as possibilidades que esta define. E, como desde Aristóteles, sabemos que o objetivo da vida é a felicidade, a orientação das suas decisões em sua vida prática, ou seja, os seus valores, têm como meta atingir o que é certo ou coerente com o alvo da existência: ser feliz. Os valores pessoais nunca estão desvinculados da sociedade. O ser humano, dependente do grupo para a própria manutenção e sobrevivência, sobretudo nos anos da formação do caráter - a infância – e, ainda que algum sujeito apresente-se em oposição à norma vigente, tal contraste ou negação só é possível em função de uma norma já existente e por ele conhecida. Assim se constitui a Moral: como o conjunto de regras, normas e valores, frequentemente baseado nas tradições e costumes e nem sempre com fundamentação lógico-racional, que forma o ponto de convergência das ações humanas para um acordo entre os indivíduos, com propósito – consciente ou não – de minimizar os conflitos, a violência e o extermínio do ser humano pelo próprio ser humano em sua natureza impulsiva, desejosa de poder e domínio, agressiva. Assim como posterior e intencionalmente a Lei, a Moral que fazer valer a conformidade entre a humanidade, e é forte agente moderador do comportamento humano. Mas, a Moral social é relativa e condiz com critérios como temporalidade, espaço, região geográfica, religião/cultura. Já a ética pode-se atualmente ser definida por um processo de busca por valores universais, que fossem comuns a todos os povos, de modo racional o esforço para ser e 14 existir com a posse da liberdade pessoal, o que supões reflexão, consciência e autonomia do sujeito. Assim, deliberara-se na prática por ações de responsabilidade social e em busca de integridade, num processo de alteridade que promoveria a tolerância necessária entre as diferenças culturais para a efetivação da cidadania construtiva nesta sociedade global. Esta, a cidadania, palavra deveras utilizada em campanhas eleitorais e projetos sociais, é, antes de tudo, a mediadora da consciência ética da realidade, enquanto desenvolvimento teórico, para uma conduta ética de fato, sobre a mesma realidade, na esfera coletiva: é a expressão da conduta pessoal na coletividade, na concretude do significado de participação política. Com o propósito de discutir as problemáticas éticas da modernidade ocidental, na qual envolve-se o cotidiano da vida privada e seu desdobramento efetivo na esfera pública, a ética assim desenvolve seu papel fundamental no contexto do indivíduo, pois é a promotora da reflexão que viabiliza a ampliação da consciência individual, enquanto sujeito das ações, que tomará diante possibilidades reais escolhas e posicionamentos no desfecho diário de sua vida; e coletiva, com o desenvolvimento das consequências da ação local para o coletivo do qual compõe um todo. Sendo assim, e a partir do processo dialético entre a realidade objetiva e subjetiva, a cidade torna-se “abrigo”, onde ocorre o processo de tensão e choque entre os diversos hábitos que se conflituam, impondo-se uns aos outros. A moralidade, a ética e os valores que constituem a Modernidade Ocidental têm suas bases no Cristianismo, que por sua vez possui duas principais fontes culturais: a tradição filosófica Clássica e a tradição filosófica hebraica. Do prisma filosófico, de acordo com Aristóteles, ética é a virtude prática que leva ao bom convívio público e à organização social. E justamente a questão da Modernidade, enquanto seu problema e sua meta, é a felicidade e seu uso em vista da dignidade humana, contudo há de se questionar seu niilismo hedonista na aplicação do conceito na Modernidade. Ocorre que esta não é exclusiva perspectiva moral organizadora dos valores ocidentais: os fundamentos hebraicos, edificadores de grande parte do Cristianismo – religião ocidental desde o fim da Antiguidade e soberana por toda idade Média – são somados a ela via religião. Visualiza-se uma crise ética decorrente origem ambígua do próprio Cristianismo: por um lado, a influência do pensamento filosófico grego, em que o 15 pensamento racional precede a observação e normatização da realidade para, então, determinar a escolha atitudinal do sujeito, supondo compreensão para efetivação da ação numa dinâmica de autonomia; por outro lado, a ascendência Judaica, que prioriza a observação da Lei independente da compreensão, e a normatização decorre da obediência daquilo que é revelado miraculosamente ao sujeito – e independentemente se ele entende ou não, sua ação é marcada pela obediência, submissão e heteronomia diante do sagrado. No Cristianismo, surgido provavelmente como seita em classes baixas do Judaísmo, há a junção da idéia de ética como revelação, submissão heterônoma e com o objetivo de alcançar a Santidade, somada posteriormente à tradição da Filosofia Clássica, que considera a ética como atitude autônoma, livre e responsável do indivíduo diante da realidade com o objetivo da felicidade. Esse somatório de tradições, não só diferentes como também antagônicas, gera o conflito de choque ético na cultura Cristã, dando o caráter de crise ética à Modernidade Ocidental, que cada vez mais desconstrói seus valores, marcada pelo relativismo generalizado, sem propor referenciais orientadores para a conduta humana. Assim, na Modernidade, essa dupla e ambígua influência ética para o comportamento moral do sujeito choca-se numa dinâmica conflituosa – seja para o sujeito em sua realidade privada, seja para o contexto coletivo. Se por um lado, a atual conjuntura moral no Ocidente funciona de modo hedonista, pela busca do prazer e da realização do desejo, por outro há o consenso sobre o Bem nos moldes Cristãos – considerando que o conceito natureza em si não seria molde para conceituação de bondade – que conflituam as escolhas a serem realizadas no plano humano, definindo o caráter da crise ética moderna. Contudo, no plano do desenvolvimento científico, com o retorno aos valores estóicos desde o Renascimento, relevando a ética enquanto simplicidade do comportamento deduzido a partir da racionalidade da natureza, o ser humano deixa de ser considerado superior como é feito na tradição religiosa Judaico Cristã e passa a significar parte dela. Desse modo, com o advento das ciências sociais e do estudo do comportamento humano como Natureza, leva ao Realismo Político e a concluir que o Bem é reconhecer o Ser Humano como ele é, em sua natureza, e orientá-lo – sem juízo moral, só observando-o tal como é e age. 16 Na transição da predominância dos valores judaicos cristãos medievais, administrados de modo obscuro pelo clero - poder instituído na época - para a tentativa de maior coerência e racionalidade da fé e da questão existencial-religiosa promovida pelo movimento da Reforma Protestante, houve certa acomodação amistosa na dupla pertença do cristianismo, base ético-moral do Ocidente. Mas tal como nos aponta Weber 3 , a conduta prática da ética protestante, baseada sobretudo no valor ao trabalho, à vida ascética e honesta, e à poupança do lucro obtido com o trabalho abençoado, tornou-se um dos principais fatores promocionais do acúmulo de capital fundamental ao novo sistema econonômico delineador da Modernidade, o Capitalismo. Inicialmente revolucionário, por atribuir ao indivíduo liberdade e possibilidade de ascensão social por mérito, o Capitalismo vai se transformando ao passo que distancia-se dos referenciais religiosos que inicialmente o promoveram. Paralelamente, o Humanismo e o Iluminismo, enquanto movimentos culturais buscam base referencial nos valores clássicos. Contudo, a Modernidade continua marcada por seus valores Judaico-Cristãos, essencialmente antagônicos ao valores Greco-Romanos. O Racionalismo, que buscava encontrar bases sólidas na lógica Clássica para a construção de um sistema filosófico coerente e inteiramente racional (conceito lógico), entra em colapso por fundamentar sua busca pela verdade no critério da lógica científica - antagônico ao critério medieval ou Reformado, que se dava pela fé – ao conferir que o método científico leva a diferentes resultados igualmente lógicos uma mesma questão. Onde estaria a verdade? Inicia-se o Jogo da Crise da Modernidade, que escolhe o utilitarismo como gerenciador, o hedonismo como critério de valor e sujeita o ser humano comum à solidão do individualismo e do egocentrismo, tendo como alternativa ilusória de preenchimento afetivo-moral o consumo, que atende os interesses dos “senhores do sistema”, que assim se mantém ao Poder. II. Terror, Violência e Sagrado numa realidade construída socialmente O mundo da vida cotidiana é adotado como uma realidade incontestável na conduta subjetiva de seus integrantes, pois exerce na consciência humana a maior tensão dentre as diferentes esferas da realidade, que caracteriza-se pela forma imediata e intensa que se impõe; mas é o pensamento e a ação humana deste mundo que o torna dotado de sentido para os indivíduos, sendo assim afirmado real por eles. 3 Weber, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 17 De acordo com tal tese de Berger e Luckmann (1985), esta realidade por assim dizer, mostra-se também para os indivíduos como uma relação intersubjetiva, isto é, um mundo de interações e participações mútuas na vida cotidiana. Dentro deste contexto o contato face a face é fundamental, pois tenho o outro como inteiramente real. No entanto, na rotina da vida cotidiana sucedem-se tipificações, na qual não apenas o outro é um tipo (relação recíproca), mas as situações em si são típicas, fato este que consiste em uma estrutura social, elemento inerente da realidade da vida cotidiana, mas que só é possível enquanto objetivações, ou seja, a primeira só se constitui pela última. Tal processo atinge o seu maior grau de importância na linguagem, pois é através dela que a vida cotidiana é objetivada, na qual todas as espécies de experiências e fatos adquirem significações que por sua vez são também tipificadas. Sendo assim, o mundo que apresenta-se para o homem estabelece uma relação integra e recíproca para com este último, isto é, o homem torna-se homem em um ambiente natural, que por sua vez também é um ambiente humano, na relação com o outro. A partir de então, que o homem desenvolve o organismo (biológico) e o eu humano em um ambiente socialmente determinado, ou seja, o homem é um corpo que por conseguinte tem esse corpo como entidade (propriedade). Logo para as seguintes considerações tomamos a asserção de Berger e Luckmann (1985), segundo qual “O Homo sapiens é sempre, e na mesma medida, homo socius.” 4 , de modo que podemos falar de ordem social como produto da atividade humana dentro das relações sociais. Entretanto toda a atividade humana está submetida ao hábito (enquanto situações/ações e seus atores definidos, padronizados, em suma, as tipificações), cuja extensão se propaga em uma institucionalização, que de acordo com Berger e Luckmann (1985), “... ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores” 5 , fazendo com que para todos os indivíduos em uma sociedade, identifique a trivial rotina como a vida cotidiana deles. Como já dito, a vida cotidiana está em constante transformação pela construção da atividade humana e que haja vista é institucionalizado, formando por fim uma ordem institucional, na qual tem suas raízes na divisão do trabalho, que segue conduzindo o ciclo da institucionalização. Mas para esse mundo, agora institucionalizado, ter o seu caráter próprio de objetivação, ele deve ser transmitido para uma outra geração, pois só assim a dialética social apresentase plenamente, como uma interiorização realizada partindo da socialização, exigindo assim meios que justifiquem (legitimem) tal mundo social, pelo fator controlador das condutas institucionalizadas. Dito de maneira mais clara, esse processo se desenvolve quando, no estado da divisão do trabalho, um corpo de conhecimento se forma através de uma atividade particular, que terá estruturas lingüísticas referentes a tal atividade, possuindo assim uma funcionalidade controladora e condutora da institucionalização deste campo de conduta (o conhecimento como legitimação), e que no seu corpo de conhecimento a mesma caracteriza-se como instituição objetiva, logo, no seu processo de socialização (transmissão) 4 5 Berger; Luckmann, 1985, p. 75. Ibid., p.79. 18 ela será compreendida como uma verdade objetiva, formando tipos de pessoas especificas, na qual as mesmas interiorizarão tal socialização como realidade subjetiva (ficando claro que não há o descarte da possibilidade de o homem apreender os fenômenos humanos como não humanos, após o estabelecimento de uma realidade social objetiva). A construção social da realidade, segundo Berger e Luckmann (1985), está de fato vinculada com a questão de como se desenvolve a distribuição de conhecimento na sociedade. Como já anteriormente apontado, a atividade humana se torna responsável por tal ocorrência em forma de papéis desempenhados por seus integrantes representando a ordem institucional, e portanto os papéis atuam como mediadores do acesso particular de esferas do acervo comum do conhecimento, na qual resultará no surgimento de especialistas, que necessariamente terão de conhecer tudo que diz respeito as suas especificas atividades. Este fato implicará na segmentação institucional, pois com o conhecimento fragmentado, a questão dos significados íntegros não será efetivada, ou seja, todo um contexto dotado de sentido pleno não será possível devido ao fracionamento do indivíduo com relação ao conhecimento e a experiência social, que o mesmo terá, criando assim sub universos sociais de significações isoladas. Sendo assim, Berger e Luckmann (1985) ratificam de vez dizendo que: “... a relação entre o conhecimento e sua base social é dialética, isto é, o conhecimento é um produto social e o conhecimento é um fator na transformação social.” 6 Todos os pressupostos até então aqui apresentados diz respeito à objetivação da realidade da vida cotidiana, porém uma questão vem à tona: o que garante a um indivíduo se integrar por completo em tal mundo socialmente objetivado? No contexto da objetivação, na qual o indivíduo se integra, a mesma deve ser dotada de sentido para ele, fazendo com que a legitimação se encarregue de manter o acesso do indivíduo para com a objetivação, e que subjetivamente ela possa tornar-se plausível, isto é, dando significação para o mesmo. De acordo com a complexidade que as objetivações atingem, o nível das legitimações se diferem. Sendo a legitimação incipiente, isto é, o vocabulário, acaba tornando-se a legitimação inerente, mas seu grau de complexidade também se modifica de acordo com a necessidade, ou seja, como estrutura pragmática (máximas, provérbios,...), estrutura especifica (teorias explicitas sobre uma determinada área institucional), e a maior estrutura legitimadora, os universos simbólicos, na qual será sucintamente desenvolvida. 6 Ibid., p. 120. 19 Os universos simbólicos têm um caráter especifico, pois constitui uma forma amplamente integrada dotada de sentido, de todos os setores da ordem institucional, isto é, todas as experiências humanas de objetivações sociais de significados e subjetivamente reais. A partir de então, todas as realidades integram ao universo simbólico, de significações, logo, legitima a biografia individual na realidade da vida cotidiana, pois a mesma exerce um caráter ordenador, que permite ao sujeito conceber a realidade da vida cotidiana, como sendo a realidade. Porém como o universo simbólico tem um caráter teórico, após sua cristalização torna-se susceptível a problemas. No entanto, há mecanismos conceituais de manutenção assim como: a mitologia, teologia, filosofia e a ciência nos quais, exceto a mitologia, detêm um corpo de conhecimento especifico e especializado. Para Berger e Luckmann (1985), a realidade da vida cotidiana só se manifesta como sendo a realidade pelo universo simbólico (produção social), ou seja, para a sua constante manutenção enquanto a realidade, os corpos especializados de conhecimento, no caso os peritos, são os principais definidores da realidade em uma sociedade, pois formam estruturas unificadas de poder, caracterizando portanto as ideologias, gerando assim conflitos entre os mesmos. Contudo as sociedades contemporâneas caracterizam-se pelo fato de serem pluralistas, isto é, tem seus próprios universos nucleares, mas compartilham com diferentes outros universos parciais, assim como propõem Berger e Luckmann (1985):“O pluralismo encoraja tanto o cepticismo quanto à inovação, sendo assim eminentemente subversivo da realidade admitida como certa do status quo tradicional.” 7 Em suma, como definem Berger e Luckmann (1985), integrando tal discussão: “Tudo quanto até aqui dissemos a respeito da socialização implica a possibilidade da realidade subjetiva ser transformada. Estar em sociedade já acarreta um contínuo processo de modificação da realidade subjetiva.” 8 E por fim: “Na dialética entre a natureza e o mundo socialmente construído, o organismo humano se transforma. Nesta mesma dialética o homem produz a realidade e com isso se produz a si mesmo.” 9 Caracterizada pela incerteza construída, pelo caráter de transitoriedade, pela fragmentação de idéias, de discursos, de pensamentos e, sobretudo pela falta ou pelo conflito de referenciais e indicadores de valores válidos para uma vida digna para o sujeito e para a coletividade, a humanidade vivencia um episódio de terror. Utopias sócio políticas enfraqueceram-se diante o Capitalismo de consumo e o grande número 7 Ibid., p. 169. Ibid., p. 207. 9 Ibid., p. 241. 8 20 de casos de corrupção entre as próprias instituições que defenderiam a ética na esfera pública, e a sociedade civil sente-se refém de uma violência que a abrange de todos os lados: o abandono. Alienados, os indivíduos solitários e desarticulados socialmente travam uma relação quase psicótica de superficialidade no contato com o outro. Indiferença. E todos buscam por respostas, verdades, um paradigma que dê suporte à existência, uma ideologia para viver, como diria o poeta 10 . A busca pela identidade deixa de ser uma característica própria da condição da adolescência, e passa a ser problemática humana. Quais valores temos? Quais as prioridades? A quais diabos venderíamos a alma? Direitos Humanos? Fé? Qual é a ética verdadeira frente aos avanços científicos, tecnológicos? Calam-se nossas indagações, ainda que nos pareçam infinitas, e ainda não escutamos nem sussurros de qualquer resposta convincente. Contudo, se a realidade é uma construção social, a emancipação e ampliação da consciência humana no sentido da reflexão ética poderia nos projetar, efetivamente, a novos pressupostos nesta constante construção da realidade. Nós somos a realidade. Compreender o processo pelo qual transitamos até o presente é fundamental para a edificar os valores da nossa fabulosa nova época. III. Identidade, Cidadania e Modernidade em Crise Até o presente momento, nosso texto aponta que a nossa existência se caracteriza por um traço híbrido, que é composta por agrupamento de diferentes conceitos, opiniões, verdades; trata-se de um momento indefinido na história da humanidade. O velho sistema econômico, o Capitalismo, é agora “adornado” com o toque do neo-liberalismo. A Globalização, conceitue-lhe positiva ou negativa, é dado de realidade que não recuará enquanto processo em um só passo; ao contrário, avança a cada dia com novas tecnologias de comunicação e de informação. Tal modernização leva a descentralização, privatizações e, indubitavelmente, a alterações da estrutura cultural, ainda que seja consequência do capital, para uma nova modalidade: massificada. Mas ainda que possamos afirmar que os antigos assombros da humanidade se apresentam com máscaras diferentes, há algo de novo neste momento da História: há 10 Referência à letra da música “Ideologia”, de Cazuza, no trecho que afirma: “Ideologia, eu quero uma para viver”. 21 uma busca generalizada por visões, por uma conversão de valores que nos sejam plausíveis à possível sobrevivência digna, justa, harmônica, ao menos. Vivemos em um período de transformações sociais associadas à Modernidade. Período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Mas como chamaremos este período é a dúvida apresentada por Anthony Giddens 11 (1991). Chamaremos de Sociedade da Informação? De consumo? Pós-modernidade? O período Moderno tem associado a si descontinuidades como: ritmo de mudança, escopo de mudança e a natureza intrínseca das instituições modernas. Como lado negativo desse período, Giddens (1991) fala sobre as preocupações ecológicas (que tanto nos aflige hoje), totalitarismo (abuso do poder) e o confronto nuclear (ameaça constante). Atualmente o que modela o mundo moderno é o Capitalismo, analisado pela Sociologia e pelas ciências do comportamento humano (reflexão sobre a vida social moderna). Para compreender a própria Modernidade, Giddens (1991) usa o auxílio de conceitos como tempo e espaço, categorias escolhidas por seu traço universal. De acordo com o autor, o dinheiro (capitalismo) é o meio de distanciamento entre o tempo e espaço. Ele possibilita transações entre agentes separados no tempo e no espaço. O desencaixe é outro conceito que auxilia na compreensão da Modernidade e no desenvolvimento das instituições sociais moderna pois, de acordo com Giddens (1991), desencaixe é “o “deslocamento” das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” 12 , entre seus mecanismos estão as fichas simbólicas e os sistemas peritos. A Modernidade que é marcada também por movimentos sociais em que o poder é exercido pela força. Sistemas de pós-escassez, formação de cooperativas de políticas globais pelos estados, também marcam esse período. Essas transformações da Modernidade alteraram também a intimidade, através das relações entre tendências globais e vida cotidiana, outra transformação é a do eu (reflexivo), da confiança e a preocupação com a autosatisfação. Cada vez mais as pessoas se apresentam com o sentimento embotado, isoladas e solitárias em grandes conclomerados urbanos e, sobretudo, agressivamente reativas: na impossibilidade de troca afetiva positiva 11 12 Giddens, A. “As consequências da Modernidade”, 1991. Ibid., p. 29. 22 com o ser humano, a violência pode ser um tipo, ainda que destrutivo, de relacionamento que ainda nos lembre que somos humanos. Para diferenciar o período Moderno do período Pré-Moderno, Giddens (1991) utiliza complexos mecanismos, como a segurança relacionada ao perigo, e a confiança enquanto mecanismo relacionado ao risco - termo que passou a existir apenas no período Moderno. O dinheiro está relacionado à confiança, que está relacionada à informação plena, ou a credibilidade e crença, que estão relacionadas à interação social. Dentro dessas relações interpessoais, a sinceridade foi substituída pela autenticidade, a honra pela lealdade. Essa necessidade de achar em que confiar é apresentada de forma brilhante pelo filme vencedor do Oscar de 2006 (Crash – No limite, 2005). Não se confia em ninguém, perde-se o sentido de humanidade. De acordo com Savater (2004), seja qual for o valor que se atribua ao outro ou a seu comportamento, ele é seu semelhante, e nisto reside o seu valor: a vida humana transcorre entre seres humanos, e a realidade se constrói a partir das relações sociais simbolicamente estabelecidas pela linguagem e interação entre os seres humanos, como afirmam Berger e Luckmann (1985). Assim, só nas experiências compartilhadas podemos construir a identidade pessoal, dela tornar-se consciente e, então, configurar para nós mesmos os valores que podem orientar nossa existência. Logo, se não confio na existência e no outro, não faço trocas simbólicas. Sem elas, há a impossibilidade de encontrar tanto o equilíbrio individual, quanto para o relacionamento interpessoal. O resultado, exemplificado na obra de (diretor), é a conduta violenta, ressentida, traumática substituindo a assertividade necessária para o desenvolvimento humano. Outra consequência da modernidade apontada por Giddens (1991) e exemplificada no Filme “Crash – No limite” (2005) é a desatenção social (compromisso com rosto e sem rosto), onde milhares de pessoas se cruzam todos os dias sem estabelecer nenhuma relação, ou pessoas que se cruzam nas ruas e mal sabem que por algum motivo estão relacionadas e suas atitudes podem refletir em ambos. Essa desatenção social está ligada à ausência da capacidade de confiabilidade (mecanismo da modernidade). A tradição recebe sua identidade apenas da Reflexividade do moderno, pois a idéia de ruptura com a tradição é inerente à idéia de Modernidade. Segundo Giddens (1991): “A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alternando assim constituitivamente seu caráter”. 13 A Modernidade está totalmente ligada à Globalização, da economia, da cultura pelas tecnologias de comunicação e pela mídia. A Globalização está 13 Ibid., p.45. 23 ligada ao Capitalismo que modela a Modernidade. Através do Capitalismo (maior riqueza , maior poder), se deram as inovações tecnológicas constantes, mas também difusas. Nesse período, a interação do homem com a natureza se dá através do industrialismo, junto ao Capitalismo. De acordo com Giddens (1991): “Mas, até onde durarem as instituições da modernidade, nunca seremos capazes de controlar completamente nem o caminho nem o ritmo da viagem. E nunca seremos capazes de nos sentir inteiramente seguros, porque o terreno por onde viajamos esta repleto de riscos de alta-consequência . Sentimentos de segurança ontológica e ansiedade existencial podem coexistir em ambivalência.” 14 Muitos dos fenômenos atribuídos a Pós-modernidade, na verdade, dizem respeito ao fato de vivermos em um mundo em que presença e ausência se combinam de maneiras historicamente novas. Segundo Giddens (1991): “num mundo pós-moderno, o tempo e o espaço já não seriam ordenados em sua inter-relação pela historicidade, um mundo que entrelaçaria o local e o global de uma maneira complexa”. 15 Neste sentido, o problema da crise de valores, da ética propriamente dito, se expande em direção à coletividade, tornando-se uma questão política, ou seja, de cidadania. Diante o niilismo e falta de autonomia moral generalizada, sem consciência da liberdade existencial e, portanto, com dificuldade para assumir a responsabilidade ante as consequências das atitudes cometidas, o Ser Humano Moderno apresenta-se heterônomo diante a vida. Com a fragmentação do saber e com o processo de destradicionalização dos valores, a sensação de velocidade frenética deixa as pessoas confusas quanto os critérios que regem suas escolhas, bem como sem condições para estabelecer quais as prioridades – no nível pessoal ou coletivo – em suas vidas. Desejo confunde-se com necessidade e com culpa. A corrosão da identidade pessoal facilita o processo de desconstrução de identidade nacional, do sentido de cidadania, da importância do sujeito na esfera social. O enfraquecimento do indivíduo, que leva à irritabilidade, intolerância, preconceito, alienação e manutenção de esteriótipos discriminativos sociais passa a ser reforçada pela conduta política alienada em todos os campos: do representante público corrupto ao eleitor alienado. Consequência disto, se desconstitui os Direitos Humanos 14 15 Ibid., s/p. Ibid., p.176-177. 24 básicos de modo legitimado pelo ódio coletivo, sem meios dignos de saúde, educação, segurança, habitação, trabalho. Mas se o objetivo da ética é a vida boa, a felicidade ao Ser Humano, estamos no caminho inverso. Tal é a crítica de “Crash – no limite”(2005): sem a constituição de referências não paradigmáticas mas, antes, tolerantes e amorosas, não há sobrevivência e evolução da espécie humana, apenas o conflito, o impacto, a ruptura. Crash. A idéia de cidadania como pensamos atualmente, tendo o cidadão como aquele que na dinâmica social trava relações políticas de direitos e deveres, enquanto convívio construtivo e igualitário da realidade social humana, iniciou-se na Grécia Clássica, na origem das suas primeiras cidades, onde o ser humano passa a ser considerado um ser político em consequência de sua condição de ser social. Contudo, durante o período do Feudalismo Medieval, a cidadania não ocorreu, devido a opressão e a estrutura daquela sociedade em que, apesar da existência de leis, os benefícios contemplavam exclusivamente uns e os deveres eram obrigação de outros, sem concomitância para o mesmo indivíduo. A Revolução Francesa tornou-se marco da cidadania moderna, com o objetivo de igualdade para todos (“igualdade, fraternidade e liberdade”). O trabalho tornou-se o primeiro marco para a existência da cidadania liberal: a partir dele, e pela capacidade de cada um, todos seríamos iguais. De fato, a história mostrou que não foi bem assim. As relações de poder e de valor simbólico entre os Seres Humanos impediam a igualdade, a liberdade e a fraternidade de efetivarem-se. Marx critica a ideologia burguesa, aponta a exploração do trabalhador pelo capital e alienação resultante de tal processo em que o ser humano é tratado como coisa e não como semelhante. As críticas Marxistas contribuem para o surgimento de novos embates por direitos dos trabalhadores, como reivindicações por trabalho, saúde, habitação e educação. Além dos direitos civis e políticos, os direitos sociais começam a ser refletidos e constituídos pela humanidade, tanto em referenciais socialistas como em referenciais liberais (Welfare State, por exemplo). Nos anos 60 e 70 a questão da cidadania era muito discutida no Brasil, porque aquele era um período de opressão pelo governo militar. Acontecem movimentos sociais, em busca do “ser cidadão”, que seria ter direitos. Se, neste breve panorama da história, podemos observar que há o esforço para alcançar meios de vida em que a existência seja não só possível, mas digna e boa a todos, a questão é a falta de êxito nas empreitadas. Mas o desejo de poder em benefícios próprios dificulta a efetivação da cidadania. Como arma contra a corrupção social, a constituição limita o poder dos governantes (divide o poder em três: legislativo, judiciário e executivo) e detém as idéias de direitos e deveres. Porém, a cidadania é resultado da interação 25 entre todas as instâncias e atores sociais, em sua representações de soberania e de submissão social. A Cidadania está muito ligada à política, pois cidadania trabalha a coletividade (cooperação, respeito, responsabilidade no parâmetro coletivo). O convívio humano é rodeado de vontades e de interesses diversos, em busca de Poder, ou seja, da capacidade de transformar a vontade dos outros em sua própria vontade, através da força ou do convencimento. Se a Ética discute sobre as orientações das ações humanas particulares, a Política discute essas ações voltadas para um público maior. Portanto Ética e Política devem caminhar juntas, pois ações pessoais refletem em ações sociais, e escolhas pessoais têm reflexos coletivos, exatamente o que é retratado no filme analisado. O objetivo da política é tomar decisões que reflitam na coletividade de modo a administrar a vida social com finalidade de proporcionar humanidade nas relações internas do grupo: desenvolver crítica para o desenvolvimento da cidadania. Cidadania é respeito, é participação responsável, é coletividade, “bem-comum”, é justiça social. O trabalho, desse modo, deveria configurar condição de realização do ser humano mas, atualmente, com tanto desemprego, mecanização da mão-de-obra, entre outros fatores, fica difícil de se realizar. Na sociedade atual a produção é automatizada, com bens de curta duração, de consumo descartável e de exigência estética. O ser humano passa a ser tratrado como mercadoria (quanto mais trabalhadores, menores salários; quanto mais produz, menos se tem para consumir), o trabalho tornou-se rotineiro e irreflexivo, alienado. Neste contexto, é preciso saber para fazer, não para criar; lucrar é preciso. A atualização profissional num mundo global e informatizado é constante (e por conta do profissional), e as relações de trabalho passam a se definir por uma desumanização do corpo e da vida. Há uma inversão de valores: produto vale mais que o Ser Humano, aparência vale mais que a essência. Nesta nova sociedade, Cidadania confunde-se com consumismo; cartão de crédito com identidade; Cargo com o que a pessoa é; Bondade com geração de lucros. Nesta perspectiva, pretendemos refletir as possibilidades da existência ética na realidade contemporânea com a análise a seguir. IV. Crash: estamos todos no limite da vida? O ser humano é um ser social: suas ações, mesmo quando individuais, refletem na coletividade. Ou seja, ele convive num meio social (escola, trabalho, família, clube, sociedade, igreja), e é impossível escapar da participação. Através dessa convivência é gerado conflito de vontade e de interesses, de poder. Uma ação individual reflete em ações coletivas, por isso é de suma importância que um cidadão (ter direitos e deveres; ser súdito e 26 soberano), possa refletir sobre sua participação política, ou seja, ter consciência da importância da sua conduta para o todo coletivo. Através de tal discussão teórica (o cidadão como ser político), será então refletida uma discussão crítica/prática, ou seja, todas as problemáticas (Consciência ética, trabalho, produção e consumo) dessa discussão teórica na sociedade atual. O trabalho tem como definição ser a condição de realização do Ser Humano (fundamento da vida cultural e da civilização e capacidade de produção de bens materiais, transformando a natureza), mas nos dias atuais isso não vem ocorrendo devido a más condições, o trabalhador deixou de trabalhar por realização, resultando em um trabalho alienado, ou seja, trabalho rotineiro e irreflexivo, na qual o ser humano se torna uma mercadoria (o trabalhador não sabe seu valor (produz, mas não sabe produzir, ou seja, ele sabe colar uma sola, mas não sabe produzir um sapato) e trabalha, por exemplo, por dinheiro). De acordo com a problemática do trabalho, a sociedade atual se depara com a questão da produção e do consumo. “Se existe trabalho, existe produção, logo quem produz, consome, e se existe consumo, existe maior produção”. Para que este ciclo esteja cada vez mais “motivado”, se criou uma idéia estereotipada de Belo, na qual tudo o que devemos produzir e consumir, deve ser voltado para tais características. Mas não numa referência à estética, mas ao que é superficial e passageiro. Como “devemos” consumir e produzir o que é Belo, o corpo humano se torna uma mercadoria: por exemplo, as modelos, que são vistas pela sociedade como padrões de beleza, e logo todos querem obter o corpo “Belo”, mas não necessariamente saudável. Tanto em nossa sociedade, como na problemática que trata o filme, podemos notar o “conflito” e a inversão de valor entre o Eu (ser e existir) e o Ter/Parecer (produzir/consumir). Nesta perspectiva, “Cidadania” confunde-se com “consumismo”, “cartão de crédito” com “identidade”, “Cargo” com o que a pessoa “é”, “bondade” com “geração de lucros”. Realizada tal discussão teórica daremos início as problemáticas apresentadas pelo filme e observadas por nós. Cabe orientar ao leitor que serão apresentadas aqui, apenas idéias gerais. O filme trata da questão da individualidade, apresenta questões como o racismo, preconceito e o estereótipo (“mexicanos não sabem dirigir”; preconceito contra o árabe na loja de armas; estereótipo em relação ao chaveiro, que é rotulado como gangster; questão racial entre os negros, em que eles tem preconceito contra eles mesmos). O poder também é discutido no filme, caracterizado pelo seus excessos: policial quando usa do Poder da sua autoridade e abusa moral e sexualmente de uma mulher, ou quando há o assalto dos jovens negros a um casal, através da violência. A questão da alienação em relação ao trabalho se caracteriza de várias formas em que a humanidade é trocada pela lucratividade: na loja de armas, a mulher faz uma proposta ao balconista que não quer vender, mas quando o dinheiro é pedido de 27 volta, acaba e vendendo as balas, numa submissão ao dinheiro, e à falta de consciência. Em outro episódio, o filme retrata tal debate através do policial que quer ser transferido por não aceitar atitudes abusivas que presenciou, mas se submete ao seu trabalho mesmo sabendo que nele acontecem fatos de negligências éticas profissionais. As problemáticas da produção e consumo também podem ser vistas no filme através do trabalho da empregada do político, vista como mercadoria e instrumento, por sua patroa que lhe trata como “coisa”. A venda de orientais como se fossem mercadorias e o oriental hospitalizado quase morrendo, mas que mesmo assim pede para que sua mulher desconte imediatamente o cheque que ele possuía retratam de forma enfática tal realidade. A manutenção dos esteriótipos sociais foi retratada pela sequência em que na filmagem de uma série de tv o negro que faz uma personagem começa a falar de maneira formal, e um dos diretores acha um absurdo pois, para ele, os negros tem que falar como gangster, e quem fala de maneira formal são os brancos, fazendo com que ele venda essa imagem. A super valorização do consumo do belo de modo superficial leva ao vazio existencial e é tematizado no filme pela vida irada da mulher rica que vive o sonho de qualidade de vida americana no seu cotidiano, com bens e aparência, acesso a produtos e diversos relacionamentos, mas que sente-se sozinha, irritada e infeliz constantemente. Trocou sua existência pela aparência. Diante de todas as problemáticas envolvidas no filme, todas as ações individuais acabaram refletindo na coletividade, e por fim promovendo uma reflexão sobre as atitudes tomadas (como quando o policial volta a se encontrar com a mulher assediada e salva sua vida; quando o investigador deixa de exercer sua função para salvar o irmão, o deixando livre, ou o negro que passa o tempo todo atrás de dinheiro ilegal mas, ao invés de vender os orientais clandestinos que encontra casualmente, e ganhar o tão desejado dinheiro, ele os liberta. Conclui-se então a importância da consciência ética que cada indivíduo deve possuir em relação as suas ações para que elas reflitam de forma positiva na sociedade, exercendo assim seu papel como cidadão. V. Considerações Finais Com base nos estudos teóricos realizados, concluímos que a crise da Modernidade é um grande expoente a ser debatido na atualidade. Confiança, consumismo, risco, niilismo, poder, individualismo, consequências dessa crise da Modernidade, que refletem diretamente no convívio social, que é caracterizado por incertezas (exemplo: risco x confiança ), pelo sentindo efêmero, fragmentação de ideias e discursos teóricos, isto é, conflito de valores que influenciam o contexto social. O resultado dessas consequências , ou 28 características da modernidade, são as condutas violentas, ressentidas, traumáticas, que prejudicam o relacionamento interpessoal. O compromisso sem rosto, o indivíduo sem identidade, o vazio existencial são exemplos do que ocorre na atualidade e são muito bem apresentado pelo Filme “CRASH-NO LIMITE”, em que pessoas se cruzam, mas nem sabem que se cruzaram, pessoas tomam atitudes e nem sabem que as mesmas irão influenciar ou acarretar danos – a si mesmas ou a outras pessoas, “desconhecidas” por ela. Isto é, mais uma vez apresentamos aqui, e portanto concluímos, que a ação da esfera individual reflete na esfera coletiva, e como mostra o filme discutido, este tipo de ação está construindo e modificando a todo momento a realidade, onde cada vez mais o espírito de cidadania é deixado de lado, bem como os valores que possibilitariam uma existência digna ao Ser Humano. Por isso é de fundamental importância no atual contexto de realidade a retomada da reflexão sobre Ética, pois ela tenta resgatar esses valores (que foram, e estão sendo deixados de lado, pelas características da modernidade) de forma racional e, assim, que possa configurar tal universalidade que seja comum a todos os povos: sem fundamentalismos ou imposições, mas através do respeito, da alteridade, do cultivo da empatia pela humanidade que o outro é e constitui em si. Arriscamos afirmar que nos falta a ética amorosa que vê o diferente não como inimigo mas como elemento constituinte da variedade que desenha a realidade humana, como pessoa semelhante em sua existência humana. E, nesse sentido, conotamos o amor não como sentimento relativo, piedoso ou apaixonado mas, antes, como emoção definida que conduz à ação e práticas efetivas em favor do objetivo ético essencial: a digna vida humana sem acepção de pessoas, mas com discernimento de condutas. Nesse espaço, entra a Cidadania , que tem como papel mediar a consciência ética para uma conduta ética de fato, de uma mesma realidade. O filme analisado tem como característica fundamental para nossa conclusão, a questão da reflexividade , onde as primeiras atitudes tomadas pelos personagens , eram atitudes impulsivas (que não havia reflexão), e contribuíam para esta amarga realidade em que vivemos. Numa segunda instância, alguns personagens se tornam seres mais reflexivos (características da consciência Ética) e suas atitudes passam a ser ações de caráter cidadão. Como profissionais ligados à Educação Física, cientes da Responsabilidade Civil dessa profissão enquanto categoria política no grupo social, preocupamo-nos, ao fim, com a realidade na qual tal atividade se insere. Observamos que, para além do corpo material, físico, e numa perspectiva de ética como a busca dos fundamentos e do aperfeiçoamento virtuoso bio-psicosocial, o trabalho da Educação Física é com o sujeito humano. Este, em crise de identidade e valores retratado pelo filme e análise realizada, muitas vezes buscam esta área do conhecimento humano apenas por motivações superficiais, consumistas, fragmentadas, utilitaristas. E então, questionamos qual a contribuição à cidadania e à sociedade mais harmoniosa que a Educação Física poderia trazer. A Educação Física deve contribuir para a formação dos indivíduos. Ela deve trabalhar o ser num contexto geral, tanto as dimensões biológicas (o corpo humano, o físico, a coordenação, etc), como trabalhando dimensões 29 sociais e psicológicas, em que o profissional deve usar seus conhecimentos e contribuir para que seu aluno aprimore os seus convívios sociais, o aspecto da coletividade, do trabalho em grupo. Na sua prática cotidiana, seja na escola, na academia, no clube, nas empresas, o trabalho com o corpo deve emancipar a consciência pessoal ao conferir identidade ao sujeito, uma vez que o corpo é a expressão da existência. Sendo assim, são seus conteúdos transversais o respeito, a determinação, a disciplina, o senso de unidade, a competitividade saudável ao desenvolvimento e não à destruição traiçoeira, o equilíbrio, a valorização da saúde, o relacionamento inter e intra pessoal. Ou seja, na ampliação da consciência corporal, promover a dilatação da consciência pessoal, viabilizando o exercício prático de condutas éticas através do exercício e do esporte que promova a reflexão constituinte dos princípios morais que levem o indivíduo à condição de cidadão crítico, consciente, participante criativo de um mundo melhor. Além de trabalhar questões de formação específica deste campo do conhecimento, o papel de todos educadores é ensinar e compartilhar conhecimentos de modos e situações diferentes, contribuindo para a formação integral do indivíduo, e para a formação de um cidadão. Deste modo, apontamos o papel da Educação e da prática reflexiva como fundamento central na resolução, complexa e provavelmente não tão próxima, dos problemas éticos contemporâneos discutidos teoricamente neste trabalho e retratados no filme analisado. Há uma urgência no que se refere à existência digna, se não à própria sobrevivência humana, do resgate de valores éticos e morais que dêem sustentação à conduta promotora de uma sociedade produtiva, humanizada, respeitosa e harmônica. Há a necessidade do olhar crítico para a realidade, assim como o faz o filme “Crash – no limite”, que observe que todos, sem exceção, apresentam características que transformamse em virtudes ou deforminadades de acordo com a tônica dada pela conduta pessoal. Não há mocinhos ou bandidos. Há pessoas. Carentes de identidade, de contato que humanize e edifique, mas, sobretudo, de amor pela própria existência e pela existência do semelhante. Referências Bibliográficas BERGER, P.; LUCKMANN, T. A Construção social da Realidade. Petrópolis (RJ): Vozes, 1985. CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2004 CRASH – NO LIMITE. Dir. Paul Haggis. EUA: Lion Gate Inc/Imagem Film, 2004, 113m. DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. 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Arte e Retrato da Crise de Valores do Ser Humano Contemporâneo: a falta de sentido de vida no filme Beleza Americana. Revista eletrônica Ética e Cidadania: Paradigmas para o novo Milênio. São Paulo: Mackenzie, 2005, p. 185-194. _____. Lições do Esporte e da Vida: a questão da responsabilidade pelas escolhas. Jornal São Paulo Center. São Paulo, nº1, 07/2006, p. 4. _____. Ética e Felicidade. Revista Psicologia Brasil: São Paulo: 08/2006, p. 2831. SARAMAGO, J. As Intermitências da Morte. São Paulo: companhia das Letras, 2005. _____. O Fator Deus: Por causa e em Nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o mais horrendo e cruel. Jornal Folha de São Paulo, 19 de setembro de 2001, Caderno Especial, p 8. VARGAS, Ricardo. Os Fins Justificam os Meios: Gestão baseada em valores, da ética individual à ética empresarial. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005. VASQUEZ, A.S. Ética. São Paulo. Civilização Brasileira, 1975. VYGOTSKY, L. Psicologia da Arte. 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Dentre suas obras podemos destacar Moralia (obra composta de 83 opúsculos, dentre eles o texto que examinaremos aqui, Como distinguir o bajulador do amigo) e As vidas paralelas (onde ele aborda, através da análise dos dramas individuais, a obra de importantes personalidades gregas e romanas). A filosofia de Plutarco configura-se como oposta às abstrações platônicas e aristotélicas e igualmente contrária à indiferença dos estóicos e epicuristas em relação à vida pública. O apego de Plutarco ao subjetivo e a ligação deste com a vida social fazem do pensador um dos autores prediletos de Montaigne, Shakespeare e Schiller. Como distinguir o amigo do bajulador é um trabalho rico em citações de filósofos, das tragédias e da mitologia gregas. Ao tentar abordar a distinção entre o bajulador e o amigo, o pensador inicia explorando o tema do amorpróprio de cada indivíduo. Segundo seu entender, o amor-próprio, que é algo importante na vida do ser humano, está no limite entre a temperança e a desmedida, que pode ser caracterizada aqui como vaidade: “Aliás, o amorpróprio oferece à bajulação um vasto campo para nos atacar, e sob a aparência da amizade, dominar nossa confiança. Como transforma cada um de nós nos primeiros e maiores bajuladores de nós mesmos, ele facilita a entrada 32 de estranhos, para obtermos dele os testemunhos e a aprovação da justa opinião que este amor-próprio tem de si mesmo” (PLUTARCO, 1997: 11-2). Tal vaidade facilita o aparecimento dos bajuladores. Plutarco não se preocuparia com a bajulação se esta atingisse apenas os homens vis ou pobres. Entretanto, a bajulação é destinada sempre aos poderosos, uma vez que são esses que possuem as coisas desejadas pelo bajulador ou que, por uma questão de poder ou prestígio, podem ajudar os bajuladores a obtê-las: “Do mesmo modo, não é aos homens pobres, fracos e desconhecidos que a bajulação se liga, mas às casas opulentas, e mesmo aos reinos e impérios, dos quais freqüentemente é a causa da ruína”(PLUTARCO, 1997: 12-3). Com efeito, o objetivo de Plutarco é circunscrever detalhadamente a bajulação. Segundo seu entender, é exatamente nisso que se constitui a prudência. O intuito é perceber quem é e como age o bajulador, pois assim procedendo, podemos nos livrar dele e nos afastar dos seus males. Entretanto, tal atitude exige cuidado, pois não se deve afastar um amigo simplesmente pelo fato dele nos elogiar. Nem todo elogio é procedente de um bajulador. Cabe, portanto, analisar o que seria típico de um bajulador e o que seria típico de um amigo. Plutarco elenca dois tipos de bajulador: o bajulador declarado e o bajulador astuto. Segundo ele, deve-se tomar mais cuidado com o segundo tipo. Afinal, o primeiro tipo, por ser mais bastante evidente, dispensa maiores cuidados: Portanto, de qual bajulador é preciso se proteger? Daquele que não aparenta sê-lo, que nunca surpreendemos rodeando as cozinhas ou calculando no relógio a hora do jantar, e que se nunca permite à mesa nenhum excesso, mas que, é sóbrio e moderado, curioso para ver tudo e tudo ouvir, procura-se antes envolver-se nos nossos negócios, penetrar em nossos segredos mais íntimos; enfim, aquele que, longe de interpretar seu personagem bufão ou comediante, conserva na conduta ou caráter sério e honesto (PLUTARCO, 1997: 16). A astúcia do bajulador está exatamente no fato dele parecer amigo. Para Plutarco, a única maneira de se desmascarar essa farsa é analisar a semelhança entre os gostos, pois o que constitui, no seu entender, a essência 33 da amizade é exatamente o gosto pelas mesmas coisas que dividimos com outra pessoa: “Primeiramente, examinemos se os gostos são realmente os mesmos que os nossos, e se são duráveis; se ele gosta e aprova sempre as mesmas coisas; se sua conduta caminha com uniformidade para o mesmo objetivo, como convém a uma alma honesta cuja amizade está fundada na conformidade dos costumes e dos caráteres, pois assim é um verdadeiro amigo”(PLUTARCO, 1997: 20). No entender de Plutarco, o bajulador é uma espécie de imitador barato. Alguém que não possui nenhum posicionamento próprio, mas que segue apenas aquele de quem deseja obter algum benefício: Ele seguiria um jovem que aprecia as Ciências e as Letras? Ei-lo de súbito mergulhado nos livros: deixa a barba crescer, veste a capa de filósofo e, esquecendo todo cuidado com sua pessoa, só fala em números, ângulos retos e dos triângulos de Platão. Faria a corte a um rico desocupado e libertino, que só gosta de vinho e boa carne? Logo, de seus sujos farrapos Ulisses se despe. Ele abandona sua capa, corta sua barba, como uma colheita perdida, e só fala de copos e garrafas: são apenas risos nas caminhadas, troças contra os filósofos. Assim, contam que, quando Platão veio a Siracusa, tendo Dênis a mania de filosofar, os assoalhos do palácio foram cobertos com a areia que servia às demonstrações dos cortesãos, todos transformados em geômetras. Mas quando Platão perdeu as boas graças de Dênis, e o tirano, dizendo adeus à filosofia, entregou-se novamente ao vinho, às mulheres, à frivolidade e à libertinagem, todos os seus aduladores, como que metamorfoseados por uma outra Circe, esqueceram completamente as Letras, retornaram a sua primeira ignorância (PLUTARCO, 1997: 22). A primeira maneira pela qual se pode conhecer um bajulador é simular uma mudança de opinião. Diante de tal ato, ele, invariavelmente, muda também a sua posição, demonstrando, dessa forma, o quanto suas opiniões são volúveis e interesseiras. A segunda maneira pela qual se conhece o bajulador é fácil de perceber se notarmos que o amigo não é aquele que imita 34 tudo e nem mesmo aprova tudo aquilo que fazemos. O verdadeiro amigo aprova apenas o bem no seu amigo. O mesmo não ocorre com o bajulador: “Semelhante aos pintores ruins, cujo talento, muito fraco para exprimir os traços mais belos, só representam a semelhança através das rugas, cicatrizes e outras deformidades, ele só sabe imitar as nossas desordens, nossas superstições, nossa cólera, nossa rigidez para com nossos escravos, nosso desconfiança para com nossos parentes e nossos próximos” (PLUTARCO, 1997: 25). Outra habilidade do bajulador é sempre tentar destacar, invariavelmente em público, aquele a quem deseja agradar. É parte constitutiva da essência do bajulador o excesso de exposição. Seu comportamento é sempre duplo, isto é, ele sempre serve a quem pode lhe satisfazer os desejos. Ele não se importa em ceder seu lugar a um poderoso, desde que este retribua dando-lhe, em contrapartida, aquilo que é o seu objeto de desejo. A visão do bajulador está sempre na aparência das coisas, na sua superfície. Ele jamais consegue enxergar as coisas na sua totalidade ou em sua essência. No seu modo de entender, bastam os detalhes. Um bajulador jamais será franco com alguém, salvo se isso não desagradar a pessoa a quem deseja bajular. Para Plutarco, o bajulador está sempre no encalço dos homens devido a própria constituição da alma humana. No entender do pensador, a alma humana possui duas faculdades: a intelectual (ligada à razão e às virtudes) e a irracional (ligada aos erros e paixões). O bajulador atua sobre essa segunda faculdade humana. Ele oferece o combustível à nossa segunda faculdade: “Ele espreita, por assim dizer, o primeiro germe de nossas paixões, a fim de atiçar o fogo, nutrir feridas perigosas, e entregar à corrupção essas partes viciadas de nossa alma. Você está encolerizado? ‘Castigue’, ele lhe dirá. Você deseja 35 algo? ‘Desfrute’. Você tem medo? ‘Fuja’. Você tem suspeitas? ‘Acredite’”(PLUTARCO, 1997: 47-8). A astúcia do bajulador é um dos motivos que dificultam distinguí-lo do amigo, que possui uma linguagem simples e sem disfarces. Entretanto, segundo Plutarco, há alguns indícios que podem nos revelar a presença de um bajulador: “Às vezes, um amigo que nos encontra passa sem nada dizer e sem nada escutar; ele se contenta em dar e receber, através de um olhar e um sorriso agradável, o testemunho de uma estima recíproca. O bajulador apresenta-se com pressa, persegue-nos, estende-nos a mão de longe”(PLUTARCO, 1997: 49). Diferentemente do amigo, que nunca promete nada e sempre tenta, se possível for, ajudar, o bajulador promete aquilo que não é capaz de fazer. O bajulador necessita aparecer. Ele sempre deseja opinar, já o amigo só opina em algo quando é solicitado a fazê-lo. O bajulador sempre teme os verdadeiros amigos, pois esses sempre tornam clara a sua falsidade. A bajulação sedutora é algo que mexe com os orgulhosos e vaidosos. Por isso, segundo Plutarco, aquele que tem consciência da sua finitude e dos seus limites não cai na armadilha dos bajuladores: “Alexandre dizia que sua inclinação ao sono e às mulheres, pelos quais se deixava dominar, faziam-no sentir que de fato não era um deus, ainda que assim o nomeassem”(PLUTARCO, 1997: 59-60). Segundo Plutarco, o amigo caracteriza-se exatamente pelo uso de sua franqueza. Entretanto, não se deve aqui confundir franqueza com indelicadeza, pois essa nada produz de frutífero numa relação de amizade: Mas há poucos homens que têm a coragem de ser francos com seus amigos, que não procuram ao invés disso bajulá-los. E mais raros ainda aqueles que sabem empregar adequadamente a franqueza, não utilizando-a com amargor e censuras. Acontece com a franqueza mal administrada o mesmo que com certos remédios: ele aflige, atormenta inutilmente, e realiza dolorosamente o que a bajulação consegue com agrados. As censuras, assim como os elogios inoportunos, são sempre nocivos, e nada nos entrega mais facilmente aos bajuladores: nós mesmos estaremos nos colocando à sua frente, como a água que corre naturalmente pelos locais difíceis e 36 escarpados, nos vales e planícies. Portanto, é preciso que a franqueza seja temperada pela doçura, e que os termos por ela usados eliminem o que ela possui de mordaz, assim como temos o cuidado de adoçar um dia duro demais; do contrário, desencorajados por censores amargos, que tratam as menores coisas como um crime, iremos nos lançar nos braços dos bajuladores para ali procurar uma sombra doce e agradável (PLUTARCO, 1997: 60). Há aqui dois tipos de excesso: o excesso da bajulação e o excesso da franqueza destruidora. É instigante perceber que, no entender de Plutarco, o amigo verdadeiro é como um médico, ou seja, alguém sabe a exata medida de sua atuação. A antiga medicina grega afirmava que a saúde residia exatamente no equilíbrio entre as coisas. Logo, há em todo o texto do pensador, reflexos de uma tradição médica que vai de Hipócrates a Sócrates na história do pensamento grego: “Um médico compassivo preferia curar seu paciente pela dieta e pelo sono do que com castóreo e escamônea Do mesmo modo, um amigo complacente, um pai terno, um mestre humano, quando nos corrigir, preferirá sempre o elogio à reprovação”(PLUTARCO, 1997: 82). Por isso, o amigo, que sempre deve ser franco, nunca deve repreender seu amigo em público: “Evitemos ainda corrigir os nossos amigos em público, e lembremonos de Platão que, em uma refeição, vendo Sócrates reprimir muito energicamente um dos seus discípulos disse: ‘Não seria melhor reprimi-lo em particular?- E você mesmo, retrucou Sócrates, não poderia ter esperado que estivéssemos a sós para mo dizê-lo?” (PLUTARCO, 1997: 73). A correção de um amigo nunca deve ser confundida com uma humilhação pública. Aquele que humilha não produz nada de bom na sua relação de amizade e, pelo contrário, acaba por destruí-la. Ao agir de tal forma, ele coloca o seu amigo na mão dos bajuladores: “Portanto, evitemos, com o maior cuidado, quando repreendemos nossos amigos, abandoná-los imediatamente, e terminar nossa conversa com palavras humilhantes que possam feri-los”(PLUTARCO, 1997: 85). 37 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA PLUTARCO. 1997. Como distinguir o amigo do bajulador. Tradução de Célia Gambini, São Paulo, Scrinium, 1997 ∗ Tal trabalho foi apresentado, originalmente, no I Fórum de Filosofia do Ensino Médio. Tratouse de uma atividade ligada ao grupo Filosofia na Juventude, composto por professores e alunos da rede estadual paulista. Maiores informações sobre o grupo podem ser obtidas no site www.filosofianajuventude.cafe.pro.br ∗ O autor é doutor em filosofia pela UNICAMP e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie e-mail:[email protected] 38 A REDUÇÃO EXPERIENCIAL NO UNIVERSO NEOPENTECOSTAL BRASILEIRO. Gerson Leite de Moraes Doutorando em Ciências da Religião – PUCSP I – INTRODUÇÃO O tema da redução em ciências é um desafio para aqueles que aventuram-se no campo da pesquisa acadêmica. Para falar sobre um tema tão complexo e passível de tantos desencontros é mister trazer à lume a diferenciação entre reducionismo e redução. O reducionismo é uma expressão “maldita” nos meios acadêmicos; soa como algo de somenos importância. Como diz Richard Dawkins: “...reducionismo é uma daquelas coisas, como o pecado, que apenas são mencionadas por aqueles que são contra elas. Uma pessoa chamar-se-á a si própria reducionista soará, em alguns círculos, um pouco como a admissão de que se comem criancinhas”. (DAWKINS, 1988, p.32) O reducionista é visto como alguém de visão estreita e compreensão equivocada sobre algum tema acadêmico. Por outro lado, a redução tem ganhado um espaço cada vez mais significativo nos círculos do pensamento científico, principalmente por parte daqueles que levam a sério as premissas da investigação científica. Vale ressaltar ainda, que alguns desses pesquisadores sérios também utilizam em seus escritos a expressão “reducionismo”, contudo quando há uma leitura atenta de seus trabalhos, percebe-se que os mesmos estão falando de redução. Pode-se citar como exemplos, o próprio Richard Dawkins que usa a expressão “reducionismo hierárquico” . Ele diz: “Para aqueles que gostam de designações do gênero –ismo-, a designação mais apropriada à minha abordagem ao entendimento de como funcionam as coisas é, provavelmente, -reducionismo hierárquico-“. (ibid, p.32). Outro exemplo é o professor Francisco J. Ayala que utiliza na obra Estudios sobre la Filosofia de la Biologia, o termo reducionismo como sinônimo de redução. Mas afinal de contas, o que é redução? A redução tem por finalidade explicar entidades complexas a um número mínimo de componentes. Sendo assim pode-se dizer que a boa redução (trabalho anterior) determina a boa explicação (trabalho posterior). 39 Ayala diz que: “As questões sobre o reducionismo aparecem em três campos distintos: o ontológico, o metodológico e o epistemológico. Nas discussões sobre o reducionismo tem que distinguir-se estes três campos para evitar malentendidos. As perguntas que aparecem, e as respostas que se dão, podem ser distintas nos distintos campos”. (AYALA, p.10). No nível ontológico, a redução acontece quando uma disciplina, ou uma teoria são definidas em termos da expressão, “isso nada mais é que”. Percebe-se que quando essa expressão, ou algo equivalente é usado, geralmente tem-se como objetivo reduzir a questão ao nível ontológico. No nível metodológico, a redução aparece quando busca-se as estratégias de investigação ou a aquisição de conhecimento de uma determinada teoria. Quanto ao nível epistemológico, a redução científica é percebida quando há a necessidade de reduzir um grande número de fenômenos a um pouco de hipóteses, a um número mínimo de elementos. Percebe-se que a redução é de fundamental importância para a prática de qualquer ciência que se preze. As ciências da religião não fogem desse pressuposto. Há várias formas de redução do religioso, como por exemplo: redução historicizante, antropológica, sociológica, moral, psicológica, biológica e experiencial. Nesse trabalho, o objetivo é analisar a redução experiencial no universo neopentecostal brasileiro. Antes de entrar na análise propriamente dita, é necessário analisar o aparecimento da redução experiencial no campo religioso com Friedrich Schleiermacher. No entanto, para que o pensamento de Schleiermacher se consolidasse foi necessário um amplo debate com o pensamento e a obra de Immanuel Kant. E é exatamente isso que será abordado no próximo tópico. II – O Debate entre Kant e Schleiermacher O grande mérito de Immanuel Kant (1724-1804) está no fato de ter revolucionado o pensamento nas áreas da ciência, da moral e da arte. Sua obra foi tão impactante que costumou-se dizer a partir de então, que ele produziu o chamado “giro copernicano” no campo da teoria do conhecimento, fazendo referência é claro à revolução de Copérnico, no contexto do Renascimento, quando substituiu-se o velho geocentrismo pelo heliocentrismo. Kant era um homem ambientado com os problemas filosóficos do seu 40 tempo. Acreditava poder chegar a um acordo com as conquistas das ciências naturais na exploração do mundo físico. Nunca questionou a importância da visão de mundo newtoniana e nem procurou minimizar o alcance de suas implicações em futuras investigações sistemáticas. Kant acreditava que seria possível dar à moral o mesmo fundamento de certeza que possuíam as leis naturais, ou científicas. Com uma vida extremamente metódica, Kant produziu várias obras de fôlego como a Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e a Crítica do Juízo. Vale ressaltar que em relação às duas primeiras existem obras que lhes permitem um acesso mais fácil, respectivamente os Prolegômenos a toda metafísica futura que se queira como ciência e Fundamentação da metafísica dos costumes. Kant na Crítica da Razão Pura procurou demonstrar que nem a razão nem a experiência sensorial seriam suficientes, por si sós, para a aquisição de conhecimento. “Analisando a faculdade de conhecer, na Crítica da Razão Pura, Kant distingue duas formas de conhecimento: o empírico (a posteriori) e o puro (a priori). O Conhecimento Empírico (a posteriori) reduz-se aos dados fornecidos pelas experiências sensíveis. O Conhecimento Puro (a priori) pauta-se pela Universalidade e Necessidade”. (Os Pensadores, 1999. p.7.) Sobre este tema Patrick Gardiner diz o seguinte: “De acordo com Kant, é verdade que a cognição humana necessariamente se sujeita a uma estrutura básica de formas e conceitos apriorísticos que são impostos pela mente às informações impostas pelos sentidos; ao mesmo tempo, a aplicação legítima disso estava confinada à esfera sensorial, e qualquer tentativa de usar esse conceito para estabelecer verdades relativas ao que se obtinha fora dessa esfera seria sempre injustificada. À luz disso, Kant traçou um limite rígido entre as hipóteses desse tipo, colocadas pelas ciências naturais, que eram suscetíveis a confirmação por meio de experiências e observação, e as teorias que pretendiam fazer asserções cognitivas sobre uma ordem supra-sensível ou transcendente das coisas que estavam além do alcance de tais procedimentos. Asserções desse tipo pertenciam à metafísica especulativa ou “dogmática”, uma “pseudociência velha e sofista”, cujas pretensões – Kant acreditava ter mostrado definitivamente – eram vazias e sem fundamento”. (GARDINER, 2001. p.p.25-26) Conhecimento para Kant é a síntese entre experiência e entendimento pela intuição. A tese desenvolvida por Kant refuta diretamente a tentativa da metafísica especulativa de justificar proposições fundamentais à religião cristã, principalmente o que tange à existência e à natureza de Deus. Sobre isto, Urbano Zilles diz: “Para Kant, é impossível demonstrar racionalmente a existência de Deus. Somos incapazes de juízos científicos sobre Deus porque ele não ocorre no espaço e no tempo. Juízos científicos devem dizer uma verdade que é, ao mesmo tempo, necessária (a priori) e nova (sintética), ou seja, “juízos sintéticos a priori que, embora fundados na experiência sensível (a priori), contudo ampliam nosso conhecimento (sinteticamente) e não apenas explicam (analiticamente). Segundo Kant, apenas são possíveis na matemática e na ciência natural e não na metafísica tradicional, que é apenas metafísica das aparências. Negando as provas da existência de Deus, Kant afirma que Deus não existe? Absolutamente não. Kant não quer firmar uma posição de agnóstico ou ateu. A crítica de Kant não significa resignação da razão, e sim a convicção ético-religiosa de que devem ser respeitados os limites da razão. Assim as distinções das provas da existência de Deus não destroem a fé em Deus nem fundam o ateísmo. Kant afirma que a razão humana tem a tendência natural de ultrapassar esses limites. Em outras palavras, afirma uma 41 necessidade metafísica arraigada no ser do próprio homem. Nesta perspectiva, a idéia de Deus permanece como ideal, como conceito teórico necessário e limite. Mas como pode corresponder a esta idéia puramente reguladora de Deus uma realidade? Kant responde que pela razão prática, ou seja, não o sei pela ciência, mas pela moral. Pela razão pura conheço o que é, pela razão prática o que deve ser. Diz que moralmente é necessário aceitar a existência de Deus. Assim o que não se pode provar pela razão pura torna-se um postulado da razão prática. Depois de eliminar Deus da ordem do pensamento e da realidade, postula a existência de um Deus justo que fundamente a relação entre virtude e felicidade”. (ZILLES, 1991. p.p.51-52) Em função disso é que Nietzsche cunhou uma expressão muito interessante para falar da relação entre Kant e Deus. Para Nietzsche: Kant expulsa Deus pela porta da frente (razão) para reintroduzi-lo pela porta dos fundos (moral). Sem sombra de dúvidas o pensamento kantiano é profícuo em muitas áreas, mas o que interessa aqui é exatamente a atenção que Kant dá para a questão religiosa. José Gómez Caffarena chega a dizer que devido aos trabalhos de Kant nessa área, em especial no livro, A religião nos limites da simples razão, ele é “fundador” da filosofia da religião, se bem que o próprio Kant não utilizou tal terminologia, ficando isso a cargo de seus discípulos (CAFFARENA, 1994). Contudo, tal afirmação parece ter muito fundamento quando se analisa algumas obras de Kant. A obra de Kant e o legado do seu tempo deixaram marcas indeléveis no pensamento humano, mas houve quem se levantasse contra tudo o que esse paradigma representava. O idealismo alemão é um bom exemplo disso. O idealismo alemão é a primeira grande corrente que abre a época contemporânea da filosofia. Na base do Idealismo Alemão está o Romantismo (Die Romantik), um movimento intelectual de difícil definição. F. Schlegel, o fundador do círculo dos românticos, escrevendo ao seu irmão teria dito que não seria possível dar-lhe uma definição da palavra “romântico”, porque essa definição tinha “125 folhas de extensão”. Se no século XVIII, o século das Luzes, prevaleceu o racionalismo iluminista, pode-se dizer que no século seguinte, encontra-se em alta conta o seu oposto, o idealismo; é o chamado, reverso da moeda, a face oposta do Aufklarung. Uma síntese rápida sobre as diferenças dos dois paradigmas pode ser observada na tabela abaixo: Paradigma Clássico - Iluminista Paradigma Idealista - Romântico Monoteísmo Cultural Politeísmo Cultural Transcendência Imanência 42 Ordem Irregularidade Intemporalidade Historicidade Pensamento Sinótico Pensamento Analógico Mecanicismo Organicismo Explicação Compreensão Universo Galileiano Universo Biológico Não é o objetivo deste trabalho debater as diferenças entre os dois paradigmas acima mencionados, mas tão somente cita-los para que haja um referencial de comparação. É nesse contexto, de florescimento do romantismo que aparece a figura de Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834). Arsenio Ginzo Fernandez em seu artigo sobre Schleiermacher, expõe algumas influências que determinaram-lhe o pensamento. Entre essas influências, uma que merece destaque porque acompanhará Schleiermacher em todas as suas ações, é o chamado pietismo alemão. (FERNÁNDEZ, in: Religión. Madrid, Ed. Trotta. p.p.240241). Desenvolvido por Filipe Jacob Spener (1635-1705), autor da famosa obra Pia Desideria (Desejos Piedosos), o pietismo é um movimento de reação espiritual ao tradicionalismo luterano. Para entender melhor o pietismo, observe o que diz Paul Tillich: “Que é pietismo? O termo é menos respeitado na América do que na Europa. Na Europa, as palavras “piedoso” e “pietista” podem ser usadas normalmente pelo povo. Mas não na América. Aqui, essas palavras conotam hipocrisia e moralismo. Muito embora, pietismo não tenha necessariamente essas conotações. Pietismo é reação do lado subjetivo da religião contra o lado objetivo”. (TILLICH, 2004, p.279). Esse lado subjetivo do pietismo alemão acompanhará o desenvolvimento do pensamento de Schleiermacher. Como foi dito acima, o idealismo alemão volta-se contra o racionalismo iluminista e através de sua escola romântica também combaterá o lado objetivo da religião. O racionalismo iluminista havia produzido um desencantamento do mundo, e conseqüentemente da religião, com Schleiermacher e seu pensamento romântico esse reencantamento do mundo e do religioso serão novamente valorizados. “...isto é válido tratando-se do enfoque que Schleiermacher tratou de imprimir à idéia de religião, pois foi propriamente ele que nos deixou a versão romântica da religião, uma vez que se havia operado a “quebra da razão 43 ilustrada”, a qual, como é sabido, gira em boa medida em torno do projeto de desencantamento do mundo. Frente a isso, e como movimento compensatório, o romantismo se encarrega num processo de reencantamento do mundo, de reelaboração de uma “nova mitologia”, em definitivo de uma nova sensibilidade para o religioso”. (FERNANDEZ, in: Religión. Madrid, Ed. Trotta. p.245) A religião, na visão de Schleiermacher não podia ser reduzida ao plano moral como fez Kant. Para Schleiermacher a religião é a relação do homem com a totalidade. Por trás dessa postura há um debate de Schleiermacher com Kant. Se Kant havia promovido uma redução moral em matéria de religião, para Schleiermacher, a redução a ser realizada pode ser qualificada como redução experiencial, já que para o mesmo a essência da religião não pode ser “nem pensamento, nem moral, mas intuição e sentimento do infinito” (Schleiermacher, 2000). Para Schleiermacher a religião é algo excêntrico, ou seja, algo que está fora do homem e concentra-se na relação deste com a Totalidade (Infinito, Absoluto, Uno). O homem faz religião porque tem um sentimento de infinita dependência do Absoluto. E essa idéia central vale para todas as religiões. Pode-se dizer que com Schleiermacher, a religião ganha novas conotações no plano sintético, estético e dinâmico. Schleiermacher diz que a religião “não aspira a conhecer e explicar o universo em sua natureza, como a metafísica, nem aspira a continuar o seu desenvolvimento e aperfeiçoá-lo através da liberdade e da vontade divina do homem, como a Moral”. A sua essência não está no pensamento nem na ação, mas sim na intuição e no sentimento. Giovanni Reale comentando a obra e a vida de Schleiermacher faz a seguinte observação sobre a essência da religião: “Ela aspira a intuir o Universo; quer ficar contemplando-o piedosamente em suas manifestações e ações originais; quer fazer-se penetrar e preencher por suas influências imediatas, com passividade infantil. Assim ela se opõe a ambas em tudo o que constitui a sua essência e em tudo o que caracteriza os seus efeitos. Em todo o Universo, elas não vêem nada, mais além do que o homem no centro de toda relação, como condição de todo ser e causa de todo o devir, esta, porém, tende a ver finitas, o infinito: a imagem, a marca, a expressão do Infinito”. (REALE, 1991, p.32) Portanto, em matéria de religião, no que concerne à redução experiencial, a partir de Schleiermacher, pode-se observar que esta sustenta-se sobre dois pilares fundamentais, a intuição e o sentimento. E estes dois elementos fazem parte da prática neopentecostal brasileira. 44 III – A Redução experiencial no neopentecostalismo brasileiro Antes de falar em neopentecostalismo é necessário enquadrá-lo num movimento mais amplo, a saber, o pentecostalismo. Quando se analisa a dinâmica históricoinstitucional do pentecostalismo brasileiro, levando-se em conta as mudanças ocorridas na mensagem religiosa, bem como o processo de aculturação das teologias importadas e as adaptações que estas teologias sofreram em solo brasileiro, pode-se chegar às tipologias mais aceitas entre os estudiosos do fenômeno supra-citado. As vertentes do pentecostalismo brasileiro são classificadas em ondas pela maioria dos estudiosos brasileiros, e essas ondas podem ser assim descritas: pentecostalismo clássico, deuteropentecostalismo e o neopentecostalismo. (MARIANO, 1999). A metáfora marinha das ondas surgiu nos EUA com David Martin para designar a história mundial do protestantismo. Ele dizia que o protestantismo podia ser estudado em três grandes ondas: a puritana, a metodista e a pentecostal. No Brasil, o primeiro a valer-se da metáfora das ondas foi Paul Freston. (ibid, p.28). Quando se começa a estudar o pentecostalismo brasileiro há a necessidade de uma redução epistemológica e por mais que se tente é difícil fugir da metáfora das ondas. Ricardo Mariano citando Paul Freston diz: “O pentecostalismo brasileiro pode ser compreendido como a história de três ondas de implantação de igrejas. A primeira onda é a década de 1910, com a chegada da Congregação Cristã (1910) e da Assembléia de Deus (1911) (...) A segunda onda é dos anos 50 e início de 60, na qual o campo pentecostal se fragmenta, a relação com a sociedade se dinamiza e três grandes grupos (em meio a dezenas de menores) surgem: Quadrangular (1951), Brasil para Cristo (1955) e Deus é Amor (1962). O Contexto dessa pulverização é paulista. A terceira onda começa no final dos anos 70 e ganha força nos anos 80. Suas principais representantes são a Igreja Universal do Reino de Deus (1977) e a Igreja Internacional da Graça (1980) (...) O contexto é fundamentalmente carioca”. (ibid. p.p.28-29). A terceira onda em especial, é a chamada onda neopentecostal. O que caracteriza essa vertente do pentecostalismo brasileiro é a Teologia da Prosperidade. Importada dos EUA; lá essa corrente teológica é chamada de diversas formas, entre as quais: Health and Wealth Gospel, Faith Movement, Faith Prosperity Doctrines, Positive Confession. Esse movimento que apregoa cura, prosperidade e poder da fé surgiu nos Estados Unidos na década de 40 e somente nos anos 70 ganhou forte impulso nos arraias evangélicos norte-americanos. O Dictionary Of Pentecostal And Charismatic Movements, o define da seguinte maneira: 45 “Confissão positiva é um título alternativo para a teologia da fórmula da fé ou da doutrina da prosperidade promulgada por vários televangelistas contemporâneos, sob a liderança e inspiração de Essek William Kenyon. A expressão “confissão positiva” pode ser legitimamente interpretada de várias maneiras. O mais significativo de tudo é que a expressão “confissão positiva” se refere literalmente a trazer à existência o que declaramos com nossa boca, uma vez que a fé é uma confissão”. “Dictionary Of Pentecostal And Charismatic Movements”. In: Supercrentes: O Evangelho Segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os Profetas da Prosperidade. São Paulo, Mundo Cristão, 1993, p.06. Esse trazer “à existência o que se declara com a boca” é um forte indício da redução experiencial nos grupos neopentecostais. Na redução experiencial, os dois pilares que sustentam todo seu discurso são: intuição e sentimento. Ora, esses elementos são facilmente percebidos no universo neopentecostal. Nas igrejas neopentecostais, o espaço sagrado é o local da intuição, do encontro direto entre os fiéis e a divindade. Nicola Abbagnano oferece uma definição muito interessante de intuição em termos filosóficos: “Intuição é a relação direta com um objeto qualquer; por isso, implica a presença efetiva do objeto”. “...nesse sentido, a intuição é uma forma de conhecimento superior e privilegiado, pois para ela, assim como para a visão sensível em que se molda, o objeto está imediatamente presente”. (ABBAGNANO, 2003, p.581). É por isso que quem assiste a um programa televisivo ou ouve uma programação radiofônica neopentecostal, o tempo todo é convidado para ir a um determinado “templo” para participar daquilo que eles definem como “correntes” (da libertação de demônios, da cura física, da luta contra o desemprego, do sal grosso, etc). Participando destas correntes, o fiel pode intuir a divindade, ou seja, ter uma relação direta com ela, ter uma forma de conhecimento superior e privilegiado de tudo aquilo que está se passando ali. Ao intuir; ter acesso direto e imediato à divindade é necessário, no momento seguinte, sentir. O sentimento delineia o caráter subjetivo da religião; ele tira a objetividade em matéria religiosa, pois que acentua a experiência individual. É o sentimento de conquista daquilo que se foi buscar (bênçãos, cura, emprego, etc). É mister dar o “passo de fé” (expressão muito usada nos meios neopentecostais), e só pode fazer isso quem sentiu que a divindade já “amarrou o inimigo”. Numa luta titânica entre bem e mal, sentir a vitória é o passo que precede a confissão positiva. Sentir através da fé, confessando com a boca (confissão positiva) que a vitória já foi conseguida. A confissão (enquanto palavra pronunciada) funciona tanto para o “bem”, quanto para o “mal”. A história de uma mulher a seguir, contada pelo Bispo Edir Macedo, exemplifica isso: 46 “Ela sentia dores atrozes em toda a extensão da coluna. Mal podia andar, sentar e até mesmo deitar-se (...) Foi quando ela compareceu a uma Igreja Universal, recebeu a oração e poderosa e instantaneamente foram banidas todas as suas dores (...) Um dia, resolveu voltar ao seu médico e procurar uma “explicação” para sua cura milagrosa. Quando o médico de sua confiança lhe disse que não acreditava na cura, pois no seu caso era impossível, imediatamente, logo após a “palavra do médico”, começou a sentir pequenas pontadas que foram aumentando até o ponto de sentir tudo de novo, e até mais forte. Ora, por que isto? Qual a razão? O fato é que, assim como pela Palavra de Deus ela recebeu a fé para ser curada, também pela palavra do diabo, usando seu médico, ela recebeu dúvida para voltar a sofrer como antes. É assim que o diabo trabalha”. (MACEDO, 1989, p.p.19-20). O relato acima enquadra-se na Definição 55 da obra de Rodney Stark, A Theory of Religion, onde se lê: “Bem e mal se referem às intenções dos deuses nas suas trocas com os humanos. O bem consiste pela virtude de permitir que os humanos se beneficiem com as trocas. O mal consiste na intenção de infligir trocas coercitivas ou decepções aos humanos, levando a perdas por parte deles”. (STARK, “Trazendo a Teoria de volta”, in: REVER – Revista de Estudos da Religião, nº4/2004/ p.p.1-26 www.pucsp.br/rever/rv4 2004/p stark.pdf.. O sentimento é fundamental para entender-se o fenômeno neopentecostal brasileiro, bem como a intuição. Por isso é que se pode dizer que há uma redução experiencial que permeia todo universo neopentecostalismo brasileiro. IV – Bibliografia ABBAGNANO, Nicola. (2003). Dicionário de Filosofia, São Paulo, Martins Fontes. AYALA, Francisco J. e DOBZHANSKY, Theodosius, orgs. Estudios sobre la Filosofia de la Biología. Barcelona, Ariel. CAFFARENA, José Gómez., ed. (1993). Religión. Madrid, Ed. Trotta. Coleção: (1999) Os Pensadores, São Paulo, Ed. Nova Cultural. DAWKINS, R. (1988). O relojoeiro cego. Lisboa, Edições 70. GARDINER, Patrick. (2001). Kierkegaard. São Paulo, Loyola. MARIANO, Ricardo. (1999). Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo do Brasil. São Paulo, Loyola. REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. (1991). História da Filosofia Vol III. São Paulo, Paulus. ROMEIRO, Paulo.(1993). Supercrentes: O Evangelho Segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os Profetas da Prosperidade. São Paulo, Mundo Cristão. SCHLEIERMACHER, Friedrich. D.F. (2000). Sobre a Religião, São Paulo, Novo Século. 47 STARK, Rodney. Trazendo a Teoria de volta, in: REVER – Revista de Estudos da Religião, nº4/2004/ p.p.1-26 www.pucsp.br/rever/rv4 2004/p stark.pdf. TILLICH, Paul. (2004). História do Pensamento Cristão. São Paulo, ASTE. ZILLES, Urbano.(1991). Filosofia da Religião. São Paulo, Paulus. 48 A ESCOLHA: UM ESTUDO ÉTICO NA FILOSOFIA DE KIERKEGAARD. Prof. Mestrando Cristian R. de Oliveira Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo TEXTO Introdução Explanar sobre o conceito de escolha na Filosofia de Sören Kierkegaard requer uma sensibilidade particular; exige uma percepção quanto à problemática da liberdade, da relação do homem comprometido com a existência, ainda, exigem um domínio de temas predecessores tais como o desejo, o possível, a existência de esfera estética. Antes, porém, pensemos acerca da verdade na existência segundo Kierkegaard. Há verdades que são tão essenciais que a existência é incompreensível sem elas; verdades sem as quais a vida não tem sentido; há verdades que são como ventos a movimentar a barca da vida. Essas verdades fornecem o sentido para a subjetividade, para a interioridade, para o sujeito concreto que vive no presente e cuja alma é provocada pelas escolhas diante das quais a existência o coloca. Essa existência coloca o ser humano diante do possível, coloca-o em relação com o mundo, consigo mesmo e com Deus; é nessa tríade de relações que eclodem sentimentos de paixão, angústia, desespero e confiança. Assim, verificamos um teor profundamente prático e singular ao qual só o conhecimento não se faz suficiente, quiçá quando morre a pessoa amada e o alivio da dor não se pazigua pelo ato de raciocinar. 49 Nas relações com o mundo, consigo mesmo e com Deus o indivíduo depara-se com esferas fundamentais da existência, três formas de existir nomeados por estádio estético, ético e religioso. Nos ateremos no estádio ético, antes, porém precisamos buscar raízes no estádio estético, para o bom entendimento da “escolha”. Desenvolvimento A escolha é característica primordial da vida ética, mas, antes de adentrarmos no âmago do sujeito que vive nessa esfera da vida, nos demoraremos na vida de prazer e sedução, ou seja, a vida estética. O estádio da vida estético é protagonizado pelo sujeito denominado esteta; o sedutor, o indivíduo que se relaciona com o mundo de forma contraditória. Chamaremos a esse homem que existi em conformidade com o estádio estético pela palavra composta: esteta – sedutor. O esplendor e o ápice do esteta – sedutor é só se ligar ao que é belo: um olhar travesso, um gesto comovente, um perfume atraente, um riso fabuloso... O esteta – sedutor evita escolher: para ele é bem mais interessante observar e permanecer flutuante entre todas as possibilidades que a existência oferta. Tal como os versos de Neruda: Sou o tigre. Entre as folhas te espreito, Largas como lingotes De mineral molhado. O rio branco cresce Sob a neblina. Chegas. Tu, desnuda, mergulhas. Espero. De repente num salto De fogo, sangue, dentes, De um só golpe derrubo... (Neruda: 2002, 30.) 50 Esse indivíduo, guiado por desejos, supõe sentir o domínio sobre o mundo inteiro; ele crê que o fato de não escolher o coloca em um existir inigualável. Pairar no possível, tornar tudo novo, o hábito não encontra guarita neste ser de esteticismo e sedução; nem trabalho, nem família! Para o esteta – sedutor não há compromisso com a vida. Esse sujeito de prazer constrói a existência segundo sua vontade: sua vida é como um livro de ares românticos que só a ele interessa. Ele constrói e desmancha mundos segundo seus caprichos; alimenta sonhos para logo depois liquida-los; ergue e faz cair os corações mais inocentes, num movimento guiado pelo seu louco desejo de prazer. As referências usadas por Kierkegaard para clarificar a figura do esteta – sedutor é, em primeiro lugar, Don Juan. O sedutor espanhol de conquistas várias, um pleno estrategista da arte da conquista, o ser que celebra a infeliz espiritualização da carne. Nessa esfera da vida vive-se apenas para o instante; no entanto o prazer é breve, o pesar longo, logo o esteta – sedutor vê-se a procurar prazeres incessantemente. Nessa exaltação o estádio estético faz do prazer a meta última da vida. Em suma, a forma de vida estética nessa desvairada busca de prazer carnal, leva ao vazio, ao tédio... Os prazeres repetem-se, são breves demais! Simbolicamente, a beleza juvenil que os prazeres exalam dura o tempo que dura o nascer do sol, uma manhã. O esteta – sedutor deve contentar-se com essa manhã curta ou partir em busca de novas manhãs, buscar sempre e incessantemente. Essa busca sem fim do prazer e da satisfação é o objetivo da existência estética. Para o esteta – sedutor as pessoas não são uma finalidade de vida, mas apenas uma oportunidade de distração. Mas, quem nada procura na vida além dessa satisfação egoísta, logo sofre com a brevidade das horas diante do infinito dos desejos. E ei-lo precipitado em angústia. Entretanto, o esteta – sedutor pode usar essa angústia como guia; perceber que esse sufocamento acompanha uma maneira determinada de ser no mundo, e que uma outra relação com o mundo é concebível sem se sentir angústia: uma relação em que o indivíduo 51 não se coloca como o predador, mas como o construtor, em que não se trata mais de se satisfazer, mas de inscrever os seus mais íntimos sonhos no mundo exterior para nele realizar-se. Kierkegaard compreende que a vida, ao contrário do que o esteta – sedutor pretende, obriga mais cedo ou mais tarde à escolha; a existência nem sempre permite manter abertas todas as possibilidades. A escolha: o que distingue o estético do ético. Escolher aqui se entende ser a forma de encarar a escolha como comprometimento. Escolhe-se a si mesmo e não criar-se a si mesmo. A vida de desejos e prazeres imediatos é um fracasso, onde o sujeito naufraga no recife do tempo. Na vida ética, entretanto, o existir é organizado. O salto do estádio estético para o ético nasce da escolha (da escolha de se querer realmente ser si mesmo). A maior missão do indivíduo do estádio ético é dar à luz a si mesmo, é tonar-se aquilo que ele é em embrião. Enquanto na vida estética prevalece só o instante, na vida ética há continuidade, o indivíduo ético vive na infinidade do tempo e não na finitude do instante. Enquanto o esteta – sedutor é imediatamente o que é, o sujeito ético tornar-se o que se torna. O caminho do sujeito do estádio ético é o dever e a fidelidade a si mesmo. O ético renuncia ao instante, ele prefere o tempo duradouro, ele é comprometido, tal qual a figura do esposo no casamento. Ele é aquele que escolhe, que decide, que se compromete na existência; a característica do sujeito ético não é escolher isto ou aquilo, mas escolher o fato de escolher, ou seja, comprometer-se concretamente perante a vida. No ético o próximo é importantíssimo, é levado em conta. O ético realiza-se, coloca ordem e continuidade na sua vida: vive, não no instante, mas na duração do tempo. Se na vida estética Kierkegaard recorreu a Don Juan; na esfera ética ele usa, como já foi citada, a figura do esposo. O casamento encontra o seu lugar nessa moral do dever concreto; é a expressão ética por excelência, pois, é sustentado pela vontade e, sobretudo é a escolha que abrange todos os aspectos da vida humana. No ético – esposo não há prazer, mas há fixação de limites: as normas morais. Na vida ética, o homem escolhe a si, escolhe realizar os seus possíveis. O ético – esposo é aquele ser que livremente quer e consegue conciliar sua 52 vontade com a vida social sob a forma do dever. O ético – esposo se casa, mantém relações com a esposa, compromete-se com o estado, exerce uma profissão, mas seus atos são a expressão maior da sua liberdade, pois, foram livremente aceitos como a expressão da personalidade no que ela tem de eterno. O ético – esposo não é escravo do dever, pois, com o tempo as obrigações tornar-se-iam hábito, e o hábito é a ausência da personalidade. O dever cumprido apenas como uma tarefa “mecânica” é rechaçado; o ético não faz o bem por hábito, não é justo por hábito; ele quer fazer o bem, ele escolheu ser justo, é este o valor eterno da personalidade. Pela escolha o homem, livre do instante, interpreta sua vida na duração do tempo; compreende que tem uma história pessoal, singular, única. Ele assume o compromisso e clama ao teu próximo: eu escolho cuidar; cuidar do seu céu e do seu mar, cuidar do teu lar e do teu jantar, cuidar dos vossos filhos e de ti. 53 Referências bibliográficas • KIERKEGAARD, Soeren. Johannes Climacus ou é preciso duvidar de tudo. Prefácio e notas de Jacques Lafarge. Tradução de Silvia Saviano Sampaio. Revisão de Álvaro Valls e Else Hagelund. São Paulo, Martins Fontes, 2003. • ____________. Kierkegaard. Textos selecionados por Ernani Reichmann. Editora Universidade Federal do Paraná, s/d. • ____________. Temor e Tremor/ O Desespero Humano/ Diário de um Sedutor. Tradução: Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais Monteiro. São Paulo, Nova Cultural, 1988(Os Pensadores). • MALANTSCHUCK, Gregor. Introdução à obra de Kierkegaard, Distribuidora Nacional de Livros, Curitiba, 1961. • MARTINS, Geraldo Majela. A estética do sedutor – uma introdução a Kierkegaard, Maza Edições, Belo Horizonte, 2000. • MESNARD, Pierre. Kierkegaard, tradução de Rosa Carreira, Edições 70, Lisboa, 1991. 54