O barquinho que cresceu Viajava um barquinho, um barquinho de papel, muito calmamente sobre um parapeito de janela. Via lá ao fundo, do outro lado da janela aberta sobre a rua em movimento de muitas pessoas apressadas, um céu azul. Um céu muito bonito que parecia um pano estendido, a secar entre varais invisíveis. E havia uma nesga de mar, presa ao fundo do céu, com barcos verdadeiros, cosidos num lençol de água verde. O barquinho viajava feliz, e a sua felicidade fazia-o balouçar, como se se tratasse de um barco a sério, com proa emproada e popa enfeitada, alegria a bombordo e festa a estibordo, e fumo nas nuvens brancas a sair da boca da chaminé, boca apontada ao alto, a fumegar, a fumegar, na imensidão do mar. Viajava o barquinho, pois, mas não sozinho. Havia uma mão que o levava no doce saltar das ondas inventadas no parapeito da janela. Uma mão que não pedia muito ao barquinho. Apenas que navegasse sonhando com o mar, e transportasse passageiros pacatos, que eram botões de camisa, uma mola de roupa, seis caroços de azeitonas e um grão-de-bico. O barquinho estava encantado com tal tripulação (pois podiam ser tripulação e também passageiros da maior respeitabilidade). E o barquinho pensou até que a mola da roupa daria um almirante muito digno para uma embarcação com a sua graça. O grão-de-bico, mais os caroços da azeitona, rolavam barco fora em cada viagem. E o barquinho gostava de ouvi-los, a correr assim, entre os seus costados de papel. A mão não se cansava, pois passear é muito divertido. E o barquinho não parava de navegar nas ondas inventadas no parapeito da janela. Os botões têm dois buraquinhos para a linha passar e prega-los nas camisas. Dois buraquinhos que parecem dois olhinhos. E o barquinho julgava-se olhado e mais se alegrava de se ver notado. No entanto, a mão que levava o barco tornava-se exigente. Não lhe bastava já a nesga de mar encaixada do outro lado da janela, nem as ondas de brincar que saltavam em espuma, com flores brancas nas suas cabeças de ondas (as ondas têm cabeça?) no parapeito da janela, varrido por marés de invenções. E o barquinho viu-se, de súbito, arrancado ao seu navegar de sonho e tranquilidade e levado pelos ares, como se fosse um avião e não um barquinho de papel. A mão agarrava-o com força, não que ele fugisse, mas para que não caísse e dele se perdessem os passageiros. A mão desceu uma escada, passou uma porta, viu-se na rua, agora diferente, por estar tão perto, ao alcance de tudo. E a mão, com cuidado, colocou o barquinho, com os botões e o grão-de-bico, os seis caroços de azeitona e a mola da roupa, num pequeno ribeiro que cantava à beira de um passeio de pedra. E o barquinho viu-se solto. Tonto e solto. Navegava pelos seus próprios meios, com a responsabilidade de quem pela primeira vez na vida atravessa uma rua completamente só. E o barquinho ganhou velocidade e, depois, também, alegria para vogar em liberdade. E viu ruas e mais ruas, e o ribeiro crescia, parecia-se cada vez mais com um rio… E, de repente, como quem esfrega os olhos para os reabrir de seguida vendo um desejo aparecer, o barquinho encontrou-se no mar, no mar verdadeiro que antes conhecia à distância. E, cheio de alegria, tornou-se num barco autêntico, merecedor de tanta água e de tanta beleza… Alexandre Honrado