! ! A TRAJETÓRIA FEMININA NA (RE)CONSTRUÇÃO DO AMOR VERDADEIRO REBUILDING THE TRADITIONAL PERSPECTIVE OF IDEAL LOVE Bárbara Branco Puppi Maria Lígia Freire Guilherme Universidade Tecnológica Federal do Paraná !RESUMO: As montagens cinematográficas mais recentes dos estúdios Walt Disney Pictures, Frozen, uma Aventura Congelante (2013) e Malévola (2014), mostraram uma tendência da companhia que vai ao encontro de uma necessidade atual da sociedade de exaltar formas de amor que vão além da forma que se concebia como tradicional, entre homem e mulher. Essa fórmula, tão reforçada ao longo dos anos nas produções da empresa, vê-se sem lugar num contexto em que a mulher tem se colocado em posição de controle e independência. Em Frozen e Malévola, têm-se, desse modo, relações de amor verdadeiro que se baseiam em relacionamentos entre mulheres, provando que tem havido uma inversão de valores e que o verdadeiro amor pode ser encontrado na estrutura familiar e não apenas nas relações amorosas tradicionais, como se vinha pregando até então. Para explorar esse fenômeno em que o elemento feminino se sobrepõe ao masculino e toma para si a responsabilidade pela sua própria salvação, nos basearemos nos estudos de Simone de Beauvoir sobre o papel da mulher na sociedade e em como o matrimônio é desígnio feminino, pensando sempre em como se constroi e se desenvolve a trajetória do amor verdadeiro em ambas produções. Buscaremos, também, suporte teórico nos autores Antonio Candido, que discorre sobre as funções da literatura e em Bruno Bettelheim, cuja obra A psicanálise dos contos de fadas traz contribuições a respeito das relações psicológicas e simbólicas nos contos de fadas. PALAVRAS-CHAVE: Amor verdadeiro. Frozen. Malévola. !ABSTRACT: The latest movie montages of Walt Disney Pictures, Frozen (2013) and Maleficent (2014), have shown a tendency that meets a current need to exalt forms of love that go way beyond those that have been considered traditional, between man and woman. This formula, as reinforced over the years in the company's productions, sees no place in a context where the woman has been placed in position of control and independence. In Frozen and Maleficent, we have thus true love relationships that are based on relationships between women, proving that there has been a reversal of values, and that true love can be found in family structure and not just in traditional romantic relationships as it was been preaching so far. To explore this phenomenon in which the feminine element overlaps the male and takes on responsibility for its own salvation, we will base on the studies of Simone de Beauvoir on the role of women in society and in marriage as the women's destiny, always thinking how it builds and develops the path of true love in both productions. We will also seek theoretical support in the authors Antonio Candido, who discusses the functions of literature, and Bruno Bettelheim, whose work A psicanálise dos contos de fadas brings contributions on the psychological and symbolic relationships in fairy tales. KEYWORDS: True love. Frozen. Maleficent. ! 1. Contextualização Histórica: A representação da mulher durante a Idade Média e na modernidade ! As discussões sobre gêneros vêm se mostrando recorrentes e dinâmicas, pois ao passo que a história se desenvolve, os comportamentos sociais se modificam. Estabelecendo dois recortes diacrônicos, primeiramente, exploraremos as estruturas culturais que solidificaram a !1 sociedade dita sexista, para então selecionar e discutir os diferentes eventos que contribuíram para o movimento que propõe a igualdade entre gêneros. Nesse sentido o panorama histórico será construído da seguinte forma: as estruturas sociais se estabelecerão fundamentadas no período referente a Idade Média, enquanto que o processo de ruptura se constituirá entre os séculos XVIII e XX. Buscar definir o papel da mulher na sociedade, fazendo referência à Idade Média, não se trata de uma coincidência, tal escolha se fez por dois motivos: durante a Idade Média houve o enraizamento do poder da Igreja, bem como as primeiras produções de contos de fadas e, embora tais fatos pareçam desconectados, os ideais promovidos por meio da religião estão embotados nas produções literárias da época, uma vez que regiam os comportamentos e pensamentos sociais. Nesse contexto, nos pautaremos nos alicerces dos discursos religiosos para começar a delimitar a linha do tempo referente ao papel da mulher na sociedade. Tendo como ponto de partida a queda do Império Romano, para que um novo período histórico se instalasse, foi imperativa uma reconfiguração social, e nesse sentido a igreja teve papel fundamental na Idade Média (principalmente entre os séculos V e X – Alta Idade Média). Inicialmente procurou conciliar os ideais cristãos às práticas greco-romanas, e desse modo, instaurou um processo de hegemonia por meio de práticas educacionais. Em outras palavras, por ser a única instituição com acesso às práticas de leitura e escrita, a Igreja procurou adequar as variedades teológicas, convergindo-as em direção aos pressupostos cristãos, tendo como ponte de ligação o sistema educacional. Após criar abertura na sociedade, a instituição tornou-se respeitada e, portanto, influente, passando a moldar os comportamentos individuais e grupais. De tal forma, a igreja católica passa a ser importante referência na reconstrução cultural da nova sociedade ocidental e na transformação de diferentes concepções, dentre elas a que se diz respeito à mulher. Em um primeiro momento, a visão da mulher está atrelada ao pecado original, o qual pretende explicar a imperfeição humana por meio da desobediência de Eva. Deus proibiu Adão e Eva de comerem da Árvore do conhecimento do Bem e do Mal, porém a serpente convenceu Eva a prová-la (Gn. 3, 1-7). Todos foram punidos por essa desobediência: a serpente foi condenada a rastejar e a ser hostilizada pela mulher. O primeiro casal humano foi expulso do Jardim do Éden. Adão foi condenado a cultivar o solo e retirar dele seu sustento. Já Eva ficou com a carga mais pesada da culpa, foi condenada a sentir dores nas gravidezes e ser !2 dominada pelo marido. Essa condenação feminina serviu de instrumento para os teólogos medievais institucionalizarem o casamento e a moral cristã no matrimônio. (VENTORIN apud BLOCH, 1995, 25) ! Adotando essa perspectiva, a mulher carrega culpa de Eva e portanto é vista como representação da desonra e da desobediência, sempre próxima aos prazeres carnais e dos sentidos humanos, como símbolo do pecado. Em outro momento, há em contrapartida, um novo conceito, o qual se apresenta quase como uma solução para o legado “amaldiçoado” deixado por Eva. Esse também está associado à uma imagem feminina, que diferentemente de Eva, pode ser tomada como exemplo de conduta. ! Maria acreditou na Anunciação do Anjo Gabriel, obedeceu e, principalmente, se fez escrava dos desígnios divinos. Ela seria a nova Eva, a anti-Eva: a Ave. Concebendo sem pecado, tornou-se o protótipo idealizado do feminino: destaca-se pela pureza sexual e pela maternidade, caminho de remissão às ‘filhas de Eva’. Por intermédio dela a Igreja conseguia oferecer às mulheres uma espécie de saída da condição pecaminosa instaurada pela primeira mulher e mãe, Eva. Para isso, era necessário criar um novo modelo de mulher, ideal e idealizado: a de mãe, esposa e virgem [...] Apesar de o papel de esposa em Maria ter sido desvalorizado em relação aos outros dois, todos eles foram muito importantes nos séculos XII e XIII, pois levaram à valorização do matrimônio. Se a mulher não seguisse o ideal da virgindade e castidade, era preferível, então, que se casasse para ser esposa (servir ao homem) e, principalmente, ser mãe. (LIMA & TEIXEIRA, 2008, 114) A motivação para criar um padrão idealizado acerca da imagem feminina, reside na preocupação que a Igreja possuía em assegurar a tradição do casamento. Vale lembrar que nesse contexto, o casamento tinha por escopo estabelecer um elo contratual entre duas famílias, o qual se constituía por meio de interesses sociais e econômicos. Em Idade média, Idade dos homens, Duby (1989), relata que a função do casamento baseava-se em assegurar sem prejuízo a transmissão de um capital de bens, de glória, de honra e garantir à descendência uma condição, uma “posição” pelo menos igual àquela de que se beneficiavam os ancestrais. Todos os responsáveis pelo destino familiar, isto é, todos os homens que detêm algum direito sobre o patrimônio e, à frente deles, o mais velho, a quem aconselham e que fala em nome deles, consideram consequentemente como seu direito principal casar os jovens e casá-los bens. Ou seja, por um lado ceder às moças, negociar !3 ! da melhor maneira possível seu poder de procriação e as vantagens que elas podem legar à sua prole; por outro, ajudar os rapazes a encontrar esposa. [...] Ela vai preencher sua função primordial: dar filhos ao grupo de homens que a acolhe, que a domina e que a vigia. (DUBY, 1989,15) Percebe-se, então, que ao preocupar-se com instituição gerada por meio do casamento, a Igreja reforça, inerentemente, a aliança que objetiva a procriação e continuidade da linhagem (responsável por legar os bens e o nome de uma família). Assim sendo, a mulher era transferida diretamente da custódia patriarcal para o acordo matrimonial, deixando de servir os representantes masculinos de sua família para passar a fazê-lo para o marido e sua prole. Todo esse contexto direciona a mulher a um estado de negligência, no qual ela sempre está em posição social, econômica e intelectual inferior ao homem, designada tão somente às tarefas do lar, onde suas maiores preocupações residiam na “fidelidade ao marido, no amparo à família, no amor materno, no governo da casa; cabendo-lhe fundamentalmente a guarda da conduta das filhas que devem ser mantidas longe da frequência de companhias inadequadas e da participação em festas ou danças” (SODRÉ, 2004, 5). Nesse sentido, portanto, retomamos e reafirmamos que, a construção ideológica gerada pelo poder religioso não pode ser dissociada da produção cultural da Idade Média, uma vez que está fortemente arraigada nos comportamentos e costumes da sociedade. Em A literatura e a formação do homem, Antonio Candido (1972) versa sobre a importância da literatura e lista suas funções. Para o ensaísta e crítico literário, a literatura se faz imperativa dada sua capacidade humanizadora, que reafirma a humanidade do homem por meio de três diferentes funções: psicológica, formativa ou formadora e social. A primeira está atrelada a ideia de que todo ser humano necessita de ficção e fantasia para viver, uma vez que a fantasia é o elemento constitutivo da mente humana e, associa-la à leitura nos proporciona a experiência de diferentes emoções e sensações. A função formativa ou formadora defende que a literatura atua como instrumento de educação, expressando realidades sociais e ideológicas e, portanto, subsidia os alicerces que sustentam o processo de conhecimento crítico dos indivíduos. A terceira e última função tem cunho social e, nesse sentido, a literatura traz o conhecimento enquanto representação de uma dada realidade social e humana, pois faculta maior inteligibilidade em relação a essa realidade. De forma geral, ao refletir aquilo que está !4 vigente em uma sociedade, a literatura está calcada em crenças, valores, culturas regionais, denúncias sociais e etc. Desse modo, tomando a última função explorada por Candido, enfatizamos que o comportamento demonstrado pelas personagens femininas nos contos de fadas não poderia ser diferente daquilo que era postulado na sociedade em que tal gênero passou a ser produzido. Portanto, quando, na maioria das vezes, as histórias convergem para uma trajetória na qual a única forma de salvação da donzela se dá por meio do amor verdadeiro e/ou sua felicidade plena é alcançada em comunhão com o casamento, estamos apenas presenciando o reflexo da ideologia presente em uma determinada sociedade, de um determinado contexto histórico e cultural. Todavia, com o passar do tempo, muitos movimentos que acabaram por revogar a imagem construída acerca da mulher. Desde a Idade medieval até os dias de hoje podemos selecionar alguns eventos que passaram a questionar as concepções até então vigentes. Inúmeros estudos apontam que as primeiras manifestações feministas ocorreram no período Iluminista, mais especificamente, durante a Revolução Francesa. O Iluminismo tratou-se de uma corrente filosófica criada em oposição ao Absolutismo europeu; de forma simplificada, este apoiava o sistema feudal, enquanto aquele defendia o uso da razão como o melhor caminho para se alcançar a liberdade, a autonomia e a emancipação, e, assim sendo, a Revolução Francesa ergueu a bandeira da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, lemas que agitaram as insatisfações da parcela feminina e aqueceram os movimentos feministas. Apesar de iniciado durante o século XVIII, foi no século XIX que o feminismo passou a se concretizar em conjunto com os preâmbulos da sociedade liberal europeia que emergia. O núcleo irradiador do feminismo emancipacionista foi a Inglaterra. Os escritos do pensador inglês Stuart Mill ganharam destaque ao propor o princípio geral de emancipação das mulheres a partir da abolição das desigualdades no núcleo familiar, da admissão das mulheres em todos os postos de trabalho e da oferta de instrução educacional do mesmo nível que estava ao alcance dos homens. De acordo com Mill (1997) em The subjection of women All causes, social and natural, combine to make it unlikely that women should be collectively rebellious to the power of men. They are so far in a position different from all other subject classes, that their masters require something more from them than actual service. (...) They have therefore put everything in practice to enslave their minds. (...) All women are brought up from the very earliest years in !5 the belief that their ideal of character is the very opposite to that of men. ! Partindo desse senso, na passagem do século XIX para o século XX, inúmeros pensadores e intelectuais europeus retomaram os pressupostos estabelecidos por Mill e formularam teses mais consistentes sobre o feminismo. Nesse contexto, buscamos apresentar de que forma as transformações referentes à posição social da mulher se refletem no gênero literário dos contos de fadas. Para tanto, nos basearemos, primeiramente, na análise dos textos clássicos (escritos) e suas adaptações realizadas pelos estúdios Walt Disney Pictures, para posteriormente colocar os resultados em diálogo com as últimas criações e recriações da mesma companhia. Assim sendo, partiremos dos textos e adaptações cinematográficas de Branca de Neve, Bela Adormecida e Cinderela, para então associá-los às discussões e mudanças oferecidas por Valente, Malévola e Frozen: uma aventura congelante. ! ! 2. As versões clássicas da Disney Pictures ! Tomamos, então, como ponto de partida a produção baseada no conto de fadas dos Irmãos Grimm "Branca de Neve", o filme Branca de Neve e os Sete Anões, lançado pelos estúdios Walt Disney em 1937, sendo o primeiro filme de animação produzido nos Estados Unidos, totalmente feito à cores e considerado também o primeiro Clássico Disney. Nesse clássico, uma rainha muito bonita e maldosa decide mandar matar sua enteada, Branca de Neve, uma princesa bela e bondosa. Isso ocorre após seu espelho mágico dizer-lhe que Branca de Neve era a mais bela de todas do reino. Na fuga do carrasco contratado pela rainha para assassinar a princesa, essa encontra a cabana dos sete anões, trabalhadores de uma mina, que passam a protegê-la. Ainda com o auxílio de seu espelho mágico, a rainha descobre o paradeiro de Branca de Neve e se transforma em uma velha que oferece à princesa uma maçã envenenada que a colocaria em sono profundo. Surge, novamente, o símbolo da maçã, como gatilho para a maldição imposta à princesa pela madrasta má. Para o psicólogo Bruno Bettelheim, a predileção pela fruta não era uma mera coincidência, uma vez que, !6 em muitos mitos e contos de fadas, a maçã representa o amor e o sexo, nos seus aspectos benevolentes e perigosos. Uma maçã, dada a Afrodite, deusa do amor, mostrando que ela era a preferida dentre as deusas, levou à Guerra de Tróia. A maçã Bíblica seduziu o homem e fê-lo renunciar à inocência para conseguir conhecimento e sexualidade. Foi Eva quem foi tentada pelo macho, representado pela cobra, mas nem mesmo esta pôde fazer tudo sozinha - precisou da maçã, que na iconografia religiosa também simboliza o peito materno. (BETTELHEIM, p. 227) ! O despertar do sono profundo de Branca de Neve só foi possível a partir da construção do ideal de amor verdadeiro, quando com um beijo de um príncipe encantado, a princesa se liberta da maldição. Vemos, nessa primeira produção da Disney, um traço marcante das histórias das princesas clássicas: a ideia do amor romântico verdadeiro entre homem e mulher como o elemento de salvação da figura feminina nessas histórias. Alguns anos depois, em 1950, a Disney lança seu segundo grande clássico, Cinderela, que conta a história da filha única de um fidalgo enviuvado que fica sob os cuidados de sua madrasta, Madame Tremaine, quando seu pai morre. Quando isso acontece, a menina passa a ser tratada como criada dentro de sua própria casa, sendo maltratada pela madrasta e por suas filhas. O filme foi baseado no conto de fadas de Perrault, "Borralheira", com inspiração chinesa, que retrata os sofrimentos e angústias das rivalidades fraternais e "a vitória da heroína humilhada sobre as irmãs que a maltrataram" (BETTELHEIM, p. 252). Solitária, Cinderela tem apenas a companhia dos animais que vivem em sua casa. Chega um dia em que o Rei, preocupado com o futuro de seu filho faz um baile para que todas as garotas solteiras compareçam e que seu filho possa escolher sua noiva. Impedida por suas irmãs e madrasta de ir ao baile, que estragam seu vestido, Cinderela vê-se sem saída até que sua Fada Madrinha transforma seu vestido enfarrapado em um belíssimo traje e dá-lhe sapatos de cristal e todos os acessórios necessários para ir ao baile, uma carruagem a partir de uma abóbora e cavalos, de seus amigos ratinhos. Chegando lá, Cinderela e o Príncipe Encantado se apaixonam e, quando chega a hora de partir, a moça deixa para trás seu sapatinho, peça que fez com que o Príncipe procurasse por sua amada por todo o reino até, enfim, encontrá-la. Nesse momento, o Príncipe resgata a Cinderela da vida de borralheira que levava até então e leva-a para o castelo, para viverem felizes para sempre. Mais uma vez, temos a figura do príncipe como o "salvador", como o elemento responsável pelo rompimento !7 de um ciclo problemático na vida da princesa, que se torna livre e completa quando encontra o amor verdadeiro e casa-se com o Príncipe. Podemos perceber como o casamento, nesse caso, é o desígnio da existência da personagem, que só pôde, de fato, começar a viver em liberdade quando se casou. Simone de Beauvoir já afirmava em seu livro O Segundo Sexo, que às mulheres existe a imposição social do casamento, sendo esse o seu destino. A autora afirma, "em sua maioria, ainda hoje, as mulheres são casadas, ou o foram, ou se preparam para sê-lo, ou sofrem por não o ser. É em relação ao casamento que se define a celibatária, sinta-se ela frustrada, revoltada ou mesmo indiferente ante essa instituição" (BEAUVOIR, p. 165). Essa predestinação ao matrimônio, muitas vezes, condiciona as relações sociais de modo que a liberdade de escolha da jovem se limita. Branca de Neve não escolheu quem a acordou; Cinderela, como jovem solteira, inicialmente foi obrigada a ir ao baile para se dispor a ser "escolhida" pelo Príncipe. Em 1959, os estúdios Walt Disney lançaram a animação A Bela Adormecida, que conta a história da princesa Aurora, que foi amaldiçoada pela maldosa fada Malévola a cair em sono profundo e eterno ao espetar seu dedo em uma roca de fiar, depois de completos seus 16 anos. Temerosos pelo destino da criança, o rei e a rainha, mandaram-na para ser criada na floresta por suas três fadas madrinhas, Flora, Fauna e Primavera. A bela Aurora cresce sem saber da maldição que a assombra e se apaixona pelo príncipe Phillip, já prometido à sua mão. Em seu décimo sexto aniversário, ela é levada de volta ao reino e a maldição, de fato, se concretiza. Com a ajuda das três fadas, Phillip derrota Malévola e livra Aurora da maldição. Como seu nome já sugere, Aurora renasce com um beijo de amor verdadeiro, sua vida, sua liberdade e sua salvação, novamente, estão vinculados à figura masculina, personificada pela imagem do príncipe. Nessa breve análise, foi possível perceber como, por um longo período, houve uma forte tendência de perpetuar, nos clássicos da Disney, alguns valores vigentes na sociedade. Até então, não cabia à mulher tomar as rédeas de sua própria existência ou ser a responsável por sua própria salvação. Após A Bela Adormecida, os estúdios Disney passaram 30 anos sem lançar novos filmes, até que com o lançamento de A Pequena Sereia, houve mudanças sutis nesse cenário e iniciou-se um processo de ruptura dos ideais perpetuados até então. ! !8 ! 3. Valente: o primeiro passo em direção à ruptura ! Trinta anos após o lançamento da última princesa, a Disney Pictures volta a investir no gênero e lança uma série de personagens femininas que, aos poucos, rompem com o estereótipo de outrora. A primeira delas é Ariel, protagonista de A Pequena Sereia (1989), que foi a primeira a, de fato, salvar seu príncipe de algum perigo e a confrontar seu pai. Dois anos depois, em 1991, surge A Bela e a Fera, cuja protagonista valorizava a inteligência acima da beleza e apaixonou-se por um príncipe sob a aparência de uma Fera (enquanto aprisionada em seu castelo, cabe ressaltar). Apesar das pequenas mudanças, contudo, essas princesas ainda tiveram como "objetivo final" de suas existências, o enlace com seus respectivos príncipes. A temática amorosa prevalece ainda em Aladdin (1992), Pocahontas (1995) e Mulan (1998), apesar das renovações que essas últimas produções propõem. Foi, contudo, em 2012, com o lançamento de Valente, que houve o primeiro grande passo em direção à ruptura com o padrão amoroso estereotipado perpetuado pelos filmes da Disney por mais de 70 anos. Merida, protagonista da animação, exibe padrões de beleza incomuns e não se comporta como uma donzela. A princesa foi criada por sua mãe para se tornar sua sucessora no cargo de rainha, mas Merida não tem interesse ou vocação para tanto e prefere cavalgar pelas montanhas da Escócia ou praticar arco e flecha a assumir tarefas do reino. Merida é dona de um espírito livre, o que dificultava sua relação com sua família, uma vez que as mulheres de seu tempo não eram autorizadas a pensarem por si próprias. Certo dia, três pretendentes chegam ao seu reino para uma competição. O vencedor ganharia a mão de Merida em casamento. Eis que surge um importante rompimento na trajetória dos filmes dos estúdios Disney: Merida foi a primeira princesa a, definitivamente, repudiar a ideia de casar-se. Sendo assim, decidiu entrar na competição junto aos outros competidores e batalhar por sua própria mão. Essa decisão tomada por Merida trouxe às suas próprias mãos a responsabilidade por sua salvação e liberdade. Merida decide lutar contra a hereditariedade da monarquia e enfrenta sua família para que isso aconteça. A decisão de enfrentar sua família e sua impetuosidade fizeram com que o caos se instaurasse no reino e, nesse momento, a jovem procurou uma bruxa que lança uma maldição dizendo a estar ajudando. O perigo causado por essa maldição faz com que a !9 princesa descubra em si a verdadeira coragem, para que ela consiga desfazer a maldição e salvar sua família. Além do rompimento com o ideal romântico de que o casamento é o desígnio feminino, Valente mostra uma estrutura familiar articulada em torno de uma figura feminina, da rainha, e não masculina como é de costume. A estrutura matriarcal, contudo, reproduz os mesmos valores opressores do sistema patriarcalista. Não temos, nesse filme, a figura masculina desempenhando papel central na narrativa, especialmente no que se refere à "salvação" da protagonista, essa salvação, é mérito dela mesma. Dessa forma, é possível afirmar que Valente foi o primeiro grande passo em direção à uma reconstrução do ideal de amor verdadeiro nos filmes Disney, uma vez que passa a desvincular a figura masculina desse conceito, permeado agora por valores familiares. ! ! 4. Malévola e Frozen: novas concepções do conto de fadas ! Valente deu o primeiro grande passo em relação à libertação feminina dos valores até então arraigados nas estruturas das efabulações das produções da Disney, o segundo grande passo veio com o lançamento de Frozen - uma aventura congelante, em 2013. A animação foi inspirada no conto de fadas "A Rainha do Gelo", do clássico escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, e a partir desse conto, foi feita uma adaptação livre, mantendo a ideia central de que o principal elemento de salvação das personagens é o amor. A animação conta a história de duas irmãs, filhas do rei e da rainha de Arendelle. Elsa, a mais velha, nasceu com um poder mágico de criar gelo e neve. Ela e sua irmã mais nova, Anna, eram muito próximas durante sua infância, até que um dia, acidentalmente, Elsa acertou um raio de gelo em Anna, colocando sua vida em risco. Temerosos pela segurança de sua filha caçula, o rei e a rainha separaram as irmãs, deixando Elsa isolada no castelo para que aprendesse a controlar seus poderes. Os pais das princesas morrem em um naufrágio, fazendo com que a responsabilidade de assumir o trono coubesse à Elsa e, somente no dia de sua coroação, as irmãs se reencontram. Durante as festividades, Anna conhece um jovem príncipe por quem acredita estar perdidamente apaixonada, Hans. O amor parece ser recíproco e verdadeiro e o jovem casal !10 decide se casar. Ao comunicar o fato à Elsa, que já sofria para controlar seus poderes, essa acidentalmente, congela todo o reino, condenando-o a um inverno eterno e foge. Anna parte, então, em busca de sua irmã, com a ajuda de Kristoff, um homem da montanha e sua rena, para trazê-la de volta do reino e acabar com inverno que se instaurara. Enquanto Anna procurava sua irmã, Hans cuidava do reino de Arandelle e ordenou que seus homens encontrassem Elsa. O jovem pretendia dominar o reino e precisava tirá-la do caminho. Quando Anna encontra Elsa, que construíra um castelo de gelo para si, foi atingida novamente com um raio de gelo por sua irmã. Dessa vez, contudo, o raio acertou o coração, o que seria fatal. Anna e Kristoff voltam às pressas à Arandelle à procura de Hans, visto que apenas um beijo de amor verdadeiro poderia salvar-lhe da morte. Esse beijo, todavia, nunca ocorre, já que as intenções de Hans com a princesa não eram verdadeiras, estando Anna, assim, fadada à morte. Preocupado com o bem estar de Anna, Kristoff, que se apaixonou pela jovem durante sua empreitada nas montanhas, voltou ao castelo para dar-lhe o beijo de amor verdadeiro e salvar-lhe. O que aconteceu, de fato, foi um ato de bravura e coragem de Anna. Ao perceber que Elsa estava em perigo, a princesa, em seu último suspiro de vida, colocou-se perante à irmã, protegendo-a da morte. Essa atitude fez com que a maldição que a afligia se quebrasse. Temos, então, pela primeira vez, um ato de amor verdadeiro entre duas mulheres, irmãs, como o elemento de salvação na narrativa. Ainda seguindo essa mesma linha de atuação, buscando fortalecer as relações de irmandade entre as mulheres, por meio da construção de personagens femininas fortes e independentes, a Walt Disney lançou em 2014 o live-action Malévola, adaptação do clássico de 1959, A Bela Adormecida, mas dessa vez sob a perspectiva da antagonista da história original, Malévola. No filme, uma narradora idosa conta a história de Malévola, uma poderosa fada que vivia em um lugar mágico e fronteiriço a um reino de seres humanos, e que, ainda jovem, conheceu e se apaixonou por um garoto camponês chamado Stefan. A medida em que dois crescem, cresce o amor e confiança de Malévola. Contudo, o sentimento de Stefan aos poucos é substituído por sua ambição por tornar-se rei. Malévola derrota o rei do reino vizinho em uma batalha e esse, em seu leito de morte, exige de seus homens vingança. Stefan enxerga nessa situação e em sua relação de confiança !11 com Malévola, uma oportunidade para sua ascensão política. Nessa mesma noite, vai encontrar-se com Malévola e dá a ela uma substância entorpecente. Quando a fada cai no sono, Stefan tenta matá-la, mas, sem coragem para fazê-lo, arranca suas asas usando uma corrente de ferro, visto que muitos anos antes Malévola dissera-lhe que o ferro queimava as fadas. Stefan usou as asas como evidência de que havia matado Malévola e, dessa forma, foi coroado rei. Na manhã seguinte, Malévola sentiu-se profundamente amargurada e traída e transformou seu reino, antes alegre e festivo, em um lugar de escuridão. A fada, agora sem asas, toma um corvo, Diaval, como seu ajudante, e algum tempo depois, descobre que o então rei Stefan tivera uma filha. Como vingança, Malévola aparece no batizado da filha do rei, Aurora, e, afirmando dar um presente ao bebê, amaldiçoa-a, dizendo que em seu aniversário de 16 anos, a menina espetará o dedo em uma roca de fiar e entrará em sono profundo e eterno. Quando Stefan implora para que Malévola tenha piedade, a fada diz que a maldição poderia ser quebrada com um beijo de amor verdadeiro. O rei manda destruir todas as rocas de fiar do reino e, para proteger a filha, manda-a para a floresta para ser cuidada por suas fadas madrinhas. Essa parte da história assemelha-se à animação A Bela Adormecida. O que diferencia as duas produções é a proximidade de Malévola da menina enquanto essa cresce e o cuidado que tem com ela, enquanto as fadas relapsas não o tinham. Aos quinze anos, Aurora finalmente conhece Malévola e as duas passam a desenvolver uma relação afetuosa. A menina passa a acreditar que a fada amargurada era, na verdade, sua fada madrinha, que a acompanhava desde sua infância. Malévola, nesse momento, tenta desfazer a maldição, mas sem sucesso e decide, então, protegê-la e aceita que a garota viva com ela em seu reino, quando a menina afirma ser esse seu desejo. Nesse meio tempo, Aurora conhece o jovem príncipe Phillip e se encanta por ele. Às vésperas de seu aniversário de 16 anos, Aurora conta às fadas madrinhas que quer viver com Malévola em seu reino, as fadas resolvem revelar que a menina é, de fato, uma princesa e que está amaldiçoada. Muito magoada, Aurora volta para o castelo dos pais e, em seu aniversário, a maldição, inevitavelmente, se concretiza. Sentindo-se muito culpada, Malévola intercepta o jovem Phillip e o leva até o castelo para que ele beije Aurora e a acorde do sono profundo. A fada, contudo, teme pelo futuro da menina, uma vez que não acredita na existência do amor verdadeiro. O beijo do príncipe, entretanto, é ineficaz. Malévola !12 acompanha tudo à espreita e aproxima-se da garota para pedir-lhe perdão. Nesse momento, aflora ali um sentimento profundo e honesto, Malévola diz à menina que a protegeria para sempre e dá um beijo em sua testa. Esse beijo faz com que Aurora desperte, provando que o amor de Malévola era verdadeiro e capaz de quebrar a maldição. Temos, mais uma vez, o amor entre mulheres como símbolo do verdadeiro amor. Quando tentam sair do castelo, Malévola é presa por uma emboscada armada pelo rei Stefan, que usou uma rede e lanças de ferro para aprisioná-la e atingí-la. Quase à beira da morte, Malévola é salva por Aurora, que encontra as suas asas, que o rei mantinha guardadas. Com suas asas de volta, Malévola derrota Stefan, que morre caindo no fosso do castelo. Depois de tudo isso, os reinos foram unificados e Aurora foi proclamada rainha de ambos. No final do filme, a narradora do filme se revela como sendo a própria Aurora, já idosa. Essa transposição do foco narrativo dá à Malévola uma autenticidade, sugerindo que a visão da personagem anteriormente vista como vilã, seria, portanto, equivocada. ! ! 5. A reconstrução do amor verdadeiro ! Nas produções mais recentes do estúdio Disney, Frozen e Malévola, vimos, portanto, um conceito de amor verdadeiro que se difere do que fora difundido até o momento. Esse processo de reconstrução do conceito do sentimento deu-se, em ambos os casos, por meio de dois fenômenos simultâneos: a construção de figuras femininas fortes e hábeis e a desconstrução das figuras masculinas como detentoras do poder de salvação. Tanto em Frozen, com o personagem de Hans que fingiu amar Anna por interesse, quanto em Malévola, com Stefan, que aproveitou-se da confiança que Malévola tinha nele para cortar-lhe as asas e conquistar o trono de seu reino, temos homens representados como traídores, aproveitadores. Hans era o caçula de uma família muito grande e viu em Anna a oportunidade de tornar-se rei e ficar rico, fez-lhe juras de amor e, quando sua vida estava em risco, virou-lhe as costas. Hans, inclusive, tentou matar Elsa para alcançar seu objetivo. Já Stefan, inicialmente tinha uma relação afetuosa com Malévola, porém, todo o sentimento que sentia por ela foi suprimido quando surgiu a oportunidade de impressionar seu rei, em seu !13 leito de morte, almejando ocupar seu lugar. Para isso, tentou matá-la, não conseguindo, usou o afeto que ela sentia por ele para arrancar suas asas. As traições cometidas por esses homens, os impedia de, como era costumeiro, serem os responsáveis pela salvação das donzelas em perigo. Houve, então, a necessidade de reconstruir a ideia de amor verdadeiro, transpondo-o para um campo familiar, maternal, fraternal. Não cabe mais ao Príncipe Encantado acordar a Bela Adormecida ou a Branca de Neve. Acompanhando uma tendência universal e contemporânea, o amor verdadeiro deixa de se associar ao relacionamento afetivo heterossexual e transita para as relações entre mulheres, estreitando laços familiares e de amizade entre elas. A sororidade sobrepõe-se ao "viveram felizes para sempre", dando espaço para que as novas produções cinematográficas da Disney, até então bastante tradicionalistas, sigam a tendência atual da sociedade, representando as mulheres como indivíduos independentes, fortes e plenamente capazes de salvarem-se, independentemente de figuras masculinas. ! ! 6. O ensino por meio da literatura ! Cabe-nos, então, amarrar toda a discussão à perspectiva de ensino. Nesse sentido, apropriando-nos, mais uma vez em um dos estudos de Candido, A literatura e a formação do homem, buscamos destacar por que o acesso à literatura deve ser considerado aspecto sine qua non desde os primórdios da educação. A literatura tem sido instrumento poderoso de instrução e educação, ao mesmo passo que já se consagrou historicamente como instrumento por meio do qual o indivíduo torna-se autônomo para desenvolver-se intelectual e psicologicamente. A fruição literária não é um simples ato de consumo, mas uma construção que pressupõe capacitação, experiência. É, pois, necessário deixar de associar a leitura prazerosa à ideia da mera facilidade ou lazer. Na facilidade, não está necessariamente o prazer e, na obrigação, não está necessariamente o desprazer. O prazer pode estar associado à realização. (BRITTO, Luiz Percival Leme. 2007. p. 26) ! Desse modo, o que muitos chamam de “prazer” ou “puro divertimento“, na verdade significa a realização do ser humano por meio de seu constituinte primordial – a própria !14 linguagem. Portanto, a justificativa que legitima a necessidade da leitura se pauta essencialmente no processo humanizador. Candido defende, também, que a literatura deve ser colocada no mesmo patamar dos direitos humanos – tais como alimentação, moradia, saúde, segurança etc. Assumir tal postura significa oferecer acessibilidade ao que chamamos Empoderamento. Tal termo é frequentemente usado em âmbito acadêmico e de forma geral contém a ideia de autonomia e senso crítico que todo e qualquer professor almeja oferecer aos seus alunos. Em suma, a Literatura, posta como necessidade primordial dá acesso ao Empoderamento – que auxilia a ascensão social, econômica e intelectual do indivíduo – e oferece regozijo psicológico – o qual se trata de um fator constituinte do ser humano. De mãos dadas com Candido, Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira Aguiar (1993) levaram a discussão para o quadro educacional. Baseadas na teoria da Estética e da Recepção, descrita por H.R. Jauss em A história da literatura como provocação à teoria literária, as autoras criaram o Método Recepcional. Em A formação do leitor: alternativas metodológicas, as autoras versam sobre esse método que propõe associar o conhecido ao novo, o atual ao histórico, em um diálogo repleto de discussões geradas por meio de cinco etapas: determinação do horizonte de expectativas; atendimento do horizonte de expectativas; ruptura do horizonte de expectativas; questionamento do horizonte de expectativas e ampliação do horizonte de expectativas. Para estabelecer tal dinâmica, o Método Recepcional induz os educandos a perceberem a obra esteticamente e, para tanto é necessário que o educando leve para dentro do livro toda a carga de leitura que lhe pertence, assim estabelecendo um diálogo entre texto e interlocutor. Seguindo por tais caminhos teóricos, podemos afirmar que as novas adaptações de contos de fadas produzidas pelos estúdios Disney, oportuniza novas esferas de discussões, como aponta Jarid Arraes (2014) em Malévola, Frozen e Valente: o amor entre mulheres começa a despontar. É importante lembrar que esse tipo de mudança também é extremamente positiva para garotos e homens. Enxergar mulheres como seres humanos independentes e dotados de força, auxilia em uma formação menos machista e dominadora, que também abrirá espaço para que esses homens escapem dos rígidos padrões de masculinidade. E, ao contrário do que se pensam os misóginos, muita !15 gente quer blockbusters com mulheres protagonistas. O sucesso estrondoso se Malévola e Frozen não mente: existe uma grande audiência interessada em vilãs complexas, que roubam a simpatia do público, e mocinhas autônomas e habilidosas. Afinal, muitas mulheres reais são assim. (ARRAES, 2014) ! A autora também postula que, embora possamos perceber um movimento de mudança, há outros aspectos que também precisam ser colocados em xeque, tais como a aparência física das protagonistas, que ainda está em assonância com um padrão pré-estabelecido de beleza. No entanto, quando produtores se propõem em romper com parâmetros, principalmente no que diz respeito à ideia de amor verdadeiro, cria-se novas concepções acerca das relações interpessoais e sociais, ou seja, antes de partir para a unidade (indivíduo), prima-se em quebrar os valores estabelecidos coletivamente. Assim sendo, uma vez que grande parte do público infanto-juvenil tem contato com as adaptações da Disney (tanto clássicas, quanto as atuais), as mudanças que aos poucos se inserem no cenário contemporâneo, podem de alguma forma gerar aos educandos algum tipo de estranhamento, ponto de partida perfeito para que o professor gere novas discussões. ! ! 7. Considerações Finais ! Ao longo desse artigo buscamos trilhar um percurso acerca do papel da mulher na sociedade, e discutir de que forma tal aspecto é representado na literatura dos contos de fadas, tanto nos textos escritos, quanto nas adaptações intermidiáticas. Partimos do contexto cultural da Idade Média, no qual a Igreja Católica confirmou-se como grande referência de poder e influência, para, posteriormente, apresentar o lento processo de ruptura que teve como evento limítrofe a Revolução Francesa – momento de estopim, em que os questionamentos em relação a posição da mulher passaram a ser incorporados e explorados em estudos sociais e filosóficos. Baseando-nos nas ideias postuladas por Antonio Candido (1972), assumimos que uma das funções da literatura é refletir os espectros histórico e social do momento em que as obras são produzidas. Desse modo, nossa análise se desenvolveu em três diferentes estágios: primeiramente abordamos os contos de fadas clássicos - Branca de Neve, Bela Adormecida e !16 Cinderela –, estabelecendo relação entre eles e os preceitos vigentes no medievo. Em seguida apontamos, Valente como o primeiro passo em direção à quebra dos costumes sociais latentes, o qual veio a culminar nas propostas de total rompimento apresentadas por Malévola e Frozen. Sendo essas últimas, adaptações que não só perpetuam as mulheres como seres autônomos e capazes de se auto resgatarem das provações que lhes são impostas, como também, redefinem a imagem do homem, associando-a à ideia de traição – aspecto que se posta totalmente contrário aos parâmetros tradicionais, em que o elemento masculino é sempre referência de salvação e amor verdadeiro. Assim sendo, ao levantar discussões acerca das mudanças que permeiam as novas adaptações dos contos de fadas, buscamos propor uma intervenção no que diz respeito ao processo de ensino aprendizagem. Como mencionado anteriormente, a literatura é um espaço de construção de sentido estabelecido entre obra e interlocutor, portanto, trabalhar com contos de fadas sempre irá mobilizar os processos de criação e manutenção de padrões, costumes e valores provindos de diferentes contextos históricos e sociais. Isso não significa dizer que os contos de fadas clássicos devam ser rechaçados, mas que o professor esteja apto a trabalhar com tais variações, sempre mediando os conhecimentos que os educandos trazem de bagagem com os parâmetros instaurados por meio da dinâmica da sociedade contemporânea. ! ! 8. Referências ! ARRAES, J. Malévola, Frozen e Valente: o amor entre mulheres começa a despontar. Questão de Gênero - Revista Fórum. Junho, 3, 2014. Disponível em: http:// www.revistaforum.com.br/questaodegenero/2014/06/03/malevola-frozen-e-valente-o-amorentre-mulheres-comeca-despontar/ BEAUVOIR, S. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960b. Bela Adormecida, A. Direção: L. Clark, E. Larson, W. Reitherman. Walt Disney Pictures. USA, 1959. 75 min. Animação, Cor. BETTELHEIM, B. A Psicanálise nos Contos de Fadas. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. !17 BLOCH, R. H., “Misoginia medieval e a invenção do amor romântico” Ocidental. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. 277 p ISBN 8585490594. BORDINI, M. I.; AGUIAR, V. T. de. Literatura – a formação do leitor: alternativas metodológicas. 2 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. Branca de Neve e os Sete Anões. Direção: D. Hand, W. Jackson, L. Morey, P. Pearce, B. Sharpsteen. Walt Disney Pictures. USA, 1937. 80 min. Animação, Cor. CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. 1972. Cinderela. Direção: C. Geronimi, H. Luske, W. Jackson. Walt Disney Pictures. USA, 1950. 72 min. Animação, Cor. DUBY, G.; PERROT, Michele (org.). História das Mulheres no Ocidente. Tradução portuguesa. Porto: Afrontamento, 1990. _______. Idade Média, Idade dos homens. Do amor a outros ensaios. Tradução de J. Batista Neto. São Paulo: Companhia de Letras,1989. Frozen - uma aventura congelante. Direção: C. Buck, J. Lee. Walt Disney Pictures. USA, 2013. 102 min. Animação, Cor. Malévola. Direção: R. Stromberg. Walt Disney Pictures. USA, 2014. 80 min. Cor. MILL, John Stuart. The subjection of women. New York: Dover Publications, 1997. Valente. Direção: Mark Andrews, Brenda Chapman. Walt Disney Pictures. USA, 2012. 93 min. Animação, Cor. SODRÉ, P. R. Entre a guarda e o viço: a madre nas cantigas de amigo galegoportuguesas, 2004, p.97-128. !18