Sobre este guia de leitura Seguimos o trajeto do texto, simplesmente agrupando os temas afins. No final um anexo com notas sobre o vocabulário empregado no texto. Poderíamos ainda acrescentar notas de rodapé para vencer as referências explícitas (p. ex. nomes de autores pouco conhecidos) e implícitas (p. ex. falando brevemente sobre as temáticas filosóficas aludidas no texto) - infelizmente não o fizemos. * Guia para a leitura do texto “A Ordem do Discurso” de M.F. (texto que foi estabelecido e publicado a partir da aula inaugural do curso intitulado “A vontade de saber” da cadeira de história dos sistemas de pensamento do College de France em 02 de Dezembro de 1970) A) Introdução: O temor de tomar a palavra, o perigo do discurso, o desejo de uma voz que o precedesse, o consolo da instituição, o poder vem da instituição. Mas que perigo teria o discurso? B) Hipótese: a produção do discurso implica procedimentos (sistemas de coerção) para conjurar seu perigo, sua violência, sua descontinuidade, sua combatividade, sua desordem, o que ele tem de aleatório, material, dominar sua proliferação, esquivar o incontrolável; há uma ordenação do discurso, há uma ordem do discurso, que é também uma veneração do domesticado. A ordem do discurso tem logofilia do discurso domado e logofobia provocada pelo temor dos acontecimentos da linguagem. Não só na nossa sociedade como em todas (embora em diferentes facetas). I. Procedimentos de exclusão: Arbitrários, submetidas à contingências históricas, em perpetuo deslocamento, sustentada por instituições coercivas e mesmo violentas, buscando afastar o desejo e o poder, “exteriores” ao discurso, que dominam os poderes do discurso. Três grandes sistemas: a) Interdição ou a palavra proibida: “Não se pode dizer qualquer coisa em qualquer lugar”. Modos: 1. Tabu do objeto 2. Circunstância do objeto 3. Direito exclusivo de sujeito b) Separação ou a segregação da loucura: Diferenciação entre tipos de discursos. Modos: 1. Seja anulando-o como verdade 2. Seja atribuindo o poder de dizer uma verdade oculta c) Oposição Verdadeiro-Falso ou vontade de verdade: Sistema de exclusão não por sua coerência interna, mas considerando a vontade de verdade (através dos séculos) ou o tipo de separação que rege a vontade de saber. Reage sobre os outros dois sistemas de exclusão, “englobando-os”. 1. Discurso verdadeiro dependente do ritual e de quem fala, justo, que preve, convence e conduz, verdade como o que faz, precioso, desejável. Ligado ao exercício de poder, responde ao desejo. 2. Discurso “verdadeiro”, que o separa do falso (imediatamente), focado no enunciado (em seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação, sua referência) Esta vontade de verdade (uma forma de discurso, ao mesmo tempo que uma coação do discurso) pressiona e coage outros discursos. Esta vontade de verdade deu forma geral à nossa vontade de saber, embora tenha ocorrido posteriormente o aparecimento de diferentes vontades de saber (uma vontade de saber inglesa no século XVI diferente da grega clássica no século IV A.C.). Historicamente, a vontade de verdade afastou-se do poder e aproximou-se do saber (qualquer): autonomização da história da vontade de verdade (no interior de uma vontade de saber). Conseqüências: “desligamento” do discurso ao poder, divisão verdadeiro-falso; continua tratando de desejo e poder, sem poder reconhecê-lo, uma vez que a verdade que quer, a imagem que forma, é livre de desejo e poder - não se pode assim, contornar essa vontade de verdade sem ir contra a verdade. Ocorre em formas especificas (p.ex. as revoluções cientificas entendidas como novas formas da vontade de verdade). II. Procedimentos de limitação: Procedimentos internos de distribuição concernentes ao acontecimento e ao acaso (como multiplicidade aberta) que limitam suas aparições aleatórias, que no entanto promove a também criação de discursos, coercitivamente, numa determinada direção. a) O comentário: Desnível entre grandes narrativas (de sentido múltiplo, oculto, rica e desafiante) e seu comentário, mesmo que um possa assumir mais importância que o outro. Permite, por isso mesmo, novos discursos indefinidamente (recitação, repetição que elimina o acaso); permite revelar o sentido (dizer o que jamais foi dito, o novo, no entanto atribuindo-o ao acontecimento do texto primário). Limita o acaso pelo jogo de uma identidade na forma da repetição e do mesmo. b) O autor: Entendido como principio de agrupamento do discurso, unidade e origem de suas significações, como foco ou nós de coerência, dados à inquietante linguagem. A função-autor não existe em todos os discursos. Limita o acaso pelo jogo da identidade na forma da individualidade e do eu. c) As “disciplinas”: Contrapõe-se ao comentário e ao autor. Sistema anônimo definido por um domínio de objetos (determinados, específicos, “construídos”, diferentes dos corriqueiros), conjuntos de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras [e evidentes] (repele para fora as crenças, a experiência imediata, e induz a erros e quimeras internos à sua verdade), um jogo de regras e definições, de técnicas e instrumentos, requeridos para construção indefinida de novos enunciados (sem serem sentidos redescobertos ou uma identidade repetida). Não é apenas um conjunto de verdades (bem delimitado), mas de erros também, e de condições para o verdadeiro-falso (e não para a verdade) [ver a vontade de verdade]. Fixa os limites da produção do discurso pelo jogo da identidade na forma de uma reatualização permanente das regras. III. Procedimentos de apropriação: Procedimentos que determinam as condições de funcionamento do discurso, que impõe aos indivíduos regras, qualificações e exigências para pronunciá-los, selecionando os sujeitos que falam. São sistemas complexos de restrição (no fundo abstrações, visto estarem interligados): deles dependem a transmissão, a troca, a comunicação de saber. a) Rituais da palavra: Forma mais superficial. Define a qualificação, os comportamentos que acompanham o discurso, os efeitos esperados do discurso (eficácia, limites do valor de coerção). Propriedades singulares e papéis estabelecidos. b) Sociedades do discurso: Segredo e não-permutalidade dos discursos. “Pequenas sociedades de discurso”, “círculos fechados”, regime de exclusividade e divulgação de certo discurso. c) Grupos doutrinários (Doutrinas): Questionamento ao mesmo tempo do enunciado e do sujeito que fala, e um através do outro. Dupla sujeição: sujeição dos sujeitos que falam aos discursos; e sujeição dos discursos ao grupo virtual ou atual dos indivíduos que falam. d) Grandes planos de apropriação social dos discursos: (“todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”) IV. Parêntesis: Temas filosóficos que respondem e reforçam os procedimentos (coercitivos) da ordem do discurso. a) Resposta aos sistemas de coerção: Verdade ideal (como lei do discurso); racionalidade imanente (como principio de seu desenvolvimento); ética do conhecimento (imaculados desejo de verdade e poder de pensamento) b) Reforço dos sistemas de coerção: denegar a realidade especifica do discurso (sua ligação com o poder e o desejo). c) Conseqüências: elisão da realidade do discurso [menor espaço possível ao discurso entre o pensamento e a palavra (falar): ou pensamento vestido de linguagem ou língua gerando sentido]. Discurso anulado em sua realidade, inscrito na ordem significante. d) Exemplos de temas que repetem essa resposta e reforço [a exclusão do tema da linguagem da filosofia]: 1. Filosofia do Sujeito fundante. (Discurso como jogo de escritura). 2. Filosofia da Experiência originária. (Discurso como jogo de leitura). 3. Filosofia da Mediação universal (logos). (Discurso como jogo de troca). C) Proposta de forma de pesquisa: se a hipótese estiver correta, para analisar as condições desse temor devemos: I. Optar por três decisões (que implicam vencer resistências de nosso pensamento): tarefas ou temas das futuras (1970) pesquisas de M. F.: a) Questionar nossa vontade de verdade; b) Restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; c) Suspender a soberania do significante. II. Exigências de método implicadas (princípios ou regras): a) Principio de inversão: Onde a tradição reconhece papel positivo (p. ex. autor, “disciplina”, vontade de verdade) ver a rarefação da produção de discurso. Noção que serve como principio regulador da analise: Acontecimento (oposto à criação). b) Principio de descontinuidade: Não há um grande discurso ilimitado (impensado ou não-dito) reprimido; os discursos são práticas descontinuas (que se cruzam, se ignoram ou se excluem). Noção que serve como principio regulador da analise: Série (oposto à unidade) c) Principio de especificidade: Recusar os temas filosóficos coniventes com a ordem do discurso (ver parêntesis acima). O discurso é uma violência às coisas, uma prática que impomos às coisas. Nessas práticas encontramos o principio de regularidade dos acontecimentos do discurso. Noção que serve como principio regulador da analise: Regularidade (oposto à originalidade). d) Principio de exterioridade: não atribuir uma interioridade ao discurso (núcleo escondido, âmago do pensamento, manifestação de uma significação). Na própria aparição e regularidade de um discurso, passar para às suas condições externas de possibilidade (aquilo que dá lugar e fixa as fronteiras da série aleatória desses acontecimentos). Noção que serve como principio regulador da analise: Condição de possibilidade (oposto à significação). III. Observações: a) Concernente à História contemporânea (1970): 1. As estruturas de longa duração são um alargamento do acontecimento singular, a descoberta minuciosa de suas camadas (não sua recusa). 2. Nenhum elemento é considerado fora de uma série (que se buscará conhecer a regularidade, as variações de sua curva e os limites de probabilidade de sua emergência, de que condições depende), especificando o modo de analise desses elementos: estabelecer a contingência do acontecimento, as condições de seu aparecimento, pelas diversas séries entrecruzadas ou divergentes, não autônomas. Noções fundamentais: acontecimento e série (e noções ligadas a estas: regularidade, causalidade, descontinuidade, dependência, transformação). Não se busca causa e feito num grande devir informe (hierarquizado nem homogêneo) nem estruturas estranhas ao acontecimento (comparação). Não se precisa de noções como continuidade, consciência, signo, estrutura. b) Concernentes à Filosofia ou Teoria da História: 1. Noção de acontecimento: É no âmbito da materialidade que ele se efetiva; consiste na relação/coexistência/dispersão/recorte/acumulação/seleção de elementos materiais; há, paradoxalmente, uma materialidade do incorporal. (Não é: substancia, acidente, qualidade, processo. Não é da ordem dos corpos, nem ato ou propriedade de um corpo, nem imaterial). 2. Estatuto do descontínuo: Cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em diversas funções e posições. Falta-nos uma teoria das sistematicidades descontinuas e uma teoria das relações do acaso com o pensamento. E aceitar a introdução da causalidade como categoria na produção dos acontecimentos. (Não se trata de: sucessão de instantes do tempo, pluralidade de sujeitos pensantes. Não são da ordem da: sucessão ou simultaneidade numa consciência). c) Concernentes às conseqüências gerais de tal forma de pesquisa: 1. Tal tênue deslocamento talvez introduza no pensamento o acaso, o descontinuo e a materialidade (perigo para certas formas de história). O que talvez permita ligar a prática dos historiadores à história dos sistemas de pensamento. D) Analises do discurso a serem empreendidas (divididas em dois conjuntos): Dois conjuntos que se diferenciam não pelo objeto ou domínio, mas pelo ponto de ataque, de perspectiva e delimitação. Conjuntos de descrições que devem alternar-se, se apoiar mutuamente e se completar. Formam uma analise do discurso que mostra claramente o jogo de uma rarefação imposta com poder de afirmação (não desvenda a universalidade ou generosidade continua de um sentido, nem impõe a monarquia do significante - tudo menos um estruturalismo, diz M.F.). I. Conjunto “Crítico”: Põe em prática o principio da inversão para mostrar como se formaram/modificaram/exerceram os procedimentos que conjuram o perigo do discurso (e o que eles conjuram), ou seja, os conjuntos de recobrimento do discurso (exclusão, ordenamento e rarefação do discurso). Estuda a ordem do discurso. Análise das instancias de controle discursivo, os processos de rarefação, de reagrupamento e unificação dos discursos - sem perder o horizonte das regularidades discursivas, estudado pelo conjunto genealógico. Estilo: uma “Desenvoltura aplicada”. a) Exemplo: estudo da separação entre loucura e razão na época clássica. Realizado por M. F. b) Possível: estudo do procedimento de exclusão pela interdição da linguagem no âmbito da sexualidade, do século XVI à XIX. c) Possível: estudo do procedimento de exclusão pela divisão verdadeiro/falso (estudo da vontade de verdade) nos âmbitos da Atenas na passagem do século V A.C. para IV A.C., da Inglaterra (e Europa) na passagem do século XVI para XVII e da Europa no inicio do século XIX. d) Possível: estudo do procedimento de exclusão pela divisão verdadeiro/falso (estudo da vontade de verdade) na integração de discursos com pretensão cientifica à prática e discurso penal. e) Possível: estudos dos procedimentos de limitação na história da medicina do século XVI ao século XIX. f) Possível: estudos dos procedimentos de limitação na história da literatura e da crítica nos séculos XVIII e XIX. g) Possível: estudos dos procedimentos de limitação da Psicanálise (em relação a Freud), da Física (em relação a Newton), da Filosofia (em relação a Kant). II. Conjunto “Genealógico”: Põe em prática os princípios da descontinuidade, da especificidade, da exterioridade para mostrar como se formam efetivamente séries de discursos (a norma especifica de cada um, a condição de aparição/crescimento/variação) - apesar (ou com apoio) dos procedimentos que conjuram o perigo do discurso (no interior e/ou exterior do limites de controle), estudados pelo conjunto crítico. Estuda a formação do discurso ao mesmo tempo dispersa, descontinua e regular, procura apreende-las em seu poder de constituir objetos e proposições verdadeiras e falsas sobre eles (seu poder de afirmação) - sem perder do horizonte os limites dos sistemas de coerção. Estilo: o humor genealógico é um positivismo feliz. a) Possível: estudo dos conjuntos discursivos (das regularidades discursivas, das pluralidades de séries) que tratam da sexualidade, do século XVI à XIX (simultâneo ao da letra b do item anterior, acima). b) Possível: estudo das séries de discursos sobre temas posteriormente tomados pela economia (riqueza, pobreza, moeda, produção, comércio) nos séculos XVII e XVIII. c) Exemplo: estudo dos diversos discursos sobre a hereditariedade até a formação (pela articulação de diversas séries diferentes) da genética, [do Renascimento] até o início do século XX. Realizado por François Jacob [no livro traduzido como “Lógica da Vida”]. E) Agradecimentos I. Dumezil e o ensino da História II. Canguilhem e a abertura da História das Ciências III. Hyppolite (de quem M.F. assumiu a cadeira) e sua leitura e seus usos de Hegel. Anexo: Notas sobre o vocabulário do texto: Indicações gerais: Divisão: prática e instituição / aparato de saber / discurso Indivíduo ≠ Sujeito Sobre Sociedade: Conjunto instável de complexos poder-saber em relações variadas. Sobre o discurso: Zumbido incessante e desordenado. A palavra dita ou escrita qualquer, ora sinônimo a linguagem, ora sinônimo a língua, sinônimo a falar, a dizer; o discurso tem uma realidade especifica diferente de pensamento e verdade. Sempre ligado ao poder e ao desejo: o discurso é objeto do desejo, a vontade de poder almeja o discurso. Não são compostos por representações, os discursos devem ser tratados como conjuntos de acontecimentos discursivos, em sua materialidade. O discurso implica saberes e poderes. Certos discursos tem uma forma de regularidade e um sistema de coerção. A formação regular dos discursos pode integrar procedimentos de controle dele; figuras de controle podem tomar corpo no interior de uma formação discursiva. Há um desnível entre os discursos na sociedade, em deslocamento instável, inconstante e relativo: Há os discursos cotidianos (que passam com o ato que os pronunciou) Há discursos que originam atos de fala novos (que permanecem ditos) Há regiões dos discursos que podem ser facilmente veiculadas e outras extremamente fechadas. Sobre as vontades: Remete a vontade de poder, em Nietzsche. Toda vontade é historicamente constituída e aparece num complexo poder-saber: apoiada num suporte institucional (práticas); apoiada (mais diretamente) no modo do saber em uma sociedade (seu valor, distribuição e atribuição); se expressa no discurso. Vontade de saber ≠ Vontade de verdade Vontade de verdade ≠ verdade Sobre a verdade: Citamos a passagem: “Mendel dizia a verdade, mas não estava ‘no verdadeiro’ do discurso biológico de sua época”, estava numa “exterioridade selvagem”. Por Arthur Lobo, 2011